Uma vez flamenco, flamenco até morrer

Daniel Soares* fala de Paco de Lucía e de como o espanhol ousou com o flamenco como nenhum outro artista havia conseguido com o estilo gitano

Para ser lido ao som de Cancíon Andaluza, de Paco de Lucía
Ilustração: Gilmar Fraga
Ilustração: Gilmar Fraga

Enquanto o rock and roll se firmava, enlouquecendo a juventude americana, o jazz já frequentava salões bem mais nobres que os inferninhos de Nova Orleans ou Chicago. Enquanto o Brasil se deslumbrava com o alcance da televisão e festejava a conquista da primeira Copa do Mundo naquele 1958, a Espanha começava a descobrir Francisco Gustavo Sánchez Gomes, na época, o já franzino Paco de Lucía. Ao lado do irmão Pepe, que o acompanhou por praticamente a vida toda, formava o Los Chiquito de Algecira. Paco dava seus primeiros passos como profissional, aos 11 anos de idade, mas selava, para sempre, o futuro do flamenco.

Não demorou muito para que começasse a ser requisitado para acompanhar grandes cantores do flamenco e até outros guitarristas, como Sabicas e Mario Escudero. Após sua primeira tour nos EUA na companhia do coreógrafo e bailarino José Greco, Paco se aproximou do maior ícone do flamenco daquele final dos anos 60, Camarón de La Isla, com quem gravou diversos discos. Foi com o cantante que Paco se viu diante de um novo horizonte, e das infinitas possibilidades que o flamenco poderia lhe dar. Nos anos 70, após uma viagem ao Peru, Paco foi apresentado ao cajon, instrumento de percussão, de forte marcação rítmica e que hoje é praticamente indissociável do gênero. Nascia o “nuevo flamenco”.

O virtuosismo de Paco era assombroso até para os mais experientes guitarristas de flamenco. No palco, com poucos sorrisos que a timidez lhe permitia, se entregava ao instrumento, concentrado, velocidade e inspiração únicas.

Em 1981 gravou, ao vivo, aquele que é considerado como sua entrada definitiva no jazz e na world music, o Friday Night in San Francisco, ao lado de Al Di Meola e John McLaughlin. A faixa Mediterranean Sundance, dividida com Rio Ancho, se transformou em hino dessa fusão. O disco também trazFrevo Rasgado, de Egberto Gismonti, onde Paco divide a cena com McLaughlin. Curiosamente, esse disco, e outros como Castro Marin, com John e Larry Corryel, não estão entre os favoritos do próprio Paco de Lucía. Estes, Paco considerava importantes, mas como “parênteses em seu trabalho dedicado ao flamenco”. O espanhol também se notabilizou por várias colaborações no cinema, de Carlos Saura, onde atuou como ele mesmo emCarmen, às trilhas de Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen.

Paco de Lucía ousou com o flamenco como nenhum outro artista havia conseguido com o estilo gitano, tirando-o do círculo folclórico. Colocou o tempero do jazz, do blues, da world music, levou para os palcos do mundo, o fez renascer e ser redescoberto pelo resto do mundo. Numa de suas entrevistas, ainda nos anos 90, Paco disse que nunca havia perdido sua ligação com as raízes de sua música: “O que tentei fazer foi situar-me na tradição e, ao mesmo tempo, procurar outros territórios, procurar coisas novas para transportar para o flamenco”.

O violonista espanhol que deu mais cor ao já intenso flamenco, esteve algumas vezes no Brasil. Na última passagem, em 2013, se apresentou em Porto Alegre e ainda teve tempo de conferir o show de outro grande: Yamandú Costa.

Paco, que gostava dos escritos de Oscar Wilde e da trilogia das cores do cineasta Krzysztof Kieślowski, morreu em 25 de fevereiro de 2014, quando passava férias com a família em Cancún. Mesmo ano em que foi agraciado com o Grammy Latino de Melhor Disco por Cancíon Andaluza.

* Daniel Soares é roqueiro, jornalista e guitarrista

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