Dom Pedro II e os ‘mórmons’

Celso Assis
7 min readMay 3, 2020

Detalhes da visita do imperador do Brasil a Utah e como isso alimentou rumores de uma migração para a América do Sul

A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, apelidada de ‘igreja mórmon’ (por conta do Livro de Mórmon), começou suas atividades oficialmente no Brasil em 1928, com a chegada de missionários em Santa Catarina. Famílias alemãs santos dos últimos dias já viviam na região desde 1923.

Carta arquivada na Biblioteca da História da Igreja, em Salt Lake City. O documento foi descoberto pelo historiador Fernando Pinheiro.

No entanto, o Brasil já estava no “radar” da Igreja desde a década de 1870. Uma carta anônima enviada ao presidente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Brigham Young, em 1871, sugeria que os ‘mórmons’ abandonassem a América do Norte e partissem em direção a América do Sul. Segue a transcrição em português do conteúdo da carta:

“Por favor, deixe-me sugerir que a melhor coisa que você poderia fazer para escapar da perseguição seria emigrar com o seu povo para parte central do Brasil, onde as pessoas são naturalmente gentis e estarão contentes em ter mais população, e ao mesmo tempo eles não vão incomodá-lo na tua crença. De um amigo.”

Coincidentemente, cinco anos depois, o próprio imperador do Brasil visitou a sede da Igreja nos Estados Unidos.

A presença de Dom Pedro II no país em 1876 era histórica. Trata-se da primeira vez que um monarca pisava naquelas terras que nasceram republicanas, além de ser a primeira visita oficial de um chefe de estado brasileiro aos Estados Unidos.

Retrato do imperador Dom Pedro II.

O país era uma das paradas de seu tour mundial de dois anos. Como o ano de 1876 era o centenário da independência dos Estados Unidos, inaugurou-se a Exposição Universal da Filadélfia, onde estava a invenção de Alexander Graham Bell, o telefone. Dom Pedro, entusiasmado com a ideia, encomendou vários aparelhos e os levou para o Rio de Janeiro.

“Reis e imperadores aqui virão nos visitar”

Deixando a maior parte de sua comitiva em Nova York, Dom Pedro II embarcou na linha transcontinental em direção a São Francisco, na ponta oeste do país. O trem passaria pela cidade de Odgen, a 60 quilômetros ao norte de Salt Lake City.

Mapa dos Estados Unidos na década de 1860. O que antes era parte do México, tornou-se territórios americanos, para só depois se transformar de fato em estados americanos.

Aquela região dos EUA era conhecida como Território de Utah. O governo americano elevou Utah a categoria de estado apenas em 1888. Os pioneiros mórmons chegaram naquela região em 1847 fugindo de perseguições religiosas na região de Illinois. Naquela época, o Lago Salgado era território do México, até a vitória dos americanos sobre os mexicanos na guerra que ocorria.

Ao saber da passagem do nobre viajante por Utah, o prefeito e os vereadores de Salt Lake City trataram de verificar a possibilidade de Dom Pedro II pernoitar na cidade. Brigham Young, que também era vereador, propôs que o prefeito Feramorz Little entrasse em contato com a comitiva do imperador para solicitar sua visita.

No dia 20 de abril de 1876, o prefeito recebeu a resposta positiva sobre a visita de Dom Pedro II a Salt Lake City para o dia 22. No entanto, um pedido da comitiva deixou os anfitriões americanos intrigados e até frustrados: “nada de ostentação”.

Aquela era a primeira visita de um membro da realeza a Utah. Na verdade, era a primeira visita de qualquer tipo de autoridade ao território. Um presidente americano só visitaria Utah dali 20 anos.

O jornal Deseret News Tribune mencionou o alívio de Dom Pedro II se ele pudesse ficar livre dos “entediantes desfiles de recepção, banquetes e bailes”.

Uma carta de Artur Macedo reforçou o pedido:

Dom Pedro irá a Salt Lake antes de ir a São Francisco. Ele agradece às autoridades municipais pelo gentil convite, mas deseja manter o caráter privado de sua viagem.

Após breve parada em Ogden, a comitiva do imperador Dom Pedro II chegou às 20h30 do sábado, dia 22 de abril de 1876 em Salt Lake City. Em meio a multidão, o prefeito e seu comitê de recepção sequer foram notados na estação de trem. A imprensa local descreveu o imperador como

um homem alto, de boa aparência, cabelos grisalhos e barba, bastante comprido, e usava um terno escuro e gravata preta que escondia completamente a camisa. Sob o casaco, uma pequena corrente de relógio de ouro era visível. Ele tinha cerca de 51 anos e era corpulento. Ele usava um chapéu desleixado e tinha a aparência de um fazendeiro rico.

