Introdução ao método de Leonardo da Vinci

Willem de Kooning, Untitled XIX, 1977
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ALFREDO BOSI*

Comentário sobre o livro de Paul Valéry

A Introdução ao método de Leonardo da Vinci ilustra com perfeição a ideia de que é o ensaísta que constrói o objeto do seu ensaio. O puro artista da mente, o gênio da fantasia exata erigido por Paul Valéry como o supremo ideal da sua própria arte de escritor, é um dos Leonardos possíveis que a memória do Renascimento italiano nos legou. Entender essa imagem de Leonardo é a via real para compreender a poética de Valéry.

O poeta-crítico tinha apenas 23 anos, em 1894, quando redigiu a primeira versão desse texto, que, no entanto, consegue levantar problemas originais em torno de um mito literalmente submerso por 300 anos de grandes louvores e miúdas curiosidades. Valéry, com um golpe de intuição certeira, foi logo ao cerne da questão, ignorando a massa de escritos anedóticos que obstruíam a visão do gênio. Importava-lhe descobrir como Leonardo pensava o seu próprio modo de conhecer e de criar. E o ensaio cumpriu fielmente seu propósito.

O poeta de Charmes já se revelava, nestes seus primeiros escritos, refratário àquele hábito intelectual que o nosso irreverente José Paulo Paes chamava “obnubilação bibliográfica”, que é o vezo tedioso de só enxergar o seu objeto através das lentes de outros leitores, o que resulta em uma fieira pedante de citações. Como Leonardo, Paul Valéry queria começar olhando o mundo com os seus próprios olhos.

O que Valéry colhe no Tratado da pintura é, em primeiro lugar, o elogio vibrante que o artista fazia da imagem e, portanto, da visão como o caminho por excelência do conhecimento. Sabe-se a que extremos chegou Leonardo na sua comparação das artes plásticas com as artes da palavra, relegando estas ao modesto lugar platônico de cópias de segunda mão, sombras de objetos que o pintor -e só o pintor- transpõe e fixa com o seu engenho ao mesmo tempo mimético e construtivo.

Valéry, retomando livremente Leonardo, diz: “A maioria das pessoas vê com o intelecto muito mais frequentemente do que com os olhos. Em vez de espaços coloridos, elas tomam conhecimento de conceitos. Uma forma cúbica, esbranquiçada, vista em altura, e vazada de reflexos de vidro, é, para elas, imediatamente uma casa: a Casa! Ideia complexa, acorde de qualidades abstratas. Se elas se deslocam, o movimento das fileiras de janelas e a translação das superfícies que desfigura continuamente as suas sensações lhes escapam -pois o conceito não muda”. E adiante: “Mas as pessoas se deleitam com um conceito que pulula de palavras”.

O campo infinitamente vário do visível com as suas modulações de luz e sombras (como não pensar no mestre do sfumato?) ou o movimento incessante das ondas do mar, que a linha horizontal do pensamento abstrato ignora, são para o artista os verdadeiros objetos de sua invenção plástica. É o que Valéry sugere nas suas anotações à margem da Introdução ao método de Leonardo da Vinci: “Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que nós não tínhamos visto o que vemos”. E em nível mais alto de generalização: “A educação profunda consiste em desfazer a primeira educação”. Trata-se de uma renovada disciplina do olhar e pelo olhar.

Valéry, atento à aventura da mente criadora, parece não se interessar pela gênese cultural das ideias de Leonardo. É o processo interno de um pensamento ousado que o atrai. No entanto, as ideias têm a sua história e a sua função no âmbito de cada momento da arte ocidental. Leonardo conheceu, na Florença dos fins do século 15, a convivência tensa do idealismo dos neoplatônicos prestigiados no círculo de Lorenzo de Médici e o naturalismo pujante do novo ethos renascentista.

Quem examina de perto os seus fragmentos – às vezes concisos como enigmas – pode recortar ora passagens em que a mente humana é exaltada em si mesma como infinitamente mais rica do que a natureza, ora descrições entusiásticas do corpo humano, de que ele foi um dos primeiros anatomistas, ou da paisagem toscana ou alpina, onde tudo é cor, movimento, vida.

No primeiro caso, a pintura é cosa mentale: objeto da inteligência elaborado com hostinato rigore (“hostinato“, com “h”, em vez do correto “ostinato“, tem a ver com um Leonardo alheio à erudição letrada do seu tempo…). Trata-se aqui do rigor geométrico da perspectiva, criação então recente e que subordinava a matéria da visão à racionalidade de um olho centralizador. A perspectiva era, para Leonardo, a ponte que unia arte e ciência.

No segundo caso, a pintura é técnica em perene estado de experiência e invenção, perícia no uso dos materiais com o fim de figurar e transfigurar a variedade das formas corpóreas, os matizes, o jogo da luz e da sombra. Leonardo, no dizer de Valéry, é o “mestre dos rostos, das anatomias, das máquinas, aquele que sabe do que se faz um sorriso”.

