Quem mora em Santo Amaro sabe: é só chover bastante e coincidir com cheia da maré, os rios Subaé e Sergimirim - que cortam visceralmente toda cidade - correm risco de transbordar. As águas
não pedem passagem, surpreendem e invadem as ruas, residencias, lojas.
Dentre tantas enchentes, em especial a de 1982, há relatos de que ocorreu algo inusitado, descrito até em livro pelo professor Édio Souza, em O Bondinho da Saudade (1992, p.26). Contudo, é importante ressaltar
Nestor da Costa Oliveira, uma das referencias quando se fala na produção literária da cidade, professor que assim como Édio, inspirou e promoveu o exercício da leitura e produção artística.
Sobre tal enchente, descreve ter visto páginas boiando no meio da correnteza e logo reconheceu: Espelho de Três Faces, do seu amigo Nestor. Primeiramente, desacreditou. Porém, pegou uma das páginas que tinha o seguinte poema:
Rio Subaé
I
Rolando leve, rolando
Te vais, num murmúrio brando
E, a água barrenta trescala
Um cheiro de fêmea nova,
Que o Senhor machacaz prova
Na escuridão da Senzala.
II
Ungida em triste acalanto,
Desafia em teu seio em pranto
Toda a história da cidade;
Um rico Senhor de Engenho,
Portador do Santo Lenho,
Crucifica a castidade…
III
Sem cavalheiro nem drama,
Nos braços de uma mucama,
Dorme e sonha um ser franzino;
E João Ninguém responde
Pelas culpas do Visconde,
E sai mulato o menino!
IV
Por curvos caminhos tredos,
Cortando velhos segredos,
Madraceiro, o Rio vai
Para que a gente, hoje, entenda,
Não tivesse a mão comenda,
Sobrando brasões ao pai
V
Houve na praça alvoroço,
Que esbarrou no Senhor-Moço,
Negrinho ao jogo-da-argola…
E o desgraçado cativo,
Ninguém sabe se está vivo
Ou se voltou para Angola
VI
Entremosta os seios duros,
- como dois frutos maduros
Na casa Grande, a Josina…
Provocam fome e ternura;
Foi-se, um dia a formosura
Do colo da negra-mina!
VII
Descendo cansado e lento
viste o amor e o sofrimento,
Mais sofrimento que amor…
Por isso rolas, gemendo
Sob a noite, estremecendo
As ribas do vale em flor…
VIII
O sonho dos namorados,
Que janela dos sobrados,
(Em tempos que longe vão…)
Ainda num doido anseio,
Palpita e treme teu seio,
Rio do meu coração!
IX
Lava o peito aberto em fráguas
Na profundez dessas águas
De quem, por muito te amar,
Deseja descer comigo,
Procurando o mesmo abrigo
Que buscas na alma do mar!
(Nestor da Costa Oliveira - Espelho de Três Faces)
Nestor, infelizmente faleceu. Porém professor Édio está vivíssimo e reside na cidade. Embora maltratada e com o patrimônio histórico se degradando mais e mais, Santo Amaro nos surpreende: não se importando com o factual, e sim pelos discursos simbólicos criados envoltos destes fatos - independente de serem rumores ou não.
Dias cinzas: um testemunho.
A semana anterior foi sufocante! Um enorme calor como nunca mais havia sentido, as noites quentes e o sol intenso durante o dia fazia com que todos comentassem do quão estava infernal conviver com aquele clima. Por curiosidade, em uma conversa na noite de terça, meu amigo olhou o widget meteorológico do celular e incrivelmente apontava chuva para o dia de seguinte, era algo inacreditável. O dia de quarta amanheceu nublado, chuvoso e um pouco mais fresco, desde então o sol não mais apareceu na semana.
