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E lá estava o rapaz, orgulhoso do conto que acabara de escrever, na redação do Correio do Povo, em Porto Alegre. Chegara com a convicção própria da juventude, ao menos a daquela época (início dos anos 60), a de que era incrivelmente brilhante. Queria publicar o escrito, uma história macabra sobre a mãe louca que estrangula a filha. O editor olhou o jovem e orientou: “Está vendo aquele velho magrinho ali? Se ele disser que é bom, eu publico”.

O rapaz olhou o senhor, que nem era tão velho assim, entre a pilha de papéis, e pensou com certo menosprezo: “Mas será que ele vai entender o meu conto maravilhoso?”. O senhor ajeitou os óculos, juntou as folhas, leu, pegou um lápis, enquanto o garoto pensava: “Será que ele vai ter a ousadia suprema de pretender corrigir alguma coisa?”.

Com uma voz cantante, um pouco esganiçada e alta, ele finalmente opinou: “Que visão a tua!”. E convidou: “Vamos tomar um café”. O garoto com ar de quem sabe tudo, ao olhar o balcão alto, sem cadeiras, aproveitou para usar uma expressão de Mário Quintana: “Ah, um café de ribanceira”. O senhor ouviu, mas não disse nada.

Enquanto tomavam o café, o velhinho era cumprimentado com deferência aqui e ali. “Olá, Quintana.” O garoto ficou surpreso, mudo e envergonhado. “Quintana de Mário Quintana?”. Era o próprio. Talvez o poeta, na sua sabedoria e humor, tenha percebido que o rapaz atrevido tinha lá o seu talento. A publicação do conto incentivou o garoto a escrever. E ao longo dos anos ele escreveu sem parar, tornando-se o crítico da maior produção de livros de arte do mundo.

Jacob Klintowitz lança o seu 102º livro pela LaserPrint Editorial, Histórias brasileiras de arte e artistas. Uma edição que difere de todas as outras que pontuam a trajetória do crítico. Ele se dá o direito de uma prosa poética. Conta a história de Ivald Granato, Cirton Genaro, José Roberto Aguilar, Henrique Léo Fuhro, César Romero, apresentando o jeito de ser e ver de cada um. Também destaca momentos importantes na história da arte brasileira em dois capítulos especiais: “Amici”, que lembra a contribuição dos artistas italianos, e “Uma relação tão delicada”, mostrando a importância da França na formação de artistas como Tarsila do Amaral, Vicente do Rego Monteiro, Candido Portinari, Anita Malfatti, Wilson Tibério, Antonio Bandeira e Cícero Dias, entre tantos outros.

Busca da poesia – Depois de uma vida dedicada à crítica de arte, Jacob Klintowitz vê o seu trabalho sob outras luzes. “Crítica de arte é literatura”, define. “Uma forma ensaística, às vezes poética, às vezes prosa, mas forma literária que trata de obras ou obra de outros artistas. A crítica considera a sua significação no mundo, o que a obra representa, qual o seu papel, o que ela formula. É uma decifração. Um estudo. E um ato amoroso, uma maneira de conhecer e amar, o que é a mesma coisa.”

O jornalista lembra o mestre Wassily Kandinsky: “Ele dizia que o crítico de arte ideal seria aquele que tentasse sentir como esta ou aquela forma age e que, em seguida, comunicasse ao público aquilo que ele experimentou. Para isso, o crítico deveria possuir alma de poeta, já que o poeta deve sentir as coisas de maneira objetiva para traduzir de maneira subjetiva o seu sentimento. O crítico, numa palavra, deveria ser dotado de uma força criadora”.

Klintowitz elaborou seus livros na contra-corrente de muitos pesquisadores. “O conceito de que a crítica de arte tem um caráter técnico e científico é completamente estranho ao meu ser”, observa. “Senti prazer e felicidade em escrever estes textos. E acho que esses devem ser outros atributos da atividade crítica. Que outros sentimentos deve ter alguém que entra em contato com a energia da criação artística?”

Desde o primeiro livro, lançado em 1973 pela Léo Christiano Editorial, Jacob Klintowitz procurou aliar a divulgação do trabalho dos artistas e a reflexão sobre a trajetória da arte contemporânea brasileira. “Na época, eu trabalhava em jornal, revista, agência de publicidade, e decidi elaborar um livro para esclarecer as minhas próprias dúvidas”, explica. “Era composto de três ensaios: ‘Arte e comunicação’, ‘Apontamentos sobre a estrutura da obra de arte’ e ‘Para uma política cultural’. Aproveitei uma licença e escrevi o livro em cinco dias, o prefácio foi do extraordinário Alberto Dines.”

O ritmo agitado dos jornais – em São Paulo, Klintowitz foi o pioneiro das matérias especiais de arte no Jornal da Tarde, onde trabalhou durante 17 anos – acabou influenciando no tempo do pesquisador. Ele desenvolveu a capacidade de escrever um livro, com sensibilidade e síntese, em poucos dias. Daí ter feito, como lembrou o jornalista Maurício Kubrusly, o mapa do Brasil com seus 102 livros. Ou seja, já escreveu sobre a história e o trabalho de artistas de todo o País. “Quando releio os livros, fico muito inquieto. Há sempre coisas novas para observar e acrescentar. Eu gostaria de reescrever praticamente todos. A absoluta maioria mistura artistas famosos a outros quase desconhecidos.”

Para o crítico, a condição essencial para escrever sobre um pintor é o que a sua obra tem a dizer, ensinar, emocionar. “Eu peço à obra de arte que me dê critérios para observá-la. Não chego diante dela inteiramente pronto. Observo com humildade, perguntando e faço uma revisão permanente dos meus juízos de valor. Só escrevo quando a obra me diz alguma coisa.”

