editorial
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EDUCAÇÃO: A AMÉRICA LATINA QUE HÁ DE SER

“Tenho tão nítido o Brasil que pode ser e há de ser, que me dói demais o Brasil que é”
(Darcy Ribeiro)

Completados vinte anos da morte de Paulo Freire e Darcy Ribeiro em 2017, permanece tarefa intelectual e cidadã dialogar com as contribuições teóricas e políticas desses educadores, reinventando propostas pedagógicas que promovam a emancipação intelectual, a justiça social e a equidade de classe, etnia e gênero. Este dossiê se dedica a essa tarefa ao apresentar reflexões, memórias e práticas que atestam a vitalidade e a vivacidade dos legados de Darcy Ribeiro e Paulo Freire.

Roseli Figaro, em “Darcy Ribeiro e Paulo Freire: para pensar o Brasil”, alia memória afetiva e rigor científico na análise das aproximações e distanciamentos entre esses autores, no campo da comunicação. Luiz Roberto Alves, companheiro de trabalho de Freire, realiza, no ensaio “Paulo Freire e a comunhão educacional no mundo”, um diálogo ao modo freireano com um de seus últimos críticos, recuperando vozes e elucidando o pensamento de Freire a partir de seus próprios textos. Já em “Universidade em tempos de calamidade pública: crise ou projeto?”, de Leonardo Nolasco-Silva e Vittorio lo Bianco, a obra de Darcy Ribeiro serve de mapa para discutir a crise da universidade no estado do Rio de Janeiro e o lugar por ela ocupado na produção de um projeto de nação.

As lições de Darcy se desdobram nas memórias afetivas de duas profissionais que conviveram com o autor e participaram do seu sonho. Em “Vinte anos sem Darcy: impressões e notas”, Helena Bomeny reflete sobre a falta que um intelectual como Darcy faz em vários aspectos: da aposta no Brasil como sociedade à paixão pela literatura como expressão maior da criatividade intelectual, científica, política e afetiva. Nessa mesma direção, em “A lição de Lúcia”, Lúcia Velloso Maurício delineia, a partir do relato da experiência que vivenciou como diretora da escola de ensino fundamental de um projeto de Escola de Demonstração, a concepção de Darcy Ribeiro sobre educação básica e sua intensa preocupação com a formação de professores.

O legado de Paulo Freire e Darcy Ribeiro se apresenta em toda sua riqueza nos artigos que descrevem como essa inspiração se traduz em ação nos mais diversos campos. Em “Kaplún e as políticas de comunicação e educação do MST”, Alexandre Barbosa mostra as influências de Mario Kaplún, educomunicador argentino radicado no Uruguai, nas práticas pedagógicas e comunicativas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No campo da educação indígena, Karla Pádua examina, em “A Formação Intercultural como um tempo de muitas aprendizagens”, as aprendizagens que emergiram das narrativas de professores/as indígenas participantes da primeira turma de um curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas, destacando as trocas de experiências entre grupos de etnias diversas e o aspecto prático do conhecimento escolar.

No campo das artes, o legado freireano se revela especialmente produtivo. Em “Práticas artísticas e musicais: revelações e desafios”, Priscila Messias e Denise Martins descrevem os resultados de uma pesquisa realizada com crianças, envolvendo atividades de intervenção baseadas na pedagogia dialógica de Freire. Em “Músicos callejeros: economía popular y pensamento académico”, Andrea del Pilar reflete sobre a atuação dos músicos de rua nos espaços públicos da cidade de Bogotá, na Colômbia, interrogando-se sobre como a universidade pode incorporar em seu currículo novos diálogos com as necessidades da cidade.  Em “A literatura depois das ocupações secundaristas”, Luiz Guilherme Barbosa parte de relatos sobre as ocupações secundaristas em 2015 e 2016 para propor outras abordagens da literatura na escola, atentas a uma economia performática do texto.

O dossiê conta ainda com a resenha do livro virtual Vidas presentes, de Luiz Eduardo Soares, por Raphaella Lira, que apresenta, por meio de relatos de abandono e evasão escolar impactantes, o projeto Aluno presente.

Por fim, duas entrevistas realizadas por Margarita Victoria Gomez revelam aspectos instigantes e pouco conhecidos da vida e da obra de Paulo Freire. Lutgardes Costa Freire, filho do educador, nos conduz à experiência do exílio vivido pela família, e Moema Viezzer, à jornada de uma mulher que acompanhou com experiências femininas a trajetória de Freire.

Neste dossiê, dois artigos são republicações da revista “Artes de educar”, da UERJ: “Universidade em tempos de calamidade pública: crise ou projeto?” e “Vinte anos sem Darcy: impressões e notas”. Em um momento em que a educação no estado vive um processo de desmonte, essa opção se justifica pela importância das reflexões trazidas por esses textos, que testemunham a força de resistência intelectual da universidade em situações de crise.

Em tempos de intensa polarização política, este dossiê revela como, vinte anos após a morte de Darcy Ribeiro e Paulo Freire, a chama de suas ideias permanece viva e atuante, mesmo com todas as dificuldades, na contramão das propostas conservadoras que novamente assombram o país e a América Latina. Desejamos que a sua leitura possa dar algum alento àqueles que não se conformam com “a América Latina que é” e continuam trabalhando para a educação que “há de ser”.

 

Adriana Armony (Colégio Pedro II), Margarita Victoria Gomez (PACC/UFRJ) e Pablo Nabarrete Bastos (UFF)
Organizadores

dossiê
Tempo de leitura estimado: 36 minutos

DARCY RIBEIRO E PAULO FREIRE: PARA PENSAR O BRASIL

Resumo: Este artigo discute as aproximações e distanciamentos teóricos e metodológicos entre dois grandes pensadores brasileiros: Darcy Ribeiro e Paulo Freire. O programa que se pretende cumprir nessa discussão é singelo e se inicia com uma reflexão sobre como a autora teve contato com a obra desses dois intelectuais em sua trajetória formativa. Desse lugar de fala, faz-se um breve percurso sobre a o pensamento de Darcy Ribeiro e de Paulo Freire, trazendo para os leitores bases teóricas referenciais de ambos. No movimento seguinte, tenta-se estabelecer proximidades e distanciamentos entre ambos, sobretudo, busca-se um eixo aproximativo que tem como foco o campo da comunicação. Para finalizar se faz algumas considerações sobre a atualidade da obra de ambos.

Palavras-chave: Darcy Ribeiro, Paulo Freire; comunicação; educação; diálogo; Brasil.

Abstract: This article discusses the theoretical and methodological similarities and differences between two great Brazilian thinkers: Darcy Ribeiro and Paulo Freire. The program intended to be carried out is simple and begins with a reflection on how the author came into contact with the work of these two intellectuals in her formative trajectory. A brief walk though the thoughts of Darcy Ribeiro and Paulo Freire will bring the readers to the theoretical basis of both. Next, the similarities and distances between both will be established. The goal, above all, is to look for an axis of similarities that has as a focus the field of the communication. To conclude, considerations on the current implications of the work of both will be made.

Keywords: Darcy Ribeiro, Paulo Freire; communication; education; dialogue; Brazil.

 

Introdução

Dois encontros com Darcy Ribeiro. O primeiro foi com o romance Maíra, obra que li aos 16, 17 anos. Algo completamente diferente do que já havia lido em termos de literatura. Apresentou-me uma cultura com corpo e alma de terra, água, mistério e, força vital; e o conflito que, para além de identidade, era um questionamento sobre a ação predatória de uma cultura sobre a outra. O segundo momento foi o encontro com o político, o senador que apoiou Brizola, o secretário de Educação que inventou uma escola integral e integrada, chamada popularmente de brizolões. Os CIEPs – Centros Integrados de Educação Pública – prometiam uma revolução na educação no Rio de Janeiro. Esses encontros em tempos diferentes provocaram, no entanto, uma mesma impressão: a franqueza da fala aberta de quem vibra e vive aquilo que faz. E ambas as obras declaravam compromisso com o nacional, com a emergência de uma nova civilização.

Já Paulo Freire entrou em meu caminho um pouco mais tarde, aos 18 anos, quando comecei a trabalhar com alfabetização de adultos, no Movimento Brasileiro de Alfabetização – Mobral. Era um arremedo do que o governo João Goulart fez com seu programa de alfabetização, liderado por Paulo Freire. Muito jovem, graças às boas educadoras coordenadoras do Mobral de uma região administrativa da cidade de São Paulo, começamos a estudar o que era o método Paulo Freire. Na faculdade de jornalismo, com os amigos, Paulo Freire também era tema do grupo de estudo que formamos espontaneamente. Nosso interesse era estudar os movimentos políticos no Brasil antes do golpe de 1964 e a resistência à ditadura civil militar, e aí também Paulo Freire se apresentou junto com os CPC – Centro Popular de Cultura – que promoviam a alfabetização popular com as diretivas do pensamento freireano. Depois, não poderia ser diferente, nosso trabalho de conclusão de curso, na graduação, foi uma monografia com pesquisa bibliográfica e entrevistas com educadores sobre Paulo Freire. E assim, aprendi um pouco sobre o Brasil pelas mãos desses dois grandes homens, em momentos da juventude em que, de modo geral, se está preocupado com outras coisas.

Deste lugar de fala, afetivo porque faz parte de minhas memórias, discutiremos no artigo, as aproximações e distanciamentos do pensamento desses dois intelectuais. É uma discussão singela, sem pretensão de exaustão, cujo objetivo é selecionar de ambas as obras os aspectos que para nós são determinantes. Dividimos o artigo em três movimentos, o primeiro de apresentação e comentários sobre aspectos das obras de cada pensador. No segundo movimento, tentaremos buscar as aproximações e os distanciamentos entre ambos e, para finalizar, alguns apontamentos sobre a atualidade das obras dessas duas figuras.

Darcy Ribeiro e Paulo Freire: duas obras, dois testemunhos por um outro Brasil
Darcy Ribeiro e Paulo Freire: duas obras, dois testemunhos por um outro Brasil

 

Darcy Ribeiro e Paulo Freire: aspectos de suas obras

Darcy Ribeiro

Nascido em Minas Gerais, Darcy Ribeiro formou-se em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1946. Tornou-se antropólogo dos mais importantes do país e com relevância no cenário internacional. Conforme sua fala, há duas obras para as quais dedica maior estima: Maíra, aqui já comentada; e O processo civilizatório, escrito no período de exílio em que passou no Uruguai, como professor da Universidade da República, 1968.

Se a Antropologia e a Etnologia lhe permitem conhecer as nações indígenas de nosso país, aproximar-se delas para entendê-las em seus processos culturais, afetivos e espirituais, fazendo-o compreender a dramaticidade dos processos de aculturação subalternizados, é na obra O processo civilizatório que Ribeiro vai demonstrar a abrangência de seu pensamento, extrapolando o perímetro da Antropologia, para inserir-se no da História, da Economia e da Sociologia. Ou seja, faz incursões na produção de uma teoria geral que permita, mais do que conhecer a trajetória dos diferentes povos e civilizações, compreender o processo histórico em sua perspectiva evolutiva, não determinista. Nessa perspectiva, sociedades e culturas se movimentam na história no sentido orientado por suas forças civilizatórias, encontrando-se ou não preparadas para a autonomia e o desenvolvimento das forças produtivas, sobretudo, as tecnológicas.

O ensaio O processo civilizatório é, nesse sentido, o amadurecimento de um conjunto de estudos e de experiências políticas vivenciadas no Brasil em suas diferentes dimensões: na Universidade e na luta pela Educação, ladeando Anísio Teixeira e como fundador da Universidade de Brasília; nos cargos executivos dos governos de então; e na vivência do Brasil profundo, no período de colaboração com o Marechal Rondon, convivendo com as populações indígenas, sobretudo os índios Kadiwéu, Kapar, tribos no Alto Xingu e com os mestiços – brancos, negros, indígenas – nos rincões do país. O estilo da escrita ensaística dialogada, nada presunçoso e rococó, transmuta a fala aberta e direta do professor em diálogo com os estudantes. Esse livro traduzido em várias línguas em distintas regiões do globo, é objeto de polêmica e de crítica tanto de setores mais conservadores que o imputam sem mérito científico, por se tratar de uma síntese ensaística, ou por propagar um ideário evolucionista que macula as concepções funcionalistas. Por outro lado, também foi contestado por marxistas, os quais imputam ao autor uma perspectiva evolucionista determinista e idealista, porque não atento à luta de classes como motor da História. A essas discussões, cabe destacar a posição do autor manifesta no Prefácio à quarta edição venezuelana de O processo civilizatório e que aparece em 1978. Diz Darcy Ribeiro que seus críticos deveriam considerar “as duas proposições marxistas sobre a evolução”: aquela apresentada por F. Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado e aquela expressa na obra Os Grundisse, de Marx. Mostra-se, portanto, leitor dos fundadores do marxismo e contesta a ortodoxia academicista que torna a obra viva e aberta de Marx em compêndio a ser aplicado sem se observar a vida concreta das sociedades.

Ribeiro se afirma um evolucionista e pergunta (2000, p. XXI): “que são os esquemas de sucessão das formações econômico-sociais de Marx e Engels, senão teorias evolutivas?” Desse modo, reafirma a relevância da compreensão do processo histórico, que não é linear e nem arbitrário e errático, ao contrário, é “explicável e, em certa medida até previsível” (p. XXI). Com isso, nos dá pistas de seus referenciais teóricos e metodológicos pois, se nega o evolucionismo de Tylor e Spencer, reafirma a teoria da evolução como “único esquema teórico capaz de tornar a história inteligível” (p. XXI). As aproximações e distanciamentos do marxismo estão, portanto, na forma de se entender a evolução e de se estabelecer as categorias de análise. Darcy Ribeiro privilegia o desenvolvimento das tecnologias no processo social, tal e qual se tem o privilégio das forças produtivas – meios de produção e força de trabalho – na teoria marxista. No entanto, o motor da História para Darcy Ribeiro são as formas de apropriação dessas técnicas e tecnologias e não a luta de classes, revelada nas relações de poder pela apropriação dos meios de produção. Ribeiro não analisa a evolução histórica por meio dos embates do poder entre e contra as classes dominantes; ele organiza e separa as civilizações pela tradição do respectivo desenvolvimento tecnológico.

Nesse sentido, há conceitos fundamentais, impressos em suas pesquisas e na analítica de O processo civilizatório. Ele se apoia no “conceito básico subjacente às teorias da evolução” (p. 8) de que as sociedades humanas passam por dois processos simultâneos e complementares de transformação: diversificação e homogeneização. A diversificação responde, segundo o autor, “ao imperativo da adaptação ecológica diferencial” que permite qualidades particulares no processo cultural, de especialização, promovendo ou desviando-a do desenvolvimento, em “virtude de acontecimentos históricos particulares” (p. 8). O segundo aspecto homogeneizador “é a evolução sociocultural” (p. 8), dada por condições objetivas na “uniformidade da natureza sobre a qual o homem atua” e se exprime na tecnologia produtiva, que propicia certas características de “ação sobre a natureza” (p. 9). Desse modo, a análise do desenvolvimento tecnológico das sociedades está ancorada, na obra de Darcy Ribeiro, na compreensão derivada desse aspecto homogeneizador. Afirma o autor:

Como resposta a esse imperativo é que encontramos em todas as culturas um corpo mínimo de conhecimentos objetivos e de modos estandardizados de fazer. Vale dizer que a lógica das coisas se impõe às culturas, desafiando-as a desenvolver-se mediante a percepção de seus princípios e o ajustamento a eles (p. 9).

A esses imperativos, somam-se “três contingenciamentos básicos de natureza extracultural”. O primeiro decorre da estrutura biológica do homem, cujos atributos de inteligência, flexibilidade, individualização e socialização “o uniformizam como espécie”. O segundo, diz respeito às “contingências da vida associativa” que exigem para seu desenvolvimento a resolução de “pautas culturais capacitadas a propiciar o convívio e ordenar a interação social”. Estão aí as formas organizativas das instituições sociais como a família, por exemplo, e as formas reprodutivas e de controle, como também as formas de produção econômica da sobrevivência. O terceiro contingenciamento é de “natureza psicológica” responsável pela “unidade essencial da estrutura neuropsicológica e mental dos seres humanos” (p. 9-10).

Este corpo conceitual para a compreensão do desenvolvimento da espécie humana, determinada sociocultural e economicamente, demonstra que Darcy Ribeiro considera o processo civilizatório ao longo dos períodos históricos. E, para fazê-lo, caracteriza-o nas diferentes regiões da Terra em que se desenvolvem sociedades; assim, ele estabelece um quadro evolutivo, sobretudo, observando o progresso tecnológico dos povos.

A partir dos imperativos já analisados, Ribeiro produz um conjunto de categorias para entender os estágios evolutivos das sociedades na história, tomando esses estágios como não lineares e nem pré-determinados. Uma delas é a de feudalismo como regressão social, que se manifesta em diferentes períodos, resultado do domínio tanto despótico salvacionista[1] quanto do domínio colonial mercantil, o que imputa às sociedades dominadas a segregação, a impotência para o desenvolvimento e a não renovação de suas forças. Dessa forma, o feudalismo não aparece na obra de Darcy Ribeiro identificado com a Idade Média, não é para ele, uma “etapa da evolução sociocultural” é regressão histórica “(…) seria um tipo geral de vicissitude em que até agora tendiam a cair e até a recair reiteradamente todas as altas civilizações” (2000, p. XXII). Outras categorias importantes são as de atualização histórica e aceleração evolutiva. A primeira é atribuída às sociedades dominadas, introduzidas à atualização tecnológica e sociocultural por meio da tutela de outras sociedades dominadoras. Por exemplo, seria o caso do Brasil, durante o 2º Império ou mesmo em seu processo de industrialização tardia no século XX. A segunda, de aceleração evolutiva, diz respeito aos processos evolutivos de progresso autônomo em que uma civilização é capaz de renovar seu sistema produtivo e reformar suas instituições sociais. O interessante é que nenhuma civilização está condenada a um único tipo de desenvolvimento, cabendo em diferentes períodos históricos as marcas tanto de atualização histórica quanto de aceleração evolutiva. A essas categorias soma, por outro lado, as de estagnação cultural, de atraso ou regressão histórica.

Esse instrumental conceitual é aplicado na analítica que Ribeiro desenvolve em O processo civilizatório para compreender os diferentes sentidos do desenvolvimento dos distintos povos organizados em comunidades e sociedades. O autor aponta como aspecto relevante da aceleração evolutiva a capacidade de uma determinada civilização formular respostas autônomas às suas necessidades de desenvolvimento. Sobretudo, o autor destaca a capacidade de formação de uma elite intelectual, técnica e autônoma, capaz de dirigir esse processo. Talvez esteja aí, segundo nossa hipótese, o fundamento da militância de Darcy Ribeiro pela Universidade e pela Educação no Brasil, na América Latina e em distintos continentes[2]. Sua militância para propiciar condições à formação de uma elite intelectual capaz de dirigir nosso processo civilizatório de forma autônoma, capaz de nos retirar da atualização histórica para entrarmos na aceleração evolutiva, foi esforço de uma vida inteira. Essa militância está lastreada no profundo conhecimento sobre o Brasil e seu povo.

Interessantes apropriações das imagens e falas de Darcy Ribeiro ecoam por aí  http://voarforadaasa.blogspot.com.br/2016/07/a-minha-vitoria-darcy-ribeiro.html
Interessantes apropriações das imagens e falas de Darcy Ribeiro ecoam por aí
http://voarforadaasa.blogspot.com.br/2016/07/a-minha-vitoria-darcy-ribeiro.html

 

Darcy Ribeiro foi um intelectual que formulou e reiterou a seu próprio modo a ideia de que no Brasil emerge um povo novo, uma nova civilização, dada por suas características de mestiçagem e de formação historicamente nova. Duas outras obras fundamentais estudam o Brasil nessa perspectiva, são elas O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995) e O Brasil como problema (1995). As questões que o autor enuncia nessas obras: “Qual é a causa real de nosso atraso e pobreza? e Quem implantou esse sistema perverso e pervertido de gastar gente para produzir lucros e riquezas de uns poucos e pobreza de quase todos?”[3] são discutidas à luz de seu profundo compromisso com a nação, com o sonho de um outro Brasil, capaz de ser gestado porque tem em seu povo, na mistura das raças, em seu frescor histórico e riquezas continentais os pressupostos para avançar. Ele tem fé no futuro e na nação. É crítico contumaz de nossa elite identificada com a ideologia forânea e imperialista. O investimento na educação e “suas passagens pelo Ministério da Educação e Cultura, pelo Governo Leonel Brizola, na criação da UnB e dos Cieps estavam em consonância com essa perspectiva de desenvolver uma nova práxis nacional (…)” (2014, p. 333) para a formação de uma elite mestiça, oriunda de nossas raízes, capaz de entender os dilemas do Brasil, comprometida com a autonomia e a soberania do país.

Paulo Freire

Sempre professor, interessado nas coisas da educação, de batismo Paulo Reglus Neves Freire, nasceu em 1921, no Recife, e faleceu como Paulo Freire, o educador dos oprimidos, em 1997. Sua obra registra o percurso intelectual de alguém sempre preocupado com a pessoa, o sujeito. Desde muito cedo, como professor, interrogava-se sobre sua própria prática. Essa reflexão se tornará parte fundamental de seu método, um dos fundamentos da relação horizontalizada entre educador e educando. A proposta filosófica e metodológica que vai forjando ao longo de sua experiência é denominada de Método Paulo Freire. Certamente o problema da nomeação é uma escolha que tem critério de valor e, talvez, Freire não quisesse denominar a proposta que construiu com o próprio nome. Mas foi assim que aconteceu pelos percalços da vida política brasileira que o fez correr o mundo para contribuir com países e organizações internacionais comprometidos com a educação.

A leitura do mundo com o mundo é, na obra de Freire, importante enunciado para se compreender os fundamentos teóricos aos quais ele se vincula. A experiência empírica com os alfabetizandos – jovens, adultos e crianças – e a formação teórica e acadêmica forjam, enquanto síntese, o caminho que o faz percorrer o Brasil, de Angicos, RN, aos CPC – Centros Populares de Cultura e, depois, às estruturas do Ministério da Educação, à frente do Programa Nacional de Alfabetização, do governo de João Goulart. É o compromisso de Paulo Freire com a conscientização do ser no mundo que torna sua presença insuportável para a elite civil militar que golpeou o Estado brasileiro. Desta feita, ele é acolhido em diferentes países, onde pode refletir e desenvolver a obra que o consagrou como um dos mais importantes educadores do século XX.

No sumário de seu livro Educação como prática de liberdade (1967) o primeiro tópico é “Educação e política”. Nesse ensaio o autor declara-se em ação pela transformação do país: de uma sociedade “sem povo”, composto por uma “elite superposta a seu mundo, alienada” e que via o povo como “coisa” (p. 35). Estão aí aclarados os pontos de vista do educador que não se exime da tarefa de colaborar para a emancipação de um povo mantido na ignorância para que se perpetue o poder de poucos. Está explicado o ódio de classe que Freire viu cair sobre si, pois a sua proposta não se esvaia em conversas nas rodas boêmias, ele era um homem de ação. A questão que estava (está) colocada era (é) a permanência no subdesenvolvimento ou a tomada de posição para as mudanças necessárias. Assim, afirmava ele “A opção, por isso, teria de ser também, entre uma ‘educação’ para a ‘domesticação’, para a alienação, e uma educação para a liberdade. ‘Educação’ para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito” (p. 36).

Freire salienta a necessidade de “politização” das massas, termo que ele empresta de Frantz Fanon[4], para eleva-las ao nível da superação do subdesenvolvimento e da dependência. Ele tinha plena consciência das resistências que encontraria por parte das elites dominantes que a ele lhe imputavam o adjetivo de subversivo. Mudar o Brasil, trabalhar para a conscientização popular pela emancipação, significa para Paulo Freire admitir que o homem comum tem condições de apoderar-se de si, tomado que esta pelo desprezo e coisificação a que lhe condenam.

Desse modo, a trajetória de educador está, em Paulo Freire, fundada na valorização das pessoas – jovens, crianças e velhos – deixados à margem da sociedade. A conscientização é uma ação e um conceito estruturante de sua obra. O autor afirma que:

Entendemos que, para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é (1967, p. 39).

Há nesse excerto uma visão histórica que entende a dialética entre o ser no mundo e o estar no mundo. A linha filosófica adotada valoriza a ação humana como motor da história. Para o ser humano, ente de relações, estar no mundo é transformá-lo. Uma proposta humanista embasada em visão avançada frente aos idealismos conformistas de grande parte dos educadores. No entanto, Paulo Freire é um crente na transcendência que liga o homem ao criador. Para ele a consciência da finitude humana, “do ser inacabado que é”, permite a plenitude que está “na ligação com seu Criador” (p. 40) Religião vem do latin religare e, para Paulo Freire, significa a transcendência que faz o homem existir na consciência de si forjada com os outros. O homem em religação não pode ser alienado. Em sua finitude, tornada consciência, o ser humano tem “o retorno a sua Fonte, que o liberta” (p. 40).

Desse modo, o educador, crente, afetuoso e de grande experiência nos processos de alfabetização traça um método cujo centro é o diálogo. Diálogo na horizontalidade necessária para o reconhecimento do outro; diálogo que permite a expressão de si, a tomada da palavra como potencial condição para a autorreflexão, para a ação. A educação para ele é um processo de comunicação. Nesse sentido, Freire enuncia que

Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir. O existir é individual, contudo só se realiza em relação com outros existires. Em comunicação com eles (p. 40).

Com essa visão desenvolve os conceitos de integração e ajustamento. O homem integrado é aquele que é sujeito de si no mundo, capaz de distanciamento crítico e de ação renovadora; o ajustamento denomina o ser adaptado, acomodado a sua situação que inclusive lhe é prejudicial. Entre integrar-se e ajustar-se existe uma distância, promovida pela subalternidade daquele que sofre a exploração e pela desumanidade daquele que promove a exploração. Assim, para Paulo Freire, a conscientização é uma ação humanizadora que liberta o explorado e o explorador. A tomada de consciência é um ato individual e coletivo que nasce do conhecimento crítico das situações concretas. O explorado e o explorador aparecem como seres inautênticos, carentes da tomada de consciência de seu papel na história. História que só pode ser humana se produzida em comunhão. A democracia participativa, promotora do diálogo e por ele sustentada é a condição necessária para esse fazer conjunto.

Assim, Paulo Freire realiza a análise da trajetória do Brasil fazendo-se uma sociedade subjugada e fechada, cuja elite, distanciada do povo, não se reconhece nele, vexa-se dele e mira-se no espelho de colonizador. Nesse sentido, a possibilidade de ampliação democrática é a efetivação de um processo de tomada de consciência que transforma a sociedade em transitiva, caminhando da transitividade ingênua para a transitividade plena. Livre de uma elite inautêntica, para a construção de uma “democracia fundamental”; ou seja, a democratização do corpo social em toda as suas esferas e estruturas: do Estado e da sociedade. Para Paulo Freire, nas condições reais do Brasil, buscar esse ideal é construir um processo educacional que emancipe a massa tornando-a povo. Ato que só pode ser feito pelos próprios interessados. Esse conceito de educação dialogada e emancipadora é por ele comentada no seguinte enunciado:

Era ir ao encontro desse povo emerso nos centros urbanos e emergindo já nos rurais e ajudá-lo a inserir-se no processo, criticamente. E esta passagem, absolutamente indispensável à humanização do homem brasileiro, não poderia ser feita nem pelo engodo, nem pelo medo, nem pela força. Mas, por uma educação que, por ser educação, haveria de ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição. Uma educação, que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção (p. 57).

Desse modo, a ruptura proposta por Paulo Freire é aquela que promove a humanização do homem por meio do reconhecimento de seu saber fazer. A educação é um processo de tomada de posição no mundo, é um reconhecer-se capaz de transformação, reconhecer-se sujeito com e no mundo.

Os aportes teóricos em que se baseia para definir o seu pensamento sobre participação e democracia estão lastreados em Zevedei Barbu, em Karl Mannheim, em Karl Popper e em Karl Jasper. A filosofia da educação é, entre outros, influenciada pela obra de John Dewey. Já Frantz Fanon, Erich Fromm e Simone Weill estão presentes em sua obra por meio da concepção de sujeito, de emancipação e liberdade. Esse arcabouço teórico junta-se ao melhor do pensamento nacional sobre cultura, desenvolvimento e educação: Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Álvaro Vieira Pinto. Este último, influenciou profundamente o pensamento de Paulo Freire sobre o tema da cultura. A visada antropológica que coloca o homem como produtor da cultura humana e, assim, de si próprio é a geradora do eixo central da proposta pedagógica de Freire. Afirma o educador que a descoberta de si como produtor de cultura coloca o trabalhador, o homem do povo no caminho da descoberta de sua potencialidade transformadora. Os Círculos de Cultura ou Centros de Cultura são os espaços de comunicação que se criam para que o homem do povo possa expressar-se e tomar posse de seu pensamento. Paulo Freire ilustra o alcance da ação educativa transformadora nas palavras dos homens e mulheres que se descobriram nesses espaços de diálogo: ‘“Faço sapatos’, disse outro, ‘e descubro agora que tenho o mesmo valor do doutor que faz livros’” (p. 109).

O método de Paulo Freire é o do diálogo horizontalizado não na forma da disposição física, mas na ação concreta da conversação entre iguais. Os Círculos de Cultura implementam o método que tem em sua raiz o encontro do educador e dos educandos com a sua realidade concreta. A descoberta dos temas que permitem a discussão a partir da noção de cultura, enunciada acima; os temas são sintetizados em palavras geradoras tanto das discussões como da riqueza fonética que permite a descoberta da lógica compositiva da palavra. A palavra é prenhe de sentidos e está à disposição para ser apropriada no sentido da liberdade. Essa apropriação demanda uma ação de descoberta que é transformadora. Assim, a metodologia é composta por fases que são construídas com os objetivos de propiciarem a discussão, a apropriação e o reconhecimento do homem do povo como Ser que faz história. Os relatos de Paulo Freire registram o bem-sucedido caminho dos Círculos de Cultura: 25, 30 dias e aqueles antes analfabetos, são leitores e escritores de suas próprias histórias. Sinteticamente, as fases do método são as seguintes:

1- Levantamento do universo vocabular dos grupos com quem se trabalhará. 2- (…) escolha das palavras, selecionadas do universo vocabular pesquisado. Seleção a ser feita sob critérios: a — o da riqueza fonêmica; b — o das dificuldades fonéticas (as palavras escolhidas devem responder às dificuldades fonéticas da língua, colocadas numa sequência que vá gradativamente das menores às maiores dificuldades); c — o de teor pragmático da palavra, que implica numa maior pluralidade de engajamento da palavra numa dada realidade social, cultural, política, etc. 3- (…) criação de situações existenciais típicas do grupo com quem se vai trabalhar. 4- (…) elaboração de fichas roteiro, que auxiliem os coordenadores de debate no seu trabalho. Estas fichas-roteiro devem ser meros subsídios para os coordenadores, jamais uma prescrição rígida a que devam obedecer e seguir. 5- (…) feitura de fichas com a decomposição das famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores (p. 111-114).

Nessa sintética enumeração de fases, o método mostra sua complexidade, devida, sobretudo, ao propósito de que o aprendizado só se torna conhecimento quando há o encontro da experiência com a ideia nova, esse encontro se dá na práxis dos alfabetizandos.

Revista Prosa e Verso reproduz entrevista realizada por Mario Sérgio Cortella e Paulo de Tarso Venceslau, para Teoria e Debate nº 17 – jan/fev/mar 1992 https://www.revistaprosaversoearte.com/paulo-freire-uma-entrevista/
Revista Prosa e Verso reproduz entrevista realizada por Mario Sérgio Cortella e Paulo de Tarso Venceslau, para Teoria e Debate nº 17 – jan/fev/mar 1992
https://www.revistaprosaversoearte.com/paulo-freire-uma-entrevista/

 

Em Educação como prática de liberdade, escrito em 1965, Paulo Freire contextualiza e discute o método desenvolvido. Em Pedagogia do oprimido, obra escrita no exílio no Chile, 1967, ele aprofunda as motivações filosóficas e políticas de sua proposta. Tratar de uma pedagogia do oprimido, não para o oprimido, quer dizer, pensar a partir da realidade daquele que sofre a exploração, a humilhação e a alienação. A temática do livro abrange a justificativa da proposta metodológica que está na superação da dicotomia opressor-oprimido, cujo eixo é “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em comunhão” (1978, p. 35). Essa visão é profundamente humanista e cristã, relega, no entanto, a luta de classes para patamares silenciados ou subsumidos pela lógica da comunhão entre os homens, sem polemizar com as reais fontes de desigualdade, as quais residem na forma da propriedade privada. No entanto, se o processo de tomada de consciência é real, a contradição emancipação versus concentração de bens materiais e imateriais apresenta-se já no primeiro momento desse processo. Daí o ódio de nossas elites dominantes, as quais promoveram o golpe civil militar de 1964.

No período da redemocratização do Brasil, Paulo Freire assume, na prefeitura de São Paulo, na gestão Luiza Erundina, a Secretaria da Educação. Nesse momento, o repensar da pedagogia do oprimido leva à escrita da Pedagogia da esperança, um reencontro com a pedagogia do oprimido (1992). Na apresentação da obra, o autor afirma:

O essencial, como digo mais adiante no corpo desta Pedagogia da esperança, é que ela, enquanto necessidade ontológica, precisa de ancorar-se na prática. Enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã (p. 5).

Ou seja, sua militância pela educação permanecia inabalável mesmo frente ao novo quadro de correlação de forças políticas que se vivia no Brasil. Aquele Brasil em potencial crescente de participação popular e de um projeto de nação autônoma dos anos de 1960, não estava configurado nesse outro período de redemocratização, seguia-se numa conjuntura bastante frágil, mas cheia de esperanças, esperança na ação transformadora como salienta Paulo Freire.

Aproximações e distanciamentos entre Darcy Ribeiro e Paulo Freire

Dois humanistas que tinham em comum a crença no povo brasileiro, a defesa da nação, a defesa da liberdade e do desenvolvimento brasileiro contra a subalternidade aos países ricos. Dois intelectuais que acreditavam na força renovadora da educação. Uma educação capaz de formar seres críticos, que saibam pensar por si próprios.

Têm em comum a formação obtida em um período em que o mundo buscava soluções para as mazelas criadas pelas duas grandes guerras mundiais. Foram formados por uma intelectualidade compromissada com a criação de uma elite intelectual brasileira, sobretudo, pautados pelos exemplos de Anísio Teixeira e os intelectuais do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, entre eles Álvaro Vieira Pinto. Nesse período, florescem intelectuais que pensam o Brasil calcados em uma visão de Estado e desenvolvimento autônomos.

Ambos, do ponto de vista político, estavam alinhados às diretivas governamentais que assumiram a democratização e o desenvolvimento como eixos do crescimento nacional. Participaram de ações governamentais relativas à ampliação do acesso à educação, seja no ensino básico e de alfabetização, seja, no ensino universitário. Foram intelectuais, no melhor sentido da palavra, comprometidos com mudanças profundas do país, com as reformas de base do governo João Goulart. Por esse percurso, sofreram perseguições e foram banidos do país. Na redemocratização dos anos de 1980, retornaram e deram continuidade às suas propostas, principalmente, na educação. Militaram pela educação, pela democracia e assumiram, novamente, postos na política de estado.

Darcy Ribeiro tratou os povos nas especificidades do processo civilizatório. Via a cultura como uma produção coletiva em evolução histórica, no sentido do conhecimento da natureza e da fabricação de um mundo mais humanizado. Paulo Freire também entendia a cultura como processo de hominização. Para ele, a cultura é tudo o que o ser humano cria e dá sentido. A descoberta libertadora, para ambos, era aquela propiciada pelo reconhecimento de que todo ser humano é um ser culto. Produz cultura.

Ambos promoviam mensagens de esperança e de transformação. Paulo Freire é um educador, político, religioso. Um cristão adiante de seu tempo. Darcy Ribeiro não era religioso, era um crente na vitalidade da nação nova e mestiça em que se configura o Brasil.

Na forma da ação política, vincularam-se a programas partidários diferentes. Darcy Ribeiro continuou a trajetória daqueles que, como Leonel Brizola, resguardaram as melhores ações de um nacionalismo progressista e internacionalista de caráter mestiço. Paulo Freire vinculou-se àqueles que pensavam o Brasil a partir do movimento popular de base. Darcy Ribeiro lutava pela educação para formar uma elite capaz de dirigir o Brasil com um programa de desenvolvimento nacional autônomo, democrático e de bem-estar para a maioria. Ambos consideravam as elites brasileiras, vinculadas às oligarquias e ao imperialismo, incapazes de criar condições para o desenvolvimento socioeconômico autônomo do país.

Darcy Ribeiro foi o relator da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei 9.394, dezembro de 1996) cujo teor consubstanciou-se em um meio caminho entre o que vinha sendo gestado com a participação de instituições e educadores (projeto que tramitava com a relatoria de Florestan Fernandes) e o que foi possível e promulgado com a relatoria de Darcy Ribeiro. Para uns, retrocesso, para outros, pequenos avanços. Longe, no entanto, do que defendia Paulo Freire em termos de uma educação dialógica e mais horizontal. Vê-se claramente nesse episódio a atuação e a pressão de agentes políticos como o Banco Mundial, o Congresso conservador e o governo neoliberal (Fernando Henrique Cardoso). Para Pedro Demo, “formulação [da LDB] é branda, mostrando o caminho futuro para escola de tempo integral como algo que a sociedade irá naturalmente exigir” (1997, p. 13) Para Demerval Saviani, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: “É uma lei com a qual a educação pode ficar aquém, além ou igual a situação atual” (1997, p. 226). Os comentadores da LDB também apontam as pressões do Banco Mundial para aprovação de uma lei nacional que atenda demandas do mercado global de financiamentos e, portanto, endividamento dos Estados Nacionais, sendo a educação um bom motivo para o negócio.

Objetivamente a LDB avançou muito pouco no que diz respeito à necessidade de maior integração entre educação e comunicação, restringindo-se a demandas mais tecnológicas do que pedagógicas. Talvez, nesse sentido, haja aí o maior distanciamento entre Paulo Freire e Darcy Ribeiro. No entanto, a conjuntura política pouco favorável, à época, deve ser considerada em defesa de Ribeiro.

Ambos defenderam um Brasil autônomo e democrático, ambos acreditavam que a educação seria o caminho mais viável para essa conquista. Mas cada um deles fez sua própria trajetória e desenvolveu seu método. A educação como ação política é o que mais os aproxima. Ambos também compreenderam, cada qual a seu modo, que a educação é um processo de comunicação.

Paulo Freire foi mais radical – no sentido de ir às razões das coisas – ao defender a educação como forma de emancipação do homem e da mulher do povo. Ele defendia uma educação libertadora. A consciência de agente da história e a aquisição do pensamento crítico poderiam permitir ao povo buscar seus direitos e lugar no mundo.

Atualidade das obras

O aspecto que mais empresta atualidade à obra de ambos os autores é aquele relativo à crença na necessidade da autonomia do país frente aos colonialismos de todos os matizes. As falas tanto de Paulo Freire como de Darcy Ribeiro chocam por fazer-nos ver o quanto nossas elites estão atreladas a ideias que prejudicam o desenvolvimento autônomo e democrático do país. A educação para a autonomia e a liberdade continua palavra de ordem mais do que urgente, quase 70 anos depois dos primeiros trabalhos dos autores. Essa chaga não se fechará até que uma elite digna do povo brasileiro implemente os sonhos de autonomia sonhados por Paulo Freire e Darcy Ribeiro.

Ainda persistem ideias nefastas como a escola sem partido, a obrigatoriedade do ensino religioso, a perseguição a professores, exemplos que demonstram o atraso e o quão antirrepublicanos são os que atuam em prol dessas propostas. A educação e a comunicação para a cidadania e a liberdade, presentes nas obras de Paulo Freire e Darcy Ribeiro são bandeiras mais que atuais, mais que urgentes; sem a implementação delas, o Brasil vai continuar chafurdando, sem se libertar dessa elite mesquinha tão bem descrita por eles.

Tanto a alfabetização de jovens e adultos, a escola em tempo integral quanto a Universidade pública autônoma e comprometida com o desenvolvimento nacional soberano são pontos programáticos, nos termos de Ribeiro, vitais para o Brasil entrar na aceleração evolutiva.


 

* Roseli Figaro é professora doutora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da USP. Coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho.

 

Referências

Antunes, Angela. Paulo Freire. In: PERICÁS, Luiz Bernardo e SECCO, Lincoln (orgs.) Interpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 377-391.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. Em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados/ Cortez, 1989.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

DEMO, Pedro. A nova LDB: ranços e avanços. 6. ed. Campinas: Papirus, 1997.

JANUZZI, Gilberta Martino. Confronto pedagógico: Paulo Freire e Mobral. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.

RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. Estudos de antropologia da civilização: etapas da evolução sociocultural. São Paulo: Companhia das Letras/ Clube Folha, 2000.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. São Paulo: Global, 2015.

RIBEIRO, Darcy. Maíra. São Paulo: Civilização Brasileira, 1978.

SANTOS, Agnaldo dos, FERRAZ, Isa G. Darcy Ribeiro. In: PERICÁS, Luiz Bernardo e SECCO, Lincoln (orgs.). Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 325-336.

SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. 3. ed. São Paulo: Autores Associados, 1997.

 

Notas

[1] Diferentemente de outros autores, Darcy Ribeiro cria um quadro evolutivo que comporta impérios mercantis salvacionistas e colonialismo escravista dentro de um mesmo período histórico, sendo vividos em diferentes partes do globo. Comparativamente a outros esquemas evolutivos, a proposta de Ribeiro não comporta o Feudalismo como fase histórica e econômica do desenvolvimento da sociedade. C.f. Ribeiro, D. O processo civilizatório, 2000, p. 35.

[2] É relevante destacar o papel de Darcy Ribeiro não só na criação da Universidade de Brasília, mas também de seu protagonismo para a reestruturação do sistema universitário no Peru e no projeto de estruturação da Universidade de Ciências Humanas de Argel. Também vale registrar sua intensa participação em órgãos como ONU, Pnud, OIT, sempre a cargo da educação. E sobretudo seu destaco empenho na Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional – Lei Darcy Ribeiro n.9.394/1996.

[3] As duas questões compõem a capa da edição de 2015 da obra: O Brasil como problema, pela Editora Global.

[4] Frantz Fanon foi um intelectual negro, comprometido com ideias de liberdade e emancipação. Sua obra mais conhecida nesse terreno é Os condenados da terra (1961).

dossiê
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PAULO FREIRE E A COMUNHÃO EDUCACIONAL NO MUNDO

Resumo: Este ensaio busca representar um modo freireano de responder a críticas desferidas contra o pensamento do educador. Companheiro de trabalho de Freire nos anos de 1990, o autor do ensaio recupera vozes de seus textos para dialogar com um dos últimos críticos, cujo livro também imputa ao patrono da educação brasileira certo extravio dos estudos de pedagogia no Brasil. Os textos são postos em relação e analisados com base em repertório linguístico, buscando evitar o mero confronto ideológico, como faria Paulo se vivesse em tempo de grande virulência verbal e intolerância, como o nosso.

Palavras-chave: Pedagogia; educação brasileira; Paulo Freire; influência; crítica.

Abstract: This essay seeks to represent Freirean way of responding to  the critiques issued against the educator’s thinking. As a former working partner of Paulo Freire in the 1990s, the author of the essay recover voices from his texts in order to dialogue with one of the last critics of Freire, whose book imputes to the patron of Brazilian education some misplacement of studies of pedagogy in  Brazil. The texts are put into relation and analyzed comparatively under linguistics repertoire that avoids ideological labels, as Freire would have done so if he were to live in times of great verbal virulence and intolerance, like ours.

Keywords: Pedagogy; Brazilian education; Paulo Freire; influence; criticism.

 

Introdução

O ano de 2017 assinalou investidas contra Paulo Freire. Abaixo-assinado e discursos midiáticos trataram do “desastre” representado pela obra de Paulo Freire no desenvolvimento da educação brasileira contemporânea. No Congresso Nacional, alguns deputados, capitaneados pelo Sr. Rogério Marinho (RN) repercutiram tais discursos. Juntos, buscaram retirar do educador o patronato da educação nacional. Publicou-se, também, uma obra que pretende questionar Paulo Freire – ou “certa leitura” dele – assinada por Ronai Rocha. Trata-se do livro Quando ninguém educa –Questionando Paulo Freire[1].

Disponível em: https://www.saraiva.com.br/quando-ninguem-educa-questionando-paulo-freire-9738551.html. Acesso em: 08 jun 2018
Disponível em: https://www.saraiva.com.br/quando-ninguem-educa-questionando-paulo-freire-9738551.html. Acesso em: 08 jun 2018

Seria de todo desnecessário defender o autor de Pedagogia da autonomia. Reconheça-se, no entanto, que não temos o direito de ser sectários, como aprendemos com ele. Dizer que a obra de Rocha nada vale diante da grandeza do educador que ficou conhecido em parte significativa do mundo seria algo sectário. Daí, pelas anotações que faz em algumas partes do livro, o trabalho do Professor Rocha tem o valor de texto para o debate, assim como foi necessário intervir e debater para que as investidas citadas sucumbissem, por enquanto, nas comissões do legislativo nacional. Ademais, o mestre de Angicos e perambulante do mundo buscou sempre receber as críticas, considerá-las, analisá-las e respondê-las, o que manteve afiada a sua consciência crítica, coerente com os direitos fundamentais exercido pelas pessoas.

Pretende-se neste ensaio trabalhar a obra de Rocha menos exaustivamente do que em seus motivos centrais. Mesmo porque ela revela um Freire trabalhado algo perfunctório, como se fosse uma hipótese de trabalho no meio de uma “outra” obra que percorre as 153 páginas e que visaria discutir o currículo do ensino médio em face do advento de sua nova BNCC.

Para desenvolver este trabalho cabem, portanto, preliminares: 1. Não serão dispostos os conceitos de conservador/revolucionário/reacionário/progressista e similares porque, embora úteis na marcação de posições, servem neste tempo de banalização midiática como etiquetas que se projetam na história cultural brasileira já muito marcada e posta a reboque por grupos de interesse[2]. Melhor, pois, situar-se noutro repertório, sem prejuízo hermenêutico. 2. Interessa saber se o dinamismo do pensamento freireano foi objeto de conhecimento da obra de Ronai Rocha, a fim de justificar uma crítica fundamentada sobre um movimento de ideias que vai de 1960 ao início deste século, já por meio de obras póstumas de Freire; 3. O título da obra em questão sugere o questionamento direto da obra de Freire, diferentemente das partes que o compõem: como já escrito, existe em Quando ninguém educa uma obra já composta sem a temática freireana e que está em busca de pensar uma base nacional comum do ensino médio, a qual se revela ao autor como inexistente, mal projetada nas relações MEC-CNE e, de outro, a suposição de uma leitura inadequada de Freire sobre um conjunto irrisório de textos; o autor avança para o final da obra sem os dois objetos, Freire e BNCC do ensino médio e, portanto, deriva sua escritura, ou a re-monta em direção à interdisciplinaridade e algumas digressões. De todo válidas, embora melhor fosse entender seu livro como um conjunto de ensaios distintos. 4. Não é possível ater-se exclusivamente ao texto de Pedagogia do oprimido, ou citar por acaso e mero adjutório uma ou outra obra, porque os grandes motivos freireanos são sinérgicos, aprendentes no movimento do viável e receptores do mundo movente, com o qual interagem e dialogam de modo indispensável e imprescindível. O próprio Freire sugere um processo de leitura na Breve explicação de Ação cultural para a liberdade: “Juntamente com Extensão ou comunicação, publicado no Brasil em 1970 por Paz e Terra, alguns deles (textos) talvez aclarem certos possíveis vazios entre Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido[3]”. 4. Não teria sido a leitura do autor de Educação e mudança muito ligeira ou marcada pelo marketing das redes sociais de modo a confundir fins e meios da obra crítica ou, no melhor dos casos, levar o acadêmico a ombrear-se com o deputado Rogério Marinho (RN) e os autores do abaixo-assinado para arrancar de Freire o patronato da educação brasileira? Como se sabe, o primeiro listou todas as citações políticas de Pedagogia do oprimido como se estivesse a trabalhar com o texto de Ionesco, O rinoceronte, e o grupo midiático encontrou em Freire o bode expiatório para a falta de política nacional e integrada de educação, incluído nela aquele amor às novas gerações de que tratou Hannah Arendt[4]. Exceção feita ao livro de Rocha, legisladores e ativistas de redes não souberam o que fazer com o Paulo Freire que viram de seu viés, a despeito de continuarem a manter o seu ódio difuso diante de um pensador que de todo desconhecem. Mas este não é o caso do autor de Ninguém educa ninguém.

A atitude

Este ensaio se limita a ler Quando ninguém educa com a disposição de considerar atentamente o seu título, o qual é desdobrado em momentos destacados do texto; assim também, compulsa textos freireanos para exercer o trabalho de recepção, análise e diálogo intelectual sobre conceitos, confrontos e julgamentos na história das últimas décadas da educação no Brasil. Nesse quadro, o autor do ensaio se apresenta como professor de crianças e adolescentes da escola pública paulista entre 1968 e 1988, professor e pesquisador na universidade e membro do CNE por um mandato de 4 anos (2012-2016). Afirme-se que faz um exercício que homenageia, do seu lado, o mestre capaz de, em tantos momentos, relembrar a incompletude, a finitude e a necessidade imperiosa de não se bastar. Como, por exemplo, em À sombra desta mangueira:

Nunca me recolho como quem tem medo de companhia, como quem se basta a si mesmo, ou como quem se acha uma estranheza no mundo. Pelo contrário, recolhendo-me conheço melhor e reconheço minha finitude, minha indigência, que me inscrevem em permanente busca, inviável no isolamento (Freire, 1995, p. 17).

Cabe anotar que as referências à Pedagogia do oprimido neste ensaio consideram o livro manuscrito por Freire em 1968 e oferecido ao casal Jaques Choncol, ministro de Allende e sua esposa Maria Edy. Sabe-se que a primeira edição da obra foi em inglês e, à luz do manuscrito, observam-se na primeira edição diferenças textuais, inclusive figuras desenhadas por Freire. Portanto, as indicações são distintas de qualquer edição brasileira ou estrangeira. O manuscrito foi publicado em 2013 por Ed, L do Instituto Paulo Freire, Uninove e MEC, com 233 páginas. Projeto editorial, organização, revisão e textos introdutórios de Jason Ferreira Mafra, José Eustáquio Romão e Moacir Gadotti.

Nunca faltou em Freire e nos que o leram (Paulo também não exigiu leitura única ou “certa”) a clareza de que, se não publicizou um método, deu indicações seguras para que as comunidades educativas e ensinantes trabalhassem currículos e suas metodologias. No entanto, tais práticas seriam projetos de um conhecer compartilhado entre pessoas e comunidades e, num crescendo, quem sabe nacional, libertador dos modos de fazer educação no Brasil que a muito poucos satisfaz.

Quando secretário da educação em São Paulo (1989-1991), dialoga com Ana Maria Saul e pensa currículo, entendido aqui, metaforicamente, como o coração das relações ensino-aprendizagem comungadas na história das gerações e sistematicamente compartilhadas. Não há currículo sem projeto pedagógico, memória cultural, lugares criativos da ação, educadores e educandos “inconclusos” em crescimento. Daí as propostas de Paulo Freire no diálogo:

O que proponho é um trabalho pedagógico que, a partir do conhecimento que o aluno traz, que é uma expressão da classe social à qual os educandos pertencem, haja uma superação do mesmo, não no sentido de anular esse conhecimento ou de sobrepor um conhecimento a outro. O que se propõe é que o conhecimento com o qual se trabalha na escola seja relevante e significativo para a formação do educando. (…) A escola pública que desejo é a escola onde tem lugar de destaque a apreensão crítica do conhecimento significativo através da relação dialógica. É a escola que estimula o aluno a perguntar, a criticar, a criar. (…) …é preciso um grande investimento na formação permanente dos educadores para que se possa reverter a situação existente e se conseguir um trabalho onde a relação dialógica aconteça de verdade (2001, p. 83).

 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Method_Paulo_Freire.jpg Acesso em: 08 jun. 2018

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Method_Paulo_Freire.jpg
Acesso em: 08 jun. 2018

Esta reflexão não é uma aula de sociologia e sim a marcação de caminhos para a construção de projetos pedagógicos pelas comunidades escolares. Ora, há lugares de educação e ensino, há educantes e ensinantes. A questão é onde eles se situam, a favor de quê, contra o quê, com quem, para quem, como, onde. Situar-se em relação pedagógica, curiosa e perguntadora induz ao conhecimento comungado. Não é possível banalizar tal texto! Mas é necessário acrescentar que, sem citar Freire (talvez sua influência) Rocha (p. 43) não aceita que equipes docentes sejam instância decisória da ação curricular, visto que, neste caso, estarão abandonadas à própria sorte. Rocha inverte o caminho dos processos. Sabedor de que, após 1970, sob ditadura, a abertura insana das instituições de ensino superior que visaram lucros e competições comerciais não conheceu rigor avaliativo, mais ou menos implantado muito mais tarde, ele parece culpar seguidores do pensamento freireano pela fraqueza generalizada da formação de professores. Para não criar nenhuma etiqueta e pregá-las nas testas das posições e movimentos educacionais, o que Rocha faz sistematicamente, basta dizer que foram sufocadas experiências de trabalho em todo o país, reprimidas revistas de qualidade, baixados os salários a ponto de governadores dizerem que as professoras ganham mal porque são mal casadas etc. Ora, a quem o senhor Rocha reclama então?  Efetivamente o currículo vai sendo dinamicamente definido e, mesmo quando não gostamos, disputado. Na sociedade brasileira redemocratizada ampliou-se muito a literatura a respeito, mas não deixou de ser um processo com disputas. Importante, porém, é que o autor criticado no texto de Rocha trabalhou sistematicamente a favor de se chegar, exaustivamente, a algum consenso, a algo que se pudesse comungar, fazer em comum. Como ele aprendeu nas comunidades africanas aqui e ali citadas, ou com gente do campo e da cidade noutras partes do mundo, para não citar o primeiro aprendizado em Angicos.  Evidentemente, sempre horrorizou a Paulo Freire que o currículo fosse preparado em outro lugar e enviado à escola para ser cumprido. Se assim fora, morreria o sentido de comunhão e de projeto escolar. Rocha encontra estranhos culpados para as crises da educação brasileira sob ditadura e, em razão de seu método de leitura, tem dificuldades para ver a dinâmica pós redemocratização, perigosamente marcadas por outros culpados.

Os percursos

Para realizar todo o percurso a favor da educação brasileira, ele precisou entender, de obra a obra, os sentidos da educação no mundo e, mais importante, sua viabilidade humana. Por isso, ganha corpo em seu movimento de aprendizado e descoberta o valor antropológico da educação, exemplarmente exposto em Pedagogia do compromisso. Texto póstumo e tão vivo quanto suas enunciações noutros textos a compor feixes de sentidos, ou a criar a gramática freireana de significações:

A invenção de nós mesmos como homens e mulheres foi possível graças ao fato de que liberamos nossas mãos para usá-las em outras coisas. Não temos data desse evento que se perde no fundo da história. Fizemos essa coisa maravilhosa que foi a invenção da sociedade e da linguagem. E foi aí, nesse preciso momento, no meio desse e outros “saltos” que demos, que nós, mulheres e homens, alcançamos esse momento formidável que foi compreender que somos interminados, inconclusos, incompletos. As árvores e os outros animais também são incompletos, porém não se sabem incompletos. Os seres humanos ganham com isto:  sabemos que somos inacabados. E é precisamente aí, nesta forma radical da experiência humana, que reside a possibilidade da educação. A consciência da nossa incompletude criou o que chamamos de “educabilidade do ser”. A educação é então uma especificidade humana (Freire, 2008, p. 22).

Não será de modo estranho a esse pensamento que Freire analisará quaisquer temas da educação e do ensino, quaisquer discussões sobre a cultura. Provavelmente esteja no fundo da sua ideia de constituir “círculos de cultura” (quaisquer lugares de ensino-aprendizagem, onde quer que se realizem) o encontro dos que são e se desenvolvem para compreender o inacabamento, que não é desvantagem, mas desafio educacional.[5] Nesse processo, o inédito se faz viável e um e  outro ser, uma e outra pessoa, educadores e alunos, que também não se bastam e sabem que a comunhão dos saberes científicos, estéticos, filosóficos, sociológicos e linguísticos leva ao compartilhamento dessas linguagens, realiza-se a construção comunicativa, que se  constitui, radicalmente, na educação. Não é inverdade afirmar que Freire não usou às escâncaras a palavra escola, que Rocha (2017, p. 68) observa faltar em Pedagogia do oprimido. Ocorre que ele construiu seu campo semântico dos lugares da educação e do ensino a partir dos seres educandos que se educam em comunhão. A escola pode ser um lugar importante para tal ação, como já se frisou e se citou.

Quem educa? Quem conscientiza? Quem liberta?

A atitude freireana de tratar um tema pode ser bom método. Se ele tivesse em mãos um exemplar do livro de Rocha, diria, dialeticamente, que estava, com razão, a ser questionado em um de seus pensamentos contínuos, que tanto surgem nas obras iniciais quanto nas posteriores. Freire iria assumir sua disposição radical[6], isto é, afirmar em contextos diversos, que

Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária” são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.

Lembraria expressões similares no quadro do pensamento radical, que manteve até a última obra, incluídas as póstumas. A saber:

Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é libertação de homens e não de “coisa”.  Por isto, se não é autolibertação – ninguém se liberta sozinho – também não é libertação de uns feita por outros. Porque é fenômeno humano não se pode realizar com os homens pela metade, que estes, inclusive, não existem e quando os tentamos realizamos a sua deformação. Mas, deformados já estando, enquanto oprimidos, não pode a ação de sua libertação usar o mesmo procedimento empregado para sua deformação (2013, p. 59).

E, para ampliar o diálogo com o crítico – este autor faz o mesmo – citaria mais:

Não há conscientização se, de sua prática, não resulta a ação consciente[7] dos oprimidos, como classe social explorada, na luta por sua libertação. Por outro lado, ninguém conscientiza ninguém. O educador e o povo se conscientizam através do movimento dialético entre a reflexão crítica sobre a ação anterior e a subsequente ação no processo daquela luta (1982, p. 109).

No mínimo, Freire encetaria um diálogo com seu crítico sobre o conhecimento de três negações, ou três condicionamentos capazes de se realizar, metonimicamente, num dos motivos centrais de sua obra, que é a história como possibilidade. Aí, a afirmação plena. Para países como o nosso, sempre condicionadas, mas não determinadas, o que é central em todos os seus livros.  Independentemente do fato de ter citado Mao Tse Tung, Sartre, Lênin, Erich From, ou o Fernando Henrique Cardoso antes da abjuração das suas obras etc., visto que nunca tirou o direito de outros escritores citarem preferencialmente os americanos (não se pretende etiquetá-los) ou os ingleses do pós-guerra 1939-1945. Os autores não têm lepra e sim posturas ideológicas. Carece assumi-los, pensá-los, rejeitá-los. Os autores não têm culpa de serem citados. Citar textos de Sartre ou do jovem Fernando Henrique sugere a busca de opções num espaço de liberdade, especialmente para quem estava fora do Brasil, exilado. Não foi fácil citá-los aqui dentro!

Mas cabe compreender o pronome indefinido ninguém… que antecede educar, libertar, conscientizar.

Ora, existe razão em Rocha. Não se educa, exceto… Não somos nós que construímos o outro, especialmente num autor fervoroso do fato de que o outro é constituinte do eu. Educa-se no mundo, mas, segundo Paulo Freire, ninguém pode fazê-lo sem comunhão entre quem educa e quem é educado. Destaque-se comunhão, palavra desprezada pelos críticos e pelos horrorizados das mídias. A mãe somente educa quando entra em comunhão com o filho posto na concretude do mundo e de suas relações: história familiar, assistência médica, papel do pai e demais parentes, desejos de futuro, preocupações com segurança, melhor encaminhamento educacional. Tanto é verdade a asserção que em muitos pontos da obra freireana existe certa agonia diante do horror das desigualdades que vitimam os “esfarrapados do mundo” na ordem liberal e neoliberal, notadamente as mulheres (hoje a dirigir 44% dos lares brasileiros, sem a presença efetiva de homem) pois aí a educação em comunhão será muito mais difícil, quase despedaçada. A propósito, argumente-se que, não fossem as mulheres brasileiras, especialmente após a suposta libertação de escravos e constituição da frágil república, brilhantes organizadoras sociais, nossa desgraça social, cultural, educacional e de segurança seria ainda pior do que é. Elas foram provedoras e seguraram a barra do mundo familiar e comunitário. Portanto, a educação se faz no quadro da comunhão possível.

Freire perguntaria ao seu crítico: como alguém pode libertar-me de algo, ou conscientizar-me, se eu não tiver comungado socialmente, apreendido e aprendido nos confrontos do mundo  para não mais carregar em mim os valores de quem me oprime, como se dá nas relações de gênero e muitas vezes nos muitos assédios do mundo do trabalho, para não dizer da relação de poder entre professores e estudantes? Portanto, a alternativa humanizada e de longo alcance para o exercício de valores tão importantes: educar(se), conscientizar(se) e libertar(se) está na construção de um diálogo contínuo, sem opressão de qualquer espécie, numa operação cultural em que ninguém é ignorante de tudo e ninguém sabe tudo, mas as pessoas são capazes de comungar conteúdos da vida e do mundo. Nessa comunhão, exige-se bem-querer, rigor e alegria, abertura e ciência, método e curiosidade, enfim a criação e o desenvolvimento de epistemologias no concreto da experiência.

Evidentemente, a comunhão freireana (que é um conjunto de degraus do conhecimento compartilhado), estranha e distante dos leitores apressados, ou não-leitores, inclusive o Professor Rocha, é um impulso existencial da obra, quer no exílio, quer no retorno, inclusive o tempo de secretário de educação em São Paulo, quando refletiu e fez:

(…) nos momentos que se seguem do processo de reformulação curricular, estaremos conversando com diretoras, com professoras, com supervisoras, com merendeiras, com mães e pais, com lideranças populares, com as crianças. É preciso que falem a nós de como veem a escola, de como gostariam que ela fosse; que nos digam algo sobre o que se ensina ou não se ensina na escola, de como se ensina. Ninguém democratiza a escola sozinho, a partir do gabinete do secretário (2001, p. 43).

Assim como Rocha encontra (p. 73) uma fresta para  admitir que o professor ensina algo a alguém (como se Freire fizesse concessão ao conceito desastroso de antes), a leitura dos encontros da obra freireana deveria levar, imediatamente, a superar o fantasma sociológico que o autor de Ninguém educa ninguém etiqueta na testa do patrono da educação brasileira e ver que sempre se educa e se ensina, mas somente se faz, na perspectiva de autonomia dos envolvidos, na comunhão social, nos compartilhamentos e mesmo confrontos no mundo.

Há, no entanto, para continuar o diálogo com Rocha, diferenças pedagógicas entre educar, conscientizar e libertar. Digamos que a educação liberta e conscientiza. Toda a obra de Freire pensou nesse fenômeno e o “viveu”.  A sua perambulação pela Europa, pelas universidades americanas, pelos asentamientos chilenos, tribos e comunidades africanas, igrejas, escolas ao ar livre e escolas plenamente formalizadas, debates, cursos, encontros levaram a pensar que a educação não pode tanto, mas sem ela não poderíamos sequer iniciar uma jornada de mudança social. E este ato libertador (porque portador de curiosidade epistemológica) fica plenamente evidenciado no Pedagogia do oprimido  e suas muitíssimas retomadas até as obras póstumas. Convém citar:

Educador e educandos, co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvela-lo e, assim ganhar o seu conhecimento racional ou a sua razão, mas também de recriar este conhecimento. Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes. Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudo-participação, é o que deve ser: engajamento (Freire, 2013, p. 63).

Destaque-se, ademais, que o “ninguém” do título da obra de Rocha é tão injusto quanto falso, pois no interior da obra o discurso se agarra à muleta da “leitura anacrônica” que se fez nos anos de 1970 e 1980 da obra de Freire e depois volta às reais críticas sobre a falta disso ou daquilo na obra de Freire e sua imerecida influência sobre a educação brasileira. Só se pode falar em leitura anacrônica se houver desconhecimento das belas experiências de alfabetização que foram vivenciadas e comungadas pelo país, em todos os Estados e centenas de cidades, ainda incapazes de superar a ausência de política educacional integrada e integradora, na qual diferentes saberes de governo e governança entram em sinergia para associar processos educacionais a transporte, moradia, habitação, cultura, coisa raríssima no Brasil, mas que, se realizada, honraria o espírito empreendedor das populações, demonstrado tanto na produção cultural e estética de sempre quanto nas start-up do presente. Paulo Freire teve alguma culpa do rosário de leis e normas que banalizaram o processo educacional cotidiano, que mataram a comunhão das comunidades, que se pautaram na desintegração e atomização dos espaços escolares?

Rocha teria, sem dúvida, escrito melhor obra se pensasse em profundar reflexões sobre o nosso ensino médio (e este autor conheceu, entre 2012-2016 centenas de experiências valiosas posteriores às Diretrizes para a etapa, quer o Ensino Médio Inovador, quer os diversos investimentos em projetos para juventude) e retirasse Paulo Freire de sua obra, que virou apêndice e massa de manobra que empurra razões enviesadas para o colo dos que trabalham nas redes sociais com o ódio.

Freire e outros males da educação brasileira (por ele causados)

A obra de Freire, especialmente o livro Pedagogia do oprimido, foi mal lido ou imerecidamente valorizado? E teria mesmo feito deslanchar a sociologia educacional que apagou currículos, didática, metodologias? Enfim, pelo sim, pelo não, de fato ajudou a constituir o desastre educacional que vivenciamos desde então, anos de 1970?

Pensemos se tais asserções, criadas no correr do contato direto do educador exilado com trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade e com suas leituras, seriam capazes de, ao caracterizar as possibilidades históricas de humanização diante das estruturas opressoras a operar nas sociedades (com interesse especial na América Latina), poderiam determinar tamanha e tão desastrosa influência sobre a educação brasileira, como supõe Rocha.

Se de um lado ele afirma que o preço da influência do livro Pedagogia do oprimido é uma leitura anacrônica (p. 67), por outro ele se basta em negar à obra freireana a presença de conteúdos, didática, metodologia e outros (reconheça-se, muito importantes) componentes do processo pedagógico. Mais ainda: nega à obra de Freire a preocupação com a memória, com as lembranças e sugere que deve haver “uma distinção essencial entre educador e educando”. Acrescenta que, em Freire, “é preciso que o educando, desde o primeiro momento, seja autor pleno de sua aprendizagem” (p. 71).

Freire teria de perguntar ao senhor Rocha se não lhe foi possível ler mais do que três obras e mais uma com Nogueira, pois a segunda obra do exílio, supostamente questionada por Rocha, foi, segundo o patrono da educação brasileira, uma continuação, ainda introdutória, à Educação como prática da liberdade. Não para justificar carência, mas de fato evidenciar a humildade pedagógica de Paulo Freire, cujo pensamento foi-se construindo desde as teorias da ação revolucionária à condição do educador e do educando na sociedade, aos males dos planos neoliberais de educação e à relação sublime dos atos de ensinar e aprender, comuns a professores e estudantes, como se dá em Educação na cidade e Pedagogia da autonomia.

Freire também indagaria se não fora viável ao crítico ler uma obra testemunhal indispensável: À sombra desta mangueira, na qual se projeta um ser de memória, que mostra todas as conexões memoriais e testemunhais de sua obra até aquele momento e o ser de uma educação para além de toda escola, mas também na escola (pois estranhamente Rocha se preocupa que Freire cite pouco a escola em Pedagogia do oprimido). Em capítulo que trata de fazer a passagem da curiosidade para a epistemologia, Freire observa:

Ao salientar a postura epistemologicamente curiosa como fundamental para a constituição do contexto teórico, fique claro a importância desse espaço. A atenção devida ao espaço escolar, enquanto contexto aberto ao exercício da curiosidade epistemológica, deveria ser preocupação de todo projeto educativo sério (Freire, 1995, p. 78).

A escola, toda escola, qualquer escola, em qualquer espaço geográfico-temporal em que ela se instale e independentemente de sua riqueza ou pobreza, ela será importante na medida em que se comunguem educandos e educadores no encontro com o mundo e na construção de conhecimentos compartilhados entre pessoas no mundo. Esse lugar de educação e ensino se encontra parcamente expresso, pois humildemente introdutório, na Pedagogia do oprimido. Não pelo ângulo de sua arquitetura, mas pela possibilidade, suposta, de ser um círculo de cultura. Trata-se do capítulo III, que se organiza entre as páginas 88 e 140 do Manuscrito. De algum modo, o capítulo que Rocha entendeu com o da teoria dialógica na qual “bate o coração de Mao” (2017, p. 74).

Depois de discutir um pouco da metodologia dos círculos de cultura, mostrar como educadores populares trabalham, a exemplo de Gabriel Bode, e de citar Freyer, Goldman, Pierre Furter, Álvaro Vieira Pinto, Guimarães Rosa, José Luís Fiori, Malraux, Marx, o Freire de Educação como prática da liberdade e outros, ele conclui:

O importante, do ponto de vista de uma educação humanista, libertadora e não “bancária” é que, em qualquer dos casos, os homens se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada, implícita ou explicitamente, nas suas nas suas sugestões e nas de seus companheiros (2013, p. 141).

Assim, também, outra vez a escola, lugar adequado, para nós, em função da construção simbólica que formata percursos de aprendizado de sujeitos em varias etapas da vida, é pouco citada em Pedagogia da autonomia, mas todo o livro está repleto de escola, de ensinagem, de ensinantes e aprendentes em comunhão. Há nele, como noutros lugares, trechos inequívocos, como:

Foi convencido disto (dedicação a problemas dos alunos) que, desde jovem, sempre marchei de minha casa para o espaço pedagógico onde encontro os alunos, como quem comparto a prática educativa. Foi sempre como prática de gente que entendi o que-fazer docente. De gente inacabada, de gente curiosa, inteligente (…) (1996, p. 144-145).

Começa-se a terminar

De uma vez por todas, a obra do patrono da educação brasileira é um convite à construção efetiva da educação para a sociedade democrática. Também da escola, incluída na educação e somente pouco citada porque o mestre perambulante assumiu, por onde andou desde os anos de 1960 todos os tipos e formas de lugares como possíveis para educar. Educa-se no mundo pela comunhão, tanto sob mangueiras e nas garagens e ocas, como nas escolas bem compostas, bem atendidas e sistematicamente avaliadas pelas políticas públicas. São estas as grandes ausências nos tempos da lei 5692/1971 e sequência da ação ditatorial, que não se findou no estado democrático de direito e continuou a dividir a sociedade. E essas ausências são o mal da alma dos detratores de Paulo Freire. Ademais, os maus leitores de antes e de agora tem uma corrosão de memória quanto às excelentes experiências de trabalho escolar, de avanço curricular e de comunhão na realização de experiências que se deram no Brasil em todo o tempo, embora incapazes de dirigir os programas e planos, visto que políticas jamais tivemos. Este autor comungou com uma experiência denominada Pluricurricular na escola paulista – similar às experiências de escolas vocacionais – no meio da ditadura e na cidade de Mauá, região metropolitana de São Paulo. Foram pouco mais de 100 unidades escolares as receptoras do currículo pluri, no qual havia avaliação contínua do processo de trabalho, debate de interfaces, implementação das mesmas, visitas familiares, um núcleo forte de esporte e cultura e, portanto, comunhão educacional. O encontro e a confidência entre alunos e professores continuam até hoje entre os pluris, a despeito de que os governos plantonistas, ao sabor de suas contingências, mataram essas vivências curriculares inovadoras antes dos anos de 1980, pelo menos em São Paulo.