Na sexta à tarde, estava na escola, terminei o trabalho às quatro horas, já tinha chovido a tarde toda e em nenhum momento houve trégua, tinha esquecido o guarda chuva em casa, resolvi esperar até ás seis, quando meu pai veio me buscar, nesse tempo fiquei observando a chuva cair e as pessoas preocupadas em como chegar em casa. Na volta pra casa algumas ruas por onde passei já estavam cheias de água e a chuva não estiava hora alguma.
Fui dormir. Minha avó estava preocupada, pois a rua em que moro estava cheia e os bueiros de nada serviam, às seis horas do sábado ela me acordou aos berros para por sobre bancos o sofá e o lavatório do salão de minha irmã, no térreo, pois não parava de chover e a água já estava entrando nas casas. Um pouco sonâmbula, ainda sem acreditar em nada a ajudei e voltei a dormir. Cada vez mais cheia a rua, as pessoas passavam de um lado para o outro com tijolos e bancos. Eu enrolada em um lençol, no primeiro andar, apenas tentava compreender a situação, foi tudo tão de repente, tão inesperado.
As mensagens chegavam a todos os momentos pelo whatsapp e facebook com fotos, vídeos e noticias de todos os locais da cidade, as pessoas apavoradas, e eu ainda não acreditava que aquilo tudo estava acontecendo tão rapidamente.
Os vizinhos compartilhavam informações, e todos os momentos só havia noticias que a água estava tomando conta da cidade. Minha avó não me deixou descer para ver como estavam as coisas pelo bairro, apenas tinha a visão da minha rua e do que as pessoas a todo o momento publicavam nas redes sociais.
Minha mãe estava vindo de Salvador, e ficou horas no engarrafamento tentando entrar na cidade, assim que passou pelo comércio, pela janela do ônibus conseguiu ótimas filmagens de pessoas se aproveitando do momento de desordem e sofrimento para saquear as lojas da cidade levando em sua maioria eletrodoméstico, aparelhos celulares, televisores, muitas coisas de valor que não lhes pertenciam.
Ao passar do tempo a chuva cessou e o nível da água começou a baixar, desci para ajudar os vizinhos, passei a tarde inteira dentro daquela água suja, limpando casas, tirando lama, organizando as coisas, contabilizando o que foi perdido, levado pela água.
Á noite, completamente cansada e pensativa, sentei para assistir o jornal local com minha família, surpreendida com as fotos aéreas tiradas pelo helicóptero pude ver de forma espantosa os estragos provocados pela enchente. Muitas famílias desabrigadas, muitos pertences levados pela chuva, pessoas que se aproveitaram do momento para roubar as coisas, as mercadorias dos feirantes de Santo Amaro-BA foram levadas com a forte correnteza do rio que também destruiu muitas barracas, até mesmo provocou a queda de uma árvore no bairro do Trapiche de Baixo, e ainda se houve a notícia de que uma senhora tinha desaparecido em meio a confusão, sendo arrastada pra dentro do rio que mais do que nunca estava cheio de lixos.
Após ver os relatos das pessoas nas redes sociais, no domingo de manhã, sair para olhar como a cidade estava. Muitas pessoas limpando suas casas, jogando as coisas foras, tentando se recuperar de uma tragédia que há tempos não acontecia. Foi do nada, imprevisível é claro, desestabilizou inúmeras pessoas. Jamais ninguém irá esquecer o que houve no dia 11/04/2015, há diversos relatos e opiniões diferentes sobre esse ocorrido, a natureza se revoltou, e levou o pouco de bens materiais que as pessoas tinham, pois quem realmente tinha condições estava do alto olhando tudo, o prefeito não tomou nenhuma providência cabível para ajudar a cidade se reerguer ainda.
Agora só nos resta rezar para que tudo fique bem com todas as famílias, e nos conscientizar que metade do que aconteceu também foi provocado pela ação humana e que podemos nos mobilizar e tentar mudar essa realidade.
