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Música da Diáspora Africana no Brasil: é possível pensar uma música negra no contexto da mestiçagem brasileira?*

27 nov 2023


PELO TELEFONE[1] – PELA INTERNET: ECOS DE UMA NARRATIVA PÓS-COLONIAL?

O momento histórico inicial é 1916, ano em que foi gravada e registrada na Biblioteca Nacional a canção “Pelo Telefone” primeiro título assumidamente de samba no Brasil, como atesta a folha de abertura do documento, onde se lê: “Pelo Telephone – Samba Carnavalesco”[2], por Ernesto dos Santos, o Donga[3], e terminando com a música gravada oitenta anos depois da canção de Donga, “Pela Internet” de Gilberto Gil, do álbum Quanta em 1997. Um trabalho que decididamente pergunta à música de descendentes de ex escravizados/as africanos, qual verdadeiramente é sua função na construção da sociedade brasileira, se é mestiça ou perpassada pelos valores afro-diaspóricos?


Figura 1 – Primeiro título assumidamente de samba no Brasil.

Fonte: Donga ([19--?], p. 1).

O texto nasce dessa questão: É possível pensar uma música negra, como produto afro-diaspórico, num contexto de mestiçagem? Esse questionamento refere-se, por um lado, por investigar a ideia de Diáspora Africana[4], que tem sido apropriada por alguns importantes autores nos debates sobre relações raciais (GILROY, 2001) e, por outro lado, concorre a versão culturalista trazida por autores que se preocupam com a identidade cultural nos tempos de globalização: a mestiçagem (HALL, 2003).

O que podemos identificar é que a experiência escrava está longe de ser residual. Pelo contrário! Ela é percebida nas letras e os discursos marcam um posicionamento frente a esta situação, mesmo em negros/as de gerações futuras aos dos escravizados/as que viveram nas senzalas. Se de fato a mestiçagem fosse a forma real de compreensão da multirracialidade no Brasil, não haveria necessidade de manifestação nas letras.

“ME DIVERTIR UM POUCO E ELIMINAR O SENTIMENTO...”

Quando perguntaram a Pixinguinha sobre o regente Heitor Villa Lobos, Pixinguinha atribuiu sua genialidade a capacidade de explorar as possibilidades experimentais de um conjunto, e diz: “Considero isso uma grande arte. Esse negócio de sentimento – eu sou sentimental – não deve ficar. Eu quero ver o conhecimento material para poder despertar, para me divertir um pouco e eliminar o sentimento. Chega o sentimento da miséria” (Albin, 1970, p. 28).


Essa humildade não deve esconder a profundidade de seu discurso. É inegável a genialidade de Villa Lobos, mas também é inegável - e a modéstia de Pixinguinha não irá esconder - que a música feita por sentimento se destaca como a base da música negra no Brasil, e isso de longe diminui sua intensidade. Ver o conhecimento material para despertar, divertir um pouco e eliminar o sentimento, significa algo ancestral que marca a alma da música negra, a dor da escravidão.

Figura 2 – Os 8 Batutas (1919).[5]

Fonte: [OS 8 batutas] (1919, p. 1).

Ela é sentida de forma relacional por gerações, permeada pela vontade de viver, de se divertir (festividades negras oriundas dos orixás do candomblé), mas ainda assim algo marca sua alma, é preciso retribuir ao passado e dotá-lo de razão para libertar os negros/as dos grilhões deixados pelo legado da escravidão fruto da colonização. Se o sentimento é essencial, a circunstancialidade das letras é mínima. Identificar o componente racial nas canções não é exceção, num contexto de mestiçagem, mas a regra.

A mestiçagem propôs uma solução que defende o projeto colonial, diferentemente da música negra que opera como instrumento de deflagração das simplificações étnicas em decorrência de toda uma situação de violenta opressão racial. Dito de outra forma, os negros/as impossibilitados de afirmar discursos políticos, o fizeram por meio da música mostrando as fragilidades e incongruências da modernidade.

A música negra produzida nos contextos negros no Brasil possui caráter reivindicatório de um reconhecimento da cultura negra que fora subjugada pela lógica da mestiçagem. Ela é histórica e relacional, pois incorpora valores estéticos nas novas roupagens sempre destacando o dever do passado como reverência. É a necessidade de retribuição enquanto ressignificação do passado ao mesmo tempo valorizando e reverenciando o futuro a partir da produção cultural negra afro-diaspórica.



* Projeto “Processo de construção da música da diáspora africana no Brasil: é possível pensar uma música negra no contexto da mestiçagem brasileira?” financiado pelo  Programa Nacional de Apoio à Pesquisa Fundação Biblioteca Nacional – MinC /2008.


** Professor Adjunto do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas/DFCH área de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/UESB. Bolsista pelo Programa Nacional de Apoio à Pesquisa Fundação Biblioteca Nacional – MinC /2008.


[1] “Pelo Telefone” se refere a música gravada e registrada na Biblioteca Nacional no ano de 1916 pelo compositor Ernesto dos Santos, o Donga, “Pela Internet” uma música de Gilberto Gil de 1997 do Álbum Quanta, WEA.


[2] Referência encontrada pela pesquisadora Susana Martins, quando trabalhava no inventário dos arquivos da Divisão de Música da Biblioteca Nacional.


[3] Donga (1889-1974) passou para a história da música popular brasileira como o autor do primeiro samba gravado, o famoso “Pelo Telefone”. Este fato é apenas um detalhe de sua participação muito mais ampla e rica na trajetória da música urbana carioca. Veja a partitura completa em: https://bndigital.bn.gov.br/artigos/musica-donga-e-o-samba-urbano-carioca/.


[4] O conceito de diáspora é originalmente utilizado para pensar a dispersão do povo judaico pelo mundo. Mais recentemente tem sido tomada por autores como Paul Gilroy (2001) e Stuart Hall (2003) para referir o processo de construção de identidades negras nos contextos específicos de diferentes países nos quais a população, oriunda do tráfico negreiro colonial, produz a cultura negra a partir dos elementos específicos de cada local. Com base em noções como “tradução” e “hibridismo cultural” esses autores apontam para algo de comum na experiência de migração forçada para fora do continente africano, que se relaciona com a construção de uma subjetividade que produzirá uma “estética negra”.


[5] Os integrantes do conjunto Os 8 Batutas eram: 1. Pixinguinha, 1897-1973, 2. Donga, 1890-1974, 3. Palmieri, Raul, 1887-1968, 4. China, 1888-1927, 5. Palmieri, Jacob, 6. Alves, Nelson, 1895-1960, 7. Oliveira, Luis de, 8. Lima, José Alves de, 9. João, Pernambuco, 1883-1947. O documento integral faz parte do Acervo da Seção de Música da Fundação Biblioteca Nacional e pode ser acessado em: https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_musica/mas1186440/mas1186440.pdf.



REFERÊNCIAS

ALBIN, Ricardo Cravo (org.). As vozes desassombradas do Museu. Pixinguinha, João da Baiana e Donga. Rio de Janeiro: Museu da Imagem e do Som, 1970.


DONGA. Pelo telephone: samba carnavalesco de grande successo. Rio de Janeiro: Instituto de Artes Graphicas, [19--?]. 4 p. Acervo da Biblioteca Nacional Digital da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_musica/mas495033/mas495033.pdf. Acesso em: 21 nov. 2023.


GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro: Editora 34/UCAM, 2001.


HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.


[OS 8 batutas]. [S.l.: s.n.], 1919. 2 p. Acervo da Biblioteca Nacional Digital da Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_musica/mas1186442/mas1186442.pdf. Acesso em: 21 nov. 2023.