Fahrenheit 451

Marcelo Guimarães Lima, Noite Púrpura, pintura digital, 2023.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO IANNACE*

Publicada em 1953 — há 70 anos —, a novela de Ray Bradbury está entre as obras do gênero distopia que se destacam por seus atributos ficcionais

1.

Publicada em 1953 – há exatamente 70 anos —, a novela Fahrenheit 451, do norte-americano Ray Bradbury (1920-2012), está entre as obras do gênero distopia que se destacam por seus atributos ficcionais; os romances Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, publicado em 1949, pertencem a essa família literária.

Assim começa um artigo cuja redação está inacabada, ocupando uma pasta de arquivo no meu computador. Seria encaminhado a um periódico que versou sobre a leitura na escola – porém, na ocasião do convite, o tempo escasso não permitiu que o enviasse ao conselho editorial da revista. Como há muitos anos leciono comunicação e semiótica na Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo e persisto, em meu plano de trabalho, na inclusão de obras universais (prosas clássicas que, via de regra, não assustem à primeira vista estudantes recém-egressos/as do ensino médio pelo número avantajado de páginas), considerei plausível despender apontamentos a respeito de Fahrenheit 451.

O nome (prossigo) confiado ao gênero traz na raiz o prefixo “dis”; remete, mas em travessia oposta, ao conceito desenvolvido por Thomas Morus em A Utopia (1516). Se, no relato do filósofo renascentista, o personagem Rafael se anima, como engenhoso orador, a discorrer ininterruptamente acerca de determinada comunidade que o acolheu por cinco anos — ali, as relações de convivência se pautam em protocolos éticos, assentados em princípios de igualdade e respeito, mediante leis justas, sem que haja privilégios a grupos ou indivíduos em particular –, a distopia esbanja, na contramão desses paradigmas, o caos e as condições injuriosas decorrentes da autocracia e da má governabilidade que pesam sobre o coletivo.

De fato, discutir narrativas distópicas implica apontar para Estados autoritários, ou seja, regimes que se caracterizam por ações truculentas, a impingirem censura e opressão a quem esboce resistência às normas instituídas.

Não são raras as produções literárias e cinematográficas que, ao retratarem esses aparelhos estadistas, destacam a presença de uma tecnologia digital a serviço de tais dirigentes, implantada justamente para assegurar vigilância. Lembre-se de que Orwell, na trama 1984, sublinha com acerto esta operação: câmeras instaladas nas fábricas controlam funcionários suspeitos de antagonizar a engrenagem da qual eles emergem como mão de obra ultrajada.

Textos verbais e audiovisuais conhecidos como distopia alumiam, sem dúvida, esse cenário que projeta o amanhã – um porvir eminentemente catastrófico (nessa ambientação irrompe, em larga medida, uma casta de indivíduos hipnotizada). Todavia, assomam às tessituras e aos longas-metragens sempre um ou mais sujeitos engajados que descobrirão caminhos inteligentes para burlar a massificação, visando reverter o quadro de colapso à sonhada normalidade.

Existe, ao menos, uma personagem que viola o bloqueio, rebela-se e procura convencer alguém de que é possível encontrar atalhos para reagir à manipulação; daí afiançar que a esperança não está de todo ausente desse grupo de histórias. Há, portanto, doses de utopia na distopia. Na concepção de Carlos Eduardo Ornelas Berriel, “a distopia, isto é, a ficção que cria os mundos mergulhados no pesadelo social […] são utopias de sinal trocado, chamadas de distopias — e sem essas obras estaríamos desarmados para compreender o mundo atual.”.[i]

A novela de Ray Bradbury abriga e mobiliza essas células temático-estruturais. Fabula-se a partir da ação de bombeiros treinados para localizar e queimar livros; eis que essa facção miliciana, provida pelo Estado a fim de salvaguardar a disciplina, executa a apreensão de homens e brochuras, em vez de apagar incêndios ou resgatar sobreviventes de naufrágios. Trata-se de pelotão treinado para, em atendimento a delações, invadir casas, incinerar suportes impressos e conduzir infratores à prisão. Os algarismos 451 equivalem à temperatura exata – em grau Celsius – que esbraseie as folhas de cada exemplar, a rigor vencido por altivas labaredas.

