Filhos de Cã, filhos do cão

Kazimir Severinovich Malevich, Garotas no campo, 1928-32
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Por GREGORIO CARBONI MAESTRI*

Comentário sobre o livro recém-publicado de Mário Maestri

Desde que sou gente lembro de meu pai trabalhando. Ele não era como os outros pais. Ele era de esquerda, e, os outros, indiferentes à ditadura. Eu sonhava em ter um papai com gravata. Mas ele não usava gravata. Os pais dos meus amigos iam para o trabalho de gravata. O meu ficava sentado escrevendo, da manhã à noite, sobre a escravidão. Nada muito entusiasmante para uma criança. Em casa, eu me vestia de super-homem, com uma toalha como capa. Quando se desatava, eu entrava no escritório e o interrompia, para que me amarrasse a toalha ao pescoço. O escritório era um mundo à parte: na parede havia gravuras bizarras. Eu tentava não olhar. Mais tarde, entendi que eram plantas de barcos negreiros.

Vivíamos em um condomínio, a Equitativa, de gente de esquerda, entre os mais seguros do Rio de Janeiro, graças ao bom convívio a comunidade do morro que o rodeava. Os moradores da favela usavam as infraestruturas do condomínio: rampa de acesso, parada de ônibus, etc. Em troca, vivíamos em uma santa paz. Um sucesso! Sobretudo para as crianças : brincávamos na rua, o dia inteiro, às vezes com os meninos do morro, sem pais preocupados. Coisa rara no Rio de Janeiro. Um aparente multirracialismo com limites ideológicos.

Um dia, em casa, repeti uma piada que escutara de meus amiguinhos, os dos pais com gravata. Uma piada racista. Eu não sabia o que era racismo, o que era raça, mas repetia a piada porque todos riam. Foi então que levei o único tapa que me deu meu pai, não muito forte. Acho que agiu sem pensar. Meus pais decidiram viver na Itália, preocupados com minha escola e temendo que eu virasse um boyzinho classe média. Na Itália, naqueles anos, os trabalhadores disputavam o governo. Boa parte da população era comunista. Na minha escola pública, eu tinha mais colegas negros do que no Brasil.

Em Milão, meu pai continuou a escrever e estudar a escravatura. Eu não compreendia o que era a escravidão: me parecia algo quase impossível. Não entendia por que eram todos negros. Em casa e na escola, fui criado nos mitos da Revolução, com ídolos como Robespierre, Lênin, os partigiani, como meu tio Pierino, que lutou com Tito, na Iugoslávia. A Comuna de Paris, o Exército Vermelho, o Vietnam, as lutas operárias nos anos 1970… O que me chateava um pouco, com a escravatura, era a ausência de vitórias. E de heróis. Não havia revoluções.

 

Vitórias e revoluções

Nos livros da biblioteca, eu procurava ilustrações. Elas eram tristes, com chicoteados, sofrimento… Me impressionavam as do J. Baptiste Debret, como Um jantar brasileiro, com bebês-cativos nus, no chão, alimentados por elegantes patrões, como cachorrinhos. Me perguntava : “São os filhos deles ou uma propriedade?” Um dia recebi um livro enorme. Era a história ilustrada da Revolução do Haiti para crianças. Foi um momento importante. Descobri que os escravos fizeram uma revolução! E, havia um grande herói! Toussaint Louverture, vestido de revolucionário francês! O que era também parte de minha mitologia infantil.

O entusiasmo inicial foi grande, a tristeza, ao avançar das páginas, também. Decepções. A República francesa restabelecera a escravidão. E, no final, a ilha vitoriosa, foi cercada, para que a revolução não se esparramasse pelas Américas. E a revolução ficou presa na ilha. Tristeza profunda. Mas comecei a entender que era assim, com o cativeiro. E não apenas com ele. Que havia sagas populares sem vitórias totais. Foi um momento em qual senti o gosto amargo do real, sem happy end. Aos 11, de volta ao Brasil, pouco após o Centenário do fim da escravatura, assisti na TV Globo pró-ditadura o anúncio do “fim da história”. Os jornalistas globais, de gravata, festejavam o fim do “comunismo”. Era a queda do muro de Berlim, em 1989. Meu pai me olhou, e disse: –“ filho, se prepare, vão ser décadas de barbárie, sinto muito por ti”. E acertou.

