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19/09/2008

Suicídio de escravos é tema de artigo de 'História, Ciências, Saúde – Manguinhos'

Renata Moehlecke


Em 6 de fevereiro de 1880, uma nota publicada no jornal Gazeta de Campinas informava (na linguagem da época): “Ontem, as 8 e meia horas da manhã, suicidou-se, atirando-se a um poço do quintal da casa de seu senhor, a escrava Francisca, pertencente ao sr. Antonio Joaquim Gomes Trojal”. O caso de Francisca é um dos muitos suicídios de escravos noticiados no jornal paulista nas últimas duas décadas de escravidão. A partir dessas notícias do Gazeta, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) resolveram analisar as visões correntes sobre atos suicidas entre cativos e pessoas livres entre os anos de 1870 e 1888. O estudo, que pode ser conferido na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos da Fiocruz, pretende desfazer explicações simplificadoras que afirmam que essa atitude extrema é decorrente de desgostos provenientes do cativeiro.


 Aquarela de Debret retrata os maus tratos e punições sofridas por escravos no século 19

Aquarela de Debret retrata os maus tratos e punições sofridas por escravos no século 19


“Ainda que se afirme serem muitos os casos de suicídios entre escravos, essa não é um ponto estudado detalhadamente”, comentam os estudiosos no artigo. “Na história da escravidão, o suicídio é quase sempre citado de passagem, em geral acompanhando comentários genéricos sobre a formação de quilombos, fugas, homicídios e outras ações violentas que expressariam a rebeldia ou meios de negociação dos cativos, e raramente recebeu tratamento pormenorizado”.


Os pesquisadores identificaram 319 notícias sobre tentativas e suicídios no período examinado. Em 75% dos casos, incluindo livres e escravos, o ato foi efetivado. A pesquisa também apontou que os homens predominaram nos suicídios e tentativas entre pessoas livres e escravos, ainda que a participação das escravas nos suicídios consumados não seja pequena (quase 40%). Os meios mais comumente usados pelos escravos nos suicídios e nas tentativas foram enforcamento, afogamento e uso de arma branca. Não houve registros de nenhum caso de envenenamento. Já entre os livres, os modos mais freqüentes foram o uso de arma de fogo e enforcamento.


Segundo os estudiosos, as motivações atribuídas aos atos suicidas nas notícias, em geral, quando existem, são pouco precisas: em 50% dos casos elas não são citadas ou são ignoradas. “Nos relatórios provinciais, com informações ainda mais esporádicas e genéricas, a maioria dos casos de escravos é atribuída a ‘desgostos do cativeiro’, clichê recorrente nos discursos sobre atos suicidas de cativos”, explicam. “Sendo os atos suicidas manifestações humanas irredutíveis a um único tipo de explicação, não parece justificável que entre escravos eles sejam ainda tomados como auto-explicáveis por sua mísera condição”.


A pesquisa apontou que a maior parte dos casos, em notas que expõem os supostos motivos dos suicidas, estavam ligados a situações de prisões e de condenação judicial, ou seja, escravos condenados por homicídios, aguardando julgamento, recém-saído da prisão, acusados de crimes como furtos, dentre outros. “Esse relacionamento de motivações a crimes pode prender-se aos pesados castigos físicos dados aos escravos condenados, como a pena de açoites, e a possibilidade de trabalhos forçados, ou ainda a ameaças de castigos (dos senhores ou na prisão), nos casos de simples suspeitas de crime”, esclarecem os pesquisadores.


Além disso, os estudiosos destacam diferenças de motivações atribuídas aos atos suicidas para livres (como comerciantes ou fazendeiros) e cativos. Transtornos mentais e motivos passionais (relacionados a valores morais, afetos em geral e paixão amorosa contrariada) seriam os mais citados entre pessoas livres e quase nunca atrelados a escravos. “Causas que chamaríamos de psicopatológicas são ligadas muito mais aos suicídios dos livres do que dos cativos, o que pode refletir não só a predominância de suicídios ligados à situação do cativeiro, mas ainda a visão de que escravos (negros) seriam moralmente diferentes das pessoas da classe senhorial”, apontam.


Publicado em 19/9/2008.

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