Comentário do texto de Katia Mattoso

"A tese de Kátia M. de Queirós Mattoso sobre Salvador não nasceu de um mero interesse acadêmico, ela resultou de um encontro provocante: o de uma mulher grega de profundas raízes européias e helênicas com a Bahia de todos os Santos e de múltiplos coloridos"

Terreiro de Jesus - Bahia Século XIX

Pintura documental: Diógenes Rebouças

‘Bahia, século XIX: Uma Província no Império’, é fruto de um árduo e longo trabalho de pesquisa; trabalho esse, alvo de impecilhos e grandezas de vária ordem, segundo o relato da autora. A feitura do mesmo, foi, para a autora, uma autêntica escola de vida, não só pelas ricas coligações acadêmicas que fez, mas também, pela dura tarefa que foi conseguir algo que norteasse o seu trabalho, dentre os ensaios de memória que habitavam os centros históricos baiano. Ao chegar na Bahia, foi extremamente difícil, para kátia, entender a cidade que lhe acolhera.

A capital do Brasil colonial, se transformara num museu idolatrado pelas suas gentes, por um passado prometedor. Tudo era caraterístico; a miscegenação, o que nos leva a pensar, normalmente, em raça, na Bahia comportava conotações diversas. Não só a raça era paradoxal, a igreja, também, tinha uma imagem dúbia perante os seus; a mesma igreja que legitimava as relações sociais, era incapaz de desempenhar seu papel, congregar o povo de Deus, ensinar-lhe os mistérios da fé – e também incapaz de lutar contra certos arbítrios da autoridade civil. Como observa a autora, pouquíssimos eram os seminaristas da Universidade Católica que acabavam por ser padre. Isso nem para todos era um problema, aliás era encarado com muita naturalidade na Bahia de todos os Santos.

O que encabulou, realmente, a autora, e lhe empurrou, de uma certa forma, a dar um estilo inédito ao seu trabalho foi as relações sociais que predominavam nesta província. A deficiência que se constatava, e que ainda se constata, nas relações sociais na Bahia, choca qualquer um. Não só por existirem diferenças, mas também, e principalmente por essas diferenças serem naturalizadas e oficializadas. Cada um conhecia o seu lugar, e invadir o território do outro significava atrevimento, no caso do negro; e benevolência, no caso de um branco ou brancóide reconhecer uma "eventual" qualidade no seu servo.

Um fato que causara estranheza e que ainda é pertinente na Bahia, é a questão da cor da pele, ou seja a textura da epiderme. Um indivíduo que possui epiderme clara, e que, no entanto tem traços negróides, esconde literalmente as suas origens e entrará em conflito com o primeiro que tentar questioná-lo sobre a sua árvore genealógica. E mesmo que aceite o "maldito" sangue negro, enfatizará, com orgulho, o fato de ter descendentes brancos. É absurdo, mas é o que se constata, inclusive entre os pretendentes a intelectuais da "Federal".

A autora deu um tratamento ironizado aos que outrora faziam parte da ‘Federal’ destacando a pretensão do indivíduo que ali pôs os pés. Ainda hoje se constata essa distância entre os estudantes da Federal e a grande massa social, ou melhor, o elitismo da universidade. (Quando cheguei na Bahia, numa daquelas primeiras visitas turísticas que se faz a uma cidade maravilhosa como Salvador, conheci um "rapazinho", vendedor de pulseiras, numa praia. Estava ali com os meus irmãos africanos a falar, quando ele aproximou-se dirigindo-nos a palavra. Depois de dar respostas a todas as suas perguntas, inclusive a de querer saber o que viemos fazer aqui, ele começou a apalpar os meus cabelos. Eu usava umas trancinhas "afros". Quão foi o meu espanto, quando ele me perguntou se aceitavam que eu entrasse na "Federal" com aquelas tranças. No momento confesso que fiquei atônita, sem saber a razão daquela pergunta. Mas, em momento algum, a considerei absurda. No entanto, depois de uma semana freqüentando a Federal, descobri por mim mesma, a razão daquela pergunta tão realista).

Essa sensação de exclusão manifestada por esse garoto, que detalhe, "era negro", pode ser alusiva à discriminação existente na cidade de Salvador, e que tem como alvo, na sua grande maioria, os afrodescendentes.

A cidade que Kátia conheceu apresentava mais ou menos esse panorama. Todavia, ela não queria atribuir a culpa da estagnação da mesma, logo à primeira, a esses fatores abordados. Esta questão foi a problemática numero um da sua tese. Após exames e mais exames de pontos de vista que privilegiavam o fator econômico sobre o social, a autora chegou a uma conclusão. Ou seja, que primeiro era necessário desvendar a trama social da Bahia, resultante de encontros de homens e etnias, de tradições e crenças, de costumes e mentalidades completamente opostas na aparência. Ajuntando a isso, a autora considerou imprescíndivel destacar claramente as estruturas e hierarquias, o papel das elites, dos ricos, dos pobres, dos livres e dos escravo e da igreja.

Tendo em vista essas situações, foram muitas as questões que nortearam esse trabalho de tão rico valor. Teria essas relações sociais aparentemente tão pouco conflitantes revelado as suas falhas e entravar uma evolução verdadeiramente construtiva? Seria o fato da memória coletiva ter se revelado conservadora? Podería-se explicar a decadência da Bahia pela profusão de ‘mimos’ herdados da tradição portuguesa, ou então por uma contribuição africana esclerosada pelo sistema escravocrata, que a teria impedido de explorar sua força e suas riquezas? Enfim, inúmeros foram os desafios enfrentados pela autora . Desafios esses que resultaram num trabalho digno de nome que é "Bahia, século XIX: Uma Província no Império".

Margarida Filipa Fontes


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