Klintowitz lamenta o fato de o Brasil ter poucos críticos na mídia. “Os meios de comunicação desistiram inteiramente de ter alguém que fale em arte e saiba do que está falando”, observa. “Tem crítico de comida, vida noturna, vinho, cinema, política, economia, vida social, vida sexual, mas sobre arte há poucos. E o crítico é fundamental para o desenvolvimento de uma grande arte.”

Na avaliação do jornalista, o artista precisa da interlocução e a arte necessita ser dimensionada social e culturalmente. “Esse é o papel do crítico. E, no nosso país, ele se refugiou em instituições, com todas as suas óbvias restrições, porque foram expulsos dos meios de comunicação. Acho também que mais escritores deveriam escrever sobre arte. Sinto falta de textos de alta elaboração, requintados, como os de Geraldo Ferraz, Antonio Bento, Ferreira Gullar, Walmir Ayala, Antonio Callado, entre outros.”

Klintowitz lembra que o Brasil, apesar da extrema fragilidade institucional, tem uma arte de alto nível. “Os museus são de dar pena, por absoluta falta de verbas. A política pública, nos vários níveis, é frágil em relação à cultura e o mercado de arte é pequeno em relação ao número de artistas e a potencialidade do País. E, mesmo com esse panorama, nós temos extraordinários artistas em todas as áreas.”


Entre a poesia e a arte

Em Histórias brasileiras de arte e artistas, o jornalista Jacob Klintowitz revela as emoções do crítico diante da paisagem da arte contemporânea. Depois de quase cinco décadas dedicadas à pesquisa e à divulgação da arte brasileira, o crítico abre espaço para a observação do poeta. “Este livro é um passo em minha libertação individual”, explica. “Junto o meu aprendizado de literatura e a minha percepção de arte.”

Sob a liberdade de ser e sentir do paulistano José Roberto Aguilar, o crítico/poeta se deixa envolver pelas cores da obra e pela luz do ateliê. E deixa o texto fluir em sensações. “O ar estava impregnado de palavras não ditas, pensamentos inconclusos, gestos contidos. Também a poeira suspensa que a luz filtrada nos vidros sujos da janela revelava era uma presença sonhadora e opressiva.”

Faz uma comparação “não idêntica, mas irresistível”, do artista pop com os mestres chineses e japoneses. “A extraordinária gravura japonesa, que tanto influenciou na invenção do impressionismo, tratava do cotidiano, da vida das pessoas comuns, das pontes e das paisagens. A crônica do homem no planeta. Desde o cubismo a arte utiliza os objetos cotidianos como assunto e, com a pop art, chegamos numa espécie de entronização da banalidade. Não se pode esquecer que estamos tratando de manifestações estéticas diferentes, mas há em comum esse interesse pela simples existência.”

Nesta observação do cotidiano, Klintowitz lembra o haiku de Bashô:

Belo ainda na manhã o velho cavalo sobre a neve

No capítulo “O silêncio na arte”, Klintowitz se vê diante das figuras nítidas e precisas do gaúcho Henrique Léo Fuhro. “Essas figuras multiplicadas, desdobradas, refletidas em um universo de ocultos espelhos estratégicos e que habitam como superfícies referenciais no universo mental do artista. E, no entanto, desse contexto estridente da mídia contemporânea, desprende-se uma atmosfera de quietude, uma construção feita de silêncio.”

Em “O encantador de pipas”, o crítico fala sobre a arte do baiano César Romero e a sua capacidade de incorporar os símbolos da religiosidade e da criatividade popular num sistema visual erudito. “Jamais saberemos se voavam mais altas as pipas do menino. Mas eram famosas naquele interior ensolarado da Bahia as faixas de cor, o gosto feérico das combinações, a delicadeza do acabamento. No ar, a pipa, amante do vento, obscurecida pelo sol intenso, já com vida própria, provocava orgulho e a oculta dor da separação. Memória rediviva do artista, emblema cromático a portar os signos e símbolos da vida baiana.”

A inquietude de Ivald Granato é homenageada no capítulo “O gênio inventor do granatês”. Klintowitz afirma que através do trabalho desse pintor carioca é possível entender muito da história da arte e da cultura brasileira. “Ele cria situações, fatos e acontecimentos que se desmancham no ar. É um demiurgo ao tirar do nada uma cadeia de existências.”

O universo pictórico de Cirton Genaro, paulista de Martinópolis, é apresentado por Klintowitz com cuidado e sensibilidade. “O pintor trabalha sob a égide da história da arte. A sua pintura tem citações dos artistas que admira: Leonardo da Vinci, Hieronymus Bosch, Candido Portinari, Milton Dacosta, Alfredo Volpi. E as homenagens são freqüentes”, observa. “O artista escolheu o seu ofício e foi possuído por seus temas. Trata-se de pintura e do mundo dos homens.”

Quando se fala em histórias brasileiras da arte, o primeiro nome que surge é o de Pietro Maria Bardi. Com a admiração e respeito de crítico e amigo, Klintowitz dedica a ele um capítulo especial. “Conhecido como professor Bardi, ele foi fundamental na criação da Escola Superior de Propaganda e Marketing, na divulgação da moda, do desenho industrial, do desenho de humor, da comunicação em massa, edições de livros de arte, orquestras juvenis, do curso de museologia, entre tantas outras atividades culturais. Mas, apesar de tantos títulos recebidos, Bardi era um autodidata.”

Histórias brasileiras de
arte e artistas,
de Jacob Klintowitz,
Editora LaserPrint,
124 páginas,
R$120,00.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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