• 18/11/2019
  • Por Carlos Messias | Foto Getty Images
Atualizado em

Frequentador de reuniões do grupo vanguardista conhecido como Santa Helena nos anos 1930, o curitibano João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) poderia ter enveredado pelas artes plásticas. Na década seguinte, já arquiteto, tratava sempre de integrar obras de arte aos prédios que desenhava. Daí a explicação para o painel de Francisco Rebolo, membro do Santa Helena, no hall de entrada e, provavelmente, para a presença determinante das cores amarela e vermelha na fachada de um dos seus mais conhecidos projetos, o Edifício Louveira, em São Paulo. No mesmo bairro de Higienópolis, Franz Heep (1902-1978) deu vida e movimento à face frontal de seu Edifício Lausanne ao pintar as venezianas de vermelho, verde e branco. Perto dali, Lina Bo Bardi (1914-1992) imaginou colunas de um vermelho explosivo a sustentar seu Museu de Arte de São Paulo na Avenida Paulista.

Falta cor às cidades brasileiras? Especialistas discutem o assunto (Foto: Getty Images)

Vista panorâmica de São Paulo e, ao centro, o famoso Edifício Copan

"Muitas obras reproduzem o que se vêem Paris, uma cidade de uma cor só, uma tonalidade de pedra""

Ana Luiza Nobre

Por mais icônicas que sejam, estas obras se transformaram em meros respingos coloridos que não representam a infinidade de prédios cinzas, beges e brancos dominantes no skyline da capital paulista. O que explica a preponderância dos tons neutros na maioria das construções não só de São Paulo, mas também do Rio de Janeiro e das demais metrópoles brasileiras? “Como um apartamento é um bem durável, algo que as pessoas vão ter a vida toda, temos receio de que um excesso de cor possa fazer com que elas enjoem, então acaba-se optando por cores mais sóbrias”, afirma Azury Khafif, diretor comercial da Elias Victor Nigri, incorporadora paulistana focada em empreendimentos de alto padrão.

Há mais motivos. Do ponto de vista prático, o excesso de tons desmaiados pode ser reflexo do clima quente do nosso território. “Em uma grande cidade como São Paulo, a poluição e o sol agem sobre as cores dos prédios. As mais claras ‘disfarçam’ estes efeitos, oferecem maior facilidade de manutenção e, ao mesmo tempo, deixam a cidade mais homogênea”, teoriza Andrea Bellinazzi, diretora de inteligência de mercado da Tegra Incorporadora. A origem da explicação, porém, é muito mais antiga.

MATRIZ COLONIAL
Um fator que contribuiu para a homogeneização das fachadas nas capitais paulista e fluminense é de ordem histórica. Devido aos materiais disponíveis à época, muitas das casas e dos primeiros edifícios erguidos até o começo do século 20 foram revestidos de cal, substância branca e alcalina por composição. Há também a influência colonial na arquitetura brasileira que, embora tenha incorporado elementos coloridos nas fachadas de Olinda, PE, e Salvador, BA, ou nas esquadrias e portas de Paraty, RJ, e Ouro Preto, MG, por exemplo, tinha como base o branco. “O nosso colonial vem muito carregado de influências clássicas de Portugal. É uma linguagem que corresponde àquele momento, aos materiais que eram utilizados então”, afirma Ana Luiza Nobre, historiadora da arquitetura e diretora do departamento de história, teoria e crítica da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-RJ.

Apesar de não concordar inteiramente com a ideia de que Rio e São Paulo sejam cidades predominantemente cinzentas, ela enxerga uma relação direta entre a falta de cor e o ensino de arquitetura no Brasil. “A partir do século 19, ele se dá via missões francesas e dissemina uma linguagem de espécie neoclássica no Rio de Janeiro.O que fez com que muitas obras reproduzissem o que se vê em Paris, uma cidade de uma cor só,uma tonalidade de pedra. Depois, a formação acadêmica se desenvolveu com base em códigos que vieram da Academia de Belas Artes, o que, de novo, remete à cultura europeia”, acrescenta. “Assim, ocorreram introduções do clássico do Centro à Zona Oeste do Rio, que podem ser vistas no Colégio dos Jesuítas, no Solar [Grandjean deMontigny], no Paço Imperial, que são de períodos distintos, mas apresentam essa mesma proposta”.