Dia 13 de maio em Santo Amaro Na Praça do Mercado Os pretos celebravam (Talvez hoje inda o façam) O fim da escravidão Da escravidão O fim da escravidão
Assim diz Caetano Veloso na canção “13 de Maio”, conterrâneo de Santo Amaro - Bahia. Em muitos lugares esta data de suma importância passa despercebida, porém nesta cidade, desde a 1889 (um ano após a Lei Áurea) é comemorada fortemente. Santo Amaro da Purificação, Terra de Dona Canô, Caetano, Maria Bethânia, como normalmente é chamada, não se restringe somente à isso (muito menos ao que se mostrou no Domingão do Faustão, no quadro Dança da Galera). Possui mais encantos artísticos, culturais e históricos do que se imagina.
Fundada oito anos depois da fundação de Salvador (1557), a cidade sempre foi e é um reflexo de tudo que ocorreu (e ocorre) no Brasil. Para se entender este país, precisa-se entender a Bahia, para entender a Bahia, precisa-se entender o Recôncavo Baiano e para se entender o Recôncavo Baiano, precisa-se entender Santo Amaro.
Participou da ascensão e domínio da cana-de-açúcar; foi o local em que se fez a Ata de 2 de Julho para a Independência da Bahia; grande relevância na abolição e resistência à escravidão; teve metade da população dizimada pela epidemia da cólera; sofreu as devastadoras consequências da Indústria Moderna com a fábrica de chumbo; enorme influência na Ditadura Militar, movimentos sindicalistas e comunistas do Brasil; e hoje vive o caos da educação, saúde e segurança pública, como a maior parte das cidades brasileiras.
Mesmo a Lei Áurea não concebendo melhorias na vida dos escravos, o valor de liberdade já é motivo de festa. Exatamente este sentimento que o Bembé do Mercado passa: estar livre. Afirmação da religiosidade e cultura negra.
São 6 dias de festa, com apresentações puramente regionais. Vários grupos de capoeira; maculelê (uma luta misturada com dança que se utiliza bastões metálicos); samba de roda, chula, mascarados e grupos de dança afro; palestras e debates; e no encerramento de cada noite, candomblé, na propriedade da palavra, na rua. O único candomblé de rua em todo o país. Além da liberdade e a culto aos orixás, dá oportunidade de sintetizar toda a cultura, semeada desde a chegada dos povos negros vindos da África, que se misturou com os indígenas e portugueses.
E a maior tristeza é saber que este caos na gestão pública do Brasil, está tentando dissolver aos poucos essa cúpula cultural, destruindo todo seu patrimônio histórico. As pessoas não abrem os olhos para o que está se deixando para trás.Valorizar todo bem que seja orgânico é o primeiro passo para se viver melhor em conjunto. Precisa-se de globalização e estamos vivendo isto. Porém, uma globalização que não valorize somente aquilo que é mais rico economicamente.
Acompanhado por atabaques, ganzá, reco-reco, viola
e violão, o solista entoa cantigas, seguido em coro pelo grupo a dançar. Ligado
ao culto de orixás e caboclos, à capoeira e às comidas à base de dendê, o samba
de roda teve início por volta de 1860, como forma de preservação da cultura dos
negros africanos escravizados no Brasil.
A influência portuguesa, além da língua falada e cantada,
fica por conta da introdução da viola e do pandeiro. O ritmo é praticado em
todo o país, mas principalmente na região do Recôncavo.
Esse misto de música, dança, poesia e festa se revela de duas
formas características: o samba chula e o samba corrido.
A chula, uma forma de poesia, é declamada pelo
solista, enquanto o grupo escuta atento, só se rendendo aos encantos da dança
após o término do pronunciamento, quando um participante por vez adentra o meio
da roda ao som da batucada regida por palmas. Já no corrido, o samba toma conta
da roda ao mesmo tempo em que dois solistas e o coral se alternam no canto.
Em
Acupe ocorre a manifestação cultural batizada de “Caretas de Acupe”, em que grupos
folclóricos saem em quatro domingos seguintes desfilando suas mascaras, a
comunidade é invadida pela imprensa, turistas e estudiosos de vários estados e
do Exterior.
