Prosas cariocas

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  • Editora Casa da Palavra
  • 2004
  • ISBN 8587220810
  • Português
  • Capa Tipo Brochura
  • 142 Páginas

Uma cidade se desvela na ficção

A Cidade Maravilhosa idílica dos cartões-postais não existe. Mas o Rio de Janeiro não é apenas aquele pintado de sangue pelos noticiários. Com fotos e notícias, o real escapa. Mas com literatura e ficção, a cidade desvenda-se para seus habitantes, admiradores e – por que não? – detratores também.

A proposta de Prosas cariocas, uma nova cartografia do Rio é utilizar a literatura para descortinar diferentes bairros da cidade, palcos por onde os cariocas transitam e trafegam, de casa para o trabalho ou para o lazer.

Não é de espantar, portanto, que boa parte dos contos se desdobre em movimento, como se um indivíduo oculto passeasse pela cidade, examinando cada bairro, num invocação da histórica figura doflâneur, tão popular no início do século XX.

Um século mais tarde, os personagens não caminham somente a pé, mas de carro, de ônibus, de trem, num andamento mais acelerado; não a ponto de impedir, contudo, que sigam a observar, curiosos, as curvas de sua cidade. A cada instante, entre bruta e sensual, a topografia do Rio desvela novidades, derruba clichês.

Os bairros cariocas são protagonistas ou coadjuvantes de luxo em 17 histórias que nos levarão à Ilha do Governador, periferia da cidade, de onde sairemos para passar pelo Centro, pelas zonas oeste e sul, até nosso porto final: um apartamento no Cosme Velho, no pé do morro do Corcovado, abençoado pelos braços do Cristo Redentor.

Dezessete autores nos guiam nesta aventura por um Rio desconhecido. Cada bairro é um microcosmo que abriga segredos, historietas, anseios e decepções. Nossa opção foi mapear não só a cidade, mas também a literatura que vem sendo produzida nela.

Por isso, selecionamos jovens escritores. Alguns premiados e com mais de um livro publicado. Outros que saem agora do casulo – e se revelam, como fizeram com os bairros escolhidos.

Cada autor foi designado para escrever sobre o lugar onde mora, já morou ou com o qual tenha afinidade. Não espere nenhuma condescendência. Quem conhece bem o bairro sobre o qual escreve sabe encontrar os mínimos defeitos e fraquezas e, com a liberdade e o olhar microscópio que a literatura possibilita, contar um pouquinho sobre a vida que viceja naquele pedaço da cidade ‘maravilhosa’, seja ela maravilhosa ou não.

Aproveite a viagem.

Flávio Izhaki e Marcelo Moutinho (organizadores)

Trecho de Para ver as meninas, de Marcelo Moutinho.

“(…) Luiza foi corajosa e me mandou passear. Quanto tempo? Essa insistência com o tempo… Dez anos. Dez completos anos e nem mais um dia. Quando cheguei à casa dela com as flores de sempre – rosas pêssego, ela gostava de rosas pêssego -, com toda a calma ela me disse “tchau”. Também não exigi explicações. Estava tudo ali, naquela cena: eu, com o buquê de rosas pêssego na mão; ela, entre o alívio e o constrangimento, revelando uma couraça que nunca havia conhecido. Os olhares, antes atirados como faróis um em direção ao outro, aqueles dois medos imensos que se escudavam, eram agora olhares vadios, vagando pela sala. Involuntariamente meu abdômen contraiu-se. Nevava dentro de mim, eu que nunca vira a neve. Um livro bom terminava.

Não vá pensar que foi só a demissão que me jogou naquele ônibus. Nem que foi o pouco dramático final com Luiza que me jogou nesta penúria de vida. Muito já desceu rio abaixo. Fui elegante. Embalei os meses seguintes ao adeus nos lençóis brancos da calma, dedicando-me imediatamente a agradar quem me pagava o aluguel, parando com o cigarro e enfim cumprindo a velha promessa de cuidar mais do corpo, menos do espírito. Nova topografia também: de um confuso Botafogo para a paz quase acachapante da Urca.

Pouco a pouco, a turva imagem de Luiza se desintegrou, sem que eu sentisse. Não foi como um corte abruto, como um filme do Tarantino. No decorrer dos dias, a face de Luiza desfez-se numa pintura impressionista e, nas raras ocasiões em que nos esbarrávamos por aí – amigos em comum, aniversários, casamentos –, dois beijos na bochecha e um boa-noite resolviam tudo.

Pensara que jamais suportaria perdê-la. Luiza fora meu Salvador crucificado, minha bandeira política, minha santa predileta. Depois dela nunca mais amei ninguém. E decidi – sei lá como decidi isso, simplesmente aconteceu – não me negar prazer algum. Mulheres enfileiradas como carne de segunda num açougue e as consumia, sem culpa ou remorso.

Quando o ônibus já despontava nas ruas fazia quase meia hora, divertia-me ao arrolar os diferentes rostos, peitos, pernas, bucetas, jeitos, beijos, cheiros, pescoços, pés que se esfregaram no meu corpo, talvez querendo amor, talvez apenas uma boa trepada.

A cada orgasmo, cada vez que o esperma saía de mim ainda com a virulência de um organismo jovem, eu parecia me esvaziar. Será que um dia acabaria tudo, se extinguiria meu poder de homem? Se antes pouco importara, agora sim. Porque no vácuo da ausência de Luiza, a obsessiva fluência do prazer não chegou a um esboço mínimo de alegria que durasse mais de uma hora, como se seus traços fossem delineados com anilina e a chuva não tardasse.

Queria mais do que tudo compreender o que justificaria essa certeza: será que somente nesse atirar-se num amor novo e desconhecido é possível tatear um sentido para o futuro? E quem não o tem? Tocam os passos adiante, como Luiza, equilibrando-se no cinismo de quem nada espera. Não consigo. Ainda que me refugiasse em casa, toc, toc, toc, lá viria a  esperança teimando em bater à minha porta.

