O Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP homenageia Aldo
Bonadei, no ano do centenário de seu nascimento, com uma
mostra Retrospectiva de sua obra, oferecendo ao público
rara oportunidade de rever a trajetória de um importante
artista brasileiro.
A vida de Aldo Bonadei foi uma longa dedicação às
artes plásticas. Sua iniciação em pintura é precoce:
dá-se aos 9 anos, prolongando-se, sem interrupção,
até o final de 1973, quando a saúde o obriga a uma
hospitalização e, logo a seguir, no início de
1974, vem a falecer.
A imagem que deixa, no ambiente artístico, é de uma
personalidade inquieta, muito sensível e, ao mesmo tempo,
extremamente franca, tempestuosa, irreverente. Na memória
dos amigos, ao lado dessa inquietude, sensibilidade e irreverência,
permanecia a lembrança da figura carinhosa, comunicativa e
cheia de amizade verdadeira.
Unida a essa personalidade curiosa, encontra-se uma obra que
sempre foi acompanhada com grande interesse pela crítica. O percurso
de Aldo Bonadei se insere num momento significativo da história
da arte moderna no Brasil. Ele integrou o Grupo Santa Helena nos
decênios 30 e 40 e realizou pintura de ambiência paulista,
urbana e suburbana. Nos anos 1940, foi um pioneiro na pesquisa da
abstração, discutindo, com seu trabalho plástico,
os principais problemas formais decorrentes dessa vertente artística,
muito embora não aderisse frontalmente a ela. Mas as questões
que embasam a compreensão do sentido do abstracionismo – como
a pesquisa da cor, a aproximação com a música,
as indagações sobre a percepção formal,
a liberação do lirismo e o gesto – estão,
todas elas, presentes em suas preocupações e são
postas em evidência quando procura um novo modo de representação,
investigando o espaço pictórico.
O debate “figuração x abstração”,
que domina o ambiente artístico no decênio 50, provocando
polêmicas e discussões, aparece nas telas de Bonadei
com feições próprias e pessoais. É preciso
ressaltar que, mesmo perfeitamente inserida no momento histórico,
a obra do pintor apresenta sempre características peculiares,
em face das novas correntes, ora assimilando-as, ora acrescentando-lhes
inovações. Percursos estéticos – Pode-se dizer que,
na história da arte brasileira, poucos artistas
tiveram tão grande envolvimento com a pesquisa
plástica como Bonadei. Foram pesquisas de materiais,
de meios de expressão artística e das
principais tendências que marcaram o projeto estético
da época em que viveu, reflexões sobre
o seu próprio trabalho. A busca de inovação é sempre
uma constante.
Nos anos 1920, em seu período de formação,
Aldo Bonadei não se contenta com as aulas que
recebe de Pedro Alexandrino. Enquanto o mestre recomenda
se concentrar na prática do desenho, realiza, às
escondidas, pinturas em suportes improvisados, utilizando
tampas das caixas de charuto do pai.
Depois de viajar para a Itália e estudar pintura
na Academia de Belas-Artes de Florença (1929-1930),
na segunda metade do decênio 1930 e início
dos anos de 1940, integra o Grupo Santa Helena, com
os artistas Rebolo Gonsales, Clóvis Graciano,
Mário Zanini, Manoel Martins, Alfredo Rullo Rizzotti,
Humberto Rosa e Alfredo Volpi. Adere, então,
ao ideal de “liberdade de pesquisa”, praticado
pelo grupo, investigando a composição
plástica a partir de Cézanne, o modulado
das formas a partir da cor, a distribuição
das cores e linhas para criar volumes e profundidade.
Sua pintura, como a dos outros artistas do grupo, apresenta
tons baixos e se faz ora ao “ar livre”,
nas zonas suburbanas, ora em ateliê. Mas, como
um inquieto pesquisador, sente-se atraído pelo
efeito de textura que costuras à máquina
podem criar sobre o tecido da tela. Ele acompanha o
trabalho desenvolvido pela mãe e pelas irmãs,
que mantinham uma oficina de costura onde se faziam
trabalhos de armarinho, usando a máquina de costura
e fios diferenciados para realizar suas experiências.
No decênio de 1940, Bonadei desenvolve suas principais
indagações estéticas, definindo
as pesquisas de linguagem que imprimirão as orientações
mais significativas na sua produção da
maturidade.