Ademais, aprofundemos um pouco a teoria da política pública. Os planos educacionais sempre dependeram dos planificadores de plantão no MEC e nas secretarias e diretorias, bem como os programas dependeram de programadores, mas as políticas, desde a reflexão aristotélica, essas não existiram, porque o cerne delas é a participação mais ampla, a construção coletiva capaz de referendar os investimentos a favor do bem-comum. Portanto, algo de comunhão.

Enfim

Os textos de Freire, citados, são suficientes para enfrentar a obra de Rocha até a página 75, visto que depois dela tem-se uma outra obra, que discute interdisciplinaridade, faces do conhecimento, alguma memória e considerações sobre a formação do professor, com retornos a suas desconectadas parábolas do Brazil-Zilbra e pitadas textuais referidas a certo freirismo, o que não significa citar freire ou considerá-lo. O Brazil parabólico de Rocha vem a calhar: ele não tem nada a ver com Paulo Freire, nem nos anos de 1970, nem na década de sua morte e textos póstumos. Até porque o suposto Freire citado pelo autor de Quando ninguém educa não é rigoroso, crítico ou apaixonado. Para Rocha, Paulo só é importante porque teve muitas supostas leituras que inundaram a educação brasileira das “teorias da ação social aplicadas à educação” (p. 33), o que se afirma sem considerar suficientemente os momentos diversos da sociedade brasileira a penetrar no mundo escolar, as repressões, as prisões no campo educacional, as mortes, o sufocamento de currículos escolares, as concessões ao horror dos livros didáticos imbecilizantes, que passaram ao longe dessas teorias da ação social. A obra de Rocha não é capaz de nenhuma leitura dialética do processo histórico.  De fato, o trabalho de Rocha poderia ampliar-se na direção do que já estaria escrito e desejado e, portanto, abandonar a obra de Paulo Freire, impossível que lhe foi, por falta de prazer ou empenho, lê-la como leitura conjunta de palavra e mundo, horizontal e vertical, como processo articulado de linguagens, no qual o aluno em processo de construção de conhecimento que autonomiza comunga com o educador bem formado, consciente do seu trabalho no mundo, ambos a trabalhar valores hauridos nas leituras conjuntas de mundo e palavra, história, memória, textos, fenômenos, processos, vida. Felizmente, a partir da página 75 Rocha abandona Paulo Freire e segue sua reflexão, no interior de textos talvez já produzidos, sem Freire, bastante fundamentada em Bernstein[8].

Paulo Freire teria prazer em ler um trecho da página 85 de Rocha e faria com ele boas elaborações, produziria memórias e daria testemunhos a partir de sua própria obra e de leituras de mundo:

A capacidade profissional de intervenção do pedagogo não é adquirida somente pelo estudo de teorias; ela surge da combinação disso com a formação de uma capacidade de julgamento e avaliação de situações particulares. Essas habilidades aparecem no contexto de uma formação por meio de situações de conhecimento por familiaridade, ligadas ao desenvolvimento da capacidade de saber-fazer.

Não haveria qualquer chance para leitura anacrônica, ou para negar a escola e o currículo escolar. Trata-se de um aprendizado no mundo concreto de quem trabalha em educação e que, para tanto, avalia e julga. Talvez Rocha não tenha sido influenciado por Paulo Freire, mas nesse e noutros textos eles dialogam. A aventura linguística da criação é sempre maior do que os seus autores, porque inclui as histórias que os incluem.


 

* Luiz Roberto Alves é professor aposentado da ECA-USP e da Universidade Metodista SP. Educador da rede pública de educação básica entre 1968 a 1988. Membro do Conselho Nacional de Educação entre 2012 e 2016 e presidente da CEB-CNE entre 2014-2016.

 

Referências

LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969.

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FREIRE, Paulo.  Pedagogia do oprimido (o manuscrito). Projeto editorial, organização, revisão e textos introdutórios de Jason Ferreira Mafra, José Eustáquio Romão e Moacir Gadotti. São Paulo: Ed. L Instituto Paulo Freire, Uninove, MEC, 2013.

FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d’água, 1995.

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. 5.ed. São Paulo: Cortez Editora, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do compromisso. São Paulo: Villa das Letras, 2008.

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. 5.ed. São Paulo: Cortez Editora, 2001.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros ensaios. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

 

Notas

[1] A obra, da Editora Contexto, é de autoria do Professor Ronai Rocha, da UFSM. Publicada em 2017, 160 p.

[2] Há uma obra imprescindível sobre a questão. LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1969.

[3] Escrita no outono de 1975 em Genebra. Inserta à página 7 de Ação cultural para a liberdade. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

[4] Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 247.

[5] Cabe lembrar que a parte III da obra de Arendt tratou de modo belo e justo o tema do inacabamento, quer de crianças, quer de adultos, o que a leva a repelir os treinamentos e adestramentos via conteúdos dos inacabados que crescem também pela educação, pela formação que os situa no mundo e na vida.

[6] Pedagogia do oprimido, o manuscrito, 2013, p. 78.

[7] Freire cita Sartre de Search for a method. Vintage Books, s.d. p. 109.

[8] Basil Bernstein. Por exemplo, o texto Classification and Framing of Educational Knowledge, inserto em Young, Michael F.D. Knowledge and Control. New Directions for the Sociology of Education. London: Collier-Macmillan, 1971.

dossiê
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UNIVERSIDADE EM TEMPOS DE CALAMIDADE PÚBLICA: CRISE OU PROJETO?

Resumo: Dialogando com a obra de Darcy Ribeiro, buscamos pensar a situação atual do estado do Rio de Janeiro, tentando identificar em seus escritos algumas contribuições que possam nos ajudar a entender os ritos hoje praticados pelo governo do Estado no que concerne ao trato pouco amigável dispensado às universidades e demais instituições correlatas. A obra de Darcy nos servirá de mapa e buscaremos discutir, com base em seus textos, o sentido e a crise da universidade, bem como o lugar por ela ocupado na produção de um projeto de Nação, observando no presente e no passado recente as aproximações e os desvios deste pensamento que conferia centralidade ao Ensino Superior para o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária.

Palavras-chave: Universidade; Darcy Ribeiro; pensamento-ação.

Abstract: Dialoguing with the work of Darcy Ribeiro, we thought about the present situation of the state of Rio de Janeiro, trying to identify in his writings some contributions that may help us understand the rites practiced today by the government of the state regarding the unfriendly treatment to the universities and other institutions correlated. Darcy’s work will serve as a map and we will seek to sketch in his texts, the meaning of the crisis of the university, the place it occupies in the production of a nation project, observing in the present and in the recent past the approximations and deviations of this thought that conferred centrality to higher education for the development of a more egalitarian society.

Keywords: University; Darcy Ribeiro; thought-action.

 

Revisitar autores clássicos que, em seu tempo, com os limites impostos pelo até então sabido, propuseram pensar o Brasil e o povo brasileiro, interrogando a nossa história sobre motivações e movimentos em prol de um pensamento genuinamente nacional, é tarefa necessária e, ao mesmo tempo, arriscada[1].

Necessária porque ainda nos faltam elementos para compreender os caminhos tomados para que chegássemos à atual conjuntura; arriscada porque toda visitação teórica implica atualização e apropriação e, quanto a isso, não há instrumentos que nos protejam dos equívocos. Neste texto, por exemplo, usaremos a obra de Darcy Ribeiro para pensarmos o presente do Estado do Rio de Janeiro, tentando identificar em seus escritos alguns pontos que nos ajudem a entender os ritos hoje praticados pelo estado no que concerne ao trato pouco amigável dispensado às universidades e demais instituições correlatas. A obra de Darcy nos servirá de mapa e buscaremos dimensionar nos seus textos, sobre o sentido e a crise da universidade, o lugar por ela ocupado na produção de um projeto de Nação, observando no presente e no passado recente as aproximações e os desvios deste pensamento que conferia centralidade ao Ensino Superior para o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária.

Na matriz dos problemas que pretendemos aqui levantar está a fabricação da ideia de “crise” que, na voz da grande mídia e dos grupos políticos que coordenam o Estado, tudo justifica e tudo autoriza, inclusive sufocar, imobilizar, deteriorar, sucatear, impedir o funcionamento, impondo racionamentos e construindo argumentos que atestam a irrelevância das universidades públicas e demais instituições afins. São elas, no caso do Rio de Janeiro, que recebem o primeiro corte, o primeiro atraso de pagamento, a falta de informação[2].

Print do RJ TV, noticiário local da Rede Globo. Antes de qualquer informação oficial do governo do Estado, o calendário de pagamentos atrasados era apresentado na televisão  Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/5837968/ Acesso em: 10/06/18.
Print do RJ TV, noticiário local da Rede Globo. Antes de qualquer informação oficial do governo do Estado, o calendário de pagamentos atrasados era apresentado na televisão
Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/5837968/ Acesso em: 10/06/18.

A Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação – que no exercício da crise passou a se chamar Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Social, depois de uma fusão com a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos – é sempre a primeira a receber o sinal do desfinanciamento público. Subordinada a essa secretaria estão, no âmbito da Ciência e da Tecnologia, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), a Universidade Estadual da Zona Oeste (UEZO), a Fundação Centro de Educação a Distância e Divulgação Científica (CECIERJ), a Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ)[3]. Em tempos de “crise”, cuja razão principal, de acordo com a narrativa oficial, é a queda na arrecadação dos royalties do petróleo, devemos indagar por que uma secretaria, que poderia nos auxiliar a escapar dessa situação de dependência, é exatamente uma das mais prejudicadas? Por que as ações “emergenciais”, devido ao decreto de calamidade pública[4], atingem principalmente as instituições de nível superior?[5]

Para que serve, afinal, a universidade? Qual o seu projeto? Universidade para quem? Estas perguntas, feitas por Darcy ao longo da segunda metade do século XX, ainda carecem de respostas e podem ser – é a nossa aposta – decisivas para a compreensão da chamada “crise” que vivemos no estado.

Sobre as crises da universidade

O noticiário televisivo, os jornais e revistas impressos, as postagens em redes sociais online e as manifestações em diferentes pontos da cidade e do estado – só para citar alguns exemplos – dão conta de que o Rio de Janeiro encontra-se em “crise” ou, pelo menos, o conjunto das narrativas oficiais que busca comunicar o que acontece hoje em terras fluminenses anuncia que a palavra adequada para classificar o tempo presente é esta: “crise”. Crise generalizada, em todos os setores, exigindo medidas amargas, entre elas a perda de direitos dos trabalhadores, um prato cheio para decisões extremas que, em tempos de normalidade, pareceriam absurdas. O estado de calamidade, que confere permissibilidade e exceção, é vendido como a solução de todos os problemas, só que entre os problemas também há seleção e são, geralmente, as universidades e as instituições que viabilizam e praticam o ensino superior, as primeiras a serem deixadas de lado.

Neste trabalho, nos limites que a escrita nos impõe, concentraremos nossos esforços em um aspecto desta “crise” anunciada: os efeitos percebidos nas instituições de Ensino Superior do estado, sobretudo aqueles que são consequência direta da falta de investimento que dificulta e/ou impossibilita a manutenção das universidades, seja no que tange a viabilidade dos serviços básicos de limpeza, segurança e alimentação[6], seja no atraso de salários que coloca os servidores públicos do estado em situação de penúria. A tentativa de inviabilização de tais unidades também se mostra na negação do custeio básico para os projetos que justificam cada órgão. Com os projetos parados os órgãos perderiam suas funções, abrindo caminho para contestações de o porquê da sua existência.

Ao fazermos uma incursão nesses dilemas, apoiaremos nossa escrita não apenas nos textos de Darcy Ribeiro, mas também, em menor medida, de Boaventura de Sousa Santos, tomando suas leituras sobre a crise e a função das universidades para pensarmos o contexto atual e os diferentes atores que disputam o protagonismo das narrativas que dariam conta deste cenário.

Um primeiro movimento que nos parece necessário esmiuçar é pensar que características o discurso de “crise” assumiria nas universidades, prestando bastante atenção na profusão de narrativas que enxergam a universidade como um problema – e não como espaço de invenção das soluções.

Em A universidade necessária (1975), Darcy Ribeiro analisa como a universidade poderia ser um impulso definitivo para a criação de um modelo de desenvolvimento autônomo, que não apenas refletisse modelos pré-concebidos nos principais centros econômicos e políticos do mundo, mas que fosse pensado sob medida para as demandas do país. Nas palavras de Darcy, a universidade seria um poderoso instrumento para que nos libertássemos de certo tipo de desenvolvimento pautado em uma “atualização histórica” – onde povos supostamente atrasados passam a se inserir nos códigos e nas estruturas pensadas pelos ditos sistemas superiores. Contrário a essa ideia, Darcy apostava na universidade como centro de produção de uma “aceleração evolutiva” (Ribeiro, 1975, p. 15), modelo de desenvolvimento autônomo, onde as sociedades mobilizam fatores endógenos e exógenos de acordo com as suas peculiaridades históricas.

A reflexão de Darcy sobre a universidade passa, então, pela construção de um modelo a ser desenvolvido pela reflexão e ação intelectuais. Segundo ele:

A Universidade de que precisamos, antes de existir como um fato no mundo das coisas deve existir como projeto, uma utopia, no mundo das ideias. Nossa tarefa, pois, consiste em definir as linhas básicas deste projeto utópico, cuja formulação deverá ser suficientemente clara e atraente para poder atuar como força mobilizadora na luta pela reforma da estrutura vigente (Ribeiro, 1975, p. 172).

Partícipe privilegiada na elaboração de um projeto de nação, a universidade não passaria incólume pelas reações dos grupos para os quais ela poderia representar algum perigo. Darcy entendia que a universidade no Brasil experimentaria crises de diversas ordens, cabendo aos intelectuais, comprometidos com ela e com o país – já que o país é a causa principal da universidade – superar as adversidades em nome do seu compromisso histórico: contribuir para o desenvolvimento científico e econômico do Brasil. As universidades, agentes da transformação por via do trabalho dos intelectuais, enfrentavam, segundo Darcy, uma crise aguda de ordem conjuntural, política, estrutural, intelectual e ideológica.

A crise conjuntural estaria ligada a defasagem das universidades nos países semiperiféricos e periféricos em relação ao desenvolvimento do conhecimento científico nos países centrais, em especial depois de revoluções como a técnico-científica e o avanço das tecnologias da informação e da comunicação. O baixo financiamento científico e tecnológico, praticado em países como o Brasil, nos colocaria em posição desfavorável em relação a esses países mais desenvolvidos.

Em termos políticos, a crise se daria entre grupos sociais cujos interesses seriam antagônicos, exercendo, cada qual, sua influência sobre os rumos e a função da universidade, às vezes compreendendo-a como um espaço conservador e de manutenção da ordem, outras vezes com uma visão progressista e até mesmo revolucionária. Atualmente, por exemplo, há grupos da sociedade civil organizada que acusam a universidade de ter certa inclinação à esquerda, e tais grupos produzem narrativas que defendem um ensino neutro, tecnicista e apartado dos problemas sociais. Nas manifestações travestidas de verde e amarelo, com presença maciça de grupos da direita, o nome de Paulo Freire aparece como a personificação do inimigo, abrindo caminhos para o aumento da influência de projetos como o Escola “sem” Partido e para ideias neoliberais, como a cobrança de mensalidade nas universidades públicas. Ao mesmo tempo, os grupos progressistas constroem também nas universidades pontos de resistência, contrários ao golpe de estado de 2016 e à reforma da previdência, atualmente em voga no Congresso Nacional (lembremos que a reforma trabalhista foi aprovada durante o atual governo).

A crise, para Darcy, também seria de ordem estrutural, pois em países como o Brasil o funcionamento das universidades sofreria os constrangimentos e obstáculos comuns aos países em desenvolvimento. Os problemas da trajetória histórico-institucional do Brasil também seriam, assim, percebidos pelas universidades aqui instaladas. Esse passivo era um dos argumentos centrais para Darcy propor um novo modelo universitário, dado o “vício de origem” das universidades brasileiras – classistas, racistas, pautadas em privilégios que constituem um verdadeiro projeto de exclusão social pela educação. Darcy argumentava: “[…] só uma universidade nova, inteiramente planificada, poderá estruturar-se em bases mais flexíveis e abrir perspectivas de pronta renovação de nosso ensino superior” (Ribeiro, 1975, p. 15).

Para ilustrar a desigualdade social ratificada pela universidade, Darcy analisava o número de ingressantes no ensino superior em comparação àqueles formados no ensino básico e médio. Segundo ele, a “[…] ampliação das bases sociais em que os candidatos são selecionados é uma das missões da universidade brasileira que, enquanto não puder cumpri-la, estará em débito com o Brasil” (Ribeiro, 1962, p. 14). O débito, apesar de menor hoje em dia, ainda é gigantesco.

Darcy também apontava para o fato da universidade brasileira falhar na oferta de cursos que poderiam ser decisivos para o progresso do país. Neste ponto, é importante sublinhar que a visão de progresso do autor passava por certo comprometimento da universidade com a formação de mão de obra especializada para o mercado, algo que podemos contestar atualmente, mas que naquele momento, devido às circunstâncias políticas em que Darcy estava inserido, era plenamente justificável. As universidades, em um processo constante, estariam:

Divorciando-se das necessidades da formação da força de trabalho, dos tecnólogos, dos cientistas e dos sábios, com os tipos de preparo intelectual e de treinamento requeridos para promover o progresso social e cultural da nação, a universidade se reduz a mera agência de atribuição e de ratificação de status, só capaz de contribuir para a perpetuação da ordem social no que ela tem de iníquo, para atar a imensa maioria dos brasileiros a condições de atraso e de penúria que contrastam gritantemente com o desenvolvimento de outros povos (Ribeiro, 1962, p. 32-33).

Darcy compreendia que o Brasil do século XX, formado por uma sociedade em franca transformação em termos culturais e econômicos, precisava de uma nova universidade, capaz de integrar ensino e pesquisa e caminhar junto com essa sociedade em seus avanços tecnológicos, optando por um modelo de desenvolvimento atrelado ao conhecimento científico. Dizia ele:

Agora que já produzimos aço, telefone, penicilina e com isso muito acrescentamos à nossa autonomia, caímos em novo risco de subordinação, representada pela dependência das normas e de saber de técnicos. Só seremos realmente autônomos quando a renovação das fábricas aqui instaladas se fizer pela nossa técnica, segundo procedimentos surgidos do estudo de nossas matérias primas e de nossas condições peculiares de produção e de consumo. Só por este caminho poderemos acelerar o ritmo de incremento de nossa produção, de modo a reduzir e, um dia, anular a distância que nos separa dos países tecnologicamente desenvolvidos e que se apartam cada vez mais de nós pelos feitos de seus cientistas e técnicos (Ribeiro, 1975, p. 17).

Por fim, para Darcy, a crise da universidade seria também intelectual e ideológica, pois ao reunir pessoas de trajetórias e classes distintas, ela fomentaria discursos e práticas possivelmente antagônicos. Há, no Ensino Superior, pessoas que pensam o papel da universidade em termos de transformação da realidade social e, ao mesmo tempo, habitam o espaço universitário representantes de um pensamento mais conservador, que defendem a manutenção de certa hierarquia dos saberes e que julgam as políticas de acesso a esse nível educacional como inoportunas e propagadoras de uma queda da qualidade do ensino. É o que vemos, por exemplo, nas reações contrárias às políticas de cotas.

As crises possuem, para Darcy, correlação direta com o projeto de nação que se quer desenvolver e sua superação viria, para ele, com a compreensão do papel desempenhado pela universidade: se ela estaria ao lado daqueles que pregam a manutenção do status quo, buscando se enquadrar naquilo que vem sendo desenvolvido em outros países ou se, ao contrário, ela se constituiria em instrumento fundamental para a mudança social, em um esforço para derrotar o neocolonialismo que, em tempos atuais, se disfarça de imposições externas como, por exemplo, de instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial.

Boaventura de Sousa Santos, em sua análise sobre as crises da universidade no século XXI, também identifica determinados processos de crise pelos quais países como o Brasil passam. Para Santos (2005) trata-se, em primeiro lugar, de uma crise de hegemonia, visto que ao propósito inicial das universidades – que era formar as elites da sociedade – acrescentou-se, nas contingências do capitalismo, a formação de mão de obra qualificada para o mercado. Para cumprir tal demanda, crescente e nem sempre viável para a Academia, agentes econômicos e o próprio Estado irão buscar em outros espaços/tempos oportunidades de concretização deste objetivo, restando à universidade disputar espaço com outras instituições, como as escolas técnicas, por exemplo. Para Santos houve, nos últimos anos, uma falsa resolução da crise de hegemonia, visto que a universidade deixou de ser um lócus exclusivo de lapidação da intelectualidade, dedicando-se, mais especialmente, a formar mão de obra para o mercado. Tal fato dá a entender que a universidade estaria mais aberta às diversas classes sociais, deixando de ser um reduto exclusivo das elites. Mas esse processo ainda está longe de se apresentar como satisfatório.

Outra vertente da crise, ainda de acordo com Santos (2005), seria a crise de legitimidade, pautada na seguinte contradição: se, por um lado, a universidade produz certos tipos de saberes/fazeres, legitimados pela própria Academia, contribuindo, assim, para a hierarquização do conhecimento – privilegiando uns poucos se consideramos as inúmeras restrições de chegada à formação superior – por outro lado, diante das exigências políticas e sociais, há uma demanda por democratização do acesso e igualdade de oportunidades. Nos últimos anos, ainda que seja crescente a desvalorização do diploma universitário, a universidade mantém-se como reduto de classes privilegiadas que, a sua revelia, testemunham as novas caminhadas daqueles que, historicamente, costumavam servir de combustível nas máquinas de moer gente (Ribeiro, 1995b). As políticas de cotas, ao mudar a cor e a classe das universidades, inseriram um fator novo na apreensão que temos do ensino superior. Contudo, longe de resolver alguma crise tal processo de inclusão a aprofunda. A mudança parcial de cenário oferece, segundo Boaventura, uma falsa resolução da crise de legitimidade, que será agravada, como veremos, pela crise institucional do século XXI.

Santos (2005) argumenta também que há, entre as universidades, uma crise institucional, fruto da crise financeira, que coloca para as universidades um desafio: ao mesmo tempo em que pleiteiam autonomia político-administrativa, as universidades se veem pressionadas pelo capital a praticar critérios de eficiência e produtividade, aproximando-se do modelo empresarial. Como argumenta Boaventura, a crise financeira, causa direta da institucional, é legitimada pelos organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial:

(…) O caso do Brasil é representativo da tentativa de aplicar a mesma lógica na semiperiferia e, por ser bem conhecido, dispenso-me de o descrever. Basta referir o relatório do Banco Mundial de 2002 onde se assume que não vão (isto é, que não devem) aumentar os recursos públicos na universidade e que, por isso, a solução está na ampliação do mercado universitário, combinada com a redução dos custos por estudante (que, entre outras coisas, serve para manter a pressão sobre o salário dos docentes) e com a eliminação  da gratuidade do ensino público, tal como está agora a ocorrer em Portugal (Souza, 2005, p. 14).

Santos previu, quando escreveu inicialmente sobre as crises, há dez anos, que a crise institucional seria central. Nos últimos anos cresceu a compreensão de que a universidade pode ser um bem público, porém não assegurado exclusivamente pelo financiamento do Estado. Assim como notamos na “crise” atual do estado do Rio de Janeiro, houve uma crescente desvalorização da universidade enquanto prioridade dos investimentos públicos. Santos argumenta que no caso do Brasil:

O processo expansionista de industrialização, quase totalmente assente no endividamento externo, entre 1968 e 1979, conduziu, sobretudo após 1975, a uma profunda crise financeira, cujos efeitos se tornaram particularmente graves após 1981-1983[…]. A crise financeira do estado repercutiu-se de forma brutal sobre a universidade pública, tanto mais que simultaneamente aumentou a demanda social pela expansão da educação básica (Souza, 2005, p. 8).

A crise financeira, pelo endividamento público do período da ditadura civil/militar, abriu espaço para a aplicação do ideário neoliberal no Brasil. Uma consequência de tal movimento foi a subordinação do investimento público às demandas do mercado, privilegiando agentes privados em detrimento das políticas públicas. Tudo isso assentado na compreensão, que não encontra apoio em dados comprobatórios, de que a iniciativa privada aloca mais racionalmente os recursos do que o Estado.

A universidade, que não é uma empresa e nem sempre possui, necessariamente, em seus quadros especialistas em administração ou economia, vê-se com a tarefa de gerenciar uma alardeada autonomia que é, na verdade, discursiva, visto que cabe ao Estado – no caso do Rio de Janeiro, pelo menos – definir as formas de utilização das verbas disponíveis, tendo a universidade pouco ou quase nenhum espaço para desenhar suas prioridades. Bruno Sobral (2017) nos lembra que as universidades estaduais gozam, de acordo com a constituição do estado do Rio de Janeiro, de dotação orçamentária própria, na forma de duodécimos mensais de 6% do orçamento[7].

Dito isto, podemos concluir que um dos problemas mais graves que circundam a universidade contemporânea tem a ver com o seu financiamento. A universidade, na visão das nossas elites e dos nossos dirigentes político-empresariais, não é território do povo, não é bem de primeira necessidade para quem tem precisão de tantas outras coisas. A universidade é complemento, é privilégio, é lapidação do capital cultural e, como tal, é mais indicada e viável para quem ocupa posições sociais mais elevadas.

Assim, em meio a classes descartadas, forma-se um quadro difícil de ser modificado: os bem-nascidos, os afortunados vão ocupando os espaços de privilégios. E os excluídos –esperam os ideólogos das desigualdades – devem aceitar isto de bom grado.

A obrigação do Estado, de acordo com os analistas da crise – que ao analisarem a inventam – poderia ficar restrita à oferta da educação básica, garantindo uma entrada reduzida do povo pobre na cultura letrada. Se quem não tem dinheiro desejar seguir adiante, precisará traçar um caminho próprio, buscando com os meios que não dispõe as oportunidades negadas a quem não tem direito a um lugar ao sol.

Tal pensamento, construído em torno da teoria do capital humano, ganha reforço nas indicações do Banco Mundial – aquela agência acostumada a cuidar do quintal alheio e que, de tempos em tempos, mostra sua força e sua influência nos países que acreditam depender de suas ideias para sair de alguma crise – crise que quando não existe é fabricada sob medida para as soluções enlatadas de algum salvador externo ligado ao grande capital.

Relevante é registrar que a construção ideológica da noção de capital humano, ao mesmo tempo em que induz a uma visão invertida da desigualdade, estabelece uma mudança profunda e regressiva na concepção republicana de educação básica, pública, gratuita, universal e laica. A educação escolar deixa de ser concebida como um direito social e subjetivo universal e, se é definida como investimento em capital (capital humano), passe a reger-se pelos critérios e leis mercantis (Frigotto, 2017, p. 27).

O que se vê, neste cenário em que tudo vai muito mal, é um esforço dos governos – quase sempre acompanhados da grande mídia e de grupos empresariais – para disfarçar os sinais de que as prioridades do Estado, tomado por grupos de interesse, tem sido pagar a dívida pública e manter uma política esdrúxula de isenções fiscais para grandes conglomerados financeiros. Falta dinheiro para pagar os salários dos servidores públicos, mas um montante muito maior é dispensado para manter acordos e negociatas firmados em tempos de campanhas eleitorais, onde essas mesmas empresas agraciadas com as isenções fiscais, muitas vezes, patrocinaram candidaturas, viabilizando a atuação política de quem hoje lhes estende a mão. No caso das isenções, é salutar sublinhar que não há, por parte do estado, um acompanhamento sobre investimentos e geração de empregos, não podendo ser viável mensurar o impacto positivo que tais facilidades fiscais ofertadas às empresas geram na sociedade. O discurso do governo é que tais medidas são necessárias para manter e fazer crescer os índices de empregabilidade, mas, ao mesmo tempo, não é capaz de dizer o quanto isso de fato significa.

Diante de tantas desigualdades de tratamento, não é de se espantar que a adesão popular à luta das universidades públicas no Estado do Rio de Janeiro seja tão tímida como tem sido. Entre os efeitos da “crise” há uma ausência de representatividade, pois em uma sociedade dividida entre estabelecidos e outsiders, fica praticamente impossível convencer quem está fora da importância que é manter aquele reduto de tão poucos. Decerto, nos últimos anos, com o avanço – insuficiente, porém grandioso – das políticas de acesso produzidas pelos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff – a universidade deixou de ser palco exclusivo das elites e abriu-se para estratos da sociedade historicamente marginalizados, mas a narrativa desta entrada crescente de pretos e pobres no Ensino Superior foi sequestrada pelas transmissões parciais da grande mídia e, em considerável medida, foi silenciada por grupos pretensamente progressistas que, estando à frente de alguns sindicatos e de determinadas correntes dos movimentos sociais, sublinham os erros dos governos petistas, ao passo que ocultam avanços importantes.

Mas, a despeito do que falam delas, as universidades jamais serão como antes, encontram-se tomadas por ações de resistência, embora ainda não saibam como mobilizar os demais setores da sociedade para que saiam em sua defesa. A universidade, por muito tempo enclausurada e inacessível às classes desprivilegiadas, vê-se tomada pelas gentes das cotas e das políticas públicas dos governos petistas. Trata-se de uma conquista pouco digerida pelas classes dominantes que, diferente de antes, agora tem que conviver em seus trajetos habituais com os sinais dos novos tempos. Longe de termos uma inclusão satisfatória dos atores até então excluídos da história das universidades, é público e notório que há um quantitativo que invade, ocupa, ressignifica a paisagem sempre tão branca e endinheirada do Ensino Superior.

O novo cenário, na análise de Frigotto (2017), estimula o revanchismo contra o avanço das camadas populares. Fora dos seus lugares historicamente estabelecidos, favorecidos pela Constituição de 1988, sobretudo no que tange ao direito à educação, e também beneficiados pelo conjunto de mudanças iniciadas com a posse de Lula da Silva em 2003, esse público que viu finalmente chegar a sua vez na fila dos direitos sociais, agora convive com a marcha do retrocesso. A emergência de um pensamento conservador, cujo progresso mais evidente é o projeto Escola “sem” partido, vai destruindo pouco a pouco a ainda insuficiente inclusão dos mais pobres. Ideias de privatização e de restrição ao acesso no Ensino Superior dão a tônica das saídas propostas para vencer a “crise” – uma crise desenhada à mão, à luz do dia, por atores que perderam o pudor ao estancar a sangria que impunha algum risco para os seus malfeitos. A perda de direitos é manchete secundária nos jornais e nas revistas, sendo a onda conservadora e privatista navegada como recurso inevitável. Todo esse processo é chancelado, muitas vezes, por interesses privados dos maiores grupos de comunicação do país, adeptos do pensamento neoliberal e contrários aos avanços de direitos em geral. A “crise” é editada, roteirizada e veiculada pela televisão.

A crise televisionada

Bourdieu, em Sobre a televisão (1997), analisa que esse dispositivo tecnológico e cultural representa um desafio tanto para a política cultural quanto para a democracia, podendo se tornar um “instrumento de opressão simbólica” (Bourdieu, 1997. p. 13). Para ele, mesmo quando oculta fatos, a televisão seleciona como mostrará a realidade, influenciando-a diretamente. Tudo sob a lógica comercial que determina a busca por índices de audiência a fim de atrair anunciantes e aumentar os lucros da empresa de comunicação.

No Rio de Janeiro da “crise”, anunciada desde 2015, a TV – e suas múltiplas formas de consumo – bem como os novos dispositivos digitais, possuem um papel decisivo na publicização da “crise” espetacularizada. Ao mesmo tempo em que produzem conteúdos que narram a difícil jornada dos servidores com salários atrasadas e com vidas inviabilizadas, tais empresas de comunicação constroem em seus discursos a visão de que o Estado não tem condições de arcar com o financiamento básico de alguns serviços, com destaque para aqueles prestados pela pasta de Ciência, Tecnologia e Inovação. Ao final de 2016, por exemplo, ao mesmo tempo em que noticiava a campanha de natal do Movimento Unificado dos Servidores Públicos Estaduais (MUSPE)[8], na qual os servidores arrecadaram e distribuíram cestas básicas para outros servidores em situação de fome, a mídia em geral destacava como o poder público inviabiliza instituições de ensino superior como a UERJ, em uma abordagem que deixa subentendida a ideia de que o ensino superior não é viável enquanto público.

Servidora pública recebe cesta básica do MUSPE Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/saiba-como-doar-alimentos-para-as-cestas-basicas-dos-servidores-do-estado-21603043. Acesso: 10/06/18
Servidora pública recebe cesta básica do MUSPE
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/saiba-como-doar-alimentos-para-as-cestas-basicas-dos-servidores-do-estado-21603043. Acesso: 10/06/18

O papel da universidade e dos intelectuais

Essa inviabilização teórica e midiática do ensino superior entra em choque com o projeto de universidade defendido por Darcy. Para ele, a universidade deveria ter um projeto político e pedagógico claro de inclusão e transformação social, impactando decisivamente no projeto de nação almejado. Um dos objetivos da universidade seria interpretar a modernidade e produzir um autoconhecimento da sociedade nacional, promovendo seu desenvolvimento autônomo. Outro objetivo seria aumentar e diversificar a formação, prestando atenção às demandas de cada região onde a universidade será instalada.

Nesse sentido, os intelectuais teriam papel de destaque, pois sua mentalidade utópica poderia, a partir do projeto de transformação social da universidade, influenciar diretamente a realidade. Seriam os intelectuais que deveriam decidir o projeto utópico de universidade, substituindo o senso comum pelo conhecimento científico e, assim, permitindo que não se reproduzam, simplesmente, modelos externos de desenvolvimento. A influência dos intelectuais se daria pela reflexão e pela ação direta na sociedade – o pensamento-ação de Darcy – por supostamente terem o preparo necessário para promover o progresso a partir do conhecimento científico e por serem capazes de mobilizar a sociedade e mudar a ordem vigente. Entretanto, os vários exemplos acumulados ao longo da nossa história comprovam que, em relação aos intelectuais, Darcy estava equivocado ou, pelo menos, tenha superestimado em demasia as suas habilidades e senso de altruísmo. Os intelectuais têm pertencimentos de classe, interesses políticos e visões variadas sobre o sentido da universidade.

Tamanha mudança almejada por Darcy não viria sem resistência. Sendo a universidade um local de produção do saber, torna-se um perigo para o status quo e deve, como tal, ser combatida. Darcy Ribeiro entendia a função social da educação como um agente do saber e

Saber é isto: uma força, uma arma. (…) Ciência falsa e mediocridade nada são, nada podem. No caso da universidade, este desafio científico aponta para o dever de evitar que se cultive um saber fútil, inútil. Que seja esse saber brincadeira de tantos acadêmicos universitários, em que um escreve para o outro (Ribeiro, 1995, p. 20).

A expansão da universidade seria um imperativo para a superação das desigualdades, impactando diretamente na melhoria do ensino fundamental e básico. Todavia, da mesma forma que pode ser um projeto de ação e reflexão dos intelectuais, pensado para impactar positivamente na sociedade, o fracasso desse modelo seria um projeto deliberado das classes dominantes para a perpetuação das desigualdades e da subordinação a um modelo de atualização histórica.

Ademais, é importante ressaltar que, mesmo tendo as elites, no argumento de Darcy, planejado a educação das massas para ser um fracasso, no miudinho do dia a dia, nos espaços/tempos que vão sendo ocupados, há resistências e criação de horizontes novos. A revolução social nem sempre aguarda a ação dos intelectuais, sendo múltiplas as suas fontes de produção, sendo várias as ações dos movimentos sociais que passam a redesenhar as paisagens do ensino superior, com destaque para os movimentos de mulheres, negros e LGBTT que pleiteiam, cotidianamente, não apenas com ações reivindicatórias, mas com seus corpos que desafiam a ordem, uma universidade mais justa e inclusiva.

O projeto de Darcy, ainda marcado pela modernidade como ressaltamos no início do texto, trazido para a realidade atual poderia deixar de lado o fato de termos resistências a partir de camadas populares da sociedade, longe da intelectualidade universitária, ainda elitista e excludente. Por exemplo, os Movimentos dos Trabalhadores Sem Teto e dos Trabalhadores Sem Terra, que possuem modelos de educação próprios e que hoje têm, em diversas ocasiões, capacidade de mobilização popular maior do que o de grupos intelectuais organizados.

A universidade, a ecologia dos saberes e a saída da crise

Para Darcy, a transformação social se concretizaria a partir da ação direta da universidade, que refletiria sobre problemas locais e regionais, reforçando o potencial econômico e induzindo o desenvolvimento na localidade. A UENF, com seus cursos voltados majoritariamente para o estudo da produção e exploração do petróleo – abundante na região de Campos dos Goytacazes e Macaé – é um exemplo claro dessa estratégia. Porém, não podemos desconsiderar que a universidade não é o único agente capaz de produzir mudanças locais, sendo fundamental observar a complexidade de atores que se apresentam como resistência diante dos modelos de atualização histórica.

Santos (2007), pensando nessa diversidade de práticas e conhecimentos, cunhou o termo ecologia dos saberes a partir da compreensão de que precisamos de uma epistemologia do “sul global”, ou seja, a periferia mundial, fruto de colonizações recentes ou mais antigas, onde ocorreu não só o domínio político-econômico, mas também epistemológico que perdura até hoje. A ecologia dos saberes seria um conjunto de epistemologias marcadas pela possibilidade da diversidade de pensamento fora do eixo central, como resistência à globalização neoliberal, exercendo diretamente o papel de globalização contra hegemônica. Na ecologia dos saberes há a valorização não apenas do conhecimento científico-acadêmico, mas da interação deste com o conhecimento produzido localmente, o que contribuiria para fortalecer e dar credibilidade à produção do conhecimento em geral. Darcy, apesar de acreditar na superação da cultura popular – que aparece neste ponto da sua obra como sinônimo de senso comum que deveria ser superado pelo conhecimento científico – exaltou os saberes locais ao formular as ações educativas dos CIEPs. Nos Centros Integrados de Educação Pública, referência na oferta de ensino de tempo integral para as classes populares, o autor de O Povo Brasileiro, elegia a animação cultural como disciplina de integração entre a escola e a comunidade, devendo ser o animador cultural um membro desta comunidade e um guardião dos seus saberes/fazeres que mereciam ser propagados.

O projeto de animação cultural desenvolvido nos CIEPs, utilizando artistas da própria comunidade, teve essa preocupação básica de valorização e resgate de nossa própria cultura, assim como o de conseguir através do trabalho cultural a integração da comunidade à escola (Faria, 1991, p. 24).

Para Santos, as produções epistemológicas devem se debruçar nas práticas de conhecimento e seus efeitos na sociedade, em um movimento similar ao pensamento-ação de Darcy, e não sobre o pensamento abstrato, dito neutro, pois: “não há epistemologias neutras e as que reclamam sê-lo são as menos neutras” (Santos; Meneses, 2010, s/p).

Portanto, a transformação da sociedade viria da comunhão de uma ecologia dos saberes capaz de se contrapor a hegemonia neoliberal, pautada nas resistências e nas táticas de praticantes (Certeau, 1994), dos atores escolares e acadêmicos, dos sindicatos e dos movimentos sociais, onde podem participar os intelectuais da universidade (ou não). Ainda que tenha um papel central na construção de um projeto de nação – na visão de Darcy – ou na produção de uma contra hegemonia aos anseios neoliberais – na concepção de Boaventura – a universidade não fará nada sozinha, ao contrário, demandará ser cada vez mais ocupada pela gente historicamente excluída, abrindo-se à diversidade e minimizando as disparidades que ainda hoje conhecemos.

Considerações finais

Compreendemos a “crise” atual não apenas do estado do Rio de Janeiro, mas de todo o país, como construção discursiva e como estratégia para os anseios mais conservadores, especialmente àqueles mais conectados com a elite financeira nacional e internacional.

No cerne deste discurso, há uma demanda histórica dos grupos conservadores pela diminuição do papel do Estado na oferta do ensino superior, sendo cruciais para isso as recomendações do Banco Mundial, para quem o Estado deveria se limitar a investir no ensino básico e fundamental.

Nesse sentido, compreendemos a “crise” do estado do Rio de Janeiro, deflagrada em 2015, como um laboratório de experimentação do projeto de desfinanciamento da educação, com destaque para o ensino superior.

É imperativo ressaltar, entretanto, frente à crença que Darcy Ribeiro depositava nos intelectuais como promotores da mudança, que eles – os intelectuais – possuem seus pertencimentos e que nem sempre reconhecem na universidade o lócus da transformação social, dialogando com pensamentos mais conservadores. No cenário atual multiplicam-se os discursos de professores e juristas que apostam nos investimentos privados como soluções plausíveis para a “crise” enfrentada pela Academia. Em suma, o que essas vozes acadêmicas ressoam é a possibilidade do compartilhamento entre investimentos públicos e privados, algo que, para Darcy, comprometeria a lisura da pesquisa devido aos interesses de quem a financia, contribuindo para os processos de servidão do conhecimento nacional aos modelos produzidos no estrangeiro.

A associação do Estado com grupos midiáticos, que reforça a narrativa da “crise” e oculta suas causas e seus efeitos é também um ponto que merece a nossa atenção. Ainda que a grande mídia, em alguns momentos muito pontuais, dedique suas páginas e telejornais a dar visibilidade aos problemas enfrentados pelos servidores públicos do estado do Rio de Janeiro, o conjunto de narrativas diretamente veiculado em seus vários canais vão produzindo sinais de esgotamento do Estado frente ao financiamento da educação pública, sendo este um caminho propício para a indicação do setor privado como salvador da pátria.

A “crise” no estado do Rio de Janeiro é uma espécie de laboratório de um modelo de ciência e tecnologia que deve ser adotado por outros estados. A lógica do financiamento privado, que aproxima as universidades do modelo empresarial, representa o avanço da globalização neoliberal que, em última instância, impede o projeto de nação pensado por Darcy, ignorando as dissidências apontadas por Boaventura.

Como indica Santos, a crise financeira impacta diretamente nas demais, pois ao adotar uma lógica empresarial de busca de diminuição de custos para obtenção de lucros cada vez maiores, ou seja, a dita eficiência do mercado, diminui-se cada vez mais o acesso de quem não pode custear os estudos de ensino superior (ou aumenta o endividamento necessário para isso), acentua a falta de autonomia da universidade para decidir seu próprio projeto político pedagógico ao subordina-la a metas de produtividade e agrava os obstáculos estruturais ao seu pleno funcionamento, com a consequente precarização do trabalho.

A luta pelo ensino superior público de qualidade não pode prescindir da adoção de uma ecologia dos saberes, ou seja, será preciso considerar as epistemologias que falem a partir do local, comprometidas com a mudança e com a resistência ao modelo hegemônico de globalização, sem desconsiderar o saber popular em conjunto com o conhecimento científico. Decerto, essa proposta terá resistência na onda conservadora que se expressa, por exemplo, no programa escola “sem” partido, que visa reduzir o papel do professor a um mero transmissor de conteúdos previamente fabricados e supostamente neutros.

Deixamos, pois, como reflexão sobre a universidade necessária nos dias atuais as seguintes questões: qual o papel da universidade frente ao avanço da globalização hegemônica? Quais os limites e possibilidades dos intelectuais nas ações de mudança e como eles podem dialogar com a ideia de ecologia dos saberes para pensar práticas conjuntas de luta? Que visões de ciência e tecnologia estão em disputa na produção da “crise” do estado do Rio de Janeiro? “Crise” para quem? Universidade para quem?


 

* Leonardo Nolasco-Silva é professor adjunto da Faculdade de Educação da UERJ. Bacharel em Ciências Sociais (UENF), mestre em Políticas Sociais (UENF), doutor em Literatura Comparada (UFF) e em Educação (UERJ), especialista em Formação Docente para o Ensino Superior (Anhanguera-UNIDERP) e pós-doutor em Educação (UERJ). Realiza pesquisas na área dos cotidianos, pensando suas interfaces com as TICs e com as audiovisualidades, tendo como locus de observação o curso de formação de professores.

** Vittorio lo Bianco é servidor público estadual, técnico em Ensino a Distância e Divulgação Científica na Fundação CECIERJ. Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-Rio, mestre em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pelo Instituto de Economia da UFRJ, especialista em Políticas Públicas (UFRJ) e em Gênero e Sexualidade (Instituto de Medicina Social/UERJ). Cursa, atualmente, doutorado em Educação na Faculdade de Educação da UERJ & Eacute; pesquisador associado do Laboratório Educação e República (UERJ), atuando nas áreas de Cibercultura, Educação a Distância, ambientes virtuais de aprendizagem, Políticas Públicas, Globalização, Educação e Análise comparada.

 

Referências

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

FARIA, Lia. CIEP: a utopia possível. São Paulo: Livros do Tatu, 1991.

FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.

RIBEIRO, Darcy. A universidade e a nação. In: Separata de Educação e Ciências Sociais, versão 10, nº 19, jan-abr, 1962.

RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. 1ª ed. Rio de Janeiro: Global, 1995.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1995b.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 79, p. 71-94, nov.  2007.

SANTOS, Boaventura de Sousa.; MENESES, Maria Paula. (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez Editora, 2010.

SOBRAL, Bruno Leonardo Barth. O sentido público de uma universidade como a UERJ. Disponível em: http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2017/01/22/o-sentido-publico-de-uma-universidade-como-a-uerj/ Acesso em: 15 jul. 2017.

 

Notas

[1] Este texto é uma versão revisada de artigo publicado anteriormente na Revista Artes de educar (UERJ), no número especial Darcy Ribeiro, v. 3, n. 2 (2017), disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/riae/issue/view/1619/showToc

[2] As notícias sobre o pagamento dos servidores, entre 2015 e 2017, foram veiculadas primeiro na grande mídia, com destaque para o RJ TV 1ª edição, da Rede Globo. O calendário de pagamento, antes de qualquer anúncio oficial, era informado pelo telejornal e, na maior parte das vezes, a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Social não aparecia na lista dos que iriam receber.

[3] Darcy Ribeiro teve papel de destaque na formulação e/ou consolidação de algumas dessas instituições. Em primeiro lugar, a UENF, projetada por Darcy Ribeiro (batizada posteriormente com o seu nome, inclusive) seria a universidade dedicada ao desenvolvimento do interior do Rio de Janeiro. Em segundo lugar a UERJ, da qual foi reitor e buscou implementar sua visão sobre a “Universidade Necessária”. Em terceiro lugar, o Consórcio CEDERJ, projeto comandado pela Fundação CECIERJ cuja inspiração adveio de Ribeiro que já antevia a importância da educação a distância para o processo de expansão do ensino superior de qualidade e público.

[4] O “estado de calamidade pública” foi decretado no estado do Rio de Janeiro no dia 17 de junho de 2016 no Diário Oficial do estado. O decreto, prorrogado em 2017, visava honrar os compromissos estabelecidos com a organização dos jogos olímpicos e paralímpicos Rio 2016 e foi justificado com a queda da arrecadação de receitas, especialmente devido à queda internacional do preço dos royalties do barril de petróleo.

[5] De outubro de 2015 para cá (maio de 2018) a SECTI (atualmente SECTIDS) teve, ao menos, seis secretários em seu comando, o que revela o desprestígio atribuído à pasta no atual governo, a instabilidade que marca às instituições nela abarcadas (a FAETEC, por exemplo, teve no mesmo intervalo, semelhante fluxo de presidentes) e a falta de visão estratégica para a área.

[6] No caso da UERJ, o fechamento do Restaurante Universitário significou a impossibilidade de grande parte dos estudantes, professores e funcionários, realizarem suas refeições diárias. Sem bolsas e sem salários, equilibrando-se na corda bamba dos atrasos e dos calendários de pagamento não cumpridos, essas pessoas não tem como chegar à universidade, tão menos se manter dentro dela. O comércio do entorno, que poderia ser uma alternativa para as refeições do dia, também sente os efeitos do abandono da UERJ, tendo alguns deles fechado suas portas.

[7] Sobral (2017) argumenta que o texto da constituição estadual “registra que a educação é um direito de todos e dever do Estado (artigo 306) e garante à UERJ estar organizada sob a forma de fundação de direito público e possuir dotação que deveria ser nunca inferior a 6% da receita tributária líquida, a ser transferida em duodécimos mensais (artigo 309). Quanto ao último ponto, cabe esclarecer que essa vinculação de receita nunca foi admitida por causa da Adin 4.102 (com acórdão do STF publicado no início de 2015)”. Cabe a ressalva que a lei faz referência ao ensino superior estadual e não apenas a UERJ. Disponível em http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2017/01/22/o-sentido-publico-de-uma-universidade-como-a-uerj/Acesso em: 15 jul.2017.

[8] O MUSPE é um movimento unificado de associações e sindicatos que representam os servidores públicos estaduais do Rio de Janeiro. O movimento foi reativado após o início da “crise” em outubro de 2015.

dossiê
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VINTE ANOS SEM DARCY: IMPRESSÕES E NOTAS

Resumo: Darcy Ribeiro foi presença constante em pesquisas que fiz. Foi do acervo do CPDOC da FGV que me aproximei intelectualmente daquele que seria o parceiro do qual Darcy não se separaria desde 1950. Ter-se aproximado de Anísio Teixeira produziu no antropólogo um verdadeiro roteiro de atuação pública e deu a ele o desenho de uma agenda onde o tema da educação ocupou lugar primordial. A provocação para escrita dessas notas veio da indagação sobre a falta que um intelectual como Darcy pode fazer. Em que ficamos mais pobres com a saída de cena deste intelectual público e político engajado? Discuto cinco aspectos: aposta no Brasil como sociedade; aposta na política como meio de realização humana; capacidade crítica que distanciou Darcy de fidelidade intransigente a princípios imobilizadores; eleição do popular como sujeito da nação; paixão pela literatura como expressão maior da criatividade, da produção intelectual e científica, da ação política, e da afetividade e dos sentimentos.

Palavras-chave: Sociedade; política; povo; educação.

Abstract: Darcy Ribeiro was always present in researches I did. In the Fundação Getúlio Vargas’ CPDOC acquis I got intellectually closer to Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro’s partner since 1950 until the end of his life. The relationship between Anisio Teixeira and Darcy Ribeiro made such an impact on the anthropologist that he developed a true guide for public performance and gave him an agenda design where education was the main theme. The mobilization for writing these notes came from the question about how much the lack of an intellectual as Darcy can do. How poor we become without the presence of this public intellectual and engaged politician? I discuss five aspects: bet on Brazil as a society; bet in politics as a means of human achievement; critical capacity that distanced Darcy from uncompromising loyalty to immobilizer principles; election of the people as fellow of the nation; passion for literature as larger expression of creativity, of intellectual and scientific production, of political action, and of  affection and feelings.

Keywords: Society; politics; people; education.

 

O momento em que vivemos tem provocado uma espécie de homogeneidade valorativa que, a meu juízo, é perturbadora[1][2]. Não tenho tido registro de alguém, pela esquerda ou direita, de geração mais nova ou mais velha, escolarizado ou sem instrução que fale do Brasil em alguma chave de otimismo. O otimismo se transformou em uma espécie de prescrição médica por aqueles que, na condução de alguma política, precisa acreditar ou fazer acreditar na eficácia de remédios que estão em teste. Um tempo estranho que nas lúcidas palavras de Zigmunt Bauman está nos exigindo mais reflexão do que informação. É como se o volume excessivo de informações com que somos bombardeados nos mais díspares veículos de comunicação nos afogasse e nos dificultasse o exercício reflexivo. Inevitável, além de Bauman, a lembrança de Norbert Elias com seus alertas sobre o nem sempre progressivo processo civilizador. A desconcertante combinação de um movimento evolutivo de conquistas com atitudes associadas ao estágio de barbárie, ou seja, de incivilização nos atropela contemporaneamente. Para onde estamos indo, o que vai sobrar do que se conquistou e como recuperar o que se perdeu, como voltar a um trilho de razoabilidade, ainda que não consensual, são inquietações de um diagnóstico desconfortante.

O Brasil passou por transformações sensíveis nos últimos vinte anos, entrou no noticiário com informações pouco usuais por indicadores positivos como taxa pequena de desemprego, maior distribuição de rendas, volume considerável de ingresso de pessoas nas distintas esferas de formação educacional (fundamental, médio e superior), ampliação da capacidade de consumo, deslocamentos progressivos em direção a bens materiais e simbólicos que ainda não haviam sido disponibilizados para uma grande maioria da sociedade etc. Criou-se inclusive uma categoria sobre a qual os sociólogos depositaram desconfiança imediata – “a nova classe média” – sugerindo que setores até então excluídos da sociedade haviam, finalmente, experimentado mobilidade social ascendente. O início do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, em 2015, no entanto, foi também o início de uma reversão completa não apenas de expectativas, mas de alteração da maneira como o Brasil passou a ocupar o noticiário nacional e internacional. Foi nessa quadra de reversão de expectativas, de sentimentos controvertidos que recebi o convite de celebrar Darcy Ribeiro a propósito de seus vinte anos de ausência, de 1997 a 2017. Muitas das questões levantadas, discutidas e registradas por ele em distintos formatos de comunicação foram, de alguma maneira, testadas com os sinais de alteração nos indicadores de inclusão. Voltarei a esse ponto mais adiante.

Darcy foi presença constante em alguns esforços de pesquisa que fiz desde o contato com o ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Foi do acervo depositado no CPDOC da Fundação Getúlio Vargas que me aproximei intelectualmente daquele que seria o parceiro do qual Darcy não se separaria desde a década de 1950, e que marcou profundamente sua própria agenda pública de ação política, trabalho e produção intelectual. Ter-se aproximado de Anísio Teixeira (1900-1971) foi mais do que a ventura da aproximação entre dois amigos: produziu no antropólogo um verdadeiro roteiro de atuação pública e deu a ele o desenho de uma agenda onde o tema da educação ocupou lugar primordial. “Anísio me ensinou a duvidar e a pensar”, lembraria Darcy em seu livro de memórias, Confissões.

Tratei desse encontro no livro Darcy Ribeiro, a sociologia de um indisciplinado, mas em outros textos também quando o que me movia era o interesse pela educação pública brasileira (Bomeny, 2001a e 2001b). Anísio, americanista, urbano, envolvido com os problemas da educação e com a universalização desse direito, era uma das lideranças mais notáveis do Movimento dos Pioneiros da Educação Nova – que arregimentou intelectuais na década de 1920 nas caravanas pelo Brasil em favor de reformas educacionais e sanitárias. Darcy, àquela altura mobilizado pela questão indígena, (herança de sua aproximação com o marechal Cândido Rondon), adentrava o interior brasileiro em busca do que supunha traduzir a alma nacional. Olhava com desconfiança o que considerava uma educação comunitária, preconizada na América do Norte, fruto da cultura protestante, que obrigava aos fiéis a leitura da bíblia, situação em nada comparável com o Brasil. A aproximação entre esses dois personagens alterou neles mesmos suas próprias convicções de origem. Darcy aprendeu a valorizar a experiência norte-americana a ponto de afirmar, em resposta aos ataques que sofria na condução do Programa Especial de Educação, serem os CIEPs uma escola pública regular como as que os norte-americanos criaram.  Percorreram juntos uma estrada repleta de iniciativas que deixaram marcas profundas na cultura brasileira. O encontro aconteceu no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), criado por Anísio, de onde nasceria o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), que contou com a participação ativa de Darcy[3].

A parceria se afinou na criação da Universidade de Brasília (UnB), na abertura dos anos 1960 e foi consolidada quando Darcy Ribeiro assumiu o Ministério da Educação e Cultura (MEC) em setembro de 1962, sendo substituído por Anísio Teixeira na reitoria da UnB. Permaneceu no ministério até 23 de janeiro de 1963, quando assumiu a chefia do Gabinete Civil da Presidência da República no governo João Goulart. O golpe de 1964 retirou o antropólogo não só do governo João Goulart (de quem era chefe da Casa Civil) como da Universidade do Brasil, Rio de Janeiro, onde lecionava desde 1956.  Para não falar, claro, da própria UnB, invadida e torpedeada pelas forças da repressão militar (Bomeny, 2016).

O Brasil perdeu Anísio Teixeira precocemente. A morte abrupta, em 1971, alcançou Darcy no exílio. Ao retornar ao Brasil definitivamente, em 1978, ele reiniciou a cruzada pelo ensino básico, e cultivou ao longo de sua vida o patrimônio herdado da união com o renovador da educação no Brasil. Foi por ocasião da morte de Darcy, em fevereiro de 1997, que tomei contato com a impressão forte de ter sido ele o último expoente da Escola Nova – não por ter feito parte do movimento dos Pioneiros, mas por ter empunhado a bandeira dos educadores que lideraram a jornada pela defesa do ensino público, laico, gratuito e obrigatório: dever do Estado; direito cívico dos cidadãos. Estou segura de que se deveu ao encontro com Anísio a devoção apaixonada por um programa de educação capitaneado pelo governador Leonel Brizola nos dois governos do Rio de Janeiro (1983-1987; 1991-1994). Era chegada a hora de realizar a utopia escolanovista na escrita de uma reforma educacional com profundos impactos no Rio de Janeiro. O Rio, modelo para o país, espelho e caixa de ressonância de inovações e ousadias, poderia ser a matriz da universalização no país de um programa extensivo de educação de qualidade para todos.

Em 1982, Darcy elegeu-se vice-governador do Rio de Janeiro pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), na chapa encabeçada por Brizola. A convivência com Brizola mesclou a paixão pela educação, herdada de Anísio, com o que Darcy chamou de “apreço pela classe de baixo”. Um discurso popular embasado não mais nas Minas Gerais, sua terra de origem, mas na tradição rio-grandense, cujas linhas estavam traçadas na trajetória política que veio com Vargas, passando por João Goulart e Brizola.

O Programa Especial de Educação e os CIEPs ganharam seu curso. Já foram matéria de reflexão não apenas nem principalmente minha, mas, ao contrário, parte do acervo de pesquisas sobre educação no Brasil. (Mignot, 1988; Emerique, 1997; Bomeny, 2001, 2008). Conhecemos seus objetivos divulgados à profusão: garantir à população o direito a um ensino gratuito moderno, reestruturado do ponto de vista pedagógico e tecnologicamente aparelhado com a previsão de metas assistenciais (como uniformes, calçados e melhoria da qualidade da merenda) e pedagógicas (como aumento da carga horária diária para cinco horas e revisão de todo o material didático), treinamento dos professores e melhoria de suas condições de trabalho, reforma e conservação das escolas e do mobiliário, além de novos projetos educacionais – voltados à pré-escola, à criação de Centros Culturais Comunitários e à educação juvenil noturna. Havia entre os idealizadores a convicção de que a democratização da educação teria que minimizar as carências essenciais daqueles estudantes que provinham de situações sociais desprotegidas.

Os cuidados se estendiam à montagem de bibliotecas, salas de estudo e espaços de lazer com profissionais treinados para a jornada de tempo integral. Como parte da estrutura física do prédio, previam-se dormitórios para abrigar “pais sociais” que se responsabilizariam, em troca da moradia, pelo acompanhamento escolar de crianças que também morassem nas escolas. A fala de Darcy sobre o projeto deixa clara a convicção que o norteou:

Ao invés de escamotear a dura realidade em que vive a maioria de seus alunos, proveniente dos segmentos sociais mais pobres, o CIEP compromete-se com ela para poder transformá-la. É inviável educar crianças desnutridas? Então o CIEP supre as necessidades alimentares dos seus alunos. A maioria dos alunos não tem recursos financeiros? Então o CIEP fornece gratuitamente os uniformes e o material escolar necessário. Os alunos estão expostos a doenças infecciosas, estão com problemas dentários ou apresentam deficiência visual ou auditiva? Então o CIEP proporciona a todos eles assistência médica e odontológica. (Ribeiro, 1994, p. 14).

Durante os oito anos dos dois governos Brizola (1983-1987; 1991-1994) o programa ergueu 507 CIEPs e alcançou uma repercussão pública pouco comum em assuntos educacionais. A figura política do governador e a personalidade apaixonada, e nem sempre ponderada do vice, a marcha frenética com que os CIEPs eram construídos e a confecção de um programa complexo implantado por meio de uma secretaria extraordinária de Educação despertaram simultaneamente adesões e reações críticas, vindas de diferentes extrações da comunidade intelectual e das hostes políticas adversárias. Uma intervenção pedagógica completamente ungida na esfera política criou mal-estar na comunidade dos educadores. O argumento era que o Programa Especial de Educação havia se transformado em programa político, em detrimento da melhoria do sistema educacional.

Mas os dissabores o estimulavam na defesa do ideal que abraçara. A cada matéria crítica contrapunha-se a voz de Darcy Ribeiro, sustentando a continuidade no tratamento de uma escola pública que até aquele momento, no Brasil, estava longe de cumprir o papel que a ela deve ser atribuído em uma sociedade democrática. A reação veio de muitos segmentos da sociedade: educadores expunham os pontos de fragilidade do Programa que já nascia como programa de massa, extenso, volumoso, caro e sem condições de funcionamento na medida e na velocidade com que se implantava. Dos cientistas sociais explodiam avaliações sobre os efeitos negativos para a democracia do populismo implicado na política pública assistencialista do governo Brizola, qualificado como personalista, voluntarista, demagógico, inconsequente (Bomeny, 2008).

O acúmulo de críticas por atores qualificados, e em muitos pontos, justificáveis, favoreceu, a meu ver, a falta de reação ao brusco e irresponsável desmonte do programa pelo governo seguinte de Wellington Moreira Franco. Os CIEPs foram desmontados como estruturas de ensino em horário integral, e as construções foram interrompidas. A rede pública voltaria ao sistema convencional, agora com o ensino fundamental municipalizado.

Mas a provocação para escrita dessas notas veio da indagação sobre a falta que um intelectual como Darcy pode fazer. Portanto, sobre o patrimônio que se pode atribuir a um personagem como Darcy Ribeiro. E em sintonia com o sentimento da abertura deste texto, prossigo com o que talvez, a meu juízo, simbolize a expressão falta. Em que ficamos mais pobres com a saída de cena de um intelectual público e um político engajado como Darcy Ribeiro?

1. A aposta no Brasil como sociedade, como projeto humano, como criação baseada na mistura, na capacidade de interação de culturas tão distintas como as que aqui se mesclaram desde a chegada dos portugueses. A força de um país como o Brasil vem, na convicção de Darcy, dessa mistura, ao contrário de muitos diagnósticos que atribuem a ela nossa fragilidade e incompletude como nação civilizada. De igual maneira e com igual vigor defendia a herança ibérica como parte substancial do que a cultura brasileira poderia exibir de melhor em tolerância, capacidade de interação, convivência com diferenças. A paixão pelo Brasil em sua profunda compreensão foi o que moveu sua vida intelectual, afetiva e política. Este talvez seja um dos pontos que mais singularizaram a trajetória do intelectual. A compreensão do país seria o primeiro passo para a proposição de alternativa ou projeto de nação. Darcy não se furtou ao mergulho tanto na produção intelectual brasileira que digeriu compulsivamente, como com as manifestações nativas de grupos culturais indígenas que modelaram o projeto de nação ainda que excluídos dele por processos continuados de expulsão. Os habitantes das florestas e seus ensinamentos ocuparam a imaginação antropológica de Darcy e Berta Ribeiro atravessando a escrita, sendo recuperados como ingredientes fundamentais para explicar o que se tornaria o país tal como se constituiu. O antropólogo tratou os índios como parte integrante do projeto nacional e não como contingentes isolados, distantes e destacados da população brasileira, menos ainda, como adereço e decoração no inventário da cultura nacional.

2. A aposta na política como meio de realização humana. Política como vocalização de interesses, expressão pública de valores e vocações nacionais. Este foi um ponto que respondeu pela força de Darcy como intelectual, mas também que revelou em muitas dimensões sua fraqueza. A expressão pública do comprometimento da razão com a política foi configurada em Darcy Ribeiro como convicção de seu lugar na sociedade pela política. Proferia em seus discursos a conclamação do intelectual para suas responsabilidades públicas. O engajamento de que era revestido em suas aventuras políticas e sociais era uma exigência que dirigia aos que se aventurassem pelo universo intelectual. O contrário, em suas palavras, era o intelectual alienado, distanciado das condições singulares de seu país, que se movia por um condenável entrincheiramento em verdadeiras torres de marfim. Tal exposição provocou reações críticas ao estilo cultivado de um intelectual apaixonado e iracundo, insubordinado e inconstante, movido por vaidade e excessivo individualismo que punham em risco o rigor intelectual e o que se espera em processos racionais de institucionalização. Faltava-lhe talvez o conjunto de atributos que tão bem se encaixavam na ideologia da mineiridade, sendo ele próprio um mineiro: prudência, constância, perseverança, moderação, previsibilidade…

3. A capacidade crítica que o distanciou de qualquer fanatismo ou fidelidade intransigente a princípios de ação imobilizadores. Este talvez tenha sido o traço que mais lhe tenha cobrado em vida. Não poupou polêmica com parceiros, adversários, filiados de associações às quais pertenceu, membros das comunidades científicas das quais participou ou às quais aderira. Em exercício de imaginação sou capaz de visualizar a impetuosidade com que estaria se interpondo hoje, em 2017, no debate sobre a reforma do ensino médio, os caminhos do ensino superior, confrontando facções as mais diversas, protagonistas e antagonistas, criando dissabores e fecundando brechas com provocações fundadas e inusitadas.

4. A eleição do popular como sujeito da nação. Entre os traços característicos do estilo de liderança de Darcy Ribeiro talvez este seja um dos mais acentuados. E provavelmente um dos que o singularizaram. A crítica profunda que Darcy formulou a respeito da elite brasileira fortaleceu, sem dúvida, sua convicção de que no popular seria possível encontrar um sentido de nacionalidade mais próximo do que representaria o Brasil em sua essência. A ideia de que o povo é capaz de conduzir seu destino, fazer escolhas e representar culturalmente o país atravessou seus escritos, vários de seus depoimentos e encontrou ressonância expressiva em seu encontro com Leonel Brizola. Valorizou a singularidade positiva brasileira pela mistura de povos em cruzamentos continuados – capacidade dos portugueses em se acasalar com índios e negros. A convicção de que no popular reside a matéria constitutiva da formação do projeto nacional não encontraria abrigo em uma cultura elitista, seletiva e excludente como a que vigorou no país.

5. Por último, e talvez mais importante, a paixão pela literatura como expressão maior da criatividade, da produção intelectual e científica, da ação política, e naturalmente, da afetividade e dos sentimentos. Literatura como alimento de seu agudo senso de humor. Darcy apossava-se da tradição literária brasileira e latino-americana, especialmente, e por meio delas, aprofundava sua paixão pelo Brasil e sua interlocução com os países irmãos. Há profundo aprendizado do sentido maior de nacionalidade com a ficção pontificava nosso personagem. De todas as faltas, talvez seja esta a que mais nos afeta em dias de descrença e tamanha turbulência. Em dias em que o mundo dos interesses mais egoístas parece se expandir de forma incontrolável. Darcy acreditava que pela literatura seria possível alargar nossa capacidade de compreensão, de transigência e tolerância. O mergulho na cultura nacional teve no transporte da literatura o meio mais sensível de adentrar os meandros do que nos fazia parte de contexto maior – europeu e latino-americano – e do que nos singularizava em nossas próprias maneiras dinâmicas de interagir. Foi o que, em grande medida, propiciou a crítica ao dogmatismo tão presente nos discursos e nos textos que produziu. Sua recusa à institucionalização das Ciências Sociais que pressupunha regulamentação, previsibilidade, racionalização de procedimentos em parte é explicada por seu temperamento intemperante, mas em parte também, pela avaliação negativa que tinha da estreiteza implicada em uma separação canônica entre ciência e literatura, academia e o mundo dos sentimentos. A literatura em Darcy Ribeiro foi mais que fruição. Significou instrumento de interpretação da realidade, sem o qual, certamente sua métrica de interferência intelectual teria outra conformação. A recepção de sua obra em contexto externo, como tão bem apontou Haydée Ribeiro Coelho, provocou nos intelectuais das letras impacto produtivo no sentido de reorientação dos próprios eixos analíticos que desenvolviam. É como nos apresenta:

(…) Talvez o inovador do pensamento de Darcy tenha desconcertado muitos de seus colegas, incluídos – ou melhor dito, principalmente – os brasileiros.  Isso fez que não se atendesse às autênticas possibilidades que suas exposições ofereciam.  Atrevo-me a dizer que onde mais profundamente atingiu foi na Argentina, e acaso tenha influído para eles o fato de que As Américas e a civilização veio à luz antes que outros trabalhos de Darcy, em Buenos Aires e em uma editora muito popular e de grande distribuição.  Esse vestígio se notou mais que entre outros, em intelectuais formados nas Letras – como Adolfo Colombres, por exemplo – que a partir do conhecimento da obra de Darcy, se inclinaram para o amplo campo da Antropologia e dos estudos culturais. Para muitos argentinos, o pensamento de Darcy foi um verdadeiro deslumbramento (Coelho, 2005, p. 170).

Esse homem das letras que adentrou a Antropologia e se fez publicamente conhecido por uma atuação política com alta carga de mobilização deixou seus rastros. A inconstância na execução de programas e projetos com os quais se envolveu, a intemperança com que se movia nas rotinas funcionais, e o estilo personalista que impunha aos processos de decisão e de formulação de políticas deram munição a muitas das críticas de que foi alvo como intelectual público e gestor político. Mas o comprometimento com o Brasil, a imaginação incessante e o entusiasmo que derramava em cada nova ideia intelectual ou iniciativa social são a medida mais visível da falta que os vinte anos de ausência nos trazem.


 

* Helena Bomeny é doutora em Sociologia, professora titular de Sociologia da UERJ, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da UERJ e autora, entre outros, do livro Darcy Ribeiro. Sociologia de um indisciplinado, editado pela Editora da UFMG, 2001.

 

Referências:
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BOMENY, Helena. Darcy Ribeiro. Sociologia de um indisciplinado. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001a.

BOMENY, Helena. Intelectuais da educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001b.

BOMENY, Helena. “Salvar pela escola:  Programa Especial de Educação”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Alerj, PDOC/FGV, 2008, p. 95-127.

BOMENY, Helena. “Universidade de Brasília: filha da utopia de reparação”. Sociedade e Estado. UnB impresso. Brasília, vol. 31, série 1, 2016, p.1003-1028.

