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Referência incontornável do cartum, Henfil faria 80 anos

Polêmico incorrigível, sua incorreção política seria problema hoje em dia

Publicado segunda-feira, 05 de fevereiro de 2024 às 06:30 h | Autor: Chico Castro Jr
Irreverente, ele não tinha medo de se indispor com quem fosse para defender o que acreditava
Irreverente, ele não tinha medo de se indispor com quem fosse para defender o que acreditava -

Não é fácil ser humorista. O que alguns acham engraçado pode ser ofensa para outros. Hoje em dia, então, a atividade está ainda mais complexa: de um lado, paranóicos de extrema direita veem “lacração” até na sombra. Do outro, grupos identitários são muito vigilantes – não sem razão – para evitar que sua etnia (ou fé, ou sexualidade) não seja exposta ao ridículo. É de se pensar como estaria atuando o inesquecível e incontornável Henfil, que hoje estaria completando 80 anos, nos tempos atuais.

A resposta ninguém tem, já que ele morreu aos 43 anos, em 1988, vítima da AIDS decorrente de uma transfusão de sangue. Henfil era hemofílico e precisava de transfusões periódicas, assim como seus irmãos mais ou menos famosos que ele, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (cuja vida foi recentemente adaptada em uma série na GloboPlay) e o músico Chico Mário, também já falecidos.

Para quem não está familiarizado com a figura, segue uma pequena amostra de como ele via seu trabalho: “A época do humor pelo humor já passou. Hoje o humor é jornalístico, tem de ser engajado, tem de ser quente. A fase da comunicação pura e simples acabou. O humor agora é de identificação. O meu objetivo é identificação. Procuro dar meu recado através do humor. Humor pelo humor é sofisticação, é frescura. E nessa eu não estou: meu negócio é pé na cara. E levo o humorismo a sério”, reivindicou ele em entrevista à revista Veja, em abril de 1971.

Nascido Henrique de Souza Filho em 05 de fevereiro de 1944, em Riberão das Neves (MG), Henfil foi, sem medo de errar, um dos mais brilhantes, polêmicos, inquietos e aguerridos humoristas e cartunistas brasileiros de todos os tempos. Iniciou a carreira em 1964, ainda na imprensa mineira. Os Fradins, provavelmente seus personagens mais famosos, nasceram ainda nesta época. No fim da década, fixou-se no Rio de Janeiro, atuando no semanário O Pasquim e no Jornal do Brasil, de onde decolou para a fama nacional.

Nos anos 1970, Henfil voou para os Estados Unidos, em parte para respirar ares mais leves e em parte para buscar um tratamento mais avançado para a sua condição. Não achou nem um, nem outro, como pode-se ver no livro Diário de um Cucaracha, no qual publicou suas muitas cartas à mãe, irmãos e amigos. Chegou a vender as tiras d’Os Fradins para um syndicate (órgão que distribui cartuns e tiras para os jornais estadunidenses).

Rebatizados The Mad Monks, a tira foi retirada dos jornais em poucos meses, devido à enxurrada de cartas escandalizadas dos conservadores leitores denunciando que ele era "anti-americano", "anti-Deus" e "sick" (doentio).

No livro Henfil: O Humor Subversivo (Expressão Popular, 2008), o Professor Adjunto de Relações Internacionais (INEST/UFF) e cartunista Marcio Malta (que assina seus cartuns como Nico), afirma que a condição de hemofílico de Henfil foi o que o salvou (junto a Millôr Fernandes) de ser preso em 1970, junto com toda a redação d’O Pasquim: “A ditadura tinha receio de lidar com Henfil, pois ele era um mártir em potencial. Sendo frágil por conta da hemofilia, qualquer agressão poderia mata-lo. A ditadura entendia isso. Inquieto, ele sabia tirar partido de tão desfavorável situação para ser mais atrevido e potente em suas seguidas e arriscadas atitudes em nome da liberdade”.

Márcio, cujo alter ego Nico enviou com exclusividade ao jornal A TARDE o cartum do Henfil fazendo “top top” que adorna esta capa, nota que “hoje em dia se fala cada vez menos de Henfil. Falo respaldado inclusive por um editor que relançou um livro com entrevistas de Henfil recentemente, e disse que o desconhecimento do público foi a tônica”, observa.

Para ele, a data de hoje é uma boa deixa para trazê-lo de volta ao conhecimento público: “A contribuição de Henfil é inestimável. Não somente para o humor brasileiro, mas em termos de contribuição cidadã e política. Através de seus desenhos, soube combater a ditadura militar de uma forma extremamente popular e acessível ao grande público. Essa data em que comemoraria 80 anos é uma ótima oportunidade para aqueles que conhecem Henfil o revisitarem. E para as novas gerações, uma chance de conhecer a sua arte única e a verve inigualável do artista. Os temas continuam atuais e sua ironia serve para atiçar a reflexão".

Matéria básica

Mineiro como o octogenário do dia, o cartunista de A TARDE Cau Gomez iniciou a carreira no mesmo jornal em que Henfil, o Diário de Minas. “Henfil foi um predestinado a mudar toda a estrutura e o pensamento sobre como desenhar cartuns e até caricaturas no Brasil e no mundo”, afirma.

“Ele foi inovador ao desenhar com traços cirúrgicos cheios de movimentos, o que deixou raízes profundas na arte do cartum. E as suas pilhérias e militância política causaram impactos e transformaram a grande imprensa, causando uma revolução na maneira efêmera de se lidar com os fatos e com as notícias. Só não consigo entender como a sua cidade natal, Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, desconhece ou ignora este fato histórico e deixa de celebrar culturalmente sua obra”, percebe Cau.

Grande pesquisador baiano das HQs, Gutenberg Cruz também nota a falta que faz um Henfil nos dias de hoje. “Sei que o momento é outro, a geração também, mas precisamos desse humor afiado, expressando, através de suas histórias em quadrinhos, uma postura combativa e irreverente contra o autoritarismo no âmbito político e dos costumes e o moralismo das classes médias”, afirma.

Já Flávio Luiz, premiado cartunista e quadrinista baiano residente em São Paulo, acredita que, hoje, “Legal e seguro  é rir de babaquice. Hoje, Henfil teria mais dificuldade com quem o lesse do que com os fatos denunciados em suas charges. Ele teria que se preocupar com os defensores do indefensável, os detentores de verdades imaculadas e /ou do politicamente correto. Isso cansa”, afirma.

“Hoje temos um caminhão de cuidados para levarmos em conta e perde-se muito nesse sentido. Então, viva Henfil, matéria básica para quem quer se aventurar no ramo do cartum, principalmente no nosso país”, conclui Flavio.

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