Cultura

Uma viagem em busca dos artistas populares

Uma viagem em busca dos artistas populares

A cruzada de um publicitário na busca por artistas populares e suas obras inusitadas

LUANA SOUZA
14/04/2018 - 10h01 - Atualizado 14/04/2018 10h01

A longa viagem pessoal em busca da arte popular já passou dos 25.000 quilômetros rodados, o equivalente a cruzar o país do Oiapoque ao Chuí seis vezes. Foram seis meses na estrada, com passagem por 16 estados e pelo Distrito Federal. O saldo aponta o encontro com 262 artistas populares e suas obras. São cachorros, brinquedos, pinturas inspiradas na arte rupestre, santos, pássaros, grávidas e igrejas. Muitas obras nascem em cidades sufocadas pelo calor do sertão, em casas de barro ou pau a pique. Os artistas são pessoas de vida simples, pouca instrução formal, reconhecimento restrito, mas dotadas de talento, criatividade e expressividade únicos.

O publicitário Renan Quevedo, de 27 anos, largou o emprego em São Paulo, vendeu todos os bens e alugou um carro. Saiu em busca de artistas populares país afora. “Estou em busca de pessoas que não sei quem são. Cruzei muitas vezes o país, comi poeira nos sertões nordestinos e sentei por horas em frente ao volante.”

Tudo começou quando deixava São Paulo em feriados e fins de semana à procura de arte, artistas e histórias. Durante anos, empenhou-se em pesquisar a arte popular brasileira, mas a distância tornava-se cada vez mais limitadora. Foi então para a estrada. Na visita à casa de nomes importantes da arte popular e do artesanato brasileiro, encontrou alguns que não tinham o que comer e que viviam em ambientes tão rústicos quanto suas obras. “Estou falando de artistas que já foram estudados, com trabalhos publicados, exposições dentro e fora do Brasil e que carregam o título de consagrados.”

A desvalorização desses talentos levou Quevedo a criar nas redes sociais o projeto Novos para Nós. Por meio dele, mapeia, fotografa, entrevista e escreve relatos sobre os artistas que encontra. Além deles, Quevedo cruzou com lavadeiras, benzedeiros, pagadores de promessas, curandeiros, parteiras, lapidadores, uma vila com 300 casas e uma única moradora, uma comunidade quilombola com um dialeto próprio. Bateu assim às portas do Brasil profundo numa viagem sem fim.

Jeovah Santos, o pintor desconhecido mais famoso (Teresina — PI)

Mesmo com mais de 50 anos como pintor, Jeovah Santos ainda figura como artista desconhecido. Aprendeu a pintar e esculpir sozinho. Suas peças retratam a região, o folclore e a religião com padrões de linhas e pontos espalhados pela tela. As obras de Jeovah já estiverem presentes em mais de 50 exposições, tanto no Brasil quanto no exterior. Estamparam famosos e saudosos cartões telefônicos.

A pintura de Jeovah Santos, com suas linhas e pontos na tela (Foto: RENAN QUEVEDO)

Zé da China, o Geppetto do Sertão (Major Sales — RN)

Com 61 anos, Zé da China produz brinquedos há 15. O medo do erro é constante em seu trabalho. Nenhuma peça começa com um estudo prévio, e a surpresa do resultado dura até a conclusão da obra. Com o sopro do vento, seus personagens vivem. As peças que retratam cenas de seu cotidiano ganharam, em 2014, espaço no jardim da Pinacoteca do Rio Grande do Norte. Eram tocadores, serradores, sovadores de pilão, bicicletas, animais. O mundo de Zé da China.

Zé da China faz brinquedos, o que lhe valeu o apelido de Geppetto do Sertão (Foto: RENAN QUEVEDO)

O voo dos pássaros de Bento (Sumé — PB)

Depois de um atropelamento, Bento ficou incapaz de exercer o trabalho que fazia em São Paulo. Encontrou próximo a sua casa um palete e resolveu fazer arte. Transformou os pedaços de madeira em bichos. Em Sumé, na Paraíba, o chão de sua casa é forrado de pássaros que ajudaram Bento a retomar sua vida e alçar voos diferentes. É um dos expoentes da arte popular paraibana, fazendo animais de todos os tipos. Gosta do desafio que a matéria-prima lhe faz com as curvas dos troncos e não tem dúvida em dizer: “A melhor parte de viver é criar”.

As aves que habitam o ateliê do artista paraibano Bento (Foto: RENAN QUEVEDO)

As baleias gracilianas de Marcos Paulo (Sertânia — PE)

As obras de Marcos Paulo nascem em Sertânia, que fica na divisa entre Pernambuco e Paraíba. Os cachorros do artista, ou melhor, as Baleias, parecem ter saído diretamente das páginas de Vidas secas, o clássico de Graciliano Ramos, para tomar forma em madeira. “No fim das contas, minha arte é sobre a resistência de meus conterrâneos — todos vitoriosos por aguentar os trancos desta nossa vida. A imagem de Baleia é exatamente como as coisas acontecem por aqui. No passado era muito comum. Com o tempo, as coisas foram melhorando, mas ainda se vê fome e seca”, contou.

As Baleias, do pernambucano Marcos Paulo, são inspiradas na cadela criada por Graciliano Ramos em Vidas secas (Foto: RENAN QUEVEDO)

Zé Bezerra, o homem das cavernas (Vale do Catimbau — PE)

Zé Bezerra vive em uma casa de barro e decorada com pedras. Sua arte é inspirada nas pinturas pré-históricas encontradas na região do Vale do Catimbau. Na região, as montanhas de pedras levam nomes de animais, o que facilita o aflorar de sua imaginação. Zé Bezerra anda pela divisa do Agreste com o sertão pernambucano à procura de troncos caídos, que servem como matéria-prima. Na hora da zabumba, compõe estrofes animadas e narra as histórias de sua vida. Não hesita: “Sou feliz”. A arte de Zé Bezerra é celebrada por diversos colecionadores internacionais.