Deus abençoe os suicidas, que se vão para que a gente fique procurando motivos para permanecer.(…)”

Dezessete contos, o valor do novo mapa do Rio

“São bacanas, sacanas, modernos, bambas, craques etc. Mas, acima de tudo, os 17 escritores de Prosas cariocas – Uma nova cartografia do Rio de Janeiro (editora Casa da Palavra) não gostam de dias nublados para a sua literatura. Com o lançamento da coletânea de contos na próxima quarta-feira, na Livraria da Travessa de Ipanema e, no sábado, no Jockey Club, dentro da Primavera dos Livros, a maioria deles busca a visibilidade negada até agora para a sua obra.

No livro, cada um dos participantes ambienta o seu conto no bairro onde mora ou com o qual tem uma relação especial. O resultado final é um mapa literário de um Rio formado por Ilha, Pavuna, Madureira, Lins de Vasconcelos, Maracanã, Muda, Jacarepaguá, Barra, Gávea, Leblon, Copacabana, Urca, Catete, Centro, Santa Teresa, Laranjeiras e Cosme Velho. Os organizadores do volume, Marcelo Moutinho e Flávio Izhaki, nem esperam a pergunta que não quer calar – um mapa do Rio sem Ipanema? – para responder:
– Fizemos questão de fugir de clichês. Na nossa geografia não entraram Ipanema e Botafogo, mas estão Pavuna e Madureira. Ou será que só se faz boa literatura na Zona Sul? – brinca Moutinho, que participa da obra com um conto sobre a sua Urca.

O projeto do livro nasceu de uma indignação de Moutinho, que já tem dois livros publicados e (sem repercussão alguma). Inspirado pelas duas antologias (Geração 90 – organizadas por Nelson de Oliveira, que jogou luz sobre um número expressivo de novos escribas, ele resolveu fazer algo parecido, mas com cores cariocas:
– O trabalho de Nelson é fundamental, mas ele priorizou bem mais os autores de São Paulo.

O projeto começou a ganhar corpo depois de uma conversa entre Moutinho e Izhaki, que chegou a propor a criação de uma série com textos da nova geração literária do Rio com veiculação em algum site, possivelmente o Paralelos;.
– Mas acabamos optando mesmo pela publicação do livro. Ainda existe um preconceito grande em relação a blogs, vistos muitas vezes, erradamente, como diários íntimos sem valor. Muitos podem até ser assim, mas há um sem-número deles que são vitrines de ótimas prosas e poesias – explica Moutinho.

Só na semana passada os dois organizadores viram pela primeira vez todos os 17 textos do livro reunidos. E gostaram do que leram.
– O livro é bem eclético, mas tem organicidade e, o que é melhor, contos de excelente qualidade – garante Moutinho.

O espírito que domina ‘Prosas cariocas’ – que tem entre seus autores Adriana Lisboa, Bianca Ramoneda e João Paulo Cuenca – pode ser resumido pela frase de Marques Rebelo (tirada de uma entrevista dada por ele a Clarice Lispector nos anos 70) que servirá como epígrafe do livro: ‘Cada bairro tem uma personalidade própria: o Rio é uma cidade com muitas cidades dentro?.’”

José Figueiredo

Paralelos, um ano

“Antes, a literatura no Rio andava mergulhada no marasmo. Outros estados, como Rio Grande do Sul e sobretudo São Paulo, despontavam na vanguarda da onda de renovação literária, a mais importante, diz o escritor Sérgio Sant’Anna, que o Brasil vive desde os anos 70. Para mudar a cena a favor dos cariocas, um grupo de jovens da cidade — liderados por Augusto Sales e Jaime Gonçalves Filho — resolveu criar o site “Paralelos”, que comemora um ano de sucesso na Primavera dos Livros, a feira cult dos pequenos e médios editores que abre para o público na próxima sexta-feira, dia 18, no Jockey Club da Gávea. Agora, uma renovada brisa literária parece tomar conta do Rio, em grande parte inspirada no www.paralelos.org. site não é exclusivo de autores do Rio — ao contrário, está buscando aprofundar o perfil de vitrine para a nova literatura, com correspondentes em diferentes regiões —, mas sua base carioca contribui para articular escritores que moram na cidade e antes criavam sozinhos, como Mara Coradello, ou não tinham encontrado espaço para mostrar seu talento, como Mariel Reis.

— Os anos 90 foram a década perdida para a nova literatura no Rio, tanto que nas duas coletâneas “Geração 90”, organizadas por Nelson de Oliveira (a primeira com o subtítulo “Manuscritos de computador” e a segunda, “Os transgressores”) , havia poucos autores cariocas — diz Augusto Sales, que, antes de organizar o “Paralelos”, editava o site de variedade cultural “Falaê”, no qual já constatara, a partir de pesquisas e muita conversa, o clima de apatia na cena carioca. Hoje o horizonte já não é tão deserto, até porque, como diz o editor Jaime Gonçalves Filho, o pessoal encontrou coragem para “desentocar os textos”.

— O importante é a produção ganhar as ruas. Nessa movimentação, surgiram outras iniciativas, de gente também disposta a se articular. Não são necessariamente “crias” do “Paralelos”, mas as intenções são semelhantes, o vínculo é este — afirma Jaime.

Sem o espaço aberto nos últimos meses pelo “Paralelos”, por exemplo, teria sido mais difícil para os escritores Marcelo Moutinho e Flávio Izhaki organizar a coletânea “Prosa cariocas” (editora Casa da Palavra), que lançam semana que vem — quarta-feira na Livraria da Travessa, em Ipanema, e sábado na Primavera. Moutinho e Izhaki, que mantêm seus blogs individuais (assim como muitos dos que integram a comunidade “Paralelos”), participam de discussões no site e lá pinçaram muitos dos autores que escrevem sobre diferentes bairros do Rio, de Madureira à Gávea. Entre eles, o próprio Augusto Sales, Mara, Mariel, Vinícius Jatobá e Antonia Pellegrino, entre outros.

Nestes quase 12 meses — o “Paralelos” foi lançado na Primavera dos Livros de 2003, realizada em outubro — foram ao ar cerca de 470 textos, de 220 escritores, boa parte inédita em livro. Além disso, o site publica entrevistas e acompanha o ritmo das novidades editoriais. Eles prepararam um especial sobre literatura infantil, com textos inéditos, inspirados no 6 Salão do Livro para Crianças e Jovens, que começa quinta-feira no Museu de Arte Moderna (MAM).

