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BRASIL

Golpe de 1964: Entenda como a ditadura militar criou atos institucionais para suprimir a liberdade no Brasil

Estudante é preso pela polícia durante a chamada sexta-feira sangrenta, no Centro do Rio, em 21 de junho de 1968

Há exatos 55 anos, um golpe militar derrubou o então presidente do Brasil, João Goulart, conhecido como Jango. Mas aquela mobilização de tropas foi apenas o início de uma ditadura de mais de 20 anos, durante os quais os homens de farda cancelaram eleições democráticas, cassaram mandatos políticos, fecharam o Congresso, suspenderam direitos individuais e perseguiram, prenderam, torturaram, mataram. Tudo isso respaldados legalmente por decretos oficiais criados por eles próprios. Neste post, reunimos informações públicas e facilmente acessíveis sobre os cinco atos institucionais editados pelos militares de 1964 a 1968 (até o final da ditadura, foram 17 atos institucionais). Sem deixar margem para interpretação ou subjetividade, esses decretos criaram o aparato legal para toda a repressão.

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O GOLPE. As tropas da 4ª Região Militar, comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho, deixaram Juiz de Fora em direção ao Rio com o objetivo de derrubar o presidente João Goulart. A movimentação dos soldados, que saíram da cidade mineira na madrugada do dia 31 de março de 1964, recebeu apoio de políticos e de outras tropas, consolidando o plano no dia 1º de abril, sem entrar em confronto. Isolado, sem apoio das Forças Armadas, Jango foi para Brasília e, de lá, para Porto Alegre. No mesmo dia, durante sessão no Congresso Nacional, foi lida uma carta escrita pelo ministro chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, informando que Jango estava no Rio Grande do Sul reunindo as tropas legalistas. Minutos depois, ignorando a carta, o deputado Auro de Moura Andrade, que presidia a sessão, declarou o cargo de presidente vacante. O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu o posto, mas, dias depois, um triunvirato de altos oficiais tomou o controle da nação e deu início ao período de ditadura militar no país. 

Tanques do exército cruzam a rua Gago Coutinho, em Laranjeiras, no dia 1º de abril de 1964

PRIMEIRO ATO. Após a movimentação de tanques e soldados nas ruas do país, o golpe de 31 de março de 1964 foi consolidado nas altas esferas do poder. A junta composta por três militares e chamada de Comando Supremo da Revolução assumiu o comando do país e editou o Ato Institucional, conferindo-se a autoridade para cassar deputados federais eleitos e suspender direitos políticos de opositores. No dia 10 de abril, 41 parlamentares foram cassados e 58 pessoas perderam seus direitos políticos, entre elas Luís Carlos Prestes, Jânio Quadros e Leonel Brizola.

O documento determinou ainda eleições indiretas para a Presidência da República e, no dia 15 de abril, o Congresso Nacional elegeu o marechal Humberto Castello Branco para comandar o Executivo. O acordo previa a convocação de eleições diretas para presidente em outubro de 1965, o que, obviamente, não aconteceu. O mandato de Castello Branco foi prorrogado, o governo militar manteve eleições indiretas para presidente e, em 1967, o comando da nação passou ao general Artur da Costa e Silva. Só em 1989 o Brasil elegeria seu presidente outra vez. 

Cassação de políticos no Ato Institucional nº 1 foi destaque na capa do GLOBO em 10 de abril de 1964

SEGUNDO ATO. De início, a ditadura manteve eleições diretas para governador, mas isso não durou muito. Em outubro de 1965, 11 unidades da federação escolheram governadores. Em nove, os candidatos dos militares venceram, mas os homens de farda foram derrotados em dois colégios importantes (Guanabara e Minas Gerais), ao que o presidente Castello Branco reagiu com força. Ele editou o Ato Institucional n° 2, acabando com todos os partidos políticos e ordenando a criação de duas legendas. Assim, nasceram a Aliança Renovadora Nacional (Arena), aliada do governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), formado pelos deputados da oposição que não haviam sido cassados, mas que sabiam que isso poderia ocorrer a qualquer momento. O AI-2 cancelou, em definitivo, as eleições diretas para presidente.