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Notas

[1] Este texto foi apresentado pela autora na mesa redonda Darcy semeia escolas no Seminário Darcy Ribeiro – 20 anos. Que falta ele nos faz!, promovido pela Fundação Darcy Ribeiro, em parceria com o Arquivo Nacional e a Academia Brasileira de Letras em fevereiro de 2017.

[2] Este texto é uma versão revisada de artigo publicado anteriormente na Revista Artes de educar (UERJ), no número especial Darcy Ribeiro, v. 3, n. 2 (2017), disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/riae/issue/view/1619/showToc

[3] Ver sobre a experiência do CBPE o trabalho de Libânia Xavier, 1999.

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DARCY RIBEIRO E A LIÇÃO DE LÚCIA

Resumo: O artigo traz breve histórico da autora com foco na sua aproximação formativa e profissional com o professor Darcy Ribeiro, que marca seu currículo até hoje. Delineia a concepção de Darcy Ribeiro sobre educação básica e sua intensa preocupação com a formação de professores. A autora relata a experiência que vivenciou como diretora da escola de ensino fundamental de um projeto de Escola de Demonstração que se desenvolveu em município de periferia do Rio de Janeiro na década de 1980. Esta narrativa evidencia a proposta de integração curricular entre a educação básica e a formação de professores inicial ou continuada. Este projeto exemplifica a distinção entre colégio de aplicação e escola de demonstração, conceito tão caro a Darcy Ribeiro.

Palavras-chave: Educação básica; formação de professores; escola de demonstração; escola de tempo integral; CIEP.

Abstract: The article presents a brief history of the author focused on her formative and professional process in relation to her approach with professor Darcy Ribeiro, marking her curriculum until today. It outlines the conception of Darcy Ribeiro on basic education and his intense concern about teacher training. The author tells her experience as the elementary school of a Demonstration School’s principal developed in a Rio de Janeiro periphery municipality in late 1980´s. This narrative highlights the integrated curriculum proposition between the basic education and the initial or continuous teacher’s formative process. This project exemplifies the distinction between Application College and Demonstration School, a concept so dear to Darcy Ribeiro.

Keywords: Basic education; training of teachers; demonstration school; full-time school; CIEP.

 

Discípula de Darcy Ribeiro

Por que me intitulo discípula de Darcy Ribeiro? Porque ele se comove, como afirma na citação abaixo, pelas mesmas causas que me tocam.

Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. […] me atrevo a recomendar duas coisas aos jovens de hoje. Primeiro, que não respeitem seus pais, porque estão recebendo, como herança, um Brasil muito feio e injusto, por culpa deles. Minha também, é claro. Segundo, que não se deixem subornar por pequenas vantagens em carreirinhas burocráticas ou empresariais, pelo dinheirinho ou dinheirão que poderiam render [p. 7]. Outro valor supremo, e até sagrado, que quero comunicar à juventude, é o sentimento de responsabilidade pelo atroz processo de fazimento de nosso povo, que custou a vida e a felicidade de tantos milhões de índios caçados nas matas e de negros trazidos de África, para serem desgastados no moinho brasileiro de matar gente. (…) Éramos, ainda somos, um proletariado externo aqui posto para servir ao mercado mundial. Criá-lo foi a façanha e a glória das classes dominantes brasileiras, cujo empenho maior consistia, e ainda consiste, em nos manter nessa condição (Ribeiro, 1994, p. 8).

Aí está a infeliz atualidade do engajamento social de Darcy. Gostaria que ele estivesse ultrapassado. Não sendo este o caso, cabe a mim, que tive o privilégio da sua convivência, e a tantos outros, cultivar suas falas, seus escritos e seus fazimentos, para ajudar a passar o Brasil a limpo, como ele dizia. Mas quem sou eu para poder me atribuir esta tarefa? O que andei fazendo para chegar a ser conselheira da Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR)? Conheci Darcy por acaso, quando trabalhei brevemente na Editora Paz e Terra, que publicava seus livros na época em que ainda estava exilado. Sabendo da minha trajetória de ex-presa política, saída da prisão recentemente, Darcy se encantou com minha juventude e garra, falava comigo como se eu fosse representante da minha geração.

Quando voltou do exílio, eleito junto com Leonel Brizola para o governo do Estado do Rio de Janeiro, convidou-me para um projeto de escola de demonstração no município de São Gonçalo, periferia do Rio de Janeiro. Retratei essa fantástica e caótica experiência na minha dissertação de mestrado (Maurício, 1990). Convidei-o para minha banca de defesa, queria que ele tomasse conhecimento literal dos obstáculos para transformar em realidade o projeto de escola de demonstração. Desta vez se encantou com o que insistia em seus argumentos sobre tudo – mostrar o óbvio. Foi o que ele viu na minha dissertação. Vejam o que escreveu sobre minha descrição analítica desta vivência pedagógica:

O que temos aqui é um retrato vivo do universo escolar brasileiro, na forma de uma explanação interpretativa, da mais ambiciosa experiência educacional levada a cabo em nosso País. (…) O mais belo dela é ter sido feita com o possível rigor científico aliado a mais solta emoção participativa. Rigor e emoção, todo e paixão, aqui se enlaçam para ganhar em vigor na forma de uma pedagogia ativa e apaixonada. (…) Aqui, uma professora carnalmente empenhada em se exercer como educadora à frente de 150 colegas, se esforça para instruir e educar 7000 crianças brasileiras, reais e concretas tais como são em sua imensa maioria pelo Brasil afora.
Chamo essa promoção de experimentação pedagógica para significar que se trata de um amplo exercício educacional controlado, quanto à sua produtividade, em relação às práticas correntes, e com o objetivo de estabelecer procedimentos mais adequados para a rede escolar pública. Experimento que uma vez realizado é aqui resgatado e avaliado, pelo educador que a conduziu, juntamente com 40 professoras que dele participaram intensamente. Essa foi a dupla tarefa de Lúcia: coordenar aquele imenso experimento e, depois reavaliá-lo criticamente. Sua lição é este texto denso e risonho que põe a pedagogia à prova, perguntando o que ela nos pode dar (Ribeiro, 2018, p. 200).

Aproveito a citação para explicar o título deste meu artigo. Darcy nomeou o texto acima de A lição de Lúcia, uma sonoridade poética que me comove. Ao dar este título, ele queria enfatizar o ensinamento que eu oferecia com a experiência que vivera na Escola Colorida do Complexo Educacional de São Gonçalo. Peguei uma carona e inverti o sentido para destacar o ensinamento que tive com as oportunidades educacionais que Darcy Ribeiro me proporcionou. Daí: Darcy Ribeiro e a lição de Lúcia.

Desdobramento dessas lições, minha e dele, é que no 2º. Programa Especial de Educação, que completou a implantação dos Centros Integrados de Educalção Pública (CIEP) no segundo governo de Leonel Brizola, Darcy me fez responsável pela formação de professores de toda a rede de CIEPs de 1º segmento do Estado do Rio de Janeiro. Relatei e discuti este privilégio de participação no maior programa de educação do Brasil durante meu doutorado, em que propunha fazer

(…) um confronto entre o que se depreende da literatura produzida entre 1983 e 2001 sobre a escola pública de horário integral e a representação social que usuários e trabalhadores construíram a respeito dela. O tema se originou do fato de o Estado do Rio de Janeiro assistir, em dois momentos nos últimos 20 anos, tanto à implantação quanto ao desmonte da escola pública de horário integral com base no argumento de haver ou não demanda para essa escola (Maurício, 2004, p. 40).

A pesquisa constatou a existência de:

representações diferentes a respeito da escola, da expectativa que se tem dela e, portanto, das atribuições que deve atender, naturalmente fruto de culturas diferentes, oriundas, entre outros fatores, de posicionamento de classe diferenciados, traz(endo) à discussão dois temas inter-relacionados:  a integração da escola à comunidade e o reconhecimento de que existe uma cultura local que é condição para que o processo de educação se desenvolva (p. 55).

Há mais de 35 anos eu estou envolvida com a escola de tempo integral. Desde que entrei para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/FFP), em 2003, tenho estudado, pesquisado, discutido, divulgado o projeto de educação fundamental em tempo integral, através de vários caminhos que a universidade viabiliza. Não cabe aqui discorrer sobre a larga produção que desenvolvi a respeito do tema, mas indico duas obras que organizei, representativas das pesquisas realizadas: a Revista Em Aberto no. 80, publicada pelo INEP em 2009; e a coletânea Tempos e espaços escolares – experiências, políticas e debates no Brasil e no mundo, financiada pela FAPERJ, em 2014.

No ano de 2017, passados 20 anos sem Darcy Ribeiro ao vivo e a cores, tive a oportunidade de reviver intensamente o espírito de Darcy através da organização do seminário promovido pela Fundar – Darcy Ribeiro 20 anos – que falta ele nos faz! O seminário, organizado em comunicações temáticas sobre educação, literatura, antropologia e política, foi encerrado com palestra do atual reitor da UFRJ, Dr. Roberto Leher, que participou do 1º. Programa Especial de Educação, sobre a atualidade da proposta de universidade de Darcy Ribeiro. Aproveitei algumas das comunicações feitas no seminário para lançar uma edição especial da Revista Interinstitucional Artes de Educar (Maurício, 2017), que reúne três programas de pós-graduação em educação – entre os quais Processos Formativos e Desigualdades Sociais, do qual sou participante. A revista foi ao ao ar em final de 2017[1], com a palestra do reitor; uma comemoração dos 40 anos de publicação de Maíra; um relato da assessora que viabilizou a publicação de todos os livros que Darcy escreveu nos últimos seis anos de vida; discussão sobre a atualidade da visão de Darcy sobre o Brasil entre tantos outros. A mim coube discutir a LDBEN 9394/1996, conhecida como Lei Darcy Ribeiro, que completara 20 anos em 2016. Para concluir essa atmosfera darcyniana, fui convidada pela Fundar para organizar um livro com textos do Darcy Ribeiro sobre educação – Educação como prioridade – que acabou de ser publicado pela Editora Global. O livro, organizado em seis seções, toma a educação de forma ampla, inserida no contexto histórico-político brasileiro (Ribeiro, 2018).

Folder do Seminário Darcy Ribeiro 20 anos – que falta ele nos faz! / Fonte: FUNDAR 2017
Folder do Seminário Darcy Ribeiro 20 anos – que falta ele nos faz! / Fonte: FUNDAR 2017

Concepção de Darcy Ribeiro sobre educação básica

Para Anísio Teixeira (1994), a escola primária obrigatória deveria formar a massa do trabalhador nacional, sua finalidade não seria preparar para o futuro, mas a própria vivência na escola. Ela deveria ser, sobretudo, prática, de formação de hábitos de pensar, de fazer, de conviver, de trabalhar, de participar de um ambiente democrático. Por isso seus  períodos não poderiam ser curtos, porque um programa de atividades práticas, para formar hábitos de vida real, para organizar a escola como uma comunidade com todo tipo de atividade – trabalho, estudo, recreação e arte – requer tempo. Para o autor, as habilidades necessárias para a vida no século XX – ler, escrever, contar e desenhar – precisam ser ensinadas como técnicas sociais, em contexto real. Por isso o currículo da escola necessita se harmonizar com as características da vida da comunidade, suas tradições, seus trabalhos. Anísio Teixeira considerava que a escola era a instituição para a sobrevivência, suprindo deficiências de outras instituições. Aos que criticavam o custo desta proposta de educação, respondia que não há preço para a sobrevivência. Afirmava que o brasileiro tinha razão em desacreditar da educação escolar, porque o que ele conhecia até então era a improvisação. Considerava que a maior dificuldade da educação primária era conseguir um professor que pudesse atender aos requisitos de ensino tão diversificado.

Darcy Ribeiro, discípulo confesso de Anísio Teixeira, tem concepção de escola pública de tempo integral profundamente marcada pelas idéias de seu mestre. Das diferenças que se podem verificar entre a experiência de Anísio Teixeira na Bahia com o Centro Educacional Carneiro Ribeiro e a de Darcy Ribeiro no Rio de Janeiro com os CIEPs, muitas se devem a operacionalização das escolas, tendo em vista o intervalo de 30 anos entre uma e outra e os contextos socioeconômicos diversos de Salvador e Rio de Janeiro. Destaque-se que foram implantadas durante a vigência de diferentes leis reguladoras da educação, a 4.024/61 e a 5692/71 (Maurício, 2007).

A proposta de escola de tempo integral de Darcy Ribeiro (1986) baseou-se no seu diagnóstico de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter deformado de nossa sociedade, de descaso por sua população. Atribuía essa característica à maneira como nossa classe dominante via o povo: mera força de trabalho. Atribuía nosso atraso educacional a uma sequela do escravismo, preço que pagávamos por ter sido o último país do mundo a acabar com a escravidão. Darcy Ribeiro enfatizava que a transição da cultura oral para a escola moderna não se processa automaticamente. Só é alcançada como resultado de vontade política, para universalizar uma escola de qualidade. Para Darcy, é inegável a relação entre sociedade industrializada e escolarização de sua população, mas uma não produz a outra necessariamente. A escola por si só não produz o desenvolvimento, nem ele universaliza automaticamente a escola (1994). A função da escola na sociedade industrializada é formar uma força de trabalho competente e uma cidadania lúcida (1991).

Segundo o autor, nossa escola incorporou a ilusão de que ela seleciona e promove os melhores alunos, através de procedimentos pedagógicos objetivos. Ela apenas peneira e separa o que recebe da sociedade já devidamente diferenciado. Ao tratar da mesma maneira crianças socialmente desiguais, a escola privilegia o aluno já privilegiado e discrimina crianças que renderiam muito mais se fossem tratadas a partir de suas próprias características (Ribeiro, 2018). A tarefa da escola é introduzir a criança na cultura da cidade, servindo de ponte entre o conhecimento prático que a criança pobre já adquiriu e o conhecimento formal que é exigido pela sociedade letrada (2018).

Projeto de CIEP por Oscar Niemeyer
Projeto de CIEP por Oscar Niemeyer

Darcy Ribeiro considerava que um fator importante do baixo rendimento da escola brasileira residia na exigüidade do tempo de atendimento. Para ele, a criança das classes abonadas que têm em casa quem estude com ela algumas horas extras, enfrenta galhardamente esse regime escolar em que quase não se dá aula. Ele só penaliza, de fato, a criança pobre oriunda de meios desassistidos, porque ela só conta com a escola para adquirir o conhecimento formal. Só uma escola de tempo integral, como as que todo o mundo desenvolvido oferece às suas crianças, pode tirar a infância brasileira, proveniente das famílias de baixa renda, do abandono das ruas ou de situações de falta de assistência em lares onde seus pais não podem estar, levando as crianças das classes populares a terem sua infância suprimida, assumindo funções de adultos.

O número de anos que as crianças devem passar na escola não se explica apenas pela quantidade de conteúdos e matérias que devem aprender. A faixa dos 7 aos 14 anos corresponde a um período decisivo do seu amadurecimento. Não é o ensino que permite o desenvolvimento físico e mental da criança; é este desenvolvimento que permite a aprendizagem. Brincar é uma atividade essencial nesse processo. O recreio não é um favor que se faz ao aluno e a escola não é prisão. A escola é um lugar de vida e alegria; o recreio é tão importante quanto a sala de aula (2018).

Darcy Ribeiro advogava que toda a infância brasileira é capaz de ingressar no mundo das letras para se formar como um trabalhador hábil e um cidadão lúcido, se lhes forem compensadas as condições de pobreza em que vivem; de ignorância de suas famílias, que não tiveram escolaridade prévia; e de falta de algum parente letrado que oriente seus filhos nas tarefas escolares. Para ele, é necessária educação de dia completo;  escola ampla para que passem o dia estudando, fazendo exercícios físicos e brincando; além das aulas comuns, deve-se oferecer orientação complementar em estudo dirigido; e atividades diversificadas, de modo a aproximar a educação das crianças das classes populares daquela que é recebida pelas crianças das classes abastadas; dieta alimentar balanceada, banho diário, assistência médica e dentária. Esta era a proposta dos CIEPs.

Em síntese, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro comungam a compreensão sobre o que se faz necessário para escolarizar a criança brasileira. Tanto um como outro explicitam que a criança popular precisa ter na escola, coletivamente, alguma coisa a mais que o filho da classe média tem na sua própria casa. E esse ponto de vista vai se desdobrar na necessidade da escola de tempo integral. Anísio enfatiza que, para uma escola desenvolver a criança integralmente, e isso só se faz com atividades práticas, requer tempo. Darcy mostra como as carências sociais implicam uma escola de dia completo e, em conseqüência, os serviços que ela deve prestar e prestou nos CIEPs. Outro aspecto desenvolvido por ambos é a idéia de enraizar culturalmente a escola na comunidade, apesar desta noção aparecer em propostas de operacionalização diferentes. Em Anísio, ela vai se consolidar na defesa da municipalização. Darcy defende a interação da cultura popular com a letrada dentro da escola, através da participação da comunidade e da introdução da figura do animador cultural.

Sintetizando, cito abaixo as condições que Darcy Ribeiro advogava para a educação básica. Ele repetia reiteradamente as condições para uma boa escola pública, que, entre outras ações, ele semeou no formato de CIEPs.

Espaço para a convivência e as múltiplas atividades sociais durante todo o largo período da escolaridade, tanto para as crianças como para as professoras. O Tempo indispensável, que é igual ao da jornada de trabalho dos pais, em que a criança está entregue à escola. Essa larga disponibilidade de tempo possibilita a realização de múltiplas atividades educativas, de outro modo inalcançáveis, como as horas de Estudo Dirigido, a frequência à Biblioteca e à Videoteca, o trabalho nos laboratórios, a educação física e a recreação. O terceiro requisito fundamental para uma boa educação é a Capacitação do Magistério (Ribeiro, 1995, p. 22).

Dos fatores citados acima, mais tempo já está entranhado na própria proposta do CIEP, que previa oferecer tempo integral na escola; o fator espaço, compatível com o tempo, no caso dos CIEPs, foi imortalizado pelo projeto de Oscar Niemeyer. Cabe aprofundar a proposta de formação de professores prevista no Programa Especial de Educação, que implatou os CIEPs de 1984 a 1986 e, no 2º Programa Especial de Educação, entre 1992 e 1994, quando a nova Constituição já estava em vigor.

Para compreender a escola brasileira atual, é necessário estudar a relação entre as formas sociais orais e as formas sociais escritas. Embora a forma escolar escrita tenha prevalecido, fundamento da própria escola, ela convive simultaneamente com outras maneiras diferentes de pensar e olhar o mundo, formas de se relacionar com a história e produzir a memória, de compreender os processos de educação. Boa parte de dificuldades de aprendizagem dentro das salas de aula tem origem no conflito entre formas de aprendizagem oral internalizadas e a imposição de um modo escrito de ordenar o pensamento. Essa compreensão precisa ser incorporada pelas instituições educacionais e pelos próprios professores. A proposta de escola de demonstração que chegou a ser ensaiada em três projetos no I PEE, de 1984 a 1986, tinha como objetivo proporcionar tanto a formação inicial quanto a atualização de professores, construindo esta orientação em estágios práticos de formação.

Participei de uma destas propostas materializada no projeto chamado Complexo Educacional de São Gonçalo (CESG), que envolveu a Faculdade de Formação de Professores (FFP), de 1984 a 1986, hoje campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde trabalho. Dessa experiência, que é desconhecida pela maioria dos atuais professores da instituição, restam escassos documentos escritos da época, predominando a memória de quem vivenciou o período, inclusive a minha. Na dissertação de mestrado abordei a experiência, apesar de não ser seu objetivo principal. Como vim a trabalhar na FFP, decidi reunir os fragmentos de documentos e depoimentos a que tinha acesso para colaborar com a história da FFP, trazendo a versão dos implementadores deste projeto de escola de demonstração em artigo publicado em 2012 (Maurício, 2012). Minha contribuição concentrou-se em elucidar a proposta que orientou as ações que se desenvolveram no período. Aqui neste artigo enfoquei o esclarecimento do que Darcy Ribeiro, por influência de Anísio Teixeira, chamava de escola de demonstração e em que se destingue de colégio de aplicação.

Escola de demonstração

As diretrizes educacionais do primeiro governo Brizola, conhecidas como as Teses de Mendes[2], foram discutidas no Primeiro Encontro de Professores da Rede Pública do Estado do Rio de Janeiro. Sua versão final, publicada no Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio de Janeiro 1984-1987, incorporou os resultados dos debates ocorridos no Encontro de Mendes. As teses eram divididas em três blocos: 1. Análise crítica da situação da escola pública; 2. Metas da programação educacional do governo; 3. Papel e participação dos professores na nova programação educacional. Restrinjo-me às metas e particularmente àquelas que mantinham relação com o CESG:

1.“…acabar com o terceiro turno,  garantindo a cada criança cinco horas diárias de permanência na escola…”; 2. “…dar ao professorado, através de cursos de reciclagem, a ajuda que ele requer para o pleno cumprimento de suas funções…”(p. 56); 13. “…a implantação de uma série de centros culturais comunitários, cuja finalidade será receber as crianças para cinco horas adicionais, antes ou depois das aulas, para dar-lhes uma refeição, estudo dirigido e atividades culturais e recreativas”; 16. “…a criação , na cidade do Rio de Janeiro e no Estado, de diversas Escolas de Demonstração, a serem implantadas nos locais  onde já existam boas escolas  pré-primárias, primárias e médias que, reorganizadas, possam servir para cursos de reciclagem do magistério em exercício.”; 17. “…dar especial atenção aos cursos de formação de professores do primeiro segmento do primeiro grau, particularmente os da rede pública, melhorando a qualidade de seu ensino, e sobretudo, instituindo uma 4ª. Série de estágio com duração de cinco horas diárias a serem  prestadas em escolas credenciadas…”; 18. “Os Institutos de Educação deverão ser totalmente reestruturados para funcionar como Escolas de Demonstração. Pelo menos um deles deverá ser planejado para funcionar experimentalmente como nossa primeira Escola Normal Superior, de modo a admitir para a carreira do magistério pessoas que tenham o segundo ciclo completo. Isso será feito mediante convênio com a UERJ ou com a FAPERJ” (Ribeiro, 2018, p. 60-61).

Essa proposta de Darcy Ribeiro estava apoiada em concepção herdada de Anísio Teixeira. Logo após a publicação do Plano Nacional de Educação que se seguiu à homologação da LDB de 1961, Anísio Teixeira (1994) ofereceu, em 1962, quando era diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), sugestões para viabilizá-lo. Em seu projeto de implantação do plano, discriminava o aparato escolar com o qual cada município deveria contar, variando de acordo com as condições de cada localidade. Afirmava que a eficácia do plano dependia da preparação dos professores, que as leis são necessárias para tornar reformas possíveis, mas que as leis não fazem reformas. “Estas se fazem pela mudança de estrutura da sociedade e pelo preparo e aperfeiçoamento do professor.” (Teixeira, 1994, p. 153) Propunha, para tanto, Centros de Treinamento que viabilizariam novas modalidades de formação de magistério para aqueles que tivessem concluído o ginásio ou o colégio. Descrevia estes centros como escolas de demonstração:

Tais centros serão substancialmente centros de demonstração de ensino, desde o nível de jardim de infância até a última série do ensino do segundo nível, com jardins de infância, escolas primárias e escolas de segundo nível, nos quais grupos de estagiários entre 200 e 300 virão residir, como internos, para praticar e estudar as artes do magistério infantil, primário e médio.

Os estudos serão rigorosamente articulados com essa prática direta do ensino. As escolas – funcionando como hospitais de clínicas nas escolas de medicina – organizadas sob a forma de escolas de demonstração, escolas experimentais e escolas de prática, devem ter a amplitude necessária para permitir o treino individual. Ao lado das escolas de demonstração e experimentais, haverá escolas de prática, com classes com número suficiente para o treinamento individual, aproveitando-se as próprias escolas do sistema escolar próximo (p. 154).

Anísio Teixeira propôs a criação de 40 centros nos 22 estados do Brasil na época. Considerava que a preparação do professor deveria levar em consideração que, com a massa de informações disponíveis através dos meios de comunicação, o professor deixava de ser um informante privilegiado e de autoridade indiscutível para se tornar um integrador de conhecimentos e formador do juízo crítico do aluno. Segundo o autor, o novo mestre não pode ser a jovem adolescente recém-saída da escola de ensino médio e que optou pelo magistério por considerar uma profissão adequada ao sexo feminino. O novo professor deve ser amadurecido e ter escolhido o magistério por vontade própria. Os candidatos ao magistério seriam recrutados entre jovens maiores de 18 anos e teriam formação durante 1, 2 ou 3 anos de acordo com os alunos que fossem ficar sob sua responsabilidade.  Os professores do colegial continuariam a ser formados em faculdades de filosofia.

Darcy Ribeiro (1986) incorporou a compreensão de que a escola para o povo com acentuada estratificação social torna-se mais complexa e difícil de operacionalizar. Difícil pela diversidade de condições e alunos que deve atender, pela precária formação e desvalorização do professor, pela pouca compreensão das autoridades das repercussões sociais da falta de investimento em educação. O I Programa Especial de Educação tinha este entendimento como eixo e foi com vistas a enfrentar estas carências que foi projetada, entre outras propostas de formação do professor, inicial ou em serviço, a escola de demonstração. Fica evidente, nas palavras de Darcy Ribeiro, a influência das concepções de Anísio Teixeira, visível tanto na terminologia como nos argumentos.

(…) a estruturação de um Programa de Aperfeiçoamento do Magistério em Exercício. Este, não podendo reduzir-se a ciclos e palestras verbais (…) deve ser realizado em Escolas de Demonstração, que possibilitem aos professores ver a prática da arte de ensinar linguagem, desenho, matemática ou ciências, com diferentes métodos, para efeito de avaliação, de comparação e de treinamento. Não tendo experiência nesse campo, uma vez que nosso equivalente são as velhas Escolas de Aplicação, estamos desafiados a planejar cuidadosamente esses novos centros de treinamento. É evidente que eles não devem reproduzir o objetivo da Escola de Aplicação que era alcançar altos níveis de excelência no atendimento ao alunado proveniente de classes privilegiadas. Prevemos a instalação de pelo menos 5 desses Centros de Demonstração para o aperfeiçoamento e reciclagem do pessoal docente.

(…) Ninguém duvida de que o médico, por exemplo, precisa de uma residência hospitalar para dominar o tirocínio de sua carreira vendo os doentes serem diagnosticados e tratados por doutores experimentados. É também óbvio que o engenheiro necessita de estágios em obras, onde veja e ajude a execução de projetos semelhantes aos que estudou nos livros ou ouviu nas aulas. O professor necessita também de um estágio de treinamento em serviço. Ainda mais que os médicos e engenheiros, dada a deficiência e a precariedade dos 3 anos de curso médio, profissionalizante, a que se reduziu a formação oficial do normalista. A receptividade dos próprios professores, recém-ingressados no magistério a um programa de treinamento é a mais aberta possível. Eles próprios sentem a necessidade imperativa dessa ajuda para que possam ter um desempenho profissional responsável (Ribeiro, 2018, p. 90-91).

Darcy Ribeiro terminava sua exposição de motivos, afirmando que devido à complexidade da tarefa do professor – de receber uma criança ainda em formação, mas já dotada de humanidade para capacitá-la a ser cidadã de sua cultura –, tinha convicção de que o ensino normal deveria passar para nível superior, com curso de 4 anos em universidade, tanto para o professor alfabetizador como para qualquer outro especialista em educação. Para ele, a tarefa do professor era mais desafiante e difícil que a do médico. Por outro lado, reconhecia que não poderíamos esperar este professor universitário ficar pronto. Era indispensável oferecer aos professores atuais, que ensinariam milhões de crianças nos anos seguintes, formação continuada para que prosseguissem aprimorando-se em suas carreiras, daí a necessidade da Escola de Demonstração (p. 92).

O CESG [3] teve início com a nomeação de um grupo de trabalho, em dezembro de 1983, para avaliar a viabilidade de implantação do projeto. Sua localização em São Gonçalo foi fruto de uma casualidade que atendia a várias metas, já citadas, da programação educacional do Governo Brizola, instalado em março de 1983: no bairro Paraíso, três unidades escolares pertencentes ao Estado margeavam um terreno disputado há décadas na Justiça por vários interessados, entre eles o próprio Estado. O Patronato, como era conhecido o terreno, era imenso e junto à rua principal, tornando-o muito valorizado. As escolas lá instaladas não tinham qualquer relação interinstitucional, como costuma ocorrer no Estado: a FFP, cujo momento de realizações e recursos se perdera desde a fusão do Estado do Rio de Janeiro com o da Guanabara, oferecendo na época do CESG, essencialmente cursos noturnos de licenciatura curta; o Centro Interescolar Walter Orlandine (CIWO), bem construído e equipado pelo convênio MEC-BIRD, cuja ociosidade chocava os moradores do local, carentes de vagas para o 2º grau[4]; e a lúgubre E.E.Cel. João Tarcísio Bueno, de 1º grau, da qual fui diretora durante o projeto, com quatro turnos, cerca de 3.000 alunos, sem mobiliário, com instalações mais do que precárias, insalubres. Aí estava o acaso: a proximidade das três unidades estaduais, atendendo a diferentes graus de ensino, em torno de um terreno de fácil acesso, de grandes proporções, pertencente ao Estado. E para coroar, a faculdade era de formação de professores. Esse conjunto atendia a várias metas da proposta de educação do governo estadual.

As metas 16 e 18, que se referem à escola de demonstração, é que levaram a São Gonçalo o projeto de um complexo educacional. As condições ali colocadas aproximavam aquele conjunto educacional de um projeto de escola de demonstração: as três unidades eram do Estado; cada uma de um nível de ensino; a faculdade era para formar professores; havia área disponível para construção de outras unidades, como escola-parque, refeitório, e um local para receber os professores que fossem estagiar nestas unidades. Esse sonho de Darcy Ribeiro materializaria a concepção de formação de professores herdade de Anísio Teixeira.

A proposta do CESG era integrar, pedagógica e administrativamente as três unidades escolares estaduais e construir, no terreno do Patronato, tudo o que fosse necessário para essa integração, aproximando cada unidade das metas educacionais já descritas: o 1º grau deveria extinguir o terceiro turno e proporcionar 5 horas diárias na escola (meta 1); o CESG contaria com escola-parque para atender, prioritariamente, aos alunos do 1º grau (meta 13); o pré-escolar seria desmembrado do 1º grau, para que as unidades de pré-escolar, 1º e 2º graus, através de integração vertical e horizontal, constituíssem uma escola de demonstração (meta 16); a escola de demonstração deveria receber professores de todo o Estado do Rio para serem atualizados mediante estágios, aulas e debates (meta 2); o 2º grau priorizaria formação geral diurna, eliminando, aos poucos, os cursos profissionalizantes e estimulando o ingresso na Faculdade de Formação de Professores (meta 17); a Faculdade seria reestruturada para articular-se às três unidades que ofereceriam estágios para seus alunos; os cursos de licenciatura curta seriam extintos e o horário diurno priorizado; seria instalada na faculdade uma Escola Normal Superior (meta 18).

Para dar uma dimensão do projeto, basta exemplificar com as obras necessárias: construção de um prédio para o pré-escolar; de várias salas de aula para viabilizar a extinção do 3º turno, prevendo-se, no caso a construção de dois CIEPs para abrigar o 1º segmento do 1º grau em tempo integral; de instalações para a escola-parque, além do aproveitamento de auditórios, oficinas e bibliotecas da faculdade e do 2º grau; instalações esportivas para atender às quatro unidades; restaurante industrial para servir a todos os alunos e professores em tempo integral; espaço adequado para hospedar professores de outras cidades que viessem estagiar no CESG; reforma completa da escola de 1º grau. Condição para as obras: o Estado ganhar na Justiça a posse do terreno do Patronato. Um projeto grandioso cujo custo superaria tudo o que já estava instalado.

A integração pedagógica das unidades, aspecto definidor do projeto, foi esboçada: a instalação de um Conselho Curricular, com a participação do diretor de cada uma das quatro unidades, além do diretor geral do CESG. Este conselho seria composto por professores de alta competência e experiência reconhecida em sua área de estudo. Haveria representantes de linguagem, matemática, ciências físicas, ciências biológicas, artes plásticas, literatura etc. O objetivo deste conselho seria reformular o desenho curricular, do Pré-escolar à Faculdade de Formação de Professores e acompanhar sua implantação de forma que houvesse continuidade e coerência entre o que os alunos aprendiam nas escolas básicas e o estágio que os alunos da Faculdade fariam nessas escolas. Tarefa gigantesca, quando materializamos um universo de cerca de 5.000 alunos e 500 professores no ano de 1984.

Quando o CESG começou a ser implantado, em 1984, foi visto com profunda reserva tanto pelo corpo docente quanto pelo discente; não ter havido vestibular foi considerado que o projeto fecharia a faculdade. Não era esta a intenção, mas como argumentar a favor de qualidade de ensino acabando com os cursos noturnos da única faculdade pública de uma região onde a maioria dos jovens trabalha durante o dia? Como motivar professores para trabalhar em turnos diferentes do que estavam habituados, a lidar com um novo currículo, a criar uma Escola Normal Superior, sem chegar a um acordo sobre suas reivindicações?

As articulações para a estruturação da Escola-parque, que não contava com prédio próprio, mas já dispunha de atividades complementares em andamento, transcorreram paralelamente às da composição do Conselho Curricular. Entretanto a escola-parque cedeu sua função aos animadores culturais dos CIEPs, projeto educacional prioritário sendo implantado. No ano seguinte, o livro Falas ao professor explicou a desativação desse projeto:

(…) verificação da inconveniência de multiplicarem-se Centros Culturais Comunitários ou as Escolas-Parques, previstos para atender as crianças por mais 5 horas, antes ou depois das aulas. Isto porque só se contava com escolas de eficácia comprovada nas áreas mais antigas e mais ricas, no Estado e na cidade, o que conduzirá a privilegiar os já privilegiados, caso se lhes acrescentasse tal atendimento. Em lugar disso, optou-se pela multiplicação do que é o modelo de ensino público em quase toda parte, que é uma escola de dia completo” (p. 61).

Após dois anos de muito trabalho e muitos desencontros, com o projeto praticamente inviabilizado pela limitação espacial, em março de 1986, o Prof. Darcy Ribeiro foi convencido da necessidade de desapropriar o terreno do Patronato; encontrada forma jurídica que viabilizasse a desapropriação sem ônus para o Estado, pois a rigor o terreno pertencia a ele, ela foi efetivada e os CIEPs começaram a ser construídos. O problema espaço transformou-se numa questão de tempo. Paralelamente, as unidades da SEE apoiaram o novo diretor da FFP na sua decisão de realizar o vestibular, mesmo sem o consentimento da FAPERJ, que ainda não resolvera a situação trabalhista dos professores e, portanto, não queria contratar outros, conseqüência inevitável de mais um vestibular. Com a mudança da Secretária Estadual de Educação, do Presidente da FAPERJ e do Presidente do PEE, o apoio para o vestibular e para o desenvolvimento do CESG foi garantido.

Com a derrota do Prof. Darcy Ribeiro e do PDT para o governo do Estado, a continuidade do projeto através de convênio interinstitucional ficou inviabilizada. Restou a possibilidade de institucionalizar a integração que já se dera entre as três unidades da SEE. Essa possibilidade materializou-se em decreto assinado pelo governador e em resolução pela secretária estadual de educação, ambos em março de 1986, documentos que continham tudo o que as unidades da SEE buscaram durante três anos, mas só foram oficializados na última semana de governo, na esperança de que pudessem servir de apoio à continuidade do projeto.

Para encerrar, destaco o esforço feito, sem as condições necessárias para sua realização, no sentido de qualificar instituições educacionais públicas, com alunos e professores comuns, para que servissem de local de formação e atualização de professores, em articulação com a universidade pública, para que os futuros mestres estagiassem na escola real, com alunos reais, de maneira que esta formação se desdobrasse em outras escolas que pudessem demonstrar sua excelência com as condições próprias a todas as escolas públicas. O que Darcy Ribeiro rejeitava no colégio de aplicação era formar futuros mestres em escolas com professores e alunos selecionados rigorosamente, configurando um maravilhoso modelo que está condenado a não se reproduzir na rede de ensino público.


* Lúcia Velloso Maurício é mestra, doutora e pós-doutora em Educação. Conselheira da Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR). Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Mestrado em Educação Processos Formativos e Desigualdades Sociais (UERJ/FFP). Participante como Diretora de Capacitação do Magistério da implementação dos CIEPs. Principais publicações recentes: Educação como prioridade – Darcy Ribeiro (2018); Tempos e espaços escolares – experiências, políticas e debates no Brasil e no mundo (2014); Cacos de sonhos – cartas de uma ex-prisioneira na Vila Militar1971-1974 (2015).

 

Referências

MAURICIO, Lúcia Velloso. Por que picharam a escola? Experiência de democratização em escola pública de 1º grau. 1990. Dissertação (mestrado em Educação) – Fundação Getúlio Vargas/ IESAE, Rio de Janeiro, 1990.

MAURICIO, Lúcia Velloso. Literatura e representações da escola pública de horário integral in Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, nº 27, p. 40-56, set-dez 2004.

MAURICIO, Lúcia Velloso. Escola de horário integral e inclusão social. Informativo Técnico-científico Espaço INES, no. 27. Rio de Janeiro, p. 43-53, jan-jul 2007.

MAURICIO, Lúcia Velloso (org.). Em aberto, v. 22, no. 80, Brasília, INEP, 165 p., abr 2009.

MAURICIO, Lúcia Velloso. Uma experiência de formação de professores nos anos 80: lições de uma história,  in Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 93, no. 233, 2012.

MAURICIO, Lúcia Velloso (org.). Tempos e espaços escolares – experiências, políticas e debates no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Ponteio/Faperj, 254 p., 2014.

MAURICIO, Lúcia Velloso. Apresentação. In: Edição Especial Darcy Ribeiro da Revista Interinstitucional Artes de Educar, vol. 3. no 2 Rio de Janeiro: UERJ, 2017.

MAURICIO, Lúcia Velloso. Escola de Demonstração. In: RIBEIRO, Darcy, Educação como prioridade. 1ª ed. São Paulo: Global, p. 92-95, 2018.

RIBEIRO, Darcy. O livro dos CIEPS. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 152 p., 1986.

RIBEIRO, Darcy. Testemunho. São Paulo: Edições Siciliano, 2ª ed., 262 p., 1991.

RIBEIRO, Darcy.  O estado da educação. Carta nº 12. Brasília: Senado Federal, p. 11-22, 1994.

RIBEIRO, Darcy.  Fala aos moços. Carta nº 12. Brasília: Senado Federal, p. 7-10, 1994.

RIBEIRO, Darcy. Balanço crítico de uma experiência educacional. Carta nº 15: O novo livro dos CIEPs. Brasília, Senado Federal, 1995, p. 17-24.

RIBEIRO, Darcy. Educação como prioridade, 1ª ed. São Paulo: Editora Global, 218 p., 2018.

TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 5ª ed., 252 p., 1994.

 

Notas

[1] Veja o sumário completo em http://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/riae/issue/view/1619 /showToc

[2] As teses, na versão educacional, foram publicadas em novembro de 1983 no Jornal Escola Viva 1, enviado para cada professor de todas as escolas públicas do Estado e do Município do Rio de Janeiro. Todas as escolas pararam um dia para discuti-las e elegeram dois representantes por escola para a fase regional do Encontro. Nova discussão e cada região elegeu representantes, compondo um fórum de 100 professores para o Encontro final ocorrido em Mendes; as teses reformuladas após o Encontro foram publicadas em dezembro de 1983 no Jornal Escola Viva 2.

[3] A maior parte das informações aqui reunidas foram extraídas do primeiro capítulo da minha dissertação de mestrado defendida em 1990, de cuja banca, participou Darcy Ribeiro.

[4] Mantive a terminologia da época:  1º e 2º graus.

dossiê
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KAPLÚN E AS POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO DO MST

Resumo: A imbricação entre educação e comunicação é uma prática necessária para os movimentos sociais que se propõem a uma nova pedagogia e também a uma nova prática comunicativa como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Este artigo mostra como as ideias de Mario Kaplún, um dos herdeiros do pensamento freiriano no campo da Comunicação, explicam as concepções de comunicação e educação adotadas pelo movimento, que passou a utilizar os meios de comunicação como estratégia de formação dos seus quadros de militantes diante do contexto de descenso das esquerdas na América Latina.

Palavras-chave: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Comunicação e Educação; Mario Kaplún; formação contra-hegemônica.

Abstract: The overlap between education and communication is a needed practice for the social movements that offer new pedagogical ways and also a new way of communication with the Landless Rural Workers’ Movement (MST). This article shows how the ideas of the Uruguayan Mário Kaplún, one of the heirs of Freirean thinking in the field of communication, explains the conceptions of communication and education taken by the movement, which has started to use the means of communication as a strategy of formation of its array of militants against the context of the decline of the leftist parties in Latin America.

Keywords: Landless Rural Workers’ Movement; communication and education; Mario Kaplun; counter-hegemonic formation.

 

Introdução

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) aposta na formação em comunicação para fazer seus militantes compreenderem o novo estágio das lutas dos movimentos sociais, em especial a da Reforma Agrária e, por consequência, transmitir essa nova plataforma de luta para a sociedade. A hipótese desse artigo é que essa formação se pauta em uma nova prática comunicativa, que considera a comunicação como um elemento de transformação da sociedade e que não reproduza os modelos da indústria jornalística. Portanto, para compreender como hoje o MST constrói sua política de comunicação é preciso também compreender como acontece a educação dentro do movimento. Não só porque, como afirma Kaplún (2002), educar é comunicar, mas também porque a educação, como afirma Paulo Freire (1984), dialoga com os meios de comunicação.

Para o educador Paulo Freire

(…) os meios de comunicação não são bons nem ruins em si mesmos. Servindo-se de técnicas, eles são o resultado do avanço da tecnologia, são expressões da criatividade humana, da ciência desenvolvida pelo ser humano. O problema é perguntar a serviço do que e a serviço de quem os meios de comunicação se acham. E esta é uma questão política, portanto. (…) Acho que aos educadores, enquanto políticos – desde que tenham uma opção de transformação da sua sociedade e não de preservação da sua sociedade tal qual ela está –, aos educadores cabe ver o que é possível fazer como antídoto à alta força manipulativa ou ideologizadora de alguns desses meios de comunicação. (Freire e Guimarães, 1984, p. 14).

Ou seja, a partir do momento em que se quer transformar a sociedade e, portanto, quando se quer transformar o homem a partir da Educação, é necessário incluir os meios de comunicação dentro da prática pedagógica.

Ao pensar em meios de comunicação questionadores, principalmente o rádio, que pudesse ser pedagógica e democrática, Kaplún, tal qual Paulo Freire, defendia uma educação comprometida com os setores excluídos, do campo e da cidade, com grande preocupação nos objetivos dos próprios educandos.

A imbricação entre educação e comunicação fortaleceu-se a partir do terço final do século XX e, hoje, é uma prática necessária para os movimentos sociais que se propõem a uma nova pedagogia e também a uma nova prática comunicativa. No entanto, esse uso dos meios de comunicação na educação não se limitaria a, simplesmente, levar o notebook para dentro da sala de aula ou incluir aulas no laboratório de informática. Mesmo quando a escola, julgando-se portadora de uma prática pedagógica mais avançada, propõe que seus educandos produzam veículos de comunicação como jornais murais ou até vídeo-jornais, essa produção não pode ser mera reprodução dos meios de comunicação da indústria jornalística. Como alerta Kaplún,

No se trata entonces de imitar o reproducir acriticamente el modelo de los médios masivos hegemónicos. Estamos en busca de “otra” comunicación: participativa, problematizadora, personalizante, interpelante, para lo cual también necesita lograr eficácia. Pero a partir de otros princípios y hasta con otras técnicas (Kaplún, 2002, p. 11).

De acordo com Kaplún, quando a comunicação educativa, ou seja, a comunicação que se propõe a formar, reproduz o modo de produção da indústria jornalística – com seus processos de seleção e construção que não levam em consideração as lutas das classes populares –, essa comunicação dificilmente leva os destinatários a tomar consciência da sua realidade.

Concebimos, pus, los médios de comunicación que realizamos como instrumentos para una educación popular, como alimentadores de un processo educativo transformador. […] A cada tipo de educación corresponde uma determinada concepción y uma determinada práctica de la comunicación (Kaplún, 2002, p. 15).

Ao citar Juan Díaz Bordenave, Kaplún (2012, p. 16) distingue três modelos básicos de educação: a que põe ênfase nos conteúdos e a que põe ênfase nos efeitos, como modelos exógenos, ou seja, pensados desde fora do destinatário, que veem a educação como um objeto; e o terceiro modelo, endógeno, o qual entende que o educando é o sujeito da educação e a ênfase está mais no processo do que no resultado ou nos conteúdos.

Educación que pone el énfasis en el proceso. Destaca la importância del processo de transformación de la persona y las comunidades.No se preocupa tanto de los contenidos que van a ser comunicados, ni de los efectos em término de comportamento, sino de la interacción dialética entre las personas y su realidade; del desarollo de sus capacidades intelectuales y de su consciência social (Kaplún, 2002, p. 17).

Cada prática pedagógica gera e demanda um modelo de comunicação: a ênfase nos conteúdos pode servir para a manutenção da ordem capitalista e do status do modelo emissor-receptor; a ênfase nos resultados, ao basear-se em uma leitura funcionalista dos meios de comunicação, serviria para a formação de mão-de-obra para a modernização capitalista, enquanto a educação com ênfase no processo parte da ação, da prática cotidiana, para, por meio da reflexão, chegar a uma nova ação transformadora, com veículos de comunicação que proponham a transformação da realidade, como se verá abaixo.

Educação com ênfase nos conteúdos

A educação com ênfase nos conteúdos é o tipo de educação tradicional, baseada na transmissão de conhecimentos do professor, que depositaria os conhecimentos na mente do educando de forma vertical.

De acordo com Kaplún (2002, p. 21), os eixos desse modelo são o professor e o texto a ser seguido. Os programas de estudos são baseados nos conceitos que o professor (a fonte emissora) considera importantes, já que a experiência de vida dos educandos é desvalorizada. Há pouca importância para o diálogo e dá-se mais valor para os dados a serem decorados do que para os conceitos, pois se reprimem as reproduções que não sejam fiéis aos manuais, cartilhas e apostilas. É o caso, por exemplo, do ensino de História compartimentada em períodos em que se valorizam mais as datas e os nomes, sem que se faça qualquer relação com a realidade do aluno.

Como resultado desse tipo de educação, Kaplún diz que o aluno (ou o ouvinte, o leitor, o público) acostuma-se com a passividade e não desenvolve sua capacidade crítica. Ao estabelecer uma diferença de status entre o professor e o aluno (ou entre o comunicador e seu público), incentiva-se o que ele chama de “acato ao autoritarismo”.

El alumno interioriza la superiodad y autoridade del maestro, actitud que luego transferirá al plano político y social. Se favorece el mantenimiento del status quo, en el que una minoría pensante domina a una masa apática. En virtude del regimen de notas (premios y castigos) se fomenta el individualismo y la competência em perjuicio de la solidariedade y los valores comunitários. […] En el estudiante de la clase popular se acentua el sentimento de inferiodad: el educando se hace inseguro, pierde su autoestima, siente que no sabe, que no vale (Kaplún, 2002, p. 21).

Esse modelo seria o ideal para a manutenção da ordem capitalista, pois contribui na interiorização de conceitos como superioridade, competividade e individualismo.

Da mesma forma que há esse tipo tradicional de educação, há o modelo tradicional de comunicação, baseada no modelo do emissor (o protagonista, o dono da comunicação), que emite uma mensagem para um receptor, que apenas recebe essa comunicação como uma informação, como se nada soubesse, de forma vertical.

Kaplún propõe uma crítica aos meios de comunicação populares frente a esse modelo. O autor questiona se os jornais sindicais ou das organizações sociais são feitos com consulta aos destinatários ou são cheios das ideias das próprias organizações, pois não basta ser progressista no conteúdo e manter a estrutura vertical:

En la medida en que sigamos asumiendo el clásico papel de emisores, de poseedores de la verdade que dictamos esa verdade quienes “no saben”; en la medida en que sigamos depositando informaciones e ideas ya “digeridas” en la mente de nuestros destinatarios, por liberadores y progressistas que sean los contenidos de nuestros mensages, continuaremos siendo tributários de una comunicación autoritária, vertical, unidirecional (Kaplún, 2002, p. 24).

No MST, percebe-se que há iniciativas para que os meios de comunicação não sejam verticais dessa forma. Desde o início dos anos 2000, apesar de ainda existirem jornalistas profissionais contratados para atuar no setor de comunicação do Movimento, a participação dos militantes não acontece apenas com entrevistas, perfis ou reportagens sobre eles. Ela ocorre tanto na condução das atividades de formação, como se verá adiante com as entrevistas dos jovens do curso realizado em Veranópolis, no Instituto Josué de Castro, como também na redação de artigos e textos produzidos pelos próprios integrantes do movimento.

Um exemplo é o texto publicado na edição 302 do Jornal Sem Terra, de abril de 2010, e assinado por Maria Gorete Sousa, da Escola Nacional Florestan Fernandes. Nessa edição, o personagem homenageado é um trabalhador rural sem terra, morto no massacre de Eldorado dos Carajás em abril de 1996. Pela redação do texto, percebe-se que foi escrito por uma de suas companheiras.

Quatorze anos do Massacre de Eldorado Carajás. Para muitos brasileiros, já não resta senão a memória esgarçada de mais uma violência do Estado num longínquo passado distante. Para os militantes do MST, o massacre grudou na nossa alma, entranhou na nossa carne e passou a fazer parte da nossa vida cotidiana. Renasce a cada dia, na continuidade da nossa luta por justiça social e por Reforma Agrária Popular. Presente, sempre presente, nunca passado – é assim que ele se apresenta na nossa mística revolucionária. “Viva o MST!”: a saudação, tantas vezes pronunciada em tão diferentes contextos, nas nossas mobilizações, místicas, nos nossos encontros, nos cursos, nas assembleias dos acampamentos nas escolas dos assentamentos, nos faz lembrar Oziel. Foram estas as suas últimas palavras antes de ser brutalmente assassinado pela Polícia Militar do Estado do Pará. Aqueles que tivemos o privilégio de conviver com este jovem de 18 anos, com seu belo sorriso e tantos planos para o futuro, não podemos esquecê-lo. Com o vigor da sua juventude e o ânimo dos seus ideais, era ele quem gritava, alto e bom som: “lutamos porque somos militantes desta vida!”. Mais uma vida ceifada pela violência do Estado burguês. Mais um futuro interrompido pela brutalidade de uma sociedade que ele gostaria de ver modificada, como ele mesmo diz em uma das suas cartas: “eu descobri que o fundamental na vida é lutar por um mundo melhor; eu descobri que o fundamental é conscientizar o povo (…)”. […] Que legado nos deixa sua história de vida? Certamente, e em primeiro lugar, o seu amor pela vida; o seu respeito pela família; o seu carinho pelas crianças; a sua ternura de menino corajoso e irreverente; a sua solidariedade; a sua intransigência na luta contra as injustiças, quaisquer que fossem. E acima de tudo, o seu desejo de uma vida feliz e justa para todos nós. Oziel: presente! Viva o MST! (Jornal Sem Terra, 2010, p. 13).

Educação com ênfase nos resultados

O segundo modelo de educação analisado por Kaplún merece atenção especial, porque é o que mais influenciou na concepção de Comunicação, principalmente na América Latina, onde chegou, na década de 1960, como uma tentativa de resposta ao subdesenvolvimento da região (2012, p.28-29). Se o primeiro modelo, com ênfase no conteúdo, tem origem europeia, o segundo nasceu nos Estados Unidos com objetivo de avaliar o resultado das ações originadas a partir do modelo americano de educação. Por esse modelo, o que o educando deve fazer e como deve atuar vem já programado por meio de técnicas de aprendizagem, como em um manual.

Kaplún afirma que a palavra-chave nesse modelo é persuasão. A ideologia que contextualizou a adoção desse tipo de educação compreendia que a pobreza e o atraso da América Latina poderiam ser superados com a modernização capitalista, que seria implantada por meio da aprendizagem dos métodos de produção dos países capitalistas, considerados desenvolvidos.

Era necesario multiplicar la producción y lograr un rápido y flerte aumento de los índices de productividad. […] La educación y la comunicación debián servir para alcanzar estas metas. Por ejemplo, debían ser empleadas para persuadir a los campesinos “atrasados” a abandonar sus métodos agrícolas primitivos y adoptar rápidamente las nuevas técnicas. […] Era menester buscar los médios y las técnicas más impactantes de penetración y de persuasión, para cambiar la mentalidade y el comportamento de millares de seres humanos que viven en el campo (Kaplún, 2002, p. 29).

Kaplún afirma que esse modelo está presente hoje nas técnicas de modernização agrícola, nos treinamentos técnicos e profissionais, no ensino de profissões e também em grande parte dos métodos de educação a distância em que o estudante não pesquisa por sua conta, mas seguindo os passos sugeridos pelo programador do curso, materializados em vídeos, sites, CDs etc.

As mudanças de atitude previstas nesse modelo são entendidas como as de substituição dos hábitos tradicionais por outros mais favoráveis às práticas da modernidade capitalista, como condutas automáticas e condicionadas. Ou seja:

Los educadores y comunicadores formados en este modelo, al plantearse las técnicas para imponer la modernización y el «cambio de actitudes», prevén lo que ellos llaman «resistencia al cambio»: creencias, mitos, juicios, tradiciones, valores culturales ancestrales que conforman y condicionan el comportamiento social de las personas y que pueden entrar en conflicto con los nuevos hábitos propuestos, generando resistencia y rechazo (Kaplún, 2002, p. 32).

Kaplún alerta que o modelo pode ser “tentador” para os movimentos sociais, pois pode parecer mais “eficaz” e rápido para conseguir o resultado desejado nas formações, por exemplo. Ainda de acordo com Kaplún, esse modelo de educação é análogo aos mecanismos dos meios de comunicação massiva da indústria jornalística, das técnicas publicitárias e da propaganda política, justamente os meios a que os movimentos sociais se opõem.

As consequências desse modelo de educação são, para Kaplún (p.36), o desenvolvimento da competitividade no lugar das atividades cooperativas e solidárias e o reforço de valores mercantis e utilitários (consumismo, êxito material), tendo um efeito domesticador de adaptação ao status quo que valoriza apenas o sucesso com parâmetros preestabelecidos que não incentivam a criatividade nem a consciência crítica. “Nada hay aqui, pues, de real participación ni de incidencia, del receptor en la comunicación. Sólo hay acatamiento, adaptación, medición y control de efectos” (Kaplún, 2010, p. 39). Por esse raciocínio, se os meios de comunicação dos movimentos populares deveriam tentar afastar-se da imitação dos modelos da indústria jornalística, também devem afastar-se da tentação de usar esse modelo de educação.

Um dos dirigentes do MST, Ademar Bogo, confirma esse rechaço ao modelo com ênfase no resultado dentro da luta por uma educação que leve à crítica.

A luta precisa de habilidades físicas, mas também de habilidades intelectuais. Se elas estão concentradas em poucas pessoas, a tendência é, naturalmente, que as decisões sejam centralizadas e se imprimam métodos de comando do estilo militar. Uma revolução precisa também da libertação de consciências (Bogo, 2011, p. 193).

Além disso, como uma das bandeiras de luta do MST é, justamente, o combate ao agronegócio e à mecanização inconsequente no campo, com vistas apenas ao lucro obtido em lavouras monoprodutoras, que não produzem alimentos para as famílias, esse tipo de educação foi rebatida pelo movimento. Por isso, mesmo nos cursos técnicos como os de cooperativismo e de produção agrícola e até no de desenvolvimento de rádios comunitárias, a educação não é centrada no ensino de técnicas, mas, a partir da análise da ação cotidiana dos próprios militantes, são propostas mudanças na realidade. Exemplo: a formação de jovens para atuação em comunicação comunitária, ocorrida no Instituto Josué de Castro, em Veranópolis, mescla a leitura de clássicos sobre comunicação e política, com debates sobre parcialidade e imparcialidade das mídias, além do conhecimento técnico para a montagem de rádios.

Educação com ênfase nos processos

Pode-se afirmar que Kaplún, assim como Gramsci, entende que a educação pode ser um processo transformador. Como se verá adiante, o MST também faz essa leitura. Ademar Bogo, integrante do MST e, atualmente, um dos responsáveis pelo setor de Cultura do movimento, na obra Organização Política e Política de Quadros (2011), destinada à formação de quadros, especialmente dentro do MST, destaca a importância da educação para as organizações sociais:

Dessa forma, a escola deve assumir a função de elevar o nível cultural e a capacidade organizativa da juventude contribuindo para desenvolver: a capacidade de raciocínio; a capacidade de abstração e de interpretação; a opinião própria, o trabalho em equipe; a prática da direção coletiva, a mística; a capacidade de enfrentar desafios políticos, o gosto pela pesquisa; a compreensão da relação entre teoria e prática (Bogo, 2011, p. 188-189).

O dirigente do MST diferencia a escola dos trabalhadores da escola tradicional dentro do modo de produção capitalista, adepta do segundo modelo de educação criticado por Kaplún. Desenvolver uma nova forma de educação é, para Bogo, uma forma de lutar pelo socialismo:

A classe dominante estrutura a escola para formar indivíduos competidores no mercado de trabalho. A escola dos trabalhadores deve formar coletividades […] Os trabalhadores rurais sempre foram excluídos dos espaços educativos em nosso país; tiveram, no máximo, o direito à escola primária. Quando quiseram ir mais longe tiveram que se afastar da atividade agrícola porque a escola funciona na cidade. Aos poucos, começamos a perceber que através da luta conquistamos vários direitos, e um deles é o da educação (Bogo, 2011, p. 193).

Essa nova forma de educação, pode-se afirmar, está baseada no que Kaplún chamou de Educação com ênfase nos processos. Um modelo que o pensador uruguaio afirma que foi gestado na América Latina a partir das ideias de educadores como Paulo Freire, que deram as orientações sociais, políticas e culturais do que seria um instrumento de transformação da sociedade. Para Kaplún, colocar ênfase no processo

Es ver a la educación como un processo permanente, en que el sujeto va descubriendo, elaborando, reinventando, haciendo suyo el conocimiento. Un proceso de acción-reflexión-acción que él hace desde su realidade, desde su experiencia, desde su prática social, junto con los demás (Kaplún, 2002, p. 45).

Ao contrário do modelo anterior, em que as mudanças de atitudes estavam associadas à adoção das novas tecnologias e ao condicionamento das condutas, por este, as mudanças consistem em transformar o homem passivo, conformista, individualista e acrítico em um crítico, solidário e comunitário. Por isso, são frequentes os conteúdos referentes à solidariedade entre trabalhadores e países. Daí a referência às lutas populares na América Latina, por exemplo, como um tema a ser trabalhado nas formações.

Diferente do modelo que se preocupa com que o aluno decore dados, o importante aqui é que o sujeito seja capaz de raciocinar por conta própria e desenvolva sua capacidade de deduzir, de relacionar e de elaborar sínteses, que são as características da consciência crítica. E, como resposta à suposta eficácia do modelo com ênfase no resultado, é a participação, a pesquisa e o envolvimento que levam ao conhecimento. “Se aprende de verdade lo que se vive, lo que se recrea, lo que se reinventa y no lo que simplemente se lee y se escucha” (Kaplún, 2002, p. 47).

Como é uma educação comunitária, acontece a partir do compartilhamento das experiências e incentivam-se os valores comunitários, da solidariedade e da cooperação. E como é um processo permanente, não se limita a momentos específicos ou, como na educação tradicional, a certa quantidade de horas dentro de uma instância educacional. Para Kaplún (p. 48), “la educación se hace en la vida, en la práxis reflexionada”.

O modelo de pedagogia da alternância adotado no MST, principalmente nas formações do Instituto Josué de Castro baseia-se nesse modelo. Por exemplo, os participantes do curso de Educação de Jovens e Adultos em nível médio, com qualificação em Agentes de Desenvolvimento Cultural e Rádios Comunitárias foram selecionados entre os militantes que já atuavam com comunicação, teatro ou rádios comunitárias nas suas regiões e, no curso, podem, a partir da reflexão sobre suas práticas, interagir e dialogar com as práticas de outros companheiros. O professor, nesse caso, estimula as situações-problema para que o grupo avance nesse processo de reflexão.

Kaplún alerta que essa participação coletiva não prescinde dos dados, da informação. Pelo contrário, os dados e os aspectos da realidade, apontados pelo educador, que os colocará nas situações problematizadoras, são essenciais para o desenvolvimento do grupo, pois são as informações que despertarão a inquietude nos educandos. Os objetivos desse modelo, para Kaplún, são:

[…] favorecer en el educando la toma de conciencia de su propia dignidade, de su propio valor como persona; ayudar al sujeto de la clase popular a que supere su “sentimento aprendido” de inferioridade, recomponga su autoestima y recupere la confianza en sus propias capacidades creativas. Y es, claramente, una educación comprometida com los excluídos y que se propone contribuir a su liberación (Kaplún, 2002, p. 48).

O conceito de comunicação que se desenvolve a partir desse tipo de educação, de acordo com Kaplún (p. 80), é a comunicação educadora, aquela que mobiliza internamente quem a recebe, que o questiona, que gera diálogo e participação, e que alimenta um processo crescente de tomada de consciência.

No se trata – claro está – de reproducir mecánica y acriticamente los recursos de los que se vale la comunicación dominante. Desde que se propone outra comunicación que genere un diálogo democrático y dinamice el compromiso social, nuestra comunicación educativa necesita transformar esos instrumentos, reformularlos criticamente, descobrir otros nuevos: crear otro conocimiento al servicio de otra eficacia (Kaplún, 2002, p. 80).

Ou seja, a comunicação do MST, ao contrário da prática de outros setores da imprensa alternativa, tem um grande diferencial ao propor uma nova forma de educação para construir também uma nova forma de comunicação. Assim como ocupa os latifúndios improdutivos, o movimento “ocupa” a Educação e a Comunicação para formar uma nova consciência no trabalhador rural. Uma proposta que seria endossada por Kaplún:

nuestros mensajes libertadores, concientizadores, problematizadores van “contra la corriente” del sistema, de la ideologia dominante. Los mecanismos que este emplea para reforzar sus valores son inoperantes cuando se trata justamente de cuestionar y cambiar esos valores. No se “vende” criticidade, solidariedade, liberación, con los mismos recursos con que se vende Coca-Cola (Kaplún, 2002, p. 42).

A escola como instrumento contra-hegemônico no MST

O Jornal Sem Terra, publicação mensal do MST, foi modificando suas características de acordo com o contexto político em que se encontrava o Movimento até se tornar, no início dos anos 2000, mais um instrumento para ser utilizado nos cursos e formações de militantes e demais quadros da organização. O jornal passou a adotar, ao longo de suas edições, não só textos informativos, mas selecionou fatos e construiu reportagens e artigos com objetivo de formar a consciência crítica nos militantes, de modo a contribuir, com a leitura, para que os militantes tentassem ultrapassar as visões de mundo concebidas pelas classes dominantes, que, são, normalmente, as veiculadas pelos veículos da indústria jornalística.

As classes sociais, dominadas ou subalternas, participam de uma concepção do mundo que lhes é imposta pelas classes dominantes. E a ideologia das classes dominantes corresponde à função histórica delas, e não aos interesses das classes subalternas. Vemos assim a ideologia das classes ou da classe dominante chegar às classes subalternas, operária e camponesa, por vários canais, através dos quais a classe dominante constrói a própria influência ideal, a própria capacidade de plasmar as consciências de toda a coletividade, a própria hegemonia. Um desses canais é a escola (Gruppi, 1978, p. 67-68).

Portanto, a construção de um projeto contra-hegemônico na educação pode ser trabalhada de duas formas: uma, que compreende a educação como instrumento de formação da consciência crítica; e outra, que supera a visão imposta pela classe dominante de que a educação deva ser diferenciada para ricos e pobres.

Gramsci (2010) criticava o formato da escola italiana, dividida entre a profissional, para os que irão trabalhar em posições subalternas, e a acadêmica, para os que se tornarão os quadros dirigentes da sociedade. Por isso, propunha uma escola unitária, de formação humanista, no sentido de “inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los elevado a um certo grau de maturidade e capacidade para a criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa” (Gramsci, 2010, p. 36).

Para o pensador italiano, todo homem desenvolve uma atividade intelectual, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral e contribui para manter ou para modificar essa concepção de mundo, ou seja, essa atividade intelectual pode suscitar novas formas de pensar. A tarefa da educação, para Gramsci, seria elaborar criticamente essa atividade intelectual, que cada um possui em determinado grau de desenvolvimento, para criar uma nova concepção de mundo, além do senso comum, uma concepção crítica.

No mundo moderno, a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual. […] O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanentemente”, já que não apenas orador puro – mas superior ao espírito matemático abstrato, da técnica-trabalho, chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual permanece “especialista” e não se torna “dirigente” (especialista+político) (Gramsci, 2010, p. 53).

Ou seja, o novo intelectual, formado por essa nova visão de educação, parte do conhecimento do concreto, do mundo real, do mundo do trabalho, mas não se restringe a ele; alcança, também, a formação humanística do sentido mais amplo, capaz de torná-lo um especialista que tenha uma visão crítica do mundo a ponto de tornar-se um dirigente do seu grupo.

Ao analisar o documento de 1989, elaborado pelo Setor de Educação do MST, e que fundamenta as formações do movimento, pode-se perceber semelhanças com os ideais de Gramsci descritos acima:

– numa sociedade de classes, a escola serve para disseminar a ideologia da classe dominante;
– os conteúdos e métodos da escola oficial estão direcionados para a manutenção da ordem vigente;
– o trabalho de educação é uma atividade política importante para o processo de transformação da sociedade;
– a educação nos assentamentos é um processo de produção e produção de conhecimentos a partir de sua própria realidade;
– a escola é parte integrante da vida e do conjunto da organização dos assentados, sendo essencial a participação das famílias em seu planejamento e administração.
Esses princípios básicos deram origem à nova proposta de educação nos assentamentos e acampamentos do MST, com dois objetivos centrais:
– desenvolver a consciência crítica dos alunos, com conteúdo que leve à reflexão e à aquisição de uma visão de mundo ampliada e diferenciada do discurso oficial; transmissão da história e do significado da luta pela conquista da terra e da reforma agrária, de que resultou o assentamento;
– desenvolver atividades que visem à capacitação técnica dos alunos para experiências de trabalho produtivo com: uso de técnicas alternativas que contribuam para o avanço coletivo; exercícios práticos nas áreas de conhecimento necessários ao desenvolvimento do assentamento: agricultura, administração, contabilidade etc. (Morissawa, 2001, p. 241).

O Setor de Educação do MST, ao entender que a escola oficial serviria para disseminar a ideologia dominante e manter a ordem vigente e que a educação tem o papel de transformar a sociedade a partir de uma metodologia baseada na realidade dos educandos, que leve à formação da consciência crítica, está adotando uma prática educacional que, pode-se afirmar, tem seus princípios filosóficos baseados em Gramsci[1] e também no conceito de educação baseada nos processos de Kaplún.

Essa prática desenvolve-se no MST com a fundação das escolas itinerantes nos acampamentos, com os cursos formais em parceria com Universidades Federais e governos municipais ou estaduais, com os cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA), com as cirandas paras as crianças, com a criação do Iterra (Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma), do Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranópolis (RS), e com a implantação da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema (SP).

Além das diversas formações organizadas pelo MST, e reconhecidas pelo Ministério da Educação, há o incentivo para os militantes com ensino médio participarem da educação formal nas universidades públicas e particulares brasileiras.

Em toda a nossa história, foram conquistadas 2.250 escolas públicas nos acampamentos e assentamentos em todo país (das quais 1.800 mil até a 4ª série, 400 até o Ensino Fundamental completo e apenas 50 para o Ensino Médio). Há 300 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais estudando, entre crianças e adolescentes sem terra, dos quais 120 mil em escolas públicas. Mais de 350 mil integrantes do MST já se formaram em cursos de alfabetização, ensino fundamental, médio, superior e cursos técnicos. Mais de 4 mil professores foram formados no movimento e em torno de 10 mil professores atuam nas escolas em acampamentos e assentamentos. Mais de 100 mil sem terras foram alfabetizados, entre crianças, jovens e adultos. Por ano, há aproximadamente 28 mil educandos e 2 mil professores envolvidos em processos de alfabetização. Por meio de parcerias com universidades públicas, trabalhadores e trabalhadoras rurais do MST estudam em 50 instituições de ensino. Há aproximadamente 100 turmas de cursos formais e mais de 5 mil educandos nessas instituições. São cursos técnicos de nível médio (como Administração de Cooperativas, Saúde Comunitária, Magistério e Agroecologia), cursos superiores e especializações (como Pedagogia, Letras, Licenciatura em Educação do Campo, Ciências Agrárias, Agronomia, Veterinária, Direito, Geografia, História). Temos 32 escolas itinerantes, 277 educadores e 2.984 educandos envolvidos num processo educativo permanente. Entre outras iniciativas, destacamos o Curso de Economia para a Agricultura, que capacitou 97 pessoas em 2006 e 2007; o Encontro Nacional sobre Meio Ambiente, que qualificou 330 camponeses e camponesas em 2006 e 2007; o Encontro Nacional de Agroecologia, que qualificou 74 pessoas (42 homens e 32 mulheres); o Curso de Tecnólogo em Agroecologia (2008), em quatro etapas, que capacitou 51 educandos. Conseguimos também vagas para nossos integrantes em cursos de ensino superior no exterior. Uma parceria com o governo de Cuba possibilitou que 46 sem terra se tornassem médicos e mais 80 estejam estudando. Na Venezuela, temos 30 estudantes em um curso de capacitação para Agroecologia (Secretaria Nacional do MST, 2010, p. 23-25).

Dentro do aspecto educacional e de democratização do conhecimento, a Secretaria Nacional do MST, em documento de 2010, inclui como ferramentas para formação o Jornal Sem Terra e o Teatro, o que também mostra como a comunicação interna está atrelada ao setor de Educação:

Desde 1981, o MST publica o Jornal Sem Terra, que possui atualmente uma tiragem de 20 mil exemplares, disponibilizados para todas as regiões onde há acampamentos e assentamentos. O jornal é uma importante fonte de informação e leitura dos sem terra. O movimento tem também 38 grupos teatrais em todo o Brasil, que fazem parte da Brigada Nacional Patativa do Assaré. O trabalho começou em 2001 na parceria com o Centro de Teatro do Oprimido e com o diretor de teatro Augusto Boal, dando origem à brigada nacional (Secretaria Nacional do MST, 2010, p. 25).

