A Igreja de Santo Ildefonso

A Arquitectura da Igreja de Santo Ildefonso

Quando chegamos à histórica Praça da Batalha, subindo a comercial Rua de Santa Catarina ou a Rua 31 de Janeiro – antiga Rua de Santo António – deparamo-nos com o templo paroquial de Santo Ildefonso. Denunciando características arquitectónicas e ornamentais especificamente portuguesas, a igreja foi edificada na década de 30 do século XVIII e a sua imagem exterior fixou-se com o revestimento azulejar já bem dentro do século XX. Todavia, a sua instituição é bem mais remota e envolta, como muitas vezes na história do mundo, em lenda e mistério.

Igreja primitiva

Foi certamente o padre Manuel Pereira de Novais, na Anacrisis Historial (1690), que divulgou a ideia de que a fundação da igreja ildefonsina remonta ao período dos Godos, em virtude de ter encontrado no seu cemitério sepulturas que isso o indicavam. Na mesma tradição, a historiografia regista que a ermida de Santo Alifon foi consagrada pelo bispo D. Pedro Pitões (1146-1152) o que, a ser assim, poderá indicar que teria a certo momento um aspecto próximo de outras igrejinhas românicas típicas da zona norte do país. Seja como for, teremos que esperar até o século XVII para encontrarmos as primeiras descrições do templo que antecedeu o actual.

Nos inícios de Seiscentos a igreja encontrava-se na posse da Confraria do Senhor Jesus que no ano de 1634 se fundirá com a recém-criada do Santíssimo Sacramento. Os estatutos desse mesmo ano registam a união:

Unimos e annexamos de hoje para todo o sempre à dita Confraria de Jesus, a nova Confraria do Santissimo Sacramento, que agora novamente se institui na dita Igreja, e Altar Mor; e nos obrigamos por este Estatuto, e união a sustentar a dita Confraria do necessario, que faltar ao azeite da alampada, porque estão feitas três Escripturas publicas, de meio almude cada huma, na notta de João Ferreira; cujo traslado está metido no livro dos assentos, e tombo da dita Freguezia, que anda no cofre della. E assim mais nos obrigamos a venerar, com cera necessaria seu Devino Culto.

É este o momento iniciático do período moderno da sua história. Desde a sua instituição que a responsabilidade da edificação estrutural do templo pertencia à diocese do Porto e, a tomar em conta a documentação, é bem provável que a igreja tenha recebido melhorias neste mesmo ano, numa altura em que era bispo do Porto D. Frei João de Valadares (1627-1635). Não existe qualquer descrição física do aspecto global da igreja seiscentista mas sabemos, com toda a certeza, que tinha apenas dois altares de veneração, o Altar-mor dedicado ao Santíssimo Sacramento e o Altar de Jesus. Dado que o templo estava sob o protectorado diocesano, os poucos dados relativos ao seu estado recolhem-se nas visitações que aquela era obrigada a fazer ao templo ildefonsino, de quatro em quatro anos. A primeira visitação a que a documentação faz referência data do ano de 1635, quando o cónego Jorge Velho vistoria o templo no milésimo imediato à fundação da nova confraria e no seu registo faz alusão específica à capela-mor e arco cruzeiro. As visitações subsequentes permitem-nos recolher outros dados como sejam a existência de um coro e sacristia, sendo que o acesso interino se podia fazer pela porta principal ou pela porta travessa e ainda que os dois retábulos era dourados e a capela-mor estava revestida de azulejaria.

