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créditos: Francisco Emolo

O Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP homenageia Aldo Bonadei, no ano do centenário de seu nascimento, com uma mostra Retrospectiva de sua obra, oferecendo ao público rara oportunidade de rever a trajetória de um importante artista brasileiro.

A vida de Aldo Bonadei foi uma longa dedicação às artes plásticas. Sua iniciação em pintura é precoce: dá-se aos 9 anos, prolongando-se, sem interrupção, até o final de 1973, quando a saúde o obriga a uma hospitalização e, logo a seguir, no início de 1974, vem a falecer.

A imagem que deixa, no ambiente artístico, é de uma personalidade inquieta, muito sensível e, ao mesmo tempo, extremamente franca, tempestuosa, irreverente. Na memória dos amigos, ao lado dessa inquietude, sensibilidade e irreverência, permanecia a lembrança da figura carinhosa, comunicativa e cheia de amizade verdadeira.

Unida a essa personalidade curiosa, encontra-se uma obra que sempre foi acompanhada com grande interesse pela crítica. O percurso de Aldo Bonadei se insere num momento significativo da história da arte moderna no Brasil. Ele integrou o Grupo Santa Helena nos decênios 30 e 40 e realizou pintura de ambiência paulista, urbana e suburbana. Nos anos 1940, foi um pioneiro na pesquisa da abstração, discutindo, com seu trabalho plástico, os principais problemas formais decorrentes dessa vertente artística, muito embora não aderisse frontalmente a ela. Mas as questões que embasam a compreensão do sentido do abstracionismo – como a pesquisa da cor, a aproximação com a música, as indagações sobre a percepção formal, a liberação do lirismo e o gesto – estão, todas elas, presentes em suas preocupações e são postas em evidência quando procura um novo modo de representação, investigando o espaço pictórico.

O debate “figuração x abstração”, que domina o ambiente artístico no decênio 50, provocando polêmicas e discussões, aparece nas telas de Bonadei com feições próprias e pessoais. É preciso ressaltar que, mesmo perfeitamente inserida no momento histórico, a obra do pintor apresenta sempre características peculiares, em face das novas correntes, ora assimilando-as, ora acrescentando-lhes inovações.

Percursos estéticos – Pode-se dizer que, na história da arte brasileira, poucos artistas tiveram tão grande envolvimento com a pesquisa plástica como Bonadei. Foram pesquisas de materiais, de meios de expressão artística e das principais tendências que marcaram o projeto estético da época em que viveu, reflexões sobre o seu próprio trabalho. A busca de inovação é sempre uma constante.

Nos anos 1920, em seu período de formação, Aldo Bonadei não se contenta com as aulas que recebe de Pedro Alexandrino. Enquanto o mestre recomenda se concentrar na prática do desenho, realiza, às escondidas, pinturas em suportes improvisados, utilizando tampas das caixas de charuto do pai.

Depois de viajar para a Itália e estudar pintura na Academia de Belas-Artes de Florença (1929-1930), na segunda metade do decênio 1930 e início dos anos de 1940, integra o Grupo Santa Helena, com os artistas Rebolo Gonsales, Clóvis Graciano, Mário Zanini, Manoel Martins, Alfredo Rullo Rizzotti, Humberto Rosa e Alfredo Volpi. Adere, então, ao ideal de “liberdade de pesquisa”, praticado pelo grupo, investigando a composição plástica a partir de Cézanne, o modulado das formas a partir da cor, a distribuição das cores e linhas para criar volumes e profundidade. Sua pintura, como a dos outros artistas do grupo, apresenta tons baixos e se faz ora ao “ar livre”, nas zonas suburbanas, ora em ateliê. Mas, como um inquieto pesquisador, sente-se atraído pelo efeito de textura que costuras à máquina podem criar sobre o tecido da tela. Ele acompanha o trabalho desenvolvido pela mãe e pelas irmãs, que mantinham uma oficina de costura onde se faziam trabalhos de armarinho, usando a máquina de costura e fios diferenciados para realizar suas experiências.

No decênio de 1940, Bonadei desenvolve suas principais indagações estéticas, definindo as pesquisas de linguagem que imprimirão as orientações mais significativas na sua produção da maturidade.