— O “Paralelos” é uma referência, um laboratório on-line de experimentalismos. Ajuda muito a compreender o que está acontecendo na literatura jovem brasileira — diz o paulista Nelson Provazi, de 27 anos, que criou a editora Baleia, cujos dois livros já publicados são de autores que participam do site: Jorge Cardoso (brasileiro que mora na Suécia), autor de “Mal pela raiz”, e João Filho (de Bom Jesus da Lapa, sertão da Bahia), autor de “Encarniçado”.

Foi no “Paralelos” que Sérgio Sant’Anna, o vencedor do Jabuti deste ano na categoria contos por “O vôo da madrugada”, entrou em contato com o texto de João Filho.

— O cara é genial. Tem absoluto domínio da linguagem. Estou lendo, impressionado, o livro dele — elogia Sant’Anna, que volta e meia visita o “Paralelos” e outros sites como “EraOdito”, de Marcelino Freire, e “Zunái”. — Para os escritores da minha idade, é importante renovar. Tem muita gente que esnoba, mas esta é a mais importante renovação da literatura brasileira desde os anos 70.

Por conta do potencial de prospecção de novidades, o “Paralelos” participou da seleção de autores que participaram da oficina de novos talentos da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a Veredas da Literatura, ministrada pelo escritor Milton Hatoum. A idéia surgiu a partir de uma entrevista que os editores fizeram com o jornalista Flávio Pinheiro, que organizava a programação cultural da Flip, realizada em julho. Depois do evento, até a Rede Globo entrou em contato com o “Paralelos” buscando a indicação de escritores interessados em participar de uma oficina de roteiro.

O projeto, no entanto, não se restringe ao mundo virtual. Em novembro, vai ser lançada pela editora Agir uma revista-livro com contos de 17 autores que participam do “Paralelos”.

— Livro e internet coexistem. A internet alterou tudo, porque distribui as informações de maneira muito rápida. Eliminam-se muitas etapas. Acho incrível que não se dê mais atenção a isso, principalmente sendo editor. Quando você procura fatalmente acha coisas bacanas na internet — diz o editor Paulo Roberto Pires, que está trabalhando na renovação da Agir, que pertence à gigante Ediouro, para constituir um catálogo unindo autores estreantes e consagrados.

Foi lendo os textos do blog de Cecília Giannetti, que integra o conselho editorial do “Paralelos”, que Paulo Roberto achou que ela tinha potencial para escrever um bom livro, que também vai sair pela Agir. A escritora participa da coletânea “Prosas Cariocas” e está entre os 17 autores da revista-livro do “Paralelos”. Muitos dos 17, aliás, estão nas duas publicações”.

“No clima “abaixo a timidez” que domina o “Paralelos”, a escritora Mara Coradello criou o evento “Pipishow (sic) literário”, no qual diversos escritores, encerrados em cabines cobertas de cetim negro, lêem seus textos simultaneamente. Os leitores-ouvintes, conta ela, podem “escolher entre um escritor ou ficar zapeando entre todos, recortando pedaços de textos ouvidos entre uma cabine e outra”. Já foram realizadas duas edições e a próxima foi marcada para 16 de outubro, no sebo Baratos da Ribeiro, em Copacabana.

— O mais vívido neste primeiro ano da revista “Paralelos” é o sentido de que a literatura e a escrita podem ser mais do que atividade solitária — diz Mara, que também participa das duas coletâneas (“Prosas cariocas” e a da Agir) e é autora de “O colecionador de segundos”, livro de contos da coleção Rocinante (7Letras).
A escritora é uma dedicada integrante do conselho editorial do site, que, além de Cecília Giannetti, inclui Crib Tanaka, João Paulo Cuenca, Jorge Rocha, Paloma Vidal, Sônia Oliveira Pinto e os editores Augusto Sales e Jaime G. Filho. Ambos dedicam pelo menos duas horas diárias ao site, no intervalo de tempo de seus empregos (Sales trabalha na área econômica e Jaime é jornalista).

— Claro que antes o blog já fazia o papel de facilitador da comunicação segmentada e imediata, mas a revista “Paralelos” faz tudo ter uma cara mais organizada, com seu design de primeira a cargo de Mariana Newlands, com editores abertos e, antes de tudo, curiosos — diz Mara.

Trabalho não falta no “Paralelos”, já que é preciso ler tudo o que chega — nem todos os textos enviados vão ao ar — e manter-se em sintonia com as novidades. Algumas edições, diz Augusto Sales, tiveram muita repercussão, como a especial sobre a coleção Rocinante (mina de autores estreantes) e outra no qual se fez uma Blogteca, listando blogs que de alguma forma contribuem para o debate literário.

— Acho fundamental que a nova literatura faça algum tipo de barulho — afirma João Paulo Cuenca, que quando começou a colaborar com o “Paralelos”, no ano passado, já tinha publicado seu primeiro livro, “Corpo presente”, pela editora Planeta, mas mesmo assim quis participar. — Achei muito interessante a idéia da revista/site e, principalmente, a promoção de um espaço de convívio entre novos escritores de prosa do Rio.

Cuenca deve lançar seu segundo romance em 2005, desta vez pela Agir. A partir do “Paralelos”, o escritor Mariel Reis, que mora em Santa Teresa, onde costuma promover rodas de leituras de contos, está começando organizar o que chama de “projeto filhote” do site, o “Prosa de 4 cantos”, com escritores inéditos de quatro estados. Mariel, cujo texto é elogiadíssimo por seus colegas, além de participar do “Prosas cariocas”, foi selecionado para a coletânea que sairá pela Agir.

— O melhor a ser dito sobre o “Paralelos” é que ele fez com que as nossas vidas de fato se cruzassem — diz Antonia Pellegrino (igualmente nas duas coletâneas).

Como diz a escritora Simone Paterman, de 25 anos, com o “Paralelos” ela teve uma prova de que “a literatura, hoje, em um mundo de narrativas dilaceradas, pode atuar como uma vigorosa forma de resistência”.