Durante os últimos anos do século XVII, por razões que a documentação não explicita, a igreja estava cada vez mais ao abandono e em tal estado de ruína que a Confraria do Senhor Jesus e Santíssimo Sacramento passaria a reunir-se, a partir do ano de 1709, na Igreja de Nossa Senhora da Batalha que abrigará, durante três décadas, o sacrário e recheio da sua congénere indefonsina. O abade da Sé do Porto, António da Costa Martins, na categoria de visitador no ano de 1727, declarava que não ter observado Altares nem Igmagens pois as não achei na mesma igreja pelo lastimozo estado em que se acha exposta em grande parte as inclemências do tempo por falta de telhados que se não reparavão, sendo digno de adorarse com lágrimas de sangue ver hum templo de catholicos sem nelle se venerar o santisimo sacramento não ofrecer a Deos sacrificios privadas as Igmagens do devino culto e os defuntos sepultura decente.

No ano de 1730 são os próprios paroquianos a protestar e exigir veementemente a reedificação da igreja, chegando a pedir ajuda ao próprio monarca do reino, apelos estes atendidos pelo governador em Sede Vacante (1717-1741), o doutor Diogo Marques Mourato que no dia 8 de Julho desse mesmo ano mandava pelo requerimento da Mitra reedificar a dita igreja e reparar de toda a ruína de sorte que fique na mesma forma do seu antigo estado e com toda a capacidade para se celebrar o Santissimo Sacramento e administrar todos os sacramentos com aquela decencia devida.

Em conclusão, as informações recolhidas na documentação existente apenas nos oferecem um esqueleto genérico da sua estrutura primitiva, não obstante ser  possível reconstituir o aspecto do templo com alguma fidelidade através dos factos seguintes: a ser consagrada no século XII o seu estilo arquitectónico era caracterizado pelo Românico, sendo provável, se tomarmos à letra o que nos diz o compromisso da Confraria do Senhor Jesus e Santíssimo Sacramento que, por altura da união das duas confrarias, o bispo D. João de Valadares tenha procedido a modificações substanciais e absolutamente necessárias, senão na capela-mor, pelo menos no retábulo-mor para aí se instalar o sacrário. A sua estrutura arquitectónica seria simples constituída por coro, nave única e capela-mor azulejada, com um alpendre com colunas à entrada. Incluía apenas duas estruturas retabulares, o altar-mor e o altar do Senhor Jesus e tinha sacristia e uma porta travessa.

Igreja actual (1730-1739)

Não restam dúvidas que a construção da actual Igreja de Santo Ildefonso se iniciou em 1730 e que se concluiria ainda dentro da mesma década, tendo sido benzida em 1739.

O curto tempo de edificação, comprovado documentalmente, pressupõe uma obra célere e a presença de várias equipas de oficiais, cada uma sob a alçada de um mestre pedreiro, dado que o projecto foi certamente tomado de raiz. Sendo a obra patrocinada pela Mitra da Sé do Porto, num período em que estão a ser concluídas importantes obras de renovação da catedral portuense, é mais do que natural pensar-se que o desconhecido autor do projecto arquitectónico ildefonsino – de original planta poligonal e equilibradas proporções – fosse um arquitecto intimamente ligado à diocese.

Numa época em que existem grandes empreitadas de obras na cidade – sendo o maior estaleiro o da Igreja dos Clérigos – sabemos que no ano de 1734 vários mestres de pedraria assinaram um contrato de sociedade que lhes permitia dividir tarefas, perdas e ganhos sendo que uma das obras abrangidas pelo contrato era a de Santo Ildefonso. Não se liga nenhum nome a nenhuma fábrica específica mas nela aparecem dois mestres que poucos anos depois encontraremos a trabalhar aqui, António Pereira e o seu associado João Moreira Bouças. Todavia, a primeira empreitada de obras conhecida surge já numa fase avançada da construção e encontra-se documentalmente registada no notariado da cidade a 16 de Maio de 1736, portanto, seis anos após a autorização para a reedificação da igreja ildefonsina. Uma equipa de quatro mestres de pedraria, liderada por Manuel Moreira, comprometia-se a concluir certa obra de pedraria que faltava para acabar a igreja de santo ildefonso no prazo de um ano e a troco da elevada quantia de 4.100.000 réis.

