Folguedos natalinos cearenses se adaptam à pandemia com lives e distanciamento social

Pastoris, presépios, lapinhas, reisados, entre outras manifestações em grupo, se reinventam para manter viva a tradição sem perder de vista os protocolos de saúde

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
Criança brincante do Reisado dos Irmãos (Juazeiro do Norte) olha para a câmera fotográfica
Legenda: Crianças e adolescentes que participam dos folguedos no Ceará sentem falta das atividades em grupo. Na foto, registro de brincante do Reisado dos Irmãos, de Juazeiro do Norte, em 2019
Foto: Fabiane de Paula

O período que compreende o fim de um ano e o começo de outro, para muitos mestres da cultura cearense, é tempo de “rezar brincando”. Grupos espalhados por todo o Estado reverenciam o nascimento do Menino Jesus, com apresentações que costumam se estender até 6 de janeiro, Dia de Reis. No entanto, em 2020, assim como outras festividades afetadas pela pandemia de Covid-19, as expressões referentes ao ciclo natalino foram duramente impactadas pelas incertezas, restando aos coletivos reinventar-se para abraçar a tradição, sem descuidar dos protocolos de saúde.

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“O não poder juntar para brincar trouxe a dificuldade, ainda mais para essas comunidades sertanejas, que têm o hábito de viver mais o espaço da rua.  Mas, apesar do desafio com a questão da internet, vimos que eles tentaram também dominar isso, encontrando uma forma de aproveitar as oportunidades que vieram do Sesc, do Governo do Estado, das Prefeituras. Começaram a fazer atividades virtuais e isso foi o que motivou, salvou algumas coisas que vamos ter agora no período natalino”, destaca Lourdes Macena,  Dra. em Artes e coordenadora do Grupo Miraíra (IFCE), que trabalha com artes cênicas e musicais a partir de matrizes estéticas da tradição.

A mestra Dylla Costa, 52, responsável pelo Pastoril Nossa Senhora de Fátima, de Maracanaú, reduziu o número de brincantes, que costuma ser na faixa de 40, para apenas 15, e em sistema rotativo, reunindo no máximo 8 pessoas por live, mesmo que todos sejam da família. Contemplado pelo edital de Patrimônio Cultural do Ceará via Lei Aldir Blanc, o grupo se apresentou no último dia 23 com transmissão pelo YouTube do Dragão do Mar e fará outra apresentação nesta sexta (25), logo mais às 16h, transmitida pelo Facebook de Dylla.

“No pastoril, como a gente canta e não dá para ficar com a máscara, fazemos a testagem antes no posto do município. Já os músicos permanecem todos de máscara. Os microfones ficam com uma esponja, que é trocada e higienizada sempre”, explica a coordenadora. Ela herdou o grupo iniciado há 74 anos pela mãe, Rita Costa, após o falecimento da matriarca, em 2004. Mesmo com todos os desafios de um ano pandêmico, Dylla segue atendendo o desejo de Mestra Rita e não deixa a brincadeira arrefecer.

Com o recurso advindo da Lei Emergencial, foi possível também a renovação dos figurinos e o pagamento de instrumentistas, costureiros e aderecistas. Além disso, viabilizou-se a realização do projeto Brincantes Multiplicadores do Saber, em que jovens transmitem a tradição de Reisado, Presépio, Pastoril, entre outras manifestações, por meio de oficinas. “Esses editais vieram em boa hora. Principalmente nesse ano, em que sofremos com tantas percas, a gente quer levar algo que é leve com nossas expressões, trazer o espírito de Natal para as pessoas”, destaca Dylla.

Pastoras do Pastoril Nossa Senhora de Fátima dançam na rua
Legenda: Divididas entre os partidos azul e encarnado, as pastoras do Pastoril Nossa Senhora de Fátima estão com atividades restritas este ano. Na foto, registro de 2013, pelas ruas de Maracanaú
Foto: José Leomar

Atividades reduzidas

No Cariri cearense, a Mestra Lúcia Guerreira, 50, lamenta não poder realizar as apresentações como de costume em 2020. Ela, que tem uma vida dedicada ao Reisado, à Lapinha e às Guerreiras, com grupos formados basicamente por crianças e adolescentes do bairro periféricos de Juazeiro do Norte, também se viu na dependência de editais viabilizados pela Lei Aldir Blanc este ano. 

“Com o recurso, vamos vestir o Reisado Estrela Guia e as Guerreiras de Santa Lúcia. Os grupos aqui da região foram praticamente todos contemplados, ainda bem, porque a gente não tá podendo se reunir e os meninos sentem muita falta”, observa a Mestra. Este ano, ela fez apenas uma live, em casa. “Foi só eu, meu menino e um brincante, para não ter aglomeração”, comenta. 