— Graças ao “Paralelos” pude assumir então, com prazer, a responsabilidade de ser um dos artífices dessa mudança: a escrita passa a ser parte da minha ação no mundo, e não mais um mero exercício de criação — diz Simone, que viu sua vida se transformar no último ano.”

Rachel Bertol

Novas prosas de um Rio desconhecido

“Nos últimos anos o Rio de Janeiro voltou os olhos para seu passado com uma intensidade inédita, um interesse materializado em inúmeros livros de fotografias, guias arquitetônicos, em ações do poder público (como as Apacs e o Sítio Cultural de Ipanema) e na recuperação de textos de cronistas da cidade, como Nelson Rodrigues e, mais recentemente, Antônio Maria.

Pode ser que a crise do Rio no presente tenha relação com este impulso. Mas entre o Rio dos cartões postais e o das páginas de violência – as duas referências mais freqüentes nos discursos sobre a cidade atual – há muitos outros possíveis. É deles que o livro “Prosas Cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro” (que a editora Casa da Palavra lança semana que vem) pretende falar, revelando a um só tempo a cidade e novos escritores cariocas.

Alguns dos autores dos 17 contos da coletânea já são reconhecidos pela crítica. Outros são estreantes. Um dos idealizadores e autores do livro, Marcelo Moutinho, explica que fazer uma panorama da literatura feita por novos escritores no Rio foi a motivação do trabalho:

– Havia muitos movimentos para apresentar novos autores contemporâneos em São Paulo, mas quase não se falava da literatura do Rio. Este livro é uma reação, assim como a revista eletrônica Paralelos. Flávio (Izhaki) e eu pensamos em algo que mostrasse quem são os escritores da literatura contemporânea carioca. Para bem ou para mal.

Alguns nomes vieram naturalmente à mente, como os de João Paulo Cuenca, autor de Corpo Presente (Ed. Planeta, 2003), e Adriana Lisboa, dona de um Prêmio José Saramago (por Sinfonia em Branco, 2001). Outros foram encontrados após buscas em blogs de literatura ou entre conhecidos. Gente que já escrevia, mas ainda não tinha visibilidade, como os jornalistas Miguel Conde, de 23 anos, e Ana Beatriz Guerra, de 25, que só haviam publicado na internet até então.

Em Prosas Cariocas, os cenários são os bairros com os quais cada autor tem ou teve uma ligação íntima. O objetivo é revelar um pouco sobre a vida em 17 pedaços da cidade. Pavuna ou Urca. De Madureira ao Leblon. O princípio era de que a coletânea fosse tão eclética quanto o Rio.

– Demos a cara a tapa. Convidamos os autores para publicar no livro, e não para um teste. Não houve uma triagem de contos. Reunimos estilos, pessoas e lugares diversos num mesmo trabalho. O resultado foi um retrato do Rio – disse Moutinho, que escreveu sobre a Urca.

Mas quem pensa que Prosas Cariocas é uma ode à cidade se engana. O retrato feito pelos contos parte do olhar de cada autor sobre o bairro que escreve, o que inclui críticas. Através da ficção, o livro traça os contornos da cidade, sejam esses bonitos ou deselegantes. (…)”

Juliana Sartore

Livros à macheia

“Nos últimos anos o Rio de Janeiro voltou os olhos para seu passado com uma intensidade inédita, um interesse materializado em inúmeros livros de fotografias, guias arquitetônicos, em ações do poder público (como as Apacs e o Sítio Cultural de Ipanema) e na recuperação de textos de cronistas da cidade”É curiosa e rara a experiência de viver sem limites a ficção e a realidade, os livros e as pessoas, a narrativa e a vida. No último final de semana me vi diante de uma pequena platéia, ao lado de Ruy Castro e quatro jovens escritores (Rodrigo Lacerda, Marcelo Moutinho, Joca Reiners Terron e Pedro Sussekind), debatendo as relações do escritor com a cidade. O cenário, o Jockey Club carioca, tomado pela Primavera dos Livros, evento que une pequenos e médios editores e consegue dosar em medidas justas feira e festa. E tome discussão, e tome bairrismo, e tome evocação do passado da cidade, de sua singularidade e decadência.

Era o fim de uma semana pesada em noites de autógrafos e, ao defender meu ponto de vista nada original (de que, na ficção, a cidade é melhor como personagem do que paisagem) e evocar um fantasma recorrente (o de Marques Rebêlo), percebi que toda teoria, como acontece muitas vezes, é vã. Discutia-se ali em que medida o Rio tomava conta da ficção mas, pelo menos para mim, a ficção é que tinha se misturado inexoravelmente com o que chamamos de realidade depois de percorrer tantas e distintas narrativas que grudam-se à cidade.

(…) Mais evidente, e nem por isso óbvia, foi a chegada de “Prosas cariocas”, volume reunindo 17 jovens escritores que elegeram bairros para ambientar seus contos. O roteiro, coordenado por Flavio Izhaki e Marcelo Moutinho, relaciona cantos pouco cantados da cidade como Lins de Vasconcelos e Pavuna e, surpreendentemente, não inclui a musa recorrente, Ipanema. Na mistura de tantas vozes, há lugar para tudo, do Catete arruinado de Flávio Izhaki à delicada Laranjeiras de Adriana Lisboa. Ou ainda para um híbrido entre crônica e conto de Bianca Ramoneda, “Quando se Muda”, relato extraordinariamente sincero das passagens entre subúrbio e Zona Sul que, mais uma vez, confunde minha percepção de memória e das histórias.(…)”

Paulo Roberto Pires

Cariocas nem sempre são bacanas

Quem é o verdadeiro carioca? Em tempos de exaltação da pluralidade, está na hora de dar um fim nessa idéia de que a carioquice existe. Cada morador desta cidade – tenha nascido aqui ou não – se atribui, muito justamente, diga-se de passagem, o direito de definir o que é ser carioca. Todas as visões que partem do princípio que “carioca sou eu” são excludentes das múltiplas possibilidades do exercício da carioquice. Nessa exclusão do Outro se funda, por exemplo, a idéia de que o “verdadeiro” Rio de Janeiro é o que habita o grande qualidrilátero que tem como linhas de fronteira a rua Farme de Amoedo, de um lado, o canal do Leblon, do outro, as praia de Ipanema e Leblon, abaixo, e as franjas da floresta no Jardim Botânico e na Gávea. A Zona Sul como emblema do Rio de Janeiro é mais uma maneira de partir a cidade partida do jornalista Zuenir Ventura.

