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A Cultura ao Serviço ao Revolução

Após o derrube da ditadura, explodem manifestações culturais um pouco por todo o país, festejando a liberdade e a democracia, tendo os artistas forjado uma aliança espontânea com os protagonistas do 25 de Abril.

O Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) determina a promoção imediata de medidas de caráter cultural “que garantam o futuro exercício efetivo da liberdade política dos cidadãos”.

Com o 25 de Abril, as artes ganham, também elas, liberdade de expressão e procuram chegar a toda a população. Refletindo sobre a função social da arte, acreditava-se, como dizia o escritor Mário Dionísio, que “sem cultura não pode haver liberdade, mas só um perigoso simulacro”.

A comunidade artística junta esforços à Revolução, multiplicando iniciativas, em geral festivas e com um caráter popular, dirigidas a um vasto público.

“Enquanto os gabinetes políticos faziam e desfaziam programas, os espaços públicos eram ocupados por uma intensa e ansiosa atividade propagandística. Slogans e contraslogans registavam-se nas paredes, por vezes com inventivos letrismos, colagens e descolagens, pinturas coletivas, atividades geralmente anónimas, embora muitos artistas profissionais se tivessem integrado nelas.”

— Gonçalves, 2016

 

“O período revolucionário caracterizou-se também por um empenhamento militante intenso por parte dos artistas, numa vivência de cultura ‘ao serviço do Povo’.”

— Nogueira, 2008

A partir de outubro de 1974, com as campanhas de dinamização cultural, a relação entre militares e civis viria a transformar-se em algo mais organizado e formal. Mas, antes disso, há manifestações culturais que merecem destaque.

 

O painel foi pintado pelos seguintes artistas:

Fátima Vaz |Fernando de Azevedo |Guilherme ParenteHelena Almeida |Henrique Manuel|João Abel Manta |João Vieira|Jorge Martins
Alice Jorge | | Ana Vieira | Ângelo de Sousa | António Domingues | António Mendes | António Palolo | António Sena | Artur Rosa | Carlos Calvet | Charrua | Costa Pinheiro | David Evans | Eduardo Nery | Emília Nadal | Escada | Eurico Gonçalves | Fátima Vaz | Fernando de Azevedo | Guilherme Parente Helena Almeida | Henrique Manuel | João Abel Manta | João Vieira | Jorge Martins | Jorge Pinheiro | Jorge Vieira | Júlio Pereira | Júlio Pomar | Justino Alves | Lima Carvalho | Manuel Baptista | Manuel Pires | Maria Velez | Menez | Moniz Pereira | Nikias Skapinakis | Nuno San-Payo | Querubim Lapa | René Bértholo | Rogério Ribeiro | Sá Nogueira | Sérgio Pombo | Teresa Dias Coelho | Teresa Magalhães | Tomás Mateus | Vespeira | Vítor Fortes | Vítor Palla

À pintura juntam-se as esculturas em madeira de José Aurélio e as obras em pano de Clara Menéres.

Inspirada na quadra “Flor Liberdade/ Fogo-Imaginação/ Força-Unidade/ Arte-Revolução”, a iniciativa – que os organizadores/participantes batizam de “Festa” – inclui várias outras performances artísticas, entre as quais música, teatro e poesia, com a presença, entre outros, do grupo coral de Fernando Lopes Graça e das companhias de teatro Cornucópia e Comuna.

O primeiro-ministro do I Governo Provisório, Adelino da Palma Carlos, está presente no evento, onde evoca o artista plástico José Dias Coelho, assassinado pela PIDE em 1961, quando, já na clandestinidade, havia sido descoberto numa oficina de falsificação de documentos para militantes comunistas. O assassinato de Dias Coelho leva Zeca Afonso a escrever a canção “A morte saiu à rua”.

As celebrações culturais do 10 de Junho de 1974 são gravadas em filme por uma equipa de cinema e transmitidas em direto pela RTP, das 09h00 às 21h00, emissão que chega a ser interrompida por ordem do próprio MFA e do I Governo Provisório, quando o Teatro da Comuna satirizava os dirigentes do regime anterior – naquele que é assinalado como um dos primeiros atos de censura depois do 25 de Abril, gerando “forte contestação por parte dos que assistiam à performance, dos trabalhadores da RTP e dos partidos de esquerda” (Ruivo, 2016).