“As cidades têm a cor do material usado na construção dos prédios”, aponta outra historiadora, Rosa Artigas, filha de Vilanova. “Existe o esforço de alguns arquitetos, como Ruy Ohtake, para deixar São Paulo mais colorida, mas isso se perde no grosso de uma cidade que é erguida sem planejamento arquitetônico”. Como exemplo, ela retoma o projeto do pai: “As cores do Louveira desaparecem em meio a edifícios brancos ou de tijolos aparentes”, avalia.

O ‘NEONEOCLÁSSICO’
Afora as bem-vindas injeções cromáticas perpetradas pelos arquitetos atuantes entre os anos 1940e 1970 – como não lembrar os rosas e azuis de João Artacho Jurado (1907-1983), por exemplo? –, de lá para cá, a arquitetura brasileira pouco ousou em cores nas principais metrópoles do país. A pá de cal nos olhos dos habitantes foi jogada no início deste século, coma onda dos ‘neoneoclássicos’ (não confundir com o estilo importado da França do século 19), que praticamente padronizaram em 50 tons de bege o visual dos bairros de elite e classe média. “Este tipo de prédio reproduz a coluna grega e o frontão, que são ícones de fácil assimilação. É uma imagem que se quer criar, forjar, tudo remete a uma ideia de cidade que não é da nossa cultura, não é dos trópicos”, comenta Ana Luiza Nobre. “Essa banalização e vulgarização foi praticada para tornar acessível uma operação mercadológica.”

Uma das companhias que mais apostou no modelo, a Elias Victor Nigri afirma estar se distanciando dele nos últimos cinco anos. “As pessoas cansaram da visão do neoclássico, que deu uma padronizada, ficou muito batido. Passaram a associar neoclássico com alto padrão até o ponto que deixou de ser alto padrão”, declara Azury Khafif. Ele diz enxergar no mercado uma tendência a evitar esse tipo de estilo. “Desde que paramos de construir neoclássicos, stamos ousando mais em cores e materiais. Estamos brincando com produtos de metal, uma linha mais moderna. Procuro tentar mais verde, entrar com uma coisa mais tropical, para fugir do concreto”, descreve.

Segundo Andrea Belinazzi, da Tegra, “o mercado busca agradar o público da região onde está inserido. Tomando como exemplo São Paulo, os bairros de Pinheiros ou Vila Madalena permitem mais o uso de arte, cores e um ar mais cool, que difere totalmente do que costuma ser desejado por um morador de Moema – predominância de vidro, materiais mais nobres e cores claras”.

ADEUS ÀTIMIDEZ
Para o veterano Ruy Ohtake, cujo colorido edifício do Instituto Tomie Ohtake, de 2001, se destaca no horizonte do bairro de Pinheiros com seus vibrantes tons de rosa e lilás, “o uso de cor não é uma questão de obrigação, mas de respeito pela história das cidades brasileiras”, diz. “Como nasci no Brasil e sou brasileiro, quero usar muita cor, sim.”

Rosa Artigas aponta inovações nesse sentido: “Escritórios atuais, como o Nitsche Arquitetos, tentam reverter essa questão da cor em São Paulo. A [incorporadora] Idea!Zarvos fez umas coisas novas na Vila Madalena do ponto de vista do edifício”. “Os novos arquitetos estão dando pequenos passos em direção à perda da timidez com as cores. Assim, as nossas cidades ficam mais bonitas e com mais personalidade”, crava Ohtake. “Acredito na arquitetura contemporânea brasileira, que consiste em formas orgânicas e no uso de cores. Esta é a nossa grande contribuição para o mundo”, arremata ele.

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