Em “Prosas cariocas – uma nova cartografia do Rio de Janeiro” (Casa da Palavra, R$ 27, 144 págs.), 17 autores se dividem para falar da cidade, sempre a partir da perspectiva de um certo bairro. A divisão geográfica é para lá de democrática, e inclui subúrbios tradicionais, como Lins de Vasconcelos e Madureira, bairros relativamente novos, como Jacarepaguá e Barra da Tijuca, bairros já decadentes, como Catete e Copacabana, e os típicos lugares de badalação, como Gávea e Leblon. Paradigma de uma cidade cosmopolita e dos “cariocas bacanas” de Adriana Calcanhoto, o Leblon que hoje figura nas páginas do noticiário policial toda semana aparece não apenas no texto que lhe é oficialmente dedicado (“A varredura”, de Juva Batella). O bairro é personagem de outros textos, nos quais faz contraponto com essa idéia de que o bairro possa vir a sintetizar – e portanto, também excluir – o espírito carioca.

Esse olhar crítico sobre o Leblon quem apresenta é a jornalista Bianca Ramoneda, na crônica “Quando se muda”. Moradora do bairro da Muda, que ela define como “um pequeno bairro na enorme Tijuca”, Bianca conta sua trajetória de migrante: sair da Zona Norte para a Sul, trocar o “provincianismo tijucano” pelo “cosmopolitismo do Leblon”, e se ver obrigada a achar natural, por exemplo, encontrar o Chico Buarque na fila do supermercado. Fato que, na Tijuca, renderia assunto para semanas de conversa com os vizinhos. Desta mudança de um ponto a outro, cuja distância é muito maior do que os 30 quilômetros que separam os dois bairros, Ramoneda diz: “Hoje, não acredito nem na pobreza romântica de quem vê de longe a zona norte, nem na plástica sorridente de quem vê de longe a zona sul. E me sinto estrangeira em ambos os pontos da cidade.”

Sentir-se estrangeiro é exatamente o oposto de sentir-se carioca, de experimentar essa suposta democracia das calçadas, a leveza do encontro casual, a frouxidão de laços e a rigidez de clubes invisíveis nos quais não se entra assim tão fácil, apesar do mito da hospitalidade local. É desta contradição entre o privilégio da Zona Sul sobre a Zona Norte que brota, também, o bom “Ilha debaixo da terra”, de Cecilia Giannetti. “Imagino a quantidade de corpos que migram para a Ilha depois de mortos, pela Linha Vermelha, pela avenida Brasil, vindo dos subúrbios vizinhos, vizinhos que atiram uns nos outros em guerras do tráfico que varam as noites nessas estradas. A Ilha é diferente da Zona Sul em quê?”, pergunta ela, reforçando as vozes que enxergam na glamurização da Zona Sul mais do que um desvio, uma violência de exclusão do “resto”. A cidade não é só partida em diferenças sociais e econômicas, dessas que se pode medir com estatísticas do IBGE. O Rio de Janeiro é um lugar culturalmente dividido entre “nós” e “os outros”, e a grande disputa está em quem terá a hegemonia para dizer “nós” e, assim, determinar quem são os indesejáveis outros.”

Carla Rodrigues

As ‘cidades’ da Zona Sul

“Cada bairro tem uma personalidade própria: o Rio é uma cidade com muitas cidades dentro.” A frase de Marques Rebêlo, epígrafe de “Prosas cariocas”, traduz bem o espírito do livro de contos: diferentes bairros da cidade, retratados pelo olhar de jovens escritores. Dos 17 textos, oito são situados na Zona Sul: Copacabana, Catete, Urca, Leblon, Laranjeiras, Gávea, Santa Teresa e Cosme Velho.

— As singularidades dos bairros aparecem nos contos, apesar de nem sempre os locais serem os personagens principais. A única condição era que o texto tivesse pelo menos uma cena na área escolhida. E, apesar de cada um ter seu estilo, há uma organicidade no livro, talvez por sermos de uma mesma geração — diz Marcelo Moutinho, que escreveu sobre a Urca.

As diferenças aparecem não apenas entre Pavuna e Copacabana, mas entre Copacabana e Gávea, Gávea e Leblon, Leblon e Cosme Velho.

— O Leblon é mais metido, quem mora lá não quer sair. A Gávea é mais misturada. E no Jardim Botânico ouço as pessoas tocando piano de tarde. Gosto dos prédios antigos de lá — conta Antonia Pellegrino, que escreveu sobre a Gávea.

Moutinho organizou o livro com Flávio Izhaki, cujo conto sobre o Catete inspirou a idéia de escrever sobre bairros do Rio. Bairros, sem o artigo definido, porque, em momento algum, foram estipulados que locais deveriam fazer parte de “Prosas cariocas”, lançado no mês passado.

— Fizemos uma seleção de pessoas, não de contos. Achávamos que a Tijuca, por exemplo, era importante, mas não impusemos nada a ninguém e o bairro não está no livro — conta Izhaki.

Bairros distintos, olhares distintos:

— Há uma pequena cidade dentro de Santa. Quando vim para cá, sentia-me insegura, pois, quando você se muda, o estranhamento superdimensiona tudo. Mudei de bairro consciente de que poderia ter um olhar diferente do Rio — diz Mara Coradello, que morava no Lido antes de se mudar para Santa Teresa, em março deste ano. No conto “Sagrado coração”, Mara fala de peculiaridades de Santa Teresa, como o caos criado quando alguém estaciona o carro perto do trilho do bonde.

— Ingenuamente, confiava no bonde como meio de transporte. Estava atrasada para o trabalho e de repente começou uma confusão — conta ela, enquanto procuramos um local para as fotos, depois de a dona de uma mercearia ter proibido fotografias dentro do local.