De um lado, o artista está integrado ao contexto
dos acontecimentos artísticos, na medida em que
se une à luta da nova geração de
artistas pela afirmação da arte moderna
nas artes plásticas do País. Ele pode
ser visto como um artista do Grupo Santa Helena e da
chamada “pintura paulista”. Produz paisagens
suburbanas e urbanas, revelando uma São Paulo
que se transforma e pinta naturezas-mortas, fazendo
dessas temáticas um campo de reflexão
sobre a prática da pintura.
Trabalha sempre os problemas de construção
do espaço plástico, pesquisando a cor
e o valor da pincelada. Numa outra vertente, Bonadei
se revela singular, pesquisando a abstração.
A expressão simbólica da cor, a pesquisa
dos materiais, inclusive a qualidade dos tecidos, e
a aplicação de bordados sobre a tela,
para gerar resultados de textura na composição,
marcam suas preocupações plásticas.
Bonadei não substituirá, entretanto, uma
linguagem pela outra. A pesquisa contínua da
figuração e da abstração
terá lugar na produção dos decênios
seguintes, até sua morte, em janeiro de 1974.
Música – Deve-se observar que as primeiras
pesquisas abstratas, das Impressões Musicais,
são paralelas à frutificação,
no meio artístico, da figuração
de cunho social, sendo Portinari e Segall os exemplos
mais destacados pela crítica da época. É nessa
fase das Impressões Musicais, localizada entre
1940 e 1944 e limitada a um pequeno número de
obras, que se situam as raízes da abstração
de Bonadei. Nesses seus estudos, o artista procura transferir
para a tela, através do gesto, as sensações
que a música lhe proporciona. Ouvindo música,
Bonadei faz registros pictóricos sobre a tela
ou produz desenhos. Dos movimentos lineares resultam
formas concêntricas, ziguezagueantes, sucessão
de traços ou pontos, sempre o resultado de uma
pulsão que guia a mão do artista. Ele
mesmo diz: “Em 1940, fiz uma série de quadros
abstratos, baseados em impressões musicais, o
que era novidade na época. A descoberta do espaço
musical marcou profundamente minha pintura. A música
me mostrou coisas que a realidade não mostrava.
Revelou-me um espaço que eu não conhecia
oticamente e me ajudou muito na pintura. (...) Isso
me marcou para sempre” (depoimento em 8 de maio
de 1968 ao Jornal do Bairro).
Essa experiência musical está diretamente
ligada ao contato próximo do artista com o médico
e colecionador Adolpho Jagle e com o crítico
e psiquiatra Osório César, o primeiro
promovendo a criação do Grupo de Cultura
Musical, e o segundo organizando reuniões de
artistas em que se desenha ouvindo música, desdobrando-se
depois esses registros em pintura.
Depois das Impressões Musicais, a linha e o desenho
já não podem permanecer atrelados à expressão
do dado concreto, mas se tornam essência em si
mesmos. O espaço, enquanto portador dessa notação,
apresenta vibração, caminhando o artista
para além dos recursos de construção
plástica dados pela perspectiva tradicional.
Efeitos sobre a paleta também se verificam: pouco
colorido, cinzas ou suas derivações para
o rosa, o verde ou o azul formam o fundo onde se fixa
a notação gráfica.
De certa forma, Bonadei se ressente da pressão
da crítica de arte e, embora tendo absorvido
os princípios-chave da estética abstrata,
dá novos rumos à pesquisa figurativa.
Um ponto de tensão se determina, porém,
definitivamente em sua obra.
Inicia uma nova pesquisa do espaço plástico,
apoiado na linguagem cubista, por volta de 1946-1947. É pela
via do cubismo que o artista revê seu entendimento
da figuração. Faz leituras teóricas
sobre o movimento e nascem daí as primeiras obras
marcadas por essa reflexão. Bonadei parece captar
intuitivamente o que o historiador John Golding oberva
como característica fundamental desse movimento
estético: “O cubismo desenvolve uma linha
de equilíbrio entre a representação
e a abstração”.
Abstracionismo – No decênio de 1950, já com
a presença dos museus e das bienais em São
Paulo e a conseqüente afirmação do
abstracionismo em nosso meio, o artista dará curso à sua
pesquisa abstracionista. Porém, em nenhum momento
ocorre o abandono da figuração, mas sim
a colocação dessa pesquisa numa relação
dialética e constante com a questão abstracionista.
Um novo enfoque é dado aos elementos plásticos,
a questões da linha, cor e composição.
