Linguagem Guilhotina #23 - É Outubro e precisamos falar sobre A queda da casa de Usher
Ou: será que não andamos didáticos e literais demais?
Nevermore
Terminei, esta semana, de assistir a todos os episódios da A queda da casa de Usher, nova série de horror da Netflix e que estreou na sugestiva data da sexta-feira 13 deste mês de Outubro. Por causa do Halloween, muito conteúdo sobre horror é produzido e/ou publicado em diferentes mídias e também nas redes sociais. Eu já pensava em fazer ao menos uma postagem para aproveitar este clima, quando a série criada por Mike Flanagan me capturou.
Não sei vocês, mas sempre gostei de Halloween, porque desde pequeno eu curto todas estas coisas góticas, sombrias, trevosas. É engraçado, mas a minha fascinação pelo Halloween, durante muito tempo, sofreu um tiroteio entre dois curiosos polos: as igrejas evangélicas, por um lado, e a esquerda universitária, por outro.
Vamos começar pelos crentes. Para quem não sabe, eu fui criado em igreja evangélica. Da minha família mais próxima, acredito que ao menos 80% sejam protestantes e pertecentes às seguintes denominações: presbiterianos, congregacionais e batistas. Tenho parentes que são pastores, pregadores, missionários, presbíteros. O universo evangélico, que ficou tão em evidência no debate político brasileiro nos anos recentes, é o meu berço. Para muitos dos meus parentes, o Halloween era algo estranho demais. A data celebrava bruxas, fantasmas, monstros e uma visão de mundo que defendia uma espiritualidade que, por mais que fosse em vários casos misturada ao cristianismo, era sem dúvidas essencialmente pagã.
Por outro lado, o universo de esquerda com o qual eu convivia, até mesmo textos que eu estudava, via o Halloween como mais uma forma de colonialismo estadunidense. Havia debates sobre isso! É que, salvo engano meu, e por favor me corrijam nos comentários, o Halloween começou a ser mais celebrado no Brasil do fim dos anos 80 em diante.
Dessa forma, minha vontade de curtir e apreciar o Halloween ficava às vezes reprimida entre esses dois polos. Ambos estão errados. É possível você ser cristão e se divertir a partir de perspectivas culturais que são diferentes da sua religião; além disso, o Halloween é parte integrante da cultura de diversos países de base protestante. No caso da esquerda, havia um erro também, porque esses mitologias assombradas do Hemisfério Norte sempre foram parte da nossa cultura, devido à influência europeia. Fica até mais divertido quando, junto com monstros europeus, a gente mistura monstruosidades latino-americanas…
Ok, Cristhiano, mas cheguei aqui pra saber o que você achou da série, lembra?
Olha, eu gostei bastante da série, mas ela me deixou pensando algumas coisas.
Para quem ainda não assistiu, ela foi criada por um dos nomes mais celebrados do horror, Mike Flanagan. Eu gosto muito do trabalho dele. Foi uma das séries que ele criou, A maldição da Residência Hill, uma das responsáveis por me trazer de volta ao horror e que me ajudou a perceber como o insólito deveria ser meu caminho enquanto escritor.
No caso de A queda da casa de Usher, acompanhamos a derrocada moral e física de uma família milionária, envolvida com esquemas para lá de nebulosos relacionados à tenebrosa indústria farmacêutica americana. O título faz referência a um dos mais famosos contos de Edgar Allan Poe. Este conto, aliás, é um dos meus favoritos. A série é uma obra muito interessante no campo do debate sobre adaptação, porque ela é ao mesmo tempo uma história original, uma homenagem a Poe e uma adaptação de alguns dos seus contos e poemas. É uma playlist de horrores, nos quais temos referenciadas algumas das obras mais famosas do escritor, do poema “O corvo” até o conto que dá título à série.
A série revela as qualidades e fragilidades de Flanagan.
Entre as qualidades, creio que ele fez uma narrativa muito envolvente, que cumpre à risca os maravilhosos truques do folhetim para manter a gente engajado até o episódio final. Gosto da trupe de atores que têm sempre trabalhado com ele e do quanto suas séries tiram muita energia e verdade destas atuações. Há soluções visuais marcantes em A queda da casa de Usher - sua visualidade dá conta do caráter visionário, excêntrico, do horror. Adoro isso. Os quatro primeiros episódios são empolgantes, a ponto de eu achar que não assistia somente à melhor obra de Flanagan, como a uma das melhores séries de horror de tempos recentes.