Veja fotos do golpe militar de 31 de março de 1964

TERCEIRO ATO. No dia 5 de fevereiro de 1966, Castello Branco editou o Ato Institucional de número 3, acabando com as eleições diretas para governador em todas as unidades da federação. O mesmo documento determinava que os prefeitos das capitais estaduais não seriam eleitos, mas, sim, indicados pelos governadores, após aprovação das assembleias legislativas. A estratégia imposta surtiu o resultado almejado pelos militares. Candidatos da Arena, aliados do governo, venceram os pleitos indiretos nos doze estados que promoveram eleições após a edição do AI-3.

Como deputado, Bolsonaro celebrou golpe militar dentro e fora do Congresso

QUARTO ATO. Uma nova Constituição foi promulgada em 1967, incorporando determinações de atos institucionais e complementares e criando outras regras. O projeto da Carta foi elaborado pelo governo com a ajuda de juristas aliados. No dia 7 de dezembro de 1966, foi editado o Ato Institucional nº 4, que convocou o Congresso para votar o projeto de Constituição. Com a maioria dos deputados do lado dos militares e a oposição acuada, a Constituição foi aprovada com poucas alterações, em janeiro de 1967. O texto concentrava força no Executivo, conferindo ao governo federal o poder exclusivo de criar leis nas áreas de segurança e orçamento. A Carta sacramentou as eleições indiretas para presidente, restringiu o direito a greve de trabalhadores e ampliou a atuação da Justiça Militar. 

Artur da Costa e Silva, segundo presidente da ditadura militar, em setembro de 1967

QUINTO ATO. No dia 13 de dezembro de 1968, o então presidente, general Artur da Costa e Silva, editou o Ato Institucional de número 5, considerado o "golpe dentro do golpe" porque deu uma série de superpoderes ao governo federal. A partir de sua publicação, o Congresso e as assembleias estaduais ficaram fechados por dez meses. Nesse recesso, o presidente e os governadores assumiram a função de legislar, por meio de decretos-lei. O AI-5 instituiu a censura prévia de obras musicais, cinematográficas, teatrais e de TV, além da imprensa. O documento suspendeu a concessão de habeas corpus em casos de "crimes políticos", proibiu qualquer reunião política sem autorização da polícia, decretando toques de recolher, e permitiu ao presidente exonerar qualquer servidor público considerado subversivo. Além disso, o governo se deu o poder de suspender os direitos políticos de qualquer cidadão.

Passeata dos Cem Mil reuniu estudantes, artistas e trabalhadores contra a ditadura no Centro do Rio, em 26 de junho de 1968

Quando Médici assumiu o comando do Brasil, em 30 de outubro de 1969, os mecanismos de combate à oposição estavam a todo vapor. Foi o período de intensificação de prisões arbitrárias, torturas e mortes nos porões da ditadura. Em 2018, a divulgação de um documento da inteligência americana datado de 1974, mantido em sigilo por 44 anos, revelou que o então diretor da CIA, Will Cosby, informou o secretário de Estado americano, Henry Kissinger, sobre a prática de tortura e assassinatos no Brasil como política de Estado. Os métodos "extralegais", diz o memorando, já eram praticados pelo regime, e sua continuidade teve aval do presidente Ernesto Geisel e do chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), João Figueiredo, que assumiria a presidência em 1979. O documento cita pelo menos 104 execuções de militantes "subversivos e perigosos". 

Jornalista Vladimir Herzog foi assassinado no DOI-Codi de São Paulo após se apresentar voluntariamente para depoimento

TORTURA E MORTE. A Lei da Anistia, assinada em 1979 como condicionante à abertura política "lenta, gradual e segura", dificultou a condenação de torturadores como o Coronel Carlos Brilhante Ustra, tido como herói pelo presidente Jair Bolsonaro, e a consequente reparação às vítimas. Ustra chegou a ser condenado em primeira instância a indenizar a família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado no Doi-Codi em 1971, quando o órgão de repressão era chefiado pelo coronel. A decisão, no entanto, foi derrubada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). O torturador morreu em 2015. 

Em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade concluiu que 434 pessoas foram mortas ou desapareceram entre 1946 e 1988 por motivações políticas, a maioria entre 1964 e 1985, período da ditadura militar. No mesmo ano, o Ministério da Defesa reconheceu em ofício a prática das torturas e assassinatos políticos pelo Estado brasileiro. Em julho de 2018, o Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por não ter investigado a morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do Doi-Codi, em São Paulo, há 43 anos. O país já havia sido condenado em 2010 pela detenção, tortura e morte de militantes durante a Guerrilha do Araguaia. 

Divulgação de memorando da CIA foi a manchete da edição de 11 de maio de 2018 do GLOBO

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