De um lado, o artista está integrado ao contexto dos acontecimentos artísticos, na medida em que se une à luta da nova geração de artistas pela afirmação da arte moderna nas artes plásticas do País. Ele pode ser visto como um artista do Grupo Santa Helena e da chamada “pintura paulista”. Produz paisagens suburbanas e urbanas, revelando uma São Paulo que se transforma e pinta naturezas-mortas, fazendo dessas temáticas um campo de reflexão sobre a prática da pintura.

Trabalha sempre os problemas de construção do espaço plástico, pesquisando a cor e o valor da pincelada. Numa outra vertente, Bonadei se revela singular, pesquisando a abstração. A expressão simbólica da cor, a pesquisa dos materiais, inclusive a qualidade dos tecidos, e a aplicação de bordados sobre a tela, para gerar resultados de textura na composição, marcam suas preocupações plásticas.

Bonadei não substituirá, entretanto, uma linguagem pela outra. A pesquisa contínua da figuração e da abstração terá lugar na produção dos decênios seguintes, até sua morte, em janeiro de 1974.

créditos: Francisco Emolo

Música – Deve-se observar que as primeiras pesquisas abstratas, das Impressões Musicais, são paralelas à frutificação, no meio artístico, da figuração de cunho social, sendo Portinari e Segall os exemplos mais destacados pela crítica da época. É nessa fase das Impressões Musicais, localizada entre 1940 e 1944 e limitada a um pequeno número de obras, que se situam as raízes da abstração de Bonadei. Nesses seus estudos, o artista procura transferir para a tela, através do gesto, as sensações que a música lhe proporciona. Ouvindo música, Bonadei faz registros pictóricos sobre a tela ou produz desenhos. Dos movimentos lineares resultam formas concêntricas, ziguezagueantes, sucessão de traços ou pontos, sempre o resultado de uma pulsão que guia a mão do artista. Ele mesmo diz: “Em 1940, fiz uma série de quadros abstratos, baseados em impressões musicais, o que era novidade na época. A descoberta do espaço musical marcou profundamente minha pintura. A música me mostrou coisas que a realidade não mostrava. Revelou-me um espaço que eu não conhecia oticamente e me ajudou muito na pintura. (...) Isso me marcou para sempre” (depoimento em 8 de maio de 1968 ao Jornal do Bairro).

Essa experiência musical está diretamente ligada ao contato próximo do artista com o médico e colecionador Adolpho Jagle e com o crítico e psiquiatra Osório César, o primeiro promovendo a criação do Grupo de Cultura Musical, e o segundo organizando reuniões de artistas em que se desenha ouvindo música, desdobrando-se depois esses registros em pintura.

Depois das Impressões Musicais, a linha e o desenho já não podem permanecer atrelados à expressão do dado concreto, mas se tornam essência em si mesmos. O espaço, enquanto portador dessa notação, apresenta vibração, caminhando o artista para além dos recursos de construção plástica dados pela perspectiva tradicional. Efeitos sobre a paleta também se verificam: pouco colorido, cinzas ou suas derivações para o rosa, o verde ou o azul formam o fundo onde se fixa a notação gráfica.

De certa forma, Bonadei se ressente da pressão da crítica de arte e, embora tendo absorvido os princípios-chave da estética abstrata, dá novos rumos à pesquisa figurativa. Um ponto de tensão se determina, porém, definitivamente em sua obra.

Inicia uma nova pesquisa do espaço plástico, apoiado na linguagem cubista, por volta de 1946-1947. É pela via do cubismo que o artista revê seu entendimento da figuração. Faz leituras teóricas sobre o movimento e nascem daí as primeiras obras marcadas por essa reflexão. Bonadei parece captar intuitivamente o que o historiador John Golding oberva como característica fundamental desse movimento estético: “O cubismo desenvolve uma linha de equilíbrio entre a representação e a abstração”.

créditos: Francisco Emolo

Abstracionismo – No decênio de 1950, já com a presença dos museus e das bienais em São Paulo e a conseqüente afirmação do abstracionismo em nosso meio, o artista dará curso à sua pesquisa abstracionista. Porém, em nenhum momento ocorre o abandono da figuração, mas sim a colocação dessa pesquisa numa relação dialética e constante com a questão abstracionista.