Figura 1: Jovens educandos na produção do programa matinal transmitido pela rádio interna do IEJC  Foto: Alexandre Barbosa
Figura 1: Jovens educandos na produção do programa matinal transmitido pela rádio interna do IEJC
Foto: Alexandre Barbosa
Figura 2: Espaços de formação: Auditório Patativa do Assaré e sala de aula  Foto: Alexandre Barbosa
Figura 2: Espaços de formação: Auditório Patativa do Assaré e sala de aula
Foto: Alexandre Barbosa

A política de comunicação do MST não se restringe ao uso de veículos de comunicação. Há um processo de formação e qualificação dos militantes que estão em acampamentos e assentamentos com o objetivo de formar lideranças e comunicadores. Nesse processo, houve algumas ações pontuais que contribuíram para a elevação da consciência crítica dos quadros. Entre elas, o curso de Educação de Jovens e Adultos com qualificação para agentes de desenvolvimento cultural e rádio comunitária, que formou duas turmas até 2012.

Essa formação teve duração de dois anos e meio, em regime de alternância: parte no Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranópolis, e parte nos assentamentos da reforma agrária. No total, são 3.200 horas de curso, sendo 2.400h em ensino médio e 800h de formação técnica em comunicação e desenvolvimento cultural.

Graças à demanda do MST por quadros melhor preparados politicamente e que saibam atuar com comunicação, além da formação dos jovens em ensino médio e dentro da filosofia de não dissociar a formação humanística da formação prática, vinculando a consciência crítica à experiência no mundo do trabalho, foi criada uma formação profissional dentro das atuações em Comunicação nos assentamentos. O público alvo dessa formação, selecionado entre os diversos assentamentos brasileiros vinculados ao MST, são os jovens que atuavam ou no desenvolvimento cultural ou nas rádios comunitárias, fixas ou sazonais. O objetivo é que esses jovens tornem-se lideranças e comunicadores em suas regiões.

No eixo batizado de Desenvolvimento Cultural, são trabalhadas as atividades que envolvem tanto a organização das místicas – momentos de celebração da luta que, geralmente, acontecem no início de cada encontro político ou formação – quanto as celebrações, noites culturais e apresentações de teatro, uma das formas pensadas pelo coletivo de comunicação para debater determinados temas. Entre os conteúdos que compõem as disciplinas, estão teatro, audiovisual, muralismo e comunicação corporal.

No eixo Rádios Comunitárias, são ministrados conteúdos referentes à produção de comunicação na rádio (trilhas sonoras, grade de programação, locução, redação) e também conteúdos técnicos para a construção de transmissores, mesas de som, edição em áudio etc. Esse eixo é voltado, principalmente, para criação e desenvolvimento de rádios comunitárias nos acampamentos e assentamentos. De acordo com o coordenador do curso, Tiago Sotili, houve uma oficina sobre a montagem (física) do transmissor da rádio e até noções de como conseguir uma frequência.

O componente técnico do curso EJA tem uma base em Comunicação com bibliografia centrada em autores com concepção marxista de comunicação e cultura, além de material produzido pelo MST. Nessa base, são estudados conceitos de comunicação, música, cultura, audiovisual e memória.

Considerações finais

Para suprir as necessidades de formação, não só desse curso, mas também das outras formações que acontecem no Instituto Josué de Castro e na Escola Nacional Florestan Fernandes (outro centro de formação coordenado pelo movimento), o MST e outros movimentos sociais, desde 1999, apoiam a editora Expressão Popular, que publica mais de 300 títulos, dos clássicos da sociologia a estudos sobre agroecologia. Os livros são vendidos a preços populares e, muitas vezes, trazem orientações para auxiliar nas formações.

O MST é um movimento que congrega os trabalhadores do campo, portanto a cultura popular do camponês é incorporada em outras situações comunicativas, como as místicas, rituais que precedem os encontros e formações. A mística mescla teatro e música e objetiva aproximar o camponês do assunto que será trabalhado naquele encontro. Portanto, pode ser compreendida como um elemento de comunicação.

Esses rituais unem poesia, música e teatro e valorizam personagens socialistas e das lutas sociais na América Latina. Expressões como “Che, Zumbi, Antonio Conselheiro, na luta por Justiça Somos Todos Companheiros”, utilizadas como palavras de ordem nas ações do MST, dão uma visão de como funciona esse processo. Este artigo compartilha da visão do professor Antonio Julio de Menezes Neto, que entende que o MST soube “recriar-se” ao longo de sua trajetória, mesclando a herança religiosa e o marxismo nas suas formas de fazer política e isso ajudaria a explicar como seguiu sendo um movimento social vigoroso, mesmo em momentos de repressão ou de crises dos partidos de esquerda.

Portanto, pode-se concluir que a atual política de comunicação do MST considera que para que os meios de comunicação sejam instrumentos de elevação da consciência crítica dos militantes e dos trabalhadores da base, é necessária uma prática pedagógica, uma comunicação educadora, que parta da prática cotidiana para chegar a uma ação transformadora, como entendiam tanto Paulo Freire como também Mario Kaplún. Essas ações são incorporadas à cultura popular dos trabalhadores rurais em rituais que unem dramatizações e músicas como forma de reflexão e incentivo para a luta, ou seja, a mística é incorporada também na produção da comunicação.

Como consequência desse trabalho de formação de uma nova consciência crítica dos trabalhadores rurais, a luta pela terra passa a solidarizar-se com as lutas das classes populares na América Latina, referência constante tanto nas publicações como nas formações do movimento. Assim, a América Latina (sua história, seus personagens e suas lutas) é tema recorrente, tanto nas publicações como nos livros e nas formações.

A consequência dessa política de comunicação é que as lutas populares, os movimentos sociais, a cultura e a memória da América Latina, normalmente excluídos ou desqualificados pela indústria jornalística, ganham não só destaque nos meios de comunicação do MST como são elementos de muita importância nas formações e nos rituais das místicas.


 

* Alexandre Barbosa é doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP), Mestre em Jornalismo Comparado (ECA-USP), Especialista em Jornalismo Internacional (PUC-SP), Bacharel em Jornalismo (UMESP). Professor da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação.

 

Referências

BARBOSA, Alexandre. A Comunicação do MST: uma ação política contra-hegemônica. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, 2013

BOGO, Ademar. Organização política e política de quadros. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

FREIRE, Paulo & GUIMARÃES, Sérgio. Sobre Educação: diálogos. Volume II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 5ª.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.

KAPLÚN, Mario. Una Pedagogía de la Comunicación (el comunicador popular). La Habana: Editorial Caminos, 2002.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. JORNAL SEM TERRA.  Porto Alegre /São Paulo. Números 36-316, julho/1984-dezembro/2011.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST: Lutas e Conquistas. São Paulo: Secretaria Nacional do MST, 2010.

MORISSAWA, Mitsue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001.

 

Nota

[1] Os conceitos de Gramsci estariam nos princípios filosóficos da educação no Movimento. Quanto à inspiração prática, na obra História da Luta pela Terra e o MST, de Mitsue Morissawa, ao fazer a radiografia da educação no MST, a autora afirma que, entre as bandeiras permanentes, “os principais mestres, para os quais a educação é o caminho da verdadeira libertação da pessoa humana, são, em especial, Paulo Freire, José Martí e Anton Makarenko.”

dossiê
Tempo de leitura estimado: 41 minutos

A FORMAÇÃO INTERCULTURAL COMO UM TEMPO DE MUITAS APRENDIZAGENS

Resumo: Neste texto, abordo outras aprendizagens relevantes da formação intercultural que emergiram das narrativas de professores/as indígenas, participantes da primeira turma do Fiei (Formação Intercultural de Educadores Indígenas), curso oferecido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os dados foram coletados por meio de entrevistas narrativas, realizadas com professores/as atuantes na escola indígena da aldeia Muã Mimatxi, localizada em Itapecerica, Minas Gerais, em maio de 2012. Entre as aprendizagens mencionadas, destaco as trocas de experiências entre grupos de etnias diversas e o aspecto prático do conhecimento escolar, que, com outros aspectos articulados com os princípios educativos da pesquisa e da interculturalidade sugerem muitas reflexões sobre a potência criativa e transformadora da formação intercultural, não apenas de educadores indígenas, mas de todos os educadores.

Palavras-chave: Formação de educadores; interculturalidade; aprendizagens docentes; narrativas indígenas; professores/as Pataxó.

Abstract: This paper deals with other relevant learnings that emerged from the narratives of the first group of indigenous teachers who attended the FIEI (Intercultural Formation Course for Indigenous Educators) offered by the Federal University of Minas Gerais State. Data was collected through narrative interviews made with those teachers involved in the indigenous school of the Muã Mimati village located in Itapecerica, in Minas Gerais, during May 2012. Among the kinds of learning mentioned, this study focuses the exchange of experiences between groups of different ethnical backgrounds and the practical aspects of the schooling knowledge. These and other aspects, articulated with the educational principles of research and interculturality, suggest many reflections on the creative and transformative potential of the intercultural formation which can benefit not only indigenous educators but also all educators.

Keywords: Teachers’ formation, interculturality; teachers’ learnings; indigenous narratives; Pataxó teachers.

 

Introdução

As discussões aqui apresentadas resultam de uma pesquisa cujo objetivo foi analisar as repercussões da formação intercultural nas práticas escolares de professores/as indígenas que participaram da primeira turma do Fiei (Formação Intercultural de Educadores Indígenas), oferecido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Iniciada em 2006, essa turma foi ofertada como curso especial de graduação e com financiamento do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind)[1], encerrando-se em maio de 2011 e diplomando 132 indígenas das etnias Xacriabá, Pataxó, Maxacali, Krenak, Aranã e Caxixó (UFMG, 2011).

No meu doutorado, entrevistei participantes de diversas etnias desse curso (Pádua, 2009) e, em uma nova proposta de pesquisa, após o encerramento do Fiei, pretendia visitar as aldeias para conhecer as reverberações dessa formação na vida dos/as professores/as. Comecei por uma pequena aldeia da etnia Pataxó, a Muã Mimatxi, localizada no município de Itapecerica, na região do Centro-Oeste mineiro.

Os dados empíricos foram coletados por meio de entrevistas narrativas, realizadas em 2012, com quatro professores/as que participaram do Fiei e atuavam[2] na escola dessa aldeia: Duteran, Sarah, Siwê e Kanatyo. Na entrevista narrativa, o/a pesquisador/a apresenta aos/às entrevistados/as uma única questão gerativa, formulada com um foco específico e de modo a produzir, como resposta, uma história do início ao fim, tendo, como uma de suas vantagens, o adiamento das intervenções do/a pesquisador/a para as etapas finais da entrevista (Flick, 2004; Teixeira e Pádua, 2006; Silva e Pádua, 2010).

Como o Fiei se organizou em três áreas de concentração, esses/as professores/as da aldeia se dividiram de modo que cada um escolhesse uma das áreas e o grupo pudesse contemplar todas as áreas ofertadas pelo curso. Dessa forma, Duteran e Sarah cursaram a área Línguas, Artes e Literaturas; Siwê optou pela Matemática e Ciências da Natureza, e Kanatyo escolheu Ciências Sociais e Humanidades. Em 2009 foi criada uma nova licenciatura – o Fiei/Reuni – que, diferentemente da primeira turma acima mencionada, oferece, para cada entrada anual de estudantes, habilitação em apenas uma das áreas do conhecimento (Silva, 2012). Esta definição prévia de apenas uma área do conhecimento nem sempre atende aos interesses e demandas dos estudantes, conforme apontaram Gomes e Miranda (2004, p. 463).

No processo de análise das entrevistas, utilizei o método hermenêutico-dialético (Minayo, 1996), que permitiu maior liberdade na interpretação dos dados. Após a leitura e releitura do material, foram identificados, em cada entrevista, temas ou palavras-chave que, após serem inseridas em um quadro sinóptico e comparativo, permitiram a identificação das principais categorias de análise. Duas dessas categorias adquiriram centralidade e se revelaram como princípios que orientam a relação desse grupo indígena com a educação e a escola: a pesquisa e a interculturalidade. Tais concepções, construídas em diálogo com os diversos atores envolvidos na formação do Fiei, desdobraram-se em muitas e ricas práticas desenvolvidas atualmente na escola.

Na proposta curricular do Fiei, a pesquisa se apresentava como um princípio educativo e orientava os Percursos Acadêmicos diferenciados, de acordo com os interesses de pesquisa e as demandas das comunidades. Nesse sentido, os projetos desenvolvidos pelos estudantes, definidos com base nas reivindicações de cada comunidade, norteavam a sua vinculação às áreas e aos três eixos temáticos do curso: a realidade socioambiental; a escola indígena e seus sujeitos e as múltiplas linguagens, e aos conteúdos e atividades a eles relacionados (UFMG, s/d; Pádua, 2009). Tais projetos culminavam, no final do curso, com a apresentação de um trabalho, e se destacaram, nas narrativas dos/as entrevistados/as, como um dos aspectos mais relevantes da formação intercultural (Pádua, 2017).

Essa proposta curricular do Fiei foi muito bem recebida por esse grupo de docentes, à medida que ofereceu oportunidades para investigar aspectos relevantes da vida coletiva e buscar respostas para questões da sua realidade social. Por sua afinidade com um modo próprio e peculiar de investigação, a pesquisa na formação foi apropriada, ressignificada e aplicada nas práticas escolares e nas atividades cotidianas da aldeia. Assim, esses/as professores/as tornaram-se pesquisadores permanentes da sua prática social, em busca de soluções para os problemas da comunidade e de recuperação de seus saberes e tradições, envolvendo toda a escola nesse processo (Pádua e Veas, 2013).

O princípio da pesquisa se conectou muito bem com outro princípio da formação que receberam no Fiei, o da interculturalidade, também apropriado, ressignificado e aplicado na vida cotidiana da escola e da aldeia, por meio do qual buscam interligar diversas dimensões da vida social e escolar, seja no modo de abordar os temas nas “aulas interculturais” ou nas “aulas normais”, seja na busca incessante por ampliar as conexões com outros grupos e etnias. O termo se reveste do sentido de relações, entre disciplinas, entre professores/as, entre turmas, entre conhecimentos próprios e conhecimentos de outros grupos. Nas aulas, o desencadeador é sempre um tema gerador de interesse coletivo, o que nos aponta a influência das ideias de Paulo Freire nessas concepções de interculturalidade que vigoram em toda a América Latina, conforme ressaltou Candau (2010).

Esta autora reconhece a influência das experiências de educação popular dos anos 1960 e a contribuição fundamental de Paulo Freire nos debates da educação intercultural, destacando dois aspectos: a articulação intrínseca entre os processos educativos e os contextos socioculturais em que se desenvolvem, e o trazer o universo cultural dos atores para o centro das ações pedagógicas. No rastro dessas influências, observamos concepções próprias de interculturalidade que muito se assemelham à Pedagogia de Projetos, remetendo aos diálogos estabelecidos com coordenadores/as, professores/as e monitores/as do Fiei, e que influenciaram a própria concepção do curso, como demonstrei em Pádua (2014).

Como esses aspectos foram abordados em outras oportunidades, vimos − nesta proposta de Dossiê − uma oportunidade para trabalhar dados ainda não explorados em artigos anteriores e que revelem outros aspectos da potência criativa e transformadora da formação intercultural de educadores indígenas. Dessa forma, abordo reflexões acerca de outras aprendizagens apontadas pelos /as entrevistados/as, a saber, a troca de experiências entre os “parentes” de outras etnias e a relação dos conhecimentos com a prática, assim como outros aspectos que também apareceram nas narrativas. Em seguida, também apresentarei algumas questões mais críticas sobre o curso, que emergiram nas entrevistas, e que podem nos ajudar a avançar nas proposições e debates acerca da formação intercultural de educadores.

Outras aprendizagens relevantes na formação intercultural

As concepções dos/as professores/as da aldeia Muã Mimatxi acerca da educação e da escola remetem-nos a uma filosofia de socialidade voltada para as relações (Viegas, 2002; Pádua, 2015), o que nos ajuda a compreender a grande valorização das trocas de experiências com os “parentes” de outras etnias que, muitas vezes, ocorriam informalmente, independentemente da intenção pedagógicado Fiei. É o que nos conta Sarah:

Também, o que eu achei que foi muito importante lá no curso, [foram] as horas que a gente encontrava na hora do almoço, depois do almoço. A gente ficava lá e a gente ia conversar com outros parentes, das outras escolas, dos outros povos. A gente contava experiência também. Também eles traziam. Ah, porque na minha escola aconteceu isso, foi bom, aconteceu isso com a experiência que não deu certo. (…) Então, esse contato assim com os outros parentes, eu acho que foi uma parte muito boa, de aprendizado para mim e para os professores de lá também, os professores não índios.

Sarah menciona esses encontros e convívio com “muitos indígenas das diferentes etnias”, ocorridos nos intervalos das aulas do Fiei, como momentos ricos de trocas, potencializados pela reunião de 146 indígenas, das etnias Aranã (1), Caxixó (7), Krenak (2), Maxacali (7), Pataxó (11), cento e dez Xacriabá (110) e Xucuru-Kariri (2), matriculados no curso (Pádua, 2009, p. 32).

Encontros informais dos estudantes da primeira turma do Fiei – set./2007 Fonte: Arquivo pessoal
Encontros informais dos estudantes da primeira turma do Fiei – set./2007
Fonte: Arquivo pessoal
 

Contudo, esses diálogos interétnicos foram também potencializados nas oficinas denominadas “Laboratórios Interculturais”, previstas na organização curricular do Fiei, que promoviam o intercâmbio com povos indígenas de outros estados, geralmente, na primeira semana dos módulos presenciais[3] do curso.

Então, assim, lá a gente teve contato com os outros povos aqui de Minas: tinha Xacriabá, tinha Krenak, Xucuru, tinha oito etnias envolvidas nesse curso. Também, a gente teve outras experiências, com outros povos, de outros lugares aqui de Minas e do Brasil. Vinha gente do Acre, vinha gente lá do Rio Grande do Sul. Vinham trazer suas experiências também. [Foi um] tempo muito bom aquele tempo do curso (Sarah).

Acerca das trocas de experiências realizadas com índios procedentes de outros estados para socializar experiências nas oficinas interculturais, Sarah lembra-se de povos como os Kaxinawá, do Acre, que trouxeram suas experiências e projetos de vida e de escola para compartilhar com eles durante o curso.

Vieram os Kaxinawá, vieram vários povos lá do Norte, trazendo as experiências de projetos (…). Muitos já eram quase igual aos da nossa escola, [mas] tinha algumas coisas que eram incomuns. Então, eles traziam essas experiências para a gente e muita coisa assim a gente pegava para ver se dava certo. Algumas a gente conseguiu desenvolver, outras já era quase igual. (…) Essa experiência dos outros povos foi muito boa também (Sarah).

Esses encontros e trocas com os índios de outros estados foram mencionados, também, por outros professores/as da aldeia, inclusive, considerados como um dos aspectos da interculturalidade, conforme nas falas de Duteran:

(…) A interculturalidade igual a que gente teve com os outros parentes, com o pessoal do norte, o pessoal do sul que andou lá, alguns Kaingangcá do sul, os Guaranis do sul e do litoral. Então, a gente vê assim que eles passaram pra gente vários conhecimentos de vida deles, que eles conseguem driblar várias dificuldades, e incentivo também.

(…) A Universidade abriu as portas pra gente e trouxe um benefício muito grande, que pra mim foi a interculturalidade maior ainda, os conhecimentos que eu tive com os outros companheiros, os outros indígenas de Minas, indígenas de outros lugares do Brasil também, por que vieram de vários lugares. Então, eu achei muito importante isso, essa interculturalidade.

Podemos pensar essa valorização das trocas de experiências com indígenas de outras etnias, oportunizadas pelo Fiei, como parte de um “extraordinário apetite pelo Outro” que ativa relações e possibilita que a diferença seja absorvida, assimilada e recriada, produzindo novos conhecimentos. Nesse processo, contudo, “algumas coisas se encaixam e outras não são compatíveis” com as lógicas culturais do grupo (Carneiro da Cunha, 2009, p. 361).

As narrativas acerca da importância dos diálogos e trocas ocorridos durante todo o processo de formação apontam, como ressaltou Lave (2015), que a aprendizagem acontece em meio a esses engajamentos, movimentos e relações, sendo a atividade escolarizada apenas um dos contextos em que ela ocorre. Daí a necessidade de levarmos em consideração o sentido cotidiano de relacionalidade das pessoas, conforme nos alerta Strathern (2016), assim como o dinamismo dos processos, outro aspecto apontado por Kanatyo:

Claro que a gente foi também tendo outras experiências, de outros povos que passavam ali, que a gente ia trocando experiências (…) e construindo aos poucos essa formação. Porque não tinha assim um modelo de formação, então, a gente foi construindo, de acordo com a permanência da gente, a nossa própria formação dentro desse curso. E assim a gente foi também aprendendo a trocar experiências e conhecimentos.

(…) Teve a chegada, a permanência durante o curso e o desenvolvimento da experiência aqui dentro da aldeia. Então, assim, dessa formação lá, que eu me lembre, que mais ficou guardado na minha cabeça foram essas coisas mesmo: essa troca de experiências que eu tive no curso. Eu acho, assim, que sempre foi interessante essa forma de como a gente trabalhou, porque não tinha um modelo pronto, a gente foi construindo. Cada povo, cada escola, ia tentando fazer sua pedagogia, sua própria forma de ensinar.

Podemos perceber, nessas narrativas de Kanatyo, uma concepção de formação como Percurso, presente na proposta do Fiei, uma construção permanente que acontece em diálogo com as diferenças. Ao oportunizar muitos encontros e relações – formais e informais − com uma diversidade de culturas, não só indígenas (Pádua, 2014), tornando inclusive os intervalos das aulas verdadeiros laboratórios interculturais, o Fiei permitiu experiências muito valorizadas na perspectiva cultural desse grupo Pataxó. Nesses encontros e trocas, muitas ideias foram incorporadas e ressignificadas, criando novas possibilidades para os projetos de vida e para a escola.

Então, assim, o curso ajudou a gente dessa forma. A gente amadureceu nossa experiência de como trocar experiência educacional. A gente viu que é muito importante, que a gente também teve mais reconhecimento, porque a gente antes desse projeto de educação ia cada um para seu canto. Foi uma forma também de aproximar das comunidades indígenas, de aproximar um do outro, para dialogar os projetos de vida, da situação de vida (Kanatyo).

A gente aprendeu muita coisa até com outros parentes, com os que vinham da Amazônia, do Acre. […] E também a respeito das ideias que a gente ia trocando com os outros meninos aí, das outras aldeias. A gente ia vendo as dificuldades, os avanços que cada um tinha (Siwê).

Outro elemento que se se articulou bem com a perspectiva cultural desse grupo Pataxó, também bastante enfatizado nas narrativas desses professores/as, foi a relação dos conhecimentos com a prática. Para Sarah, esse aspecto prático da formação está entre as principais aprendizagens do curso, ao lado dos projetos desenvolvidos no Percurso Acadêmico e as trocas de experiências com outros povos indígenas. Ela ressalta a importância das oficinas desenvolvidas pelos/as professores/as do Fiei, nas etapas intermediárias, realizadas em articulação com os estágios, e que envolviam os professores e os alunos da escola indígena. Essas falas reforçam o que disse Rezende (2009) a respeito do curso, ao mencionar que as práticas pedagógicas da sala de aula e a vida cotidiana da aldeia se tornavam objetos de pesquisa e de reflexão dos/as professores/as em formação.

Sarah aponta que essas orientações para trabalhar com os alunos foi um aspecto muito positivo do Fiei, e cita, como exemplo, a produção de material didático-pedagógico: “É um produto para estar trabalhando com os alunos também. E isso eu acho que foi muito bom, assim pra mim foi uma das coisas boas que aconteceu.” Além disso, ressalta que essas aprendizagens− relacionadas ao trabalho com os alunos na sala de aula− permitiram a sua continuidade, após a conclusão do curso: “a segunda coisa boa foi esse trabalho que a gente fez com os alunos, que a gente vem desenvolvendo. Não ficou parado, foi através do curso que deu o caminho pra estar trabalhando com os alunos.”

(…) igual ao trabalho de estágio que a gente levou, apresentou lá, aí isso tudo foi material que veio de volta para a escolinha aqui, os meninos viram e ficaram empolgados. Anima qualquer trabalho que a gente tem pra desenvolver. Eles trabalham, se tiver que fazer desenho, se tiver que filmar, se tiver que fazer uma pintura ou fazer uma oficina, eles já estão preparados, já sabem como fazer. Então, isso também foi bom para os alunos, esse tipo de trabalho novo que a gente traz pra eles fazerem (Sarah).

Ao mencionar o estágio, a narrativa de Sarah dialoga com autores como Esteves (2014), que defendem a centralidade da prática pedagógica supervisionada na formação de docentes. Nessa perspectiva, a prática profissional oferece os problemas a serem investigados e é o espaço fundamental de diálogo com as disciplinas em busca de resposta a esses problemas. Mas, a narrativa de Sarah também destaca a produção de material-didático como fruto desse trabalho, mostrando a valorização da investigação que desemboca em um produto que a sistematiza, registra e apoia o trabalho com os alunos na escola. Afirma que, antes do Fiei, os/as professores/as da aldeia já produziam livros e cartilhas com os alunos, mas enfatiza que, após o curso, ficaram mais estimulados a desenvolver esse trabalho no cotidiano da escola.

Para a gente estar desenvolvendo esse trabalho, a gente desenvolveu alguns materiais para os alunos na escola, material didático que foi desenvolvido. Acho que isso foi um ponto muito bom, essa construção do material e também a construção de projetos para os alunos, junto com os outros professores de lá, não índios. Eles traziam experiências pra gente ir trabalhando e a gente também já fazia o que estava no pensamento da gente, da nossa escolinha, dos outros professores, o que a gente pensava de estar organizando. Vamos fazer esse trabalho, vamos fazer esse calendário, vamos fazer essa apostila, aí a gente já tinha também um apoio das pessoas de lá da faculdade, dos professores. Aí a gente desenvolvia também, ou eles vinham para cá e faziam oficina aqui para a gente e a gente ia construindo esse material. Então, aconteceu isso também e eu acho que foi muito bom, porque desenvolveu esse trabalho com os alunos. [A gente] também trabalhava quando eles vinham para cá desenvolver com a gente. A gente trabalhava aqui junto com os alunos. Os alunos é que são os autores desses livros, desses calendários, que vão estar saindo aí (Sarah).

A professora se refere a muitos materiais produzidos nesse processo, muitos deles, atualmente, já publicados, enfatizando a valorização de aprendizagens voltadas para a escola e os/as alunos/as. Siwê também mencionou que o curso ampliou as possibilidades de diálogo com os/as alunos/as, em especial, com aqueles que apresentavam mais dificuldades de aprendizagem.

Outro domínio, no qual podemos observar essa valorização do aspecto prático do conhecimento, refere-se às tecnologias, como destacou Siwê: “a gente teve esse contato com computador, com a internet, com pesquisa na internet, com a pesquisa na biblioteca com os livros”; com o gravador para realização de entrevistas, e com a produção de filmes. “Lá a gente aprendeu algumas coisas, alguns macetes de edição de imagens”, diz, e menciona que, durante o curso, começou a produzir um filme, mas teve de abandonar para se dedicar ao seu projeto de pesquisa.

Esse professor ressaltou a importância da aprendizagem das ferramentas de informática, especialmente daquelas ligadas aos registros audiovisuais (fotografia e vídeo), digitalização de imagens e manejo de arquivos digitais, que, posteriormente, foram levadas para a escola: “inclusive, esses dias, a gente tem um computador que a gente leva para eles brincarem lá de refazer o desenho deles, digitalizado no próprio computador, e ir melhorando a imagem, para eles irem tendo esse conhecimento”.

E a gente também buscou fazer esse registro de tudo que a gente fazia, as oficinas aqui, fotografando, fazendo muita coisa assim. O curso ensinou bastante coisa assim pra gente, que a gente não tinha conhecimento. Essas coisas de informática também a gente aprendeu um bocadinho, a gente não tinha conhecimento e a gente precisa (Siwê).

Muitas das aprendizagens mencionadas estão relacionadas aos projetos de pesquisa que os estudantes desenvolveram nos percursos acadêmicos do Fiei, e as tecnologias se inserem nesse movimento de busca por registrar processos e tradições culturais em risco de desaparecimento, para que sejam transmitidos às novas gerações, tendo a escola lugar central nesse processo (Pádua, 2014).

Sarah enfatizou outro aspecto prático dos conhecimentos, agora ligados ao território e destacando o envolvimento dos alunos na produção de materiais.

Igual assim, trabalhar a terra, o trabalho que a gente faz com a terra, a gente vai transformar isso em uma cartilha ou em um vídeo ou em livrinho. A gente (…) tira uma semana só para trabalhar nisso, ou três dias da semana, a gente organiza todos os professores, todos os alunos, aluno que não sabe escrever já desenha e depois monta todo mundo junto. Assim também com os conhecimentos que vem aí, a gente trabalha a escrita e nessa hora que a gente vai ver também os alunos, se eles estão escrevendo bem, se estão sabendo escrever nessas horas. E tem as outras aulas também que a gente trabalha o conhecimento de fora (Sarah).

Aula intercultural na aldeia MuãMimatxi − maio/2012 Fonte: Arquivo pessoal
Aula intercultural na aldeia MuãMimatxi − maio/2012
Fonte: Arquivo pessoal

Como se pode ver, a procura por conhecimentos práticos ultrapassa a vida escolar e se expressa em um desejo coletivo de envolver os alunos e a escola na resolução de problemas e questões ligadas ao território que habitam. Na época, recém-chegados em uma nova aldeia, esse grupo Pataxó encontrou uma terra degradada e pouco produtiva (Pádua, 2015), o que parece explicar a busca de envolvimento da escola com essa temática tão importante para a sua reprodução coletiva e para a sustentabilidade das novas gerações.

Siwê e Duteran também mencionaram alguns conhecimentos práticos relacionados a esse tema, tais como técnicas ambientais de manejo da terra; cuidado e reciclagem do lixo; preparo do solo e adubação; combate a incêndio, que foram disponibilizados nas disciplinas do eixo socioambiental do Fiei.

Até com os professores não indígenas mesmo, a gente aprendeu muita coisa que foi de grande valia. Algumas oficinas que a gente fez, (…) algumas técnicas (…) que a gente aplicou na nossa aldeia, por exemplo, de reciclagem ou de montar um adubo. Então, a gente foi observando essas coisas que o curso disponibilizava pra gente. (…) Então, muita coisa foi boa (Siwê).

O que eu já consegui, junto com os companheiros aqui da escola, a gente vê que teve um grande avanço nesse tempo. Teve um grande avanço (…) com outras atividades também, outras ideias que trouxemos de lá. A questão da nossa terra aqui, ela é bem machucada, porque quando chegamos era “largado” isso aqui. Tinha muito lixo, muito lixo espalhado nessas matas por aqui, vidro, essas coisas. Então, a primeira coisa que [fizemos] quando chegamos por aqui foi começar a fazer a limpeza. (…) Depois dessa limpeza, a gente foi trabalhar no nosso espaço lá embaixo, no nosso espaço ali, e depois nós fomos pensar em outras coisas. Mas até hoje ainda tem muito problema com a queimada, [que] tem todo ano na época de seca, a gente tem de ficar atento, tem que sair correndo, tem pouco homem, tem que sair e ir para o mato tentar apagar o fogo (Duteran).

Com isso também a Universidade trouxe alguns conhecimentos. Alguns não, vários. De como é que podemos estar preservando, tem muito foco de incêndio. Aos poucos nós vamos pegando alguma coisa, alguma brechinha que a gente vai colocando nisso aí também, na preparação de solo, no solo cansado como é aqui. Vocês podem olhar que isso aqui era só braquiária. Isso aqui era cana de fazendeiro, então, hoje em dia a gente plantando alguma coisa não dá nada. Então, a gente aprendeu a manejar essa terra de forma diferente, não usando esses remédios que a gente não usa mesmo, veneno e essas coisas (Duteran).

Esse tipo de relação prática com o conhecimento parece articular pressupostos culturais e práticas, conforme ressaltaram Carneiro da Cunha e Almeida (2002) a respeito de características do conhecimento tradicional. Segundo esses autores, concepções de mundo se ajustam a modos de fazer, não existindo um saber desvinculado da prática, pois é por meio dela que o conhecimento se transmite e se amplia. E para os professores/as entrevistados/as, as práticas são o trabalho com os alunos e os projetos de vida comunitária. Envolvem a escola e vão, também, além dela.

Esse aspecto da relação com a prática, apontado nas narrativas, mostra-nos que, como afirma Lave (2015, p. 40), “produção cultural é aprendizagem”, e que a aquisição de conhecimentos depende de sua implicação na prática. Da mesma forma, aprendizagem “é produção cultural” e “aprender também produz cultura” (p. 41).

Além dessas questões até aqui apontadas, podemos mencionar, ainda, aspectos mais periféricos da formação, também relatados em algumas narrativas como parte das aprendizagens do Fiei. Siwê, por exemplo, destacou a abertura para novos pensamentos e horizontes − “esse mundo de visão que a gente trouxe”, inclusive, no seu caso, uma desenvoltura maior no “jeito de falar” e de se expressar. Tendo iniciado o curso muito jovem, esse professor traz à tona domínios indiretos de aprendizagem, tais como: o amadurecimento, a transformação pessoal e o desenvolvimento da expressão oral. Ele declarou, também, a sua experiência de participação política no colegiado do Fiei, “composto por representantes da coordenação, do Movimento Indígena, do corpo docente, do corpo discente e dos monitores” (UFMG, s/d, p. 5), como “uma coisa muito importante que aconteceu”.

Duteran, também, ressaltou em sua narrativa que a participação no curso resultou em “um grande crescimento como professor e como pessoa mesmo”, tanto que afirma: “eu gostei muito de fazer o curso e pretendo voltar novamente pra poder fazer faculdade, porque tem muita coisa que eu quero fazer ainda pelo meu povo.” Essa mesma expectativa de continuidade dos estudos, também, foi expressa por Siwê.

Além desses aspectos até aqui apontados, outras questões emergiram nas narrativas dos/as professores/as da aldeia Muã Mimatxi, que nos conduzem a aprofundar reflexões sobre o lugar dos conhecimentos acadêmico-científicos e da pesquisa na formação intercultural de educadores.

Aspectos da formação intercultural que poderiam melhorar

Um dos sentidos atribuídos à interculturalidade por esse grupo de professsores/as indígenas é a relação entre conhecimentos próprios e conhecimentos “dos brancos”. Isso nos ajuda a compreender algumas reivindicações apresentadas por eles por mais conhecimentos científicos e acadêmicos, como na seguinte fala do Siwê: “Então, nesse ponto, assim, do conhecimento lá da academia, deixou a desejar nesse sentido, talvez eles pudessem pôr mais coisa difícil”. Esse professor relata que, na sua área (Matemática e Ciências da Natureza), havia “uma turma grande” de estudantes no Fiei, que demandava conhecimentos mais aprofundados nessa área. Afirma que fizeram críticas a esse respeito durante o curso, mas não obtiveram retorno das suas reivindicações.

Teve um momento que a gente falou: não, nós queremos que você nos ensine mais essas coisas suas aí, porque vocês querem pegar só coisas nossas e não trazem as suas também. Então, chegou esse momento da gente apertar eles lá também, mas quando eles foram aplicar essas coisas pra nós já era final do curso, então, quase não adiantou de nada, hoje a gente tem que pesquisar novamente essas coisas (Siwê).

Esse professor ainda reforça: “na minha área, eu peguei muito pouca coisa, devido a essas faltas de matéria”, “se [tiver que] iniciar um Ensino Médio da vida, no caso, tenho que estudar tudo novamente pra eu rever isso, e até buscar mais, porque eu não encontrei na Universidade”, mostrando que sentiu falta de aprofundamento em determinadas disciplinas da sua área de conhecimento.

Muita coisa foi boa, mas muita coisa deixou muito a desejar. Por exemplo, como minha habilitação é a Matemática, isso deixou um pouco a desejar porque a gente trabalhou tanta coisa, muitas matérias ao mesmo tempo, que talvez o foco que era aquilo ali, pra gente sair com uma capacidade a mais, uma carga horária muito maior, deixou um pouco a desejar. Porque, por exemplo, você cumpria determinada matéria, outro grupo, no outro módulo, tinha que fazer aquelas aulas e ia misturando. Você não fazia no outro módulo e isso foi prejudicando um pouco.

Podemos interpretar essas falas como uma demanda – já tão citada na literatura – pelos chamados “conhecimentos ocidentais”, que, ao menos em algumas áreas do curso, parece não ter sido muito atendida. Para muitos povos indígenas, o conhecimento dos brancos se apresenta como um símbolo poderoso de poder, e a escola, como para os Kaxinawá até o final da década de 90, valorizada por permitir o acesso a esses conhecimentos (Weber, 2006). Também Lasmar (2005) ressaltou que, para os índios do rio Uaupés, o branco era visto como portador de conhecimentos desejados, que poderiam ser apropriados por meio da escola. Parece ser esse tipo de expectativas que orienta as significações de Siwê.

Já Sarah afirmou que, na sua área (Línguas, Artes e Literaturas), “muita coisa deu para desenvolver”, principalmente no aspecto que mais valoriza: a prática da sala de aula:

(…) conhecimentos de português, por exemplo, leitura de muitos livros, que a gente trabalhou, aquelas disciplinas (…) do eixo e as outras que a gente podia optar. E aí para mim foram muito boas essas disciplinas que a gente teve lá, os conhecimentos que foram passados para mim. (…) porque eu tava trabalhando com os alunos de oitava série que depois já vão pra fora, deu para poder atender os alunos daqui (Sarah).

Contudo, essa professora assinalou que “[no curso] teve muita disciplina lá também que a gente fazia, mas não agradava muito não, não era muito o que a gente queria, então teve isso também um pouco. O pessoal comentava: esse negócio está muito fora”. E Siwê completa: “teve também muito professor ruim”, “tinha professor que a gente assistia aula dele porque tinha que assistir mesmo”. Aqui, a crítica parece estar relacionada principalmente aos aspectos didático-metodológicos. Mas Duteran relativiza, afirmando que mesmo aquelas disciplinas do curso que não tiveram muita “serventia” − “[porque] talvez aquele jeito lá não é o nosso jeito” − continuam guardadas no arquivo de elementos que poderão ser utilizados em um outro momento.

(…) Muitas vezes, teve algumas matérias assim que a gente trabalhou que talvez não vão ter serventia pra gente por agora, não estão tendo serventia pra gente por agora, mas talvez pra frente vão ter. Talvez eu não possa falar dessas matérias que tão paradinhas lá, porque eu ainda não mexi nelas. Então, depois que a gente começar a precisar é que a gente vai buscar isso, a gente vai voltar atrás, era assim e assim e tentar fazer a mesma coisa ou tentar fazer igual ou fazer diferente. (Duteran)

Podemos perceber, nessas narrativas, uma perspectiva de interculturalidade que nos sugere a importância de equilibrar conhecimentos indígenas e conhecimentos acadêmicos nas propostas de formação intercultural. Isso porque, como já relatamos, na filosofia de socialidade que orienta esse grupo, os conhecimentos trazidos pelo Outro alimentam um movimento constante de assimilação e recriação. Ou seja, o movimento de construção do próprio depende dos processos imprescindíveis de colaboração intercultural, sejam aqueles que acontecem dentro das Universidades ou aqueles que se desenvolvem em outros marcos institucionais e sociais (Mato, 2007).

Outra questão relevante que contribui para aprofundar as reflexões − acerca da formação intercultural apontada nas narrativas − é relativa ao processo de pesquisa, que acompanhou todo o Percurso Acadêmico dos estudantes do Fiei e que começava já nos primeiros módulos do curso. Contudo, apesar de prazeroso e um dos aspectos mais relevantes da formação (Pádua, 2017), Siwê e Duteran ressaltaram dificuldades enfrentadas, relacionadas à escolha do tema e à elaboração do projeto, que nos remetem às dinâmicas pedagógicas do próprio curso.

(…) Eu comecei voando um bocado, porque era o primeiro momento que eu estava tendo com a Universidade. (…) Nos primeiros dois módulos, a dificuldade foi um pouquinho grande para adaptar a esse conhecimento. Você já entrar e ter que escrever seu projeto, [escolher] o que você vai fazer de pesquisa. Isso foi uma grande dificuldade que a gente teve. (…) Eu não tinha muito tempo de professor, ia fazer um ano, não tinha nem um ano. […] E aí isso dificultou um pouco, porque não sabia muito montar [um projeto de pesquisa], mas tinha outros que sabiam, como meu pai, o Kanatyo, ele já tinha mais ou menos essa ideia. (…) Eu conversava muito com ele. Foi uma pessoa que me formou muito dentro lá desse curso (Siwê).

Então, no início foi um pouco difícil, porque a gente, principalmente eu, não estava muito bem com o foco no que eu queria fazer, [com] aquela chance que eu estava tendo. O que eu queria aprimorar no conhecimento, sobre o que, então, eu fiquei meio indeciso um pouco, um tempo. E aí, com a ajuda de alguns professores e de alguns parentes também, que estavam estudando lá, a gente começou a trilhar nosso caminho ali. Depois disso, a gente foi afunilando a coisa, pra pegar o que a gente exatamente queria. No caso, eu queria mesmo, o meu foco no trabalho lá foi trabalhar um pouco a questão da língua Pataxó. Então, o meu foi esse: a língua Pataxó (Duteran).

Como podemos ver, essas falas nos remetem às dificuldades na escolha da temática de pesquisa. Por sua posição central na proposta curricular do Fiei, a escolha da temática determinava o percurso dentro do curso, a posição do estudante em relação aos eixos temáticos e às áreas de concentração, assim como aos conteúdos e atividades a elas relacionados. Além disso, por estar vinculada aos projetos sociais demandados pela comunidade, tal escolha temática envolvia maior compromisso e responsabilidade. E, como em toda pesquisa, a iniciação ao processo exige interesse e envolvimento do estudante, mas também tempos e espaços mais alargados dentro da formação, como destacaram Grupioni (2013) e Pádua (2014) que, no caso do Fiei, ficavam restritos aos módulos presenciais de um mês, durante os quais, os estudantes tinham que se dedicar a muitas outras atividades e disciplinas.

Além dessas dificuldades iniciais, Duteran também mencionou outras relacionadas ao próprio desenvolvimento da pesquisa durante o processo de formação, algumas ligadas a limitações de financiamento, outras, à própria complexidade de algumas temáticas − como a língua Pataxó escolhida por Duteran, ou ainda, àquelas intrínsecas a todo processo de pesquisa[4]. Apesar das dificuldades, Duteran nos aponta o quanto esse processo de pesquisar foi, para eles, prazeroso, envolvendo descobertas inesperadas.

E para chegar no que eu fiz, passei por cinco processos diferentes. Porque eu entrei lá com um pensamento de fazer um tipo de trabalho, mas no decorrer do curso não dava, porque (…) não tinha como investir, não tinha dinheiro pra poder fazer o que eu queria. Então eu mudei novamente meu foco, fui fazer outra coisa. Aí, a mesma coisa. Na quinta mudança que eu fiz eu falei assim: não eu tenho que encontrar alguma coisa pra mim fazer e eu tenho que seguir esse caminho. E comecei a trabalhar a questão da língua (Duteran).

E como eu falei, meu trabalho foi a questão da língua, e foi um trabalho muito difícil porque tive que viajar, tive que ir pra Bahia, tive que ir para o Rio, fui em São Paulo também. Fui na Bahia duas vezes, passando nas aldeias [de] lá pegando, conversando, vendo o que alguns daqueles mais velhos tinham sobre a língua, qual era o conhecimento que eles tinham ainda, o que conseguiam relembrar ainda daquilo. (…) Foi um trabalho que eu gostei de fazer, mas que foi um pouco difícil, até eu chegar no ponto que eu queria (Duteran).

Então, essa caminhada que nós começamos, foi uma caminhada um pouco “demorosa” pra pegar o caminho certo. Como eu estava conversando com meu cunhado, é a mesma coisa de você chegar a um lugar e você ter várias trilhas e você tentar identificar aquilo que você quer mesmo. Às vezes, tem um que tem a mesma coisa que você quer, só que não é aquilo mesmo. Igual o Kanatyo falou, atrás da neblina você vê a natureza, atrás daquilo que você vê primeiro existe outra coisa melhor ainda, então, você vai atrás daquilo melhor ainda (Duteran).

Essas questões apontadas pelos entrevistados nos remetem, de um lado, às riquezas dos processos desencadeados pela aplicação do princípio da pesquisa na formação intercultural de educadores e, por outro, dada a sua importância, à necessidade de cuidar mais desse elemento curricular, desde a escolha da temática e a construção do projeto até a formatação do produto final, como resultado prático dos conhecimentos adquiridos no curso.

Considerações finais

Os temas aqui abordados, no conjunto, apontam questões que, interrelacionadas, indicam caminhos fecundos para a formação de educadores, não apenas de indígenas. Uma delas é a fecundidade da pesquisa como princípio formativo, o qual, como sugerem as narrativas, pode ser aperfeiçoado, especialmente, com a ampliação dos tempos e espaços a ela dedicados dentro da proposta curricular e pedagógica, e interrelacionado a outros aspectos também valorizados pelos/as professores/as indígenas.

Outra questão que se destacou foi a potencialidade das relações e da interculturalidade na aprendizagem, sugerindo que as trocas entre os próprios estudantes e entre eles/as e os/as formadores/as podem ser ainda mais estimuladas na formação. As narrativas revelaram que o diálogo com a diversidade de modos de vida e visões de mundo potencializa a aprendizagem e enriquece a formação, assim como sugeriram a importância dos conhecimentos acadêmico-científicos na formação intercultural.

Algumas críticas mencionadas pelos/as professores/as nos remetem ao tema da seleção de conteúdos das áreas disciplinares como um aspecto da formação que exige a nossa atenção. A esse respeito, Sarah indiretamente nos indica uma alternativa: “trabalhar vários tipos de conhecimento, não só o nosso conhecimento, mas o conhecimento de fora também.” Essa professora acredita que essa é uma necessidade da escola hoje, no contexto da contemporaneidade. Assim, ela nos sugere uma concepção de interculturalidade que equilibra “os [conhecimentos] de cá e os [conhecimentos] de lá”, ou seja, da aldeia e da universidade. Como já mencionado, a busca pelos conhecimentos dos não índios pode ser interpretada como um movimento no sentido de aumentar o estoque de novos elementos para serem incorporados e ressignificados (Pádua, 2009).

Na visão de Sarah, dessa forma, “a gente foi adquirindo mais conhecimentos, porque se não tivesse tido esse curso a gente ia ficar com o conhecimento bem pouco.” No entanto, ela ressalta o fato de que já dominavam uma forma própria de trabalhar na escola, mas a enriqueceram com os novos saberes que foram incorporando ao longo do processo de formação.

Quanto aos aspectos práticos do conhecimento escolar, a valorização de atividades que produzam resultados práticos, entrelaçadas às práticas escolares e comunitárias, aponta para a potencialidade de trabalhos articulados com a pesquisa e em diálogo com as tecnologias da informação e da comunicação, propostos e realizados durante a formação. Nessa perspectiva, o uso das tecnologias pode contribuir com a coleta, o registro e a análise de dados, assim como com a sistematização e a divulgação dos resultados, gerando produtos tão valorizados por eles/as, como mapas, vídeos, textos, poemas, livros, entre muitas outras possibilidades.

Vimos que, em diálogo com a escola, o processo de formação intercultural pode resultar em muitas e ricas possibilidades, inclusive, como pontuou Siwê, para a construção de “parâmetros de matriz formadora” que orienta todo o trabalho escolar, contando com o protagonismo dos/as professores/as, alunos/as e comunidade no planejamento coletivo das atividades.


 

* Karla Cunha Pádua é doutora em Educação pela UFMG; pós-doutora em Antropologia pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (UL) e em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop); professora na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade do Estado Minas Gerais (Uemg).

 

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Notas

[1] A partir de 2009, como parte do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o Fiei se tornou um curso regular, com entrada anual de 35 alunos.

[2] Um desses professores − Duteran − atualmente não reside mais nessa aldeia. No decorrer da pesquisa, foi entrevistada também a professora Liça, da disciplina Uso do Território, embora ela não tenha cursado o Fiei.

[3] O curso se organizou em módulos ou etapas presenciais, que ocorriam duas vezes por ano na UFMG, geralmente, em maio e setembro, e em módulos intermediários, que aconteciam, preferencialmente, nas aldeias.

[4] Acerca dos projetos desenvolvidos por esses/as professores/as, ver Pádua (2017).

dossiê
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PRÁTICAS ARTÍSTICAS E MUSICAIS: REVELAÇÕES E DESAFIOS

Resumo: Este artigo busca compartilhar os resultados de uma pesquisa realizada com crianças, em meio a práticas artísticas e musicais. As atividades de intervenção se sustentaram na pedagogia dialógica do educador brasileiro Paulo Freire. De natureza qualitativa e inspiração fenomenológica, os diários de campo foram o principal instrumento de coleta de dados, além de desenhos, textos escritos, fotografias e filmagens. De acordo com a análise dos dados coletados (análise ideográfica e análise nomotética) foram identificadas três categorias: A) Habilidades artístico-musicais e sociais; B) Aprendizagem e socialização: dificuldades e enfrentamentos e C) Envolvimento, participação e colaboração, permitindo-nos dizer que as práticas realizadas se desvelaram um campo fértil para estudos aprofundados em Educação, Arte e Psicologia.

Palavras-chave: Práticas sociais e processos educativos; práticas artísticas e musicais; interculturalidade; socialização.

Abstract: This article aims to bring out the results of a research that was performed among children involved in artistic and musical practices. The intervention activities were sustained according to the dialogical pedagogy – proposed by Paulo Freire, a Brazilian educator. Of qualitative nature and phenomenological inspiration, the main instruments to gather data were the field diaries, in addition to drawings, texts, photographs and filming. In accordance to the analysis of the data gathered (ideographic and nomothetic) three classes were identified: A) Social and artistic-musical abilities; B) Learning and sociability: challenges and confrontation; C) Engagement, participation and contribution. These categories allow us to say that the practices mentioned before revealed a fertile field to in-depth studies in Education, Art and Psychology.

Keywords: Social practices and educative processes; musical and artistic practices; interculturality; socialization.

 

Introdução

Este artigo busca compartilhar os resultados de uma pesquisa, intitulada Práticas artísticas e musicais como força potente na revelação de dificuldades de aprendizagem e socialização, realizada junto à comunidade participante (estudantes e professoras) de uma escola pública municipal localizada em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, por meio da realização de atividades artísticas e musicais envolvendo música, teatro e literatura, principalmente.

A escolha por tais práticas, constantes da metodologia de intervenção, justifica-se como uma forma de implementação da Lei n˚. 10.639 (BRASIL, 2003), que trata da obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, complementada posteriormente pela Lei nº. 11.645 (BRASIL, 2008), que inclui a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena na escola. E, ainda, a implementação da Lei n° 11.769 (BRASIL, 2008), que dá obrigatoriedade ao ensino de música nas escolas, o que nos permite considerar que este é um momento de preparação para abordar as diferentes culturas e modalidades artísticas a serem desenvolvidas também na escola, ou seja, além dos espaços do cotidiano em que vive o povo brasileiro.

É vasta a literatura que trata da importância e necessidade de se trabalhar arte nas escolas. Nogueira (2003) nos chama atenção em relação à quantidade de pesquisas realizadas no final do século XX, as quais constataram a importância da arte, nas suas diferentes modalidades, no processo de desenvolvimento da criança. Quanto maiores forem os estímulos recebidos por essa criança, maior será o seu desenvolvimento. Quando se trabalha com os sons, concebe-se o desenvolvimento das capacidades auditivas, cognitivas (concentração, memória, pensamento, atenção, associação, percepção, dentre outras) e de apreciação ou reprodução; trabalhando gestos e a dança, desenvolve-se principalmente a psicomotricidade, como  a coordenação motora, responsável pelas conexões entre o cérebro e os diversos músculos do corpo humano, e, com o canto, a criança estará descobrindo suas capacidades e estabelecendo relações com o meio em que vive.

Práticas como essas ajudam na ativação dos neurônios, promovendo desenvolvimento motor e social, assim como o processo de aquisição da linguagem. Para o autor (2003), é incontestável a compreensão deque práticas artísticas ampliam as redes neurais, ajudando no desenvolvimento da criança como um todo. E, quando se trata de música, Saviani observa:

(…) a música é um tipo de arte com imenso potencial educativo já que, a par de manifestações estéticas por excelência, explicitamente ela se vincula a conhecimentos científicos ligados à física e à matemática além de exigir habilidade motora e destreza que a colocam, sem dúvida, como um dos recursos mais eficazes na direção de uma educação voltada para o objetivo de se atingir o desenvolvimento integral do ser humano (2003, p. 40).

Dessa forma, pensar nas reais contribuições do fazer artístico em relação ao processo de formação e socialização de estudantes é algo que merece atenção nos dias de hoje, principalmente quando se trata de pessoas em processo de formação, crianças, as quais apresentam, em sua maioria, dificuldades de convivência e de aprendizagem. Por isso, nos colocamos a realizar práticas artísticas e musicais com crianças, de modo a verificar se tais práticas poderiam se constituir em força potente na revelação de dificuldades de aprendizagem e socialização. Ainda, oferecer a essas crianças acesso e oportunidade de vivenciar experiências artísticas e musicais, em convivência com estudantes e profissionais de escola de música e da universidade, contribuindo, também, com o processo de formação pessoal e profissional desses estudantes de graduação, muito especialmente em estudos e atividades envolvendo Arte, Educação e Psicologia.

Assim, passaremos à apresentação do referencial teórico, que sustenta nossas discussões, seguido da metodologia de pesquisa, de natureza qualitativa e inspiração fenomenológica, além da construção dos resultados e considerações.

Práticas sociais em educação musical

De acordo com Oliveira et al. (2014), práticas sociais “(…) se constroem em relações que se estabelecem entre pessoas, pessoas e comunidades nas quais se inserem, pessoas e grupos, grupos entre si, grupos e sociedade mais ampla, num contexto histórico de nação e, notadamente em nossos dias, de relações entre nações” (p. 33). Os objetivos pelos quais as pessoas se agrupam são dos mais diversos, dentre eles: necessidade de afirmações, representatividades e constituição identitárias, dentre outros, sejam de natureza política, social, econômica, cultural, educativa, ambiental, recreativa, religiosa etc.

Para Larrosa-Bondia (2002), “(…) a experiência [é] a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, (…) requer um gesto de interrupção” (p. 24). Pensada como território de passagem, lugar de chegada ou espaço do acontecer, “(…) o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura”, (p. 24). A disponibilidade é fundamental e a abertura, essencial. Esse sujeito é então ex-posto. Mas, participar de uma prática social também não é garantia de ex-posição. Ex-por é empreender e tentar realizar. Porém, realizar e realizar-se não são um ato solitário; ao contrário, só nos realizamos na coletividade, sendo uns com os outros (Freire, 2005).

De tal forma que a convivência não é pura escolha e decisão, mas condição básica para compartilhar compreensões. Convivência e não conviver, porque esta última, dotada de sua forma de verbo, pressupõe a intenção; por isso convivência, que é o acontecimento em si, a experiência já acontecendo. E nesse sentido, Freire (2005) observa que o fundamento da convivência humanizadora e transformadora é saber lidar com as individualidades, as quais devem ser reconhecidas nas liberdades assumidas de cada um/a das pessoas em meio à coletividade.

Por isso é que se diz que o espírito de cooperação, colaboração, é a característica de toda ação onde há a predominância do diálogo entre as pessoas, as quais se encontram para a “(…) ‘pronúncia’ do mundo, (…) uma condição fundamental para a sua real humanização” (Freire, 2005, p. 156). Seres humanos que somos, seres lançados ao mundo da percepção, afeto e emoção, onde até mesmo nossa consciência é consciência perceptiva (Merleau-Ponty, 1994), nossas escolhas se baseiam na situação em que nos encontramos, em que estamos inseridos, numa tentativa de desvelar e compreender o que o mundo nos manifesta: os fenômenos.

Daí a compreensão do termo cultura não como a negação da natureza, do inato, mas o prolongamento deste e, sob esse aspecto e sob tais circunstâncias, há sempre sentidos atribuídos pelas pessoas envolvidas em práticas culturais, intrinsicamente sociais, como espaços de revelações e para a emergência dos modos de consciência de cada pessoa, envolvida consigo mesma ao mesmo tempo que com a sua prática. Pessoas de diferentes culturas que dialogam entre si, construindo e interferindo no mundo, transformando-o, modificando-o (Merleau-Ponty, 1994).

No campo da educação, especificamente da educação musical, trazemos os dizeres do educador Carlos Kater (2004), de que, enquanto fundamentos de planejamento, ação e reflexão, atividades em arte, música e cultura são produtos da construção humana conjunta, “(…) cuja conjugação pode resultar uma ferramenta original de formação, capaz de promover tanto processos de conhecimento como de autoconhecimento” (p. 44). Entretanto, mesmo quando não nos ocupamos das funções de socialização, integração e produção artesanal e artística da forma satisfatória que essas práticas podem oferecer e comportar, ainda há o sub aproveitamento do elemento formador e transformador dessas mesmas atividades.

Martins (2015), em seus estudos sobre processos educativos decorrentes de práticas artísticas e musicais realizadas com crianças, nos traz as compreensões de Koellreutter (1996), o qual acreditava que o ensino deveria ir além das possibilidades já estabelecidas, num ritmo constante de procura e abertura a novas possibilidades, em tempos e lugares onde a imaginação criativa ocupasse espaço primordial e os “vários ramos da educação artística” não fossem aprendidos e ensinados de forma independente, sem manter relações entre si. Esse autor advoga em favor de uma educação e ensino musical onde as pessoas que os representam e dão voz assumam a função da tarefa de transformar “[…] critérios e ideias artísticas numa nova realidade resultante de mudanças socais” (p. 3).

Cabe ressaltar que, ainda hoje, passados cerca de setenta anos, nos debatemos em relação a uma política educacional em música que faça jus aos escritos de Koellreutter (1996), que assegure a todos/as o direito de oportunidades (mesmo em face à implementação da Lei n° 11.769/2008, que dá obrigatoriedade ao ensino das Artes nas escolas), que considere, na efetividade das ações empreendidas e realizadas, a música como produto da vida social e expressão real da sociedade de uma época e sua cultura.

Estudos de criação devem fundamentalmente integrar a escrita musical, as artes visuais, o teatro, a dança e toda e qualquer atividade do fazer musical, oferecendo assim um amplo campo de autorrealização e aprendizagens. Podemos perceber, nos jogos das crianças, elementos sensórios, ritmo, mimetismo, competição individual e coletiva, e representação dramática influenciada por sua fantasia, e devido a todo esse envolvimento pessoal, é que se pode dizer que os jogos acompanham os seres humanos desde as primeiras fases do desenvolvimento. A criança é um organismo em desenvolvimento, portanto, cada fase do crescimento deve ser estimulada.

Por isso parafraseamos Kater (2004), ao observar o quanto é importante que os estudos musicais comecem pela experimentação de ideias e materiais e pela exploração dos órgãos perceptuais dos sentidos, ao contrário de simplesmente cumprir com regras já estabelecidas. Para o autor, isso incrementará nossa sensibilidade ao redor do mundo e educará parte de nossa inteligência, a qual tem a ver com a sensibilidade. Além de que, esta é uma maneira de integrar as pessoas envolvidas no ato da criação a outros modos que se relacionem com música. É o adentrar em outras áreas para só assim ser capaz de criar amplamente, de ir além da notação musical, almejar um fazer musical criativo com vistas à educação integral, ao estímulo das vivências musicais através da criação, execução, audição. Para Martins (2015), trata-se de educar a sensibilidade, a primeira de todas as educações, porque sem ela tudo o mais se torna vago e de escasso valor.

Interculturalidade

Conforme Castiano (2000), interculturalidade pode ser compreendida como sendo um “[…] conjunto de atitudes e predisposições necessárias para um envolvimento mútuo de dois ou mais sujeitos na troca das suas experiências subjetivas, críticas e por si vivenciadas (enquanto indivíduos ou grupos sociais) com os outros” (p. 221); compreensão em que não pode haver juízo nem ação que comportem a ideia de dominação e subjugação; debate entre culturas onde nenhum ser humano é portador de “declaração de inferioridade”. O confronto no diálogo é uma exigência, condição de aprendizados e trocas mútuas, individualização da fonte de elaboração de um determinado saber.

Castiano (2000) compreende ser a capacidade e disponibilidade de abrir-se para um diálogo cultural em busca de promover o enriquecimento conceitual mútuo. De toda forma, há duas tradições de práticas acadêmicas: a formal/moderna (predominantemente escrita) e local/tradicional (predominantemente oral). Quando tratamos de práticas em educação musical, por exemplo, muito se faz uso da prática local/tradicional, de reproduzir aquilo que se ouve, é a “cultura acústica” de que trata Lopes (2004).

De onde podemos trazer as compreensões de Merleau-Ponty (1994), que nunca fala do corpo objeto, mas do corpo fenomenal, porque o nosso corpo é a potência no mundo através do qual percebemos e nos movimentamos, relacionamo-nos com as coisas, com o mundo. A motricidade é portadora da intencionalidade original, e a consciência é originariamente um “eu posso” e não um “eu penso”. A consciência é o ser para a coisa e um movimento só é aprendido quando incorporado ao corpo próprio. Para o autor, tudo o que possamos fazer exige a presença e participação do corpo, o qual contém o fardo da história, de tal forma que o corpo exige, assim como é exigido. De tal maneira que, não poderiam faltar nas escolas as práticas teatrais, que possibilitam a auto expressão através do corporal.

Ainda, apoiados em Castiano (2000), podemos dizer que os conhecimentos corpóreos por nós produzidos acontecem em espaços que são coabitados por múltiplas comunidades, muito além de puras individualidades, dentre epistêmicas, narradores/as e pesquisadores/as, tendo aí sua validade e legitimação. Os conhecimentos devem resultar dos atos de troca entre as pessoas, sem que umas sejam tratadas como fontes primárias para recolha de dados, e outras como “interlocutores válidos” no diálogo intercultural. Para o acontecimento da interculturalidade, cuja base é fundada nas trocas e aprendizados advindos das tantas possibilidades de diálogos abertos, críticos e autocríticos, mas, sobretudo, de respeito ao outro e sua cultura, a intersubjetivação e a criação de espaços para sua realização são fatores fundamentais.

Dessa maneira, considerando que o conceito de interculturalidade pode nos auxiliar na compreensão do fenômeno aqui estudado, consideramos as várias possibilidades de construção/criação/realização/elaboração de atividades musicais em diálogo com diferentes culturas. Em geral, seja nas escolas ou em outros espaços de educação, há sempre a escolha e decisão pelo estudo e tratamento de determinado tema em detrimento de outro, de modo que uma cultura se sobreponha a outra. Com base em nossas experiências e estudos, situações como essa são comuns de acontecer. Tal questão se justifica em razão de que tudo o que acontece ou possa acontecer envolve a participação do ser humano, que, assumindo ou não, tem uma posição política, social e cultural no mundo. E de modo geral, as decisões pouco ou quase nada atendem às pessoas que se encontram em posição de desfavorecimento social, político e cultural. Trabalhos nessa perspectiva, no campo da educação, mostram-se capazes de promover ações compartilhadas que, a partir da cooperação e crescimento mútuo, oferecem espaço para uma relação crítica e solidária.

As pessoas que participam de práticas sociais, na perspectiva da diversidade cultural e interação, podem fundir ideias, habilidades e experiências, essas já realizadas ou ainda por realizar, um verdadeiro caldeirão cultural, segundo Barbosa (2013), onde os componentes se interagem criando o novo a partir da convivência criativa e dialógica. Em Coppete seria “(…) um processo permanente e inacabado, fortemente marcado pela intenção de promover relações democráticas e dialógicas entre grupos e culturas diversas, (…) [sem se] isentar de sentido crítico, político, construtivo e de transformação” (2012, p. 241).

Aprender seria inventar um jeito de dar certo, dar certo naquilo que se propõe a fazer com quem se dispõe a realizar, pois, segundo Martins:

(…) processos educativos só acontecem em contextos educativos e de vontades mútuas, os quais precisam ser criados e desenvolvidos. Práticas interculturais lidam com a diversidade de pessoas e suas culturas, promovem diálogo entre essas pessoas numa atitude de cooperação e solidariedade, um exercício de ver pela própria ótica, ver pelas lentes do outro e depois voltar-se à sua visão, agora ampliada naquilo que o outro é, pensa, acredita, pode e deseja. Quando isso acontece, não há meio termo, mas “encontro”, possivelmente encontro criador e transformador, resultado da procura deliberada de cada um, e não de promessa descumprida (2015, p. 99).

Dessa forma, o compromisso de cada um é premissa básica em atividades interculturais, práticas pedagógicas como política cultural, e por isso seu caráter propositivo e não apenas denunciativo.

Metodologia de pesquisa

Nesta pesquisa, de caráter qualitativo e inspiração fenomenológica, entendemos, com base em Machado (1994) e Garnica (1997), que o pesquisador/a e pesquisado/a não explicam as coisas, apenas buscam a essência daquilo que aparece, acontece, interrogando a coisa mesma pelo o que ela apresenta naquilo que se faz visível.

Estruturada em dois momentos: metodologia de intervenção e metodologia de pesquisa, tratamos de realizar a investigação com base em nossa convivência dialógica e participação nos vinte encontros realizados, os quais foram registrados em diários de campo, principal instrumento de coleta de dados. Os diários de campo (os quais foram posteriormente analisados, análise ideográfica e nomotética), considerados um recurso metodológico básico e de extrema importância nessa modalidade de pesquisa, são compreendidos por Bogdan e Biklen (1994, p.150) como “(…) o relato escrito daquilo que o investigador ouve, vê, experiencia e pensa no decurso da recolha e refletindo sobre os dados de um estudo qualitativo”.

Além dos diários de campo, os registros foram feitos através de fotografias, filmagens, desenhos, textos escritos e situações-diálogo com os/as participantes da pesquisa, os quais foram convidados a colaborar com o estudo após autorização em termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), resguardados seus nomes[1], e termo de assentimento (TA), por se tratar de crianças em idade entre oito e dez anos. Na transcrição das falas e textos dos/as participantes mantivemos os dados na íntegra, inclusive com os erros de português, preservando os dados em sua originalidade conforme colhidos pelas pesquisadoras, em concordância com Gonçalves Junior (2008).

A metodologia de intervenção foi pautada na pedagogia dialógica do educador brasileiro Paulo Freire (2005), onde as pessoas não obedecem, mas em rodas de conversa, se colocam – pensam, discutem, planejam e executam conjuntamente as atividades a serem realizadas, assim: o quê, como, com quem, quando, para quê e por quê, a partir do mundo vida de cada pessoa. E, com a particularidade de se surpreenderem a todo momento, sejam por si mesmas e/ou pelo outro com os/a quais se convive, todos sujeitos ativos no processo de construção-reconstrução de performance envolvendo música, teatro e literatura. Ainda, abertos e disponíveis às novidades e insights que acontecem.

Essa pesquisa, com duração de dez meses (maio/2017– fevereiro/2018), constou de três momentos: 1) negociação das atividades entre as pessoas envolvidas; 2) realização dos encontros (música, teatro e literatura); 3) apresentações artístico-musicais.

Neste artigo, nos concentramos na análise dos dados coletados e registrados em diários de campo, referentes ao período de intervenção (segundo e terceiro momentos), entre os meses de agosto a novembro de 2017 (vinte ao todo), e construção dos resultados, com base nas atividades realizadas em uma escola pública municipal, com 38 estudantes regularmente matriculados na educação básica infantil (3º e 4º anos). Os encontros ocorreram semanalmente no período vespertino (13:00 às 14:30), conforme roteiros de ação previamente elaborados. A metodologia de intervenção, envolvendo música, teatro e literatura, teve como referência literária a obra intitulada O jardim de Liz[2], de Polyana Matumoto (2015), e as canções Menina Moleca – Paulo Tatit e Sandra Peres, Grupo Palavra Cantada (2005), Flor de Maracujá – Beatriz Bedran (2004) e Menina –  Cecília Cavalieri França (2003), sendo todas as obras selecionadas por sugestão, escolha e decisão da comunidade participante, ou seja, professoras e estudantes.

A análise dos dados coletados (diários de campo) constou de: identificação das unidades de significado; redução fenomenológica; organização das categorias; construção da matriz nomotética; construção dos resultados. Para Gonçalves Junior (2008), essa modalidade de análise envolve a transcrição pormenorizada dos acontecimentos percebidos e descritos pelo/a pesquisador/ar; a identificação das unidades de significado; a redução fenomenológica; a organização das categorias; a construção da matriz nomotética e a construção dos resultados.

Segundo Machado (1994, p. 41), análises ideográficas e nomotética contribuem com pesquisas de natureza qualitativa por possibilitarem que o tema seja circundado, em busca de compreender o fenômeno e não explicá-lo. Os mundos pesquisador/pesquisado (a) se interpenetram, possibilitando “acesso ao mundo-vida e ao pensar do sujeito”. Compreendendo-se as divergências e as convergências, sem universalizar, parte-se do individual para o geral, o que é mais que uma verificação de resultado, mas uma profunda reflexão sobre o fenômeno. Por isso as três etapas da metodologia de pesquisa aqui utilizadas: redução fenomenológica; matriz nomotética e construção dos resultados.

A redução fenomenológica refere-se à etapa em que realizamos uma leitura minuciosa dos diários de campo (DC)para levantamento das unidades de significado, as quais foram reduzidas e posteriormente agrupadas em categoriais, compondo assim a matriz nomotética. As unidades, assim como as reduções, foram organizadas em um quadro, a matriz nomotética, onde constam as categorias de análise e respectivos diários de campo (DC) e unidades de significados (US).

Construção dos resultados

Com base na metodologia de pesquisa e análise dos dados coletados, foram identificadas as seguintes categorias: A) Habilidades artístico-musicais e sociais; B) Aprendizagem e socialização: dificuldades e enfrentamentos e C) Envolvimento, participação e colaboração.

A categoria A, Habilidades artístico-musicais e sociais, refere-se à noção, decorrente do levantamento e interpretações das US e suas reduções, de como práticas artísticas e musicais realizadas em grupo, com base na colaboração e ajuda mútua, podem reforçar o aprendizado musical tanto individual como coletivo, agindo como elemento agregador e catalisador do estabelecimento de vínculos e fortalecimento das relações interpessoais, tendo em vista o nível e qualidade das produções decorrentes de tais atividades, cuja mola propulsora é o trabalho em grupo guiado pela dialogicidade entre as pessoas.

Segundo Del Prette (2011), a área das habilidades sociais vem sendo estudada por psicólogos, psiquiatras e educadores por ser considerada um identificador de ajustamento psicossocial e pela sua importância para a qualidade de vida de crianças e adolescentes. De tal modo que, possuir um repertório elaborado, construído com base em habilidades sociais, pode contribuir para a constituição de independência pessoal e responsabilidade social. De acordo com estudos recentes baseados em testes padrão e tarefas de empatia (Ilari, 2014), os resultados sugerem que a atividade e o aprendizado musical coletivo torna os/as estudantes mais empáticos, assim como influenciam positivamente nos comportamentos pró-sociais (ajuda, cooperação e altruísmo), tanto em bebês, como em crianças e adultos.

