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52 José Lemos Monteiro Professor da Universidade Federal do Cearé A ESTILISTICA > telat Semen So) SAO PAULO * Rua DeVila Nova, 309 i Cep 01222-020 Tel (011) 259.8836 Rua Consetheiro Ramatho, 330 Cop 01325-000 Tel (01 1) 239.3677 RIO DE JANEIRO Rua da Alfandega, 9! Cep 20070-00! Tel (021) 22 Conceito de estilo Um dos mais sérios obstaculos a delimi- i tacio do campo de estudos da estilistica é exatamente o da diversidade de acepgdes que o termo estilo apre- senta. Middleton Murry (1949:45) aponta trés linhas distintas para a analise do problema, conforme as seguintes defini¢6es: a) conjunto de tracos caracteristicos da personalidade de um escritor (estilo como idiossincrasia); b) tudo aquilo que contribui para tornar reconhecivel'o que. alguém escreve (estilo como técnica de exposi¢ao); c) realizacdo plena de uma significacdo universal em uma expressdo pessoal e particular (estilo como realizacao lis teraria).’ Contudo, essa triplice conceituac&o nem de longe esgota a série de significados possiveis, restringindo-se sua aplicag4o ao uso indivi- dual da linguagem para fins literdrios: Por isso, M. Murry (1949:65) resume assim sua nogdo de estilo: qualidade de linguagem peculiar ao-escritor; que comunica emogdes ou pensamentos. Ora, se analisarmos bem, veremos que os valores propriamente individuais sdo extremamente raros, j4 que a expressdo. literaria re~ sulta de uma gama extensa de-fatores ou condicionamientos culturais;> como as influéncias do meio, da época, da estrutura lingilistica etc. Se fizermos o levantamento completo dos aspectos que determinam © estilo de uma obra, reservaremos talvez poucos tra¢os inconfundi- veis para identificar a marca do escritor. Nesse sentido, Paul Imbs (Dubois, 1974:215) propde que a no- edo de estilo seja representada sob a forma de um encaixe hierdrqui- co, desde as areas mais amplas até as de percepcAo imediata. O-nivel mais abrangente seria o do estilo de uma familia lingiiistica‘oude um grupo de linguas. Os demais niveis incidiriam sobre: a) uma lingua particular; b) uma época; c) um género ‘literario; d) uma escola ou-movimento literario; e) um escritor; f) uma fase-da-vida do escritor;: g) uma obra: especifica; h) um capitulo; parte ou pardgrafo; i) uma frase ou enunciado. Com essa escala, elastece-se 0 conceito de estilo, que deixa de ser entendido como algo intrinseco e obrigatoriamente individual. Pode-se falar do estilo de uma lingua, definido como unrreper- ‘tério de propriedades ou procedimentos-expressivosyobservaveis'em™ -quaisquer de’seus niveis estruturais. E fato, por exemplo, que pou- quissimos idiomas possuem 0 infinitivo pessoal. Trata-se, pois, de uma propriedade expressiva ou idiotismo do portugués. Dessa forma, nem sempre as linguas dispdem dos mesmos recursos. Existem as que os- tentam grande riqueza no léxico, as que agradam pela sonoridade, ; as que ensejam maior clareza pelo elevado grau de redundancia, e as- sim por diante. Segundo Gladstone Chaves de Melo\(1976:23), o;por- tugués tem.uma estrutura morfolégica bem mais rica do queo francés. Além disso, oferece maior liberdade na ordem das palavras, 0 que propicia a seus usudrios um campo de escolhas muito mais fértil. Parece, pois, indiscutivel a existéncia do estilo da lingua. Ou seja; @ estilfstica ndo-se-restringe apenas ao-estudo-do-discurso, en 'Pamard Sapir (1953:211) nos diz que a sonoridade das vogais inglesas é pores vonnparada & das vogais francesas. Mas explica que o plano fonético tem att vancia para 4 tipificagao do estilo da lingua do que as particularidades moo £45, como 4 possibilidade de criar nomes compostos, a fixidez ou liberdade na Aas palavras etc, OS LIMITES DA ESTILISTICA__11 el tendido este como a utilizagao individual de um sistema lingiiistico, conforme a visto de Ferdinand de Saussure. 