Após saber da interrupção, Júlio Pomar “pegou nos seus pincéis, amarrou-os à sua pintura e pintou por cima: ‘a censura existe’” (Almeida, 2009, Gonçalves, 2004).

“Mas o mais importante era a festa e o poder contagiante da criatividade, que levaram as crianças presentes a pintarem rapidamente uma torre de tijolos, logo seguidas pelos espectadores adultos, que encheram o muro fronteiro ao painel com numerosas inscrições: siglas dos Partidos, palavras contra a polícia política do regime deposto, saudações ao MFA…”

— Gonçalves, 2016

O Painel do Mercado do Povo marca “o início de uma tentativa de juntar artistas e as massas populares” (Cruzeiro, 2021).

A obra é oferecida ao Movimento das Forças Armadas e depois indicada para representar Portugal na Bienal de Veneza (o que já não acontecia desde 1960), bem como para o Salon de la Jeune Peinture (Paris), mas a Direção-Geral da Cultura não chega a enviar o mural (Gonçalves, 2016).

A obra viria a ser destruída num incêndio que deflagra na Galeria de Arte Moderna, em 1981, perdendo-se um testemunho valioso daquele momento histórico.

 

O MDAP

O Movimento Democrático de Artistas Plásticos, constituído no seio da Sociedade Nacional de Belas Artes, surge após o 25 de Abril (a 8 de maio de 1974).

O golpe que derrubou a ditadura abre espaço a uma “grande reflexão nas artes plásticas”, no âmbito da qual membros da Sociedade Nacional de Belas Artes promovem “várias reuniões públicas onde se debate a nova política cultural e o papel da arte e dos artistas”, das quais resultam “vários grupos de trabalho” e uma série de propostas, como a abolição de todas as estruturas da Secretaria de Estado de Informação e Turismo; o cancelamento do programa de exposições em curso; e a demissão dos representantes dos artistas na Câmara Corporativa e de todas as comissões que censuram e controlam a integração de obras de arte em espaços públicos (Ruivo, 2016).

“Os artistas propõem-se a servir a comunidade, organizam-se e dialogam com o novo poder, apontando para a ‘democratização da cultura’ e para a ideia de a política cultural ser definida pelos próprios artistas e críticos.”

— Ruivo, 2016

Reagindo à presença de alguns símbolos do regime anterior que permaneciam nos espaços públicos, o MDAP reúne uma centena de artistas que, a 28 de maio de 1974, invadem o pátio do Palácio Foz, antiga sede da Secretaria de Estado de Informação e Turismo, e tapam com um pano preto e uma faixa verde e vermelha a estátua de Salazar. Defendiam que a obra escultórica, da autoria de Francisco Franco, devia ser armazenada num museu, seguindo o lema “A arte fascista faz mal à vista” (Marcelino Vespeira).

Para o primeiro Dia de Portugal (chamado Dia da Raça antes do 25 de Abril), o MDAP junta 48 dos seus primeiros elementos – tantos quantos os anos que durou a ditadura – para, juntos e distribuídos por três andares de andaimes, pintarem um painel com 4,5 por 24 metros, “com cores fortes e inscrições referentes ao 25 de Abril, à liberdade ou à guerra colonial” (Ruivo, 2016).

Este painel coletivo é o “momento de maior visibilidade” do MDPA, com o qual este “se propunha a celebrar o 25 de Abril e homenagear o MFA”, na senda da “tendência de uma arte que se fazia cada vez mais em público e politicamente empenhada, sob o primado da criação coletiva, do happening, da performance e da rejeição do elitismo”. A pintura do mural no espaço público acontece “perante a presença e com a participação de grande número de pessoas” (Ruivo, 2016).

 

“Depois de quarenta e oito anos sufocantes impera, no período imediatamente após a queda da ditadura, uma espécie de estado público de euforia, um desejo generalizado e inebriante de compensar o passado traumático com novas experiências criadoras sentidas como urgentes para a reconstrução do país adiado durante tanto tempo.”

— Sabino, 2021

Antecedentes coletivos

Entre o final dos anos sessenta e o início dos setenta, verifica-se “um dinamismo crescente na criação artística com contornos contemporâneos” e, ao mesmo tempo, intensifica-se a “dimensão coletiva na produção artística” (Sabino, 2021).
Entre 1968 e 1971, o grupo Os Quatro Vintes faz várias exposições em Portugal e em França (Paris) e, no Porto, o movimento Poesia Experimental Portuguesa expõe, na Galeria Alvarez, obras de escritores e artistas como Melo e Castro, José Alberto Marques e Ana Hatherly.