Crianças encenam o nascimento de Jesus, na Lapinha Santa Clara
Legenda: A Lapinha viva é tradição no Cariri cearense. Na foto, registro da Lapinha Santa Clara, de Juazeiro do Norte, em 2014
Foto: Elizangela Santos

Já no município de Quixeré, na região do Jaguaribe, mulheres que costumam brincar de Presépio desde a infância vão reduzir o tempo de apresentação na missa de natal, neste dia 25, mas manterão a atividade para “animar a igreja”. “Vamos fazer só três partes do Presépio com no máximo 12 pessoas”, explica a agricultura Judite Xavier de Sousa, 67.

Durante a encenação, alguém sempre grava o vídeo no celular, a fim de que mais pessoas da região possam contemplar o folguedo. Neste ano de pandemia, então, Judite garante que as imagens serão divulgadas em redes sociais como Facebook  e WhatsApp.

Cultura e fé

Para a pesquisadora Lourdes Macena, essas brincadeiras são expressões da religiosidade popular e representam uma forma de como o homem se comunica com o cosmos, então, de certa forma, elas servem para essa comunicação espiritual também.

“O vírus afeta isso, porque o homem entende que não vai poder fazer aquilo que é da sua devoção de fé. Só que essas comunidades são de uma capacidade muito grande de se reinventarem, então o que eu vi é que o prejuízo da pandemia foi maior no caráter sócio-cultural do que religioso, porque a fé transcende essas questões”, observa.

“A fé sertaneja, a fé brincante, de religiosidade popular, ultrapassa o que é mandado pelo homem. Os brincantes procuram se entender com o cosmos, com aquilo que é possível chegar até eles. E se alimentam da fé para se reestruturarem”, conclui Lourdes Macena.

Boi Paz no Mundo
Legenda: No Ceará, a brincadeira do Boi também pertence ao ciclo natalino, segundo a pesquisadora Lourdes Macena. Na foto, registro do Boi Paz no Mundo, em 2019
Foto: Fabiane de Paula

Conheça os folguedos natalinos cearenses:

Pastoril ou Auto do Pastoril:  É uma representação dançada, dialogada, que conta, dentro de uma narrativa  com movimento, gestos, bailados, a ida das pastorinhas a Belém para ver e homenagear o Menino Jesus. Nesse percurso, elas costumam se dividir entre os partidos azul e encarnado, que competem para decidir quem está levando as melhores oferendas ao filho de Deus. Na cena, aparecem outros personagens, a exemplo de Nossa Senhora, São José, Menino Jesus, a Estrela, os Reis Magos, o Anjo, a Florista, a Camponesa, o Diabo, a Pastora Perdida, as Ciganas, as Borboletas etc.

Lapinhas e Presépios: São encenações animadas do nascimento do Menino Jesus. A Lapinha viva é a mesma representação do presépio simbólico, mas com figuras humanas, e não com figuras artesanais. Toda a encenação do momento único do nascimento é feita com cânticos e representações, como se fosse um grande musical. Em alguns grupos do interior do Ceará, a exemplo de Juazeiro do Norte, as denominações mudam, e chamam de Lapinha o que aqui foi apresentado como Pastoril.

Reisados: Espetáculo bailado em referência aos reis magos. Conta com a execução de peças cantadas e dançadas, e entremeios, quadros dramatizados, com a presença de animais e figuras fantásticas, a exemplo do Jaraguá e do Guriabá. Entre as principais modalidades encontradas no Ceará, estão os Reis do Congo, Reis de Careta (ou de Couro), Reis de Caboclo e Reis de Baile.

Fandango: O enredo da brincadeira trata sobre aventuras marítimas e conflitos de uma embarcação. No Ceará, a manifestação era comum entre pescadores da Praia do Mucuripe, em Fortaleza, e em outras cidades litorâneas do estado. Hoje, existe somente na memória de brincantes, antigos moradores do bairro e em estudos e registros de alguns pesquisadores.

Bumba meu boi: Apesar de estar presente no ciclo junino, o Bumba meu boi, no caso cearense, é um folguedo  que também pertence ao ciclo natalino. Por aqui, essa brincadeira começa a se organizar a partir do mês de outubro e fecha o ciclo com a matança do boi no mês de janeiro, logo após o Dia de Reis. Com a presença de personagens humanos, animais e fantásticos, tem motivações específicas de acordo com cada Mestre. Em geral, a história da grávida Catirina, que queria comer a língua do boi do patrão do marido, é o mote do enredo.

Fonte: Lourdes Macena

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