Contam
os mais velhos que um dono de engenho de Acupe trouxe mascaras para uma de suas
festas e ele distribuiu entre seus convidados, os negros escravos daquele
senhor ficaram interessados pelo uso de tal coisa cobrindo a cara, decidiram copiar
isso e fabricaram suas próprias mascaras.
No
primeiro ano da participação dos escravos na festa, apenas um deles se apresentou
usando a mascara, assustando e encantando muito os seus convidados e o dono do
engenho, que permitiu que seus escravos participassem nos anos seguintes,
aumentado cada vez sua popularidade e tornando-se uma tradição.
Leva
o nome de “Caretas” pela forma como as mascaras são, tendo o intuito de
assustar e divertir as pessoas que participam do cortejo.
Além
dessa manifestação podemos citar outras como: Nego fugido, Samba Chula,
Burrinhas, Bombacho, Mandus, Capoeira, Maculelê, Samba de Rapariga, Lundu entre
outros.
José Roberto Caribé
Mendes nasceu dia 22/11/1952, por feliz coincidência, dia da música. Natural de
Santo Amaro (e se não fosse, morreria; disse-nos com tom de humor). Cursou metade
de Matemática e foi professor, mas viu que isto não era para ele. Há 40 anos é músico, compositor,
instrumentista e arranjador.
Sobre o músico, Maria Bethânia escreveu em um encarte do
disco do compositor: “Roberto
Mendes, certamente um músico fora do comum, extraordinário, apegado e
apaixonado pela sua gente, sua terra, sua água tão limpa e única, e tão
apodrecida hoje com a desculpa do progresso. Progresso miserável matando seus
rios, peixes, mariscos… Progresso de chumbo que corrói o solo bendito de
tantos canaviais. Ao inferno todos os perversos que iludiram e iludem a
"cidade e o rio”, donos dos sons e sabores que aqui na música única
de Roberto sente-se, respira-se e saboreia-se. Uma foto do Brasil real, não o
virtual e inútil, na nossa cara, entrando pelas narinas, poros e goelas. O
“auxílio luxuoso” dos mestres (Guinga, Lenine, Alcione, Pedro Luís e
Marco Pereira) que aqui vieram, reafirmam o que digo, penso, choro e com que me
delicio. A música ainda pode nos salvar de todo o mal. Bravo e obrigada,
Roberto!“
Massema é uma música de Roberto e Capinan, com temas históricos: a escravidão, trafego negreiro, além de ter expressões de línguas de matriz africanas. O nome “massemba” é o plural de semba, que significa umbigada em quimbundo, ungir em torno do umbigo. Já a palavra samba, é alegria, agitação.
Massemba (Roberto Mendes e Capinan)
Que noite mais funda calunga
No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
É o semba do mundo calunga
Batendo samba em meu peito
Káwo-kabiesile-káwo
Okê-arô-okê
Quem me pariu foi o ventre de um navio
Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
Êpa raio, machado e trovão
Êpa justiça de guerreiro
Ê semba ê ê samba ah
O batuque das ondas
Nas noites mais longas
Me ensinou a cantar
Ê semba ê ê samba ah
Dor é o lugar mais fundo
É o umbigo do mundo
É o fundo do mar
Ê semba ê ê samba ah
No balanço das ondas okê arô
Me ensinou a bater seu tambor
Ê semba ê ê samba ah
No escuro porão eu vi o clarão
Do giro do mundo
Que noite mais funda calunga
No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro
É o semba do mundo calunga
Batendo samba em meu peito
Káwo-kabiesile-káwo
Okê-arô-okê
Quem me pariu foi o ventre de um navio
Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
Êpa raio, machado e trovão
Êpa justiça de guerreiro
Ê semba ê ê samba ah
Ê céu que cobriu nas noites de frio
Minha solidão
Ê semba ê ê samba ah
É oceano sem fim, sem amor, sem irmão
Ê káwo quero ser seu tambor
Ê semba ê ê samba ah
Eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão
Luar de luanda em meu coração
Umbigo da cor, abrigo da dor,
A primeira umbigada é massemba yayá
Yayá massemba é o samba que dá
Ô aprender a ler
Pra ensinar meus camaradas
Vou aprender a ler
Pra ensinar meus camaradas
… prender a ler
Pra ensinar meus camaradas
Vou aprender a ler
Pra ensinar meus camaradas
Que noite mais funda calunga…
Que noite mais funda calunga / no porão de um
navio negreiro: é uma teoria de como a chula chegou até
aqui. A música baiana Chula, não é só o samba de roda, mas é comportamento, “é
a necessidade de criar versos pra driblar da dor da saudade”. Calunga faz
referencia ao mar.