— O bairro é superestrela, ninguém se fascina com imprensa. Aqui, ser artista é normal. (…)  Se em “Sagrado coração” a referência a Santa Teresa é constante, em “Para ver as meninas”, a Urca é apenas uma idéia:

— Seria clichê falar da Urca como um lugar lindo. No conto, sua beleza não é desfrutável a não ser esteticamente. A Urca não consegue apaziguar o personagem — diz Moutinho. (…)”

Suzana Velasco

Flechada no Rio

“É Marques Rebelo, escritor tão carioca que até nasceu no Rio de Janeiro, quem dá o mote à organização deste conjunto de narrativas de jovens escritores, cada uma delas dando conta de um espaço da cidade: “Cada bairro tem uma personalidade própria: o Rio é uma cidade com muitas cidades dentro”.

Falando dos lugares e não-lugares do Rio, reúnem-se neste volume 17 contistas com idade média de 29 anos, o mais velho com 39 e o mais jovem com 23. Estes dados poderiam configurar certa referência geracional, o que não deixa de ser interessante, desde que o ultrapassado conceito “geração” não seja mais uma espécie de rótulo unificador. O corte temporal na seleção dos autores, dando voz, na maioria dos casos, a iniciantes, é instigante, mas não aparece como princípio organizador fundamental. O mais importante no volume foi a idéia de Marcelo Moutinho e Flávio Izhaki: propor aos jovens escritores a realização de uma “nova cartografia” da Cidade Maravilhosa, cidade “tão castigada e tão bela”, como dizem Gilberto Gil e Milton Nascimento em Sebastian, onde “Cada flecha nvenada/Flechada por pura inveja/ É um pedaço de bairro/É uma praça do Rio”. Fica então bem evidente que vale a pena não só conhecer a escritura de novos autores, mas também conferir que Rio é esse remapeado por olhos e pés com 30 anos de idade.

Inevitavelmente, porém, os próprios limites do conto tornam também evidentes determinadas semelhanças. O que de mais importante quase todos têm em comum é a influência da crônica, gênero carioca por excelência, prática literária limítrofe entre o ficcional e o não ficcional. Assim como a crônica, entre nós, foi incorporando personagens, modelando-se com relatos da memória até beirar a história curta, também o conto, ao se ocupar da cidade, assume o aspecto de flânerie tão comum à crônica, um jeito de folha levada pelo vento calçadas afora. Passando por espaços de ruas, bares ou prédios, o contista se faz neste conjunto, o mais das vezes, quase um cronista.

(…) Nesse cruzar da cidade criando uma nova “cartografia” é bastante curioso que, no mais das vezes, o bairro ou área a serem tratados não apareçam de fato ou sejam desconstruídos. Assim, a lírica Urca de Marcelo Moutinho nunca chega, na viagem de ônibus que conduz o narrador. O Baixo Gávea de Antônia Pelegrino não é o encontro de bares, boêmios e jovens tomando a indefectível Skol, é o espaço de uma memória de infância. O centro de Miguel Conde é lugar de moradia por onde se caminha à noite. A Barra da Tijuca, com Ana Beatriz Guerra, não traz a alegria dos bares nem o prazer dos motéis, mas a tragédia. A Pavuna, para Mariel Reis, é um lugar qualquer onde acontecem encontros inesperados e a morte ronda a vida. Por Jacarepaguá, se passa rumo à Barra ou à Gávea, como no “anticinema” de Henrique Rodrigues. A Muda, de uma classe média falida, é de onde se muda a jovem de Bianca Ramoneda, em direção a espaços mais nobre que podem ser resumidos com o reconhecimento de que “falta um feijãozinho no dente da Zona Sul. Na interessante circulação pelo Catete promovida por Flávio Izhaki, o bairro que abriga um palácio republicano aparece absolutamente degradado: “Catete, Copacabana dos excluídos”.

(…) Ao final da leitura, confirma-se a diversidade como marca desta geração que começa ser chamada, um pouco a sério um pouco de brincadeira, de geração 00, grupo de escritores que não esperam mais pela legitimação da crítica ou da academia para irem publicando seus textos seja com o uso da internet, espaço virtual onde se mostram, se criticam e se organizam em grupos e revistas, seja através de pequenas editoras, ou mesmo passando direto de suas folhas de rascunho ou blogs na web para grandes editoras.(…)”

Beatriz Resende

Prosas cariocas foi selecionado entre os livros indicados do mês, em outubro de 2004. A nota sublinhava que “a relação pessoal de cada autor com seu bairro oferece uma cartografia sensível da cidade, diferentemente da apresentada diariamente pelos jornais”. Ressaltava ainda que o leitor deve “prestar atenção no movimento encontrado no conjunto do livro, como se um indivíduo oculto passeasse pela cidade, examinando cada bairro e recriando a figura do flanêur”. Ao lado da nota, a revista publica um trecho do conto Para ver as meninas, de Marcelo Moutinho.

O Rio dos novos escritores

 “Poucas cidades do mundo inspiraram tantos artistas quanto o Rio de Janeiro. Na poesia de Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Morais, na música de Tom Jobim ou nas crônicas de Rubem Braga, a cidade sempre foi mais do que um pano de fundo. O livro “Prosas cariocas – uma nova cartografia do Rio”, lançado recentemente, apresenta uma coletânea de contos escritos pela mais nova geração de escritores cariocas. A cidade – mais uma vez – é a protagonista de quase todas as 16 histórias.

Como cada conto fala de um bairro, seus autores foram escolhidos pela relação com que tinham com determinada área da cidade. “Cada autor foi designado para escrever sobre o lugar onde mora, já morou ou com o qual tenha afinidade. Quem conhece bem o bairro sobre o qual escreve sabe encontrar seus mínimos defeitos e fraquezas”, conta o jonalista Marcelo Moutinho, organizador do livro, ao lado do também jornalista Flávio Izhaki. Os dois assinam contos sobre a Urca e o Catete, respectivamente.