Na produção abstrata dessa época
encontramos uma liberdade maior do pintor face à tela:
num ímpeto evocativo de sentimentos, ele se surpreende
com os resultados que obtém e os anota em seu
diário. Da gestualidade do traço, chega
a composições imprevistas. Nascem trabalhos
mais geometrizados ou mais gestuais e parece haver,
segundo seus apontamentos, certa gestualidade mesmo
onde a linha surge com um traçado quase rígido,
ou mais construtivo, na medida em que ele executa o
desenho num gesto contínuo, sem interrupções,
como num ato de expansão e arrojo. São
muitos os exemplos de trabalhos que exemplificam esse
procedimento. É legível a ordenação
das superfícies e a elaboração
das formas a partir do gesto. Notamos, nessas experiências
de Bonadei, aquilo que Kandinsky chamou de “necessidade
interna”. É essa necessidade que lhe dita
o processamento não premeditado da pintura, as
imagens que corporificam seu sentimento, sua experiência
criativa. Encontramos nessas telas abstratas uma incidentalidade
gerada a partir da sensação que o impele
a um determinado “fazer” e o leva ao “abandono à emoção”,
aos impulsos subjetivos.
É preciso observar, porém, que, se para
Bonadei o gesto é importante, ele não chega à impetuosa
e turbulenta realização da pintura gestual
americana. Não se pode falar, em sua obra, de algumas
características presentes nessa pintura, como a “expansividade
sem limites do campo colorido”, “telas de
grandes dimensões” e o “automatismo”,
entendido este como o trabalho produzido sem qualquer
reflexão prévia.
A pintura de Bonadei revela, com freqüência,
esboços preparatórios ou desenho na própria
tela em que vai pintar, ou ele ainda se apóia
num arranjo de objetos sobre uma mesa (objetos excêntricos
que o atraem pela forma, como raízes, pedaços
de madeira, máscaras, ex-votos, refugos de chumbo
usados em experimentos de física; objetos que
representam um “motivo”, como dizia). Em
raras ocasiões, abandona o cavalete para a execução
das telas, poucas vezes rejeita o pincel e, quase sempre,
na sua pintura abstrata, se encontra um manejo da composição
segundo regras tradicionais. Assimilação – É um traço
característico da personalidade de Bonadei não
rejeitar conhecimentos anteriores, agindo por um processo
de acumulação e assimilação,
buscando explorar as aberturas trazidas através
de cada uma de suas experiências, conduzindo-as à reciclagem
e a uma tentativa de coadunação com o
já realizado. Dá-se como que um processo
de feedback, em que o artista recupera a concepção
de realidade à luz da essencialidade descoberta
na procura abstrata.
Quanto à cor, torna-se agora mais intensa, havendo
exploração de tons vibrantes e de tons
puros. A cor é funcional, colaborando para a
obtenção de equilíbrio do quadro;
surge como um dado plástico complementar, reforçando
o que a linha determina. Apenas em raras ocasiões
poderíamos falar em “cromatismo autônomo”,
como ocorre na pintura informal, quando a cor é projetada
de modo espontâneo e se revela o elemento fundamental
na linguagem plástica da composição.
Por volta de 1967/1968, as indagações
abstratas de Aldo Bonadei acabam deixando uma marca
definitiva na produção que daí para
frente desenvolve: surgem, nessa época, as “composições
híbridas”, em que objetos ou figuras se
imbricam na construção do plano circundante.
O pintor parte do real, de um motivo qualquer (natureza-morta – incluindo
a flor, casario, figura humana) – para iniciar
a composição, mas sua estruturação
abandona esse primeiro apoio, torna-se mental e o espaço
se organiza espontaneamente, através de planos
retalhados, coloridos como um caleidoscópio,
delimitados por contornos escuros e espessos, em obediência
tão-somente a uma lógica perceptiva. É esse,
afinal, o ponto de equilíbrio tão intensamente
procurado pelo artista, ao longo de seu percurso plástico.
E aí se expressa o legado da experiência
abstrata na última etapa de sua obra.
Nesse “momento síntese”, após
intensa e prolongada pesquisa, a obra do artista articula
a percepção formal e os mistérios
da emoção. Na dinâmica relação
entre “razão e lirismo”, “figuração
e abstração”, configura-se a especificidade
bonadeiana no contato com as principais tendências
do projeto estético que marcou a primeira metade
do século 20.
Lisbeth Rebollo Gonçalves é diretora
do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, professora
da Escola de Comunicações e Artes (ECA),
também da USP, e vice-presidente da Associação
Internacional de Críticos de Arte.
|