Cultura

O caminho torto da Via-Sacra de Alberto Guignard

O caminho torto da Via-Sacra de Alberto Guignard

Um conjunto de obras de Guignard, avaliado em R$ 4 milhões, deixou os olhos do público em 1968. Por causa de uma disputa, só foi exposto duas vezes em 50 anos

MARCELO BORTOLOTI
24/10/2017 - 08h00 - Atualizado 24/10/2017 08h00
Um conjunto de obras de Alberto Guignard, avaliado em R$ 4 milhões, deixou os olhos do público em 1968. Por causa de uma disputa, só foi exposto duas vezes em 50 anos (Foto: reprodução)

Quando o diplomata José Sette Câmara era governador do antigo estado da Guanabara, sua mulher, conhecida como dona Elba, ganhava fama pelas obras sociais. Ela foi responsável por criar jardins em áreas públicas da Zona Sul do Rio de Janeiro, plantando flores nas orlas de Ipanema e Copacabana. Na Zona Norte, encabeçou a construção de uma igreja no bairro de Manguinhos, hoje tomado por favelas, que reunia um conjunto precioso da arte brasileira. Ela queria criar um espaço religioso e turístico para uma população operária e atrair visitantes da Zona Sul, mais rica, para que eles tivessem contato com problemas cariocas da região mais pobre. Dona Elba mobilizou a alta sociedade, em 1960, para construir sua capela só com doações. Oscar Niemeyer fez de graça o desenho da igreja. Paulo Athayde deu o projeto paisagístico. Rodrigo Melo Franco forneceu uma réplica em gesso de um profeta esculpido por Aleijadinho. Doações particulares somaram 5 milhões de cruzeiros para as obras. E o pintor Alberto da Veiga Guignard entrou com o conjunto mais valioso: 14 quadros de uma Via-Sacra representando os passos do martírio de Cristo, pintados por ele especialmente para decorar as paredes.

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Não foi difícil convencer Guignard a participar da iniciativa. Cerca de 15 anos antes, Cândido Portinari fora convidado pelo governo de Minas Gerais a pintar uma Via-Sacra na capela projetada por Niemeyer em Belo Horizonte. Guignard, que passara a morar em Minas a partir de 1944, achava que deveria ter sido o artista convidado. Havia entre os dois pintores uma admiração mútua e uma silenciosa rivalidade. Guignard era um tipo simples, incapaz de falar mal de alguém ou de tentar ostentar sua superioridade artística. Costumava repetir: “No Brasil, depois de Portinari, sou eu”.  Portinari movia-se com mais naturalidade na busca por prestígio e reconhecimento. Experiente na competição com outros artistas, conseguiu construir a imagem de maior pintor do país. Convidado naquele momento pela primeira-dama, Guignard tinha a oportunidade de igualar o feito de seu colega “mais importante”, produzindo uma série de quadros sacros para uma igreja de Niemeyer.

Elba Sette Câmara e Lúcia Flecha de Lima com obras de Guignar,em 1968 (Foto: Arquivo / Agência O Globo )

Guignard foi um dos pintores brasileiros com mais sólida formação artística. Criado na Europa, estudou com grandes mestres na Escola de Belas-Artes de Munique, na Alemanha. Desenvolveu um estilo muito próprio na corrente modernista e influenciou artistas de várias gerações, como Iberê Camargo e Bea­triz Milhazes. Sua vida foi marcada por episódios dolorosos – o lábio leporino de nascimento, o suicídio do pai, o abandono pela mulher. Viveu pobre e morou de favor. Nas palavras de dona Elba, ao receber o convite, Guignard ficou “excitado como um menino”. Fez amizade com Niemeyer, discutiu horas o projeto da igreja e levou o arquiteto várias vezes para ver o esboço dos quadros.

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Sob os cuidados da anfitriã, o pintor passou 17 dias hospedado na Gávea Pequena, então residência oficial do governador, onde era tratado como um príncipe. O próprio governador Sette Câmara ficava em segundo plano. Dona Elba e a amiga Lúcia Flecha de Lima fizeram de tudo para que sua estada fosse confortável e produtiva. Tiveram de racionar a bebida a uma dose de uísque e duas cervejas por dia, porque o artista costumava perder o controle quando bebia. Guignard pintou os quadros ouvindo “O martírio de São Sebastião”, de Debussy, e estava em estado de êxtase. Dona Elba o viu chorando enquanto desenhava a coroa de espinhos na cabeça de Cristo. Depois de ser preterido na igreja de Belo Horizonte, o artista vingava-se pintando uma das obras sacras mais importantes da arte brasileira, sem cobrar por isso.