O painel “Começar”, desenho inciso e pintado sobre pedra calcária, de Almada Negreiros, é instalado na Fundação Calouste Gulbenkian, que o havia encomendado, antes da morte do artista, em 1970.

Em Óbidos, a galeria Ogiva está de portas abertas entre novembro de 1970 e janeiro de 1974, por iniciativa do escultor José Aurélio, que participa, com a escultura em madeira Portugal Novo, na “Festa” do 10 de Junho de 1974.

No Porto, cidade onde já se destacavam artistas como Júlio Resende, Fernando Lanhas, Nadir Afonso e Arlindo Rocha, ligados à Escola Superior de Belas Artes, Egídio Álvaro dinamiza, imediatamente antes do 25 de Abril (de fevereiro até abril de 1974), a Perspectiva 74, um ciclo de intervenções artísticas de vanguarda e debates com artistas de cinco países (Checoslováquia, França, Inglaterra, Japão e Polónia), na Galeria Dois.

A Perspectiva 74 está também ligada à revista Artes Plásticas, surgida em 1973, como parte do movimento em que se integra a Casa da Carruagem, de Jaime Isidoro, que vai ter um papel importante nas dinâmicas artísticas que se seguem ao 25 de Abril, especialmente no Norte do país.

“As características da cidade do Porto de então e do seu meio cultural, por outro lado, favorecem as qualidades associativas entre artistas, o que explica também o facto de tantos coletivos portugueses de artistas dos anos 60 e 70 serem provenientes desta cidade ou nela terem permanecido durante algum tempo.”

— Sabino, 2021

Entre 1974 e 1977, Jaime Isidoro e Egídio Álvaro juntam esforços na programação dos Encontros Internacionais de Arte em Portugal, que procuram dinamizar e descentralizar a cultura. As quatro edições decorrem em Valadares, Viana do Castelo, Póvoa de Varzim e Caldas da Rainha.

Simultaneamente, formam-se dois relevantes agrupamentos de artistas: o Grupo Acre (“Uma arte para toda a gente”), ativo entre 1974 e 1977, constituído por Alfredo Queiroz Ribeiro, Clara Menéres, Joaquim Lima Carvalho e vários outros colaboradores, e o Grupo Puzzle (“Contra-corrente”), que, entre 1975 e 1981, conta, entre outros, com artistas como Albuquerque Mendes, Armando Azevedo, Carlos Carreiro, Dario Alves, Fernando Pinto Coelho, Gerardo Burmester, Graça Morais, Jaime Silva, João Dixo e Pedro Rocha.

Almeida, Sónia Vespeira de. 2009. Camponeses, Cultura e Revolução: Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do M.F.A. (1974-1975). Lisboa: Edições Colibri e IELT – Instituto de Estudos de Literatura Tradicional.

Couceiro, Gonçalo. 2004. Artes e Revolução 1974-1979. Lisboa, Livros Horizonte.

Cruzeiro, Cristina Pratas. 10 de outubro de 2021. Art with Revolution! Political mobilization in artistic practices between 1974 and 1977 in Portugal, in on the w@terfront, vol. 63, n.º 10.

Gonçalves, Rui Mário. 2016. Artes Plásticas, in Dicionário de História de Portugal. O 25 de Abril. Vol. 1. Porto: Figueirinhas, pp. 186-191.

Gonçalves, Rui Mário. 2004. Vontade de mudança: cinco décadas de artes plásticas. Editorial Caminho.

Nogueira, Isabel. 2008. Artes plásticas e pensamento crítico em Portugal nos anos setenta: aspectos de uma modernidade adiada, in Revista Intellectus, ano 07, vol. II.

Ruivo, Francisco Bairrão. 2016. Movimento Democrático dos Artistas Plásticos (MDAP) , in Dicionário de História de Portugal. O 25 de Abril. Vol. 6. Porto: Figueirinhas, pp. 65-67.

Sabino, Isabel. Dezembro de 2021. Grupo ACRE fez 1974-77. Arte e dinâmicas coletivas em Portugal. Lisboa: Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes.

Acervo Fotográfico Ernesto de Sousa, cedido pelo Arquivo Municipal de Lisboa.

 

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