Ouvindo o batuque das ondas e Quem me pariu
foi o ventre de um navio / Quem me ouviu foi o vento do vazio / Do ventre do
escuro porão: Os
escravos ficavam num porão escuro, sujo, em péssimas condições de vida, ouviam
o batuque das ondas e observavam o ritmo e com isso aprendiam tocar tambor (No
balanço das ondas okê arô / Me ensinou a bater seu tambor).
Êpa raio, machado e trovão
/ Êpa justiça de guerreiro: referencia a Xangô.
Káwo-kabiesile-káwo / Okê-arô-okê:
são saudações para Xangô e Oxossi (orixá da cidade de Javé, signo da justiça).
Ê céu que cobriu nas noites de frio / É
oceano sem fim, sem amor, sem irmão / Eu faço a lua brilhar o esplandor e
clarão / Luar de Luanda em meu coração: novamente refere-se ao navio negreiro, que
os negros enfrentavam frio, chuva, viagens longas, doenças, fome e morte. A dor
da saudade também é retratada, do luar de Luanda, capital da Angola.
Ô aprender a ler / Pra ensinar meus camaradas:
é uma adaptação de uma cantiga, que o certo seria “Ô aprender a ler/ Pra dar
lição aos meus camaradas”. Representa o compartilhar de conhecimentos, já
discutido no primeiro encontro. “Se
detenho algum conhecimento, devo passá-lo para alguém”.
RELATO DO ARTISTA
“Santamarense, estudei no Teodoro Sampaio,
fiz o 2º grau aqui. Eu morro em Santo Amaro, meu limite é aqui. Professor
muitos anos de Matemática, no Teodoro Sampaio e em Acupe. Defensor 24 horas da
escola pública, a educação não pode ser privilégio. Educação, saúde e segurança
[não devem ser privilégio]. Acho que pode ter até escola particular, mas a
pública tem que ser um pouco melhor. Casado há 34 anos, três filhos. E acabou,
muito comum. Na minha terra, cidadão; é o que mais me orgulho. E no mais,
viver. Músico, compositor… isso é bobagem. Só tenho um orgulho: ser
santamarense, o resto é medíocre. Como santamarense, não sou humilde, não peço
licença para entrar. É a palavra que mais repito no dia, mais do que minha mãe,
meu pai e até Nossa Senhora. Depois de Santo Amaro, ai sim, pode ser qualquer
coisa. Mas Santo Amaro como vida, como cidadania e povo (…) Santo Amaro é uma encruzilhada a nível de conteúdo cultural e artístico; não houve um certo interesse da invasão da industria moderna no recôncavo. Por um lado, com a falência da monocultura veio um certo tipo de miséria, mas sobrou uma riqueza muito grande, que era que o conteúdo cultural não se misturou tanto, então essas heranças e costumes preservaram de certa forma o comportamento e humildade do recôncavo. É a miséria que nos deu a culinária e o canto belíssimo.”(15/06/2013)
As estradas de ferro contribuíram e contribuem para o desenvolvimento econômico, sendo um importante meio para escoar a produção dos mais variados tipos de materiais e serviu ainda como transporte humano. Santo Amaro, localizada no Recôncavo Baiano, foi um dos maiores produtores de cana-de-açúcar durante o período colonial no Brasil. Pelo desenvolvimento gerado por esta produção no decorrer da história, a cidade teve o centro os arredores cortados por uma ferrovia e um bonde urbano. O final do século XIX foi o período da implementação, sendo