Acompanhavam o imperador, Luís Pedreira do Couto Ferraz, senador e visconde do Bom Retiro; dr. Karl Henning, secretário e professor de grego e sânscrito do imperador; Artur Teixeira de Macedo, tesoureiro assistente da Casa Imperial; Rafael Paiva, valete do imperador; James J. O’Kelly, repórter do jornal New York Herald; e dois empregados que não foram nomeados.

A única atividade da comitiva imperial naquela noite de sábado foi assistir a uma apresentação no Teatro de Salt Lake. Os jornais da cidade sugeriram que a plateia, mais preocupada em observar o visitante do que a própria apresentação, estavam olhando para o homem errado o tempo todo. “As vestes do imperador eram tão comuns que não dava para reconhecê-lo com um imperador”, disse o Salt Lake Daily Herald.

Hospedados no Walker House, considerado o melhor hotel da cidade na época, a comitiva do imperador saiu cedo no dia seguinte para explorar a Cidade do Lago Salgado.

Interior do Tabernáculo de Salt Lake no século XIX, com o órgão ao centro.

Entre os lugares visitados estavam o canteiro de obras do Templo de Salt Lake,— que seria finalizado apenas em 1893 — , o Tabernáculo, uma galeria de arte, a Igreja de Santa Maria Madalena (primeira capela católica em Utah) e por fim uma capela da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, onde o Élder John Taylor, do Quórum dos Doze Apóstolos, discursava naquele dia.

Templo de Salt Lake ainda em construção quatro anos depois da visita de Dom Pedro II.

O passeio do imperador Dom Pedro II foi encerrado próximo das 15h40, pois o trem para São Francisco partiria naquele horário.

Ao mesmo tempo que o povo de Utah se despedia do monarca brasileiro com ótimas impressões (com exceções de alguns que se sentiram ofendidos por ele recusar a recepção formal), Dom Pedro ficou entusiasmado com a beleza da região do Lago Salgado e a industriosidade dos ‘mórmons’ em uma terra desértica.

O que Dom Pedro II pensava sobre a doutrina dos santos dos últimos dias?

Embora a grande obra dos ‘mórmons’ em Utah tenham impressionado bastante o imperador do Brasil, os ensinamentos de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias não o interessaram.

Segundo o imperador, a doutrina da Igreja, como a necessidade de revelação moderna e profetas vivos, era pouco convincente. “Eu sou incapaz de acreditar que as pessoas dão crédito às revelações de Joseph Smith e Brigham Young”, teria afirmado Dom Pedro.

Ainda assim, o imperador fez diversas perguntas sobre o estilo de vida dos membros da Igreja, o caráter do templos e demonstrou interesse ao discurso do Élder John Taylor sobre os princípios do Evangelho.

Dom Pedro II era católico. Pelo artigo 103 da Constituição Federal de 1824, o imperador do Brasil precisava jurar manter tal religião.

Brigham Young e o rumor do êxodo para a América do Sul

A visita do imperador do Brasil à Cidade do Lago Salgado reaqueceu rumores de que A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias tentaria sair mais uma vez dos Estados Unidos.

Retrato do profeta Brigham Young.

Em 1847, a Igreja fugiu para o México para escapar da perseguição religiosa nos Estados Unidos. Nos anos seguintes, os santos dos últimos dias no território de Utah, mesmo distante do restante do país, começaram a sofrer mais perseguições.

Corria o boato de que os ‘mórmons’ tentariam conquistar o território do Novo México, ao sul do território de Utah, mas o repentino aparecimento de Dom Pedro II abriu a imaginação dos inimigos da Igreja.

Como publicado no jornal Deseret Evening News, o imperador do Brasil simplesmente vir para o meio da América do Norte fazia parte do plano de Brigham Young de conquistar “uma porção do império brasileiro, que é um grande país e muito pouco povoado”.

Apesar de a Igreja Católica Apostólica Romana ser a igreja oficial do Império do Brasil, o país de fato tinha sua população no século XIX amplamente concentrada no litoral, deixando grandes vazios demográficos em seu interior, longe dos olhos do Vaticano e da Coroa.

Talvez para impedir a “confirmação” dos boatos, o presidente Brigham Young não se encontrou com o imperador Dom Pedro II enquanto ele esteve em Salt Lake City.

Em todo o caso, a visita do monarca brasileiro cumpriu uma profecia de Brigham Young de 1848:

“Deus designou este lugar para a reunião dos santos. (…) Aqui estamos e aqui ficaremos. Quando os santos reunirem-se neste local e tornarem-se fortes o suficiente para tomar posse da terra, Deus irá amenizar o clima, e construiremos uma cidade e um templo ao Altíssimo neste lugar. (…) Reis e imperadores e os nobres e sábios da Terra aqui virão nos visitar.”

(BROWN. James S. Life of a pioneer. 1960. P. 133.)

Este artigo contêm trechos traduzidos do artigo “Emperor Dom Pedro’s Visit to Salt Lake City” de David L. Wood (1969) para o Utah Historical Quarterly.

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Celso Assis

Jornalista especializado na comunicação de advogados e médicos.