Um novo enfoque é dado aos elementos plásticos, a questões da linha, cor e composição. Na produção abstrata dessa época encontramos uma liberdade maior do pintor face à tela: num ímpeto evocativo de sentimentos, ele se surpreende com os resultados que obtém e os anota em seu diário. Da gestualidade do traço, chega a composições imprevistas. Nascem trabalhos mais geometrizados ou mais gestuais e parece haver, segundo seus apontamentos, certa gestualidade mesmo onde a linha surge com um traçado quase rígido, ou mais construtivo, na medida em que ele executa o desenho num gesto contínuo, sem interrupções, como num ato de expansão e arrojo. São muitos os exemplos de trabalhos que exemplificam esse procedimento. É legível a ordenação das superfícies e a elaboração das formas a partir do gesto. Notamos, nessas experiências de Bonadei, aquilo que Kandinsky chamou de “necessidade interna”. É essa necessidade que lhe dita o processamento não premeditado da pintura, as imagens que corporificam seu sentimento, sua experiência criativa. Encontramos nessas telas abstratas uma incidentalidade gerada a partir da sensação que o impele a um determinado “fazer” e o leva ao “abandono à emoção”, aos impulsos subjetivos.

É preciso observar, porém, que, se para Bonadei o gesto é importante, ele não chega à impetuosa e turbulenta realização da pintura gestual americana. Não se pode falar, em sua obra, de algumas características presentes nessa pintura, como a “expansividade sem limites do campo colorido”, “telas de grandes dimensões” e o “automatismo”, entendido este como o trabalho produzido sem qualquer reflexão prévia.

A pintura de Bonadei revela, com freqüência, esboços preparatórios ou desenho na própria tela em que vai pintar, ou ele ainda se apóia num arranjo de objetos sobre uma mesa (objetos excêntricos que o atraem pela forma, como raízes, pedaços de madeira, máscaras, ex-votos, refugos de chumbo usados em experimentos de física; objetos que representam um “motivo”, como dizia). Em raras ocasiões, abandona o cavalete para a execução das telas, poucas vezes rejeita o pincel e, quase sempre, na sua pintura abstrata, se encontra um manejo da composição segundo regras tradicionais.

Assimilação – É um traço característico da personalidade de Bonadei não rejeitar conhecimentos anteriores, agindo por um processo de acumulação e assimilação, buscando explorar as aberturas trazidas através de cada uma de suas experiências, conduzindo-as à reciclagem e a uma tentativa de coadunação com o já realizado. Dá-se como que um processo de feedback, em que o artista recupera a concepção de realidade à luz da essencialidade descoberta na procura abstrata.

Quanto à cor, torna-se agora mais intensa, havendo exploração de tons vibrantes e de tons puros. A cor é funcional, colaborando para a obtenção de equilíbrio do quadro; surge como um dado plástico complementar, reforçando o que a linha determina. Apenas em raras ocasiões poderíamos falar em “cromatismo autônomo”, como ocorre na pintura informal, quando a cor é projetada de modo espontâneo e se revela o elemento fundamental na linguagem plástica da composição.

Por volta de 1967/1968, as indagações abstratas de Aldo Bonadei acabam deixando uma marca definitiva na produção que daí para frente desenvolve: surgem, nessa época, as “composições híbridas”, em que objetos ou figuras se imbricam na construção do plano circundante. O pintor parte do real, de um motivo qualquer (natureza-morta – incluindo a flor, casario, figura humana) – para iniciar a composição, mas sua estruturação abandona esse primeiro apoio, torna-se mental e o espaço se organiza espontaneamente, através de planos retalhados, coloridos como um caleidoscópio, delimitados por contornos escuros e espessos, em obediência tão-somente a uma lógica perceptiva. É esse, afinal, o ponto de equilíbrio tão intensamente procurado pelo artista, ao longo de seu percurso plástico. E aí se expressa o legado da experiência abstrata na última etapa de sua obra.

Nesse “momento síntese”, após intensa e prolongada pesquisa, a obra do artista articula a percepção formal e os mistérios da emoção. Na dinâmica relação entre “razão e lirismo”, “figuração e abstração”, configura-se a especificidade bonadeiana no contato com as principais tendências do projeto estético que marcou a primeira metade do século 20.

Lisbeth Rebollo Gonçalves é diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA), também da USP, e vice-presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte.

 

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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