Visto que o desenvolvimento artístico e musical humano depende de diversos fatores – cognitivos, sociais, biológicos e culturais – esse é frequentemente motivado pela existência do “outro”, e nunca como um ato solitário. Tal assertiva confirma as realizações desenvolvidas e resultados evidenciados e obtidos no referido projeto de pesquisa, quando as práticas referentes às orientações teatrais e musicais foram construídas no decorrer do processo. Ou seja, juntos, estudantes e professoras, orientavam e sugeriam, construíam e descontruíam, em busca de um conjunto que atendesse às expectativas, mas também as condições e habilidades de cada pessoa envolvida. O fazer era sempre um fazer novamente, de modo a estimular a percepção de si e do outro, com o qual se encena, se canta, se toca.

De modo a ilustrar as atividades realizadas em meio à convivência entre as pessoas participantes nesse projeto de pesquisa, trazemos na Figura 1 uma mandala, figura geométrica que representa a busca de conexão entre as pessoas e o mundo, como representação de uma construção corporal coletiva. Essa atividade não foi de fácil realização, tendo em vista a dificuldade das crianças em encostar lado a lado seus pés, em posição de ponta de pés para cima e ângulo de 90 graus entre calcanhar e chão. Entretanto, promoveu interação entre os participantes, os quais se mostraram curiosos com a figura, novidade em seu cotidiano.

Figura 1: Estudantes participantes do projeto de pesquisa na representação de uma mandala, utilizando o próprio corpo / Fonte: acervo pessoal.
Figura 1: Estudantes participantes do projeto de pesquisa na representação de uma mandala, utilizando o próprio corpo / Fonte: acervo pessoal.

No convívio, nas atitudes, no zelo, na atenção, no cuidado, e até mesmo no respeito de uns pelos outros em meio aos conflitos vivenciados, inerentes a toda atividade humana em grupo, pode-se confirmar o desenvolvimento da criatividade, da percepção musical, dos conhecimentos musicais (letra, melodia, ritmo, instrumentação), da gesticulação e movimentação corporal, além de habilidades sociais, como responsabilidade assumida (cumprimento daquilo que foi de escolha e decisão), comprometimento com as atividades, dedicação e empenho no aprender a fazer, rigor e disciplina no trabalho coletivo, a performance.

Com base nas atividades e orientações teatrais, nos sentimos autorizadas a dizer que os objetivos propostos (de início apenas uma ideia, já que as pessoas se conheceram pouco a pouco, ao longo da convivência nos encontros), foram alcançados e até mesmo superados, diante das cenas observadas e das orientações atendidas, como: “Bia conversou com as crianças a respeito de algumas noções consideradas importantes no teatro, como respeitar e fazer silêncio quando o colega está em cena, para não haver interferência na sua atuação” (DCVI A-7), ou “quando estivessem em cena, seria preciso estar atento ao movimento, à altura da voz e à expressividade corporal que acompanhariam as palavras, afim de dar vida e sentido real e visível ao que estava sendo dito e nunca estar de costas para o palco” (DCVII A-13).

Tais orientações promoveram aprendizados, pois no dia de uma apresentação, pareciam excitados e curiosos diante do público e com tanta novidade, até que Mi, uma das estudantes participantes, sinalizou aos colegas: “Hei, sabia que é feio ficar reparando os outros desse jeito?”. Deu-se início à apresentação, e tudo aconteceu da melhor forma possível. Foi uma alegria!  Estudantes e professoras riam, se cumprimentavam e se deixavam ser fotografadas. A palavra foi deixada aberta, de onde surgiu a seguinte pergunta: “Como vocês tiveram tanta facilidade para fazer tantas coisas tão bem?”. Dentre as estudantes, Nanda respondeu: “Foi muito fácil, a gente leu e aprendeu”. E Mi: “Primeiro, prazer em conhecer vocês né! Não foi tão fácil assim né, tivemos algumas dificuldades. Pra vocês que faz teatro né, nunca olhe pra trás porque pra trás vai te dar azar, só siga em frente, olhe pra frente, vai que você consegue!” (DCXVI A-8).

Aprendizados e ensinamentos…

Sobre o aprendizado de habilidades artísticas e musicais, esse se revelou nas atitudes, no fazer musical propriamente dito, cantando e tocando em baldes de plástico com baquetas de madeira (Figura 2), ou com as mãos percutindo nas mesas da sala de aula[3] (DCVII A-15). Nas atividades musicais, os/as estudantes realizavam percussão corporal, criando e produzindo sons a partir de toques em diferentes partes do corpo (palmas, pernas, tórax, boca), explorando e ficando supressos, no bom sentido, com os resultados obtidos. Alguns acompanhavam a sequência rítmica apresentada/sugerida, enquanto outros/as se movimentavam/percutiam aleatoriamente, sem se importar com o acerto” (DCVI A-14).

Figura 2: Estudantes participantes do projeto de pesquisa tocando em baldes de plástico / Fonte: acervo pessoal.
Figura 2: Estudantes participantes do projeto de pesquisa tocando em baldes de plástico / Fonte: acervo pessoal.

No que se refere às partes narradas do texto, orientações aconteciam, como: “colocação/impostação de voz de modo a evitar a infantilização/romantização da leitura, […] agilidade e dinamismo nas dramatizações” (DCVIII A-1). Como resultado de aprendizagem, “os/as estudantes cantaram com facilidade e pareciam já ter os ritmos e letra das canções ‘na ponta da língua’. Todos pareciam atentos às indicações e marcações da professora, com quase nenhuma dispersão (DCX A-3).  Entre os/as estudantes também havia orientação: “Lola, que encenava a Jata, uma personagem na história, disse à sua colega de cena Lica para falar mais alto, mais potente” (DCXI A-4). Ainda, “Os/as próprios estudantes davam dicas uns para os outros, como no momento em que um dos personagens lembrou outro de que deveria entrar em cena e quando uma das estudantes (na plateia) disse ao grupo de atores que não ficassem de costas para o público” (DCXIII A-3). E, em relação à satisfação dos/as estudantes participantes, solicitados a escrever/desenhar acerca das experiências realizadas, Uchiha disse: “Minha experiência no teatro foi uma coisa muito boa por que exige muito esforço” (DCXVIII A-3).

A categoria B, Aprendizagem e socialização: dificuldades e enfrentamentos, refere-se à possibilidade de práticas artísticas e musicais revelarem dificuldades de aprendizagens e limitações das pessoas envolvidas nas atividades planejadas, seja negando (na contramão) potencialidades ou cerceando participação. De todo modo, em face da revelação, tais práticas se desvelam potentes na promoção do ultrapassamento das limitações e do encorajamento das potencialidades, contribuindo, assim, nas realizações pessoais, tanto no campo das artes (teatro/música) como em contextos sociais, como escola, família e círculo de amizade. Ou seja, essas práticas reforçam a ideia de que o aprendizado artístico e musical coletivo (visto que o ato de aprender é dinâmico e tem como base as interações sociais entre diversos indivíduos, que, por sua vez, possuem características distintas) pode atuar como elemento agregador e catalisador de relações interpessoais positivas em casos de crianças com diferentes tipos de dificuldades de aprendizagem e socialização.

Para Del Prette (2011), saber lidar com dificuldades e limitações, ter um relacionamento saudável com as pessoas, aceitar regras, são algumas das habilidades sociais que contribuem para a socialização humana. Por outro lado, déficits nas habilidades sociais podem estar relacionados a fatores como depressão, solidão, abandono, estresse. É importante dizer que dentre os/as estudantes, dois deles não se integraram às atividades, fosse tocando, cantando, encenando.

De acordo com algumas falas, extraídas de situações-diálogo, das professoras da escola sede dos/as estudantes participantes nessa pesquisa, os problemas comportamentais antissociais observados decorrem de uma infinidade de outros problemas, em geral associados à vida pessoal e familiar de cada um/a desses estudantes. Na tentativa de organizar e estabelecer as condições necessárias à promoção de novas aprendizagens na sala de aula, por vezes as pessoas se viam aos “gritos”, gesto sem eficácia na comunicação e respeito na sala de aula, situação que dá mostras das dificuldades e desafios a serem enfrentados nos dias de hoje; lugar onde até mesmo as Artes dão ares de impotência (DCI B-7).

Ainda, em meio às atividades lúdicas realizadas nos encontros, de modo a estimular competências e habilidades psicomotoras, sociais e cognitivas, foi possível observar dificuldades por parte dos/as estudantes, tanto psicomotoras como de socialização. Veja-se,

João permaneceu mais retraído e menos motivado nas brincadeiras, não se sabia se era timidez ou dificuldade de aprendizagem. No entanto, na atividade de dança livre, parecia tímida e envergonhada, mas na brincadeira Pif-Paf deu a compreender que tinha dificuldades de atenção e percepção. Na brincadeira Amarelinha, apresentou dificuldades psicomotoras, como coordenação do corpo, equilíbrio, noção de espaço e ordenação dos movimentos, o que pode apontar para algum comprometimento da motricidade (DCIII B-7).

A participante professora Carol, antes da entrada dos/a participantes no palco, perguntou-lhes da sensação de se apresentar, ao que disseram estar com vergonha e nervosismo, assim: “frio na barriga” e “agonia de começar logo”. Ao fim da apresentação disseram que sentiam alegria e felicidade (DCXVII B-5). Ainda, no camarim, Carol perguntou dos sentimentos suscitados por ocasião da primeira apresentação, ao que Ana disse: “Muito bem, porque eu amo fazer o teatro”. Em relação às outras duas apresentações, Carol assim observou: “Está muito mais melhor nas falas, os meninos falam mais alto”.

Para Nanda, que de início se autodeclarou nervosa, com medo e vergonha, acabou dizendo: “quero fazer mais, muito mais vezes, outros”, e ainda tentou estimular Ana, ao dizer: “Assim ó Ana, fala assim: eu consigo, eu consigo, eu consigo, eu posso, eu consigo, entendeu? Você vai dar conta, você já deu conta, você já deu conta nos ensaios”. Lola, que também se disse com vergonha, embora gostasse de se apresentar, ao ser perguntada como era se apresentar no palco, disse: “Aí eu consigo”, e Di acrescentou: “Penso positivamente!”. Dito isto, Carol perguntou a Di como era a sensação do momento após a apresentação, e ela respondeu: “Depois acabou, aí eu fico triste porque eu queria fazer mais”. Para Mi, “É meu sonho, porque eu nunca fiz teatro”. Lola (sensação de quando está no placo): “Linda, perfeita, diva”. Fani: “Eu me sinto vergonhosa eu morro de medo porque se esses meninos rir eu vou sair correndo atrás deles” (DC XVII B-8). De acordo com as falas, podemos dizer que mesmo sentindo vergonha, a satisfação em se apresentar foi uma constante. Ou seja, lidar e vivenciar situações de exposição e vulnerabilidade é enfrentar dificuldades e desafios, como modos, e não promessas, de tantas possibilidades de revelação e satisfação pessoal.

A categoria C, Envolvimento, participação e colaboração, diz respeito à forma como os/as participantes se envolveram e participaram das atividades propostas, cooperando uns com os outros e promovendo a integração das diferentes áreas que compunham o processo de construção-reconstrução de performance (música, teatro e literatura).

Conforme Kater (2004), a música é, essencialmente, um fenômeno social e, educar pressupõe a existência de formas de engajamento social, de relacionamento e de troca de ideias entre seres humanos. Com o desenvolvimento das atividades coletivas, foi dada a oportunidade de os/as estudantes compreenderem, por meio da prática, a importância de ser cooperativo, da parceria e respeito ao outro e a importância da cooperação e integração no convívio produtivo e criativo com o outro. A figura 3 ilustra tais observações, do trabalho em equipe e sua representação. Ainda, em um dos encontros, Di avisou que Milly (estudante que representa Liz na cena “Parabéns para você”) havia faltado, oferecendo-se para substituí-la (DCXIV C-3). O estudante Zé, em geral desinteressado das atividades, ao ser solicitado para segurar e carregar o teclado, atendeu prontamente. E sempre que se tratava de organizar e distribuir os instrumentos musicais, lá estava ele, curioso, atento, pronto para colaborar (DCXIV C-1).

Figura 3: Ilustração de uma das cenas de O Jardim de Liz, de autoria da estudante Mi / Fonte: Acervo pessoal.
Figura 3: Ilustração de uma das cenas de O Jardim de Liz, de autoria da estudante Mi / Fonte: Acervo pessoal.

Além do gosto pelas artes, tais atividades despertaram uma melhor convivência e socialização entre os/as participantes, os quais interagiram entre si, exercendo suas individualidades em meio à coletividade, o grupo que encenava uma performance envolvendo música, teatro e literatura. O espírito de colaboração e empenho entre os/as participantes na realização das atividades foi uma constante, desde o encontro com as pesquisadoras no portão da escola até arrumação das carteiras e refinamento com os mínimos detalhes de marcação de cenas, memorização de falas, fraseologias e instrumentação musicais (DCVI F-4). Ainda, perguntavam-se entre si se as atuações (teatrais e musicais) estavam boas ou não, aperfeiçoando e aprendendo sempre mais naquilo que se propuseram a realizar.

No portão de entrada da escola era uma verdadeira euforia: pesquisadoras chegando e as crianças, correndo, compartilhavam novos saberes e fazeres, assim: “Decorei minha fala!”, “Já tô tocando direitinho!”, “Que dia vai ser nossa apresentação?” (DCVII F-1). E Lola, muito empolgada, chegou a solicitar que não fosse colocada nenhuma pessoa em seu lugar, no papel de Liz, caso ela faltasse em algum dos encontros (DCVII F-4).

Considerações finais

Com base na análise dos dados coletados, bem como em nossas experiências e vivências como participantes pesquisadoras no projeto de pesquisa intitulado Práticas artísticas e musicais como força potente na revelação de dificuldades de aprendizagem e socialização, podemos dizer que o fazer artístico e musical apresentou-se como “[…] um fenômeno multidimensional, que envolve dimensões culturais, afetivas, sociais e estruturais” (Martins, 2015, p. 99).

À medida que os encontros aconteciam, que os laços de convivência se estreitavam, que os/as participantes viam materializado em performance o que até então era apenas ideia, podia-se perceber o resultado positivo e o entusiasmo das pessoas envolvidas no processo de construção-reconstrução de performance. Considerando-se as individualidades em meio à coletividade, foi perceptível a melhoria do trato entre as pessoas, de maior respeito e aceitação mútua, mesmo em face dos diferentes papéis e funções exercidas no trabalho performático inspirado na obra O jardim de Liz, de Polyana Matumoto. Acreditamos que a percepção de si mesmo, do eu de cada um/a, foi ampliada e aprofundada no trabalho coletivo, como modo de se perceber como indivíduo, ou seja, quem verdadeiramente se é.

É importante ressaltar o fato de que a escola possui um papel essencial na formação de um indivíduo, cuja formação implica construção de valores éticos, de cooperação, inclusão, de aceitação e de transformação social e pessoal. Práticas artísticas e musicais promoveram o desenvolvimento de várias habilidades como: a oralidade, desinibição, movimentação corporal, concentração, memorização, dentre outras. Em relação a isso, a possibilidade de ser, ao mesmo tempo, participantes e pesquisadoras em uma escola pública, nos colocou imersos em uma situação a qual se revelou potente na apreensão de modos de ser, de conviver, de aprender, de se sentir capaz e orgulhoso de si nas práticas musicais e artísticas realizadas.

Assim, podemos dizer que as práticas desenvolvidas nesse projeto de pesquisa se revelaram um campo fértil para estudos aprofundados em Educação, Arte e Psicologia, o que nos leva a crer que é preciso dar continuidade aos trabalhos de pesquisa para melhor compreender em que medida práticas artísticas e musicais contribuem para o levantamento de dificuldades de aprendizagem e socialização, tema de nossos estudos.


 

* Priscilla Queiroz Messias é graduanda em Psicologia na UEMG/Ituiutaba, bolsista FAPEMIG. E-mail: priscila.queirozm@hotmail.com.

** Denise Andrade de Freitas Martins é doutora em Educação (UFSCar) com Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), Maputo/Moçambique (bolsista CAPES); professora na UEMG/Ituiutaba; pesquisadora na linha de Práticas sociais e processos educativos. E-mail: denisefmatins@outlook.com.

 

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Notas

[1] Os nomes são fictícios, de modo a garantir ética e privacidade na pesquisa.

[2] Sinopse: Liz era uma garotinha que possuía uma beleza única, sorriso fácil e bom coração. Passava a maior parte dos seus dias no jardim de sua casa, que tanto amava! Aconteceu que chegou o dia de seu sétimo aniversário. Sua mãe, que adorava preparar festas e recepções, não perderia a oportunidade de dar uma bela festa à sua amada filha. Enfim, chegara a hora de cantar Parabéns. Seu coração estava extasiado e batia cada vez mais forte ao se aproximar o momento de seu pedido especial. Quando finalmente a música terminou e os gritos e palmas explodiram, Liz fechou os olhos, desejou profundo, sus- pirou com fé e soprou as velas de uma só vez. Por um milésimo de segundo tudo parou e algo mágico estava para acontecer. Mal sabia Liz que estava prestes a viver uma grande aventura! Seu desejo de aniversário de descobrir os segredos de seu jardim havia se realizado e ela poderia conhecer todos os Alam que moravam nele. Os Alam eram os seres mágicos da natureza responsáveis pelas transformações que ela assistia dia após dia; em cada renascer, em cada florescer, em cada reviver de seu jardim do coração. Com cada um deles, Liz aprendeu lições valiosas, que a guiariam por toda a sua vida.

[3] Os encontros aconteceram nas salas de aula da escola sede dos/as estudantes participantes, com exceção das apresentações (três ao todo), as quais foram fora da escola sede.

dossiê
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MÚSICOS CALLEJEROS: ECONOMÍA POPULAR Y PENSAMIENTO ACADÉMICO

Resumen: Este trabajo constituye una reflexión acerca de los “músicos callejeros” que han encontrado en la música una herramienta de trabajo para organizarse en los espacios públicos a través del empleo informal en la ciudad de Bogotá. A partir de este escenario se toma como punto de partida la descripción del contexto bogotano; la playita (lugar donde se ubican los mariachis – música mexicana), y la “carrera séptima” (una de las principales vías de la ciudad de Bogotá) por ser espacio de encuentro cultural. Así, para finalizar se hace énfasis en la exploración social alrededor del fenómeno del trabajo informal como economía popular que posibilita el trabajo en la ciudad, y en este sentido; se expone cómo la universidad puede hacer presencia, incorporando diálogos con la sociedad de la cual debe partir su interés de investigación para ofrecer una educación coherente con las necesidades de la ciudad.

Palabras claves: Economía popular; trabajo informal; música; Bogotá.

Abstract: This work is a reflection about the “street musicians” in the city of Bogotá, as they have found in music an useful tool of work and arrangement of themselves in public spaces through no legal employment.  As a starting point is described “little beach” and the “seventh avenue” due that are parts of the city where cultural meetings are usual. Finally the phenomenon of illegal work in a needy economy environment is explored. It open opportunities to the university and society of research and offer possibilities of education according with the needs of the city.

Keywords: Popular economy, informal work, music, Bogotá.

 

Introducción

Para establecer cifras respecto al empleo informal en Colombia, se toman algunos determinantes a partir de los estudios del DANE (2018) dados por: la seguridad, formalidad e informalidad. En este orden de ideas, durante el 2017 y 2018 la cotización de seguridad en 13 ciudades fue del 50,5% y en 23 áreas metropolitanas de 49,2 % alcanzando los niveles más altos desde 2007. Del mismo modo, en el mismo periodo la proporción de ocupados informales en 13 ciudades fue del 47,0% y en 23 áreas metropolitanas de 48,2 % uno de los niveles más bajos desde 2007. La población informal por rama de actividad en estos últimos años 2017, 2018 se concentró en Comercio, hoteles y restaurantes y la población ocupada informal, constó principalmente de trabajadores por cuenta propia (independientes, oficios varios, entre otros) quienes representan el 61,5% de la población del total de las ciudades y el 63,0% en áreas metropolitanas. Respecto al trabajo formal tenemos que el 53,0% y el 51, 8% respectivamente, compuestos por empleados 78,6% y por cuenta propia 12,6% en ciudades con 77,3% y en áreas metropolitanas 13,1%. A partir de este contexto, este trabajo establecería una meditación para pensar en políticas publicas en torno al trabajo informal, matizado especialmente en este trabajo por artistas y músicos que ocupan el espacio público en la ciudad de Bogotá para suplir la ausencia de trabajo formal.

Desarrollo – Contexto de la ciudad de Bogotá

La ciudad de Bogotá constituye una mezcla exquisita de sensaciones que sirven como esquema para enriquecer la cultura y estimular la vida de las personas que habitan allí. Sus calles son angostas con muchos carros y está sectorizada por necesidades de consumo, Ejemplo: talleres de mecánica en el barrio 7 de Agosto, venta de bicicletas en barrios Unidos, zona de bares por el Restrepo, Primero de Mayo, Chapinero y repuestos de toda clase de artículos en el barrio San Victorino (nombres de barrios). El Instituto Distrital de Turismo de Bogotá (2016) durante el primer trimestre de 2016, menciona que: el turismo en Bogotá ascendió a 293, lo que representaría un incremento del 10.3%, respecto al 2015, y para el último censo de 2017 la ciudad de Bogotá contaba con 8,081 millones de habitantes.

Colombia al 1 de noviembre de 2016, según el Registro Único de Victimas (RUV)[1], relaciona un total de: 8.268.758 víctimas registradas, 7.970.190 de víctimas del conflicto armado, 6.301.558 víctimas sujetos de atención, 298.568 de victimas sentencias, 226.475 víctimas sujetos de atención y 72.093 víctimas directas de desaparición forzada, homicidio, fallecidas y no activos para la atención. Las víctimas del conflicto armado en el país se dan mayormente por desplazamiento con 7.011.027 personas, en segunda instancia por homicidio con 983.150, y en tercer lugar por amenazas 325.300. Razón por la cual el desplazamiento de colombianos a ciudades como Bogotá se hace cada vez más evidente. Por otro lado, la llegada de venezolanos a Colombia asciende, según Iván de la Vega (2017) al 1,8 del total de la población colombiana, haciéndose más notoria en la ciudad de Bogotá.

Con el desplazamiento interno el campo ha sido en gran parte abandonado y muchos de los campesinos no quieren regresar a su lugar de origen. Con esto, y de cara a la solución de los problemas que debe enfrentar el gobierno colombiano, surgen grandes retos a la hora de pensar el fenómeno, entre ellos la construcción de políticas públicas para la organización del espacio público en torno al trabajo informal como opción económica y oportunidad de enfrentar las grandes brechas económicas que no brindan muchas oportunidades, tema que además debe incorporarse en por la universidad colombiana con urgencia.

La economía popular y el trabajo informal de los “músicos callejeros”

La economía popular, sería: la organización de los sectores informales entorno a la estabilidad económica de comunidades. A partir de esta mención y para darle movimiento a la reflexión se acude a la música como motor de pensamiento que contiene en sí, material para que se dé el trabajo informal de los artistas callejeros que ansían sobrevivir y fortalecer la construcción del tejido social a través de resignificar el trabajo y bajo otras lógicas que surgen cuando el ciudadano es abandonado por el Estado y encuentra una oportunidad en la calle. Considerando lo anterior, el trabajo en las calles de la ciudad de Bogotá se puede ver también como una oportunidad para “organizar comunidades” desde diferentes posibilidades: políticas, culturales y económicas. Incluso podemos mencionar otra derivación del fenómeno margado por la oposición a la propiedad privada a través de los artistas amateur quienes no creen en las lógicas de control:

… consideran que simplemente no registrando la obra están haciendo manifiesta su posición contraria a este sistema y su vínculo con la propiedad privada o simplemente dejando su obra por fuera de la lógica legal del control. (Botero, 2007, p. 16).

De este modo, la música por ser una expresión simbólica y cultural aparece en las comunidades de una manera libre, como dice Melo (2015), enriqueciendo la cotidianidad y permitiendo el desarrollo cognitivo, emocional y los valores. Según el Ministerio de Cultura de Colombia (2012), la música es fundamento de conocimiento social y para Colombia, representa diversidad de expresiones como producto del mestizaje, de geografía, de cultura, y de la conversación activa que las personas tienen con mundo. A través de la música se expresa el universo de los ciudadanos- bogotanos lleno de lenguaje. Lenguajes que pueden obedecer a categorías culturales que el hombre va estableciendo y rompiendo con el tiempo incluso en la red virtual donde confluyen millones de identidades de todas partes del mundo.

Artistas de la carrera séptima, Bogotá  Foto: Edwin Murillo, 2017
Artistas de la carrera séptima, Bogotá
Foto: Edwin Murillo, 2017

Uno de los múltiples acercamientos a la informalidad de la música, se puede estudiar con el análisis de la música popular como un concepto occidental que se adopta en Norte América como “pop music”. Aparece en América Latina y por supuesto en Colombia como música fusionada que busca aires de identidad nacional y apertura de la cultura en desarrollo. De esta manera, Cortés, citado por Ospina (2012), menciona que en América Latina aparece el “nacionalismo musical” (conjunto de iniciativas oficiales y privadas que buscan desarrollar expresiones musicales) para cambiar la idea unifica de nación y Colombia no fue ajena a esto.

La música, conceptualmente hablando: es el arte de combinar sonidos en el tiempo de donde se desprende la armonía, la melodía y el ritmo. Para expresar con mayor profundidad el concepto, se trae a colación la siguiente definición:

…conjunto organizado de sonidos en movimiento, articulado en moldes que no se derivan exclusivamente de idiomas lingüísticos, producido y percibido como intencional, lo que significa que la música es siempre un artefacto y nunca resultado del azar (no hay música natural ni puramente aleatoria); que la música es producto de una actividad proyectiva, más o menos consciente, y que incluye una dimensión comunicacional en la que la actividad proyectiva es, por lo menos, percibida como tal por eventuales receptores; y, además, que, de ser así, la música presupone un conjunto de convenciones que permite algún nivel de interpretación común, y puede decirse que el conjunto de convenciones que hacen comunicable el proyecto constituye un sistema musical y que las cualidades que se le atribuyen a la música están relacionadas con la construcción y las interpretaciones de ese proyecto (Melo, 2013, p. 4).

Pero en realidad: ¿todo el público escucha esta música “perfecta” en su definición? ¿La música puede ser una posibilidad para todo aquel que quiere improvisar con ella?

La “Música Callejera” podría ser una expresión improvisada de cara a la economía popular, la antropología por ejemplo respecto a esta necesidad de improvisación, manifiesta la recursividad de lenguaje que tiene el hombre; que todo el tiempo tienden a la transformación. Y con esta transformación del lenguaje la música recrea situaciones para que el hombre cree y se embarque en una fiesta independientemente del espacio en que se encuentre. Beuchot (2013):

Es cierto que hay una música apolínea (dórica), la cual es medida y calculada de antemano, mientras que la música dionisiaca (ditirambo) – que es la esencia de toda la música- es un torrente violento e implacable, el cual exalta todas las facultades sintéticas del hombre (p. 30).

El estudio de la música es multidisciplinario y con la antropología se puede decir que existe una mediación, un acercamiento analógico entre la música y la experiencia de quienes la sienten, independientemente del uso que le den.

Nuevas tecnologías para las mercancías musicales: la red y la calle

Con de la revolución industrial el hombre empieza a reproducir mercancías en masa y el fenómeno de la música no es indiferente a este momento histórico; la música se empieza a revelar a través de la tecnología, presentándose como una actividad imparable donde confluyen las culturas del mundo. Márquez (2013) lo describe de la siguiente manera:

Sólo en la primera década del siglo XXI, la música ha tenido que hacer frente a fenómenos tan decisivos como la revolución del MP3, la aceleración de Internet, los nuevos sistemas de grabación digital (ProTools, Reason, Ableton), la popularización de los sistemas de intercambio de archivos P2P (Napster, Soulseek, Torrent, Kazaa, eMule), la piratería (los denominados “top-manta”), las tiendas online (iTunes, Amazon, eBay), el iPod (y su consiguiente generación, la “generación iPod”), los portales musicales (Pandora, Rhapsody, Last.fm, Spotify, Grooveshark), las redes sociales (MySpace, YouTube, Facebook), los sistemas de identificación (Shazam) y de recomendación musical (MyStrands), el auge (y negocio) de los festivales musicales, o la generalización de los netlabels o sellos digitales (p. 19).

Esa manera de producir mercancías se torna inmediata a la apertura económica y al alcance de la mayoría de las personas. Ahora existe, música por computador, por celular que se hace masiva, Eje. “MC Loma”, en Brasil con el video casero llamado “Envolvimento”, que agitó el carnaval de 2018. Con este ejemplo se podría indicar que la música constituye una necesidad espiritual y en este momento resulta imposible no acceder a ella. Las personas que quieren pueden hacer música por medio de tutoriales de internet, diseñar instrumentos, hacer instrumentos sonoros, publicar productos musicales en plataformas de distribución y hacer publicidad y marketing- mediático, entre otras mil cosas. Aparecen nuevos sujetos, Eje. Los que producen- los que consumen: “prosumidores”[2]. “La industria de la música, lejos de desaparecer en este nuevo escenario, se reinventa continuamente con el fin de proponer contenidos atractivos que se adapten a los nuevos gustos del prosumidor”. (Buil y Hormigos, 2016, p. 56). Lo que representaría otra forma de acceder al trabajo informal.

La red, igual que la calle se ha convertido en una oportunidad para los músicos académicos y empíricos; representan escenarios para la empatía entre personas. Y en esa medida, las personas que toman la música como herramienta económica también ven en la calle u otros espacios públicos escenarios de trabajo, independientemente del género que interpreten. “Hacer música” se convierte en un suceso para todos, además que generar oportunidades de empleo pero en la calle. Por ende “El rebusque”[3] a través de la música, instauraría una oportunidad de tener dinero.

… se está produciendo música en Colombia fuera del modelo económico que tradicionalmente emplea la industria cultural. La intención es aproximarnos a la idea de producción cultural musical desde el concepto que se viene construyendo alrededor de los denominados modelos de negocios abiertos e identificando elementos de lo que se viene conociendo como librecultura. (Botero, 2007, p. 5).

El fenómeno del trabajo informalidad – “músicos callejeros”

Abordando el concepto de “informal” – dentro del ámbito de la economía popular se puede explorar desde varios puntos de vista y desde varios agentes ya que es un concepto heterogéneo, como lo menciona Maloney y Saavedra, citado por Jean (2017), quienes clasifican a los agentes del trabajo informal así:

… especialmente los viejos y los jóvenes, que preferirían trabajo con la protección laboral estándar, pero que son incapaces de conseguir uno. Microempresarios: sin potencial para crecer y, por tanto, sin ninguna intención de involucrarse con las instituciones de la sociedad civil. Y microempresarios a quienes se ha imposibilitado su expansión a causa de excesivas barreras para registrarse con las entidades del gobierno y que, por tanto, tienen acceso a otros insumos que ofrece el sector informal (Jean, 2017, p. 21).

Desde el punto de vista económico se podría decir que la economía popular ligada a la informalidad también se refiere a la producción, distribución y comercialización de la música a través de los artistas callejeros. La “música callejera” también se podría describir como una economía popular (informal) dónde los sujetos se organizan en torno a la posibilidad de tener dinero; músicos que se ubican en lugares públicos de la ciudad, en bares y en calles concurridas como estrategia para conseguir clientela.

Más allá, el término informal significa: “no se apega a las reglas”, “lo que no estás sujeto a reglas protocolarias, ceremoniales o solemnes, sino que es propio del trato entre amigos y familiares” (The free dictionary, 2016). Es un concepto que expresa comodidad y en este sentido la “música callejera” es “música que se hace cómodamente” y por “determinados grupos sociales” que no atienden a las reglas del espacio público.

Festival Hip Hop al Parque- Bogotá Foto: NuestroStylo, 2017
Festival Hip Hop al Parque- Bogotá
Foto: NuestroStylo, 2017

Ahora bien, y respecto a la economía popular, el “músico callejero” realiza actividades de bienes y servicios culturales para sobrevivir económicamente; sin ser reconocido por el Estado. Muchos carentes de los derechos sociales, como lo menciona César Giraldo en el prólogo de su libro: Economía Popular desde abajo, (2017):

¿Qué tiene en común una recicladora, un taxista, un vendedor de San Andresito o un ambulante? la respuesta es que todos realizan actividades que se inscriben en la economía popular. Todos son “rebuscadores”, trabajadores que le entregan su vida a la sociedad, suministrándole bienes y servicios básicos, pero que, a pesar de ello, no son reconocidos ni reciben un mínimo de derechos sociales.

“Músicos callejeros”, carrera séptima y la playita

Así, en la ciudad de Bogotá, y para ejemplificar el ambiente de los músicos de las calles se vislumbra “la carrera séptima” como una de las principales vías que conecta a Bogotá de sur a norte, y más exactamente hacia el sur- centro de la ciudad. La carrera séptima es un espacio de encuentro familiar y de amigos, epicentro de manifestaciones: espacio político, económico, cultural y artístico. Ha sido sede de asesinatos, de manifestaciones importantes y de festivales artísticos. Actualmente, la carrera séptima es el principal espacio artístico, cultural y recreativo de la ciudad, sobre todo los fines de semana. Encontrándose con la Plaza de Bolívar. “La séptima” está ocupada siempre por artistas callejeros y vendedores ambulantes, allí las personas encuentran una plaza para caminar, mientras asisten a las diferentes presentaciones de artistas callejeros. Con todo este movimiento, hay días donde las personas tienen que caminar despacio por la gran cantidad de transeúntes que asisten; además, porque se topan con “el mercado de las pulgas”[4] donde se acostumbra a detener el público.

Bogotá Foto: Mariachi México, 2018.
Bogotá
Foto: Mariachi México, 2018.

En este lugar se encuentran personas victimas del desplazamiento que vienen de distintos lugares o personas que simplemente quieren trabajar. Familias de diferentes ciudades, con bandas musicales donde cada uno cumple un roll. Grupos de raperos, bailando “Break dance”[5] por turnos e interpretando sus cantos. Grupos de rock, salsa… entre otros.  Hombres, mujeres, niños y ancianos trabajando; estableciéndose alrededor de ellos unas reglas y una organización respecto al espacio donde se ubican, pero ¿cómo se relacionan entre ellos y cuáles son los límites que se establecen con los vecinos que ocupan la vía? Germán es un muchacho que lleva 3 años trabajando en la calle y dice – los fines de semana trabajo en la carrera sétima y entre semana en el Transmilenio[6] – (2017). Los músicos callejeros se movilizan por diferentes espacios públicos de aforo, se mueven constantemente para hacer su trabajo dinámico. Germán dice- no cuento con seguridad social ni con ninguna ayuda del estado– lo cual origina que trabaje en la informalidad. La economía popular vista desde los músicos informales tiende a la organización sin la intervención del Estado, tanto así, que muchas veces entre ellos logran solucionar servicios básicos como por ejemplo seguridad social.

Para ejemplificar mejor este escenario, los “Mariachis”[7] de Bogotá, por ejemplo los que trabajan en la Playita- “caracas”[8], muestran un modelo de organización en torno a la economía popular. Juan Camilo, dice: – llevo trabando con Mariachis 15 años tocando la trompeta… otras veces he trabajado individualmente. Cuando llega alguien pidiendo serenata se juntan los músicos que están solos y van a tocar-. El trabajo de la música informal esta dado por actividades no programadas que dependen del azar. Dice Juan Camilo: – En el 2017 logré formar el “Mariachi México”, conmigo trabajan varias personas dependiendo los eventos que salgan, para ello tuve que comprar un carro para trasportarnos- La organización en torno al trabajo informal permite que el músico callejero genere empleo y ofrezca estabilidad por lo menos ocasionalmente cuando se organizan.

¿Dónde queda la educación del artista callejero?

Con la masificación del empleo informal y la economía popular se establecen ejemplos de organización social, sin embargo, para generar una mayor alineación de protección de estos sectores se deben crear políticas públicas que beneficien al artista callejero (al vendedor de la calle). Teniendo en cuenta que generalmente “Se realizan investigaciones en torno al fenómeno para coaccionar al trabajador informal” por ejemplo para sacarlos del espacio público y quitarles la mercancía.

Para el fortalecimiento del trabajo de los músicos callejeros, es importante que el Estado genere espacios de aprendizaje y de reconocimiento de leyes. El Plan Nacional para la Convivencia (2012), desde el 2003 otorga programas oficiales, además de las fundaciones sin ánimo de lucro que atienden a la formación musical básica de sectores de escasos recursos con fines recreativos que objetivamente no benefician a los artistas informales dado su sesgo frente al trabajo.

Conclusión – La economía popular “músicos callejeros”- nuevo reto para la educación

El acercamiento a la cultura y a la creatividad como sector económico en Bogotá ha sido empírico, por consiguiente, la caracterización que hasta ahora se tiene del sector, es bastante superficial, teniendo en cuanta que los estudios son mínimos y sectorizados. Al 2018, se puede revisar que son pocas las investigaciones en torno al tema. Sin embargo, estudios como el de La Economía Naranja y otros a cargo de universidades y Ministerios que se toman como referente para pensar el espacio cultural no abordan el tema de la informalidad artística en profundidad, o no logran una distinción fehaciente de esta economía alterna, razón por la cual se propone una reflexión y acción rápida al respecto.

Las Industrias Culturales por su naturaleza amplia y diversa, pueden clasificarse no solamente en el sector industrial, sino también comercial y de servicios; sectores que en conjunto representan un 86,02% del personal ocupado en el país. Desde aquí, se abre paso a la identificación de las necesidades que tiene el sector cultural en el país. Se debe tomar en cuenta por ejemplo los países británicos que realizan inclusión cultural y beneficia a sus artistas con seguridad social y pensión. Donde además, el trabajo de los artistas callejeros se relaciona en el marco cultural de estos países con absoluto respeto reconociendo el enorme aporte al entretenimiento en las ciudades.

A pesar del horizonte que brinda la música callejera en Colombia, esta no es sinónimo de “trabajo decente”[9]. Pero aun así es claro que en su mayoría cumple con la función de entretener al público. Según el documento del Estado del Arte del Área de la Música en Bogotá D.C, elaborado por la Alcaldía Mayor de Bogotá (2009). La Educación musical no formal se constituye como la fracción más amplia y diversa del sector educativo.  Pero ¿qué está haciendo la universidad para conseguir inmersiones y diálogos culturales con la comunidad? Los artistas constituyen en sí un espacio de mercado que se ha venido haciendo empírico y donde siempre vale la pena empezar a hacer investigación académica para el fortalecimiento y el bienestar de quienes integran este nicho.

Los agentes del trabajo informal se toman el mundo sin miedo a ser castigados, hablan de las contrariedades de la sociedad abiertamente. Con ello, el país tiene la necesidad de buscar nuevas estrategias teórico-prácticas; personas preparadas que le hagan frente a los retos del contexto globalizado; que enfrenten las organizaciones mundiales y velen por el manejo óptimo de los recursos culturales. Esta reflexión podría ser insumo de investigación dentro de la universidad colombiana, teniendo en cuenta que lo que está por fuera del control económico también constituye sociedad y país.


 

* Andrea del Pilar Casallas Moya é professora e candidata a Doctor en Estudios Sociales, Magister y Especialista en Docencia e Investigación Universitaria con énfasis en arte y estética y Licenciada en Filosofía y Humanidades. Diseñadora e Investigadora Curricular de varios programas académicos. Investigadora de la Industria cultural y creativa. Directora de Investigación de la Escuela de Suboficiales Sargento Inocencio Chincá, Nilo – Cundinamarca Colombia.

 

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Notas

[1] Registro Único de Victimas.

[2] Acrónimo formado por la fusión entre las palabras productor y consumidor.

[3] Salir a conseguir dinero sin importar cómo.

[4] Mercado de infinidad de mercancías, artesanías o cosas antiguas.

[5] Danza contemporánea de la cultura Hip Hop.

[6] Transporte público de Bogotá.

[7] Música Mexicana.

[8] Nombre de avenida de la ciudad de Bogotá done se ubican los Mariachis.

[9] El trabajo que establece las condiciones que debe reunir una relación laboral para cumplir los estándares laborales (OIT).

dossiê
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A LITERATURA DEPOIS DAS OCUPAÇÕES SECUNDARISTAS

(…)um colégio em que ensinam a dizer “não” a mais
de mil propostas, desde a mais disparatada até a
mais atraente e difícil de se recusar.

Enrique Vila-Matas

 

Resumo: A produção cultural nas ocupações secundaristas em 2015 e 2016, no Colégio Pedro II, esteve marcada pela retextualização de canções, com destaque para o funk, performadas em vídeos publicados nas redes sociais. Nossa hipótese é que essa produção veicula outras abordagens da literatura na escola, atenta a uma economia performática do texto. Práticas de tradução e de vocalização do texto são dois exemplos de performatização abordados, que demandam outro(s) conceito(s) de literatura em relação aos escolarizados no ensino básico.

Palavras-chave: Ocupação secundarista; escolarização; performatização; ensino de literatura.

Abstract: The cultural production during the secondary students’ occupation held in 2015 and 2016 was marked by the retextualization of songs performed in videos published in the social networks, especially funk. Our hypothesis is that such production conveys other literary approaches into school, being aware of a performing economy of the text. Two examples of the performing practices addressed are the translation and vocalization of texts, which require other literary concept(s), different from those offered during basic education.

Keywords: Secondary students’ occupation; schooling; performance; literature teaching.

 

Escolarização, desescolarização

A escola convive com uma marca entre outras que a distingue, no campo da institucionalização dos saberes, das universidades. É comum considerar o problema da escolarização do conhecimento, debruçando-se sobre o desafio de ensinar conceitos para pessoas em fase de maturação intelectual. Assim, tanto a escola quanto a universidade produzem os recursos didáticos, que mimetizam mais ou menos os laboratórios de produção de conhecimento dos centros de pesquisa, e também os currículos escolares, que reorganizam a complexidade dos saberes às vezes em níveis de dificuldade de acordo com o segmento ou a série dos estudantes.

Por exemplo, no momento de se introduzir os estudos linguísticos numa perspectiva textual, no ensino médio, o currículo escolar preconiza, de acordo com uma prática generalizada, o estudo da teoria das funções da linguagem tal como formulada por Roman Jakobson, em 1960. Essa prática é hoje corroborada pela prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), cujas questões relativas a teorias do texto abordam principalmente os gêneros textuais, as práticas argumentativas e as funções da linguagem. São questões que requerem o conhecimento da nomenclatura e principalmente da aplicação da teoria de Jakobson a textos de gêneros diversos, funcionando como uma força de produção curricular desses saberes para a escola brasileira.

Por mais que o debate sobre a natureza e as funções da linguagem seja amplo o suficiente para abarcar pesquisas em áreas das Ciências Naturais e das Ciências Humanas, o processo de escolarização em curso estabiliza a questão e as contradições que participam da pesquisa científica, reduzindo a uma a resposta para o problema: a resposta escolarizada. Assim se organiza uma gramática do conhecimento escolar que presta serviço à autoridade docente mais do que faz justiça aos saberes que ensina, e segue na contramão de uma produção discursiva escolar. Mesmo no momento mais público dessa produção discursiva, a redação do ENEM, o debate gira em torno do tema proposto pela prova e não se leva em conta a produção discursiva dos alguns poucos milhões de jovens e também adultos acerca de temas sensíveis à realidade social do país (o arquivo digital das redações do ENEM não está publicamente disponível para pesquisa). O que sugere ser a escolarização do discurso certa prática de silenciamento que imuniza a fala do aluno ou candidato à universidade, inócua no que diz (a não ser quando transgride os direitos humanos), avaliada quanto à clareza e à organização argumentativas.

Menos comum, no entanto, é pensar a universitarização dos saberes, o que sugere um problema de perspectiva na produção do conhecimento. Uma busca simples no Google Acadêmico retorna aproximadamente 142.000 resultados para o termo escolarização, enquanto a universitarização responde por 513 ocorrências aproximadamente. Não somente há mais escolas que universidades, embora não na mesma proporção, mas principalmente é na universidade que se produz conhecimento sobre a escola, pelo menos o conhecimento academicamente legitimado. A escola, no entanto, funciona como um espaço de produção de conhecimento com base na experiência pedagógica diária muito rico, e temo que a escolarização da escola esteja relacionada com a dificuldade de ela fazer circular esse conhecimento, pouco reconhecido e transmitido, e guardado fora dos livros e revistas acadêmicas.

Práticas de produção literária no contexto das ocupações secundaristas

Daí a importância de a escola trabalhar por sua desescolarização, como vem acontecendo graças a algumas iniciativas. Ao longo do ano de 2016, orientei um trabalho de iniciação científica no instituto federal de ensino em que atuo, o Colégio Pedro II, dedicado a produzir corpus e analisar a produção cultural dos estudantes em ocupações escolares. 2015 havia sido o ano da primeira onda de ocupações escolares, na rede pública estadual de São Paulo. Já trabalhando com a questão da produção literária em contexto escolar, me deparava agora, por iniciativa da estudante Isabella Dias, com outro universo textual muito mais constituído por faixas, vídeos e rostos do que por textos escritos. O final de 2016 nos reservou uma surpresa para a pesquisa: o Colégio Pedro II foi ocupado pelos estudantes, e Isabella Dias atuou diariamente na ocupação que persistiu por dois meses. Depois do processo de ocupação, eu e Isabella Dias criamos um grupo de trabalho com outros dois estudantes que atuaram em outras ocupações escolares, quando pude começar a compreender melhor alguns aspectos que estavam em jogo na produção cultural desses estudantes.

As ocupações secundaristas em 2015, na rede pública estadual de São Paulo, e depois em 2016, nas redes estaduais de São Paulo e Paraná e na rede pública federal espalhada pelo país, deram um importante passo nesse sentido, na medida em que o processo pôs em jogo outros modos de produzir currículo: a campanha por doação de aulas, a realização de aulas tendo como objeto saberes não escolarizados, os shows realizados por artistas com inserção na mídia de massa de repente tornavam a escola muito mais permeável aos saberes que circulam dia a dia à margem dela.

Mas foram principalmente as responsabilidades por segurança, limpeza e alimentação assumidas pelos estudantes que fizeram emergir os pilares pretos dos saberes que sustentam a rotina escolar, já que essas três atividades são exercidas na escola pública em geral por funcionários principalmente negros, terceirizados e precarizados em suas relações de trabalho. Por fim, a atuação nas mídias sociais como estratégia de legitimação social das ocupações conferiu o caráter público a parte dessa produção discursiva, que muitas vezes circulou na forma de vídeos representando jograis e cantos de ocupação performados por grupos de estudantes, nas escolas ou nas ruas. Nesses atos públicos e nos vídeos que os veicularam praticamente se desenvolveu um novo gênero, formado pela interseção entre as práticas políticas dos movimentos sociais (assembleias, discursos, palavras de ordem) e o consumo de cultura pop veiculada nas mídias sociais (performatização dos corpos, cultura do hip hop e do funk, processos de memetização e viralização do discurso).

Inúmeros cantos de guerra das ocupações secundaristas foram formados parodiando funks. Ainda na primeira onda das ocupações, um primeiro registro retomou signos da resistência à repressão na década de 1970: uma turma de estudantes vendados, em sala de aula, cantando em coro “Cálice”, de Chico Buarque e Milton Nascimento, misturado a versos de “De grão em grão”, da cantora gospel Aline Barros, e de “Para não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré (Trocando em Miúdos, 2015).

 

 

Performado em sala de aula, o coro de vozes em uníssono demonstra ter aprendido a lição sobre a história política e cultural do país nos anos de chumbo, cantando de cor a canção símbolo de resistência, apropriando-se ainda de outras duas canções, numa montagem cuja força reside na emulação da derrota que denuncia a força do ataque, reside na alegorização do poder repressor. As vendas nos olhos, a imobilidade dos corpos, a memória do regime de exceção política contrastam, no entanto, com a menção à canção gospel e os versos: “Está na hora de crescer, passar a limpo esse país / devolver pra nossa gente o dom de ser feliz”. Também a veiculação ampla nas redes sociais confere ao vídeo o caráter de anúncio distópico, de que a reorganização escolar proposta pelo governo do estado de São Paulo tocava num ponto sensível da escola contemporânea: a tensão entre as políticas de parametrização do ensino nas redes públicas e as práticas pedagógicas obsoletas assentadas na escola contemporânea.

É preciso cantar em coro e é preciso viralizar o canto coral a fim de evidenciar as demandas: a produção de uma comunidade de vozes e o uso social da tecnologia no ambiente escolar. Mas sobretudo é preciso notar a relação com a produção literária que os cantos de ocupação põem em cena. Ainda em 2015, duas canções foram veiculadas em apoio às ocupações, o rap “Ocupar e resistir”, de Koka e Fabrício Ramos, e “O trono do estudar”, de Dani Black, que foi gravada a muitas vozes, como as de Tiê, Zélia Duncan, Tetê Espíndola, Chico Buarque, Arnaldo Antunes, Tiago Iorc, entre outros. O rap, abordando a luta política que uma ocupação representa, desenha a singularidade dessa luta, referindo-se também ao caso do Chile e da luta pela gratuidade do ensino público. O traço de imaturidade política que o jovem secundarista tende a receber, imunizando o seu discurso, é reconhecido pelo rap e justifica a força do movimento de ocupação, que irrompe como uma demonstração de que a experiência supera a precariedade institucional e o silenciamento do discurso: “Direita, tropa de choque, / em cima, o governo fascista, / esquerda, argumentação, / embaixo, secundarista”.

 

 

“O trono do estudar” canta na forma de um repente o elogio do estudante, reconhecendo nele uma soberania irredutível à consolidação de práticas pedagógicas inertes, a exemplo da naturalização da sala de aula como laboratório de alienação das relações sociais (“E nem me colocando numa jaula / porque sala de aula essa jaula vai virar”). A forma popular do repente encontra a afirmação de uma realeza senão do estudante, do estudar, desenhando no refrão uma sociedade em harmonia entre campo e castelo, em que as relações de propriedade se perdem no ato do estudo: “Ninguém tira o trono do estudar, / ninguém é dono do que a vida dá”.

 

 

O estudante no limiar da política ou das relações sociais parece desmentido pelos ocupantes secundaristas, que procuraram mandar recados claros em forma de funk nos vídeos veiculados e viralizados durante as ocupações. Foi o caso de uma performance realizada por atores da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, do Rio de Janeiro, nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no dia 9 de março de 2016. Dois vídeos disponíveis no YouTube mostram o grupo de pouco mais de 20 pessoas atuando e cantando uma paródia de “Baile de favela”, do MC João. A letra foi retextualizada para o contexto da crise financeira do estado do Rio de Janeiro, mas a certa altura produz uma curiosa montagem entre a experiência cultural de um jovem das classes populares e um caso notório de corrupção entre Estado e uma construtora privada: “Quer ler livro, acha que merece, / quer ir ao teatro, acha que merece, / quer ir ao cinema, acha que merece. / O governador deu a cultura pra OAS” (“O Julgamento do Pezão (Paródia Baile de Favela) #MartinsSemPena”).

 

 

Curiosa montagem porque o enunciado do texto volta-se perversamente contra o enunciador, fazendo pouco caso do desejo de inserção no mercado de consumo cultural (“acha que merece”). O texto encena uma voz inimiga como estratégia de legitimação do discurso de oposição que enuncia, procurando evidenciar a dependência entre políticas de democratização da cultura e a corrupção na gestão da coisa pública. Estratégia que lembra certos procedimentos autoirônicos de poemas contemporâneos, notadamente de Angélica Freitas, cujos poemas em forma de canção ainda retomam a performatização do canto no texto escrito: “são porcas permanentes / mas como descobrem os maridos / enriquecidos subitamente / as porcas loucas trancafiadas / são muito convenientes” (“uma canção popular (séc. XIX-XX)”, Freitas, 2013, p. 15). Por fim, a paródia produzida pelos estudantes repete um procedimento que o funk original já realizara sobre um trecho como: “Ela veio quente, / hoje eu tô fervendo”, que é quase o decassílabo sáfico cantado por Erasmo Carlos em 1967: “Pode vir quente que eu estou fervendo”.

 

Registro da performance dos atores da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, do Rio de Janeiro, nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no dia 9 de março de 2016 Fonte: YouTube
Registro da performance dos atores da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, do Rio de Janeiro, nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no dia 9 de março de 2016
Fonte: YouTube

 

Outro vídeo publicado em maio de 2016 mostra um grupo de jovens em frente a um prédio da polícia militar de São Paulo cantando para a câmera gritos de guerra em defesa da ocupação escolar. Alguns desses jovens aparecem em outros vídeos publicados pela rede entoando os mesmos cantos, como o que canta pela conciliação da família que teme pelo filho ocupante. “Mãe, pai, tô na ocupação, / e só pra tu saber eu luto pela educação” (“secundaristas”).

 

 

Agora os lugares do saber são recolocados e os filhos procuram dar lição aos pais, o que se justifica pelo objeto da luta: eu preciso ensinar que eu quero aprender. Os vocativos monossilábicos iluminam certa atomização do discurso, monossilábico como é próprio da abreviação que a linguagem oral imprime a inúmeras palavras da língua, mas também como é próprio da criança que começa a falar. Polissílabas mesmo somente as palavras que rimam e entram num acordo entre som e sentido: ocupação/educação.

Registro de performance na qual estudantes secundaristas de escolas públicas do estado de São Paulo entoam cantos em defesa das ocupações Fonte: Vimeo
Registro de performance na qual estudantes secundaristas de escolas públicas do estado de São Paulo entoam cantos em defesa das ocupações
Fonte: Vimeo

Dedicar a atenção da leitura para essas produções significou não somente estudar que literatura se produziu durante as ocupações, como também indagar que procedimentos de composição literária operam nesse discurso por uma outra escola. A canção como forma do poema em performance pública é uma constante nessa produção, mas também na produção da poesia contemporânea. A ponto de, num ensaio recente, Flora Süssekind ler a resposta que a produção poética tem dado à vida política do país por meio da retomada de “um modelo paradigmático na constituição da literatura brasileira – o das canções do exílio” (Süssekind, 2016). A instabilidade institucional em que a vida política tem lançado o país nos anos recentes, com a emergência de uma polarização política manifesta no dia a dia do trabalho e da família e a eleição da escola como campo de disputa político de um país futuro entram em atrito com textos que cantam um exílio sem deslocamento entre línguas ou países, um exílio interno. Cantado também pela performance dos corpos midiatizados em rede social, cantado para a viralização e a memetização do texto (sobre a relação entre ocupação e poesia, ver também Barbosa, 2017). Um pouco como poemas que vêm sendo escritos diretamente na caixa de texto da timeline do Facebook, de que são exemplos os trabalhos de Tarso de Melo (Íntimo desabrigo, 2017) e Alberto Pucheu (Para que poetas em tempos de terrorismos?, 2017), ou ainda poemas produzidos pela apropriação de mensagens inbox ou postadas por amigos, de que é exemplo o trabalho de Carlito Azevedo (Livro das postagens, 2017), ou então poemas que se apropriam da ata da sessão na Câmara dos Deputados que decidiu pelo impeachment de Dilma Rousseff, como se lê em Sessão (2017), de Roy David Frankel. Por fim, o canto coral ou jogral insistente nas ocupações parece fazer par com os coletivos de poesia que têm convidado à leitura e à produção dos poemas em convivência, seja por meio de oficinas literárias cotidianas (Oficina Experimental de Poesia), saraus abertos a novas poéticas (CEP 20.000 ou Sarau do Escritório), edição “ao vivo” junto com os autores (Editora kza1), eventos de leitura e debates (Mulheres que Escrevem). A expansão do slam poetry no Rio de Janeiro em 2017, com a criação, entre outros, do Slam das Minas RJ e, a partir dele, do coletivo Poetas Favelados, é mais um exemplo da força dessa cena que convoca a voz, o corpo, o vídeo e as redes sociais para a produção poética.

O que significa ensinar literatura na escola?

Também a escola, por outro lado, tem comparecido nos poemas e romances produzidos recentemente. Um narrador que sonha com uma escola pública federal de ensino médio, colégio de aplicação da Universidade de Brasília, sendo invadida por forças policiais:

Professores, estudantes e funcionários do Centro de Ensino Médio cercavam a escola; capacetes se juntavam em caminhões e jipes enfileirados na avenida L2. O último a discursar foi o Geólogo, sentado nos ombros do Nortista. O zumbido do megafone não apagava a voz do líder: … fechar uma das melhores escolas do Brasil… Um ato arbitrário e infame de um governo despótico… A voz ainda ecoava quando uma poeira vermelha cobriu o campus (Hatoum, 2017, p. 147).

Brasília eternamente em construção sob a névoa, como nas fotografias de Marcel Gautherot, se repete na cena do romance mais recente de Milton Hatoum, e a sensação é que os anos 1970 quando se passa o sonho do romance são a um tempo história e distopia da escola contemporânea. Porque a escola, digamos, não vai bem quando reproduz, como em geral acontece, as relações que reforçam a divisão social: “infância: menino contra menina / adolescência: menino encontra menina / é claro que assim não tem como dar certo” (Dimitri BR, 2016, p. 41). É um erro de escuta revelador do acerto das relações, como quem, aprendendo mal as lições, aprende melhor sobre o mundo: depois da contenda na infância, o encontro na adolescência inclui na palavra e reforça nas relações o embate de um gênero contra o outro, como na escuta do menino quando a mãe avisava a hora da aula: “e o meu corpo inteiro // (a parte de trás / do nosso terreiro / era a minha / pequena jângal) // só entendia // jaula // – ir para a jaula” (Aleixo, 2017, p. 40). As questões de múltipla escolha têm sido um gênero produtivo nessa literatura, sempre trabalhando pela indeterminação dos saberes e dos sentidos, como num poema de Leonardo Gandolfi, cujas alternativas responderiam àquilo de que o poema mais precisa (“a) elefantes / b) comprimidos / c) um novo animal de estimação / d) mais apertos de mão / e) outro autor”, Gandolfi, 2015, p. 45); como noutro poema de Dimitri BR, em que se pede para, após a leitura de um poema qualquer, determinar se foi escrito “1. a) por um homem / b) por uma mulher // 2. a) heterossexual / b) homossexual // 3. a) cisgênero(a) / b) transgênero(a) // 4. a) da sua cor / b) de outra […]” (Dimitri BR, 2016, p. 44); como ainda, por fim, o livro de Alejandro Zambra, Facsímil (2014), todo escrito como sequência de questões de múltipla escolha, de que é exemplo:

51) Você foi um péssimo filho, __________ escreve. Você foi um péssimo pai, ___________ escreve. Está sozinho, __________ escreve.
a) por isso / por isso / por isso
b) e é sobre isso que / e é sobre isso que / e é sobre isso que
c) mas / mas / mas
d) e não / e não / e não
e) e / e / e
(Zambra, 2017, p. 39)

A rememoração histórica que conduz à escola distópica, o erro de escuta ou pronúncia que produz aprendizado ou a questão de múltipla escolha que indetermina o gabarito consistem em três procedimentos pelos quais a literatura hoje lê a escola pela chave da desescolarização. Afinal, os três procedimentos não reforçam práticas escolares, antes vão na contramão de práticas de rememoração em sala de aula que visam a restituir as marcas da escola na história de alguém, ou na contramão da concepção de aprendizagem como acerto às lições ou questões propostas.

Por qualquer lado que se olhe, seja pelos estudantes nas ocupações secundaristas, seja passeando por alguma literatura contemporânea, por qualquer lado que se escute o que, apesar das políticas públicas de parametrização da escola, de homogeneização dos materiais didáticos, de supressão do tempo de pesquisa e planejamento das aulas, fala, o que aparece é uma demanda pela produção literária e performatização do texto literário em rede social, e o reconhecimento de que muitas práticas escolarizadas trabalham na contramão da formação cultural. Isso não significa um convite a reformular as práticas do zero a partir de uma escuta textual, mas, reconhecendo a temporalidade do processo social e convidando ao trabalho, acolher traços dessa paisagem textual como forças de transformação das práticas de ensino em literatura.

O diagnóstico já tem sido muito repetido e os caminhos apontados são vários, poucos, no entanto, no sentido de transformações que a literatura tem produzido nas práticas contemporâneas. Quero dizer que o livro de autoria única produzido de acordo com os gêneros do poema em versos ou do livro de contos ou do romance representa muito parcialmente a circulação literária, que hoje se vale de blogs, perfis no Instagram, PDFs, memes, escritas em rede social, autorias coletivas, comercialização à margem das livrarias, em feiras, sites e redes sociais, por um lado, e concentração editorial de narrativas premiáveis, premiação como critério de reconhecimento e qualidade, globalização de narrativas locais, por outro lado. Parece um problema considerar a formação cultural de um estudante como se a literatura, hoje, constituísse uma prática autônoma às relações econômicas e como se as formas consolidadas dos gêneros literários não respondessem também ao apelo dos contratos, prêmios e tiragens, porque “todo o cultural (e literário) é econômico e todo o econômico é cultural (e literário)” (Ludmer, 2014, p. 149).

Essas transformações que se reconhecem nas obras e também, como pretendi demonstrar, na produção cultural das ocupações secundaristas, sugerem a concepção de literatura como campo cultural capaz de produzir efeitos comunitários, como quer, por exemplo, Wander Melo Miranda. Num momento em que a experiência de leitura se legitima socialmente por “incorporações e desincorporações, associações e dissociações” consideradas, a rigor, disparatadas pela tradição de leitura moderna do texto literário autônomo, ou ainda que os campos e as linguagens artísticas trocam de lugar com frequência e obras narrativas ou utilizando versos ou texto verbal em geral estão frequentemente expostas ou performadas em museus e galerias, ou em palcos e praças e vídeos e fones de ouvido, nesse momento se reconhece “o lugar da crítica de qualquer um como o lugar do leitor emancipado” (Miranda, 2017). Trata-se de um reconhecimento dos efeitos da democratização de acesso à universidade, vivida na última década e meia na sociedade brasileira, por exemplo, o que trouxe para o debate acadêmico com mais força a questão do ensino da literatura no contexto das relações entre literatura e democracia.

Isso é reconhecido na apresentação de Margens da democracia: a literatura e a questão da diferença (2015), quando os organizadores Marcos Siscar e Marcos Natali mencionam “a difícil convivência entre literatura, ensino e demandas de inclusão social” (2015, p. 7). Dossiês pensando a relação entre literatura e ensino em revistas acadêmicas se multiplicaram e podem ser lidos nas revistas Nau Literária (UFRGS, v. 6, n. 2, 2010), Gragoatá (UFF, v. 19, n. 37, 2014), Remate de Males (UNICAMP, v. 34, n. 2, 2014), Contexto (UFES, n. 27, 2015), FronteiraZ (PUC-SP, n. 14, 2015), Literatura e autoritarismo (UFSM, n. 15, 2015), Abril (UFF, v. 8, n. 17, 2016), Cerrados (UnB, n. 42, 2016), Diadorim (UFRJ, v. 18, n. 1, 2016), Terra Roxa (UEL, v. 31, 2017), entre outras. A implementação do Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) pela Universidade Aberta do Brasil também pareceu impulsionar o debate, que participa cada vez mais do dia a dia nas universidades.

A consolidação do debate evidencia as diferenças e os posicionamentos. Sem apostar num retorno a um humanismo supostamente sem teoria, é preciso considerar a literatura como uma relação (entre texto e leitor, entre autor e leitor, entre autor e texto, entre livro e texto e leitor etc.) capaz de produzir efeitos de comunidade. Num texto publicado em 2011, Magda Soares discorre sobre a escolarização da literatura, analisando a publicação do texto literário nos livros didáticos. Deixando de lado as considerações de ordem econômica, em relação aos direitos autorais dos textos modernos e contemporâneos, e às políticas de aquisição do livro didático pelo Estado, que conformam essa escolarização, Soares termina por distinguir entre uma escolarização adequada e outra inadequada da literatura. A adequada é eficaz quando conduz “às práticas de leitura literária que ocorrem no contexto social” (Soares, 2011), ao passo que é inadequada a escolarização que produz resistência à prática de leitura. Essa afirmação do contexto social parece fundamental e não representa a exclusão das práticas de leitura em contexto universitário.

No entanto, numa compilação recentemente publicada, 18 autores são convidados a responder à questão título do livro, O que significa ensinar literatura?, todos eles professores em universidades públicas. Financiada por duas universidades catarinenses, UFSC e UNESC, a publicação produz um painel importante da reflexão em contexto universitário, e traz um testemunho agudo da trajetória docente de João Adolfo Hansen, em “Por que ensinar literatura?”. Muito interessado em sublinhar as noções históricas que organizaram sua prática docente, destacando a crítica à leitura modernizante de obras predecessoras da modernidade, Hansen se atém à cátedra e considera que o seu ensino procurou oferecer a ocasião para que, na literatura, fosse possível “comparar os mundos possíveis que a ficção inventa com o mundo do leitor” (Hansen, 2017, p. 142).

Menos parcimonioso é o ensaio de Fábio Akcelrud Durão, “Da intransitividade do ensino de literatura”. O texto se organiza em duas seções, “Considerações sobre o objeto e sua transmissão” e “Desajuste social”, desequilibradas em extensão pois a segunda faz as vezes de encerramento do texto. Começa ressalvando a necessidade de conceber a literatura com base numa determinada definição para, daí, considerar o seu ensino. Logo posiciona a teoria na sala de aula como um processo de internalização, de modo “que ela passaria a confundir-se com uma forma de comportamento” (Durão, 2016, p. 16). Tomando partido, começa por definir reativamente o fenômeno literário, propondo o que a literatura não é: “discurso”, e completando: a literatura é “um objeto que se sustenta” (Durão, 2016, p. 17), um artefato exitoso na articulação interna. Seria preciso que a aula, assim como a crítica, não fetichize o texto literário, e compreenda-o “como um brinquedo”, o qual se pode tocar, com o qual se pode lambuzar, “como argila ou lama” (Durão, 2016, p. 18). Derivam disso dois aspectos, sendo o primeiro: a literatura não diz respeito à moral. No entanto, o corolário que Durão defende a partir desse aspecto nega-se a reconhecer o caráter discursivo da crítica e do ensino: “Levar Machado de Assis para a favela não ajuda ninguém” (Durão, 2016, p. 19). Não ajuda, no entanto a função dessa frase no texto parece ambígua, pois defende o trabalho da leitura como trabalho crítico cuja direção não está dada de antemão, ao passo que faz do exercício crítico provocação da inteligência a partir de certo poder de fala publicada. A função da literatura residiria numa crítica da realidade, ou de uma realidade baseada na ideia de lucro. O segundo aspecto do conceito autonomista de literatura é que o seu valor é produzido a posteriori, e por isso o trabalho de interpretação é um trabalho de atualização do texto. À concepção do literário como autônomo textualmente decorre que o seu ensino não acontece por meio de um conhecimento estanque. A postura investigativa conduzida por uma hipótese interpretativa e desenvolvida pela fala do professor diante da escuta atenta do aluno é o motor desse ensino. É inconcebível, porém, que essa investigação possa se dar coletivamente, no contexto universitário atual, “salvo nos raríssimos casos de turmas excepcionais” (Durão, 2017, p. 24). Há uma recusa ao coletivo como um elogio da autonomia crítica, como se um implicasse no outro: “Essa caracterização contraintuitiva da aula como um ambiente não democrático encontra seu oposto em uma abordagem da leitura e da escrita como atividades coletivas” (Durão, 2017, p. 24).

Difícil não atribuir essa perspectiva crítica do ensino a um processo de universitarização da literatura, que inclui um processo de formação individual na especialização da pesquisa, desenvolvendo a autoria no campo de conhecimento. A contraparte desse processo, a saber, a função social dessa pesquisa, é como que atrofiada no caso do campo de estudos literários, dada a baixa circulação da literatura ou de certa literatura comparativamente a outros produtos culturais, como o cinema, na sociedade brasileira. No entanto, isso significaria desconsiderar a circulação da literatura nas salas de aulas de todas as escolas de ensino básico, e é precisamente desse esquecimento que aparece a queixa de uma crise que justifica a alienação das práticas coletivas no ensino da literatura. Afinal, se com esse arsenal em sala de aula a instituição escolar não conseguiria produzir um país leitor, então o modelo universitário embasado na autoria individual pareceria mais potente para a formação do pesquisador.

Práticas de ensino de literatura na educação básica

De fato, as canções de ocupação não pareciam compostas com base em monumentos da cultura. Nem seria o caso de exigi-lo desses processos de composição, mas talvez seja o caso de compreender alguma relação entre o que acontece e o que se deseja que aconteça. A hipótese desenvolvida aqui parte da premissa de que a experiência cultural dos estudantes elabora uma interpretação da cultura contemporânea, e alguma literatura hoje tem dialogado com novas formas de sensibilidade. Muitas vezes insistir no caminho da formação de leitores pela exclusiva experiência do livro e da narrativa de autoria individual pode não ser suficiente num contexto em que a circulação da literatura mesma está muito mediatizada pelas redes sociais (e não me refiro apenas a fenômenos de público, como Rupi Kaur, mas à performance em rede social de inúmeros poetas e alguns narradores). Por isso, é necessário considerar para a sala de aula uma economia performática do texto literário, que considere a produção literária in loco com práticas de oficina, a performatização em rede social da leitura e da escrita, a produção de relações em rede com autores e comunidades de leitores dentro e fora da escola, a ampliação da concepção de literário que considere testemunhos, artivismos, diários de leitura, textos coletivos ou quaisquer práticas que extrapolem a ideia de um leitor escolarizado como consumidor de um mercado cultural de livros.

Por fim, remeto a duas tentativas pedagógicas nessa direção. Em 2017, como introdução ao curso de literatura em turmas da terceira série do ensino médio, no Colégio Pedro II, propus a leitura de uma tradução de Bartleby, o escrivão (1853), de Herman Melville. O texto fora escolhido como primeira leitura após a ocupação do Colégio, nos últimos meses de 2016. Agora a proposta era a ocupação do texto literário, seja pela leitura, pelo conhecimento de interpretações que esse texto conheceu, e pelo destaque que essas interpretações dão à frase enunciada pelo protagonista: contratado como escrivão de um escritório de advocacia na Wall Street, em Manhattan, o experiente copista Bartleby começa, sem se justificar, a se recusar a escrever enunciando: “I would prefer not to”. O término abrupto da frase associado à polidez que relativiza a recusa, a enunciação lacônica e tranquila imprimem ao refrão da narrativa um traço de agramaticalidade, segundo a leitura de Gilles Deleuze (1997). O desafio que propus aos estudantes foi o de traduzir para o português a frase, depois da análise conjunta dos traços gramaticais que compõem o original em inglês. Para isso, os estudantes receberam uma carta da professora de tradução Carolina Paganine, da UFF, a qual foram convidados a responder justificando a tradução que escolheu fazer. A novela de Melville, que já recebeu cerca de 10 traduções diferentes para o português (as soluções dessas traduções para a frase de Bartleby também foram apresentadas aos estudantes-tradutores), passou a contar com uma série de novas traduções para a frase original, produzidas por estudantes do ensino médio. Assim é que, entre algumas outras soluções, nem todas satisfatórias, para a tradução, a língua conta agora com soluções como: Preferiria não fazer, Eu preferiria não fazer, Eu preferiria não fazê-lo, Eu iria preferir não fazê-lo, Eu iria preferir não fazer, Eu apreciaria não fazê-lo, Creio que é melhor não fazê-lo, Optaria por não fazer, Optaria por não fazê-lo, Escolheria não agora, Seria melhor não fazer, Gostaria de não fazer, Não concordaria em me propor a isso, Preferiria não empreendê-lo. A diversidade de soluções às vezes está motivada menos por uma tradução da literalidade do que pelo traço de transcriação motivado pela procura de originalidade no contexto da turma. A próclise insistente em frase negativa confere estranhamento gramatical a uma frase que, traduzida, ganha traços de hipercorreção num contexto linguístico de forte preconceito na sociedade brasileira. Haveria outras notas a fazer às traduções, as quais celebro em sua multiplicidade, abrindo outras traduções possíveis para o texto, que é, assim, performatizado em sala de aula.