2 Nesse sentido, Stephen ‘Ullmann (1968:121) enfatiza a necessidade de distinguir dois tipos prin- cipais de estudos estilisticos: os que exploram.o estilo de uma lingua eos que se. centram na expressividade de um escritor. Pierre Guiraud. (1970:62 s) visualiza também duas correntes conhecidas como Lstilis- tica da expressao € Estilistica-do-individuo. A primeira estuda as re- lacdes da forma com 0 contetido, nao ultrapassando a linguagem, O fato lingiiistico em si mesmo. A segunda analisa as relacoes da ex- pressao com 0 individuo. Aestilistica da expressao (representada so- _ bretudo por Charles Bally) considera as estruturas e seu funcionamento dentro do sistema lingiiistico, sendo pois descritiva. Acestilistica do individuo (adotada por Karl Vossler e Leo Spitzer) consiste numa cri- tica do estilo preocupada com as causas do fenémeno da expressivi- dade, sendo portanto.genética. Nessas duas grandes vertentes 3 talvez se resumam todos os niveis sugeridos por Paul Imbs. . Quando se fala, por exemplo, em-estilo de um género literario;: leva-se em consideragao-o conjunto de procedimentos formais ques ‘ocaracterizam. Assim, ovestilo deum conto nao’sevassemelha ao: de» _um- romance e-muito menos ao de-uma carta. De um modo andlogo, sao: principios formais que distinguem -em esséncia os movimentos literdérios. A adjetivacéo exuberante e a preferéncia por certos vocabulos sdo constantes no estilo romantico, 0 uso de preciosismos é proprio do barroco, o equilibrio e a correcao da linguagem atestam uma tendéncia para o classico e assim por diante. Quanto ao estilo da obra, cumpre admitir que o escritorevolui ~ao-longo de sua vida. O que ele escreve hoje pode ser diferente do 2 A dicotomia “‘langue’’ (lingua) e ‘‘parole’’ (discurso) é um artifici ii al engendrado por Saussure para distinguir 0 ane a e ene eure retesae lingua como um sistema ou pura forma, do exercicio ou uso individual desse ae ‘ A lingiiistica teria por finalidade apenas a descrigdo da lingua (‘‘langue’’), ja qu a praticamente impossivel fazer ciéncia sobre a multiplicidade e ereraaeianee a sis. cursos. Este vasto campo € objeto de diversas disciplinas, que logicamente na ; am o status de ciéncia, e entre elas se encontra a estilistica. Contudo, a tarefa da still a ndo se centra na anillise do discurso por si mesmo, mas no que ele possa ter de c et givo, o que ocasiona em muitos casos a dispersao de suas fronteiras eel | Cumpre observar que, apés o trabalho pioneiro de Bally e Spitzer, a pes isa estil tica tomou rumos novos, aproveitando-se dos avancos de disciplinas Pre 7 ia gilistica, a estética ou mesmo a semiologia. Fértil foi o estudo realizado pelos formall ee russos, bem como 0 de outros grupos ligados a tendéncias diversas, entre as at ee destacam a estilistica estrutural (Riffaterre) e a estilistica semistica Gaiaae = 2A ESTILISTICA oduziu ontem. Alguns criticos ainda se espantam com as dife. rengas qualitativas entre as obras de Machado de Assis: as da fase realista sao incomparavelmente melhores que as da fase romantica, Ora, desde que cada obra é uma estrutura aut6noma, movida por ele- mentos intransferiveis, nao ha como negar-lhe um estilo préprio, E preciso insistir, por conseguinte, que todas as divergéncias de acepeao encontram na linguagem um denominador comum.-O esti- Jo, em ultima instancia, seria uma forma peculiar de encarar a lini= agem com uma finalidade expressiva. No dizer de Herculano de Carvalho (1937:303, 1), trata-se de um conjunto objetivo de caracte- risticas formais oferecidas por um texto como resultado da adequa- cao-do instrumento lingtiistico aos propésitos especificos do ato em que foi produzido. » Assim sendo, levando sempre em conta o suporte lingiiistico que lhe é indispensavel, 0 estilo pode ser compreendido, segundo Marti- ‘net (1976:91), em fungao de dois processos: ou como ‘um conjurito- de escolhas ou como.um afastamenitoem relacaoa-normay » Todavia, existem alguns problemas a considerar. Por um lado, se o estilo é visto-como escolha; "ha 0 risco de ser confundido com _o proprio discurso. E o critério também nao permite-distingui-lo do -idioleto, total-das escolhas mais ou menos inconscientes que consti tuem o sistema de expressao de um determinado individuo. Por ou- tro lado, se o estilo € concebido como um. afastamento (individual: -ou nao) em relacdo & norma; esta nem sempre tem seus limites-bem~ ' precisos, o que dificulta a tipificagdio dos desvios. que pr Norma e desvios _A norma, para ser conceituada, oferece . o mesmo problema do estilo: a polissemia ou diversidade de acepgdes que 0 termo encerra. Para 0 que nos inte- ressa, recorremos inicialmente a uma explicagao elementar sobre 0 comportamento de uma distribuicao regular de uma série de dados. Imaginemos, como ilustracdo, as notas dos alunos de uma turma. iE esperavel que, havendo um bom critério avaliativo, as notas altas vate a em pequena propor¢ao, concentrando-se a maior dotados serao elie Ou seja, numa classe, os alunos super” s quanto os de fraco poder de raciocinio. AS- sim. . J pias dos resultados assumird mais ou. menos o seguinte OS LIMITES DA ESTILISTICA __13 Observa-se