A idéia não era somente mapear os diferentes bairros do Rio, mas também localizar a produção literária da cidade. Por isso, o organizador pensou nos jovens autores, alguns com pouco mais de 20 anos e estreantes. Neste “elenco”, a apresentadora Bianca Ramoneda, a festejada escritora Adriana Lisboa e a cronista do TRIBUNA BIS Antonia Pellegrino, que escreveu “Gávea 1983”. Bairros nem sempre lembrados na literatura tiveram sua vez em “Prosas cariocas”, como Jacarepaguá, Pavuna, Madureira e Lins de Vasconcelos. Até a Barra da Tijuca mereceu o seu conto, assinado por Ana Beatriz Guerra. “Cada bairro é um microcosmo que abriga segredos historietas, anseios, decepções. A idéia é contar um pouco sobre a vida que viceja naquele pedaço de cidade `maravilhosa’, seja ela maravilhosa ou não”, esclarece Moutinho. Boa parte dos contos explora uma faceta distante do clichê “Rio cidade partida”. A violência e a probreza da cidade são, por vezes, deixadas de lado, pois os autores optaram por uma visão mais pessoal dos bairros em seus contos, preferindo escrever sobre a memória íntima que guardavam desses lugares.  No próprio prefácio da obra, os organizadores explicam: “A Cidade Maravilhosa idílica dos cartões-postais não existe. Mas o Rio de Janeiro não é apenas aquele pintado em sangue pelos noticiários. Com fotos e notícias o real escapa. Mas com literatura e ficção, a cidade se desvenda para seus habitantes”.

Pedro Henrique Neves

Evoé, jovens à vista

“O aparecimento de uma nova geração de escritores deve ser sempre saudado como algo benéfico, ainda mais quando não obedecem a um programa ou regras. É o que se observa lendo Prosas cariocas – Uma nova cartografia do Rio de Janeiro. Marcelo Moutinho, Flávio Izhaki (organizadores) – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004.

Um dos grandes méritos da coletânea é fugir dos lugares comuns, como justificam os organizadores, ao invés da evocação de uma cidade rapidamente consumível em lugares turísticos, acompanhamos as cidades dentro da cidade, para abusar da epígrafe de Marques Rebêlo no próprio livro. São respectivamente autores e bairros retratados: Cecilia Giannetti (Ilha do Governador), Mariel Reis (Pavuna), Vinicius Martinelli Jatobá (Madureira), Marcelo Alves (Lins), Sidney Silveira (Maracanã), Bianca Ramoneda (Muda), Henrique Rodrigues (Jacarepaguá), Ana Beatriz Guerra (Barra), Antonia Pellegrino (Gávea), Juva Batella (Leblon), Augusto Sales (Copacabana), Marcelo Moutinho (Urca), Flávio Izhaki (Catete), Miguel Conde (Centro), Mara Coradello (Santa Teresa), Adriana Lisboa (Laranjeiras), e João Paulo Cuenca (Cosme Velho).

Há diversos pontos de contatos entre os textos. Bairros que se atropelam, imagens que se duplicam. É a Gávea servindo de modelo para os playboys da Ilha do Governador, ou o narrador do conto sobre o Catete que vê o bairro como Copacabana, porém mais miserável. O Leblon surgindo do conto da Muda, e de novo a Ilha e a temível Linha Vermelha, a Lagoa, o Arpoador e Ipanema.

Nas narrativas vemos o ritmo da vida contemporânea, a velocidade implícita como fragmentos de nossas urgências quotidianas. Exemplar é a sucessão entre os trechos de Para ver as meninas (Marcelo Moutinho) na qual se revelam os aspectos da personalidade do narrador em busca de uma pausa em meio ao ônibus, frustrações e cólera; pausa que se anuncia da canção de Paulinho da Viola como tema e – quase mais uma personagem – surge com gosto de infância.

Enquanto o narrador de Para a moradora do 707 vai deixando de lado a análise das ruas do Catete, para em meio a espiral de angústia querer a serenidade prometida no sétimo andar. A técnica aparece como questão importante em alguns contos. Aos pedaços, ou como fotos é que Mariel Reis apresenta Pavuna em cinco movimentos: do puro divertimento até o trágico, num mundo arruinado de sonhos. Aliás, a preocupação com a experimentação não é exclusividade destes contos. A prosa elegante de Sidney Silveira alterna colchetes para os diálogos em A escolha de Elias Antero, em torno do personagem-título, um professor aposentado, culto e irônico, e de maneira similar Mara Coradello prefere o uso de chaves. Retratando um artista plástico que pinta trípticos também nas relações amorosas. Enquanto Miguel Conde nos mostra as notas de seu personagem – propositalmente sem nome – no Centro.

No conto Ilha debaixo da terra, Cecilia Giannetti nos mostra o aprendizado da personagem central, e na dupla perda que se delineia aos poucos, tendo como pano de fundo o mar que fede e a memória da personagem. Neste ponto, seu texto se aproxima do conto 1983 de Antonia Pellegrino no qual a Gávea é palco de imagens recorrentes de toda uma geração que esteve diante da V. É a memória quem guia. No conto Sorria, você está na Barra, de Ana Beatriz Guerra, vemos o narrador inquirindo pela memória da amada, “você lembra”, com a esperança de algo duradouro em meio à solidão. A mesma solidão que conduz Lúcia pelas ruas quentes de Madureira, pela escrita de Vinicius Martinelli Jatobá, ou o pensamento do personagem idoso de Encontro, por Adriana Lisboa. Um senhor que avalia sua vida… até que tudo se acelera, uma linha é ultrapassada.

No conto Dia de jogo na rua, o futebol é quem delimita a fronteira entre morro e asfalto, que conhecemos. Aliás muitos morros são entrevistos: A Muda como um vale entre as favelas do Borel, Formiga e Casa-Branca, o próprio Lins e os meninos da Cachoeirinha, e o contraponto entre a Gávea e a Rocinha, a Barra e a Cidade de Deus ou a Taquara e a favela do Jordão, apontados por Henrique Rodrigues.

A ausência de um conto ambientado em uma das muitas comunidades carentes do Rio poderia ser apontada como um defeito, mas que em compensação faz a coletânea ter o mérito de evitar uma certa artificialidade da escrita, ou de personagens mal caracterizados. Conhecer a cidade é entender seus limites bem circunscritos, como no conto A varredora de Juva Batella e a “pequena ilha” do Leblon ou muitas vezes limites interiorizados, como se observa no belo conto Quando se Muda, de Bianca Ramoneda, e sua personagem que vai superando imagens estereotipadas de zona norte e zona sul.