Outra experiência de multiplicação de leituras se deu na recepção à escritora Conceição Evaristo, que visitou o Colégio no segundo semestre de 2017. Para essa recepção, orientei um grupo de sete alunos, de turmas e séries diferentes do ensino médio, para a elaboração de uma performance vocal de dois contos da narradora. “Olhos d’água” e “Maria” narram, sob perspectivas distintas, traumas sofridos por mulheres no seio familiar: no primeiro, uma filha recorda a mãe ausente há muitos anos, enquanto no segundo uma mãe é assassinada por linchamento e por engano ao retornar para casa depois de um dia de trabalho. O texto performado resultou de uma montagem de trechos desses contos, trabalhando com a sobreposição de vozes dos estudantes. O registro vocal da performance “De que cor” pode ser conferido abaixo:

 

 

O tom da leitura, o cuidado na pronúncia das sílabas, a velocidade e o controle da voz participaram do processo de composição, num trabalho com a oralidade que resultou no estudo e amadurecimento dos usos da voz em contextos públicos. Aqui, direito à literatura e exercício da cidadania parecem se confundir, e o resultado não se encontra nos livros nem mesmo registrado em cadernos. Os exemplos poderiam se multiplicar e precisam ser considerados de acordo com os contextos escolares em que acontecem. De qualquer maneira, a proposta é considerar processos de performatização do texto, pelos quais leitura e autoria se indistinguem. Uma sala de aula mais permeável às práticas de produção literárias propõe uma escola na contramão do monumento textual como fim do estudo e amplia a formação do leitor crítico quanto ao modelo de consumo do mercado de livros.

 


 

* Luiz Guilherme Barbosa é professor de Língua Portuguesa e Literaturas do Colégio Pedro II, doutor em Teoria Literária pela UFRJ. É autor de A mão, o olho: uma interpretação da poesia contemporânea (2014) e de Postagens e antipostagens (2018). Integra o coletivo Oficina Experimental de Poesia, e os grupos de pesquisa Poesia Brasileira Contemporânea, sediado na UFRJ, Grupo de Estudos em Ensino de Português e Literaturas (GEEPOL) e LITESCOLA, sediados no Colégio Pedro II.

 

Referências

ALEIXO, Ricardo. Antiboi: poemas (2013/2017). Belo Horizonte: Crisálida / Lira, 2017.

BARBOSA, Luiz Guilherme. Notas por uma poética da ocupação. Escamandro, Curitiba, 2017. Disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2017/09/13/xanto-notas-por-uma-poetica-da-ocupacao-por-luiz-guilherme-barbosa/. Acesso em: 14 mar. 2018.

DELEUZE, Gilles. “Bartleby, ou a fórmula”. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 80-103.

DIMITRI BR. Ocupa. Rio de Janeiro: 7letras, 2016.

DURÃO, Fábio Akcelrud. Da intransitividade do ensino de literatura. In: CECHINEL, André; SALES, Cristiano de (orgs.). O que significa ensinar literatura? Florianópolis: EdUFSC; Criciúma: EdUNESC, 2017.

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

GANDOLFI, Leonardo. Escala Richter. Rio de Janeiro: 7letras, 2015.

HANSEN, João Adolfo. Por que ensinar literatura? In: CECHINEL, André; SALES, Cristiano de (orgs.). O que significa ensinar literatura? Florianópolis: EdUFSC; Criciúma: EdUNESC, 2017.

HATOUM, Milton. A noite da espera. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas. In: Intervenções críticas. Tradução de Ariadne Costa e Renato Rezende. Rio de Janeiro: Azougue; Circuito, 2014. (Nomadismos; 2)

MIRANDA, Wander Melo. A pós-crítica e o que vem depois dela. Suplemento Pernambuco, Recife, 2017. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/edições-anteriores/71-ensaio/2043-a-pós-crítica-e-o-que-vem-depois-dela.html. Acesso em: 15 mar.  2018.

NATALI, Marcos; SISCAR, Marcos. Apresentação. In: Margens da democracia: a literatura e a questão da diferença. Campinas: Editora da Unicamp; EDUSP, 2015.

SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, Aracy Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Brina; MACHADO, Maria Zélia Versiani (orgs.). Escolarização da leitura literária. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

SÜSSEKIND, Flora. Ações políticas/ações artísticas. Suplemento Pernambuco, Recife, 2016. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/edições-anteriores/93-especial/1742-ações-políticas,-ações-artísticas.html. Acesso em: 14 mar. 2018.

TROCANDO EM MIÚDOS. “Alunos cantam Chico Buarque contra fechamento de escolas por Alckmin”. 7 out. 2015. Disponível em: https://youtu.be/T7MUd11laTI. Acesso em: 13 mar. 2018.

ZAMBRA, Alejandro. Múltipla escolha. Tradução Miguel Del Castilho. São Paulo: Planeta, 2017.

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Resenha: O ENTRE-LUGAR DA ESCOLA EM VIDAS PRESENTES

Luiz Eduardo Soares[1] já é velho conhecido do público em geral. Considerado um dos grandes nomes da segurança pública, o antropólogo e cientista social foi coautor do best-seller Elite da Tropa, que chegou às telas brasileiras como Tropa de Elite I e II, pela direção de José Padilha. Em seu mais novo livro, Luiz Eduardo Soares resolveu se aventurar numa seara distinta. Em vez da violência e do caos da segurança, o que ganhou corpo em sua última obra foi um projeto de natureza escolar. Vidas presentes, lançado em junho de 2017, publicado pelo grupo Pigma Realize e com gravuras do artista Francisco Maringelli, trata de um projeto que se destaca pela importância social e pela tenacidade de seus articuladores e articuladoras. O projeto Aluno Presente, iniciativa da Associação Cidade Escola Aprendiz, com o apoio da Secretaria Municipal de Educação e da Fundação Education Above All, durante três anos teve como objetivo o desenvolvimento de ações que visavam a “garantir o direito de acesso à educação básica das crianças e dos adolescentes de 6 a 14 anos na cidade do Rio de Janeiro, atuando principalmente na identificação e localização daqueles que não estavam matriculados e na prevenção da infrequência e da evasão escolar”, como afirmam Natacha Costa e Eliana Sousa Silva, representantes do projeto, numa das notas que antecedem os textos que integram o livro.

Falar em estratégias que garantam o acesso das crianças brasileiras à educação básica e a sua permanência é um tema naturalmente desafiador que, por mais que seja alvo de permanentes discussões, jamais é resolvido, como tampouco se esgota. Por mais que se saiba disso, nada prepara o leitor para o tipo de experiência que Luiz Eduardo Soares relata nos textos de Vidas presentes. Com um trabalho de incursão minucioso e delicado, sempre à mercê dos poderes paralelos que dominam a cidade do Rio de Janeiro – o tráfico e a milícia –, cada relato parece um caso de resolução absolutamente impossível, em que se vê como crianças são abandonadas à própria sorte pelo sistema. É nesse ponto nevrálgico que se inserem os articuladores e articuladoras. Usando uma metodologia de perfil inédito, trabalhando em instâncias que iam desde uma “gestão intersetorial” até a busca ativa dos alunos nos territórios periféricos em questão, o projeto Aluno Presente conseguiu localizar mais de 23 mil crianças em situação de abandono escolar. Vidas presentes consiste em 15 relatos que foram considerados os que visibilizam as melhores estratégias empregadas pelos profissionais.

É difícil saber qual das narrativas chama mais a atenção para a urgência que é o abandono e a evasão escolar em uma cidade das dimensões do Rio de Janeiro. O primeiro deles provavelmente foi selecionado para abrir o livro devido à sua força e ao cenário árido em que se convertem os espaços dominados pelo tráfico na cidade. Mariana, a articuladora e uma das protagonistas do relato, atravessa a cidade e, por vezes, tem que solicitar aos líderes, sejam eles milicianos ou traficantes, permissão para reconduzir estudantes à escola ou mesmo matricular crianças que estejam fora dela. Também é de responsabilidade dos articuladores a adaptação de crianças e adolescentes que tenham sido remanejados para outras escolas pela CRE por causa de disputas internas do tráfico ou da milícia.

É na favela do Cajueiro, em Campo Grande, que Mariana vai encontrar um menino, que permanece anônimo durante a reconstituição dos fatos, cuja vida de solidão e abandono imediatamente se coloca como uma causa inadiável:

Como o radar está sempre ligado, ela percebe um menino que se destaca porque está só, parado, maltrapilho. Ele é magro e está sujo. Mariana se aproxima, mas é a criança que a aborda primeiro. Quer saber o que a tia faz, por que está ali. Mariana diz que está ali para ajudar crianças a entrar na escola. Pergunta-lhe o nome e prossegue:
Onde está a sua mãe?
O menino cala-se.
Onde você mora?
Eu não moro, ele diz.
Como assim? Onde é sua casa?
Aqui.
Aqui, onde? Qual é a sua casa?
Aqui mesmo. Não tenho casa.
Mariana indaga pela mãe.
Está por aí, ele diz.
Como, por aí? Por aí, onde?
Lá embaixo. Deve estar na rua, embaixo da favela.
A criança tem nove anos.
E sua família?
Não tenho ninguém, não, ele explica.
Seu pai?
Ele abaixa a cabeça.
Não tem vó, tia, tio?
Não.
E a escola?
Não tenho escola, não, tia[2].

Apesar de serem apenas quinze os relatos que integram o livro, a realidade nos mostra que a quantidade de crianças na mesma situação do menino encontrado por Mariana ainda é grande, apesar dos esforços de articuladores e profissionais para reconduzi-los a familiares à escola. O menino da favela do Cajueiro é uma metonímia das vidas presas no entre-lugar da violência.

Em uma introdução que antecede os relatos, o próprio Luiz Eduardo Soares afirma que uma de suas intenções ao dar forma de texto literário aos testemunhos dos articuladores e articuladoras foi o desejo de permitir que esse conjunto sirva futuramente como corpus de estudos etnográficos, e também o de transformar o que foi relatado em algo que seja capaz de suscitar a empatia e, de quebra, colocar em evidência a necessidade de posturas como as dos articuladores.

Um olhar mais atento, porém, mostra como não só esse é um trabalho ímpar, de incomensurável importância social, como também é, infelizmente, apenas uma pequena iniciativa frente a um sistema fundamentado nas desigualdades sociais, que a cada dia gera mais vítimas, de regra aqueles que estão em situação mais frágil ou de vulnerabilidade, como é o caso das crianças em idade escolar contempladas pelo Aluno Presente.

Em um mundo onde tudo – e todos – são pautados pela sua capacidade imediata de gerar lucro e movimentar as engrenagens do sistema, pouco espaço há para a infância das crianças que estão às margens, cada vez mais à mercê de um poder público que insistentemente se exime de uma responsabilidade prevista por lei. Por isso mesmo o que é relatado na obra de Luiz Eduardo Soares não apenas transcende a ideia da mera etnografia ou da possibilidade de evocar sensibilidade naqueles que o leem, mas se converte em uma referência ímpar em tempos sombrios para os rumos da educação brasileira.

 


 

*Raphaella Lira é professora adjunta do CAp-UERJ, possui doutorado em Literatura Comparada e atualmente desenvolve uma pesquisa de pós-doutorado no PACC, sob a supervisão da professora Beatriz Resende.

 

[1] Luiz Eduardo Soares é especialista em segurança pública, antropólogo, cientista político e escritor. Coautor e autor de diversos livros, possui uma variada produção, que contempla temas como justiça, segurança, violência, antropologia. Publicou em 2015 Rio de Janeiro Histórias de vida e morte pela editora Companhia das Letras.

[2] Trecho extraído da edição online de Vidas presentes. Disponível em http://www.cidadeescolaaprendiz.org.br/wp-content/uploads/2017/06/Vidas-Presentes.pdf. Acesso em: 01/03/2018

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EU E O EXÍLIO: UM DIÁLOGO COM LUTGARDES COSTA FREIRE

Neste ano de 2018 completam-se 40 anos que Lutgardes Costa Freire começou a organizar o retorno do exílio, de Genebra ao Brasil, com sua mãe, Elza Maia Costa Freire, e seu pai, o educador Paulo Freire, hoje Patrono da Educação Brasileira. Nessa jornada, eles elaboraram o exílio, tomaram distância dele, costuraram tramas, educaram a espera, a solidão, a raiva, registraram momentos difíceis e outros alegres.

Esta conversa, transcrição da entrevista gravada em vídeo[1], com Lutgardes Freire sobre as lembranças do exílio, faz parte de um diálogo iniciado há quase 20 anos e pode nos ajudar a compreender a importância de Paulo Freire e sua concepção de educação para os Estudos Culturais, sobretudo diante do movimento conservador que avança sobre a educação na América Latina. Como um diálogo inacabado, a entrevista se inicia pelo meio.

 

Lutgardes Freire Foto: Margarita Victoria Gómez
Lutgardes Freire
Foto: Margarita Victoria Gómez

 

Lutgardes Freire: (…) Eu estava com menos de cinco anos e minha mãe não me dizia onde meu pai estava. A ausência do meu pai foi bastante dolorida para mim. As minhas irmãs sabiam que ele estava preso e elas iam com a minha mãe até a prisão para levar comida para meu pai e para os outros presos.

Não tenho ideia do tempo que passou, é muito elástico, é a cabeça de uma criança. Mas, como te dizia, minha mãe ocultou esse fato de mim e de meu irmão porque ela precisava encontrar uma maneira de nos proteger. Ela pensava que se dissesse para mim e para Joaquim: “olha, o pai de vocês está preso”, a gente como criança poderia pensar que ele era ladrão, que ele tinha matado alguém. O imaginário da criança é muito fértil.

Ela falava que ele estava viajando. Mas cadê o papai, faz muito tempo que ele não vem, cadê o fim da viagem? A resposta era: “não, ele ainda não voltou da viagem”.

Eu não tenho noção dos comentários das pessoas do Recife com relação a isso. Mas era perigoso ficar no Recife, onde meu pai estava preso, com os militares tendo essa oportunidade de nos prender também. Então fugimos para o Rio de Janeiro, para a casa da irmã do meu pai, em Campos. E lá ficamos escondidos, era uma maneira de nos protegermos dos militares.

Lembro que uma das brincadeiras que eu tinha quando morava na casa da tia Stella e do tio Bruno, os dois já falecidos, era jogar pedra nos cachorros da rua. Eu era criança e acredito que era uma forma de extravasar a ausência.

Nesse período não estudei, não tinha escola, não tinha condição nenhuma de me levarem à escola porque seria uma oportunidade muito fácil de nos identificarem. A coisa foi muito feia. Muito dolorosa.

Nós ainda tivemos muita sorte, porque outras famílias passaram por outras situações muito mais difíceis. Por exemplo, famílias em que o marido está preso e a mulher chega para visitar o marido e diz na cara dele “tá vendo, tá vendo, o que você ganhou com se meter com o comunismo, tá vendo no que dá”, e aí se acabava o casamento, a família.

Qual foi a importância da presença das mulheres no exílio?

Lutgardes Freire: Nós ficamos unidos. A minha mãe sempre apoiou o trabalho do meu pai. Ela era uma educadora, foi professora de magistério e diretora de escola no Recife. Ela contribuiu com o meu pai na alfabetização das pessoas. O apoio das mulheres da família foi muito importante, por isso até hoje as minhas irmãs, especialmente a Fátima e a Madalena, têm essa coisa da força das mulheres nordestinas muito presente dentro de si.

Não sei que autor disse que a mulher nordestina é, antes de tudo, uma forte[2]. Ou seja, a mulher nordestina é muito forte porque você sabe que na nossa cultura nós somos machistas, temos que reconhecer isso, mas ao mesmo tempo, quem acaba obedecendo dentro de casa é o marido. No Nordeste isso é muito forte. As mulheres não têm a forca física, mas têm a força espiritual, força boa do coração, e minha mãe era assim, ela tinha essa fortaleza, era uma pessoa muito forte. Tanto assim que quando meu pai começou a escrever no Chile (e já podemos entrar no Chile), quem suportava a família no exílio era a minha mãe, psicologicamente. Eu te conto, Margarita, o exílio é uma fratura emocional.

Depois de passar pela Bolívia, nós, que estávamos na casa da tia Stella, do Rio viemos para São Paulo, e uns amigos nos ajudaram com a compra das passagens, e no Chile reencontramos o nosso pai.

Esse foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. Descer daquele avião, eu não sabia sequer o que era um avião, eu também não sei como entramos no Chile. O que me foi dito é que Vera Barreto e o marido dela compraram as nossas passagens para Santiago. Descemos em Santiago e eu vejo assim longe um homem de bigode, meio careca, e eu disse, “meu Deus será que esse é meu pai, não pode ser, será que é?” E descobri que era e saí correndo, todo o mundo correndo.

No Chile, Jacques Chonchol sabendo da história conversou (não tenho isso claro, não sei se foi bem assim que aconteceu), mas me parece que ele conversou com o governo do Chile para exilar a gente e ao mesmo tempo encontrar um trabalho para meu pai. Aí chegamos a um apartamento duplex, em que em cima estavam os quartos dos meus pais e das minhas irmãs, e embaixo o quarto meu e de Joaquim. Começamos a morar nesse apartamento, mas não foi ainda nesse momento que meu pai esclareceu tudo para mim. Ele pensava: “ele não vai entender, é muito pequeno”.

Quando desci para brincar com as crianças, eu naturalmente não sabia falar chileno, espanhol:  eu falava e o menino não entendia; eu falava de novo, eu insistia, ele me dizia: você está louco, e eu dizia: não, você que está louco. Até que cheguei em casa e perguntei: “pai, que lugar é este? Isso aqui não é o Brasil?” Eu pensava que estava no Brasil, pensava que tinha voado para outra cidade do Brasil.

Fui me defrontando com essas situações culturais e com a beleza do Chile, uma país lindo, aquela cordilheira enorme, com aquele gelo, aquela neve, aquela coisa linda, aquele ar seco, o Chile tem um ar seco, e comecei a frequentar a escolinha, o jardim de infância e lembro que brincava muito com plantas. As professoras pediam para a gente plantar, plantar árvores, plantas, tinha um dia específico para cuidar da terra, para colocar água, tinha um dia para dançar, era uma escolinha mista então nós dançávamos com as meninas músicas folclóricas do Chile, músicas de filmes, como Zorba, o grego.

Um fato curioso que me aconteceu. Nessa idade, você vai entender, comecei a me apaixonar por uma menina, não pela professora, e eu disse: “Marcela, vamos entrar nesse armarinho”, e ela disse “vamos”. Eu fechei o armário e comecei a brincar com ela. Aí a professora tinha sentido a falta nossa e tirou a gente de dentro do armário. E ela disse para mim “niño cochino” (menino porco) e eu disse “perdão, perdão”.

O bom dessa história é que, depois de uma longa discussão que essa professora deve ter tido com meus pais e com os pais da Marcela, fizeram que no dia da dança eu dançasse com Marcela. Foi lindo, uma boa lembrança. Mas eu era danadinho já nessa época. Eu já tinha uma sexualidade à flor da pele. Eu não fui expulso da escola porque meus pais devem ter falado com a diretora.

Mas nessa escola eu me lembro das músicas que a gente tinha que cantar. Por exemplo, uma que dizia, “todos los patitos se fueron a nadar, el mas chiquitito se quiso quedar, la madre enojada le quiso pegar y el pobre patito se puso a llorar…”. Um dia cheguei em casa e disse “eu sei cantar em espanhol” e todo o mundo ficou a meu redor e eu cantando “todos os patitos”, era muito engraçado. Então tinha esses momentos também.

Na minha infância no Chile eu não gostava da missa. A minha mãe era muito religiosa – e eu estou sorrindo agora porque me lembrei de um fato em Genebra, mas a gente não chegou ainda nesse ponto – e fazia questão de levar no domingo toda a família à igreja. Meu pai ia, mas, no decorrer do tempo, com todas as mudanças que estavam ocorrendo naquela época, na conjuntura econômica, política, não só no Chile, mas em toda a América Latina, a Teologia da Libertação começou a ganhar força com o meu pai. A partir desse momento ele disse: “olha, Elza, eu não vou deixar de ser católico, mas não comungo mais com essa igreja tradicional”. Ele começou a trazer o padre para casa. O padre Menezes vinha celebrar a missa todo domingo conosco. Diferente da tradicional. Ele pegava um pedaço de pão, e comíamos o pão. Era como qualquer outra missa, mas dentro de casa. Eu me lembro que li um trecho da Bíblia.

Agora, tem um fato que eu gosto muito de lembrar. Nessa idade, um pouco mais adiantado, eu tinha um “dever” para fazer, que era aprender sobre todos os ossos e o corpo por fora da galinha. Já era de noite, peguei o livro e fiquei estudando. Mas não entendia. Não tinha jeito de eu entender o que era aquilo. Aí eu disse, “vou falar com meu pai”.

Ele estava no seu escritório, e eu disse: “pai, me ajude aqui, eu não estou entendendo essa matéria e a prova é amanhã”. Ele disse: “O que é?” “Tenho que aprender todos os ossos da galinha e como é o corpo dela por fora.” Ele disse: “meu filho, pare de estudar, você não vai aprender nada assim, já são mais de dez horas, você está cansado, precisando dormir, amanhã acorde bem cedo e vai ver lá fora, no quintal, como é uma galinha, as penas, o bico… e depois você vai fazer a prova”.  Nós criávamos galinha para comer galinha ao molho pardo.

Aí eu acordei bem cedo, olhei a galinha e tal e entendi. Cheguei, ele estava tomando o seu café, e lhe disse “papai, entendi tudo”. Ele disse: “eu sabia”. Fiquei muito feliz, fui para a escola, e tirei nota máxima. Muito mais tarde, quando comecei a me interessar pelas ideias de meu pai, percebi que não é possível dissociar o concreto do teórico. O que eu estava fazendo e a escola ensinando era só o teórico. Ninguém aprende sobre o mundo só com o teórico. O mundo é essa relação dialética entre teoria e prática, concreto e teórico, claro que naquela idade eu não tinha essa noção.

E, a partir desse momento, os meus professores no Chile trabalhavam comigo essas coisas. Meu pai já tinha melhorado de vida, trabalhava na ONU e tínhamos mudado daquele apartamento para uma casa de um bairro chique.

Essa é outra coisa. Quando morávamos naquele apartamento, todo fim de semana vinham brasileiros e estrangeiros para almoçar em casa para conversar com meu pai. Então, um dia um psiquiatra lhe disse: “olha, Paulo, se tu quiseres salvaguardar a tua família, é melhor você se mudar daqui. Ir para uma casa mais distante que evite tanta gente dentro de casa porque teus filhos estão perdendo você, estão precisando de você”. Ele trabalhava a semana inteira, escrevia e, nos fins de semana, estava com os amigos. Ou seja, não havia mais família. Fomos para essa casa e tudo mudou. As visitas continuaram, mas eram menos frequentes.

Ou seja, a situação de exílio e o fato de ser uma pessoa destacada afetou a família.

Lutgardes Freire: Sem dúvida. Por isso que eu penso que tenho muita sorte de ser filho de Paulo Freire, mas também era um sacrifício.

Então, naquela casa, quando eu tinha sete anos, meu pai nos revelou a verdade. Ele disse: “eu não desapareci, eu fui preso”. A gente perguntou: “Mas por quê?” “Eu fui preso porque eu criei um método de alfabetização, e os militares deram um golpe no Brasil, e me prenderam”. Se dissipou dentro de mim a dor dessa ausência, entendi melhor o que tinha acontecido com meu pai. Joaquim aceitou melhor, ele tinha mais idade. Eu tinha uma reação muito infantil ainda. Eu era muito agressivo, isso já na Suíça, e fui criando raiva de meu pai, eu não tinha pai, Margarita, só tinha a minha mãe. Chegou uma época que eu disse para o meu pai: “quando que você vai parar? Quando que a gente vai tomar um chope juntos?” Eu consegui tomar o chope com ele. Eu já fazia terapia nessa época. Fiquei feliz, na verdade a gente se disse poucas coisas, mas só queria isso, estar próximo, sentir que estava à disposição. Eu acho que os filhos de exilados de alguma forma se rebelam contra seus pais. Era um sacrifício que a gente tinha que fazer, ele era na verdade um pai ausente-presente. Ele viajava muito e quando voltava era uma festa.

Mas, voltando ao Chile ainda. Começamos a fazer amizade com Thiago de Melo, Geraldo Vandré, Almino Affonso, Plínio de Arruda Sampaio, Fernando Henrique Cardoso. Tem até um fato que não sei se alguém sabe: um belo dia, tu sabes, Chile naquela época era um país muito pobre, então tinha assaltantes, os batedores de carteiras, e, no dia do recebimento do salário de meu pai, ele pegou o ônibus (vestia uma capa, fazia muito frio), em pé, esperando chegar ao ponto dele, e, quando desceu, percebeu que estava sentindo um frio esquisito. Quando abriu o casaco, estava rasgado e todo o salário dele de um mês sumido. Ele chegou em casa pálido, disse: “aconteceu isso… e nós não temos dinheiro”. Minha mãe disse: “Paulo, não tem jeito, vamos pedir ajuda a nossos amigos”. E aí, se eu não me engano, ele falou com Fernando Henrique Cardoso, que era o mais rico dos exilados naquela época no Chile. Ele lhe disse: “Fernando Henrique, pelo amor de Deus, me salva. Eu vou te pagar centavo por centavo, mas me dá meu salário, não tenho condições de sobreviver”. E Fernando Henrique deu uma bela soma para nós.

Como foi a passagem do Chile para Cambridge?

Lutgardes Freire: Em Cambridge, morávamos perto de Harvard, onde foi filmado Love story. Quando chegamos, meu pai tinha que aprender inglês em 40 dias (não usou o método dele, risos). O método que ele utilizou, o que eu me lembro, ele comentou comigo. Eu sentia que não daria certo, ele já tinha mais de 40 anos, teria que fazer um esforço enorme. Ele fez o seguinte: tinha um livro em espanhol, digamos, de Freud, e aí ele comprava o mesmo livro em inglês, e ficava lendo um e outro. O inglês dele era muito curioso. Usava muitas expressões que não são usadas no mesmo sentido em inglês, mas que fazem sentido para nós, brasileiros. Por exemplo, ele dizia, “look, look!” (olha, olha!). Ele foi falando assim. Ele comentava comigo, “estou fazendo um sucesso fantástico, sabe por quê, Lute? Porque os norte-americanos admiram toda pessoa que sabe latim, e como sou um homem latino, uso expressões em latim e eles ficam fascinados”. Ele aprendeu em 40 dias! Foram 11 meses fantásticos, difíceis para todos nós, as minhas irmãs ficaram no Chile e depois de certo tempo decidiram ir também para os Estados Unidos.

Pode o exílio ser considerado um momento de aprendizagem?

Lutgardes Freire: O exílio não é fácil. Vivemos 11 meses nos Estados Unidos, na época da Guerra do Vietnam. Foi um aprendizado, mas também você tem que estar disposto para esse aprendizado. Dos filhos, fui o mais resistente, eu não gostava dos Estados Unidos porque naquela época representava a coisa do imperialismo, do capitalismo, do dinheiro, os jovens protestando nas ruas. Eu era muito criança para entender tudo isso. Depois dos 11 meses, quando acabou o contrato do meu pai com a Universidade de Harvard, partimos para Genebra.

Como foi a sua experiência na escola?

Lutgardes Freire: Preciso dizer que a minha experiência na escola nos Estados Unidos não foi boa. Era uma escola normal, tinha aulas particulares de inglês, com uma professora da escola, eu e meu irmão. Eles tentaram nos ajudar o máximo para que a gente gostasse daquilo, mas eu não gostei, meu irmão gostou mais, era mais velho e entendeu.

Mas quando chegamos em Genebra foi demais. Eu disse: “não vou ficar, não suporto isso aqui”. Tudo certinho, tudo bonitinho, parecia casa de boneca, tudo maravilhoso, nenhum problema social, não tinha pobre (risos). Só depois de muito tempo que eu fui descobrir que os suíços escondem a sua pobreza. Claro que isso é relativo. Estamos falando dos anos 1970.

Na escola eu criei um problema para meus pais. Fui para a escola no primeiro dia, e o professor disse: “tirem seus cadernos, peguem as suas réguas, façam margens em todas as páginas”. Mas eu pensei, “esse cara pensa que está falando com máquinas?”

Cheguei em casa e disse para meu pai: “eu não vou estudar nessa escola”. Ele perguntou: “por quê?” “Eu não quero virar robô!” Ele disse: “filho, tu tens que ir à escola”. E eu: “não vou, e você critica essa escola que está aí! E eu também critico!”. Nossa… isso foi… meu pai teve que ir à polícia suíça para explicar e dizer, “desculpe, mas meu filho está passando por um choque cultural e psicológico muito forte aqui na Suíça, ele não está se adaptando, então ele não quer ir à escola”. Os suíços ficaram surpresos e disseram: “tá bom, ele vai estudar com um professor particular durante um ano, e, depois desse ano, ele volta para a escola. Ele terá se acostumado com a nossa cultura e voltará para a escola”.

Era um problema porque na Suíça a escola era gratuita e obrigatória, como deveria ser em todo o nosso país. Fui consultado por meu pai e aceitei. E assim fui tendo as minhas aulinhas de francês, matemática, história. Estou falando da década de 70 do século passado. Hoje pode parecer um absurdo. A escola suíça se você compara com a brasileira… não tem comparação.

Eu tinha 11 anos e depois entendi uma coisa fundamental, que é que o governo de um país é uma coisa, mas o povo é outra, não era para lutar contra todos e sim contra o governo, e como você é estrangeiro pega mal. Então, minha cara amiga, tinha que respeitar e estudar do jeito que todo mundo estuda.

Estudei até onde pude e depois do ensino fundamental não tirei nota suficiente para continuar o colegial. Fui estudar música, percussão clássica e popular no Conservatório Popular de Genebra. Foi fantástico. Mas, então, já era época de retornar ao Brasil.

Meu pai, no Conselho Ecumênico das Igrejas da Suíça, recebia gente do mundo inteiro e não tinha nenhuma restrição a ninguém. E viajava de 15 em 15 dias.

Eu vi fotos suas no Taj Majal, na Índia…

Lutgardes Freire: Não, não sou eu, eu não ia nessas viagens profissionais com o meu pai. De vez em quando ele viajava com a minha mãe. Ela carregou a família inteira nas costas, tinha que cuidar das crianças, da casa.

Mas eu quero chegar à África. Foi o momento em que meu pai começou a alfabetizar na África e foi uma das experiências mais marcantes na vida dele e mais bonitas também. Ele, junto com o IDAC, Instituto de Ação Cultural que criou em Genebra, viajou para as antigas colônias portuguesas que se libertaram. Ele ia e voltava; tem muita gente que pensa que moramos na África. As viagens duravam em média 15 dias a cada vez. Foi rico profissionalmente para meu pai.

Qual foi a particularidade do exílio nesse momento?

Lutgardes Freire: O exílio afasta você da sua cultura original, mas também lhe dá culturas diferentes, é complicado, porque em meu caso eu não me sinto totalmente brasileiro. Minha esposa certa vez me falou: “Lute, você lembra do Crush?” Eu perguntei: “O que é isso?” Eu não conheci isso dos anos 1970, eu estava na Suíça.

Eu me sinto um pouco estrangeiro, não tanto como Geraldo Vandré, que se sente exilado em seu próprio país. Sou um brasileiro que pensa em francês, em inglês, que fala um pouco de espanhol (está enferrujado). O exílio é uma coisa complicada porque você tem que fugir fisicamente da sua própria cultura. Fugir não significa esquecer, abandonar, escapar e nunca mais querer saber disso. Meu pai não fugiu, muito pelo contrário, ele deu uma grande contribuição ao mundo, não só ao Brasil, ao Chile, aos Estados Unidos, ou à Europa, África. Quando digo fugir é porque existiu de fato uma situação-limite, ou seja, se ele fosse preso no Rio de Janeiro, ele teria sido assassinado. Então, quando você se encontra numa situação como essa, você tem que fugir se você quer salvar a sua vida. Seria ridículo se ele fizesse o contrário, seria um suicida.

Aqueles que ficaram e lutaram contra a ditadura, esses não chegaram à situação-limite do meu pai, que foi perseguido, ele não tinha outra opção. Ele não queria sair do Brasil, ele disse para a minha mãe: “eu vou ficar”, e ela perguntou: “como você vai educar cinco filhos aqui?” É novamente a importância da minha mãe, da mulher, na sua vida.

O exílio foi se acalmando, fomos envelhecendo, amadurecendo. Chegou 1978, aconteceu a abertura no Brasil, e Dom Paulo Evaristo Arns foi a Genebra falar com meu pai, e ele disse: “Paulo, eu te garanto que nada vai acontecer contigo nem com a tua família voltando ao Brasil. Vou falar pessoalmente com os militares”.

Meu pai ficou muito tocado e muito feliz. Evidentemente, mais do que para nós, para meus pais o exílio provocava um sonho, que não é um sonho, é o leitmotiv (nem sei se se usa essa palavra ainda)… era uma coisa constante, “quando é que eu vou voltar?” Era um desejo profundo de voltar para sua casa, seu país, sua cultura.

Ele disse: “Lute, você vem comigo porque você está estudando percussão clássica aqui na Suíça, mas não tem condições de se manter, e eu não vou ter dinheiro para te manter aqui na Suíça”. Fiquei muito chateado com isso, eu queria ficar. Mas, por outro lado, tinha uma curiosidade enorme de conhecer o Brasil. Para mim, o Brasil foi sempre aquela coisa desconhecida de que todo mundo falava. Eu saí com cinco anos do Brasil e voltei com 21. Minha irmã Fátima foi para a Polônia, Cristina casou na Suíça, Joaquim decidiu largar a escola e se dedicar à música, ao violão clássico, então ele foi professor de violão já muito jovem. Madalena já estava no Brasil, ela tinha se casado com 18 anos no Chile com Francisco Welfort. Voltamos efetivamente para o Brasil, eu, meu pai e minha mãe, para este apartamento.

Conversando sobre exílio, hoje quando nos deparamos com grupos que sugerem retirar de Paulo Freire o reconhecimento legítimo de patrono da educação brasileira, é como se quisessem exilá-lo novamente. O que você pensa disso?

Lutgardes Freire: Essas pessoas são uma minoria. São pessoas geralmente humildes, que não estudaram ou estudaram pouco, não têm muito acesso à cultura nem entendimento da educação brasileira.

Podemos pensar que é um setor com falta de educação crítica?

Lutgardes Freire: Pois é.  É complicado porque, ao mesmo tempo que tem essas pessoas humildes, não é verdade que sejam só elas, você encontra outras pessoas, algumas muito ricas, que têm esse pensamento. É uma diferenciação que precisa ser feita. Essas pessoas são da extrema-direita e se posicionam contra meu pai, e têm todo o direito de fazer isso. Vivemos ou não vivemos em uma democracia? A gente tem que aprender também a respeitar o pensamento do outro. Podemos não concordar, mas não temos o direito de impor o nosso ponto de vista.

Acredito que o meu pai somente vai ser reconhecido no Brasil no dia em que nós tivermos uma quantidade muito pequena de analfabetos. Acredito que o método (ou proposta pedagógica) dele ensina rápida e eficazmente. Claro, é também político, crítico e democrático, e é por isso que não vinga, por isso que Paulo Freire é um exilado dentro de seu próprio país.

Como você vê o alcance desse movimento conservador global?

Lutgardes Freire: Estou estupefato com o que está acontecendo no mundo com esse retrocesso mundial da política para o fascismo, para o pensamento totalitário e esse pensamento norte-americano, da defesa dos direitos dos homens e das mulheres brancos de olhos azuis e loiros em detrimento da maioria das pessoas do mundo. É um retrocesso com um efeito tão forte que acaba provocando o que a gente chama de terrorismo; e leva a uma situação de exaustão, de terrorismo, e não é possível dialogar com o terrorismo. Se, ao mesmo tempo, tivéssemos amenizado essa diferença entre os mais ricos e os mais pobres o terrorismo não teria acontecido. O terrorismo é fruto de uma política elitista e racista. É muito grave, e com isso não estou defendendo o terrorismo, acho uma coisa horrível, mas a gente deve se questionar: o que o mundo ocidental está fazendo com o mundo islâmico para que tenha essa reação? É muito grave a questão da religião? Temos que ter um pouco de humildade e reconhecer se somos realmente democráticos, reconhecer e aceitar a diferença do outro. É um tema atual e muito complicado.

Voltando ao exílio de Freire, ele nunca foi realmente entendido e aceito no Brasil. Por mais que ele tenha ganhado prêmios, muitos desses prêmios não foram no Brasil.

Tenho a impressão de que Freire foi mais criticamente reconhecido em outros países da América Latina do que no Brasil…

Lutgardes Freire: Veja você a situação… o conservadorismo e o racismo ajudam. O brasileiro é racista e não quer que digam a ele que é racista, não quer reconhecer. Meu pai sofreu muito com isso, ele foi professor da PUC, mas o sonho dele era voltar para o Recife, ser aceito pela Universidade Federal e continuar o trabalho dele. Mas as condições políticas não o permitiram. Eu acho lastimável o conservadorismo, pensando em tudo isso do meu pai, ele hoje é reconhecido ainda no Brasil como do século passado, como literatura, como um professor que escreveu sobre educação e que tem que ser lido para passar na prova.

Evidentemente são tempos difíceis, mas ainda esperamos por mudanças culturais e políticas importantes. Como trazer Paulo Freire para a atualidade?

Lutgardes Freire: Na atualidade, a sociedade capitalista e, em particular, a sociedade brasileira, criou uma verdadeira adoração aos aparelhos tecnológicos e à internet. Ou seja: a ideia de que o que aparece na internet é verdadeiro, mas não é bem assim. As pessoas estão perdendo seu senso crítico. Antes de sair para o exílio, meu pai trabalhou na UFPE. Ele usou projetores trazidos da Polônia e, para vocês terem um número, eram três mil, e sobrou um, então tem 2.999 projetores enterrados no solo brasileiro, principalmente no sertão e em Pernambuco. Tenho certeza de que se hoje estivesse vivo ele estaria maravilhado com essa coisa da tecnologia. Mas ele ia dizer: olha, vamos utilizar isso para alfabetizar, para conscientizar, para brigar contra essa injustiça no Brasil. Ele não levaria em conta o que se leva em conta hoje, que é o entretenimento, o consumo, a publicidade, os usos para comentários racistas, as pessoas agredindo umas às outras. Isso ele criticaria com muita veemência.

Lutgardes, acredito que tivemos avanços importantes. O Fórum Social Mundial, ocasião em que você entregou para a Biblioteca Social Mundial, para o Mosaico, o livro Pedagogia do oprimido,[3] foi um dos indicativos de que a situação estava mudando. Claro, com a revalorização de Freire e desses espaços, aparecem os que contestam…

Lutgardes Freire: Sim, mas falta mais, porque falta a prática, a alfabetização, a conscientização, a humanização, a educação cultural, a educação política, todos as diferentes vertentes do pensamento Paulo Freire faltam ser trabalhados no Brasil.

O que você pode me dizer de Lutgardes Freire?

Lutgardes Freire: Lutgardes Freire é um pensador, uma pessoa que se preocupa com seu país, que se preocupa com seu vizinho, que se preocupa com o mundo. Sou uma pessoa extremamente generosa, já dei muita coisa minha para os outros, não me apego às coisas a não ser muito pouco, tento não me apegar. Sou professor de idiomas, estudei Ciências Sociais na PUC-SP (1980-86) quando retornei ao Brasil. Sou um cara que adora música, que adora escutar música popular brasileira, especialmente Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina… Tenho família, tenho uma filha linda de 19 anos, uma mulher fantástica que me ajuda muito, a Celia, e vou vivendo a vida, vou fazendo o que eu posso fazer para levar adiante o pensamento do meu pai, mas jamais para congelar o seu pensamento, sempre vê-lo como um momento de repensamento, de continuação do pensamento dentro da história. Nós temos realmente que reinventar Paulo Freire.

 


 

* Margarita Victoria Gómez é pesquisadora visitante do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ). Atua em pesquisa sobre Educação Superior e Migração no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI) e no Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU) na Universidade de São Paulo. Coordena a Virtus Educação e Pedagogia da virtualidade. Publicou vários artigos, livros e vídeos. Email: mvgomez07@gmail.com.

 

Notas

[1] São Paulo, 9 dez. 2017. O vídeo gravado será publicado no Youtube, canal Virtus educação: https://www.youtube.com/channel/UCHx77GT6UAXXFdbF2oOUJ6Q

[2] Parafraseando Euclides da Cunha: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

[3] Entrega de fac-símiles dos originais de Pedagogia do oprimido: 10 de outubro de 2001.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 29 minutos

TESTEMUNHO DE MULHER: ENTREVISTA COM MOEMA VIEZZER

Tive a alegria de conhecer Moema Viezzer há quase 20 anos no âmbito do Fórum Paulo Freire e do Fórum Social Mundial e, a partir daquele momento, fiquei tocada por sua história de iniciativas e compromisso com o meio ambiente, as mulheres e a educação popular. Nesta entrevista[1], realizada na cidade de São Paulo em meio a atividades vinculadas ao lançamento do seu mais recente livro, Vocação de semente – a história de uma facilitadora da inteligência coletiva, procuramos dialogar especialmente acerca de questões relativas ao lugar da mulher no pensamento e nas práticas pedagógicas.

Moema Viezzer Foto: Anderson Hilgert
Moema Viezzer
Foto: Anderson Hilgert

 

O que você poderia me dizer de Moema Viezzer?

Moema Viezzer: Sou brasileira, nascida em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, filha de agricultores de origem italiana, a primeira de seis irmãos. Passei minha infância em diferentes cidades (São Marcos, Farroupilha, Rio Pardo). Aos 9 anos, fui estudar como aluna interna num colégio de freiras, com a pretensão de ser uma delas. Meu sonho de criança era ser professora e a possibilidade que eu tinha era a de ser freira como as minhas professoras. Estudei no convento São José até me formar como “normalista”, coincidindo também com meu engajamento na Comunidade das Irmãs de São José, para a qual trabalhei particularmente durante o Aggiornamento orientado pelo Vaticano II. Após essa experiência internacional, fui morar no Nordeste do Brasil, onde conheci várias pessoas que atuavam com base na filosofia e metodologia de Paulo Freire. A partir da leitura da Pedagogia do oprimido, tornei-me também discípula deste mestre, que acompanhei durante muitos anos atuando como educadora popular. Orientei-me principalmente para duas áreas: a educação popular feminista e a educação popular ambiental. Primeiro com grupos populares, movimentos sociais e ONGs, depois também como consultora para órgãos do poder público e empresas. Atualmente vivo em Toledo. Estou aposentada, mas continuo atuando dentro de minhas possibilidades, do âmbito local ao internacional. Este ano foi lançado um livro sobre minha história enquanto facilitadora da inteligência coletiva, a partir de entrevistas e interação com a jornalista Tereza Moreira. Também estou concluindo um livro com Marcelo Grondin, meu marido, sobre “o genocídio dos povos originários do continente das Américas”, e estou acompanhando, a distância, a reedição, em espanhol, de Si me permiten hablar (“Se me deixam falar”)[2], que está sendo feita na Bolívia 40 anos depois da publicação original

Qual o legado de Domitila? Qual foi a contribuição para sua atuação após o encontro com ela?

Moema Viezzer: A publicação de Se me deixam falar veio como consequência da minha participação na Tribuna paralela à primeira Conferência das Nações Unidas sobre Mulher, Desenvolvimento e Paz, que foi um momento importante para a humanidade. Pode-se dizer que foi um marco histórico que teve muitos desdobramentos no sentido de desvendar a situação da mulher, tanto em termos de sua subordinação milenar ao homem como em termos de sua contribuição essencial para a vida neste planeta. À primeira conferência sucederam-se outras com conferências intermediárias que culminaram na Conferência de 1995, quando os governos aprovaram a Plataforma de Ação de Beijing, um documento que até hoje serve de referência para quem trabalha com políticas públicas para mulheres em prol da equidade de gênero.

Como foi o processo de publicação do livro Se me deixam falar?

Moema Viezzer: Se me deixam falar é o testemunho de uma mulher das minas de estanho da Bolívia, uma mulher que chegou até a 4ª série do curso primário e, no entanto, acabou sendo uma mulher que esteve ao lado de Eduardo Galeano, Noam Chomsky e importantes figuras do movimento feminista em eventos internacionais. Ela se tornou uma protagonista dos direitos humanos no âmbito internacional, graças à publicação, em vários idiomas, do seu testemunho de vida que eu recolhi por ocasião da Primeira Conferência das Nações Unidas realizada no México em 1975 sobre Mulher, Desenvolvimento e Paz, quando ambas participamos da Tribuna Internacional da Mulher, o evento paralelo à Conferência.

Eu diria que o livro, tal como foi publicado, é uma manifestação de como saberes que se constroem de maneira diversificada podem dialogar e dar margem a novas criações. Eu tinha o saber de uma pessoa que havia feito o magistério, uma experiência de educadora popular adquirida principalmente nos anos em que vivi no Nordeste, e tinha experiência como assistente de pesquisa na Universidade de Manchester, quando acompanhei meu marido que fez o doutorado. Mas o que Domitila sabia e o que eu sabia eram coisas diferentes. E o que sabíamos as duas de diferentes maneiras era expresso de maneira diferente. E foi da junção de nossos saberes que resultou a publicação de Se me deixam falar.

Na construção do saber coletivo, uma das questões é aceitar a diversidade, a sociodiversidade. Trabalhando com homens e mulheres de diversos setores: trabalhadores rurais, sindicalistas rurais e urbanos e outros, tive a oportunidade de perceber o quanto é importante, quando se reúnem pessoas de classes e setores diferentes na busca de soluções coletivas, ter clareza e sensibilidade para as diferentes formas de percepção e de atuação das pessoas e dos grupos sociais. Inclusive, dentro do mesmo grupo social.

Nunca esqueço, por exemplo, uma experiência que tive em Recife, na formação de um grupo de pescadoras e pescadores quando chegou a oportunidade de vender uma área de mangue para uma imobiliária. Os homens achavam o máximo ganhar um bom dinheiro para transformar aquela área em um conjunto imobiliário, enquanto as mulheres diziam: de jeito nenhum, aqui não vamos permitir que se mate a maternidade dos peixes. Olha a visão diferenciada que tinham! Lembro também do exemplo de uma proposta a respeito de uma fábrica venezuelana de cimento que poluía muito a redondeza. Quando se tornou objeto de discussão de mulheres e homens que sofriam os efeitos da poluição, os homens queriam que de qualquer jeito aquela fábrica permanecesse porque dela estavam tirando o ganha-pão; mas as mulheres diziam que não era assim… que a fábrica podia ficar na Venezuela, mas não naquele espaço onde estava estragando a saúde de todos, sobretudo das crianças.

A percepção que a gente tem da realidade depende da forma como está inserida nos vários espaços da sociedade, inclusive dentro da unidade doméstica. Por isso são tão importantes os diálogos, as rodas de conversa em função de tal ou qual questão ou problema em pauta, dando possibilidade de ouvir todos os lados, cedendo, ampliando, complementando, construindo uma inteligência coletiva até chegar a ver juntos a realidade a ser transformada.

Eu acho este um desafio, neste momento em que presenciamos um avanço exponencial dos meios de comunicação, especialmente dos meios de comunicação eletrônica. É tanto o que se tem disponível! Mas não é pelo fato de termos esses meios que nos comunicamos mais. Inclusive, a gente nota no uso do Facebook, do Instagram, do Whatsapp, e vários outros que temos à disposição que, se não aprendermos a administrar esses meios, eles podem se tornar meios de in- comunicação: você diz e o outro não ouve, o outro fala e você não escuta.

Precisamos de educação para aprender a administrar tudo aquilo que está disponível para utilizarmos. Só para dar outro exemplo: lembro que, certa vez, conversando com Rose Marie Muraro, ela dizia: a pílula anticoncepcional trouxe a liberdade da mulher. Eu comentei, nesse mesmo sentido: a pílula não é mais do que um instrumento que a mulher pode utilizar para sua liberdade na área reprodutiva; se tivesse, de fato, trazido a liberdade para a mulher, o Brasil não seria o segundo país do mundo com problema de alta porcentagem de adolescentes grávidas, não é mesmo? Toda oportunidade nova traz a necessidade de uma nova aprendizagem.

Vejo que tudo isso está relacionado com a questão da inteligência coletiva que pode exponencialmente estar sendo trabalhada para chegarmos a ser uma sociedade que constrói a paz, uma sociedade que pensa na comunidade de vida. Estamos num momento histórico em que se tornou urgente aprender a “recolocar as coisas no seu lugar”, porque estamos vivendo em um mundo desorganizado, no qual as leis do mercado regem a forma de organizar a sociedade, tornando a vida insustentável. Temos que aprender como administrar a abundância existente no planeta em função da vida da comunidade humana e dos demais seres que constituem toda a comunidade de vida, colocando a economia a serviço da sociedade e do meio ambiente. Essa é uma revolução que precisa acontecer neste mundo globalizado, no qual se situa também nosso país. Do jeito que estamos vivendo no Brasil não dá para continuar; corremos risco de não sobreviver nem como espécie humana.

Com a mudança cultural atual, como lidar com a vulnerabilidade, a decepção, o desencanto e o fracasso?

Moema Viezzer: A mudança de cultura transcende, definitivamente, mudanças de governos, de leis e até de alguns costumes. E como a cultura patriarcal é milenar, essa mudança é especialmente complicada. Acho importantíssimo, sim, a presença massiva das mulheres em tudo o que se refere à transformação social. Em qualquer espaço e em qualquer assunto, inclusive do próprio ser mulher na sociedade, de ser pessoa-ser humano, nas relações interpessoais, familiares e comunitárias, nas relações que a gente cria nas instituições com as quais a gente se liga – associação, sindicato, igreja, partido político e outros. As mulheres têm um jeito diferenciado de olhar a realidade. É um caminho a ser trilhado para homens e mulheres enquanto seres humanos. Eu acredito que é possível criar relações equitativas respeitando a diversidade.

A sociedade patriarcal foi construída priorizando o homem em detrimento da mulher, o que trouxe, na estrutura das sociedades, a dominação de um sexo sobre outro e a exclusão de muitas pessoas por orientações sexuais diferentes da heterossexual. Não se pode esquecer que até pouco tempo, em nossa civilização, de acordo com a lei romana, a mulher era propriedade do homem, tal como uma mesa, uma cadeira, um animal… e o homem podia fazer com ela o que quisesse, por vezes de maneira igual e até pior do que para escravos. Não foi sem razão que a escritora egípcia Nawal El Saadawi incluiu em seu livro A face oculta de Eva que, em certo momento da história, foi dada “liberdade para o escravo, mas não para a mulher”. E, por incrível que pareça, até hoje existem pseudocientistas que conseguem afirmar que a mulher é um ser inferior ao homem por natureza, em vez de reconhecê-la como um ser humano diferente. O patriarcado é uma forma de organização sociocultural milenar que ainda não apresentou sinais de rápida extinção.

A subordinação da mulher ao homem, enquanto questão estrutural, é uma das difíceis questões a serem encampadas a partir de novas concepções e ações individuais, bem como da redefinição de todos os atores sociais que interferem nas mudanças que se buscam.

Em todo o mundo é possível constatar como as leis não conseguem muitas vezes acompanhar o avanço civilizatório da humanidade e, muito menos, coibir atos de certos detentores do poder sobre as populações, particularmente sobre as mulheres. Modus vivendi ainda permitem assassinatos, aceitam estupro da mulher ‘por ser mulher’, consideram ‘natural’ que as mulheres sejam menos remuneradas do que os homens, não aceitam a partilha do poder… a lista inteira seria longa! Estamos frente a um terreno muito vulnerável exatamente por tratar-se da “revolução mais longa”, como dizia Juliet Mitchel já na década de 1960.

Sobre meus desencantos, nem preciso falar o quanto me chocou a nova gestão das políticas nacionais no que se refere a questões básicas de direitos humanos, incluindo a diversidade racial e a questão de gênero. Durante mais de uma década, eu me sentia muito fortalecida em minha atuação como educadora popular estando “alinhada às políticas nacionais”. Claro, podemos continuar falando das grandes declarações  planetárias. Mas, que diferença!

Também fico muito decepcionada em ver como o sistema de educação que temos não consegue chegar ao âmago do que deveria ser o ensino no momento atual. Pessoas que passaram pelos vários níveis do saber formal, às vezes com doutorado, pós e outras especializações, ainda são tão limitadas e ignorantes em relação às questões básicas que estamos defendendo quando trabalhamos sobre a diversidade social, a começar pela primeira diversidade existente entre os seres humanos: sua identidade de gênero. Basta abrir o Google e procurar a palavra “mulher” para ver o quanto ainda existe de atraso na humanidade em relação a isso.

Nossa! Haveria tantas coisas a dizer…

O que dizemos quando falamos do feminino no pensamento e nas práticas educativas?

Moema Viezzer: Existe “um outro jeito de ser” que permite a abordagem dessa questão em vários níveis. Uma delas, que remete a outras concepções e outras práticas é, sem dúvida, a revisão da linguagem – falada, escrita, visual, eletrônica. O fato de não aceitar O HOMEM como a referência única da criação e assumir a diversidade na forma de falar, de escrever, de tratar as imagens, é uma forma de abordar o feminino em sua questão relacional.

Nas práticas educativas, isso se faz não só a partir de exposições verbais, mas de práticas que ajudam a lidar com a diversidade como algo “bom para todos e todas”. Há muitos textos de suporte, métodos, dinâmicas, jogos, exercícios pedagógicos que podem contribuir para isso.

Qual a sua impressão sobre a educação popular e o movimento feminista?

Moema Viezzer: Tenho a impressão de que hoje em dia já existe bastante aproximação entre ambos. No início não foi assim. Os que se dedicavam à educação popular não podiam ouvir falar do feminismo: diziam que dividíamos a classe trabalhadora. Na verdade, a classe trabalhadora estava dividida pelo capital exatamente por ser considerada um bloco monolítico: sem sexo e orientação sexual, sem cor, sem idade. No caso do feminismo, houve um tempo em que os grupos de vanguarda não conseguiam “misturar-se” aos movimentos e organizações populares e vice-versa. Foi com o tempo que a questão começou a ter uma compreensão mais ampla nas instituições, começando por criar espaços específicos como departamentos, secretarias, comissões. E foi muito importante a criação de grupos e associações específicas de mulheres para levantar a questão de forma mais ampla, no sentido do cultivo da diversidade como uma questão de direitos humanos iguais.

Como você percebe a ciência, a arte e a tecnologia em feminino?

Moema Viezzer: Eu diria que há muito que avançar nesse sentido. Nas universidades, em geral, falta essa visão do feminino, particularmente do feminino apontando para novas “relações sociais de gênero” como condição para chegar à equidade. Existem muitos Núcleos de Estudo de Gênero que fazem bons trabalhos, mas nem sempre conseguem que isso permeie as várias esferas do saber, como uma nova prática dos espaços de produção do conhecimento. Como a tecnologia é fruto do conhecimento, também entra nessa mesma limitação ainda visível.

Na arte, me parece também que há muitos avanços. Mas a arte, como tal, ainda continua sendo uma arte patriarcal e novas formas de fazer arte, expressando aspectos sobre o qual estamos dialogando, são mal interpretadas.

Diante da diversificada produção de conhecimentos, como certificar saberes?

Moema Viezzer: Você quer dizer “patentear”? Sou totalmente contra o patenteamento de saberes coletivos como os das populações indígenas, por exemplo.

Da mesma forma, sou contra o patenteamento de saberes de uso comum durante séculos (plantas, ervas, receitas de cura, por exemplo), alguns durante milênios, como ocorreu com o Nim na Índia (árvore utilizada pelas comunidades indianas para a produção de madeira, fabricação de extratos e para fins medicinais. Foi patenteada nos Estados Unidos, mas foi derrogada pela denúncia de grupos vinculados à ecofeminista Vandana Shiva).

Como você vê, especificamente, a questão de gênero na educação?

Moema Viezzer: É uma lástima ter que constatar como a categoria de análise sociológica das “relações sociais de gênero” foi processada, manipulada e reduzida. Eu tive o privilégio de acompanhar o grupo que criou essa categoria de análise nos anos 1970, transcendendo a categoria de gênero utilizada pela psicologia. No âmbito da sociologia, a análise das relações de gênero veio para demonstrar como, em diferentes realidades sociais, as relações que se desenvolvem entre homens e mulheres ao longo dos tempos são históricas, ou seja, são criadas, recriadas, modificadas ao longo da história. Não são biologicamente naturais. E assim como foram historicamente criadas, também podem ser historicamente modificadas, como parte do avanço da humanidade. E estão sendo, efetivamente, mesmo com muita dificuldade e lentidão.

Essa forma de analisar a realidade ajuda muito a entender a importância de as mulheres ascenderem ao estudo, ao trabalho, à vida social, administrativa, política, nos mais diversos âmbitos, do local ao planetário. Mulheres e homens precisam viver bem, em igualdade de seres humanos respeitosos de suas diferenças. Para tanto, as sociedades precisam organizar-se dessa forma, pensando não só nas pessoas adultas, mas também nos jovens, adolescentes, crianças, pessoas idosas. Desse caldo emergirá uma nova consciência coletiva, incluída a consciência das relações de gênero equitativas.

Penso que o reducionismo da palavra gênero, que chegou até o Plano Nacional de Educação, tornando lei que não se empregue a palavra gênero, é um sinal de ignorância por uns e de má fé por outros. Foi eliminado o termo principal: as “relações sociais” levantadas pela questão de gênero e, em certos meios, limitado o conceito ao vocábulo transgênero. Uma lástima.

Quando falamos de relações sociais de gênero equitativas, estamos falando no total respeito à diversidade de sexos e de orientações sexuais e na possibilidade de os seres humanos conviverem em sociedade dirigindo empresas: homens e mulheres podem fazer política, mulheres e homens podem administrar a unidade doméstica, mulheres e homens são responsáveis pela educação das novas gerações. São mudanças estruturais na forma de dirigir, de empregar, de educar, enfim, de conviver, que supõem mudanças grupais e individuais.

E com relação à questão de que é a mulher quem educa, o que você pensa?

Moema Viezzer: O patriarcado está interiorizado nas mulheres também, mas até isso é uma questão estrutural. Só para citar um exemplo: a violência hoje espalhada pelas casas e nas ruas pode ser atribuída a mulheres que não educam seus filhos? Os fatos comprovam que não é assim e que estamos frente a um fenômeno que faz parte de uma questão muito maior e que afeta – inclusive de maneira muito especial – as mulheres.

O professor está preparado ou disposto a dialogar com estudantes que se declaram híbridos, sem gênero ou sexo definido?

Moema Viezzer: É difícil porque não estamos preparados para isso. Eu mesma, se tiver que lidar com essa questão em meu cotidiano, dentro de casa, precisaria aprender a lidar com tal complexidade; é uma formação que eu não tive. O que acho errado é “etiquetar” uma pessoa, um ser humano, um cidadão-cidadã exclusivamente a partir de sua orientação sexual. É importante que este seja acolhido como uma pessoa em sua totalidade física, psicológica, material, espiritual, com todos os direitos de um ser humano ao trabalho, ao lazer e à convivência.

Você considera que essas questões pedem mais diálogo sobre as várias compreensões do feminismo e das feministas?

Moema Viezzer: O feminismo em suas várias correntes – os vários feminismos – questionaram profundamente os preconceitos ligados ao fato do que é ser feminina e, mais do que isso, as estruturas sociais que os alicerçaram. Há muito estereótipo ainda sendo revisto e também estão sendo repensados os muitos fatores sociais que levaram à bipolarização das relações entre mulheres e homens. As diversas correntes do feminismo trouxeram à tona ações pessoais e interpessoais, demonstrando que estamos frente a uma questão social estruturante.

Acredito que é a dimensão política (retomando a educação e Paulo Freire) que aparece nesse fato de pensar o lugar da mulher…

Moema Viezzer: Sim. A sociedade é feita de mulheres e homens, de diferentes idades, de diferentes opções, e a gente tem que criar formas novas – e diferentes – de convívio na sociedade. Afinal, essa é a dimensão da política. E como lembravam as feministas já nos anos 1960: “as questões pessoais são questões políticas”.

O que você sente quando se defronta com o atual movimento de retrocesso, de conservadorismo, da emergência de ideias e atitudes fascistas?

Moema Viezzer: Fico triste com muitas coisas que vêm acontecendo. Com o fato de ver pessoas de idades diferentes ouvindo e vendo Bolsonaro, apesar da maneira nefasta de ele tratar as pessoas, particularmente as mulheres, de achar que violência se rebate e se resolve com mais violência, de engrandecer o jeito ditatorial militar de governar. Tanta gente a quem não faltou estudo ainda é capaz de dizer que se precisa de “alguém assim para pôr ordem no país”. Pesado, não é?

Também é chocante ver tanta gente que esteve na rua para pedir a saída de quem estava governando antes e agora percebe que não foi acertado, mas ainda não tem consciência de que o que vai resolver as questões do país é um ato mais coletivo e que nossos atos também são responsáveis pelo que vem ocorrendo no país. No caso da escolha de dirigentes, por exemplo, em sua maioria nossos atuais supostos representantes no Congresso Nacional só pensam em si mesmos, em como se reelegem e, mais do que isso, em como se reelegem a partir de comportamentos totalmente viciados. Estamos vivendo um momento bem difícil. Vamos precisar inventar, criar outras forças sociais capazes de mostrar que nós, cidadãos e cidadãs, também valemos neste país.

As mudanças estruturantes que estamos conhecendo atualmente em parte representam um soco no estômago de quem durante muito tempo esteve lutando por transformações sociais em benefício das populações. Puxa vida! Tudo o que a gente aprendeu e conseguiu levar à frente enquanto “sujeitos históricos”, como sempre insistia Paulo Freire. Por que isso tem que ser reprimido e sucateado, fazendo-nos voltar muitos anos na condução de nosso destino?

Você conheceu Paulo Freire?

Moema Viezzer: Sim, eu trabalhei com equipes freirianas no Nordeste do Brasil – Pernambuco, Bahia, Maranhão –, quando Paulo Freire já estava no exílio. Depois, quando voltei do exilio, morei num bairro próximo de sua residência e a gente se encontrou várias vezes. Contribuí para sua presença em vários eventos internacionais. Ele me ajudou muito quando voltei ao Brasil até para decidir como continuar o trabalho que tinha iniciado com Domitila no México e dado seguimento com mulheres da República Dominicana e do Haiti. Ao retornar ao Brasil, estava num dilema: vou para um bairro e me dedico a trabalhar localmente com mulheres como educadora popular, ou procuro uma forma de envolvimento que me permita trazer para cá o que tinha aprendido no exílio? Porque, na verdade, toda moeda tem duas faces: se por um lado o exílio foi muito difícil de viver, foi também um momento em que aprendi muito. Tive a possibilidade de conhecer outras realidades e trabalhar com mulheres diferentes, e de aprender também muito sobre feminismo e aplicá-lo na educação popular no âmbito da América Latina, da qual tive a oportunidade de conhecer muitos países.

Em algum momento esse feminismo foi rejeitado?

Moema Viezzer: Quando voltei do exílio, no final da ditadura, os grupos de mulheres populares que você encontrava eram, majoritariamente, os que tinham estado dentro dos grupos das Comunidades Eclesiais de Base. Então, eu pensei: vamos ver o que dá para fazer junto com esses grupos. E tive a sorte de poder iniciar meu trabalho nesse sentido com um projeto do qual participaram clubes de mães e grupos de mulheres de São Paulo. Sobre 100 grupos de mulheres que entrevistamos no início da década de 1980, somente um falava sobre “os direitos da mulher”. Mas ali já existia um trabalho que não era de corte assistencialista, um trabalho com base na Teologia da Libertação que tinha ajudado as mulheres a entender como funcionava a economia do país e o porquê das discrepâncias sociais. Parecia um terreno bem propício para trabalhar as ideias do feminismo.

Então começamos a trabalhar com esses grupos temas feministas com a metodologia de educação popular: partindo do concreto ao abstrato, do particular ao geral, do local ao global. Não nos preocupamos em explicitar conceitos desde o início. Para as mulheres participantes, foi muito mais fácil, após alguns meses de trabalho, entender que o que elas traziam à tona eram assuntos do movimento feminista e então explicar “o feminismo enquanto instrumento teórico e prática política”, como falava a argentina Judit Astelarra. Foi muito legal porque um dos grupos, inclusive, criou uma associação autônoma de mulheres, a Associação de Mulheres da Zona Leste, que continuou na caminhada e hoje faz parte da coordenação do movimento de mulheres da região. Processos similares aconteceram com outros grupos com os quais trabalhamos posteriormente em vários cantos do país.

Falando com Lutgardes Freire, filho caçula de Freire, ele nos contou acerca do seu exílio e sobre a questão do machismo naquele contexto. Como você avalia isso?

Moema Viezzer: Quando conheci Paulo Freire, ele era um grande patriarca, supereducado e muito amoroso. Era fruto de sua própria formação, mas nunca deixou de querer aprender.

Em relação ao assunto de que estamos falando, Freire tinha consciência de que era um aspecto com o qual ele não tinha trabalhado no início, mesmo se tratando de “oprimidos” e de “sujeitos históricos”. Foi uma evolução interessante a que aconteceu com ele. Lembro-me de um encontro de educação popular em Piracicaba, acho que em 1986, com a presença de aproximadamente 700 educadores e educadoras, no auditório da Universidade Metodista. Quando abriram a palavra após a intervenção dos expositores da mesa, escutei três ou quatro perguntas e fiz esta pergunta a Paulo Freire: como o sr. avalia a questão das mulheres na educação popular? Nossa! A reação da plateia foi de quase total rejeição. Mas Paulo Freire, respondendo  simplesmente, de acordo com o que ele pensava e até onde ele tinha chegado, disse:  “Se eu me permitisse oprimir a minha esposa e as minhas filhas, eu não me permitiria estar aqui na frente de vocês falando em educação, porque é muito importante que a gente saiba que qualquer forma de opressão deve ser atacada. Mas eu acho que essa questão de opressão das mulheres, elas é quem vão nos ensinar. Vamos ter que aprender com elas”.

E aprendeu! Em seu livro intitulado Pedagogia da esperança, Paulo Freire revisa várias questões da Pedagogia do oprimido a partir das críticas que recebeu das mulheres. Um dos pontos centrais é a questão da linguagem, mas a linguagem enquanto forma de expressão de toda uma cultura. É bonito ver a evolução de um grande filósofo-educador como ele.

Nossa linguagem e práticas inclusivas já estão chegando ao cotidiano das pessoas e das instituições como fruto das mudanças que propugnamos. Já fizemos muita coisa chegar a conferências internacionais que os governos assinaram. Mas como é difícil passar do papel para a prática! Investe-se muito para chegar às cúpulas tanto no âmbito nacional como internacional. Quanto dinheiro, quanta reunião, quanta assembleia, quanto evento para chegar à cúpula! Mas, de forma geral, não se emprega suficiente tempo, dinheiro e trabalho para aplicar o que foi decidido na volta à planície do cotidiano, que é onde a vida acontece.

Sempre insisti nesse aspecto enquanto educadora popular. O último trabalho que fiz diretamente relacionado com feminismo e educação popular foi quando saiu o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres, resultado da 2ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, da qual participaram mais de duzentas mil mulheres nas conferências municipais, estaduais e nacional. Como retornar? Quando recebemos nos municípios o texto técnico, logo pensei na importância de transformá-lo numa linguagem e metodologia que facilitassem a aplicação no âmbito local. Então preparamos uma versão adaptada que intitulamos: Nosso Plano em Ação, com dez cartilhas, uma para cada eixo do Plano, com propostas concretas de mutirão para cada um dos temas, envolvendo todos os atores sociais que interferem nas políticas públicas para mulheres em cada área: saúde, educação, comunicação etc., mostrando claramente que esse Plano não era só “assunto de mulher”, mas assunto de políticas públicas, ou seja, de todos e todas. Para cada tema era sugerido um mutirão com questões envolvendo a prefeitura, o legislativo, o judiciário, as empresas, os meios de comunicação, as organizações da sociedade civil, os partidos políticos. Praticamente era um diagnóstico que permitia partir para o planejamento. Foi um trabalho muito gratificante, aproveitado por vários grupos de todo o país, entre eles várias organizações de mulheres agricultoras.

E como estão essas políticas hoje?

Moema Viezzer: A sensação do momento é de “desmonte”. O governo atual acabou com a Secretaria de Políticas para Mulheres ligada à Presidência da República; o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher já não conta com as conselheiras da sociedade civil, que se retiraram. Está tudo muito difícil. No âmbito local também, porque isso teve um efeito cascata.

Para encerrar esta conversa, gostaria que falasse um pouco dos referenciais teóricos que estão presentes na sua reflexão e nos seus trabalhos.

Moema Viezzer: Sem dúvida, minha formação de educadora popular esteve muito marcada pelos escritos de Paulo Freire e a prática que eu tive a oportunidade de ter com a equipe diretamente ligada a ele, além dos mestres da Teologia da Libertação, particularmente Leonardo Boff, Ivone Gebara e Marcelo Barros. A partir do exílio, fui agregando outros insumos e, paulatinamente, orientando meu trabalho principalmente em função da educação popular feminista e da educação popular ambiental. Com relação à questão feminista, foi marcante minha participação na Tribuna paralela à 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Mulher, Desenvolvimento e Paz no México, onde se deu meu encontro com Domitila, a partir do qual desenvolvi muitos trabalhos começando pelo livro Se me deixam falar, seguido de muitos outros na linha da educação popular feminista.

Eu diria que a pessoa que mais me marcou e me fez entrar nesse universo foi Kate Young, uma das integrantes do grupo da Inglaterra que criou a categoria de análise das relações sociais de gênero e me convidou para o primeiro Seminário Internacional sobre o tema realizado em Sussex em 1978, a partir do qual muita coisa mudou em minha vida pessoal, de ativista social, e em meu trabalho de educadora popular. Na questão ambiental, a física indiana Vandana Shiva e a socióloga alemã Maria Mies, duas ecofeministas internacionalmente conhecidas, são as que mais me inspiraram para incluir na dimensão ambiental o que eu tinha aprendido enquanto educadora popular feminista, ou seja: a revisão global do contato do ser humano com a natureza a partir da visão das mulheres, particularmente a partir do ecofeminismo.