Ao prever o desaparecimento de leitores do cânone, Ray Bradbury alegoriza um futuro estéril (em sua novela, a experiência de leitura conferida às personagens restringe-se a HQs, cartoons, manuais– além, sobretudo, da recepção devota da mídia televisiva). Com efeito, proíbe-se a imersão na estética verbal porque ela incita o pensamento e açula a imaginação – faz brotar em cada um de nós, como bem disse Antonio Candido, “a quota de humanidade”[ii] necessária à vida em sociedade, já que encena a linguagem e permite “girar os saberes”, segundo Roland Barthes. A literatura, ressalta o professor do Collège de France, “não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens”.[iii]

A narrativa que completa sete décadas se recriou nas películas de François Truffaut,[iv] há 57 anos (seu Fahrenheit 451 data de 1966), e, recentemente, de Ramin Bahrani,[v] em 2018, bem como em Graphic Novels (2011), adaptação ilustrada por Tim Hamilton,[vi] com introdução do próprio Ray Bradbury. O filme de François Truffaut supera, por seus predicados artísticos, a trama que o originou. Fotografia e trilha sonora primorosas concorrem na construção de uma atmosfera lírica que, disfarçadamente, atenua (sem jamais apagar) a violência aterradora e alusiva ao nazifascismo, às câmaras de gás e à Guerra Fria.

2.

Na primeira semana deste dezembro de 2023, assinalava esses e outros pontos de tensão a respeito de Fahrenheit 451, após apresentar o longa-metragem de François Truffaut às minhas alunas e aos meus alunos. O calor na sala de aula exigia que o ventilador ficasse ligado, por isso a necessidade de falar alto e dobrar a atenção na escuta.

Na interlocução, deu-se o resgate de passagens criativas do filme –a inventividade no correspondente ao vaivém de um monotrilho que desliza em posição sui generis, em marcha paralela ao contrato matrimonial e aos passos mecanizados da família burguesa; a duplicidade (Linda, a personagem que atua como esposa do protagonista, e Clarisse, a jovem professora, são representadas pela mesma atriz); espaço e mobiliário residenciais são eleitos para funcionar como esconderijos de livros (D. Quixote figura como o primeiro título oculto, a despontar no lustre da sala de visitas de um apartamento); o alumbramento do bombeiro Guy Montag ante a descoberta do registro das palavras, grafadas no papel, em condição metafórica…

Já se aproximavam as 18 horas do dia; precisava encerrar a aula, e a discussão em torno da queima de livros deveria se articular com o convite que eu lançara atinente à fruição de um clássico — o debate estava agendado para a semana posterior. Seis obras haviam sido indicadas: A morte de Ivan Ilitch, O Nariz, O Estrangeiro, Bartleby, o Escrivão, Na Colônia Penal e Lavoura Arcaica. Comentários me chegavam por meio de vozes abafadas (dois alunos asseveravam sobre ChatGPT; uma aluna se referia a um tio que teria lido Os Irmãos Karamázov, obra afogueada no longa-metragem, e indicara a ela a leitura; alguém, ao fundo, dissera que leu Edgar Allan Poe).

Eu me punha a falar de Lolita e comentava a predição de Vladimir Nabokov por borboletas. Houve risos devido à impossibilidade de se decorar um romance, recitando-o para não o esquecer, à semelhança dos homens-livros presentes no episódio final do filme de François Truffaut.

Nesse ínterim, em pé, visualizava mochilas no chão e ao lado de carteiras. Identifiquei uma ou outra edição (Lavoura Arcaica, A morte de Ivan Ilitch…), avistei um livro grosso de gênero fantasia, com o qual antipatizo. E o bizarro foi que mirei um aparelho celular de vidro trincado apoiado na capa de O Nariz, a cobrir as letras finais do sobrenome de Nikolai (sabe-se lá a razão, li – em vez de Gogol – Google).

Recordo-me de que nesse instante um aluno organizava, embora sem êxito, uma reflexão que comparava o conto de Gogol com Pinóquio; lembro que me esforçava, em face do calor perturbador, para não perder a concentração e fracassar nas observações que empreendia com base em um capítulo de A Leitura, de Vincent Jouve, bem como nas valiosas propostas de definição de Italo Calvino em seu ensaio Por que ler os clássicos – estas duas, propriamente: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” e “Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele reconhece logo o seu lugar na genealogia.”[vii].

A aula não se estendeu por muito tempo. Finalizou às 18h30.

* Ricardo Iannace é professor do programa de pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico (Edusp). [https://amzn.to/3sXgz77]

Referência


Ray Bradbury, Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Tradução: Cid Knipel, São Paulo, Globo, 2009. [https://amzn.to/3H4kwup]

Notas


[i] Carlos Eduardo Ornelas Berriel, “Prefácio”, In Lucídio Bianchetti e Juares da Silva Thiesen (Orgs.), Utopias e Distopias na Modernidade. Educadores em Diálogo com T. Morus, F. Bacon, J. Bentham, A. Huxley e G. Orwell. Ijuí, Ed. Unijuí, 2014, p. 17.

[ii] Antonio Candido, “O Direito à Literatura”, Vários Escritos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo, Duas Cidades, 1995, p. 249.

[iii] Roland Barthes, Aula,trad. Leyla Perrone-Moisés, São Paulo, Cultrix, 1989, p. 19 [grifo do Autor].

