Viva a música impopular

Antônio Carlos Miguel aposta em um antídoto para ignorar as paradas de sucesso dominadas pela mesmice

Arte: Gilmar Fraga

Em que momento aumentou o divórcio entre qualidade artística e sucesso popular? Gosto se discute e um componente geracional pode ser adicionada à equação, mas, um passeio pelos indicadores atuais de êxito comercial (streaming à frente) mostra que a qualidade do conteúdo não é o item primordial para o resultado alcançado.

Somos muito marcados por aquilo que conhecemos em nossa adolescência. E gente que botou nas veias Beatles, Stones, Chico, Caetano, Milton, Paulinho, Cartola, Edu, Donato, Dylan, Gil, Jobim, Elis, Gal, Jorge Ben, Mutantes, Hermeto, Aretha, Egberto, Pink Floyd, Satie via B,S&T, Billie via Janis, Miles, Mingus, Monk, Bill Evans, Carla Bley, Horace Silver e companhia via jazz-rock, Stevie, Novos Baianos, Melodia, Nelson Ângelo, Joyce, Marcos Valle, Steely Dan, Laura Nyro, Ed Motta… vai ter dificuldade em aderir a… Justin Bieber.

Sim, este já ficou no passado. É lembrado aqui pelo fato de que quando foi, antes de o conceito existir, trending topic, teve seus números de venda e exposição na mídia comparados aos dos Beatles. E, no que remete à boutade de Jobim (“Mas, eles são quatro”), era apenas um. Na época do agora quase esquecido Bieber, um argumento à comparação apressada era: “Mas, o que será de sua música em três, quatro anos?”. Este o período de tempo gasto pelos four trending tops dos anos 1960 para pular do rock tatibitate de Please, please me e With The Beatles para o abrangente pop feito na segunda metade da década,a partir de Rubber soul (dezembro de 1965), e que levaria a Revolver (1966) e Sgt. Pepper (1967). Como sabemos, Justin B não resistiu ao teste do tempo, assim como também não Hanson, Britney, Spice Girls, etc

Tal parâmetro vale para muito dos nomes com mais likes e ouvintes na plataforma de streaming líder de audiência.  Sertanejos, reggaetoneiros (que se espalharam da América Latina para boa parte do planeta), K-popeiros (que  se espalharam da Coreia do Sul para boa parte…), funkeiros brasileiros. E, de certa forma, até velhos roqueiros e seus nostálgicos fieis (de Stones a Titãs).    Tirando estes últimos, que insistem e se mantêm, quem dos muitos top five, segundo diferentes paradas, gente que esgota em dez minutos os ingressos de festivais como RiR-Lolla-The Town, vai continuar relevante daqui a três, quatro anos?

Nos últimos tempos, o critério que pauta de investidores a curadores, programadores ou executivos de grupos de mídia tradicional e digital é a quantidade de likes, views, seguidores no insta e no face e afins de cada criador de conteúdo. Um círculo que cada vez mais se retroalimenta movido a números e algoritmos.

No caso específico da música gravada e comercializada, em um processo que tem início nas primeiras décadas do século XX,  a decisão sobre o conteúdo veio trocando de mãos e especialidades. Rota que, a grosso modo, aponta para uma banalização. Arranjadores e regentes que pilotavam, auxiliados por técnicos e engenheiros de gravação, os estúdios até o fim dos anos 1950, começaram a perder espaço para produtores e diretores artísticos.  A partir dos 1990, entraram em cena os homens de marketing, que, supostamente, tinham as chaves e as manhas para o sucesso.  Gente que por sua vez, com o fim  do formato físico e a decadência da indústria discográfica, deu lugar a investidores do mercado – estes mais distantes ainda de quesitos artísticos. O que passou a importar era o retorno financeiro, o quanto mais rápido e maior. Daí o papel de likes, views, redes sociais que, de alguma forma, já são efeitos de  um mundo descontrolado pela IA – a ignorância artificial.

Ao invés de ficar listando mais/maus exemplos entre os líderes de views atuais, vale lembrar que sucesso e criatividade andaram juntos muitas vezes. Ao lado de muitos lembrados na abertura, dá para acrescentar artistas hoje restritos a nichos. Antes da música gravada, o sucesso acompanhou as carreiras de Bach, Mozart, Beethoven, mesmo que restritos às elites da época. Também esteve ao lado dos grandes nomes da ópera; dos compositores dos musicais na Broadway (Gershwin, Cole Porter, Rodgers & Hart, Harold Arlen…); ou, no Brasil, de gente como Chiquinha Gonzaga, Noel, Pixinguinha, Caymmi, Carmen Miranda.

No Brasil dos anos 1960, no horário nobre das emissoras de TV, qualidade artística e sucesso andavam de mãos dadas nos muitos festivais competitivos e nos programas de música, ambos frequentados por alguns dos nomes que estão listados na abertura desse artigo. Exposição que continuou na década seguinte, mesmo que então tendo como principal meio as trilhas das novelas em cadeia nacional. A partir dos anos 1980, a receita desandou e desde então é ladeira abaixo. A grande música continua, mas cada vez mais restrita a nichos. E é com esses que vamos.

Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

5 pensamentos

    1. Show. Abraços 

      Enviado do meu iPhone

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