Foi outro banho de realidade e, talvez, o fim da minha infância. Anos observando navios negreiros e ilustrações de trabalhadores chicoteados, e de crianças descalças, me ajudaram a perceber o que seria a barbárie. Meu pai continuou estudando e escrevendo sobre escravatura, com hiatos, durante quatro décadas. Talvez pelo ressentimento inconsciente com os oprimidos, por me roubarem tanto tempo paterno, terminei nunca lendo seus livros sobre a escravatura, em francês, português, italiano, como L’Esclavage au Brésil, Lo Schiavo Coloniale, Depoimentos de Escravos Brasileiros, A Linguagem Escravizada, o último, escrito com minha mãe. Uma amiga me disse que é típico dos filhos de escritores não lerem os livros dos pais.

Desta vez, por dizer que é o último trabalho sobre a escravidão que escreverá, decidi ler Filhos de Cã, Filhos do Cão: o trabalhador escravizado na historiografia brasileira. Ensaio de Interpretação Marxista. Após terminar a obra de quase quatrocentas páginas, vejo, talvez pela primeira vez, aos 44 anos, o carácter totalizante de uma vida dedicada à restauração e à compreensão da história da escravidão no Brasil.

 

A questão escravista

Terminei o livro, de leitura fácil, límpida e fluida, em poucos dias. Ele desenha um imenso afresco, resultado de um grande esforço teórico e político, em ambiciosa aventura intelectual de toda uma vida. Um trabalho que se coloca em linha com o empreendimento titânico do seu maestro Jacob Gorender, autor de O escravismo colonial, ao qual rende enorme homenagem. Para mim, Gorender era apenas um velhinho simpático, que eu encontrava sentado à mesa, ao voltar da escola primária, em Milão, quando ele passou conosco diversos dias.

Filhos de Cã, Filhos do Cão é um estudo sistemático, denso e sintético da história e da historiografia da escravidão, um resumo de pesquisas iniciadas nos anos 1970, em boa parte publicadas em artigos isolados. Em uma época em que a historiografia da África negra pré-colonial e da escravidão era pouco estudada no Brasil. Em linguagem democrática, traça uma linha de fatos do sistema escravista, de suas origens, no mundo grego e romano, passando pela sociedade medieval portuguesa e sua quase esquecida presença dos trabalhadores negro e mouro escravizados (fascinantes, as páginas de “Zurara: a Narrativa Fundadora do Racismo”). Seguem narrativas sobre a relação entre Igreja e escravidão na Antiguidade e Idade Média, com protagonistas surpreendentes pela modernidade, como Fernão de Oliveira e António Sanches, o “judeu abolicionista”. E muitas páginas sobre o Brasil de 1500 à Abolição.

A segunda parte do livro discute as representações do escravizado de 1888 à atualidade. No século XIX, destaca-se a abordagem do cativo na literatura ficcional brasileira, com ênfase em Castro Alves, o “poeta da Revolução”. Discute o sentido revolucionário do abolicionismo brasileiro — “A Longa Agonia da Escravidão”, “A Revolução Abolicionista”, “Abolicionismo Radical”, “Contra Revolução Republicana”. É ampla a apresentação da crítica de Gorender, em O Escravismo Colonial, de 1978, da formação social brasileira pré-abolição, a partir da categoria “modo de produção escravista colonial”, que desestabilizou, por anos, as visões tradicionais sobre a formação social brasileira.

Filhos de Cã, Filhos do Cão nos explica o sentido da tensão revolucionária, de baixa intensidade, no silêncio, no anonimato, dos sem nome, na desobediência, nos suicídios, nas revoltas, na rebeldia quotidiana, na “lentidão” voluntária no trabalho, nos quilombos, que desembocariam na Abolição, em 1888, proposta como a única revolução social até hoje vitoriosa no Brasil. Como propõe o sub-título do trabalho, a narrativa pauta-se, sempre, no método e em categorias marxistas.

 

Historiografia, ontem e hoje

O objetivo e momento alto de Filhos de Cã, Filhos do Cão é a desconstrução das representações da historiografia oficial em relação ao escravizado. Em “O conde de Gobineau e a Origem do Racismo Científico”, “Cativo dedicado”, “Desescravizando a linguagem”, discute-se como personagens como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e o distinguido Gilberto Freyre, anestesiaram e esterilizaram a compreensão real do fenômeno. Este vade-mécum sobre a escravidão entra na liça com os ideólogos do poder, sempre de gravatas, que, nos dias de hoje, devotos das elites, operam manobras revisionistas racistas, identitárias, classistas.

Sem explicitar, o livro toca muitos temas do identitarismo. Aqueles que, hoje, monopolizando o debate acadêmico e da esquerda, e, com propostas aparentemente progressistas, desviam debate em um sentido liberal, de sabor USA. Refiro-me ao feminismo de salão. Aos estudos de gênero despreocupados com os explorados Às obsessões LGBTQ+ pequeno-burguesas. E, sobretudo, aos estudos sobre a “raça”, que, com apelações tais como “pós-colonialismo” e “descolonização”, injetam o sonífero pós-moderno na historiografia e ciências sociais.