De todo modo, Valéry alcançou reconstituir um artista-modelo intelectualmente coeso, um pensador que não só experimenta sem cessar, mas também reflete sobre o sentido do seu trabalho.

Não é possível nem desejável resumir as sutis observações que se multiplicam ao longo da Introdução ou na “Nota e Digressão”, de 1919; ou enfim na carta a Léo Ferrero, publicada em 1929 sob o título de “Leonardo e os Filósofos”. Este último texto é particularmente rico de reflexões ainda bastante atuais sobre o caráter redutor e uniformizante das estéticas que se pretendem universais. Em contraponto, o crítico valoriza as descobertas que os próprios poetas e pintores fazem quando falam da sua arte.

*Alfredo Bosi (1936-2021) foi professor Emérito da FFLCH-USP e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Autor, entre outros livros, de Arte e Conhecimento em Leonardo da Vinci (Edusp).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo / Jornal de Resenhas no. 34, em 10/01/1998.

Referência


Paul Valéry. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. Tradução de Geraldo Gérson de Souza. São Paulo, Editora 34.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Micaelson Lacerda Morais José Costa Júnior José Machado Moita Neto Antônio Sales Rios Neto Anselm Jappe João Sette Whitaker Ferreira Tales Ab'Sáber José Dirceu Paulo Fernandes Silveira Ricardo Antunes Manchetômetro Daniel Brazil Julian Rodrigues Mário Maestri Mariarosaria Fabris Matheus Silveira de Souza Airton Paschoa Salem Nasser Chico Whitaker Bernardo Ricupero Flávio R. Kothe Eugênio Trivinho Antonino Infranca Jorge Luiz Souto Maior Francisco de Oliveira Barros Júnior Paulo Martins Marcelo Módolo Marcelo Guimarães Lima Valerio Arcary Jean Pierre Chauvin José Geraldo Couto Slavoj Žižek Bruno Machado Henry Burnett Manuel Domingos Neto Rubens Pinto Lyra Luiz Bernardo Pericás Carla Teixeira Samuel Kilsztajn Luiz Renato Martins Remy José Fontana Fernão Pessoa Ramos Luis Felipe Miguel Eleutério F. S. Prado Ricardo Fabbrini Berenice Bento Marilena Chauí Alexandre de Freitas Barbosa Lincoln Secco Priscila Figueiredo Everaldo de Oliveira Andrade Ricardo Abramovay Gilberto Maringoni Gilberto Lopes Kátia Gerab Baggio Dennis Oliveira Ladislau Dowbor Michael Roberts Marcos Silva Annateresa Fabris Daniel Afonso da Silva Chico Alencar Anderson Alves Esteves Tarso Genro Celso Favaretto Francisco Fernandes Ladeira André Singer Vanderlei Tenório Otaviano Helene Alexandre Aragão de Albuquerque Ari Marcelo Solon Osvaldo Coggiola Marcos Aurélio da Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Werneck Vianna Ronald Rocha Denilson Cordeiro Gerson Almeida Rodrigo de Faria Plínio de Arruda Sampaio Jr. Andrés del Río Renato Dagnino Vladimir Safatle Walnice Nogueira Galvão Milton Pinheiro Ronaldo Tadeu de Souza Michel Goulart da Silva Elias Jabbour Leonardo Sacramento José Luís Fiori João Lanari Bo Andrew Korybko Ronald León Núñez Rafael R. Ioris Atilio A. Boron Juarez Guimarães André Márcio Neves Soares Bento Prado Jr. Dênis de Moraes Maria Rita Kehl Marjorie C. Marona Leda Maria Paulani Luís Fernando Vitagliano Lucas Fiaschetti Estevez Eugênio Bucci Leonardo Boff Eduardo Borges Flávio Aguiar Boaventura de Sousa Santos Érico Andrade João Carlos Loebens Sergio Amadeu da Silveira Leonardo Avritzer Daniel Costa Jorge Branco Marilia Pacheco Fiorillo João Carlos Salles Yuri Martins-Fontes Tadeu Valadares Thomas Piketty Ricardo Musse Paulo Capel Narvai Luiz Eduardo Soares Heraldo Campos Igor Felippe Santos Alysson Leandro Mascaro Benicio Viero Schmidt Lorenzo Vitral Eleonora Albano Francisco Pereira de Farias Fernando Nogueira da Costa Carlos Tautz Caio Bugiato Liszt Vieira Celso Frederico Luiz Marques Eliziário Andrade Henri Acselrad Fábio Konder Comparato Luciano Nascimento Armando Boito Antonio Martins Michael Löwy João Adolfo Hansen José Raimundo Trindade Jean Marc Von Der Weid Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Gabriel Cohn Sandra Bitencourt Luiz Carlos Bresser-Pereira Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Roberto Alves Vinício Carrilho Martinez Afrânio Catani João Feres Júnior Paulo Nogueira Batista Jr Alexandre de Lima Castro Tranjan Marcus Ianoni Claudio Katz João Paulo Ayub Fonseca

NOVAS PUBLICAÇÕES