o bonde anterior poucos anos ao trem, 1874 e 1883 respectivamente. Mesmo com o açúcar em declínio, a direção das linhas eram para os engenhos que ainda estavam em atividade. Já o bonde cortava o centro da cidade e se direcionava ao porto do Conde. A estrada de ferro de Santo Amaro permaneceu isolada por muitos anos. Ligava a cidade à estação final de Jacu localizado há exatos 35,8 km, com a finalidade de atender aos engenhos de açúcar existentes na época. A construção do Engenho Central Bom Jardim, já citado por muitos autores como fruto da Escola Agrícola que fora criada três anos antes, viabilizou a construção da ferrovia. Não por acaso, o Engenho assim como a Escola Agrícola, pertenciam ao Visconde de Sergimirim que também foi quem deu a ideia da construção de tal ferrovia que inicialmente foi pensada para facilitar o escoamento do açúcar. Além do Do Bonde ao Trem Meios de transporte ferroviários em Santo Amaro Engenho Bom Jardim, havia outros engenhos tradicionais na região que também seriam beneficiados pela ferrovia:
Para o transporte das canas, está em construção uma viaférrea na extensão de 15 quilômetros, sendo 10 para o lado do norte e 5 para o lado do sul. A primeira atravessa e margina os engenhos Tarefas, Quitangá, Coité de Baixo, Santo Estevão do Triunfo, Regalo, Europa, Aurora, Gameleira e Chã; a segunda, os engenhos Cana-Brava, Oiteiro, Casa Nova, Bom Jardim, Malembar, Fazenda Nova, Jacu e outros. (Eul-Soo Pang, O Engenho Central do Bom Jardim).
As obras foram iniciadas em setembro de 1878, e em 23/12/1883, a linha foi aberta ao tráfego, com 36 km entre a cidade de Santo Amaro e a povoação de Jacu. Composta por locomotivas, carros de passageiros, vagão para animais, mercadorias, dentre outros.
Figura 1 - Linhas baianas em 1906. Em vermelho, como elas foram unidas nos anos 1930 e 1940. Em preto, as linhas isoladas como eram em 1906.
Para o transporte das canas, está em construção uma viaférrea na extensão de 15 quilômetros, sendo 10 para o lado do norte e 5 para o lado do sul. A primeira atravessa e margina os engenhos Tarefas, Quitangá, Coité de Baixo, Santo Estevão do Triunfo, Regalo, Europa, Aurora, Gameleira e Chã; a segunda, os engenhos Cana-Brava, Oiteiro, Casa Nova, Bom Jardim, Malembar, Fazenda Nova, Jacu e outros. (Eul-Soo Pang, O Engenho Central do Bom Jardim). Embora a estrada tenha sido pensada para facilitar o escoamento da produção dos engenhos e usinas de açúcar regional, muitos dos seus proprietários não eram a favor da construção de estradas e ferrovias. Em 1853, Ana Francisca Viana Bandeira, senhora dos Engenhos Muçurunga e Subaé, protestou contra a passagem da estrada provincial dentro de suas propriedades e requereu indenização. Atualmente a malha ferroviária está a serviço da FCA – Ferrovia Centro Atlâncitica – empresa privada do grupo VALE, transportando produtos de variados segmentos como commodities agrícolas, insumos e fertilizantes, combustíveis, siderúrgico, automotivo e autopeças, químico, petroquímico e mineração. A estação está abandonada, não há portas nem janelas, totalmente descaracterizada.