A capela foi inaugurada com estardalhaço na imprensa, em dezembro de 1960. Os quadros tiveram de passar pelo crivo do padre Guilherme Schubert, consultor de arte sacra da Igreja Católica, que detestava pintura moderna. Ele sugeriu modificações – alegando, por exemplo, que em uma cena Maria Madalena parecia uma “mula sem cabeça” –, mas aprovou o conjunto. O poeta Augusto Frederico Schmidt visitou a capela e disse que era “a maior coisa que se fez no Brasil em matéria de arte”. A revista americana Time, em reportagem sobre Guignard, citava um crítico brasileiro para dizer que os quadros eram bons demais para igrejinha. Dona Elba e Lúcia Flecha de Lima brilharam pelo gesto altruísta.

Não demorou muito, e alguns problemas apareceram. A igreja ornada com  obras valiosíssimas no meio do bairro de Manguinhos, uma das regiões mais violentas do Rio, não era de fácil visitação e sua integridade corria risco. Cinco anos depois de inaugurada, estava em situação de abandono – a estrada de acesso tomada pelo mato, o teto com infiltração das chuvas e o madeirame atacado por cupins. O governo do estado, pressionado pela imprensa, decidiu tombar a igreja e os quadros como patrimônio artístico. Guignard havia morrido em 1962. Na justificativa do tombamento, as telas eram classificadas como um dos “mais felizes momentos da pintura no Brasil”. Mesmo com essa proteção institucional, os 14 quadros precisavam de manutenção e corriam risco de ser  roubados. Dona Elba tentou transferi-los para outro lugar até que houvesse segurança na igreja, mas foi impedida pelo jovem pároco local, Sebastião Lourenço. Ele era o guardião da capela e argumentava que os próprios fiéis protegiam os quadros  como patrimônio da comunidade. Na época, eram avaliados em 56 milhões de cruzeiros, o equivalente a R$ 215 mil.

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A capela com a Via-Sacra foi inaugurada com estardalhaço. Cinco anos depois, estava abandonada

Contra a vontade dele, os quadros saíram da igreja por ordem do governo, com a promessa de retorno. Isso aconteceu em 1968, quando o governo de Minas Gerais fez uma exposição em homenagem ao presidente Costa e Silva e pediu emprestadas as obras de Guignard ao governo da Guanabara. Elas foram escoltadas pelo chefe de gabinete do governador e seguiram para Minas. A exposição não teve repercussão. Três meses depois, os quadros não haviam retornado. Padre Lourenço procurou a imprensa para reclamar. Em 8 de julho os jornais do Rio estampavam a manchete: “Quadros de Guignard somem na Guanabara”. As autoridades de Minas afirmavam que já haviam devolvido as obras. As do Rio diziam que não estavam em seu poder. O deputado conservador Carvalho Neto subiu à tribuna da Câmara da Guanabara, pediu esclarecimentos ao governo e criticou padres comunistas, que, dizia,  poderiam estar por trás do episódio.

Dias depois, dona Elba apareceu na imprensa exibindo todos os quadros no sofá de sua sala. Dizia que quando as obras estavam sendo devolvidas, ela as recebera em nome da Igreja. A ex-­primeira-dama argumentava que agira assim para proteger o conjunto, e que o devolveria quando as condições de segurança da capela fossem satisfatórias. Ela já havia ligado para Niemeyer pedindo que os quadros fossem transferidos para a Catedral de Brasília, também projeto do arquiteto, o que seria coerente com o desejo de Guignard. Aventava-se ainda a possibilidade de irem para o Museu de Arte Moderna do Rio ou para a Igreja de São Francisco, em Ouro Preto, onde o pintor foi enterrado. Pela primeira vez, dona Elba falava que os quadros eram propriedade sua. Para provar, exibia o verso das obras, onde Guignard havia feito uma dedicatória com os nomes dela e de Lúcia Flecha de Lima.