Muitas pessoas cruzaram meu caminho, mas acho que essas me marcaram de maneira muito especial. E, sem dúvida alguma, o diálogo de saberes que se dava na prática da educação popular feminista trouxe uma espécie de novo “caldo cultural” que, dentro de minha capacidade, fui absorvendo ao longo deste mais de meio século de minha existência no qual estive empenhada em facilitar a inteligência coletiva.

 


 

* Margarita Victoria Gómez é pesquisadora visitante do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ). Atua em pesquisa sobre Educação Superior e Migração no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI) e no Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU) na Universidade de São Paulo. Coordena a Virtus Educação e Pedagogia da virtualidade. Publicou vários artigos, livros e vídeos. Email: mvgomez07@gmail.com.

 

Notas

[1] A entrevista foi realizada por Margarita Victoria Gómez em dois momentos: um por e-mail e outro presencial, no dia 18 de dezembro de 2017, na cidade de São Paulo. A entrevista foi editada para fins desta publicação.

[2] Si me permiten hablar: testimonio de Domitila, una mujer de las minas de Bolivia / Barrios de Chungara. Domitila; Viezzer, Moema, 1. ed. México: Siglo Veintiuno, 1977.

artigo
Tempo de leitura estimado: 37 minutos

SKOKIAAN OU NÃO? SOBRE CULTURA AFRICANA E SUA FILOSOFIA

Resumo: O texto discute os limites e possibilidades do diálogo intercultural entre Europa e África. Para isso busca uma aproximação através de um exercício de escuta a vozes de um filosofar africano e suas implicações teológico-políticas. A contemporaneidade da obra de Mogobe Ramose, African Philosophy through Ubuntu, ganha destaque.

Palavras-chave: diálogo intercultural, filosofia africana, ubuntu, teologia política.

Abstract: The text discusses the limits and possibilities of intercultural dialogue between Europe and Africa. For this, it seeks an approach through an exercise of listening to the voices of an African philosophy and its theological-political implications. The contemporaneity of Mogobe Ramose’s work, African Philosophy through Ubuntu, is highlighted.

Keywords: intercultural dialogue, African philosophy, ubuntu, political theology.

 

1. Aprica, Aphrique, Afriga

Jahnheinz Jahn (1958) começa seu livro clássico Muntu: Umrisse der neoafrikanischen Kultur com uma questão e um ponto de interrogação: Skokiaan? Podemos abordar skokiaan como o enigma de uma esfinge e a dúvida de Jahn como uma ponte preciosa para o difícil diálogo entre Europa e África.

Na África do Sul do apartheid, skokiaan era uma bebida alcoólica proibida de produção doméstica feita de levedura, açúcar e água. Consultando o Oxford Dictionaries podemos ler que esta palavra se origina talvez do Zulu isikokeyana, que pode ser traduzido livremente como “cercadinho”, numa referência à prática de esconder a bebida proibida em buracos cavados no chão[1]. Skokiaan, a bebida fermentada sob a opressão é um produto da “invenção da cultura” ensinada por Roy Wagner (1975). E Skokiaan é também uma música popular, originalmente composta pelo músico natural do Zimbábue August Musarurwa (comumente identificado como August Msarurgwa)[2]. Louis Armstrong[3], Bill Halley e Herb Albert são alguns dos artistas com interpretações próprias de skokiaan.

Os versos de Skokiaan cantam uma “África” do imaginário ocidental nas palavras de Louis Armstrong:

Oh, Far away in Africa
Happy happy Africa
They sing a-bing-a-bang-a-bingo
They have a ball and really go
Skokiaan, Skokiaan, Skokiaan, Skokiaan
Oh, Take a trip to Africa
Take any ship to Africa
Come on along and learn the lingo
Inside a jungle bungalow
Skokiaan, Skokiaan, Skokiaan, Skokiaan
Hot drums are drummin’, the
Hot strings are strummin’, and
Warm lips are blissful, they’re
Kissful of Skokiaan
Oh, When you go to Africa
Happy, happy, Africa
You live along like a king-o
Right in the jungle “all alone? on the low?”
(Hokey-Skoki) Skoki-oki-aan
(Okey-Dokey) Anybody can
(Skoki-Skoki) Man, oh man, oh man
You sing a-bing-a-bang-a-bingo
In hokey-pokey Skokiaan
Skoi-aa-aa-aa–ann
Oh, Far away in Africa
Happy, happy Africa
They sing a-bing-a-bang-a-bingo
They have a ball and really go, go, go

A denominação “africano” não é uma designação geográfica inocente. As questões a não ser esquecidas são: por quê? como? e quando? o continente recebeu o nome “Africa”.

Na Encyclopedia Britannica podemos ler que na Antiguidade os Romanos designaram a costa mais ao norte do continente Africa, provavelmente com origem no latim aprica (ensolarado) ou no grego aphrike (sem frio). Assim Africa denominou uma extensão territorial mais ao sul da Europa, descrevendo experiências climáticas gregas e romanas. O uso da palavra como denominação de todo o continente foi baseado nas conquistas romanas do “norte da África”. Os romanos chamaram Afriga, ou a terra dos Afrighs, uma comunidade bérbere do sul de Cartago. Ou ainda assim designaram uma região produtiva de “espigas de trigo” situada na atual Tunísia[4].

Em síntese: europeus, não africanos, deram o nome Africa”. A história da “África” é principalmente a história da experiência europeia-ocidental da “África”.  Apenas incidentalmente ela considera as narrativas que os povos do continente contam sobre si mesmos. A conquista colonial de territórios “africanos” ignorou a cultura dos povos conquistados. Para os conquistadores, seu clima quente e ensolarado era bem mais importante.

Dois livros de Albert Memmi (1957, 2004) testemunham a desilusão contemporânea que marca as relações entre Europa e África. Eles são como marcos de um caminho de uma jornada que começa com o anseio por uma “nova cidadania” e termina com a criminalizada “liberdade dos migrantes”. Essa jornada de desencontros encontra expressão estética na epígrafe da bela novela Partir de Tahar ben Jalloun (2006): “meu amigo camaronês Flaubert diz ‘estou vindo’ quando ele parte e ‘estamos juntos’ quando se separa de alguém”. E Jahnheinz Jahn (1958) já nos advertiu há décadas sobre os riscos dessa jornada, afirmando que a questão-chave para o futuro da África é a existência de uma cultura neo-africana, uma vez que “somente onde alguém se sente ser herdeiro e sucessor, tem poder para um novo começo[5] (Jahn, 1958, p. 18). E a cultura neo-africana não deve ser meramente skokiaan, “não apenas autoengano, intoxicação e falácia”[6] (Jahn, 1958, p. 16).

Dois livros se destacam na configuração do diálogo intercultural entre Europa e África na segunda metade do século XX. O primeiro deles registra as conversações entre Ogotommêli, um sábio caçador do povo Dogon, que ficou cego por acidente, e Marcel Griaule, um antropólogo francês. Após muitos anos de estudo em meio aos Dogon, Griaule veio num dia de outubro de 1956 a ser chamado para uma visita na casa de Ogotommêli. Durante trinta e três dias, novos encontros e conversações aconteceram que vieram a ser publicados no livro Dieu d’Eau. Entretiens avec Ogotommêli (1948). No prefácio da primeira edição francesa Griaule escreveu que o livro era uma homenagem “ao primeiro negro da Fédération Occidentale que revelou ao mundo branco uma cosmogonia tão rica quanto à de Hesíodo, poeta de um mundo morto, e uma metafísica que oferece a vantagem de se projetar em mil ritos e gestos numa cena onde a multidão de homens viventes se move (…) colocando a nu a ossatura de um sistema de mundo cujo conhecimento vai revolucionar de cima abaixo as idéias relativas à mentalidade negra como mentalidade primitiva em geral”[7].

O segundo é a tese de doutorado de Alexis Kagame, La Philosophie Bantu-Rwandaise de l’Être (1956), defendida e aprovada junto à Universidade Gregoriana de Roma, seguida por um estudo comparativo mais amplo do mesmo autor: La Philosophie Bantu Comparée (Kagame, 1976). Kagame retornou a Ruanda em 1958. Foi professor no seminário católico, membro proeminente do movimento de independência e forte defensor da africanização da cristandade.

A tese de doutorado de Kagame foi um trabalho acadêmico pioneiro na Europa sobre elementos da filosofia africana como uma filosofia-ntu. Ou seja, como uma filosofia de conexões e relações vitais que dá ênfase especial à raiz comum de quatro palavras: muntu (ser humano, plural bantu), kintu (coisa, plural bintu), hantu (lugar e tempo) e kuntu (modalidade). Ntu designa relações vinculantes que expressam não apenas o que bantu, kintu, hantu e kuntu conjuntamente efetuam, mas também, e primordialmente, o que conjuntamente são.

Dieu d’Eau inaugurou, desde uma perspectiva europeia, o reconhecimento da existência de uma filosofia propriamente africana. La Philosophie Bantu-Rwandaise de l’Être expressa o empenho comprometido por traduzi-la numa linguagem ocidental, suposta universal. Considerando as relações assimétricas de poder do colonialismo, não deve ser surpreendente que estes trabalhos pioneiros tenham tido diferentes recepções nos dois lados da fronteira.

Construir pontes dialogais entre as culturas africana e europeia não é tarefa fácil. Requer a aplicação do que Heinz Kimmerle designa como “metodologia da escuta”, que nos ensina que “temos que escutar, escutar por muito tempo, como na filosofia de uma cultura diferente são articuladas respostas para certas questões e reações para alguns de nossos argumentos. A escuta tem que ser aprendida; isso exige abertura, concentração, disciplina e técnica metódica. A escuta é arte, assim como a compreensão que vem muito mais tarde”[8] (Kimmerle, 2001, p. 293). A adoção dessa metodologia tem dois corolários: (i) não há nenhuma garantia de que tudo numa cultura diferente possa ser plenamente compreendido mesmo após trabalho longo, árduo e paciente e (ii) a compreensão mútua é uma atitude crítica.

Uma primeira coisa a ser escutada é que “África” poderia ter um significado muito diferente se os “Afrighs” fossem responsáveis pela denominação do continente. Mas, para Mogobe Ramose, isso não deve ser motivo ou pretexto para se abolir a designação, uma vez que “… podemos declarar confiantemente que eu duvido, portanto a filosofia africana existe[9] (Ramose 2003a, p. 118).

2. Cognatus sum, ergo sumus

A abordagem de Kagame buscou decodificar a filosofia-ntu usando como chave a linguagem (supostamente universal) do aristotelismo. Ele tentou mostrar como para a filosofia-ntu todas as coisas do mundo (animais, minerais ou plantas) são vazias de qualquer inteligência humana ativa. E essa inteligência, por sua vez, tem dois níveis: (i) o dos serviços efetivos e (ii) o dos hábitos e propósitos. Os serviços efetivos são domínio da astúcia, da esperteza e da destreza. Hábitos e propósitos são domínio do conhecimento e da sabedoria. A ativa inteligência humana age sobre as coisas do mundo através de nommo, a palavra-ato que lhes nomeia e conduz no caminho de um fazer significativo. Assim, as coisas do mundo são como vasos vazios a serem preenchidos com palavras-atos humanas.

O horizonte da filosofia-ntu engloba os vivos e os mortos-vivos (ancestrais). Os ancestrais influenciam sua descendência, protegendo e reforçando sua vitalidade. No mundo da filosofia-ntu os nascimentos humanos são duplos. O primeiro nascimento é corpóreo. O segundo nascimento é a recepção de um nome. Por seus dois nascimentos a pessoa humana se torna um ser completo. O primeiro nascimento é a “união de um corpo com uma sombra” (buzima). O segundo nascimento possibilita através de nommo a “união de uma nova pessoa com o poder dos ancestrais” (magara).

A vida tem duração, concretude e imaterialidade. Os viventes possuem simultaneamente concretude e imaterialidade. Um vivente não tem (nem mais nem menos) buzima. Ele ou ela só podem ser buzima. Um vivente nunca pode ser magara. Ele ou ela só podem ter (mais ou menos) magara. Somente mortos-vivos (ancestrais) são magara.

Kagame se apoia na linguagem do aristotelismo e aceita que a presença de uma afinidade de linguagem seja de caráter similar a uma mesma disposição de visão de mundo. Moses Makinde (2007) questiona essa suposição como problemática. A suposta semelhança entre as filosofias grega e bantu que Kagame quer afirmar pode incorrer no que Theophilus Okere (2005) chama de falácia da comparação nas relações interculturais, a saber, uma tendência a intercambiar e entrelaçar culturas, tomando uma delas (usualmente nossa própria) como padrão.

Samuel Imbo (1998) afirma que Kagame transplanta para a culture bantu-rwandaise suas próprias (fortes) crenças tomistas, como uma expressão de unidade da racionalidade nas tradições e culturas humanas. Nelson Ukwamedua (2011) aponta que a armadilha é assumir a profecia que se realiza a si mesma: ‘se isso é suficientemente bom para o aristotelismo, é suficientemente bom para Kagame’.

A filosofia tout court não é o mero esforço por adaptar para condições e necessidades locais conhecimento gerado em outra parte, como aponta Akilagpa Sawyerr (1998). Um autêntico filosofar, como argumenta Olesegun Oladipo (2000), só é possível através da inclusão daquilo que foi deliberadamente ignorado e omitido. Esta questão, crítica para qualquer filósofo africano, é denominada Ibuanyadanda por Innocent Asouzu (2007), afirmando ser tarefa crítica para a filosofia africana superar o individualismo ocidental. Acreditamos que o livro de Mogobe Ramose, African Philosophy through Ubuntu (1999), é um notável passo nessa direção.

Para Ubuntu, o “eu” de um vivente humano é um nó contingente numa rede de conexões em fluxo, onde o “nós” tem um papel central. Esta rede relacional se dá em três dimensões, incluindo os viventes, os ancestrais e os descendentes ainda por nascer. Como coloca Bénézet Bujo “… para a África negra não é o cogito ergo sum cartesiano, mas sim um existencial cognatus sum, ergo sumus [eu estou em relação, logo nós somos] que é decisivo”[10] (Bujo, 2001, p. 22). Assim, a ética do Ubuntu expressa uma “… solidariedade anamnética que recorda o dever de continuamente realizar de novo a amizade tridimensional”[11] (Bujo 1997, p. 72). Para Ubuntu cada palavra-ato é uma palavra de ligação, uma palavra vinculante. Assim, o compromisso pelas palavras empenhadas é uma marca da cultura africana tradicional, enquanto, em contraposição, as palavras coloniais podem ser proferidas irresponsavelmente e permanecer desconexas e soltas, sofrendo pseudomorfoses e mesmo se tornando vazias do significado que lhes atribuíam originariamente os europeus.

Em síntese:

1. Para a tradição cultural africana “no princípio era o fluxo vital de relações e conexões“, como belamente expressam versos de Aimé Césaire, em Corps perdu (coleção de dez poemas publicada em 1950, em edição ilustrada com trinta e duas gravuras de Pablo Picasso):

Fora no lugar da atmosfera uma bela
bruma sem mancha
Cada gota de água formando um sol
Cujo nome, o mesmo para todas coisas
Seria ENCONTRO BEM TOTAL
Ainda que não se saiba mais que passou
– uma estrela ou uma esperança
Uma pétala da árvore exuberante
Ou um abrigo submarino
Atravessado por tochas flamejantes de medusas-da-lua
Então a vida, imagino, me banharia por inteiro
Melhor eu a sentiria me tocar ou morder
Deitado eu veria virem a mim os cheiros enfim livres
como mãos que socorrem
e fariam passagem por mim
para ali balançar longos cabelos
mais longos que ESTE passado que não posso alcançar
Dehors une belle brume au lieu
d’atmosphère serait point sale
chaque goutte d’eau y faisant un soleil
dont le nom le même pour toutes choses
serait RENCONTRE BIEN TOTALE
si bien que l’on ne saurait plus qui passé
ou d’une étoile ou d’un espoir
ou d’un pétale de l’arbre flamboyant
ou d’une retraite sous-marine
courue par les flambeaux des méduses-aurélies
alors la vie j’imagine me baignerait tout entier
mieux je la sentirais qui me palpe ou me mord
couché je verrai venir à moi les odeurs enfin libres
comme des mains secourables
qui se feraient passage en moi
pour y balancer de longs cheveux
plus longs que CE passé que je ne peux atteindre.

2. A morte aniquiladora é alheia à tradição cultural africana, como belamente expressam os versos de Léopold Senghor (2006) In Memoriam:

Ontem era Dia de Todos os Santos,
aniversário solene do sol
E sem qualquer lembrança em nenhum cemitério
Ó mortos, que sempre se recusaram a
morrer, que souberam
Resistir à morte
Atéo Sine até o Sena, e nas
minhas veias frágeis,
Meu sangue irredutível
Protegei meus sonhos como fizestes
vossos filhos, os migrantes de pernas finas.
Ó mortos! Defendei os telhados de Paris
na bruma dominical
Os telhados que protegem meus mortos.
C’était hier la Toussaint,
l’anniversaire solennel du soleil
Et nul souvenir dans aucun cimetière.
O Morts, qui avez toujours refusé de
mourir, qui avez su
Résister à la mort
Jusqu’en Sine jusqu’en Seine, et dans
mes veines fragiles,
Mon sang irréductible
Protégez mês rêves comme vous avez
fait vos fils, les migrateurs aux jambes minces.
O morts! Défendez les toits de Paris
dans la brume dominicale
les toits qui protègent mes morts

E nos versos de Birago Diop Souffles encontramos uma soberba síntese de ambas perspectivas:

Escute mais frequentemente
as coisas que os seres
A voz do fogo se ouve,
Ouça a voz da água
Escute no vento
Os arbustos aos soluços
É o Sopro dos ancestrais.
Écoute plus souvent
Les choses que les Êtres
La voix du Feu s’entend,
Entends la voix de l’Eau.
Écoute dans le Vent
Le Buisson en sanglots
C’est le Souffle des ancêtres

Poemas africanos são artesanias de nommo (a palavra-ato). Poetas africanos criam e recriam mundos pelo poder mágico de palavras, como fez Aimé Césaire em seu Cahier d’un Retour au Pays Natal:

Eu redescobriria o segredo das grandes
comunicações e das grandes
combustões. Eu diria tempestade. Eu diria
rio. Eu diria tornado. Eu diria folha.
Eu diria árvore. Eu seria encharcado por
todas as chuvas, umedecido por todos
orvalhos. Eu iria rolar como sangue
frenético sobre a lenta corrente do olho
palavras em cavalos loucos em crianças
frescas em coágulos em toque de recolher em
vestígios de templo em pedras preciosas
longe o bastante para desencorajar os mineradores.
Quem não me compreendesse, tampouco compreenderia o rugido do tigre.
Je retrouverais le secret des grandes
communications et des grandes
combustions. Je dirais orage. Je dirais
fleuve. Je dirais tornade. Je dirais feuille.
Je dirais arbre. Je serais mouillé de
toutes les pluies, humecté de toutes les
rosées. Je roulerais comme du sang
frénétique sur le courant lent de l’oeil
des mots en chevaux fous en enfants
frais en caillots en couvre-feu en
vestiges de temple en pierres précieuses
assez loin pour décourager les mineurs.
Qui ne me comprendrait pas ne comprendrait pas davantage le rugissement du tigre.
Gravura de Pablo Picasso para o capítulo-título de Aimé Césaire, Corps perdu (1950, p. 49) Disponível em: https://www.moma.org/collection/works/29817
Gravura de Pablo Picasso para o capítulo-título de Aimé Césaire, Corps perdu (1950, p. 49)
Disponível em: https://www.moma.org/collection/works/29817

3. Ubu-ntu, democracy, timocracy

Para Claude Lefort a análise da política está baseada em “…um conjunto de princípios gerando relações que [seres humanos] têm uns com outros e com o mundo”[12] (1986, p. 8). Para ele “…somente haverá política se ocorre a diferenciação de um espaço, onde os homens reconheçam a si mesmos nos horizontes de um mundo comum como cidadãos”[13] (Lefort, 1986, p. 64). Como apontado por Joseph Yvon Thériault, a invenção da democracia é um processo que, “…situando o lugar do poder como um ‘lugar vazio’, introduz um questionamento sem fim de sua ocupação”[14] (Thériault, 1994, p. 138).

Nas próprias palavras de Lefort (1981), a democracia introduz “…o hiato entre simbólico e real com a noção de um poder que nenhum, príncipe ou pequeno número, possa tomar para si; sua verdade é trazer a sociedade ao teste de sua instituição; lá onde se perfila um lugar vazio não há nenhuma conjunção de poder, lei e conhecimento, nenhuma enunciação possível de sua fundamentação conjunta, o ser social se revela a si mesmo, ou dizendo melhor, se dá na forma de um questionamento interminável”[15] (Lefort, 1981, p. 286). A mais distintiva característica da democracia é que “…ela combina estes dois princípios aparentemente contraditórios: um, que o poder emana do povo, o outro que não é poder de ninguém. Mas ela vive dessa contradição”[16] (Lefort, 1981, p. 92). Como diz Thériault: “…não há, portanto, nenhuma negação de que democracias sejam sistemas imperfeitos onde interesses particulares estão tomando um poder suposto pertencer ao povo. Devemos mesmo empurrar mais além essa afirmativa. A democracia se alimenta de sua incompletude”[17] (Thiérault, 1994, p. 139).

Em síntese: A democracia lefortiana é vinculada a un questionnement interminable entre um lugar vazio e a sua ocupação contingente em concordância com regras constitucionais.

Para Ramose (2003b), a invenção da democracia constitucional ocidental está profundamente embutida em características da teologia política ocidental, que permitem que o ofício democrático se torne um “lugar vazio”, acessível para qualquer ocupação em concordância com as regras constitucionais. A Constituição é um símbolo-chave transcendente, superior e acima de cada indivíduo, e “…nesse sentido a constituição é o deus do domínio político. Por essa razão todos devem respeitá-la e obedecê-la e ninguém pode se elevar por sobre o deus do domínio político. O deus do domínio político é único e disponível para todos”[18] (Ramose, 2003b, p. 407).

O ponto crucial da análise crítica de Ramose é a proposição que estes dogmas metafísicos estejam em desacordo com os subjacentes à filosofia política dos povos africanos originários (Ramose, 2003b, p. 407). E que uma importante razão para isso seja a presença generalizada, difusa e influente dos mortos-vivos (ancestrais), não permitindo espaço para nenhum “lugar vazio” lafortiano. Neste contexto cultural, espaços políticos constitucionais podem ser reconhecidos como simplesmente “mais altos”, “melhores” ou “maiores”, mas nunca como o deus do domínio político, maior, melhor ou mais alto do que tudo. E não havendo nenhum “… deus universal, transocial e transcendente do domínio político como um todo. Nestas bases, a constituição – escrita ou não – não pode ser o deus do domínio político”[19] (Ramose, 2003b, p. 407).

Na visão de mundo tradicional africana os mortos-vivos (ancestrais) pertencem a um domínio invisível do ser e fazem contato e interagem com os viventes. Mas não o fazem de uma maneira universal, acessível para toda a sociedade, uma vez que eles são membros de uma “família estendida” a quem protegem. Onde a orientação pelo vínculo aos mortos-vivos (ancestrais) é mais forte que a aderência ao constitucionalismo ocidental, a democracia pluralista de raiz liberal não é nenhuma condição necessária e suficiente para a emancipação política. Nas palavras de Ramose: “…meu argumento é que afirmar ser a democracia de estilo ocidental necessariamente a resposta para a questão da organização política na África contemporânea é uma posição fundamentalmente falha”[20] (Ramose, 2002, p. 108).

Nas aldeias de Botswana, a kgotla é um encontro público usualmente dirigido pelo chefe tribal, com decisões comunitárias tomadas por consenso. Sua pedra angular é um aforismo tradicional: ntwa kgolo ke ya molomo (possível tradução portuguesa: o diálogo é a forma mais alta de combate). Toda pessoa na kgotla tem direito a falar sem interrupção enquanto tiver o que dizer. Para Ramose (2002, p. 121-122), a kgotla é um paradigma democrático nitidamente diverso – mesmo contrário – ao princípio do contraditório da política democrática ocidental.

A perspectiva de Ramose é dupla: (i) uma luta contra a dimensão epistemicida da colonização e (ii) uma restauração crítica e modificação da política de consenso como base do processo político de tomada de decisão. Para ele, em África, a democracia de estilo ocidental é – e continuará a ser – inautêntica, enquanto negar o diálogo e recusar a busca do consenso (Ramose, 2002, p. 109-112). E neste contexto Kwasi Wiredu (2003) formula a questão mais crítica: o que então podemos aprender da filosofia tradicional de governo que possa ser de relevância para a busca contemporânea por democracia na África?

Max Weber (1904, 1905) argumentou que o Protestantismo teve influência decisiva na configuração do desenvolvimento do capitalismo através da generalização de uma neue asketische Berufsethik, uma nova ética ascética intramundana no seguimento de uma vocação. Ele cita Benjamin Franklin (Advice to a young tradesman[21], originalmente escrito em 1748, e também Necessary hints to those who would be rich[22], originalmente escrito em 1736:

Lembre-se que o tempo é dinheiro. Para aquele que pode ganhar dez shillings por dia pelo seu trabalho e vai passear ou fica ocioso metade do dia, apesar de não gastar mais que seis pence em sua vadiagem ou diversão, não deve ser computada apenas essa despesa; ele gastou, ou melhor, jogou fora mais cinco shillings[23].

Lembre-se que o dinheiro é de natureza prolífica e geradora. O dinheiro pode gerar dinheiro, e seu produto gerar mais, e assim por diante. Cinco
shillings circulando são seis; circulando de novo são sete e três pence e assim por diante, até se tornarem cem libras. Quanto mais dele houver, mais produz a cada aplicação, de modo que seus juros aumentam cada vez mais rapidamente. Aquele que mata uma porca prenhe, destrói sua descendência até a milésima geração. Aquele que “mata” uma coroa, destrói tudo aquilo que poderia ter produzido, até muitas libras[24].

Aquele que perde cinco shillings, não perde apenas essa soma, mas também todas as vantagens que poderia obter investindo-a em negócios, e que durante o tempo em que um jovem se torna um velho, se tornaria uma soma considerável.

Max Weber (1904, 1905) argumenta que nas palavras de Benjamin Franklin o espírito do capitalismo prega sua própria sabedoria de vida: from cattle you make tallow, from people you make Money (do gado você faz sebo, das pessoas faz dinheiro). No seguimento metódico e calculado de uma vocação (em alemão: berufsmässig), o espírito do capitalismo empenha-se sistematicamente por lucros como um fim em si e constrói o moderno mundo da economia como “…um cosmos tremendo dentro do qual o indivíduo é feito nascer”[25] e cujas regras é compelido a seguir.

Em síntese: “O puritano queria trabalhar no seguimento a sua vocação, nós somos compelidos a fazê-lo”[26].

Ramose argumenta que tais ética e espírito são alheios aos povos africanos originários e “…certamente, uma vaca que dá nascimento a uma vitela desenvolvida todos os dias é tudo menos natural. O contraste e a tensão entre o dinheiro-natural e a vaca-artificial pode bem servir como base para a compreensão da atitude dos povos africanos originários conquistados com relação ao dinheiro[27] (Ramose, 2003b, p. 409-410).

Três aforismos tradicionais da língua Sesotho são, para Ramose, pedras angulares de sua African Philosophy through Ubuntu (1999). São eles:

i. “motho ke motho kabatho” (a humanidade é atingida através dos outros) expressa a ideia central da antropologia filosófica Ubuntu. Ser humano é afirmar sua própria humanidade reconhecendo a humanidade de outros e estabelecendo com eles relações. O reconhecimento mútuo deve ser a base das relações interpessoais.

ii. “feta kgomo o tshware motho” (pastoreie o gado e agarre o ser humano) expressa um princípio central de filosofia social ubuntu, ao dizer que tendo que escolher entre a proteção da riqueza (gado) e a preservação da vida humana você deve escolher a última. Tendo que escolher entre a própria riqueza e a vida de uma outra pessoa humana, a vida humana deve ser o valor mais alto.

iii. “kgosi ke kgosi kabatho” (o rei é rei pela vontade dos outros) expressa um aspecto fundamental da filosofia política ubuntu: como um domínio específico de relações inter-humanas, a realeza deve se assentar sobre mútuo reconhecimento e respeito.

Ramose escreve ubu-ntu como uma palavra hifenizada. Nela ntu indica o processo da vida como um desdobramento do universo através de manifestações concretas em diferentes formas e modos de ser, onde se inclui a emergência dos seres humanos. E ubu expressa a existência de pessoas entrelaçada na comunidade e no universo como um todo, como um nó no fluxo de uma rede de relações. Ubuntu é então de fato duas palavras em uma: “…ubu evoca a ideia de ser em geral. Antes de se manifestar na forma concreta ou modo de existência de uma entidade particular, já é um ser envolvido. Nesse sentido, ubu está sempre orientado para ntu. (…) ubu como compreensão generalizada do ser pode ser dito distintivamente ontológico; ntu como o ponto nodal no qual o ente assume forma concreta ou um modo de ser no processo de continuado desdobramento pode ser dito distintivamente epistemológico[28].

Heinz Kimmerle (2007) destaca que o hífen entre ubu e ntu significa que tenham que ser compreendidos como processos dinâmicos e não como um “-ismo” (como por exemplo no caso da palavra humanismo), enfatizando que o sufixo “-ismo” é indicativo da presença um “pensamento fragmentador”. Dito de outra forma: ubu-ntu deve ser compreendido simultaneamente como um substantivo e um verbo. Com a grafia hifenizada ubu-ntu, Ramose visa expressar uma “linguagem reomódica” (do grego rheo = fluxo), argumentando que a filosofia ubuntu experiencia uma instabilidade fundamental do existir, que leva ao imperativo ontológico e epistemológico de uma busca sem fim por harmonia em todas esferas da vida, especialmente nas relações interpessoais e intersubjetivas. Nesse movimento contingente de partilha e troca não vige nenhuma ‘ordem’ perene. E sua mais importante advertência é o cuidado por não fazer de ubuntu suporte para algum “ubuntismo”[29].

Ramose (2003b, p. 412) reconhece o diálogo como princípio da filosofia. E para facilitá-lo com a filosofia ocidental e fazer a filosofia ubuntu acessível a quem possa ter limitações linguísticas e culturais para acessá-la, faz referência nesse contexto da “linguagem reomódica” a autores como David Bohm (1980) e o Prêmio Nobel Ilya Prigogine et. al (1984). Mas adverte que proximidade não implica identidade.

Ubu-ntu evidencia mais alta estima pela comunidade do que pelo indivíduo, afirmando que uma pessoa é uma pessoa na comunidade através dos outros. Nessa perspectiva a vida pessoal está embutida na cultura comunalística da partilha e da ajuda mútua, onde quem estiver com problemas sérios deve contar com o apoio de alguém de sua família estendida. Ntu atravessa as gerações da família como cerne da vida comunal. O amor não é nem a única base da família nem necessariamente decisivo para sua formação. Famílias tradicionais africanas estão entrelaçadas em amplas conexões de ‘ajuda mútua e partilha’. Aspectos problemáticos e tensões das relações entre a África tradicional e o modo de vida ocidental – tais como a prática institucionalizada do casamento poligâmico ou as acusações de nepotismo – deveriam ser vistos desde essa perspectiva. A questão-chave para uma democracia africana é se a prioridade das relações familiares nega ou não direitos de outras pessoas que são independentes das obrigações familiares (Ramose, 2003a, p. 329). Ancestrais são protetores de uma família estendida específica. “Forasteiros” não podem buscar a proteção deles, mas isso não necessariamente significa excluir-lhes acesso à justiça no contexto comunal.

Em contraste, no mundo contemporâneo, o dinheiro se tornou a medida de todos os fins e a competição institucionaliza a exclusão do “outro” – atingindo até mesmo o cerne da família nuclear. Arnsperger (2011) afirma que isto não corresponde ao sentido originário de cum petere como uma busca conjunta por uma melhor solução para um problema no tempo e no espaço. No antigo cum petere latino não se visava a exclusão do “outro”, como um inimigo a ser eliminado. Essa é, no entanto, a compreensão contemporânea da competição “…é equivalente a negar a existência do ‘outro’ e, portanto, expressiva de um desejo de assassiná-lo”[30] (Ramose, 2010, 297). Ramose argumenta que a metafísica do assassinato em nome da competição propicia a substituição da democracia pela timocracia, que pode ser hoje compreendida como “…uma forma de governo baseada no dinheiro, ou, mais coloquialmente, the rule by money[31] (Ramose, 2010, p. 293).

Em síntese: o empenho por democracia em África precisa se tornar uma reinvenção de valores sociais, que começa com o reconhecimento que “… a elevação da motivação pelo lucro a um princípio ético é uma aberração”[32] (Ramose, 2010, p. 297).

Para Ramose (2010), qualquer restauração crítica dos ensinamentos tradicionais de ubu-ntu deve seguir a advertência prévia do aforismo tradicional: le bona tsa bopudi kgakala, tsa bonku di bipilwe ke mesela, (o traseiro do bode é aberto à vista enquanto o do carneiro é encoberto por seu rabo), onde a visibilidade comparativa dos órgãos sexuais de bodes e carneiros é uma metáfora da dificuldade de se atingir justiça para o pobre ou para o rico. A riqueza não deve ser definidora da condição humana e portanto a timocracia não deve substituir a democracia, uma vez que “… independentemente das posses ou riqueza que se possa ter, o ponto primordial a se reconhecer é que se é um ser humano e que este status é preservado em relações com outros seres humanos”[33] (Ramose, 2010, p. 301).

Para Ramose (2001)[34], as leis de ubuntu são regras flexíveis de comportamento contidas no fluxo da vida. Não se pode decidir previamente que determinadas regras legais sejam perenes. As leis para ubuntu são uma experiência vivida interminável, uma incessante busca por justiça, onde, como aponta Kéba M’Baye, “… a prescrição é desconhecida(…)[uma vez que] a verdade tem que ser levada em consideração em cada tempo em que se torna conhecida, [e] também não se deve opor obstáculo no caminho de sua busca e descoberta. É por essa razão que decisões judiciais não são autoritativas. Elas devem ser sempre passíveis de serem confrontadas”[35] (M’Baye, 1974, p. 147).

Isso também significa, como aponta o Prêmio Nobel Wole Soyinka, que restituição e reparação possam ser “…uma necessidade para a credibilidade do historicismo eurocêntrico e um corretivo para sua visão de mundo excludente”[36] (Soyinka, 1999, p. 25).

“Riding Death in My Sleep” (2002), da artista contemporânea keniana Wangechi Mutu (nascida em Nairobi, 1972). Collection of Peter Norton, New York. © Wangechi Mutu Disponível em: ver https://www.artsy.net/artwork/wangechi-mutu-riding-death-in-my-sleep
“Riding Death in My Sleep” (2002), da artista contemporânea keniana Wangechi Mutu (nascida em Nairobi, 1972). Collection of Peter Norton, New York. © Wangechi Mutu
Disponível em: ver https://www.artsy.net/artwork/wangechi-mutu-riding-death-in-my-sleep

 

* Roberto Bartholo é professor titular do Programa de Engenharia de Produção da COPPE e também colabora com o Programa de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dirige o Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS).

 

Referências

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WIREDU, Kwasi, The Moral Foundations of an African Culture, in The African Philosophy Reader, Pieter Hendrik Coetzee & Abraham Pieter Jacob Roux (ed.). London: Routledge, 1998.

 

Notas

[1] bit.ly/ItHYlv, acessado 2013-11-28.

[2] bit.ly/dcPBct, acessado 2013-11-28.

[3] bit.ly/1euLINU,acessado 2013-11-28.

[4] bit.ly/1eDX9n3, acessado 2013-11-28.

[5] Nur wo sich der Mensch als Erbe und Nachfolger fühlt, hat er die Kraft zu neuem Beginn.

[6] Kein Selbstbetrug, kein Rausch, keine Täuschung.

[7] Au premier noir de la Fédération occidentale qui ait révélé au monde blanc une cosmogonie aussi riche que celle d’Hésiode, poète d’un monde mort, et une métaphysique offrant l’avantage de se projeter en mille rites et gestes sur une scène où se meut une multitude d’hommes vivants (…) mettant à nu l’ossature d’un système du monde dont la connaissance bouleversera de fond en comble les idées reçues concernant la mentalité noire comme la mentalité primitive en general. Em bit.ly/1caPWdP, acessado 2013-11-28.

[8] Die Notwendigkeit zu hören, lange Zeit hindurch zu hören und das Gehörte sehr vorläufig in den Rahmen bestehender Kategorien anzuordnen. Auch Hören wird gelernt sein; es erfördert Offenheit, Konzentration, Disziplin und eine methodisch geleitete Technik. Wie das Verstehen, das erst viel spätter kommt, ist es eine Kunst.

[9] We may declare confidently that I doubt, therefore African philosophy exists.

[10] For Black Africa, it is not the Cartesian cogito ergo sum but an existential cognatus sum, ergo sumus [I am related, therefore we are] that is decisive.

[11] Anamnetic solidarity which recalls the duty of continually realizing the three dimensional fellowship anew.

[12] Un ensemble de principles générateurs des relations que les homes entretiennent entre eux et avec le monde.

[13] Il n’y a politique que là où se manifeste une différence entre un espace où les hommes se reconnaissent les uns et les autres comme citoyens, se situant ensemble dans les horizons d’un monde commun.

[14] En situant le lieu du pouvoir comme ‘lieu vide’ introduit un questionnement sans fin sur son occupation.

[15] L’écart du simbolique et du réel avec la notion d’un pouvoir dont nul, prince ou petit nombre, ne saurait s’emparer; as vérité est de ramener la societé à l’épreuve de son institution; là où se profile un lieu vide, il n’y a pas de conjonction possible entre le pouvoir, la loi et le savoir, pas d’énoncé possible de leur fondément, l’être sociale se dévoile, ou à mieux dire, se donne dans la forme d’un questionnement interminable.

[16] Allie ces deux príncipesapparement contradictoires: l’un que le pouvoir emane du peuple; l’autre que il n’est  le pouvoir de personne. Or elle vit de cette contradiction.

[17] Il ne s’agit donc pas de nier que les démocraties sont des régimes imparfaits ou des interêts particuliers s’approprient un pouvouir censé appartenir du peuple. Il faut même pousser l’affirmation plus loin. La démocratie se nourrit de son inachèvement.

[18] In this sense the constitution is the god of the political domain. For this reason everyone must respect and obey the constitution as there cannot be anyone standing above the god of the political domain.The god of the political domain is the only one and is available to everyone.

[19] There is no universal, transsocial and transcendent god of the political domain as a whole. On this basis, the constitution – written or unwritten – cannot be the god of the political domain.

[20] My argument is that the necessitarian position that the Western-style democracy is the answer to the question of political organization in contemporary Africa is fundamentally flawed.

[21] Original alemão: bit.ly/JdxVF, acessado 2013-11-28.

[22] Original alemão: bit.ly/Io73xL, acessado 2013-11-28.

[23] Remember, that time is money. He that can earn ten shillings a day by his labor, and goes abroad, or sits idle, one half of that day, though he spends but six pence during his diversion or idleness, ought not to reckon that the only expense; he has really spent, or rather thrown away, five shillings besides. (Benjamin Franklin, 1748)

[24] Remember, that money is of the prolific, generating nature. Money can beget money, and its offspring can beget more, and so on. Five shillings turned is six, turned again it is seven and three-pence, and so on till it become an hundred pounds. The more there is of it, the more it produces every turning, so that the profits rise quicker and quicker, he that kills a breeding sow, destroy all her offspring to the thousandth generation. He that murders a crown, destroys all that it might have produced, even scores of pounds. (Benjamin Franklin, 1748)

[25] Ein ungeheurer Kosmos, in den der Einzelne hineingeboren wird. Em bit.ly/xEEz8, acessado 2013-11-28.

[26] Der Puritaner wollte Berufsmensch sein; wir müssen es sein. Em bit.ly/xEEz8, acessado 2013-11-28.

[27] Surely, a cow which gives birth to afully-fledged calf every day is anything but natural. The contrast and the tension between money as a natural and an artificial cow may well serve as the basis to understand the attitude of the indigenous conquered African peoples towards money.

[28] Ubu evokes the idea of being in general. It is enfolded being before it manifests itself in the concrete form or mode of existence of a particular entity. In this sense ubu is always oriented towards ntu. (…) Ubu as the generalized understanding of being may be said to be distinctly ontological; ntu as the nodal point at which being assumes concrete form or a mode of being in the process of continual enfoldment may be said to be distinctly epistemological. Em bit.ly/1ijkkYP, acessado 2013-11-28.

[29] postado em Setembro 7, 2011 em Rozenberg Quaterly – bit.ly/18a9dHQ, acessado 2013-11-28.

[30] Is tantamount to denying the existence of the ‘other’ and thus expressive of the willingness to kill the ‘other’.

[31] A money-based form of government or, more colloquially, the rule by money.

[32] The elevation of the profit motive into an ethical principle is an aberration.

[33] Regardless of whatever possessions or wealth one might have, the first and fundamental point to recognize is that one is a human being and this status is preserved in relations with other human beings.

[34] bit.ly/1ijkkYP, acessado 2013-11-28.

[35] Prescription is unknown (in African law. The African believes that time cannot change the truth. Just) as the truth must be taken into consideration each time it becomes known, so must no obstacle be placed in the way of the search for it and its discovery. It is for this reason that judicial decisions are not authoritative. They must always be able to be called into question.

[36] A necessity for the credibility of Eurocentric historicism, and a corrective for its exclusionist worldview.

 

Recebido em: 10 de outubro de 2017
Aprovado em: 10 de março de 2018

resenha
Tempo de leitura estimado: 13 minutos

AINDA ESCREVER, DE LUCIANO BEDIN DA COSTA

O autor

Em seu Ecce Homo, Nietzsche afirma: “parece-me indispensável dizer quem sou” (2008, p. 15).  Não que a obra explique a vida ou o contrário, mas parece impossível ler um livro sem perceber nele os traços, as letras do que foi vivido por seu autor, a articulação de tudo, pedaços daqui e dali na composição da escrita, como se vê no trecho de Graciliano Ramos:

O açude apojado, a roça verde, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos ficaram-me na alma. (…) a escuridão se ia dissipando, vagarosa. (…) reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo. (1945, p. 20).

Luciano Bedin da Costa parte de seu doutorado em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul — onde defendeu a tese Biografema como estratégia biográfica: escrever uma vida com Nietzsche, Deleuze, Barthes e Henry Miller — para a docência na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Escreve e publica com a Educação, a Literatura, a Filosofia e a Psicologia. Parece articular tudo, com a riqueza da mistura que não dá a ver os limites de áreas ou de leituras específicas de cada matéria e produz um conhecimento —  por tudo isso —  inovador e capaz de abrir horizontes que marcam sua diferença e originalidade. Experimenta perspectivas, nas combinações do escritor-professor, que impulsionam a curiosidade e instigam a sensibilidade de seus estudantes-leitores.

Ainda escrever

O livro Ainda escrever. 58 combates para uma política do Texto nos localiza no inferno de hoje — de dores coletivas e singulares; com seus grandes escândalos políticos, com direitos subtraídos e violências de todo tipo — em que nos percebemos enfraquecidos, cansados e anêmicos. “Zanzamos pelo espaço restrito de nossos sofás e diante das telas de alta definição” (Costa, 2017, p.13), e buscamos uma voz para poder dizer do que afeta nossos corpos e nossa lida.

Semelhante a este inferno, encontro a peste no primeiro capítulo do Teatro e seu duplo (Artaud, 1964): Artaud conta seus efeitos em diferentes lugares e momentos históricos, destacando o impacto do flagelo nos organismos. O doente é tomado por uma fadiga e sua cabeça se torna gigantesca pelo peso, seu estômago se embrulha, seu pulso ora diminui, ora parece galopar, olhos vermelhos, a língua sufoca. “Os últimos vivos se exasperam” (p. 20): o herói queima as habitações da cidade pela qual havia entregado sua vida, o filho virtuoso mata o próprio pai, o libertino torna-se puro. O estado pestífero da cidade provoca ações inusitadas de seus habitantes, sem que ninguém permaneça imune. “Como em um pesadelo kafkiano parecemos ter perdido o fio de nossas garras” (Costa, 2017, p. 12). Tragicamente, tentamos segurar o que flui entre os dedos. O livro de Luciano Bedin da Costa pergunta, nesse contexto, o porquê de ainda escrevermos. E propõe — como um sopro, réstia de fôlego e fuga à peste — uma política. Propõe que tomemos em mãos o que temos (ou podemos ter) o Texto (com letra maiúscula) e que o façamos funcionar politicamente. Texto que parece abrir possibilidade à ocupação de espaços ou mesmo de brechas por vir; uma tomada de forças nobres que se apresentem por resistência.

Por política do Texto, o autor propõe o exercício de resistir a formas constituídas por relações de forças, inaugurando pensamentos que nos tornem capazes de escrever novas leis em novas tábuas (Nietzsche, 2011): criar dispositivos próprios de acolhimento e recusa. Nesse sentido, o Texto aponta para o acontecimento que envolve o encontro com o corpo do outro (leitor e escritor) e com os regimes de liberdade e sujeição envolvidos nesses encontros. Como num duplo gesto, a ideia de uma política do Texto e o imperativo ético de se colocar em sua defesa apresenta 58 combates que se circunscrevem em 4 trincheiras vazadas e penetrantes: no sujeito, na linguagem, nas instituições e no tempo.

Dos 58 indícios sobre o corpo aos 58 combates para uma política do Texto

Com inspiração em Jean-Luc Nancy, em seu 58 indícios sobre o corpo (2011), tem-se que o corpo é material e denso, também imaterial, um contorno, uma ideia. O corpo aprisiona — os dentes são grades — e se estende por toda parte; compõe-se de pedaços, peças, anéis e outros corpos. Estes são diferenças, e um corpo é uma diferença que nunca termina de diferir. Sento em cima do meu corpo e quase não suporto o peso de tê-lo sentado sobre mim. Ao mesmo tempo, o vinho tem corpo e não se contenta em deslizar até o estômago: espalha-se e eletriza, ao que se pode dizer que um corpo tem vinho. Corpo tocado, tocante, vivo e morto. Corpo que carrega em si a escrita e traça no texto, o vivido.

A produção do texto envolve a dor e o prazer do autor, que escreve com sangue entrelaçando, necessariamente, vida e obra. É como “um duplo ou um ventríloquo” (Corazza, 2008, p. 20): é escrito com o texto do outro e a mesma vida e é sempre vida dobrada em obra. Esse movimento que imprime a vida no texto simultaneamente traça no viver a tinta do que se escreve, o que nos permite dizer que tanto o Texto quanto a vida seguem em movimento de tornar-se e se envolvem num contínuo vir a ser.

Nesse sentido, uma política do Texto abre mão da ocupação de um lugar fixo — precisamente no texto ou no corpo — tornando-os indissociáveis na composição do duplo corpo-texto e furtando-se “ao exercício de posse ou propriedade” (Costa, 2017, p. 19). Portanto, os indícios sobre o corpo se articulam aos indícios sobre o texto, ao que se unem em seus combates. Para Derrida (2013), o texto se compõe em camadas enxertadas sob as quais não se fixam elementos. Logo, não possui essência, não está apegado ao que aparentemente lhe é próprio. Não possui uma verdade a ser desvelada mas esconde segredos que escapam tanto ao autor quanto ao leitor.

Destarte, os combates do Texto parecem estar na impossibilidade de desvelá-lo, no fato de que este não se mostra: deixa lacunas, espaços e abre um jogo de múltiplas significações, o que Costa chama de “campo de improváveis” (2017, p. 21), no qual cada elemento textual se deixa escavar pelo outro.

Das trincheiras

1) Sujeito

Escrever envolve “o outro”, que assume a posição de destinatário, mesmo que não o saiba: “é mister que eu o procure” (Barthes, 1987, p. 8). Assim, o Texto entrelaça o diferente de mim, nos rumores das palavras que eu escrevo. Dessa maneira, o entrelaçamento se faz com cordas frouxas, puídas, roídas, uma vez que o texto é movente como uma travessia, o que torna impossível dizer: ei-lo ali.

O Texto escapa ao escritor e pertence ao outro/aos outros, ao tempo, às trincheiras, e escapa desses também. Dedica-se ao leitor desocupado e não ao decifrador. Como uma rede, pesca os ouvidos atentos, aproximando olhos que leem do que recebem das mãos que escrevem em gestos compartilhados.

Por um lado, o Texto tem um envio para o outro, como no movimento nietzschiano de escolher seus leitores: destina seus escritos e toma aqueles que têm ouvidos como seus destinatários. Ainda assim ele não sabe de antemão. Quem envia um texto não sabe qual será seu percurso, não tem certeza de que ele chegará a seu destinatário e não sabe se suas impressões e pretensões seguirão sem desvios.

Vivemos desse modo numa “sociedade de emissores”, como nos diz Barthes (2003, p. 94) e o destinatário nos inspira, quase nos “entrega as palavras” (Derrida, 2007, p. 19). E ao remetente (autor) envia rastros de suas sensações, de seus sentimentos e de suas próprias vivências.

2) Instituições

Acerca da Declaração de Independência dos Estados Unidos, Derrida (2009) afirma que atos declarativos fundam instituições e esses atos declarativos levam um nome supostamente próprio, com o qual se assina um documento, legitimando o texto. Instituições, por princípio, seriam despersonalizadas, coletivas e de todos que a ela pertencem. De fato, alguém, assumindo por todos, pode muito bem levar-lhes os anseios, os pedidos, as marcas do ajuntamento, caracterizando o coletivo na instituição. Mas alguém assina, num gesto performático, em nome de um personagem criado, levando seus traços. Está fundada a instituição.

Ainda assim, o autor/personagem/assinante perde o controle do Texto porque nunca o teve: persiste, luta com ele, briga e tenta acolhê-lo para que ele diga o que se propôs a dizer. No entanto, depois de inaugurada, a instituição pode ganhar caráter restritivo, dizendo muito pouco de cada um que a compõe. “Escreve-se em meio a farpas de ordens institucionais” (Costa, 2017, p. 31). As farpas se apresentam justamente quando as instituições se importam em silenciar instintos singulares e coletivamente acertados, em nome de categoricamente estabelecer imperativos. De pouco valor e sentido para cada componente da instituição, os imperativos se efetivam de forma a mascarar enormes vazios[1] nos quais se apoiam os automatismos e os padrões.

Na escola nota-se condutas generalistas em atividades que perpetuam o mesmo script. Hierarquicamente, mantemos, em nossas práticas, aulas dadas, universalizadas, prescritas. Ao que podemos nos perguntar: produzimos nesses espaços uma política do Texto? Colocar-se na trincheira das instituições parece ganhar relevância na necessária retomada das condutas naturalizadas para revê-las em território novo, ainda que movediço.

3) Linguagem

Ao ocupar a trincheira da Linguagem, o autor nos chama a dar o braço à adrenalina que paira no negro da tinta, na folha em branco e no verde do quadro, e que recupera em nós o prazer de escrever. É como o caos de ideias conflitantes e desorganizadas que permite ao professor, estudante, escritor e pesquisador fazerem nascer o conhecimento novo, a experiência do pensamento e o inusitado. É essa linguagem que nos parece surrupiada pelos excessos cometidos pelas normas, pelos formatos que restringem o que é aceito e pela covardia que nos toma diante dos números a serem alcançados na produtividade acadêmica.

Assim, ao tomarmos a decisão pela escrita que resiste, caberá ao leitor realizar a “excursão pelos hieróglifos de recusa de que o Texto é feito” (Costa, 2017, p. 51). Hieróglifos que nos permitem voltar à pré-história da linguagem escrita, atribuindo sentidos às palavras conhecidas e desconhecidas, de acordo com a criatividade e a intensidade que o momento requer.

4) Tempo

O Texto se apresenta como a eternidade que não tem pressa em dar respostas imediatas ao que se vive hoje, mas extrapola seu tempo referindo-se a desígnios do que virá depois de amanhã. Ele oferece, portanto, a vertigem de olhar para o que aparece hoje com a sensação de estar à frente de seu tempo e com isso estabelece ao escritor e ao leitor a situação de inacabamento: das letras que deixam espaçamentos e temporalidades, do enfraquecimento de qualquer condição a priori e do desejo de escrever que se associa à leitura.

Assim, Costa aborda o combate do “eterno retorno do Texto” (Costa, 2017, p. 28): não que o Texto seja reproduzido ou imitado, mas em sua combinação de forças afirma a vida de seu autor e de seu leitor como vontade de potência (Nietzsche, 2006); não exerce dominação ou restrições, mas permite a pluralidade de sentidos a ele atribuídos, resultante da fragilidade dos elos com que se ligam e religam as forças que o compõem.

Diante da ampulheta, dos grãos de areia que correm afunilados, colocar-se na trincheira do tempo funciona como o “dizer que sim” (Colli, 2000, p. 80) ao combate, assumir e assinar o Texto, no seu tempo e para além dele.

Para ler escrevendo

Ainda escrever: 58 combates para uma política do Texto é desses livros que — como o próprio autor cita — “se lê levantando a cabeça”, pelo correr de ideias, conexões e vozes (Costa, 2017, p. 33). Comparece num momento histórico em que a Educação que é se distancia dos nossos ritmos e conquistas, com os quais já estávamos contando e que por pequenos que fossem, eram nossos — praticados na escola e na universidade, praticados nos nossos dizeres e pensamentos. Esse livro chega para abrir trincheiras, para nos fazer enxergá-las e ocupá-las por reconhecer que os combates são improrrogáveis. Nas minúcias da rotina de quem ensina e aprende sempre, o Texto se apresenta como potência, como afirmação e vez.


 

* Emília Carvalho Leitão Biato é doutora em Educação pela UFMT; professora adjunta do Departamento de Odontologia da UnB; publicou Suplementos de escrituras. De errâncias e destinos, na Revista Pólis e Psique e Processos de criação na atenção e na educação em saúde. Um exercício de “timpanização”, na Revista Physis, entre outros.

 

Referências

ARTAUD, Antonin. Le théâtre et son double. Paris: Éditions Gallimard, 1964 (Collection Folio/Essais).

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1987.

BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

COLLI, Giorgio. Escritos sobre Nietzsche. Lisboa: Relógio d’água, 2000.

COSTA, Luciano Bedin da. Ainda escrever: 58 combates para uma política do Texto. São Paulo: Lumme Editor, 2017 (Móbile – Coleção de mini-ensaios).

CORAZZA, S.M. Os cantos de fouror.  Porto Alegre: UFRGS Editora e Editora Sulina, 2008.

DERRIDA, Jacques. O cartão postal: de Sócrates a Freud e além. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007.

DERRIDA, Jacques. Otobiografías. La enseñanza de Nietzsche y la política del nombre propio. Buenos Aires: Amorrortu, 2009.

DERRIDA, Jacques. Esporas. Tradução: Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Nau, 2013.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. — São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das letras, 2006.

NANCY, Jean-Luc. 58 indícios sobre o corpo. Tradução de Sérgio Alcides rev. ufmg, belo horizonte, v.19, n.1 e 2, p.42-57, jan./dez. 2012.

RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1945.

 

Nota

[1] Não os vazios a serem preenchidos pela criatividade e pela invenção.

 

Recebido em: 30 de março de 2018
Aprovado em: 10 de abril de 2018

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ELEMENTOS DE UMA CENA MUSICAL ALTERNATIVA EM CAMPINAS – SP (1980-2013)

Resumo: Como todas as grandes cidades brasileiras, marcada pela desigualdade socioterritorial, Campinas, importante cidade da rede urbana paulista, abriga um vigoroso circuito de música alternativa aos grandes meios de informação. Grosso modo essa cena se dinamiza desde meados de 1980 em torno de bares com música ao vivo, estúdios fonográficos e emissoras de rádio, a maioria desses fixos de existência efêmera. Hoje em Campinas, dos quase 60 bares com som ao vivo, apenas sete deles têm abertura para sons alternativos e para a produção musical local. Inventariamos ainda a existência de dez gravadoras em atuação na região, boa parte delas fazendo a conexão com os grandes circuitos da economia. É nosso intuito destacar essa parcela da produção fonográfica que permanece pouco difundida nas cidades. Queremos refletir sobre as possibilidades de resistência dos lugares frente aos padrões impostos pela indústria cultural.

Palavras-chave: Campinas, cena alternativa, território, música.

Abstract: Like all Brazilian large cities, marked by socioterritorial inequality, Campinas, important city of São Paulo urban network hosts a vigorous music circuit alternative to mainstream media. In general terms, this scene becomes dynamic since mid 1980 around bars with live music, phonographic studios and radio stations, most of these places with ephemeral existence. Today in Campinas, of nearly sixty bars with live sound, only seven of them are open to alternative sounds and local music production. Inventoried yet the existence of 10 labels in action in the region, many of them making the connection to the great circuits of the economy. We aim to highlight this portion of the phonographic production remains little known in the towns. We want to reflect on the possibilities of resistance front of the standards imposed by the cultural industry.

Keywords: Campinas; alternative scene; territory, music.

 

Introdução

Núcleo de uma região-chave[1] da rede urbana (Geiger, 1963) paulista, Campinas atualmente com 1.144.862 habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE, estimativa 2013) abriga uma pulsante produção musical alternativa aos grandes meios de informação, que se movimenta na cidade desde meados dos anos 1980. Propomos esmiuçar, a um só tempo, essa produção musical e o movimento do território a partir da noção de circuito sonoro[2], entrada para melhor compreender a situação concreta resultante do processo de espacialização de normas, materialidades, ações e formas, que a partir dos usos mediados pela técnica, dinamizam o espaço geográfico e os seus lugares em Campinas.

Santos (1999, 2004) explica que no lugar dá-se a proximidade, a copresença, a troca, bem como a resistência, seja por meio da contestação, da espontaneidade ou da criatividade. Acreditamos que a força da produção musical alternativa está na sua ligação com o lugar e com as demandas cotidianas associadas ao fato de se tratar de uma produção diversa por excelência, jamais compondo uma proposta alternativa no sentido estético. Ao contrário, o alternativo tem sua formação na não unidade estética, e remete às atitudes contra o estabelecido, por meio da pluralidade, do desprendimento e da insistência, que, por vezes, resultam em manifestações de vanguarda, durante certo período, necessário para ações de enquadramento perpetradas pela indústria cultural.

Lembra-nos, nesse viés, Tragtenberg (1991, p. 25) que “a música contemporânea também possui o seu código sonoro típico, o seu dialeto, ou seja, seu repertório padrão”, uma espécie de constante de informação média chamada de repertório médio[3]. Ora, essas espessuras alternativas presentes nos circuitos culturais campineiros representam uma resposta dos lugares a toda uma cultura média (padrão), que condiciona o que pode ser dito, encenado, escrito ou gravado.

Propomos uma abordagem que parta das situações residuais da produção fonográfica, momento do circuito sonoro que não adere ao repertório médio nem às práticas a ele vinculadas. Uma produção que mesmo não estando totalmente fora do esquema de difusão espetacular (Debord, 1967)[4], seja por contrato com uma distribuidora, ou ainda pelo pagamento de ‘jabá’ (a propina do rádio) para divulgação em emissora concessionada[5], encontra-se à margem de uma grande produção justamente pela postura estética e política adotada.

Em nossa pesquisa, além do levantamento bibliográfico e documental sobre a temática, realizado, entre outros, em livros, dissertações, teses, artigos de jornais, artigos de periódicos, material fonográfico, cartazes de eventos, foram essenciais as informações primárias reunidas  – entre os anos de 2007 e 2008 – por meio de: i) cerca de 60 entrevistas semiestruturadas com agentes ligados à temática (músicos, produtores fonográficos, radialistas, articuladores culturais, entre outros), espécies de diálogos buscando aclarar as redes de contatos estabelecidas em torno do circuito sonoro campineiro; ii) visitas a lugares conformados ou apropriados por esse circuito (bares, estúdios fonográficos, casas de shows, emissoras de rádio, gravadoras, entre outros). Tais informações encontram-se no texto acompanhadas por um asterisco*.

Trabalhamos a noção de resíduo sonoro para analisar os momentos do circuito musical que irrompem em Campinas escapando da docilidade incutida pelos grandes meios de informação, baseando-se antes de tudo em demandas cotidianas. Tratar-se-ia de uma entrada para examinar o potencial comunicativo da cidade atual.

Iniciamos os trabalhos apresentando um inventário dos bares com som ao vivo e dos estúdios fonográficos relacionados à produção alternativa desde meados dos anos 1980 em Campinas. Em seguida abordamos a existência do critério musical no rádio FM concessionado campineiro, uma programação de exceção, em um circuito largamente regido por critérios mercadológicos. Esses momentos residuais do circuito sonoro sinalizam para a não preocupação em reproduzir os modelos estético-políticos consagrados pela mídia massiva. Associam-se aos lugares e às suas situações de encontro, por meio de um circuito responsável por dinamizar a parcela menos rentável financeiramente do circuito sonoro Campineiro.

Num segundo momento destacamos o inventário em torno dos selos (gravadoras) da região de Campinas. Tais prestadores de serviços fonográficos são as conexões em potencial com os grandes circuitos da economia presentes na produção fonográfica; podem desse modo nos auxiliar nas discussões sobre a drenagem do saber sonoro intrínseco ao circuito sonoro por parte das grandes corporações.

O residual nos lugares do circuito sonoro: a cena alternativa em Campinas

Com a cena almejamos discutir a centralidade dos contatos, articulações, elos cooperativos e toda sorte de situação de encontros e transmissão de informações, no âmbito do circuito sonoro mais ligado à informação ascendente, aquela fundada nos lugares, força motriz da cena alternativa campineira. A respeito da cena, diz-se que ela “acontece” e refere-se à espessura (presença) que uma manifestação artística adquire num dado lugar. Enquanto o segmento se refere ao mercado, a cena se aprofunda no mundo de relações, um circuito rico de informações do diverso e do maleável, embasado mais em trocas do que em imposições.

A esse termo, recordamos que as inquietações acerca das experiências musicais no lugar, entendido como o lócus da vida humana, merecem atenção. Ora, o circuito sonoro articula-se com diversos outros circuitos (culturais, políticos ou econômicos), e a densidade comunicacional (Santos, 2004), necessariamente ligada às demandas cotidianas, é um dos componentes que podem ajudar a entender e aprimorar o contato entre as diversas cenas, as quais, em comum, teriam a motivação artística e o desejo de transmitir o diverso.

O saber sonoro, um capital conhecimento (Gorz, 2005) nutrido pela experiência cotidiana dos sujeitos, pode ser uma das bases para o estudo dos elementos do circuito sonoro ligados às espessuras da densidade comunicacional. Essas espessuras se baseiam mais nas práticas e nas ações e toda sorte de articulação, do que em materialidades (edifícios e demais construções fixas, sistemas técnicos ou informacionais, entre outros). Tais densidades do cotidiano mantêm pontos efêmeros nos lugares, potencialmente condutores da construção de algo novo. Daí sua importância qualitativa e não utilitarista ou numérica.

Em nossa análise da cena musical alternativa em Campinas, problematizamos os conflitos e as associações entre circuitos de informação ascendentes e descendentes no território. Segundo Santos (1994, 2004), os circuitos informacionais ascendentes, ou de baixo para cima, fortemente presentes na Cena, se referem à parte dos lugares que insurge em ações cotidianas de interesse comum, portadoras do novo, ligadas à comunicação, está necessariamente ligada à troca de experiência entre os sujeitos. Por outro lado, os circuitos informacionais de cima para baixo, ou descendentes, são aqueles baseados em demandas externas, por vezes criadores de espaços rígidos, logo portadores de lógicas e normas fundamentadas na obediência e na disciplina. Esses circuitos de cima para baixo chegam aos lugares dinamizados por uma integração funcional e um maciço sistema de objetos técnicos (receptores ou antenas de rádio, televisores, celulares, entre outros), cuja função pode ou não, ser subvertida. Tratar-se-ia em larga medida do oferecido pelo enquadramento orquestrado pela produção fonográfica sob a égide das grandes empresas do disco, as chamadas majors, operantes para além da cena alternativa.

Daí para Adorno a música de consumo implicar a morte da comunicação:

…parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade da comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio (1980, p. 166).

Deixa-se de lado a insurgência e serve-se ao sucesso. Adorno (1980, p. 181) chama esse processo de “audição regressiva”, com a não compreensão do material sonoro que “relaciona-se manifestamente com a produção, através do mecanismo de difusão, o que acontece precisamente mediante a propaganda”, tornada o elo da parada de sucesso e de sua programação padrão escolhida por critérios de mercado, aspecto fortemente presente do circuito de radiodifusão FM como um todo.

Hoje, a primazia da indústria cultural no circuito fonográfico difundindo o repertório médio nos remete às noções de sistemas de ação deliberada e de estrutura de enquadramento:

Chamemos de sistemas de ação deliberada aqueles instrumentos elaborados na superestrutura do sistema social destinados a conter, pela persuasão ou pela força, os ímpetos de ação dos que se situam nas camadas mais pobres. Chamemos de estruturas de enquadramento aqueles elementos do sistema social cuja eficácia, no sentido de imprimir comportamentos passivos, pertence a própria lógica do sistema e cuja ação, desse modo, até pode ser considerada como espontânea, mas não inocente (Santos, 1990, p. 188).

No intuito de refletir sobre essa questão, trazemos para a discussão, entre outros, os estudos de Vicente (1996, 2001) e Frith (1988, 2004), que expõem a relação entre as novas tecnologias da informação e a produção fonográfica no contexto de industrialização e intensa drenagem dos microcircuitos da música pelas grandes empresas de informação.

O inventário a seguir busca contribuir para o exame dos processos comunicativos que escapam ao enquadramento no período atual e das formas-conteúdo drenadas pelas grandes corporações do disco. Manifestos em diversos momentos do circuito sonoro, entre os quais aqueles ligados à divulgação da produção, à repartição das divisas, bem como ao uso do capital conhecimento nos circuitos culturais, tal empiria parece por em relevo ricos elementos para o estudo do lugar e das possibilidades de resistência no cotidiano das cidades.

Em oposição à atual preponderância de músicos competentes no circuito de bandas cover, as quais em larga medida reproduzem a programação difundida pelos grandes meios de informação, destacamos a seguir o circuito em torno dos sons autorais: seus bares com som ao vivo, estúdios fonográficos e difusão no circuito de rádio FM. Trata-se da produção musical própria que, não reproduz um repertório de músicas de ampla difusão já existente e, pode desse modo, descortinar os caminhos tomados pela produção fonográfica campineira.

A produção musical alternativa no circuito dos bares com música ao vivo em Campinas

Desde meados da década de 1980, acompanhando o fenômeno alternativo no Brasil, se adensam elementos de uma cena residual na cidade de Campinas. No ano de 1984 surge o Ilustrada, um dos primeiros bares com abertura para sons autorais da cidade. Localizado num lugar em frente ao Centro de Convivência, chamado de ‘Setor’, o Ilustrada foi fundado por Camilo Chagas e abrigou gêneros diversos até 1993, ano em que o rock entra na programação, e antecede o fechamento da Casa.

Agentes do circuito* afirmam que o Ilustrada conseguiu reunir pessoas interessadas em música, ajudando a explicar uma certa efervescência na cena musical de então. Vale mencionar ainda nessa época o Bar 91, na Avenida Norte-sul (área central da cidade), onde aconteciam apresentações de jazz, e o Bar Anônima, no Taquaral, que recebeu diversos grupos de som alternativo em geral, explicam* os trabalhadores culturais da cidade.

Ainda na linha dos sons diversos e da abertura para propostas autorais, o Bar SOHO sucede o Ilustrada em Campinas, ao se instalar para abrigar gêneros e estilos como o ska, o reggae, o rock, entre outros, num grande volume de produção alternativa aos grandes meios de informação.

Em 1996, surge o bar Tribo Urbana, na Rua das Hortênsias, na Chácara Primavera, norte da cidade, resgatando grosso modo a proposta do Ilustrada. Em 2000, a Casa muda de nome para OZZ, então sobre a direção de Daniel Ete, trabalhador cultural da cidade, que dirigiria ainda o Bar 54 na Avenida Brasil (área central) durante o ano de 2001. No final da década de 1990, surge o Bar do Zé no Distrito de Barão Geraldo, zona norte da cidade, inicialmente na Avenida Santa Isabel em frente à Moradia Estudantil da Unicamp e mais recentemente próximo ao centro do distrito.

De acordo com um levantamento por nós realizado em sítios de produtos e serviços de lazer de Campinas, a cidade possuiria aproximadamente sessenta bares com som ao vivo. Sabemos que essa amostragem corresponde a números aproximados e, possivelmente, demonstram apenas a parcela mais visível do lazer sonoro da cidade. A topologia desses locais de lazer sonoro mostra uma concentração de praticamente metade deles no Cambuí e em Barão Geraldo, duas das áreas de maior poder aquisitivo da cidade[6]. Ao que consta, com algumas exceções, nestes locais predomina o repertório médio, com pouca ou nenhuma participação de sons autorais e inserção em promoções das emissoras de rádio concessionadas.

No ano de 2013, sete bares em Campinas tinham maior abertura para a produção alternativa e os sons autorais, recebendo regularmente bandas das cenas da cidade, da Região e do país. São eles: Hammer (Taquaral), Bar do Zé (Barão Geraldo), Zirigdum (Fazenda Santa Cândida), Woods e Delta (Jardim Chapadão), Mog (Jardim Campinas), e Toca do Urso (DIC I).

É importante lembrar que no circuito alternativo a apresentação ao vivo é uma das poucas formas de divulgação, devido em especial, aos monopólios dos meios de informação em massa. Entretanto, trata-se de uma divulgação poderosa, pois feita pelo próprio músico e repercutida a partir da situação de encontro com o público da cena. A divulgação durante os eventos musicais, sobretudo em festivais, compreende ainda a venda de camisetas da banda, CDs, fanzines, entre outros.

Entre os festivais e festas da Região de Campinas que reúnem bandas do circuito alternativo, destacam-se o Festival Auto Rock, no ano de 2013 em sua sétima edição[7] (em Campinas); o Festival Americana Independente e a Festa Privada (em Americana); e mais recentemente, alguns eventos musicais sem periodicidade definida realizados na Estação Cultura (centro de Campinas), entre outros.

Sob diversos aspectos, a mídia alternativa em torno da cena indica circuitos com espessos componentes comunicacionais. Na divulgação dos eventos musicais, prepondera a colagem de cartazes (os chamados lambe-lambe) e mais recentemente o uso da internet e de suas redes sociais, que, ao que parece, ganham vulto como forma de divulgação complementar e não substitutiva em relação aos cartazes de papel. O cuidado com o trabalho final faz dos cartazes por si só atrações à parte.

Os locais de instalação dos cartazes estão relacionados ao tipo de público que irá ao evento musical. Por se tratar de uma via de acesso no Centro, onde circulam pessoas de diversos lugares da cidade, explica a militância local*, a fixação de cinquenta cartazes na Rua Francisco Glicério trazia pessoas de diversos lugares ao evento, no ano de 2009, existiam em Campinas cerca de trinta locais definidos para a exposição de cartazes, o que seleciona o público (Figura 1).