No conto Alcatrão 10mg Nicotina 0,8mg Monóxido de carbono 10 mg, de Augusto Sales, vemos Arlindo disposto a mudar de vida, a largar o vício – pedindo ajuda até de divindades e santos – mas que na hora h… pensa e retrocede. Um conto direto, com enredo simples e que por isso funciona muito bem. A coletânea termina com o conto de João Paulo Cuenca, denominado Último conto, que trata da história de sr. Carvalho de Souza que se refugia na segurança de sua “erudição incompleta” (é ler pra entender o por quê) de ficcionista premiadíssimo.

No todo, os contos são bons. É claro que se pode apontar críticas aqui ou ali: um trecho que não desperta tanta atenção num conto ou às vezes um preciosismo de expressão que atrapalha, mas tudo bem; é o início. Escrever é trabalhoso, é carpintaria, como bem lembra Autran Dourado no seu Breve manual de estilo e romance (p.20): “…escritor é aquele sujeito que escreve com dificuldade; quem escreve com facilidade é orador. A ambição da palavra escrita é permanecer.”

Quem permanecerá ou o que virá depois… Não sabemos; dos contos emergem memórias, cenas e personagens que compõem um mosaico da literatura destes jovens e seus olhares sobre a cidade que sabe ser um lugar escuro ou apenas um sorriso. Microcosmos desenhados: Eis o Rio de Janeiro. Boa leitura.”

Antonio Dutra

Prosas (e promessas) cariocas

“Os leitores que abriram o suplemento literário d´O Globo do dia 11/9 deram-se conta de que alguma coisa estava acontecendo. O jornal dedicava, naquele sábado, 4 páginas ao lançamento de um livro de autores novos. Quatro páginas dedicadas a autores jovens, desconhecidos e VIVOS – coisa impossível num período (enorme!) em que aquelas páginas privilegiaram autores estrangeiros, de preferência mortos. Seria uma indicação de que o jornal está começando a olhar em volta, a observar que a literatura está no seu cultivo, no movimento que faz, e quase nunca nas listas dos mais vendidos? Uma esperança.

De esperança também é feito o livro Prosas Cariocas, cuidadosamente editado pela Casa da Palavra, com prefácio de Ruy Castro, em que estão reunidos 17 autores cujos textos têm como pano de fundo os bairros do Rio de Janeiro. Alguns deles já foram editados, outros estão iniciando, todos cientes de que literatura é coisa séria e que é preciso, nesses tempos de naufrágios, juntar-se a quem sabe remar.

As histórias reunidas são, como indica o título, prosas. Há contos, mas também crônicas e ainda reminiscências – escritos, enfim. Não que seja importante estabelecer o gênero, embora fosse natural no caso, uma vez que há uma tendência para o tradicional. Não há intenção de revolucionar a linguagem. Não há ousadias, em matéria de experimentalismos. Todo o mundo é sério. As diferenças ficam, portanto, por conta da imaginação e do talento na hora de contar.

De cara, você abre o livro e observa que os autores não estão em ordem alfabética. Por que? Não se sabe. Fica aquela perguntinha: qual foi o critério? Mas deixa-se pra lá e vai-se além. É mais importante ler o que se passa debaixo da terra, nos confins da Ilha, em que Cecília Gianetti fala da tristeza mais triste – o aborto – e ainda hoje tão presente na vida de uma mulher; reconhecer o povo na prosa de Mariel Reis, que através do diálogo traz inteira a população da Pavuna, com um toque de surrealismo, já que a vida no subúrbio está cheia dele; sobrepor-se ao calor de Madureira, recolhido por Vinicius Martinelli Jatobá, que aposta na chuva como prenúncio de felicidade duradoura.

Cito esses nomes porque é nessa ordem que aparecem no livro, do qual fazem parte também Adriana Lisboa, Ana Beatriz Guerra, Antonia Pellegrino, Augusto Sales, Bianca Ramoneda, Flávio Izhaki, Henrique Rodrigues, João Paulo Cuenca, Mara Coradello, Marcelo Alves, Marcelo Moutinho, Miguel Conde e Sidney Silveira. Não vou além, no entanto, para dizer do que gostei mais ou menos. Outro leitor fará, certamente, a sua escolha. Da diversidade se faz a arte. Mas não abro mão de destacar Juva Batella, no belo A Varredora, onde o Leblon é visto como um território de trabalho, feito por seres invisíveis, no caso o gari, que antes fora garçom, e por cuja memória faz-se presente o Leblon desse e de outros tempos. Uma prosa impecável.

Importa saber de que faixa etária são esses prosadores cariocas? Não. Importa saber que ao andarem pelas ruas do Rio de Janeiro refletem sobre suas vidas e as dos outros. Sentem, pensam e escrevem, na contramão da cultura de massa. Sabem que a caminhada é longa e muitas vezes não se concretiza. Podemos rever antologias de todas as décadas e verificar que poucos seguiram pelo caminho da literatura. O que importa mesmo é que estão ali. Trabalham, comunicam-se, articulam-se no sentido de abrir espaço para suas vozes, abafadas que são por músicas nefastas e interesses editoriais que se preocupam antes de tudo com coisas tipo: É vendável? Não é vendável? O texto é comercializável? Dá pra mudar? Escreve alguma coisa sobre sexo. Bota umas coisas de lesbianismo.

É possível que alguns desses jovens prosadores deixem de escrever no futuro, enquanto outros prosseguirão, uma vez que já se destacam no ramo. Do futuro ninguém é dono. Há em todos uma certa tristeza com a decadência da cidade. Todos viveram (e sofreram) um bom pedaço de suas vidas. Também parece que amadureceram depressa demais. (Ou a cidade foi se deteriorando rápido demais?) Mas estão firmes, sobreviventes, resistentes, e mais ainda, apegados à literatura como salvação. Há esperança, portanto.

E Ruy Castro? Fez o dever de casa. Disseram-lhe do que se tratava. Escreveu como um profissional. Leu os textos? É possível que não. Ou então foi acometido do velho medo de dizer hoje que aquele é o escritor de amanhã. Acontece com muitos.

Ruy Castro não está andando pelas ruas do Rio de Janeiro. E se está, certamente não está olhando para os lados.”

Helena Ortiz

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