Contudo, do quinto episódio em diante, algumas coisas começaram a se desgastar para mim.
Qual o papel de uma mensagem política em uma narrativa?
Foi essa a pergunta que me fiz assim que terminei de assistir a série toda.
Porque, à medida que os episódios se sucediam, ela perdia mais e mais a beleza da ambiguidade e da sutileza. Este tem sido um problema recorrente nas produções de Flanagan.
Tudo passou a ser explicado o tempo todo em longos monólogos. Alguns deles funcionavam, em especial por causa da boa atuação dos atores e atrizes. Mas vários deles, principalmente aqueles que se engajavam em uma crítica política mais direta, conferiram à série um caráter didático em excesso. O Monstro da série - não darei nenhum detalhe - já por si só possui um papel diabólico, no sentido de que a criatura é o Acusador, aquele que nos aponta nossos pecados. Não me incomoda uma personagem assim, pois ela faz parte de uma milenar tradição moral da história da literatura. Porém, além dos monólogos acusatórios do Monstro, monólogos, por si só, nem sempre tão bem escritos, temos outros longos monólogos de denúncia da sociedade americana como um todo. Didatismo excessivo é sempre sinal de má dramaturgia e este didatismo foi se acentuando não só no debate ideologico, como também em relação àquilo que os diversos personagens faziam e sentiam. A série de Flanagan, infelizmente, padece deste problema, que se acentua na segunda metade dos episódios.
Dessa forma, A queda da casa de Usher é uma série que reflete um mal do nosso tempo: a literalidade.
Precisamos de mais palco e menos palanques, tanto nos produtos audiovisuais, quanto na literatura, nos quadrinhos, nos games, em suma, em todas as formas de narrativa. E isso não é só um problema de artistas alinhados, como eu, à esquerda; quem é do campo conservador, da direta, também tem investido pesadamente apenas na superfície dos discursos.
O que aponto é, sem dúvidas, uma tendência, não a verdade para toda a produção contemporânea. Eu mesmo identifico, em contos meus, este problema. Estamos martelando a cabeça dos nossos leitores com didatismo e frases feitas, mas me pergunto: não é a hora de lembrarmos que o melhor da literatura está justamente no movimento contrário, no nó que, através da palavra, podemos dar aos clichês do pensamento e da linguagem?
E o horror em A queda da casa de Usher? Funciona?
Sim, funciona bastante.
Há um impacto, em especial no fim de alguns episódios, que só o horror pode dar pra gente. Há cenas, cenários e sequências lindas de puro delírio gótico contemporâneo. Tomei até uns bons sustos aqui e ali. Gosto demais do modo como Flanagan e os outros diretores da série filmam os episódios. No entanto, senti menos inventividade visual, menos beleza, do que em séries ou filmes anteriores dele. Por isso, continuo achando que Missa da meia-noite, também da Netflix, é a grande obra dele. Me deu vontade, aliás, de rever esta série.
Edgar Allan Poe como referência fundamental funciona na série?
É muito divertido caçar os easter eggs da obra de Poe ao longo dos episódios, mas no final eu já estava cansado de tanta referência. Um dos momentos supostamente mais marcantes, quando o poema “O corvo” é literalmente adaptado em um dos episódios, me soou mais como uma piscadela para os fãs do autor, do que algo de fato relevante. Gostei mais quando Poe esteve subvertido: meio na contramão, meio nas entrelinhas.
Enfim, meu veredito é: vale muito a pena ver A queda da casa de Usher, porque a série se mantém sólida em seu conjunto. Se você gosta de horror e de Poe, não pode deixar de assistir. Se o horror não é tanto a sua praia, mas está mesmo assim curioso para ver, eu te diria para dar uma chance, porque A queda da casa de Usher é daquelas obras que podem te fazer curtir histórias de horror. Embora rolem alguns sustos, ela é mais sombria do que aterrorizante. É como uma novela das boas, como uma Succession, mas produzida pela turma estranha que usa camisa preta e senta ali num canto da sala.
