• CRISTINA DANTAS | ESTILO ADRIANA FRATTINI | FOTOS FILIPPO BAMBERGHI
Atualizado em
Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

Em uma das salas de visitas, os afrescos retratam cenas da Toscana, onde Pennacchi nasceu e viveu até os 24 anos

Não foram poucas as artes que Fulvio Pennacchi (1905-1992) dominou: pintura, desenho, muralismo, afresco, cerâmica e azulejaria, sem contar as investidas em design de mobiliário e cartazes publicitários. Todas essas vertentes se reúnem em um único e especialíssimo espaço: a casa que projetou e onde viveu, a partir de 1948, com a mulher, Filomena Matarazzo, e os oito filhos no Jardim Europa, em São Paulo, concretizada com as arcadas típicas de sua Toscana natal, o pátio interno arborizado, os adornos e todos os móveis, concebidos por ele e executados pelo Liceu de Artes e Ofícios.

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

O exemplar da década de 1950 traz outra memória da terra natal, a colheita da uva, enquanto os arcos presentes na lembrança foram reproduzidos também na arquitetura – sobre o aparador, as cerâmicas de galo e galinha, tema caro a ele, personificam o amor pela natureza e pelo interior brasileiro

O engenheiro Luiz Maiorana (1898-1961) deu corpo à construção, implantada em um lote de quase 3 mil m². Cada canto tem a marca do criador e é permeado de suas obras, inclusive a cozinha e os inúmeros banheiros. Os herdeiros admitem não saber ao certo quantos afrescos adornam a moradia na qual o ateliê ficou exatamente como seu dono o deixou ao falecer, aos 87 anos, três décadas atrás. O endereço, hoje sem uso residencial, é mantido pela família em homenagem à memória do patriarca.

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

Neste outro ambiente de estar, as esculturas cerâmicas, em sua maioria, são a representação de aves e festas juninas, tudo organizado em torno da lareira, cuja inscrição marca o ano de finalização da casa – acima dela, o sol de ouro coroa o espaço, enquanto a escada lateral leva ao ateliê, que permanece intocado

Alguns diálogos ouvidos sob as loggias soam distantes da nossa realidade. Quando Giovanna Pennacchi, filha do artista, procura por determinado item, ouve de Lucas, o irmão caçula: “Está na escada da torre”. Contabilize-se esse elemento arquitetônico, incomum em nosso universo doméstico, à saudade que o imigrante sentia da Itália, de onde partiu em 1929, aos 24 anos – época em que seus feitos refletiam a inspiração renascentista e os temas religiosos.

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

Detalhe com a tela Paisagem Italiana com Arcos (anos 1970) e, em primeiro plano, duas esculturas de cerâmica policromada

Logo a paisagem brasileira, os colonos e a vida no campo começaram a se insinuar em suas criações. O homem simples (a “nossa gente”, como ele dizia) era interpretado pelas mãos de quem veio de um rigoroso ensino superior em Lucca, na Real Academia de Belas Artes. Pietro Maria Bardi, fundador do MASP, o considerava o maior pintor de afrescos do país, como conta o historiador Valério Pennacchi, autor de um livro sobre a produção do parente, e como atesta uma de suas maiores realizações, na Igreja Nossa Senhora da Paz, no bairro da Liberdade.

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

Para o ateliê, o mestre inventou o móvel que a filha Giovanna chama, apropriadamente, de display de cerâmicas – a escada (ao fundo) conduz à torre da caixa-d’água

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

Na sala de jantar, o mobiliário produzido pelo Liceu de Artes e Ofícios baseou-se em diretrizes de Fulvio Pennacchi

Integrante do Grupo Santa Helena, que juntou nomes de peso da arte nacional na década de 1930 no palacete que lhe emprestou o nome (e que, mesmo sendo um marco da arquitetura paulistana, veio abaixo em 1971), Pennacchi dedicava à arte todo o tempo disponível. Rabiscava enquanto esperava os filhos na saída do colégio ou a mulher em alguma consulta. “Suas ilustrações preenchiam qualquer papel que lhe caísse nas mãos”, conta Giovanna, responsável pelo espólio do pai ao lado dos sete irmãos. Por isso elas podem estar até em um caderno de contabilidade, misturadas a lembretes de afazeres cotidianos, o que torna ainda mais preciosos a casa e o acervo.

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

No estar junto ao pátio, o afresco Festa Junina decora a parede atrás do sofá Mole, de Sergio Rodrigues

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

Detalhe de composição com muitas aves, tema apreciado pelo artista, disposta em prateleiras – o prato central é de autoria do filho caçula, Lucas

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

O fogão suíço determinou a configuração da cozinha, cheia de arte e boas ideias, tudo literalmente desenhado por Pennacchi: os azulejos decorados mostram cenas animadas do cotidiano, como um homem levando o resultado da pesca ou um casal em pausa para o almoço, ditos populares em italiano e em português, além de animais – a mesa carrega a marca do artista até na cor vermelha, usada também no interior de alguns armários

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

No detalhe, a portinhola quadrada de madeira é um passa-pratos instalado na cozinha – quando aberto para o outro lado da parede, vira uma bandeja que serve à saleta de café da manhã

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

O quarto que já foi de dois dos oito filhos tem móveis criados por Pennacchi e produzidos pelo Liceu de Artes e Ofícios com madeira de lei – o tapete, dos anos 1980, também leva a sua assinatura, enquanto os dois quadros separados pela Madona engastada na parede foram feitos a quatro mãos: ele desenhava, dona Filomena pintava

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

No quarto que pertenceu ao casal, a receita se repete: mobília projetada por Pennacchi e entregue ao trabalho primoroso do Liceu de Artes e Ofícios

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

Em mais um quarto para dois filhos, fica evidente o cuidado com cada item: o serviço do Liceu na porta almofadada de madeira de lei, o afresco Natividade, na parede de cabeceira, e um quadro pintado por dona Filomena sobre o traço do marido, que a considerava uma excelente colorista

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

No banheiro, não há dois motivos iguais nos azulejos que cobrem as paredes

Por dentro da casa construída pelo artista italiano Fulvio Pennachi em 1940 (Foto: Filippo Bamberghi)

Sob as arcadas do pátio interno, o afresco traz a imagem de São Francisco de Assis, o santo de devoção – um dos cômodos que se abrem para a área externa abriga atualmente o estúdio de Lucas Pennacchi

Nem mesmo as várias exposições de seu trabalho dão conta de expressá-lo tão bem quanto a residência – ela, sim, um retrato fiel do homem que produziu como poucos, foi professor e enriqueceu muitos interiores paulistanos com seus afrescos. Embora nem todos tenham sido conservados como desejariam os Pennacchi, outros ao menos foram removidos e transportados para um novo lar em operações complexas. É o cuidado que se espera diante de tamanho tesouro.