Jum Nakao resgata desfile de papel em coleção de lingerie, documentário e exposição 

Estilista relembra bastidores da histórica apresentação de 2004, que sacudiu a SPFW e acendeu questionamentos na moda com seu desfecho catártico. 


modelo negra com lingerie branca assinada por Jum Nakao
Foto: Divulgação



17 de junho de 2004. As modelos Gianne Albertoni, Barbara Fialho, Aline Weber e tantas outras cruzam a passarela do estilista Jum Nakao, na São Paulo Fashion Week, todas vestidas com looks construídos em papel vegetal de diferentes gramaturas. A plateia, atônita, acompanha silenciosamente cada movimento, observando os detalhes, tentando desvendar as mais discretas intenções. De repente, as peças, que consumiram mais de 700 horas de trabalho, começam a ir pelos ares, rasgadas, destruídas… Catarse fashion, ruptura total. O designer paulistano estava se opondo ao sistema inteiro, na maior semana de moda da América Latina. 

“Esse desfile foi uma pausa de reflexão sobre o significado da indústria. Mostrava o trabalho, a criação, o encantamento e o efêmero da moda. Inesquecível”, diz a consultora e editora de moda Gloria Kalil. 

A top Gianne Albertoni não esquece a satisfação de ter feito parte do show. “Foi uma honra incrível poder presenciar um artista criando e estar presente em um ponto crucial de nossa história. Confesso que não foi fácil rasgar aquela obra de arte. Deu uma dor no coração. Mas o resultado final foi épico e acho que era exatamente isso que Jum idealizava”, recorda a modelo. 

Gianne Albertoni com roupa de papel no desfile de jum nakao em 2004

Gianne Albertoni no desfile A costura do invisível, de 2004. Foto: Getty Images

Passados 19 anos do episódio, o estilista conta que não imaginava que a cena marcaria a história da moda brasileira. “Seria até arrogante eu pensar que estaria imortalizando uma cena, ainda mais em um evento com objetivo de vendas. Destruímos tudo. No entanto, foi realmente um instante de repensar a cadeia inteira, rever processos”, observa Nakao, hoje com 56 anos. “À época, foi um movimento contra o fast-fashion, que atualmente se depara com todas as ofertas virtuais. Lá em 2004, o consumidor buscava preço e acredito que cultivei uma semente de transformação, resgatei uma certa lucidez. Foi um período também conturbado, de uma globalização para a qual talvez não estivéssemos preparados. Foi um grande tsunami.” 

Após esse importante capítulo, o paulistano meio que navegou por outros mares. Trocou as observadas passarelas por centros de ensino em todo o mundo, ajudando a reorganizar a indústria. “Na verdade, nunca me ausentei, apenas encontrei formas diversas de colaborar. Lecionei e dei consultoria, agregando conhecimento a quem interessasse. Das passarelas, foi um autoexílio para não me contaminar e não me sufocar, não cometer os erros que estavam aí. Para mim, moda vai além da aparência. É uma questão bem mais profunda.”

No mundo pós-pandêmico, depois de rodar universidades de todo o mundo, dividindo experiências, Nakao está de volta ao jogo, mas à sua maneira. “Desde 2004, venho experimentando novas formas de me relacionar com a indústria. Criei figurino para espetáculos, instalações… E percebi que nós, profissionais da moda, temos uma visão global de como as coisas devem funcionar. Quando pensamos em um desfile, colocamos na mesa a cenografia, iluminação, fotografia, concepção de um catálogo. Somos, de fato, capacitados. Ao longo desses anos, estive muito próximo do meio acadêmico e acabei recebendo um convite de uma ex-aluna para compartilhar minha experiência em sua empresa, a Recco. A relação foi se intensificando, até que fui convidado a desenvolver uma coleção inspirada nas peças de papel. Aceitei, pois se trata de uma empresa que investe em pessoas. Quem ocupa os altos cargos por lá passou pelo chão de fábrica.”

Nakao abre um parênteses importante nesse ponto da conversa. Para ele, o sucesso da moda depende da “esperança e da crença dos envolvidos”. “Caso contrário, não chegaríamos ao final do trajeto”, sentencia o designer. 

Para a linha especial, foram desenvolvidas nove referências, entre calcinha, sutiãs, camisola e robe nas cores preto e branco, confeccionadas em charmeuse e crepe. “No fim, é um tributo ao desfile de papel, porém transportado para o universo da lingerie e do loungewear. É uma valorização do trabalho artesanal; é de uma delicadeza imensa”, comemora o paulistano. 

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Algumas peças da coleção de lingerie inspirada nas peças de papel deJum Nakao. Foto: Getty Images

Além da coleção, agora com tecidos, foi criado um catálogo com a equipe original que participou do processo, em 2004, do fotógrafo ao cenógrafo. “Daí, tivemos a ideia de documentar esse resgate. Ouvimos pessoas que estiveram ligadas ao episódio, como o Paulo Borges, diretor criativo da São Paulo Fashion Week. Com os personagens, falamos de moda, identidade da nossa indústria têxtil e tantos outros temas relevantes”. O documentário, intitulado O invisível da moda brasileira, está disponível no YouTube, e uma exposição homônima, em cartaz no Museu de Arte Brasileira da FAAP até 16 de abril, também mergulha nesse momento. “No espaço, palavras suspensas resgatam pensamentos que permearam o processo criativo da coleção de papel”, conta o estilista. 

Atento à turbulência das águas, Nakao prevê uma nova ruptura, uma mudança de curso. “A coleção de papel foi parar nos livros do ensino fundamental. É tido como um exemplo do que é arte. Estamos em constante evolução. Atualmente, a internet coloca em xeque o fast-fashion, que assombrava o mundo em 2004.” 

A conferir.

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