Figura 2 - Estação Ferroviária (2005)
A ação dos bondes, na cidade de Santo Amaro da Purificação, iniciou-se em 1º de Janeiro de 1874 e encerraram no ano de 1962, durando assim longos 88 anos. São reconhecidos por serem os últimos movidos à tração animal no Brasil e um dos últimos do mundo. As representações literárias sobre a cidade bem como outras expressões artísticas, primeiro caracteriza o espaço. Isso acontece através de descrições literal ou imagética. Outra forma de caracterizar o espaço é através de personagens locais, já que, por meio do uso de figuras arquetípicas do local, descreve o modo de viver característico e complementar no sentido ambicionado da obra. Esses recursos são facilmente encontrados em livros de Antônio Torres e em músicas de Caetano Veloso.
Figura 3- Um dos últimos bondes movidos à tração animal no Brasil e um dos últimos do mundo
Figura 4 - Linhas do bonde na Rua do Imperador, próximo ao Cais de Araújo Pinho
Em uma das músicas de Caetano Veloso “Trilhos Urbanos”, o poeta apresenta a descrição de uma sequência de imagens que remete a um tour pelas ruas da cidade. A letra tematiza uma viagem histórica nos pontos importantes da cidade pelos trilhos do antigo bonde, fazendo referência a um possível registro fotográfico da realidade ao redor.
Trilhos Urbanos - Caetano Veloso
O melhor o tempo esconde, longe, muito longe Mas bem dentro aqui, quando o bonde dava a volta ali No cais de Araújo Pinho, tamarindeirinho Nunca me esqueci onde o imperador fez xixi
Cana doce Santo Amaro, gosto muito raro Trago em mim por ti, e uma estrela sempre a luzir
Bonde da Trilhos Urbanos vão passando os anos E eu não te perdi, meu trabalho é te traduzir
Rua da Matriz ao Conde no trole ou no bonde Tudo é bom de vê, seu Popó do Maculelê
Mas aquela curva aberta, aquela coisa certa Não dá prá entender o Apolo e o rio Subaé
Pena de Pavão de Krishna, maravilha, vixe Maria Mãe de Deus, será que esses olhos são meus ?
Cinema transcendental, Trilhos Urbanos Gal cantando o Balancê Como eu sei lembrar de você
Menciona a Rua do Imperador, em frente a atual Casa do Samba, que pertenceu ao Imperador Dom Pedro II e depois ao Governador Araújo Pinho [figura 3 e 4] e no cais com o nome deste.
“Bonde da Trilhos Urbanos vão passando os anos / E eu não te perdi, meu trabalho é te traduzir”- Sintetiza sua tarefa nesta música, traduzir Santo Amaro.
Cana doce Santo Amaro, gosto muito raro:
Durante 400 anos Santo Amaro produziu 5% do PIB nacional com a monocultura
canavieira, onde havia 219 engenhos.
Rua da Matriz ao Conde ou no trole ou no
bonde / Tudo é bom de vê, seu Popó do Maculelê:
a Rua da Matriz é a que se localiza a Igreja Matriz da Purificação e o Conde é
o fim do Rio Subaé, princípio do mar (Depois da Caeira, bairro afastado). Os trilhos passavam por este trajeto, e Popó
era quem dirigia e que criou o Maculelê. É uma dança que se mistura com luta,
onde utiliza-se esgrima.
Mas aquela curva aberta, aquela coisa certa /
Não dá prá entender o Apolo e o rio Subaé: Uma curva
inusitada e larga que tem na região da Filarmônica Apolo, próximo ao rio Subaé.
Os ferros fundidos em forma de estrada que cortam e já cortaram Santo Amaro, portanto, possuem grande importância histórica e nos remetem ao passado em que a cidade viveu o grande apogeu econômico. A linha do bonde já não existe mais e a estrada do trem já não é a mesma de antes. Não se deu atenção e valor patrimonial, principalmente para o último bonde movido à tração animal que passava pelas cidades brasileiras.