[iv] FAHRENHEIT 451. Direção: François Truffaut. Estados Unidos, Universal, 1966 (111 min, son., color.).

[v] FAHRENHEIT 451. Direção: Ramin Bahrani. Estados Unidos, HBO Films, 2018 (100 min, son., color.).

[vi] Tim Hamilton, Fahrenheit 451: a Graphic Novel Autorizada por Ray Bradbury, trad. Ricardo Lísias e Renato Marques, São Paulo, Globo, 2011.

[vii] Italo Calvino, Por que Ler os Clássicos”, in Por que Ler os Clássicos, trad. Nilson Moulin, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, pp. 11 e 14, respectivamente.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ronald León Núñez Manchetômetro José Dirceu Boaventura de Sousa Santos Henri Acselrad João Carlos Salles Tarso Genro Ronaldo Tadeu de Souza Alexandre de Lima Castro Tranjan Claudio Katz Luís Fernando Vitagliano Bento Prado Jr. Luis Felipe Miguel Luiz Renato Martins Rafael R. Ioris Luiz Werneck Vianna Maria Rita Kehl Leonardo Boff Eleutério F. S. Prado Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Andrés del Río Gilberto Lopes Benicio Viero Schmidt Jean Pierre Chauvin Tales Ab'Sáber Michel Goulart da Silva Gabriel Cohn Osvaldo Coggiola Elias Jabbour Atilio A. Boron Ari Marcelo Solon José Machado Moita Neto Jorge Luiz Souto Maior Leonardo Sacramento Eleonora Albano Bernardo Ricupero Fernando Nogueira da Costa Berenice Bento Thomas Piketty João Paulo Ayub Fonseca Ricardo Fabbrini Plínio de Arruda Sampaio Jr. Francisco Fernandes Ladeira Tadeu Valadares Daniel Brazil Priscila Figueiredo Antonio Martins Vanderlei Tenório Slavoj Žižek Francisco de Oliveira Barros Júnior Paulo Sérgio Pinheiro Salem Nasser Marilena Chauí João Adolfo Hansen Henry Burnett Marcus Ianoni Marcos Silva Everaldo de Oliveira Andrade Heraldo Campos Milton Pinheiro Alexandre Aragão de Albuquerque Ronald Rocha Marilia Pacheco Fiorillo Marjorie C. Marona Celso Frederico Renato Dagnino Michael Löwy Antonino Infranca Carla Teixeira Juarez Guimarães Sandra Bitencourt Sergio Amadeu da Silveira Luiz Roberto Alves Lucas Fiaschetti Estevez Leda Maria Paulani Flávio R. Kothe Dênis de Moraes João Feres Júnior José Micaelson Lacerda Morais Julian Rodrigues Ricardo Antunes Luiz Eduardo Soares Eugênio Bucci Ricardo Musse Daniel Costa Mariarosaria Fabris Ricardo Abramovay Daniel Afonso da Silva Rodrigo de Faria Manuel Domingos Neto Ladislau Dowbor José Geraldo Couto Marcelo Guimarães Lima Vinício Carrilho Martinez Annateresa Fabris Valerio Arcary Rubens Pinto Lyra Érico Andrade Paulo Nogueira Batista Jr Matheus Silveira de Souza Eugênio Trivinho Paulo Martins Paulo Fernandes Silveira Gilberto Maringoni Liszt Vieira Gerson Almeida Eliziário Andrade Luiz Marques Samuel Kilsztajn Lincoln Secco Marcos Aurélio da Silva Caio Bugiato João Lanari Bo Otaviano Helene João Carlos Loebens Celso Favaretto Dennis Oliveira Alexandre de Freitas Barbosa Armando Boito José Raimundo Trindade Vladimir Safatle Kátia Gerab Baggio Anselm Jappe Paulo Capel Narvai Anderson Alves Esteves Walnice Nogueira Galvão Fábio Konder Comparato Luiz Bernardo Pericás Jorge Branco Yuri Martins-Fontes André Singer Andrew Korybko Luciano Nascimento Lorenzo Vitral Carlos Tautz Alysson Leandro Mascaro Afrânio Catani João Sette Whitaker Ferreira Fernão Pessoa Ramos Jean Marc Von Der Weid Bruno Fabricio Alcebino da Silva Eduardo Borges Marcelo Módolo José Luís Fiori José Costa Júnior Francisco Pereira de Farias Chico Whitaker Luiz Carlos Bresser-Pereira Denilson Cordeiro Remy José Fontana Chico Alencar Flávio Aguiar Igor Felippe Santos André Márcio Neves Soares Mário Maestri Bruno Machado Airton Paschoa Antônio Sales Rios Neto Leonardo Avritzer Michael Roberts

NOVAS PUBLICAÇÕES