O terror ainda não acabou
E já que o assunto é este, encerro essa newsletter com algumas recomendações de três coisas para vocês assistirem:
The Innocents - filmaço britânico que adapta, com muito clima noir e toques de surrealismo, a clássica novela de Henry James. Dá pra ver na íntegra no YouTube.
Impetigore - Clássico malévolo e contemporâneo do horror indonésio. É um filme que sofre de incoerências no último ato, mas vale demais assistir.
A sombra do pai - Um dos meus filmes brasileiros favoritos. Dirigido por Gabriela Amaral Almeida. Entre o surrealismo, o conto de fadas e o horror propriamente dito, é algo que eu adoraria ter escrito.
E vocês, o que acharam da série? Além disso, concordam que temos padecido, em muitas produções recentes, de excesso de didatismo, sentidos literais, “palestras”. Me contem nos comentários e continuamos nossa conversa.
C.
Me considero uma pessoa bastante política e gosto de ver debates politizados sendo levantados, principalmente em situações que normalmente não se esperam. Entretanto, concordo em parte com a ideia que exprime aí, para mim a Queda da Casa de Usher foi no ponto, me agrada demais os longos monólogos, mas se ampliarmos para fora disso, conseguimos perceber que tem se tornado um padrão no meio cinematográfico. Tudo hoje demonstra ter a necessidade de passar uma mensagem politica nítida e desenvolvida, um pauta social critica, precisa ter uma bandeira e necessita de explicações mastigadas. Sinto falta de obras que terminam sem você entender muito bem o que acabou de ver, que provocam discordâncias nas interpretações tamanha suas ambiguidades, que grudam na sua cabeça querendo mais e que não se incomodam de trazer clareza, de por sob os holofotes todos os pontos e nos faça mastigar e remoer essas dúvidas até o fim dos tempos. Acredito que o Mike conseguiu um pouco disso, pelo menos comigo, em relação a figura do monstro (mas não além disso), fiquei e continuo presa em sua identidade, alguns a viram como a morte, como o diabo, para mim não era nenhum dessas, mas uma entidade que me remeteu a Fortuna e a algo similar as figuras mitológicas das Nornas/parcas/moiras e que nunca saberei, porque não era preciso que fosse explicado. Acho que quebra um pouco o encanto quando a obra explica, "obvializa" para ser entendida ou apreciada.
Como disse, me considero bastante política, mas acredito também, em parcimônia, militância demais exaure e creio que estamos próximos desse ponto, se é que já não o cruzamos e as mensagens acabam deixando de cumprir a função que deveriam. Sempre vem a memória parte do discurso do Oscar Wilde na introdução de O retrato de Dorian Gray, em que diz que "Theres no such thing as a moral or a imoral book. Books are well written, or badly written. Thatt is all... No artist desires to prove anything. Even things that are true can be proved. No artist has ethical sympathies... The artist can express anything... All art is at once surface and symbol." Um discurso deveras polêmico kkkkk, mas acredito que possui um quê de verdade nessa era em que tudo precisa ser correto, suave, sem gatilhos, ético, politizado.
Nossa, também, acho um saco este didatismo atual, apesar de não ter focado neste aspecto da série, enquanto via.
Achei um pouco cafona alguns aspectos dela, em especial o Corvo em si (a Gugino, que é uma boa atriz; o exemplo que me vem imediatamente é a da roupa e da postura dela na festa do Prospero, que me pareceu, de uma forma geral, muito uma fantasia puritana acerca de como é uma orgia) e o Pym (apesar da personagem na própria série ser muito interessante, achei ela pouco explorada e visualmente concebida de forma meio meh). Eu sei que há algo possivelmente cafona no gótico, mas é tão bom quanto fica só no possivelmente.
Midnight Mass é excelente, mas, para mim, tem algo que faltou: a V word. Eu acho que a série não teria perdido nada se eles tivessem aprofundado a discussão da ambiguidade das manifestações sobrenaturais (existente mesmo na Bíblia, na qual os anjos sempre geram temor quando aparecem) a partir da discussão sobre o fato da criatura ser um vampiro. Mas o próprio Flanagan falou que não falou porque não quis... Aí o buraco é mais embaixo, né? kkkk