A documentação seguinte diz já respeito a obras de acabamento no ano de 1739. Carpintaria, serralharia e pedraria seria, enfim, a obra que falta na dita Igreja nova e Capela-Mor, como é a ferragem da porta principal e portas travessas e das sacristias e facturas destas; Altar-mor e lageado que falta dele para a parede; assento do Sacrário Velho e Tribuna do Senhor Jesus que havia e tapamento de madeira dele para as paredes e o sobrado da mesma Tribuna para remediar, enquanto a dita Mitra não mandar fazer novo retábulo; caixilhos com empanadas de pano para as frestas da Igreja e Capela-Mor e grades para o coro e púlpitos e taburnos de sepulturas para dentro do Cruzeiro da mesma Igreja, que é a obra mais precisa e necessária que falta na dita Capela-Mor e Igreja para nela se colocar o Senhor e suas imagens que se acham com indecência na dita Capela da Batalha. Neste contrato assinado a 23 de Março, o mestre de pedraria responsável é António Pereira e outros se documentam entre Abril e Junho, denunciando acabamentos da fábrica exterior à igreja – terreiro do adro, muramento e escadaria de acesso – realizados pelos mestres pedreiros António Pereira e João Moreira Bouças.

Como documenta o livro da Eleição da Mesa da Confraria do S. S. e Senhor Jesus do ano de 1740, no dia 18 de Julho de 1739 se benzeu a Igreja nova de Santo Ildefonso e no dia 19 do dito mês e ano se trasladou o S. S. e as mais imagens sagradas que estavam na capela de N. Senhora da Batalha havia 30 anos, para a dita nova igreja a qual se fez com toda a pompa e gravidade que se esperava.

A estrutura da Igreja de Santo Ildefonso manteve-se praticamente inalterável até aos dias de hoje, com a singular excepção da ruptura da abóbada da capela mor em 1819, fruto da queda de uma cruz de pedra na sequência de uma tempestade. Não obstante, obras significativas registam-se em 1833, na sequência das Lutas Liberais, com arranjos na fachada e em 1875 quando a nave foi soalhada e a capela-mor e sacristia lajeadas. Por sua vez, e como seria de esperar, obras nos telhados e de manutenção de pinturas de superfícies pétreas, grades e madeiras encontram-se amplamente documentadas nos últimos trezentos anos.

Durante o século XX destacou-se a acção do pároco Adriano Moreira Martins que durante meio século (1915-1967) se encarregou de conceder ao templo a atenção devida e concedendo-lhe grande parte do seu aspecto actual. Para além de fixar a estrutura retabular e respectivos patronos que ainda hoje se revela na nave ildefonsina, estendeu as suas preocupações a todo o espectro artístico e cuidado arquitectónico e foi durante a sua vigência que se colocaram os dois retábulos neo-clássicos na nave da igreja, se reformou a varanda do coro alto (1923). Não obstante, o seu mecenato ficará marcado pela colocação dos painéis azulejares de Jorge Colaço (1932), pela actual sanefa do arco cruzeiro (1961) e pelos belíssimos vitrais de Isolino Vaz (1967).

Posterior ao seu falecimento, o padre Alfredo Leite Soares (1995-2004?), secundado pelo arquitecto Jofre Bispo, modernizou todo o piso interino da igreja e algum mobiliário litúrgico bem como teve que lutar para que a Comissão da Porto 2001, Capital Europeia da Cultura assumisse as obras e respectivos custos dos estragos provocados por aquela nos estuques da capela-mor. Mais recentemente, o padre Agostinho Pedroso concluiu um dos projectos mais desejados da paróquia, a recuperação do orgão de tubos da igreja e reformou parte substancial da cobertura exterior do templo portuense.

carlos ruão roteiro histórico-artístico da igreja de santo ildefonso do porto 2012 (no prelo)

nota: todas as semanas se publicará um capítulo deste texto inédito.

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