Zé Bezerra faz de troncos caídos matéria-prima para sua arte em Pernambuco (Foto: RENAN QUEVEDO)
Os trabalhos de Zé Bezerra no Vale do Catimbau (Foto: RENAN QUEVEDO)

O barro internacional de Maria Amélia (Tracunhaém — PE)

Uma artista com quase um século dedicado ao barro. Maria Amélia, hoje com 93 anos, começou a brincar de fazer esculturas de bichos aos 8. Tempos depois, vieram os santos que a consagraram como artesã. A inspiração veio das pinturas que encontrava na feira livre de Tracunhaém. São João do Carneirinho, Nossa Senhora do Rosário, Rainha dos Céus, Santa Luzia e São José carregam olhares comoventes e mantos detalhados. As esculturas de Maria Amélia participaram de exposições dentro e fora do Brasil. Em 2011, ela ganhou o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. Dedica-se hoje mais a peças menores por causa da saúde. Olha para trás com orgulho da história que construiu: “Viajarei muito feliz”.

As desilusões da profissão de Eraldo de Queiroz (Arapiraca — AL)

João da Lagoa é bastante conhecido por quem estuda a arte popular brasileira. Poucos, no entanto, sabem que o falecido escultor teve um ajudante. Vivendo praticamente isolado em uma casa recém-construída e sem acabamento, Eraldo de Queiroz, de 69 anos, aprendeu a dar formas a suas peças com o amigo. Mesmo incentivado, nunca apostou em ser artista porque o dinheiro sempre lhe pareceu pouco. Já não esculpe mais. Quando lhe falam do trabalho especial que fazia, brilham-lhe os olhos: “Você acha que eu deveria voltar a esculpir?”.

Dona Joana Pinta, a caçadora de arte tecelã (Berilo — MG)

Dona Joana Pinta é a pessoa mais velha a se dedicar à tecelagem em Berilo, em Minas Gerais. São 72 anos desenvolvendo a arte que aprendeu com a mãe, que por sua vez foi ensinada pela avó. Foi assim que Joana criou seus oito filhos. “Quem teima mata a caça.” A matéria-prima vem do próprio ambiente. A caçadora sai pelo mato com um machado nas costas à procura de frutas para tingir o algodão. Vende para os compradores que vão até sua casa na zona rural. Se eles não vêm, dona Joana vai até eles. “Coloco aquela bolsa lá nas minhas costas e saio batendo de casa em casa.”

A tecelã Joana Pinta (à dir., no alto), a mais velha a se dedicar à arte em Berilo, Minas Gerais (Foto: RENAN QUEVEDO)

A religiosidade da ceramista Rosa Negreiro (Caraí — MG)

Com um tom de puritanismo, as obras de Rosa vão de mulheres grávidas, bebês e casas a igrejas, presépios e santos. Na zona rural da cidade mineira de Caraí, a mais de 500 quilômetros de Belo Horizonte, a ceramista Maria Rosa Negreiro sustenta suas duas filhas com o artesanato que fabrica no Vale do Jequitinhonha. As meninas já dão sinal de que continuarão a profissão da mãe. O maior problema da região são os atravessadores, que compram as esculturas produzidas no Vale e as revendem por preços extorsivos. Os artistas ficam com o troco.

Jadir João Egídio, da depressão ao reconhecimento (Divinópolis — MG)

Ainda pequeno, Jadir João Egídio foi abandonado pelo pai. Já teve todas as profissões que se pode imaginar para sobreviver. No fim da adolescência, foi tomado pela depressão e encontrou na arte uma saída. O hobby virou talento. Quarenta anos depois, o mineiro é reconhecido por críticos como um dos expoentes da arte brasileira. O domínio que Jadir João tem sobre a madeira permite que ele transmita com força suas crenças religiosas e as relações sociais que o fizeram artista.

Peça em madeira de Jadir João Egídio; arte o livrou da depressão (Foto: RENAN QUEVEDO)

Bonecas de barro de Andréia e Glória Andrade (Vale do Jequitinhonha — Mg)

Na década de 1960, a viúva Izabel Mendes da Cunha (1924-2014) fazia panelas para sustentar a família e caminhava mais de 20 quilômetros para vendê-las na feira. Um dia teve a ideia de fazer uma cabeça para uma das moringas. O povo gostou e pagou um pouco a mais pela peça, o que incentivou dona Izabel a prosseguir. Em 2004, a artesã ganhou o primeiro lugar do Prêmio Unesco de Artesanato para a América Latina. Filhas da maior bonequeira do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, Andréia e Glória Andrade continuam a criar arte com barro, do jeito que a mãe lhes ensinou. Além da paciência e da dedicação das irmãs às esculturas, a arte demanda muito tempo, habilidade e atenção ao processo que envolve o forno durante todo o dia. O mistério é maior porque os pigmentos utilizados na pintura são naturais e mudam dependendo da temperatura. Não se sabe exatamente a cor que as peças terão nem se vão sobreviver à queima, pois as impurezas no barro podem danificá-la.

Obras de Andréia e Glória Andrade, filhas da maior bonequeira de Minas Gerais (Foto: RENAN QUEVEDO)
A cruzada (Foto: Época)







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