Figura 1 - Ponto de cartazes na Loja Chop Suey no Centro de Campinas Fonte: autoria própria, 2008
Figura 1 – Ponto de cartazes na Loja Chop Suey no Centro de Campinas
Fonte: autoria própria, 2008

Nessa via, os fanzines, informativos comuns às cenas culturais, antes impressos e hoje cada vez mais em formato digital, se destacam não apenas pelos seus conteúdos diferenciados e ideias plurais, mas pela quantidade de títulos e temas. Entre tantos outros, destacam-se os zines de Campinas e Região: Mosh, Trampo pra Minas, Ideia Quente, Passa Bola, Por nós Mesmos, Improviso, e os paulistanos Fudido e Xerocado ou o Poeira Zine.

Os estúdios fonográficos e o registro das bandas alternativas da Região de Campinas

Relaciona-se à espessura residual para uma produção alternativa seja nos bares e eventos com som ao vivo ou nos meios de informação, uma espessura igualmente residual para o circuito de bandas alternativas, no que se refere ao seu registro sonoro: estúdios e selos, as pequenas gravadoras, sem ligação direta com as grandes corporações do disco.

Os produtores fonográficos mais antigos explicam que até meados da década de 1960 não se produzia bandas em Campinas*. Ao longo da década de 1970 desenvolvem-se, ainda timidamente, a produção de bandas de rock, bandas de baile, entre outros. A prática passa a se tornar comum apenas no final da década de 1980, com o aumento do número de bandas e o barateamento dos custos envolvidos na produção, o que destaca a produção realizada por estúdios, os quais supriram a demanda de uma primeira eclosão no número de bandas.

Alguns estúdios concorreram para a produção de bandas da cena campineira na primeira metade dos anos 1990, inclusive estúdios que mais tarde se especializariam em publicidade, caso do Dimas Estúdio, entre outros. A maioria desses fixos já não existe. Neles registrou-se sonoramente uma rica parcela do capital conhecimento, que movimenta um circuito definido como “debaixo do solo”, e que irrompe residual e aleatoriamente.

Em 1992 o produtor Caio Ribeiro instala o estúdio Arena localizado na Avenida Guarani no Jardim Proença, centro da cidade. O produtor Tarcísio*, explica que na época outros estúdios concorriam para a produção de bandas, como o Estúdio Ômega, de Paulo Daniel, o Estúdio 0db, de Alexandre Maiorino, entre outros. Tarsa, como é conhecido, trabalhou no Arena, onde aprimorou o conhecimento para abrir seu próprio estúdio, o Basement, no ano de 1997, no Bairro Nova Campinas. O estúdio surge aproximadamente na época do fechamento do Arena, em parceria com Caio Ribeiro. A estes produtores, coube o trabalho de gravar a parcela “menos rentável” do circuito sonoro, o que suscita um momento também residual do ponto de vista da produção em si, como explica Tarcísio*: “A fatia do mercado que eu faço (…) é do pessoal das bandas de rock, que em geral é quem está juntando o dinheiro, e você acaba dando uma força na produção, conversando com a banda, fazendo a mixagem render legal…”

O Basement com o tempo se torna referência para a gravação de bandas de toda a região de Campinas. Mais da metade do que foi gravado corresponde a músicas de autoria própria, predominantemente rock, e em menor proporção o rap, entre outros gêneros (Figura 2).

Figura 2 - Adesivo do Estúdio Basement
Figura 2 – Adesivo do Estúdio Basement

Na segunda metade da década de 1990, além do Basement, destacou-se no trabalho com as bandas, o estúdio Big Note (Bosque) e uma concentração de estúdios no Distrito de Barão Geraldo: Mad Dog, Canil, Piranha e Face Ácida, nenhum deles em funcionamento atualmente.

Nesses fixos ficaram registrados trabalhos de bandas e grupos de Campinas e de toda a região, como Benedita, Cactus Jam, Neighboors, Línguachula, Muzzarelas, Letal Charge, Concreteness, Maguerbes, X Fear, Non Sense, Coice de Mula, Prole, Smells, Strepito, Rruga, Zero Treze, Portal do Ventre, Grease, Del-O-Max, Suíte Number Five, Albano, Face Obscura, Tolerância Zero, Anjos da Anarquia, Conexão 03, Fagotte jazz, entre outros. Trata-se de uma importante espessura comunicacional, presente numa produção musical que muito tem a dizer sobre a cidade, seus lugares, conflitos e criações.

O critério musical no FM campineiro: alternativas ao repertório médio no circuito concessionado

Em trabalhos anteriores (Alves, 2008) contatamos que no circuito de rádio FM concessionado campineiro predomina a ação em rede. Tais redes são controladas por grandes grupos de informação, vinculadores de conteúdos e/ou detentores de emissoras. Lopes (1997, p. 325) lembra que no Brasil o sistema de concessões para radiodifusão é “extremamente autoritário e concentrado”, com pouquíssimas exigências para a escolha do concessionário e sem qualquer impedimento à formação de oligopólios ou monopólios.

Em Campinas, a produção musical local pouco se insere nas programações das emissoras concessionadas, menos ainda a produção alternativa ao repertório médio. Apenas a programação das rádios livres escapa ao repertório padrão, com abertura para a produção musical local.

Já não é novidade que praticamente todas as emissoras concessionadas estão comprometidas com os grandes circuitos da economia, por meio da publicidade, inclusive concorrendo com os estúdios fonográficos, fornecendo serviços de fonogramas publicitários, processo atrelado à difusão de um repertório fundamentado em padrões musicais (Lucca, 2002), baseado em critérios de mercado.

Nessa via, afirma-se entre os locutores do circuito FM*, que um dos problemas decorre da precarização do trabalho das emissoras, na medida em que o locutor se transforma em técnico e, a partir desse momento, não necessariamente deve ter conhecimento da esfera musical.

Cumpre destacar, porém, que, no circuito FM campineiro desde meados de 1980, as programações das emissoras Morena e Cultura e, mais recentemente, a programação da Educativa FM (101,9 mHz), pertencente à Prefeitura Municipal de Campinas, se basearam em critérios musicais, contribuindo para ampliar a comunicação nos lugares.

Com acervo de mais de vinte mil registros sonoros, criado ao longo dos anos, comprado em sebos, junto a colecionadores ou a partir de doações, a Rádio Morena foi por 16 anos uma opção às paradas de sucesso; todavia em 2002 foi arrendada para a Igreja Universal. O fim da rádio e a nova programação evangélica causaram lamentos dos artistas e produtores da cidade. A escolha da programação era feita por músicos e apreciadores como José Carlos “Barba”, atualmente na Rádio Educativa e Cynthia Goulart. Transmitindo com 50 kilowatts de potência, a Morena FM tinha em sua programação de música brasileira ao jazz. A emissora abrangia Campinas e outros 75 municípios, e a audiência somava cerca de 4 milhões de ouvintes em todo o interior paulista. O proprietário Natal Gale informa que o auge da emissora foi de 1985 a 1990, e esclarece os motivos do arrendamento: “No período de crise da Morena, que durou um ano até ser arrendada, o número de anunciantes girava em torno de dez. O normal de uma rádio FM é ter 50 anunciantes”[8]. Quatro meses depois de extinta, os dois programas de maior audiência da rádio voltam, fazendo parte do dial de outras emissoras: o Big Bands (apresentado por Hermano Henning) na Cultura FM de Amparo, e o Intermezzo I (apresentado por Marcos Padilha) que foi para Educativa FM com o nome de Momento Musical. Padilha afirma ser contra a segmentação, “o ouvinte deve ter acesso a tudo para escolher o que quer, o que lhe agrada”[9].

A Programação diversificada era característica também da Rádio Cultura: blues, rock, jazz, instrumental apresentados por Fred Jorge, Fernando Carani, Ayrton Martini, Vera Pessagno, entre outros. No final de 2000, a emissora pertencente a Paulo Pedroso se torna CBN, ligada ao Grupo Rede Globo:

O Sistema Globo de Rádio trabalha com pesquisas e chegou a conclusão de que existia uma demanda muito grande por jornalismo em FM. E o perfil do ouvinte de FM é mais jovem, ao passo que o de AM é mais conservador. O público que está entre 25 e 40 anos, que tem o poder de compra, estava órfão de rádio jornalismo em FM (Correio Popular, 2000).

Interessante, pois, foi justamente a Rede Globo reservar uma rádio para música escolhida a partir de critérios musicais. A segmentação de mercado permite tal distorção.

Alternativa às paradas de sucesso destaca-se, ainda hoje, apenas a programação da Rádio Educativa, com abertura para a produção local prevista por lei[10]. Entro outros, destaca-se o Programa “Som na Caixa” de Júlio Manzi e, mais recentemente, o “Estúdio Educativa”, com Paulo Agostinis e José Barba, ambos recebem artistas da cidade[11]. Destaca-se ainda a sua programação especial como no aniversário de Campinas, quando se toca somente músicas de campineiros ou identificadas com a cidade; segundo a coordenadora artística Ivete Cardoso, são mais de 300 artistas se revezando na programação[12].

Sobre a programação musical da Rádio Educativa, Roldão faz a seguinte afirmação:

A programação musical da Educativa não é elitista e ao mesmo tempo não reproduz a massificação cultural, verificada na maioria dos meios de comunicação que apresentam apenas a produção artística, imposta pelas grandes gravadoras. A programação musical também se torna educativa ao desenvolver conteúdos a partir da música, e resgatar a cultura local através de grupos e músicos da cidade (2006, p. 6).

Para J. Carlos Barba*, coordenador da emissora Educativa, “toda música tem um nexo”, e se faz necessário entender a coerência e o contexto de uma obra musical, suas influências e implicações. Ao ouvinte, afirma Barba*, deveria ser dada a possibilidade de escolha e conhecimento de um repertório diversificado, o que favoreceria a formação de um gosto próprio e não introjetado.

Observa-se aqui, uma crítica à produção artística tornada apenas manufatura, orientada por segmentos de mercado. Nesse caso um conjunto de conteúdos previsíveis difundidos relacionam-se a certas espessuras técnicas-informacionais-normativas, condição e resultado de ações que conferem obediência e rigidez ao cotidiano: “As pessoas não experimentam suas crenças estéticas como meramente arbitrárias e convencionais; sentem que elas são naturais, adequadas e morais” (Becker, 1977, p. 218).

Harvey (1980), por sua vez, lembra-nos que os “signos, símbolos e sinais” fortemente presentes no meio ambiente urbano são grandes influências, sobretudo entre os jovens:

Moldamos nossa sensibilidade, extraímos nosso sentido de desejos e    necessidades, e localizamos nossas aspirações e respeito de um ambiente geográfico que é em grande parte criado. É provável que nossa cultura, concebida como um domínio étnico, emane do espaço criado mais do que tem êxito em criar espaço. A alienação, frequentemente manifesta da cultura e uma repulsa à imagem da cidade, em parte decorre de um profundo alheamento (Harvey, 1980, p. 268).

A partir de ações de formatação e perda de referência o gosto musical, em especial dos jovens, simplesmente por desconhecimento, se torna o mesmo.

O sistema aberto na produção fonográfica: a drenagem do saber dos lugares

Sob o imperativo da padronização musical e da concentração de mercado[13] forma-se o chamado sistema aberto na produção fonográfica (Morelli, 1988; Dias, 2000; Beuscart, 2008; Chaney, 2010). Muller (2005) explícita o funcionamento desse sistema de reorganização da empresa do disco, destacando a maneira como a chamada “produção independente” e os pequenos selos (gravadoras de menor porte) se inserem nos circuitos superiores da economia, incorporados pelas majors, as grandes empresas fonográficas:

…um processo de terceirização da produção, onde os trabalhos das ‘indies’ e de artistas independentes são incorporados pelas ‘majors’ onde as primeiras produzem discos voltados para segmentos de mercado bem definidos, caso seus produtos se mostrem promissores, as grandes firmas se apropriam deles através do estabelecimento de contratos de licenciamento, de distribuição, de compra do repertório, do catálogo ou mesmo do selo inteiro (Muller, 2005, p. 39).

Entre as mudanças no circuito sonoro, Vicente (1996, 2001) adverte que as novas tecnologias inseridas na empresa fonográfica provocaram a pulverização da produção e a redução radical dos custos, ocorrendo o incentivo a selos independentes e ao mesmo tempo favorecendo o sistema aberto. A rápida obsolescência dos equipamentos – ao gerar mais dificuldades para manutenção de estúdios grandes – tende a determinar a saída das majors dessa área de atividades, que passa a ser ocupada por estúdios de menor porte[14]. Logo:

mesmo possibilitando o surgimento de selos independentes e tornando a produção musical mais acessível – o advento das novas tecnologias não representa, necessariamente, um momento de ruptura com o processo de concentração oligopolista da indústria fonográfica podendo se tornar, na verdade, um poderoso elemento para sua manutenção (Vicente, 1996, p. 77).

Com o monopólio dos meios de informação de massa e por meio da própria estrutura do circuito de produção fonográfico o capital humano dos lugares é drenado, inferindo doses de informação ao saber que o constitui. Difunde-se desse modo a melhor mercadoria, a mais objetiva, própria ao consumo.

A seguir apresentamos o inventário dos selos (gravadoras de pequeno porte) em atuação na Região de Campinas entre os anos de 2005 e 2009. Enfatizamos as relações desses prestadores de serviços fonográficos, responsáveis pela produção musical local, com os circuitos superiores da economia[15]: empresas de informação, corporações, distribuidoras de fonogramas, entre outros.

Inventário dos selos na Região de Campinas: produção fonográfica e círculos de cooperação no território

O próprio trabalho dos selos na maioria dos casos já os coloca na condição de conexão com os grandes canais de distribuição e divulgação da produção fonográfica. Inventariamos o funcionamento de dez selos na região de Campinas (Quadro 1). Estabelecendo contatos a partir de seus escritórios, os selos oferecem serviços de assessoria fonográfica, pré-masterização, arte final, editoração musical, entre outros.

SELOS DA REGIÃO DE CAMPINAS – ESPESSURA DO CIRCUITO (2005-2009)
Caracterização do selo Fluxos e círculos de cooperação – repercussão espacial das atividades fonográficas
Nome Gênero/segmento musical Fixo acionado Proprietário Distribuidora
Empresa responsável
Comércio, produção, difusão no rádio e eventos musicais
FÁBRICA Multi-gênero Estúdio e escritório (Taquaral, Campinas) Gustavo Souza (publicitário) Tratore – CDs vendidos em lojas de redes nacionais e lojas locais.
– Venda digital pelo I-Tunes
– Trabalhos realizados a partir de leis de incentivo (lei Rouanet) e pelo FICC (Fundo de Incentivo à Cultura de Campinas).
– Realiza “pocket shows”
– Predominância de artistas locais
– Divulgação na Rádio Educativa e Cultura (Amparo)
KALAMATA Moda de viola.
(Ten String Guitar)
Erudito
Escritório (Cambuí, Campinas) Antoine Kolokhatis (músico) Sonopress – CDs vendidos em lojas de redes nacionais e lojas locais
– Venda digital pela AIODA
– Trabalhos realizados a partir de leis de incentivo (lei Rouanet) e pelo FICC.(Fundo de Incentivo à Cultura de Campinas).
– Predominância de artistas locais
– Divulgação na Rádio Educativa e Cultura (Amparo)
MONDO 77 Rock Casa de show até 2005
(Barão Geraldo, Campinas)
Gustavo Furniel (empresário) Tratore – CDs vendidos em lojas de redes nacionais e lojas locais.
– Venda digital
– Artistas de diversos lugares como The Violentures (Campinas), Banzé (São Paulo) e Walverdes (Porto Alegre).
– Show de lançamento com vjs da MTV (Grupo Abril)
CÂNTAROS Música instrumental Escritório (Campinas) Antônio Dias (músico) Sem informação – Trabalho em cooperativa com custo médio de R$8 mil por disco.
– Predominância de artistas locais
NASCENTE Escritório (Barão Geraldo, Campinas) Sem informação
NADY CALVI Popular (sertanejo, entre outros) Estúdio e escritório (Valinhos) Nadir Calvi (músico) Eldorado – Suporte físico vendido em lojas locais.
–  Predominância de artistas da Região
– Divulgação em rádios não concessionadas e rádios AM, dentre elas a Rádio Central.
DIVULGASOM Popular (sertanejo, entre outros) Estúdio e escritório (Vila Industrial, Campinas) Maurício Macarrão (músico) Sem informação
GENES Popular (sertanejo, entre outros) Estúdio e escritório (Jardim São José, Campinas) Crysogenes Cebolinha (músico) -Artistas de fora de Campinas.
NÓIS NA FITA Rap Escritório (Jundiaí) Nuno Mendes (locutor de rádio) Sky Blue – Artistas da região de Campinas.
– Produção em estúdios caseiros
– Divulgação em rádios não concessionadas
– Divulgação pela rádio 105 FM
FACES DA MORTE Rap Escritório (Hortolândia) Erlei Aliado G (músico)

Fonte: autoria própria

A relação entre os selos e as majors nos remete a uma divisão mais profunda das tarefas no território e nos indica também a posição do “mestre de cerimônia das paradas de sucesso” para as gravadoras, as quais entregam os “produtos” direto às emissoras. Como resultado, a produção em si – materialização do registro sonoro – conhece uma precoce e estrutural padronização. Os casos de algumas gravadoras da região ilustram as afirmações.

A exemplo dos estúdios fonográficos, a atuação dos selos envolve uma série de trabalhos eventuais acionados seja para serviços de liberação de direitos, promoção de eventos, entre outros. Este é o caso, por exemplo, da consultoria jurídica para artistas apenas negociada pelos selos e executada por terceiros. Antoine Kolokhatis, gerente do selo Kalamata*, explica que se trata de uma operação onerosa e por vezes se gasta até 30 mil reais em direitos autorais antes mesmo de gravar um CD.  A articulação do selo envolve agentes diversos desde as lojas de discos até distribuidores como a empresa Sonopress.

Uma ou duas pessoas desenvolvem o trabalho de cada um dos selos de forma direta. Estes tipos de prestadores de serviços fonográficos organizam ainda eventos para divulgar o seu cast. O selo Fábrica opta por realizar pocket shows (pequenas apresentações musicais) em shopping centers, livrarias ou até mesmo em lugares públicos, como o Largo do Rosário no centro de Campinas. São apresentações que reúnem os artistas dos selos e ocorrem sem periodicidade definida, seja para o lançamento de um disco, ou participação em congressos, entre outros. Por outro outro lado, o Grupo Mondo 77 organizou um show de lançamento do selo no ano de 2005 em São Paulo, com a participação de VJs da MTV (Music Television), emissora de TV ligada ao Grupo Abril.

A Nady Calvi, selo-gravadora, sediada em Valinhos, cuida “da veiculação do trabalho em programas de rádio e TV até a criação de letras de músicas”. Os serviços incluem a produção e a direção do show, por preços que variam de R$10 mil, incluídas aí apenas inserções no rádio, até R$ 40 mil, com aparição na TV e “o acréscimo de instrumentos eruditos e backing vocals, além de uma cuidadosa produção gráfica da capa e das fotos”. Todos os trabalhos são masterizados em São Paulo e saem em parceria com a gravadora Eldorado, “o que pode virar sucesso vai para São Paulo”, afirma seu produtor Nady Calvi[16].

A situação não é muito diferente para a gravadora especializada em sertanejo Divulgasom, a qual funciona desde 1984 em Campinas. Com um CD custando em média 20 mil reais a gravação é feita com a ajuda de um teclado; este aparelho faz o som dos violinos e de uma bateria eletrônica.

A venda de música digital que hoje representa parcela significativa do mercado fonográfico é preponderante na ação de dois selos: o Fábrica e o Kalamata. De acordo com dados da ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos), foram baixadas no mundo 420 milhões de faixas singles durante 2006. A música digital representa 6% da receita das gravadoras e a música disponível em celular responde por 40% da receita digital das companhias do setor fonográfico. A IFPI (International Federation of the Fonographic Industry) afirma que a perda das gravadoras com downloads ilegais chega a 2 bilhões de dólares no mundo. Segundo a entidade, 52% do volume comercializado no Brasil em 2003 eram de suportes ilegais, esse número vem aumentando, o que faz do país um dos “prioritários no combate à pirataria”.

Gustavo Souza, proprietário do Selo Fábrica em operação desde 2002, explica que a produção genérica não afeta o selo que distribui os CDs por meio da loja virtual I-tunes[17]. Quase todo o catálogo é composto de artistas da cidade, grande parte de músicos formados na Universidade Estadual de Campinas. Entre os artistas destacam-se Estado Maior, Marcelo Onofri, Tatiana Rocha, Companhia Sarau, Angu, entre outros.

O selo Kalamata distribui seu material via digital para os sítios de venda de música na internet, pela empresa estadunidense AIODA (Aliança Internacional de Distribuição On-Line). Entre os gêneros gravados destaca-se a música erudita, porém o foco é no potencial da moda de viola para se projetar no exterior, com a comercialização do Brazil Ten string guitar, tocado por músicos em sua maioria locais ou da região. Os Suportes físicos do Kalamata são vendidos nacionalmente nas Redes FNAC e Saraiva (discos, livros e afins) e nas lojas Pulsar, Iluminações, e até 2006 na Loja Coreto Musical, estas últimas, lojas de disco locais. Criado em 2005, o selo Kalamata é parte da prestadora de serviços Direção Cultura que produz eventos para clientes do circuito superior de Campinas e região, como o Clube Hípica, Shopping Center Iguatemi, Espaço Cultural CPFL, entre outros. A empresa presta assessoria em marketing cultural e cuida do “Desenvolvimento de projetos culturais adequados às necessidades das empresas”, o que inclui a “orientação sobre utilização da Lei Federal de Incentivo à Cultura” (Lei Rouanet).

Ambos os Selos gravam em estúdios de maior porte. O Fábrica produz no seu próprio estúdio, enquanto o Kalamata utiliza os estúdios Mais Mais e Síncopa, este último onde foi gravado o disco do grupo Sax Bem Temperado.

Os selos Fábrica e Kalamata, ainda de modo semelhante, não divulgam seus trabalhos em rádios não concessionadas. No circuito FM seus trabalhos fazem parte da programação da Rádio Educativa, a qual por lei deve manter em sua programação 15 % de espaço “para divulgação e apresentação de artista oriundos ou residentes na cidade de Campinas” (Lei Nº. 12.346, de 1º de setembro de 2005) e da Rádio Cultura de Amparo. Estes selos trabalham com parte da receita proveniente de leis de incentivo à cultura, como Lei Rouanet e outros fundos culturais, a exemplo do Fundo de Cultura Municipal de Campinas, o FICC[18].

Em seus repertórios constam títulos como “Prêmio Syngenta Instrumental de Viola” do Kalamata. Referência à empresa do agronegócio, patrocinadora do projeto, de acordo com o trecho do encarte do CD, “comprometida com a agricultura sustentável, com a saúde e a qualidade de vida da população”, em uma espécie de “mecenato das corporações”.

De maneira diversa dos selos anteriores, o trabalho do Genes é basicamente com artistas de fora de Campinas; “Aqui na cidade para mim não interessa”, afirma o seu produtor Cebolinha*, que grava grupos de gêneros popularescos de Porto Alegre, Cuiabá, entre outros lugares. Cebolinha nos fala* da pouca aceitação da produção do selo entre os meios de massa: “Mandar pra rádio a gente manda, mas daí até tocar é outra história. Escolhemos a música de trabalho e mandamos pela internet ou então com o Natanael, nosso divulgador. Ele vai rádio por rádio. Porém hoje mandamos os trabalhos mais pela internet. Mandamos para a rádio Central AM, uma única exceção… enfim, a gente manda pra todas as outras rádios, mas elas não tocam. Se não pagar elas não tocam”.

Por fim, os selos Nóis na Fita e Faces da Morte, ligados ao rap, também se direcionam ao segmento popular e contam com artistas de diversas cidades da Região de Campinas a qual abriga cerca de 300 grupos do gênero musical da cultura hip hop (Alves, 2005, 2012, 2013, 2014). As suas vendas se realizam em outros canais, com menor presença da venda via digital, preponderando relações de proximidade na venda de sua produção, sobretudo entre amigos, via postal, nos shows, lojas locais, entre outros. Entretanto ambos divulgam trabalhos na emissora concessionada 105 FM mediante o pagamento de “jabá”, o que não exclui a distribuição do fonograma em rádios livres.

Considerações finais

Apresentamos nesse texto dois momentos do circuito musical campineiro tendo como fio condutor a produção fonográfica local. A questão que nos inquieta é: a despeito do sistema aberto – recusando-o – quais as possibilidades de revanche da produção musical horizontal nas cidades?  Se é que estas chances existem mediante a força contemporânea de atuação da empresa fonográfica mundial.

Na concentração no setor fonográfico, característica do sistema aberto, tem-se um exemplo do extremo controle da informação. Há aí um verdadeiro nó atando o potencial criativo da cultura popular pelo mundo afora.  As conexões de parte das gravadoras da Região de Campinas parecem apontar nesse sentido.

Entendemos que tal orientação traz luz à docilidade para com os estatutos, que consciente ou inconscientemente orienta todo o processo de criação. De violência contra o instituído, a cultura popular e as manifestações de vanguarda, tendem a se dissipar, orientadas para o apaziguamento e a manutenção: o passado recorrente ou a presentificação.

Nossa empiria demonstrou que Campinas abriga, grosso modo, desde meados da década de 1980 um circuito musical alternativo aos grandes meios de informação, movimentado por trabalhadores culturais atuantes em diversos lugares da cidade, sejam eles produtores fonográficos, articuladores, radialistas, entre outros.

Dentre os trabalhadores culturais destacamos os apreciadores sonoros, isto é, aqueles que aplicam seu capital-conhecimento e dinamizam seu campo de informação em virtude primeiramente da música. Este grupo teria em comum o gosto pelo som. Entre os apreciadores de música, estão, portanto, aqueles que entendem o “alternativo” como o trabalho de quem persiste no caminho do gosto, postura residual em relação aos padrões impostos pelos circuitos superiores atrelados à produção fonográfica.

Em torno do saber sonoro, o capital-conhecimento fundado na experiência dos sujeitos, favorece a ascensão de círculos de cooperação no circuito sonoro, definitivamente marcados pelo diverso, responsáveis pela articulação da produção musical nos lugares. Como derradeira implicação do circuito sonoro, acontece o trabalho coletivo em torno da música, que envolve diferentes e complexos elementos da cidade.

Visto como fruto de certa teimosia poder-se-ia dizer do som resultante daí, não ser um produto que se quer fazer, mas uma construção inevitável que deve ser realizada por não se conseguir escapar. O importante para os lugares é o circuito sonoro se constituir dirigido, cada vez mais, pelos próprios agentes das cenas. Que os sons diversificados se avolumem e o questionamento intransigente sobre a partilha dos meios de informação se espraie.


 

* Cristiano Nunes Alves é professor adjunto na Universidade Estadual do Maranhão (DHG CECEN / UEMA); pós-doutor em Geografia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP); mestre em Geografia (2008), graduado em Bacharelado (2005) e em licenciatura (2006) em Geografia pela Unicamp. Desenvolve pesquisas em Geografia Urbana e Epistemologia da Geografia, atuando principalmente nos seguintes temas: circuitos e cenas culturais, economia urbana, informação, comunicação, metropolização, cartografia alternativa, cultura popular e música.

 

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Notas

[1] Raffestin (1993) denomina regiões-chave, as áreas que devido aos seus recursos diversos, possibilitam a otimização do poder a partir de um aumento de competitividade com, por exemplo, maior produtividade ou tecnologias de informação acrescidas ao território. Caracterizada pela desigualdade socioterritorial a cidade de Campinas é núcleo da Região Metropolitana de Campinas (RMC), composta por 19 municípios, e atualmente com 2.866.453 habitantes (Estimativa – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 2012). Nesse sentido Cano & Brandão (2002, p. 124) afirmam que a evolução da mancha urbana campineira “sempre esteve articulada a interesses da elite local” com a legislação urbanística, os mecanismos de especulação e orçamentos públicos comprometidos com grandes empresas, levando à formação de um espaço urbano fragmentado e segregado. Em Campinas ao mesmo tempo em que se aceleram, em especial nos últimos vinte anos, os processos de periferização e favelização, localizam-se consideráveis densidades técnicas e informacionais decorrentes de setores estratégicos da economia. Trata-se de um importante elo informacional, polo industrial e tecnológico intensamente ligado à metrópole paulistana.

[2] Partimos da ideia de que a existência e a dinâmica de um circuito ganham significado quando analisadas as estratégias políticas no território usado, nossa categoria de análise, sinônimo de concretude e acontecer de sistemas de objetos e sistemas de ações no espaço geográfico, apontando para situações específicas. Para Santos (2004, p. 232). “A utilização do território pelo povo cria o espaço” e o território “se chama espaço logo que encarado segundo a sucessão histórica de situações de ocupação efetiva por um povo – inclusive a situação atual – como resultado da ação de um povo, do trabalho de um povo.” O movimento do circuito sonoro implica no encontro e na fusão de ações, bem como no fluxo de informações atreladas; as materialidades, com o uso dos fixos: bares com som ao vivo, lojas de disco, lojas de tecnologia de gravação, emissoras de rádio e ainda o uso dos mais diversos objetos técnicos – de aparelhos de rádio até telefones celulares. Sua dinâmica abrange o registro da produção fonográfica, as mediações das experiências musicais cotidianas; perpassa a produção e os eventos musicais bem como todo o conflito e cooperação entre os agentes envolvidos.

[3] Lucca (2002, p. 115) assevera que à possibilidade infinita de criação musical contrapõe-se o fato de que: “os elementos musicais estão sendo tratados ou manipulados na maior parte das músicas transmitidas atualmente pela mídia, por uma notável simplicidade, limitação e repetição, constantemente crescentes desde sua atuação em nosso país, mais precisamente desde a década de 60.” A autora supracitada, em um exame detalhado da programação do circuito de rádio FM paulistano no ano de 2001 atestou a extrema padronização do conteúdo musical difundido. Entre os índices apresentados por Lucca (2002), destacam-se: 40% das músicas do rádio FM têm a duração de 3’30 a 3’59; 60% da programação é de música estadunidense; 60% da programação é da década de 1990 e 20% da década de 1980.

[4] Debord (1967) afirma que a “Sociedade do Espetáculo” sinaliza para um estado de coisas no qual “é a forma que escolhe seu próprio conteúdo técnico” (p. 20), uma ampla instrumentação cara ao controle da humanidade e dos seus lazeres por parte de uma “economia burocrática”, que implica não deixar “nenhuma margem significativa de escolha (…) para a massa explorada” (p. 43). Sobre a cidade tida como “o espaço da história”, lugar de concentração do poder social e da “consciência do passado” (p. 116), recai o intento espetacular de supressão da distância recolhendo-a para si como separação: “A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, lhe retirou também a realidade do espaço” (p. 112)

[5] Falamos das emissoras autorizadas pelo Estado, integrantes do sistema de concessões conforme o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117 de novembro de 1962).

[6] Entre os bares campineiros, onde grosso modo predomina o repertório médio, temos: Tarantino (Cambuí), Bar Doce (Barão Geraldo), Dona Lina (Cambuí), Água Doce (Cambuí), Quintal Brasileiro (Cambuí), Bar Pessoa (Nova Califórnia), Tradicional (Sousas), Dom Quixote (Cambuí), Rota 42 (Cambuí), Dona Bella (Bosque), Farol da Barra (Chácara da Barra), Bem Bom (Guanabara), Alcool Íris (Cambuí), Café 7 (Castelo), Campinas Hall (Mansões Santo Antônio), Gold Street (Santa Genebra), Alles Bier (Sousas), São Joaquim (Cambuí), Paparazzi (Cambuí), Na Lata (Cambuí), Camaleão (Chácara da Barra), Barril da Máfia (Guanabara), Tom Grill (Cambuí), Loft (Cambuí), Senhor Barão (Barão Geraldo), Estação Santa Fé (Barão Geraldo), Oca Brasil (Barão Geraldo) e Rudá (Barão Geraldo) e The Red Lion (Cambuí).

[7] Organizado pela Chop Suey Discos, o Festival Auto Rock vem ganhando força e no ano de 2013 inclui apresentações em diversas áreas de Campinas, inclusive em sua periferia, caso de evento musical realizado na Praça Integração, no Bairro Padre Anchieta na divisa com os municípios de Sumaré e Hortolândia.

[8] Jornal Correio Popular. 4 de janeiro de 2002

[9] Jornal Correio Popular. 10 de abril de 2002.

[10] Lei municipal N° 12.346, de 1° de setembro de 2005. Determina ao Poder Executivo, através da Secretaria de Cultura, Esportes e Lazer, destinar no mínimo 15% (quinze por cento) da Programação Musical Diária da “Rádio Educativa FM 101, 9”, Espaço para Divulgação e Apresentação de Músicas De Artistas, Oriundos ou Residentes na Cidade de Campinas.

[11]  Entre os artistas mais antigos figuram: Geraldo Lamana, Orquestra 770, Sexto Sentido, Celly Campello, Marcelo Costa, Cláudia Moreno, Paulinho Nogueira, o irmão Celso Mendes, Laércio de Freitas e Lumumba. Entre os mais recentes destacam-se o Grupo Soma, Jorginho Matheus, Ricardo Matsuda e Hot Jazz Club.

[12] Jornal Correio Popular. 19 de junho de 2005.

[13]  Dá-nos ideia da ferocidade da concentração no mercado fonográfico mundial o fato de que na década de 1980 havia seis empresas controlando aproximadamente 70% da produção mundial, enquanto hoje a posse de 80% de toda a música veiculada no mundo cabe a quatro empresas, a saber: Universal, Warner-EMI, BMG e Sony, as grandes gravadoras chamadas de majors. Dados da IFPI (International Federation of the Phonographic Industry) de 1997, afirmam que o lucro com a venda de 107, 9 milhões de unidades no mercado fonográfico mundial foi de U$ 1, 275 bilhões (In Vicente, 2001). O Brasil figura como o sexto maior mercado fonográfico do mundo, composto por cerca de 70% de repertório nacional. Em 2004 a indústria do disco teria movimentado no país cerca de R$ 600 milhões apenas com a venda dos registros sonoros (CDs e DVDs, em especial), dos quais 77% é repertório nacional (Fonte: Crowley Broadcast Analysis).

[14] Vicente (2001) apresenta comparações entre a operação das majors e das indies (as pequenas gravadoras). O autor supracitado lembra que as majors operam sob divulgação global e maciça, valendo-se da sinergia de diferentes formatos de mídias e utilização de inovações tecnológicas, alavancando suas vendas por meio do lançamento dos amplos catálogos musicais que possuem. As indies, por outro lado, realizam frequentemente todas as etapas da produção, prospectando novos mercados, formando e distribuindo artistas. Elas tendem a associar-se às majors para ampliar o seu mercado. Tais empresas exploram os mercados locais e segmentos específicos, produzindo e divulgando em condições limitadas um amplo número de artistas. Não possuem catálogos expressivos e dependem decisivamente das vendas de seus artistas.

[15] De acordo com Santos (1979), circuitos superiores e inferiores da economia se movimentam conjuntamente nas cidades dos países pobres, ambos resultantes da incompleta modernização tecnológica. O circuito superior é a repercussão espacial decorrente do progresso tecnológico, fruto da ação dos beneficiados com esse processo. Por outro lado, o circuito inferior é um resultado indireto do mesmo progresso, que compreende material e organização residuais, numa íntima relação com a pobreza urbana, seja na procura de dinheiro líquido, na sua originalidade ou nas técnicas arcaicas empregadas.

[16] Jornal Correio Popular de 18 de outubro de 1996

[17] Informações em www.ifpi.org.br

[18] Criado pela Lei N° 12.355 de 10 de setembro de 2005, o FICC é constituído pelo Secretário Municipal de Cultura, um representante do Conselho municipal de Cultura, um da Secretaria Municipal de finanças e dois servidores indicados pela Secretaria Municipal de Cultura, Esportes e Lazer. O critério para conseguir aprovação de um trabalho é ser morador de Campinas e não trabalhar como servidor municipal. A verba anual para o projeto é de 790.000 (setecentas e noventa mil, UFICs o que corresponde a aproximadamente 1 milhão e quatrocentos mil reais). Dentre os objetivos, o fundo de cultura visa “promover o intercâmbio e a circulação de bens e atividades culturais com outros municípios, estados e países, destacando a produção campineira” (Artigo 2°. VII parágrafo).

 

Recebido em: 10 de julho de 2017

Aprovado em: 17 de outubro de 2017

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UMA CARTOGRAFIA DA COLONIALIDADE: O CASO AFRO-BRASILEIRO

Resumo: Este artigo é uma reescrita resumida do relatório de conclusão de meu Estágio de Pós-Doutorado empreendido no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ): Uma cartografia da colonialidade: o caso afro-brasileiro em perspectiva (2017). Na conjugação de acontecimentos históricos como modernidade, escravidão e colonialismo, considera-se aqui a trajetória do discurso afrodescendente no Brasil em sua expressão literária antagônica ou divergente em relação aos arquivos da colonialidade. Enfatizando a premência de um discurso crítico autônomo, a contrapelo ao eurocentrismo ainda hoje vigente no Ocidente, o texto alia-se ao desenvolvimento de estudos pós-coloniais transdisciplinares e comparativos, balizados por uma ótica que privilegie o lócus de enunciação latino-americano.

Palavras-chave: Colonialidade; cultura/literatura Afro-brasileira; Estudos Pós-Coloniais Comparativos.

Abstract: This article is a summarized version of my postdoctoral report A cartography of coloniality: The Afro-Brazilian case in question (PACC-UFRJ, 2017). In the confluence of historical events as modernity, slavery and colonialism, it looks at the trajectory of afro-descendant discourse in Brazil, in its antagonistic or divergent literary expression in relation to the archives of coloniality. The text also emphasizes the importance of an autonomous critical discourse vis-à-vis the eurocentrism still prevailing in the Western world, and the development of transdisciplinary and comparative Postcolonial Studies that favor the Latin-American locus of enunciation.

Keywords: Coloniality; African-Brazilian Culture and Literature; Comparative Postcolonial Studies.

 

Introdução

“A modernidade é uma máquina geradora de alteridades que, em nome da razão e do humanismo, exclui de seu imaginário a hibridez, a multiplicidade, a ambiguidade e a contingência das formas de vida concretas. A crise atual da modernidade é vista pela filosofia pós-moderna e pelos estudos culturais como a grande oportunidade histórica para a emergência dessas diferenças largamente reprimidas.”

(Santiago Castro-Gómez, Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da ‘invenção do outro’)

Ao configurar uma cartografia da colonialidade nas Américas, este texto leva em consideração duas instâncias históricas inseparáveis e indispensáveis neste empenho – a escravidão e a modernidade. Percorrendo marcos relevantes da produção escrita colonial e pós-colonial a partir do material constituído e registrado em seus arquivos (“arquivo” será um conceito a discutir adiante), enfocaremos o caso afro-brasileiro, na marcação do solo histórico e literário em que se deram algumas de suas manifestações discursivas.

É impossível considerar-se a modernidade apartada do fenômeno colonial. Não por outro motivo, o colombiano Santiago Castro-Gómez intitula um de seus trabalhos “La colonialidad del poder o la ‘outra cara’ del proyecto de la modernidade”.  Sendo inviável, por outro lado, tratar o colonialismo sem se investigar a escravidão, cumpre enfocar a experiência do colonialismo escravocrata para o entendimento da modernidade.

Colonialidade, escravidão e modernidade são aqui abordados como “acontecimentos” no sentido proposto por Michel Foucault: o acontecimento (événement) enquanto cristalização de determinações históricas complexas, o que traz à baila, necessariamente, a relação entre acontecimentos discursivos e acontecimentos de outras naturezas – econômicos, sociais, políticos, institucionais (Revel, 2008, p. 56).

Como se sabe, o mundo ocidental europeu, empenhado na exploração desenfreada das lucrativas colônias americanas, foi afetado em sua totalidade pela escravidão: a escravização de seres humanos foi o preço a pagar para que a Europa pudesse comer açúcar, comentaria, com seu costumeiro sarcasmo, Voltaire em Candide [“C`est à ce prix que vous mangez du sucre em Europe”] (Voltaire, 1759/2006, p. 98).

O chamado escravismo “africano”, ou “negro”, ou “moderno” ancorou-se na escravidão praticada desde a mais remota Antiguidade. Porém, ele se modelou, singularmente, na inflexível, perversa e arguta combinação de rígidos dispositivos legais que vigoraram, praticamente invioláveis, por cerca de 300 anos em toda a “Afro-América” – denominação utilizada por Clóvis Moura para as regiões imensas do continente americano ocupadas pela escravidão africana e povoadas por escravos e seus descendentes (1994, p. 41). Foram estes: a noção de “raça”, definida conceitualmente no século XVIII e dominante enquanto teoria e categoria pseudocientífica no século XIX (escravizavam-se os negros e seus descendentes); a hereditariedade, segundo a linha matrilinear dos escravos (filhos/as de escravas seriam escravos, a serem legados a seus proprietários e descendentes); a duração vitalícia da escravidão (em relação à vida dos indivíduos escravizados).

Em prol do eficiente funcionamento do sistema colonial escravista, engendraram-se relações inter-raciais específicas – nacional e regionalmente diferenciadas em função de fatores sociais diversos (dentre os quais, o religioso), porém sempre a partir daquela tríplice base comum.  Cabe lembrar que o pensamento racialista associado à escravização dos não-europeus antecedera, em muito, a sua organização conceitual, e vigorara antes da importação de africanos para as Américas, vitimando as populações nativas americanas.  Cristóvão Colombo deixa isto claro em sua correspondência de viagem, ao escrever:

Os transportadores [de animais de carga, voltando à Europa] poderiam ser pagos em escravos canibais, gente feroz mas saudável e de ótimo entendimento, os quais, arrancados de sua desumanidade serão, cremos, os melhores escravos que há (apud Todorov, 1999, p. 55).

Em suma, a partir das descobertas marítimas e do alvorecer da Modernidade, a visão do mundo dos europeus foi funcionalmente racialista. Em sua ampliação dentro dos paradigmas da conquista e da colonização, expandiu-se uma ocidentalização europeizada, e a presença europeia criou espaços novos de ocupação e resistência. Gruzinski observa nesse sentido:

…esses middle-grounds para onde convergem forças locais e globais, sistemas de símbolos e concepções do mundo, estratégias de dominação, de adaptação e de resistência, onde nascem sociedades e grupos sem precedentes na história, onde proliferam as misturas e onde se instalam as barreiras destinadas a represá-las (2004, p. 83 – grifei).

Naquele período de extraordinária ascendência da Europa, consolidou-se a ideia de uma identidade europeia superior em relação a todos os povos e culturas não europeus. Na trilha das descobertas ultramarinas e durante toda a colonização das Américas, “as histórias locais do mundo foram substituídas pela história local da Europa”, sintetiza Boaventura de Sousa Santos, especificando aquilo que presidiria, durante séculos, sobre o traçado de nosso destino americano (2003, p. 18).

A espoliação colonial foi legitimada por um imaginário estabelecendo diferenças incomensuráveis entre o colonizador e o colonizado, sendo as noções de “raça” e “cultura” dispositivos taxinômicos que geravam identidades opostas. Assim, firmou-se o caráter dualista e excludente que assumiram as relações modernas de poder centralizadas no Estado soberano: instância central de coordenação dos mecanismos de controle, garantia de organização da vida humana, formulador de metas coletivas válidas para todos, suposta síntese dos interesses da sociedade.

Sobre o pano de fundo histórico do colonialismo foi empreendida a “colonização das perspectivas cognitivas”, no dizer de Aníbal Quijano.  Em entrevista recente, o estudioso peruano enfatiza que, apesar de sua violência e magnitude, a destruição histórica efetuada por aquele avassalador processo não conseguiu, porém, impedir a permanência de núcleos de identidades históricas muito complexas e antigas, em desenvolvimentos contraditórios e heterogêneos, com seus espaços de mutações, conflitos, negociações, convergências. Em consonância com Gruzinski, Quijano afirma que o padrão de poder ativo durante 500 anos também produziu novos processos identitários e que o seu desenrolar abriu inéditos espaços de interações entre os agentes de um descontínuo universo de identidades remanescentes ou em constituição (Quijano, 2006, p. 1-2).

O interesse fundamental na revisão e releitura do passado colonial reside nas implicações, decorrências e dinamismos desse passado na formação sociocultural das sociedades que hoje habitamos. Para tanto, ao recorrermos ao pensamento interpretativo contemporâneo e, basicamente, à teoria crítica pós-colonial conforme desenvolvida e tornada mais apurada pelo pensamento latino-americano na junção com o comparatismo literário, investigamos as condições de emergência dos discursos da colonialidade e rastros de sua persistência em nossa atualidade.

Em sociedades de matriz aristocrática como o foram as colônias nas Américas, “a noção do que é certo” atrelou-se ao poder constituído e ao ponto de vista da emissão de juízo daí decorrente (Secchin, 2013, p. 35). Mas o poder não se exerce sem fricções e o seu discurso jamais se manifesta sem lapsos, tensões e contradições. Mesmo o discurso ideologicamente comprometido com o pensamento hegemônico viabiliza, a despeito de suas intenções manifestas, a captação, nele, de sentidos divergentes – constatação que, uma vez operacionalizada, alavanca a leitura analítica.

Adentrando o século XX, ciência, raça e civilização constituíam ainda “um sentido indefectível de crenças e valores que sustentavam o domínio europeu sobre o mundo até a Primeira Guerra Mundial” (Sevcenko, 2003, p. 147). Nos impérios coloniais, tal arcabouço ideológico dependia visceralmente da exclusão de parcelas populacionais que não correspondessem à modelagem social e étnica privilegiada pelos dominadores – em outras palavras, à colonialidade em ação.

No Brasil, os mecanismos de exclusão social persistiram séculos após o colapso colonial e o fim da monarquia, em tentativas republicanas mais ou menos exitosas e em desgraçados períodos ditatoriais. Durante o conturbado trajeto, manteve-se vedado (ou dificultou-se consideravelmente) o acesso à ampla cidadania para a maior parte da população – as chamadas “minorias”. Entende-se, portanto, a amargura de um Lima Barreto, nas primeiras décadas do século passado, perante o entusiasmo cientificista de Euclides da Cunha, a ponto de exclamar: “Engraçado! É como se a civilização tivesse sido boa e nos tivesse dado a felicidade!” (apud Sevcenko, 2003, p. 146). Lima Barreto parece ecoar o baiano Luís Gama que, em meados do oitocentismo, assinalara o lugar periférico que lhe cabia na sociedade escravocrata brasileira ao situar-se, e à sua arte, nas “abas do Parnaso” (Gama, 1974, p. 21-22).

Com a desmistificação do eurocentrismo e a decorrente crise das humanidades a partir, grosso modo, de meados do século XX, a ampliação da esfera cultural libertou os padrões críticos e estéticos, tradicionalmente europeus e euro-americanos, no mundo ocidental. Alargaram-se as noções de “identidade”, até então apanágio de um humanismo universalizante. O salto foi positivo: quadros culturais renovados, nos diversos continentes, passaram a atentar para as vozes de camadas populacionais desfavorecidas que lograram atingir o reconhecimento público. Isso resultou em inéditas concepções de arte, de filosofia, abrindo-se o panorama cultural para uma nova hermenêutica.

Na verdade, rompendo-se o cerco eurocêntrico, o conceito de “identidade” perdeu o seu sentido essencialista e tornou-se “uma ‘celebração móvel’”, escreveu Stuart Hall, formada e transformada continuamente “em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. São, assim, instituídas políticas culturais de diferença, não mais necessariamente modeladas e adequadas aos modelos europeus consagrados, carregando “os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas” (Hall, 1997, p. 96).

A positividade da expressão marginal – já prefigurada, aliás, na metáfora das “abas” de Luís Gama – foi sempre atravessada por processos múltiplos de diásporas, mestiçagem e hibridação, mostrando crescente assertividade em diversas formas de ação sociocultural e em seu agenciamento discursivo. Nas palavras do poeta Ferréz, referindo-se à autoproclamada “literatura marginal” no Brasil:

Mas estamos na área, e já somos vários, e estamos lutando pelo espaço para que no futuro os autores do gueto sejam também lembrados e eternizados. Neste primeiro ato, mostramos as várias faces da caneta que se manifesta na favela, para representar o grito do verdadeiro povo brasileiro (apud Patrocínio, 2013, p. 17).

Trata-se de radical tomada de posição que rejeita a tematização de questões sociais, raciais, culturais sob a égide (quer hostil, quer paternalista) da ótica dominante, e o antigo objeto do discurso torna-se sujeito de um discurso através do qual busca a expressão de si e do mundo.  Um processo amplo de tradução cultural enseja, assim, a produção de novas formulações discursivas divergentes em relação ao discurso euro-americano.

 

O discurso: a leitura do arquivo

Bananal, SP, 1988 – Claudio Bergstein. Fotografias. R.J.: Editora Leblon, 2014
Bananal, SP, 1988 – Claudio Bergstein. Fotografias. R.J.: Editora Leblon, 2014

 

As tensões inerentes ao caráter lacunar do discurso – que se constrói entre “asas e azares”, no belo título poético de Paulo Leminski (2013, p. 217) – impedem que o tecido discursivo se teça com a coerência em geral pretendida por seus autores. Materializado, sucessivamente, no arquivo de cada época, esse tecido discursivo se elabora em instabilidades e movências no curso de seu incessante acúmulo, através de brechas e falhas. As formações do arquivo cultural estão sempre em perpétua mutação, contra o monologismo imposto ou sugerido pelo cânone a serviço dos mecanismos da colonialidade. Justamente o discurso literário vem a ser o instrumento privilegiado que aponta, potencial ou deliberadamente, a precariedade do proselitismo colonialista, tecendo sentidos díspares entre “as pontes e os vãos” dos significados ostensivos (a expressão é tomada de José Eduardo Ferreira Santos).

O caráter ambíguo, frequentemente tortuoso e tenso do discurso não se restringe ao ficcional, sendo inerente à produção discursiva em si, e desponta com insistência na escrita da colonialidade. Sua leitura mostra, ademais, a emergência dos silêncios eloquentes que dizem respeito ao lado sombrio da colonização e seus sucedâneos, problematizando as vozes e os padrões estabelecidos. Entre silêncios que calam e silêncios que falam, soam, misturadamente, vozes laudatórias ou antagônicas em relação ao arquivo canonizado, a transformá-lo e a adulterá-lo, contaminando-o em intermináveis reconfigurações.

A questão do arquivo foi desenvolvida por Jacques Derrida em Mal de arquivo – uma impressão freudiana. Ele ali adverte que o arquivo não é somente o local de estocagem de um conteúdo passado, de tal forma que, sem o arquivo, “acreditaríamos ainda que aquilo aconteceu ou teria acontecido”. Segundo Derrida, “[A] estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento” (2001, p. 29).

O arquivo (assim como a memória, que o engloba) ocupa um lugar onde as impressões são recebidas “como fatos abertos” para uma exploração do leitor ou da crítica (Bessa-Oliveira e Nolasco, 2010, p. 100). No desvelar de um concerto de vozes e silêncios concordes ou discordantes reside nosso grande interesse pela investigação do arquivo, em sua pontuação afirmativa ou contrapontual. Verifica-se, nesse exame, quão enganosas são as fronteiras discursivas, tornando-se impossível determinar com segurança as linhas divisórias entre diferentes domínios do saber, jamais estanques. Tal ponderação é fecunda quando são examinados registros presentes e passados, os quais emergem na instabilidade de suas construções, em temporalidades que transbordam – seja através do registro de suas delineações, seja através das delineações de seu registro, sempre perseguindo o veio da colonialidade.

O aspecto a frisar, justamente, é que as lacunas e as mesclas discursivas servem como pontos onde alavancar o discurso crítico: as falhas, os vazios e as contradições, em lugar de constituírem empecilhos ou obstáculos a ultrapassar, propiciam novas perspectivas nos estudos interpretativos. Neste tipo de análise (como que em ricochete) pode-se então apreender, e elaborar, aquilo que Michel Foucault define como “esta ontologia histórica de nós mesmos” (2004, p. 81).

Nessa via, faz-se necessário empreender uma perspectiva que, querendo-se internacionalista, leve em conta o lócus de enunciação, o lugar de onde se fala, no exame do desenvolvimento sociocultural nas Américas através de suas formações discursivas. O que se pretende é ocupar espaços deixados vazios na esfera acadêmica, em disponibilidade, evitando assim que se “fale por nós”, em lugar de falarmos em concerto; e rejeitar a emulação cultural que tantos entraves causa a uma troca de saberes saudavelmente desprovida de hierarquias.

No veio dos estudos pós-coloniais há que se evitar, portanto, um “colonialismo de segundo grau”, ou seja, o continuísmo dos padrões e achados dos estudos interpretativos hegemônicos – europeus e dos Estados Unidos. O diálogo cultural entre antigos colonizadores e colonizados, em nosso continente, não pode dispensar o “olhar de viés” latino-americano, na feliz expressão de Ricardo Piglia (2001, p. 3).

Nas últimas décadas, uma consciência mais ampla dos desafios relativos à interculturalidade e à multipolaridade envolve a dinâmica das diásporas, das mestiçagens e dos processos de hibridação (Coser, 2005, p. 164). As abordagens desses fenômenos e de seu impacto vêm se tornando mais complexas e nuançadas, sem as compartimentalizações das ciências humanas e das humanidades tradicionais; sem os dualismos e a busca de irreais purismos, predominante no passado.

De fato: teóricos sociais de hoje, como Santiago Castro-Gómez, chamam a atenção para um padrão de poder que construía o “outro” mediante uma lógica binária, cujo funcionamento reprimia as diferenças. Aníbal Quijano, no mesmo diapasão, alerta para a heterogeneidade e para as descontinuidades constituintes da América Latina. Diz Quijano: “Viemos, pois, de muitos passados, chegamos a um presente muito heterogêneo e conflitivo e estamos indo rumo a um futuro igualmente heterogêneo e certamente muito conflitivo” (2006, p. 2).

Com a crescente representação de camadas populares nos circuitos culturais, manifestações discursivas variadas tematizam a positividade das misturas, efetuando sínteses do quadro populacional e cultural da atualidade nas Américas. A encruzilhada de histórias e geografias, de etnias e de idiomas aponta para o cruzamento de saberes e conclama o comparatismo interpretativo. Além dos vínculos que enriquecem a reflexão pós-colonial entrelaçada à ficção literária, abre-se um espaço novo para a teoria pós-colonial quando aliada à literatura comparada. O crítico Georg Gugelberger, ao problematizar os paradigmas do comparatismo literário tradicional, observa:

Num certo sentido, os estudos culturais e pós-coloniais são o que a literatura comparada sempre quis ou afirmou ser, mas que em realidade nunca foi, em razão de um apego deliberado e quase desesperado a cânones, culturas, línguas e valores eurocêntricos (2005, p. 758).

Tal constatação amplia o espaço para uma cartografia da colonialidade em que diferentes discursos despontem na hibridez de seu funcionamento – dialogando, negociando, entrando em conflito com outros discursos por vezes distantes do universo regional, nacional ou linguístico que habitam e onde a temporalidade e a espacialidade se cruzam, dando a perceber formas culturais do imaginário em suas transformações, estratégias, reinvenções. Manifestações socioculturais fermentadas a partir do sistema colonial/imperial europeu têm imprimido, ao longo dos séculos, marcas palpáveis nas diversas sociedades do continente, a contrapelo das vozes hegemônicas.

Reforço, portanto, a postura defendida por crescente parte da crítica internacional (e da brasileira, em particular) quanto à construção de um instrumental analítico próprio sobre a colonialidade nas Américas, que leve em conta as circunstâncias geradas pelos percursos históricos coloniais e pós-coloniais, sempre evitando a armadilha da “busca às origens” cultuada pelos discursos míticos de fundação.

 

O caso afro-brasileiro

Eugen Keller e sua babá em Pernambuco, cerca de 1874 Alberto Henschel. Brésil. Les premiers photographes sous les tropiques. Gallimard, 2005.
Eugen Keller e sua babá em Pernambuco, cerca de 1874
Alberto Henschel. Brésil. Les premiers photographes sous les tropiques. Gallimard, 2005.

 

Na busca de uma operacionalização do instrumental crítico de apoio, volto-me neste ponto para o caso literário afro-brasileiro, vendo na junção dos Estudos Pós-Coloniais com a expressão cultural afrodescendente a forquilha a sustentar o andamento da investigação. Retomemos o percurso a partir da sociologia, evocando o pensamento de um de seus expoentes em nosso país, Clóvis Moura.

Em Dialética radical do Brasil negro, Moura refere-se à “camisa-de-força ritualística da linguagem imposta pelo senhor”, que obrigava o escravo “a um código de linguagem passivo e apenas concordante”. Entretanto, prossegue Moura, embora inibida e reprimida em sua expressão cotidiana, a comunidade escravizada “expandia-se em manifestações coletivas de libertação simbólica através da palavra e da música”, o que persistiria em seus descendentes através das gerações (Moura, 1994, p. 203).

Falamos agora, com Clóvis Moura, de repressão e de criação; de opressão e de confronto. Falamos de silêncio imposto e de palavra libertadora. De castração cultural e criatividade simbólica. De apagamento e de memória. Os dois lados, estratégicos: a partir do primeiro, a tentativa de preservação da ordem estabelecida por parte da comunidade afro-brasileira; por outro lado, a persistência de encontrar pontos de apoio onde alavancar a própria sobrevivência individual e comunitária, psicológica e sociocultural e de operacionalizar a sua bagagem existencial no arquivamento de temporalidades diversas.

A perceptiva visão de Clóvis Moura em relação aos inícios da cultura afro-brasileira – enfocada por ele tanto como revide diante da opressão quanto como criação libertadora – aponta os paradoxos e ambiguidades que presidiram a trajetória do discurso literário do negro no Brasil. O escravo e o liberto, nos idos da colônia e da monarquia, servir-se-iam da linguagem do dominador, que passou também a ser a sua, a fim de exercer a positividade do dominado. Para tanto, foi mister dominar essa linguagem e contaminá-la com a experiência vivida, nela imprimindo a carga dos subsídios africanos. O discurso afro-brasileiro emerge da conflitada mescla entre a experiência em terras americanas e a ancestralidade africana anterior à travessia do oceano Atlântico onde tanto se perdeu, mas que foi a dolorosa passagem (middle-passage) para as culturas da diáspora no continente.

Um romance e dois poemas aqui enfocados lidam com a questão do deslocamento África-Brasil e com os desdobramentos da sociedade brasileira do passado escravista aos dias de hoje. As suas respectivas vozes narrativas enfatizam o legado gerador do espectro familiar/comunitário, no jogo identitário.

O romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, narra com maestria a transmissão de uma herança multifacetada, conforme se vê na passagem abaixo:

No Brasil, o culto aos orixás era forte demais até para o grande poder que os voduns possuíam. Ela [Nega Florinda] também disse que eu poderia me valer dos orixás para cultuar alguns voduns, porque, na Bahia, Mawu, Khebiosô, Legba, Anyi-ewo, Loko, Hoho, Saponan e Wu eram cultuados como Olorum, Xangô, Elegbá, Oxum, Iroco, Ibêjis, Xaponã e Olokum. Na Bahia, os orixás já tinham tomado conta das cabeças dos pretos e o culto deles vinha de muito tempo, praticado por quase todos os africanos que, por muitos e muitos anos, iam parar naquelas terras (2006, p. 83).

O livro é a saga do negro no Brasil, por intermédio do relato da protagonista-narradora nascida na África e contrabandeada como escrava, ainda criança, para o Brasil. Dramatizam-se, em suas páginas, rituais religiosos, capoeiras e muitas outras lutas, artes e astúcias, em entremeio a descrições de festas, comidas, crenças, alegrias, embates e dramas da comunidade negra, escravizada e liberta. Também ali circulam senhores e senhoras de engenho, sinhazinhas e emigrados portugueses, padres alemães, cantoras líricas e “retornados”, além de bravos escravos muçulmanos, os “muçumirins”. Na verdade, a grande revolta dos Malês na Bahia, em 1835, motivou a escrita do romance (segundo depoimento da autora), o qual tem sido considerado um “romance histórico pós-moderno”, ou “metaficção historiográfica”, ou ainda “ficcionismo”, multiplicidade de denominações que atesta a amplidão de seu escopo.

No desenrolar da narração, a voz da mãe em busca do filho vendido como escravo, através das décadas, tornar-se-á o eixo condutor de um viver (o da protagonista) e de uma escrita (a ficcional), mesclando-se ambas, vida e escrita, indissoluvelmente. O romance é emblemático desse percurso, num emaranhado de vozes – sempre evocadas por meio dos ecos da oralidade, permeando os traços e as marcas do literário.

O título, Um defeito de cor, serve como contraponto para destacar a realidade do seu avesso.  a história do negro no Brasil é ali encenada no jogo de sua positividade, investindo o texto contra a ideia de negação, deficiência, privação e carência que a fórmula discriminatória do título presume, em estratégia de resistência, de criatividade: na “libertação simbólica através da palavra” – relendo ainda Clóvis Moura. O passado distante, recriado na intimidade do cotidiano e seus horrores (e seus prazeres também, a letra do texto não deixa dúvidas) ilumina o chão do presente, por meio da refração própria do ficcional.

Já o poema “Vozes mulheres”, de Conceição Evaristo, também recolhe e reconstitui as experiências de sucessivas gerações, novamente a partir da linha matrilinear. O eu poético se apresenta como uma daquelas “vozes mulheres” que soam e ecoam – do navio negreiro aos labirintos das favelas urbanas, dos “versos perplexos/ com rimas de sangue e fome” às ressonâncias projetadas para o amanhã, na voz libertária da filha. Os acontecimentos são reescritos pela perspectiva dos que configuram a parte negligenciada pela história oficial e que afirmam a própria positividade na “fala e ato de agora”, diz o poema, no exercício de um provocador contradiscurso. “Vozes mulheres” ressalta o falar que redime, e as mulheres que o poema invoca rejeitam o silenciamento imposto a ferro e a fogo, em elos (cadeias) familiares. Na reinvenção da linguagem simbólica, é assim ativado o jogo nutriente da palavra (Evaristo, 1990, p. 32-33).

Essas vozes murmuradas transmitem, encadeadas, uma vasta memória de resistência a abarcar todo um cabedal de ensinamentos e estratégias de sobrevivência. Vínculos cheios de significação reivindicam, no poema, o tempo negado. Os subterrâneos da história ocultam aquilo que o poema retoma e recupera: as narrativas das mulheres negras em suas revoluções minuciosas, invisíveis, persistentes. Vozes aparentemente submissas tramam o tecido discursivo de uma genealogia feminina, investida na figura da Mãe.

O poema “Sou negro”, de Solano Trindade (1908-1973), por sua vez, levanta a questão do trabalho escravo através da dupla linhagem, masculina e feminina, remontando ao encadeamento com o espaço africano (com o “sol da África”, diz o poema):

Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro maracatu (1997, p. 123).

O último verso citado confere ao poema um diferencial próprio. Ao acentuar o agenciamento da criatividade negra (“fundaram o primeiro maracatu”), o poema interliga emblemática família à instauração, em solo nacional, da cultura afro-brasileira. Como “Vozes mulheres” e Um defeito de cor, “Sou negro” trabalha o motivo da família negra e remete à ancestralidade africana através das gerações. Os dois poemas aqui discutidos, assim como o romance, mantêm a linguagem coloquial e a oralidade fundadora peculiares às culturas africanas, enquanto pedras angulares da narração poética.

Em sua reescrita da história do Brasil, “Sou negro” rejeita um dos estereótipos mais conhecidos, o da submissão negra, sempre por meio de figuras ancestrais e do eixo da territorialidade: “Depois meu avô brigou como um danado / nas terras de Zumbi”. O território deixa, assim, de ser a nação branca, europeizada, para transmutar-se poeticamente nas “terras de Zumbi”. Africaniza-se a herança, põem-se em questão os marcos oficiais, reguladores, mitificados pelo saber etnocêntrico, apontando-se para identidades afro-brasileiras em legados que se entrelaçam através dos jogos inesgotáveis da palavra. Em sua positividade, o jogo alegre da palavra instaura, revigora e harmoniza o caminhar desde dolorosos começos.

A cartografia da poética afro-brasileira conforme ilustrada acima realça um aspecto simbolicamente fundamental, que diz respeito ao mapeamento geofísico da trajetória do negro no Brasil, à releitura e reescrita de sua experiência comunitária através dos tempos. Os espaços físicos mostram-se sempre densamente povoados, a evocação de pessoas entremeia-se à inscrição da memória, que aciona por sua vez a escrita da territorialidade. Trata-se, para seus sujeitos, da conjunção espaço/tempo e da consequente metaforização do corpo. A escrita e reescrita da experiência negra materializam o que Muniz Sodré caracteriza como a “reelaboração política do passado a partir da inteligência presente da vida social”. A lembrança implicada, prossegue Muniz Sodré, não é repetição do igual, e sim o reencontro de pontos críticos do passado “por um sistema reinventivo de valores que coincide com o quadro social presente, ele próprio uma recordação estável e dominante, porém aberto à indeterminação da realidade” (1999, p. 211).

A geografia do imaginário na escrita é inseparável, como os textos abordados demonstram, da questão identitária, à qual sempre retornamos. O lugar é o teatro da identidade, diz Milton Santos. O trabalho com território e cultura mostra que o território, tanto o geográfico quanto o simbólico, é o cenário em que se desenvolvem táticas e estratégias criativas de sobrevivência e de reinvenção identitária – não só o lócus, mas também o palco de ações reveladoras (Santos, 2007, p. 163-164).

No tecido textual da cultura brasileira, um infindável tapete espaço-temporal de muitos fios fornece subsídios para que ali se teça uma cartografia do imaginário destacando o traçado da africanidade – o que bem se expressa no poema “Cantiga”, de Celia Aparecida Pereira (Celinha), com seu belo jogo sonoro e semântico de “trançar”/”traçar”:

Tran
Çar teus cabelos tal qual
As cordas, as correntes e os açoites, é
Sentir nas mãos o acalanto do vento.

 

É traçar as linhas
do mapa de uma nação.
É escrever em tua cabeça
Uma negra canção (1994, p. 54).

Conclusão: abrem-se portas

La Paz, Bolívia, 2000 – Claudio Bergstein. Fotografias.
La Paz, Bolívia, 2000 – Claudio Bergstein. Fotografias.

 

O trânsito de dominação escravista para o racismo de exclusão pós-escravista, segundo a síntese de Muniz Sodré (1999, p. 79), configura o solo histórico que percorremos nesta cartografia da colonialidade. O exame das elaborações discursivas a partir da conquista e da colonização viabiliza a abordagem consistente da modernidade e de nossa contemporaneidade.

Desde os primórdios da ocupação do Novo Mundo, intérpretes modelaram e mantiveram sob cuidadoso controle o arquivamento colonialista, de início imperial, depois sob outras formas de definição política. O registro da colonização sendo gestada, ao endossar o cunho etnocêntrico da ação europeia nas terras colonizadas e expressando-se com toda a força contra o indígena e o africano escravizado, mostrou-se acintosamente omisso quanto às estratégias de transmissão da memória desses povos e às formas de atualização e interação dessa memória, veiculada oralmente em ritos, mitos e história narrada. Note-se que a valorização do arquivo escrito (por parte das camadas dominantes) em detrimento da oralidade (dos dominados) afinou-se à desqualificação daqueles que a empreendiam como ferramenta cultural. Pode-se constatar, em todo esse panorama cultural de assimetrias, a persistente positividade da expressão dos dominados, exercida a contrapelo da violência hegemônica desde os primórdios da colonização.

O exame do arquivo americano expõe as fricções que o habitam. Ancorado e balizado em determinadas percepções do real, o arquivo cultural atua num dinamismo que comporta fortes tensões e contradições, não apenas na oposição entre o discurso impedido, obliterado, dos “outros” e o hegemônico, mas no interior de todos os discursos e, em especial, nas suas margens e fronteiras. Michel Foucault, a quem sempre retornamos com proveito, chama a atenção para as “fronteiras discursivas” – espaço onde, segundo ele, devem ser exercidas a crítica e a interpretação, ao invés de se partir do dualismo “dentro e fora”: “Deve-se escapar da alternativa do fora e do dentro: é preciso estar nas fronteiras” (2004, p. 80).

A forte tensão discursiva, vista como inerente ao caráter do discurso, perpassa o falar e o calar – tanto aquele(s) canonizado(s) quanto os alternativos. Daí a importância da verificação de silêncios a desvelar em todos os discursos e, muito significativamente, no viés da palavra marginal. Somos, ainda hoje (no Brasil e na América Latina, assim como em vultosas parcelas populacionais dos Estados Unidos), os “outros” de uma Europa / América do Norte desenvolvida e plural – os descendentes mestiçados de colonizadores e colonizados, de escravos e escravocratas. Como seria possível existirem formas de expressão razoavelmente aplainadas, em espaços assim convulsionados?

Procuro, neste trabalho, contribuir para a necessária descolonização do saber. Em outras palavras, busco redimensionar a imbricação de tradições conflitantes e suas traduções, levando adiante a opção descolonial, ou seja, a des-colonialidade intelectual que viabilize “desaprender” o saber imposto. A guinada da descolonização, assim, pode ser vista como o grande objetivo que o norteia. Nas palavras de Aníbal Quijano, é preciso dizer “não” ao tribunal a priori estabelecido pela colonialidade do saber, ao eurocentrismo essencialista com seu ordenamento cronológico e modelo epistêmico aliado a padrões hierárquicos e racialistas.

Boaventura de Souza Santos está correto quando afirma: “A ciência da qual viemos é um conhecimento arrogante que só reconhece conhecimentos alternativos na medida em que os pode canibalizar” (2003, p. 18). Cumpre, portanto, efetuar a revisão radical dos pressupostos epistêmicos herdados, o que requer paradigmas alternativos a enfatizarem histórias locais, formas de se pensar em simultaneidade, em rizomas, sem hierarquizações advindas de uma lógica diacrônica. Este texto propõe-se, em última análise, como uma contribuição à contínua reconfiguração do corpus sob escrutínio e do instrumental crítico em uso; ambos, desejavelmente, em conjunta dinâmica de investigação – com toda a paixão que o investimento intelectual associado ao prazer emocional envolve.


 

* Heloisa Toller Gomes lecionou literatura na UERJ e na PUC-RJ, onde fez seus estudos de mestrado e doutorado. Foi bolsista do CNPq e, no exterior, nas Universidades Howard e Yale.  No PACC, realizou os estágios de pós-doutoramento “Pós-colonialismo, etnicidade, formações culturais contemporâneas” e “Uma cartografia da colonialidade: o caso afro-brasileiro em perspectiva” e coordena a linha de pesquisa Cultura e desenvolvimento. Seu último livro publicado foi As marcas da escravidão: o negro e o discurso oitocentista no Brasil e nos Estados Unidos (2009, 2ª ed.). É membro da ANPOLL e faz parte da International Editorial Board, Journal of Postcolonial Writing.

 

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Recebido em: 12 de janeiro de 2018

Aprovado em: 10 de março de 2018