February 1, 2018
LIVRO DE RUA (fashion-abandono) > DIÓGENES MOURA

image

O pernambucano Diógenes Moura, entre outras saudáveis idiossincrasias comuns a todos os seres criativos, se define unicamente como escritor. De fato ele é, e premiado. Entre suas obras, Ficção Interrompida – Uma Caixa de Curtas  (Ateliê Editoral, 2010 ) recebeu o  Prêmio APCA de melhor livro de contos/crônicas em 2010 e foi finalista do Jabuti no ano seguinte. Entretanto, sua atuação como curador de fotografia o eleva ao cânone desta rara atividade - onde muitos falam e poucos fazem-  consagrada inicialmente pela sua atuação por mais de uma década junto a Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Após viver durante 17 anos em Salvador, Bahia, trabalhando na equipe de criação da TV Educativa, imigrou para São Paulo instalando-se no coração do bairro Campos Elíseos em 1989. Um perímetro que ele conhece como pouca gente, fruto de caminhadas diárias. O bairro, o primeiro planejado da metrópole, está  na zona central histórica. Guarda uma arquitetura eclética que pode ir do Art Déco ao Modernismo, repleto de antigos casarões, os chamados palacetes da antiga oligarquia cafeeira que há tempos convivem com um dos maiores exemplos da degradação humana, a chamada Cracolândia, fruto da inércia intencional de uma sucessão de governantes que há décadas espoliam o país.

image

Da convivência com as consagradas imagens que passaram pela Pinacoteca do Estado e em parte pelo desejo de se expressar além da literatura, é mais do que natural que Moura se interessasse em produzir a sua própria fotografia. Foi o que fez por cerca de 7 anos na região onde mora. O resultado é a exposição Livro de Rua, que abre no dia 2 de fevereiro na Galeria Utópica, calcada em sua série fashion-abandono publicada em seu perfil da rede Instagram. São 34 imagens inéditas feitas com a câmera de um aparelho celular ao longo da pesquisa que vem realizando desde 2010.

Sendo um curador de sucesso, cuja a essência do trabalho exige um conhecimento considerável da arte com que se envolve, sua produção fotográfica, ainda que despojada pela uso de um smartphone de baixa performance,  traz um perfil mais ontológico na cristalização entre texto e imagem. Temos então o resultado quando pensamos sobre literatura, imagem e esquecimento. Este último não é visto somente pela ocular da metafísica, mas através de uma constatação realista straight em contraposição àquela staged, uma dicotomia mais que presente na imagética contemporânea pela qual o autor vem trafegando sistematicamente.

image

Diógenes Moura também criou o neologismo “pacotes-existência”. Aquilo que “estão aos nossos pés como resquícios de humanidades à beira do grande abismo que se tornou o mundo contemporâneo. Uma espécie de poética da crueza, combalida pela dor. Segundo ele, toma forma para chamar à tona essa discussão essencial do estágio de abandono da população carente. "Pode doer, sim. Como doem e não doem os pacotes-existência que aqui estão e que se espalham (cada dia mais um, ou dois, ou três) pelas ruas do bairro, na região central de São Paulo depois de perderem o emprego, a casa, a família, a esperança, o amanhã dilacerado pelo que está por vir. Lá e aqui eles estão no silêncio e nos gritos da loucura coberta por fuligem: a segunda pele da imagem. São como nós. Estão aos nossos pés”

Regressamos então aos frankfurtianos quando a história não está obrigatoriamente ligada ao progresso humano. Esta tal dialética, embora distante temporalmente, se mostra mais que contemporânea no frequente uso da fotografia, em forma de arte ou de documento. Avançamos tecnologicamente, embora sem grandes modificações sociais no nosso sistema capitalista. As imagens capturadas nas ruas paulistanas não se contentam com a permanência do pessimismo adorniano, o que até mesmo nos parece pertinente diante do que olhamos, muito menos propõem diagnosticar a questão. Elas buscam a relevância desta humanidade abandonada, distante de uma incerteza que sempre se mostra subjetiva. Uma manifestação espontânea com validade estética. O que vemos aqui é um possível antagonismo à seriedade da “arte erudita”,  a tal “arte leve” para lembrar destes pensadores.

image

Ao elaborar seu Livro de Rua, o autor afirma que não produziu fotografias mas sim “imagens feitas com celular”. Para ele, fotografia é abismo. Imagem feita com celular não possui segunda pele. Basta olhar e pronto. A diferença pertence a quem ver. O outro se incorpora ao primeiro plano e nada mais".  A remissão ao fashion, como elemento estético filosófico, inversamente nos remete, guardadas as enormes proporções, ao consagrado americano Richard Avedon (1923-2004) que dizia que colecionava apenas rostos e não histórias.

No antológico livro Nothing Personal (AbeBooks, 1964),  Avedon com a colaboração do escritor James Baldwin (1924-1987), elenca uma série de retratos de pessoas que, segundo ele,  não conseguiam ser classificadas. Foi publicado logo após o Ato dos Direitos Civis, alguns meses depois da morte de John Kennedy (1917-1963) quando os Estados Unidos procuravam entender melhor a sua cultura. Apesar do nome do fotógrafo estar anexado ao mundo fashion, foi sua consciência social que deu o mote à importante publicação. Uma exposição com este conteúdo esteve em cartaz até o inicio de 2018  na Pace MacGill Gallery, de Nova Iorque. Para Peter MacGill, os anos 1960 foram explosivos e vivemos agora em um momento também explosivo.

image

A reflexão proposta por  Moura de que “fashion-abandono é um subtítulo perverso. Tem a ver com o modismo, com a variação dos invólucros que protegem cada um desse personagens.” conecta  a mostra Livro de rua às questões da consciência social que analisa a nossa profunda e talvez incontornável desigualdade, a qual poucos fotógrafos se apegam de uma maneira mais estilizada e intelectual. Ele associa seu retratos também a estética do abandono, vinculada ao entorno arquitetônico desprezado igualmente como o humano por ele notado, mas acima de tudo, mostra pequenas histórias ali contadas e não rostos. Os tais invólucros metaforicamente não estão apenas cobrindo o personagem, mas sim uma estrutura perversa perpétua.

A grande maioria das fotografias expostas com 10X15cm, com seus enquadramentos precisos, certamente não se elegem na dimensão avedoniana, mas sugerem a necessária aproximação do espectador, reforçando seu detalhado conteúdo cujo sentido figurado ali embutido também se associa a um momento difícil e explosivo que o país se encontra, bem como a necessidade urgente de um movimento pelo restabelecimento de uma cultura mais humanista, não somente filosófica como desejam os pensadores ou proselitista como praticam os políticos,  como também prática e efetiva como desejam todos. Se a voz de Baldwin em favor do respeito a sua cor em parte é ouvida até hoje, por que não podemos alterar este indecente status quo? Bom saber que ainda tem gente que chama atenção pra isso.

image

Imagens © Diógenes Moura             Texto © Juan Esteves


Exposição:Livro de Rua (série fashion-abandono), de Diógenes Moura

Abertura: 02 de fevereiro de 2018, sexta-feira, das 18 às 22h

Período: 03 de fevereiro a 03 de março de 2018

Local: Galeria Utópica ( antiga FASS)  - www.utopica.photography

Rua Rodésia, 26 – Vila Madalena - São Paulo/SP

Telefone: 11 3037-7349

Horários: Terça a sexta-feira, das 11 às 19h / Sábados e feriados, das 11 às 17h

  1. blogdojuanesteves posted this