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Certa vez uma jovem me disse:

– Eu fui uma má aluna de história.

– Como pode ter sido uma má aluna? – respondi. – Certamente você teve maus professores.

Não existem “maus alunos”, só existem maus professores.
A didática em história da arte, particularmente, é um problema ainda por resolver. Pessoalmente, acho que devemos analisá-la diacrônica e sincronicamente, mas sempre buscando fugir das falsas mitificações, de critérios erroneamente seletivos e, sobretudo, de ensinamentos teóricos exaustivos, impregnados do paternalismo da cátedra, apenas para os “iniciados” ou para os “superestudantes”.

Os objetivos seriam: possibilitar o estudo em profundidade de obras essenciais, promover a interdisciplinaridade e analisar os processos criativos a partir de uma perspectiva histórica. Mas vale salientar que não devemos nunca confundir a obra de arte em si com a crítica da arte ou com a filosofia ou teoria da arte.

Não nos esqueçamos de que, apesar do “conteúdo” ser o mais importante em uma obra de arte, nós o percebemos através de uma forma. Embora a maioria dos movimentos que compõem a história da arte se origine em movimentos sociais, filosóficos ou literários, alguns deles excepcionais e imprescindíveis para se compreender a arte moderna, eles se baseiam em propostas exclusivamente técnicas, e é aí que o historiador torna complexas idéias que, para o artista, são simples e claras. Não é a primeira vez que leio em livros de história da arte: ”Para conseguir representar a atmosfera, os impressionistas criaram uma técnica chamada divisionismo ou pontilhismo”. Meu Deus! Nada mais oposto do que essas duas técnicas! Faltou aqui uma correta análise de ambos os processos criativos. Já na primeira metade do século 20, Picasso disse: “Trataram de explicar o cubismo recorrendo à matemática, à geometria, à psicanálise etc. Tudo isso é pura literatura”.

Os artistas modernos romperam com as concepções de arte que os precederam, desafiando o público a “reaprender a ler” a obra pictórica, bem como outras manifestações artísticas. Isso porque, sendo a pintura uma forma de comunicação e, portanto, transmissora de uma mensagem, é necessário que o receptor conheça o código através do qual ela é emitida.

É necessário, portanto, que o artista assuma o risco de contribuir com o historiador e com o crítico, nem que seja como o autor que, de alguma maneira, supervisiona a tradução que estão fazendo de sua obra.

Outra importante questão é focalizar bem o público a quem nos dirigimos. Vou deixar de lado o educando adolescente e o jovem adulto, mesmo que a educação através da arte seja, talvez, o tema que eu mais tenha tratado, pondo-o em prática no Brasil, numa metodologia específica para suprir a ausência da educação artística como disciplina obrigatória nos ensinos fundamental e médio. O que interessa agora é a situação atual dos adultos, das mais diferentes profissões, que carecem de conhecimentos básicos em arte, mas sem ter perdido seus interesses culturais. Eles querem ir a la recherche du temps perdu. Eles se encontram dentro de um vastíssimo espectro socioeconômico, freqüentam exposições, podem comprar livros e às vezes até visitar museus no exterior. Afortunadamente nossos museus apresentam, periodicamente, exposições que permitem o contato direto com a obra de arte original. Mas, apesar de ser imprescindível para o conhecimento profundo e real da obra, esse conhecimento será parcial, visto que os museus não podem apresentar, nem tem por que apresentar, suas exposições em ordem cronológica da história. São necessárias informações prévias, que situem a obra em seu contexto histórico, para que, posteriormente, possamos reconhecer suas origens e suas conseqüências.

A informação prévia se faz muito mais necessária quando se visitam os grandes acervos dos museus europeus, pois o público, muitas vezes, se perde em meio a obras que só interessam aos especialistas, perdendo seu tempo e deixando de contemplar as obras que são essenciais para a história da arte.

Mas quais seriam essas obras essenciais? Houve um tempo em que eu costumava ir à Pinacoteca di Brera, em Milão, só para analisar La madonna dell’uovo, de Piero della Francesca. Na terceira vez, o segurança, que já não saía de trás de mim, me disse:

– O senhor fica sempre parado diante deste quadro e até agora não olhou para o da esquerda, que é Lo sposalizio della vergine, de Rafael.

– Acontece – respondi – que conheço Rafael de memória. Quanto a este, só agora descubro por que Leon Battista Alberti disse que a Renascença termina com Piero della Francesca.

Faro estético – Dentro desse amplo espectro social, temos também aqueles que têm possibilidades de comprar obras. Ainda dentro desse grupo temos outra subdivisão: a dos “grandes colecionadores” e a dos “novos colecionadores”. Geralmente, os primeiros vão atrás de assinaturas muito conhecidas, e têm mais a ver com o mundo dos investimentos, para o qual basta entrar em contato com um bom marchand.

Créditos: LEILA KIYOMURA Já os pequenos investidores ou “novos colecionadores” deverão conhecer muito bem a diferença entre o valor econômico e o valor intrínseco de uma obra de arte, podendo assim ter maior lucro em longo prazo. Além disso, eles deverão desenvolver sua sensibilidade, seu “faro estético”, que todo ser humano tem e que avalia a obra de arte “de dentro para fora” e não de “fora para dentro” (marchand, crítico). Ela nos faz distinguir o que é bom do que é ruim. Nasce das referências que temos, dentre as quais as de onde nascemos e de onde crescemos. Um entregador de pizza de Florença, que tem de atravessar a Piazza della Signoria, não sabe que as esculturas diante das quais ele passa várias vezes ao dia são de Michelangelo, Ammannati, Giambologna, Donatello, Cellini etc., mas, mesmo assim, essas são as suas referências do que é escultura.

Portanto, acredito que o principal objetivo de um professor de história da arte, aqui e agora, é o de suprir essa falta de referências. É transmitir a experiência pessoal, é fornecer os documentos obtidos e, sobretudo, aquilo que não se pode obter dos livros. Por exemplo, a visão das talhas pornográficas de alguns monastérios do século 12, no norte da Espanha, derruba o mito de um tipo de espiritualidade romântica. Outro exemplo é a imagem do desenho do rolimã, de Leonardo da Vinci, achado nos porões do Prado em 1967, junto a outros que compõem o Códice Madri, que inexplicavelmente não figuram reproduzidos ainda em nenhuma história da arte.

O docente de história da arte, hoje, tem que se libertar do excessivo lastro teórico e se lembrar de que está lidando com obras de arte, de que estas são o meio de comunicação natural do ser humano desde muitíssimo antes de se inventar a escrita, de que são documentos da história desde muito antes da invenção da fotografia, de que hoje são um meio de comunicação subjetivo que transmitem sentimentos e que chegam a originar idéias mesmo antes de uma análise intelectual. Isso é o que comumente se chama “a força da imagem”. O professor tem que ensinar a “ler” a obra de arte e, sobretudo, tem que ensinar a ver, a “mudar o foco”.

 

Juan José Balzi é diplomado pela Academia Nacional de Belas Artes de Buenos Aires e pela Academia di Brera (Milão, Itália). Possui obras em museus e coleções particulares no Brasil e no exterior. Na Europa, conviveu com Carlo Carrá, Marino Marini e Salvador Dalí, entre outros artistas. De 1977 a 1983 foi professor de Desenho e História da Arte no Liceu Científico Italiano de Barcelona, na Espanha. A partir de 1987, ministrou cursos de pós-graduação na Faap e cursos para a Secretaria Municipal de Cultura, Secretaria de Estado da Cultura, Instituto Italiano di Cultura, Aliança Francesa e Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. É autor de O impressionismo (Editora Ática).

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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