Filhos de Cã, Filhos do Cão constitui ponto de não retorno em muitas das questões abordadas. E isso, graças, também, ao carácter dramático do escravismo, que ajuda a esclarecer o sentido social, político e ideológico das questões racialistas, de gênero, de filiação, de sexualidade, de identidade, etc. Sobretudo, a narrativa tira o trabalhador escravizado – quase nunca tratado como “escravo” – de sua função de “totem” e de “fétiche”, em que foi encapsulado, na historiografia de boudoir e nas novas obsessões de um pedaço da classe média negra. E apresenta o escravismo como também um fenômeno determinante da mercantilização globalizada pré-capitalista.

O objeto em estudo é o trabalhador sem liberdade, proto proletário brasileiro, ser social determinante, central, cuja luta, sempre presente, raramente se verbaliza. No livro, não há espaço para o cativo como vítima sacrificial e passiva. Apresentando a escravidão e o escravizado como parte de uma totalidade, permite suas inserções ativas no devir histórico e melhor compressão do atual Brasil. Há dignidade e respeito na narrativa, que fixa o leitor às páginas, sobretudo ao empreender a crítica dura, não raro irônica, de sandices historiográficas referenciais sobre a escravidão. É memorável a crítica da historiografia bem comportada de Kátia de Queirós Mattoso, em “Como Era Gostoso Ser Escravo No Brasil”. Em sua última parte, o livro empreende um j’accuse sistemático das misérias do colaboracionismo acadêmico.

 

Ford Foundation

Ao avançar na narrativa, é difícil acreditar no que se lê, não quanto às atrocidades da existência dos “filhos de cão”, mas sobre os silêncios e encobrimentos que se seguiram àquela terrível fase histórica. Sobretudo, como tal sofrimento foi naturalizado, banalizado, adormecido, simplesmente negado, por uma historiografia cínica e oportunista, defensora do fim da história, do socialismo, da luta de classes, no passado e no presente. Discursos que são expressões da penetração e domínio yankee nem sempre silencioso nas ciências sociais, sob as bênçãos da Ford Foundation e tantos outros apoiadores.

A relativização, diminuição, esterilização do carácter opressivo da escravidão contribui a tornar ininteligível a compreensão da situação dos trabalhadores e da sociedade brasileira atual. Agora, observamos, em direta, nas médias pró-estadunidenses, fenômeno similar, com a relativização dos membros neonazistas das milícias e do exército ucraniano, apresentados por jornalistas, professores, analistas e políticos, como “inimigos que temos que apoiar”. Se Freyre e seus epígonos diziam que a “escravatura não fora assim tão dura”, para os jornais mainstream, nazismo “não é assim tão grave” se é “contra os russos”. Pôr-nos longe da realidade é pôr-nos à margem da possibilidade de construir superações revolucionárias.

Filhos de Cã, Filhos do Cão é um prontuário histórico, dos inícios dos tempos aos dias atuais, sem heróis resplandescentes e celebrações feéricas. Essa viagem histórica e política apaixonante, em linguagem e silêncios não raros amargos, característicos da longa e aparentemente apática, mas terrivelmente tensa desaventura da escravidão, nos deixa uma profunda amargura. Porém, também nos propõe a tomada de consciência sobre a necessidade de uma historiografia científica, séria, totalizante, popular, socialista. O livro termina com uma frase simples, sem retórica, sem conclusões. Como se a continuação tivesse ainda que ser escrita, por nós, e pelos trabalhadores. Um The End que nos deixa diante de um vazio, o da barbárie, e de um grito, o da necessidade de libertação dos oprimidos.

Filhos de Cã, Filhos do Cão é, também, o relatório científico de uma vida de um historiador que, armado do materialismo histórico, procurou manter-se ao lado dos oprimidos. Uma escolha de campo que custou, a este professor sem gravata, ataques, pela repressão, nos tempos da ditadura, e pelos donos do poder, depois deles. (Safanões que me atingiram, alguns, de carambola, quando menino.) Longos anos de isolamento, de censuras, de cancelamentos por lotes de universitários-coxinhas. Mas que não impediu, ao Mário Maestri, para sua enorme surpresa, encontrar-se, em 2022, entre os 200 intelectuais mais citados da América Latina no campo das ciências sociais. Sempre sem gravata.

*Gregório Carboni Maestri é professor de arquitetura na Universidade Livre de Bruxelas e na Université Catholique de Louvain.

 

Referência


Mário Maestri. Filhos de Cã e filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira. Porto Alegre, FCM Editora, 2022.

 

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