O assunto da propriedade era novo e delicado. Até então, ninguém havia discutido se Guignard pintara de graça para a Igreja ou para dona Elba. Diante da celeuma, o marido de dona Elba, Sette Câmara, então representante do Brasil nas Nações Unidas, usou a diplomacia. Escreveu ao arcebispo do Rio de Janeiro, dom Jaime Câmara, explicando a situação. Como resposta, o religioso, que era seu amigo, abriu mão da propriedade dos quadros. Sette Câmara mandou reconhecer em cartório a autenticidade da carta. A polêmica sobre o destino do conjunto continuou por algum tempo na imprensa até ser completamente esquecida.

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O pintor Alberto Guignard em Ouro Preto (MG),EM 1962,ano de sua morte (Foto:   Luiz Alfredo/Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press)

Passado o barulho, dona Elba desistiu de devolver os quadros. Em silêncio, repartiu a Via-Sacra com Lúcia Flecha de Lima, ficando sete obras para cada uma. Ainda nos anos 1970, a ex-primeira-dama vendeu sua parte para o empresário Antônio José Carneiro, conhecido como Bode. Colecionador discreto, mas empresário agressivo, ele foi citado pela revista americana Forbes como o 37º homem mais rico do Brasil. Dona Elba embolsou o equivalente ao valor de um carro popular. A parte de Lúcia Flecha de Lima acompanhou a trajetória diplomática dela e do marido, o embaixador Paulo de Tarso Flecha de Lima. Nos anos 2000, os quadros estavam em Roma, ornamentando as paredes do Palácio Doria Pamphili, onde Paulo atuava como embaixador.

O governo do estado do Rio, no entanto, nunca desistiu das obras tombadas, e desde 1968 tenta uma solução para o caso. De tempos em tempos, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, Inepac, procura recuperar as obras, por meio de demorados processos burocráticos. A última investida foi em 2013, quando o órgão solicitou à assessoria jurídica da Secretaria de Cultura um parecer sobre o assunto, até hoje não emitido. O historiador Marcus Monteiro, diretor-geral do Inepac, quer que o conjunto seja reintegrado e esteja disponível ao público. “O tombamento não é uma apropriação. É uma garantia para que o conjunto seja preservado. Vamos pedir que ele seja reunido novamente e transferido a algum local aberto à visitação pública”, diz. Segundo Monteiro, o Inepac está fazendo um levantamento para localizar o paradeiro das obras. Depois pretende acionar a Justiça. “Essa história sempre foi muito confusa. A Igreja também precisa esclarecer por que abriu mão das obras, se recebeu alguma vantagem por isso”, diz.

O conjunto é avaliado hoje em R$ 4 milhões, uma média de R$ 300 mil por quadro. Após deixar Minas Gerais, ele foi exposto numa única mostra de Guignard que ocorreu no Rio e em São Paulo, organizada pelo falecido marchand Jean Boghici, em 2000. O curador conseguiu as obras emprestadas com a garantia de que as devolveria intactas a seus proprietários. Na ocasião, o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugenio Sales, ameaçou entrar na Justiça para reavê-las. Desistiu da medida depois de encontrar nos arquivos da Arquidiocese a carta de dom Jaime Câmara, que afirmava que os quadros não eram da Igreja. Elba Sette Câmara faleceu em 2007, cinco anos depois do marido, sem explicar por que desistiu de devolver os quadros. Seu filho, José Augusto, diz que viu as obras quando era criança, mas não se lembra da história.

Depois da compra, o bilionário Antônio José Carneiro, o Bode, deu o conjunto de presente a sua mulher, Lúcia Carneiro. Hoje, essa metade da Via-Sacra ornamenta o apartamento no Rio ocupado pelo casal, que não gosta de falar sobre o assunto. Segundo a secretária de Carneiro, os dois estão em viagem ao exterior até o final do ano, incomunicáveis. Lúcia Flecha de Lima faleceu em abril deste ano, deixando alguns marchands ouriçados com a possibilidade de os quadros que estavam em seu poder serem colocados à venda pelos herdeiros. Sua metade foi dividida entre os quatro filhos, que moram em São Paulo e Brasília. Segundo Luiz Antônio, o filho caçula, as obras não estão à venda. Ele diz que todas elas têm dedicatória a sua mãe, o que comprova a propriedade. Passados mais de 50 anos da morte de Guignard, Portinari continua sendo o único pintor a ter uma Via-Sacra em igreja de Niemeyer.








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