March 29, 2017
PORTUGAL > CRISTIANO MASCARO

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O  consagrado arquiteto português Álvaro Siza diz que qualquer um pode hoje fotografar a cidade ou um fragmento desta. Ele tem toda razão, quando pensamos na profusão de fotógrafos espalhados pelo mundo a caminhar e disparar suas portentosas DSLRs, snapshots ou fantásticos celulares carregados de megapixels, inexorável fenômeno da nossa contemporaneidade. Entretanto, acerta mais ainda quando também afirma que poucos podem transmitir por uma imagem “a atmosfera da cidade - a sua respiração…”

Cristiano Mascaro, fotógrafo paulista, é um destes pouquíssimos capazes de sintetizar razão e emoção em uma imagem.  No livro Portugal (BEI, 2016) a sua construção detalhista, calcada em uma técnica exemplar, o conduz pela virtuosidade de um profissional ao mesmo tempo que suas composições dão continuidade as tessituras da trama urbana, onde passado e presente se encontram, onde a vivência e a imagem se fundem.

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Cronista permanente da capital paulista, Mascaro já publicou obras sobre outras paragens como em Rio Revelado (Casa da Palavra, 2015) ou lugares mais distantes como o Japão em seu livro  Viagem a Tóquio (DBA, 2014) [já comentados neste blog]. Portugal, surgiu de planos modestos, conta o fotógrafo, que após ter fotografado a Biblioteca Nacional e o Real Gabinete Português de Leitura, ambos no Rio de Janeiro, percebeu a importância de registrar esses espaços sagrados e lembrou-se da Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, que  já tinha visto por fotografias. “Pensando em bibliotecas, por que não fotografar também a Biblioteca da Universidade de Coimbra?”

As visitas do fotógrafo a Portugal remontam os anos 1970 quando ainda era do staff da Revista Veja, desde então voltou algumas vezes. Para produzir o livro, buscou ajuda da diplomacia portuguesa, mais especificamente do cônsul em São Paulo, Paulo Lopes Lourenço que apoiou o projeto. Em abril de 2016 rumou para Lisboa e de lá para Mafra, Óbidos, Alcobaça, Coimbra, Porto, Évora, Sagres e Cascais, entre outros lugares, onde a arquitetura moderna encontra aquela centenária. “A fotografia de Mascaro pede o silêncio que permite a quem a vê ouvir o tropel da história" comenta o historiador  e sociólogo paulista José de Souza Martins.

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As imagens da Real Abadia de Santa Maria, em  Alcobaça, na região central de Portugal, que data de 1153, estão a poucas páginas da arquitetura minimalista de Álvaro Siza, arquiteto da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, na região norte. A bela estação de linhas contemporâneas do metrô Casa da música, na região do Porto, projetada por Eduardo Souto de Moura em 2002, está ao lado do  interior de estilos românico, gótico e renascentista da Sé Velha de Coimbra, que remonta o século XII.  Mascaro domina nesta edição os diferentes elementos formais. Há uma consciência plena, uma clareza do discurso, sem a perda do mistério, deixando nítido o caráter endógeno de sua produção cada vez mais autoral, compartilhada com o documental essencial à questão histórica.

O percurso imagético criado por Mascaro tem a companhia necessária e prazerosa da narrativa histórica de Souza Martins. Nela encontramos que o fotógrafo abre o horizonte para as multidões invisíveis da história que “por ali passaram e ali viveram seu momento fugaz e decisivo.” Não se trata de retórica do historiador, pois a presença humana explícita é rara, cedendo espaço para aquela metafísica, trazendo à sua investigação as realidades que ali passaram, fazendo com que o leitor possa transcender a experiência do sensível.

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Na busca pelo equilíbrio fotográfico, entre pelo menos uma dezena de séculos que separaram a arquitetura histórica da contemporânea, a escolha de Mascaro foi certeira. Arquitetos como José Paulo do Santos, premiado profissional que transita por Londres ou Nova York, é um parceiro ideal. Sua obra incorpora ritmo, proporção e luz sem ostentar. Se debruça sobre um prazeroso rigor arquitetônico, caso do projeto para a Pousada de Nossa Senhora da Assunção, em Arraiolos.

Complicada de traduzir ou rotular, a obra do valenciano Santiago Calatrava é grandiosa e rebuscada, como a exemplar Gare do Oriente,  em Lisboa, projetada em 1998, que nos remete diretamente ao interior do Mosteiro dos Jerônimos construído no século XVI na mesma cidade, no estilo manuelino, ou mais simplesmente, gótico português tardio. O fotógrafo, também arquiteto de formação, nos conduz a estas brilhantes passagens fotográficas, ricas em amplas texturas monocromáticas, traduzidas para o papel pelo processo 4 Gray, criado pela gráfica Ipsis.

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Como bem observa o artista e curador inglês David Campany, arquitetura e fotografia podem ter sido unidas desde que Nicéphore Niépce (1765-1833) fotografou a casa de sua família, produzindo a primeira  imagem fotográfica. Mas, assim como a história da arte sempre teve dúvidas sobre o uso da fotografia como uma reprodução inocente, o campo da arquitetura tem sustentando uma importante reflexão sobre o uso de imagens. Podemos pensar que a fotografia não documenta apenas o que vê, mas questiona também esta visão. Melhor ainda na importância deste livro, não somente a fotografia e arquitetura são indissolutas, mas propõem uma espetacular relação em suas geometrias e tonalidades.

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Cristiano Mascaro, felizmente, não se deteve ao plano inicial limitado as bibliotecas. A expansão para a produção histórica, já fartamente documentada, o aproximou da contemporânea cuja importância ainda está para ser dimensionada, momento intrínseco à problematização da arquitetura, bem como da fotografia, quando pensamos a passagem temporal e suas consequências.

Além da racionalidade do cálculo fotográfico de precisão, sua marcante característica,  o fotógrafo conta que os 3 mil quilômetros percorridos em 40 dias, foram guiados pela emoção,  pela intuição “e por certos cantos de sereias especialmente dirigidos aos ouvidos e olhos dos fotógrafos.” Uma discreta parábola, que vale apenas para artistas especiais como ele, cuja audição e visão (como a de Odisseu ) não o leva para destruição, mas, ao contrário, a construção de uma imagem cada vez mais permanente.

Imagens © Cristiano Mascaro Texto © Juan Esteves

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