que a freqiiéncia diminui gradativamente em dois sen- tidos, configurando os desvios positivo e negativo. A norma ocupa a area de maior concentragao dos dados, enquanto os desvios tém indices muito baixos. Esse modelo de distribuicdo pode ser aplicado aos fatos lingtiis> ticos. Constituem a norma aqueles habitos, construcdes ou usos da» maioria da populagdo, ao passo que os desvios sao as alteracGes ou -variagdes havidas por-desconhecimento da norma-ou por intuito ex- “pressivo. Ha diversos equivalentes para 0 termo desvio ou afastamento. J. Dubois (1974:27) menciona, entre outros, os seguintes: abuso (abus, Valéry); violagao (viol, J. Cohen); esc@ndalo (scandale, R. Barthes); anomalia (anomalie, T. Todorov); loucura (folie, Aragon); varia¢do (deviation, L. Spitzer); subversao (subversion, J. Peytard); infragdo (infraction, M. Thiry). E costume opor a gramatica a estilistica na base do conceito de’ -norma-e desvio. O que é estabelecido através de regras € gramatical, pertence 4 norma; 0 desvio, ao contrario, nao apresenta nenhum ca- rdter sistematico, é sempre imprevisivel (Dubois 1974:63). E oportuno insistir em que sé € estilistico 0 desvio que se carre- ga de efeitos expressivos. Quando resulta simplesmente do pouco do- minio lingiiistico, nao ha geralmente aspectos conotativos a explorar. Ilustremos: Quem diz ‘‘os peses’’ ou ‘‘nds €’’, provavelmente desconhece algumas regras de flexdo e concordancia, vigentes pelo menos na nor- ma culta do portugués. Nao ha talvez intencdo expressiva por parte de quem usa essas construgGes. Agora, se um escritor comete infra- 1s A ESTILISTICA ¢do semelhante, certamente é movido por um Ppropésito, 4 uma preo. cupagao estilistica. Para melhor fundamentag: sagens: A primeira, de Carlos Drummond de Andr. logicamente, conhece o plural de pé. Entretanto, tulado ‘‘Ao Deus Kom Unik Assiio’”’ dio, exemplifiquemos com duas pas. ‘ade (1976:3), que, no seu poema inti- » ele nao vacila em dizer: “Eis-me prostrado a vossos peses Que sendo tantos todo plural € pouco,” A segunda, de Clarice Lispector (1980:165), para conotar a idéia de perfeita unidade, dos amantes: que usa a silepse de singularidade, de fusio “Eu estou apaixonada pelo teu eu. Entao nés 6.” Ou: “Eu sou tua e tu és meu, e nds 6 um.” Mas nem sempre é facil identificar um desvio, exatamente pela relatividade do conceito de norma. Em linhas gerais, é licito admitir a existéncia de varias normas, consoante as isoglossas, * os ambien- tes socioculturais etc. Uma construgdo de largo emprego numa re- giao pode ser estranha em outra. O que uma gramatica prescritiva considera erro, em geral s6 0 éem relagdo 4 norma culta, a qual nem sempre é descrita de modo coerente.® Por isso, 0 conceito de desvio deve levar em conta a referéncia a determinado registro lingiiistico. Num texto de cordel, sera desvio a Evidentemente, nao se exclui aquia Participagao de dados inconscientes. O fendme- no da expresso literdria tem muito de intuitivo e, por essa razdo, o escritor com fre- qiiéncia é surpreendido por construgdes originais ou desvios que Ihe surgem de modo totalmente inesperado. i * As isoglossas sao linhas geograficas que delimitam os pontos até onde vigora certo traco lingilistico. Conforme os tracos indiquem uniformidade fénica, gramatical, oe cabular, sintatica ou entonatéria, as linhas isogléssicas podem ser denominadas res- pectivamente de isofénica, isomdrfica, isoléxica, isossintagmdtica e isoténica (Bor- ba,1971:88). ® Com ah, sdo condenadas pela gramatica intmeras construsées de largo Sere na norma culta brasileira. A titulo de exemplificagao, lembramos a regéncia do vet # assistir com objeto direto no sentido de presenciar (assistir o filme), o pronome o! ica shegar quo no inicio de frase (me dé um abraco), o verbo chegar com a preposigéo em (ches! em casa) etc, OS LIMITES DA ESTILISTICA _15 um vocaibulo crudito ou construgdio propria da lingua padrao. Ana- logamente, conforme exemplifica M, Lefebve (1975:101), 0 vocabu- lario dos classicos do século XVII é desvio relativamente a lingua corrente, tal como o dos romanticos 0 ¢ em relagio ao léxico retérico Essa nogao serve de esteio para a hipotese segundo a qual 0 con- texto desempenha o papel de norma e o estilo nasce de um desvio a partir dele, Isto é, somente o contexto determinard quando algo deve ou nao ser considerado expressivo, Para mencionar uma situacado ima- ginada por Riffaterre (1973:103), o grau superlativo, que geralmente constitui um recurso de intensificagdo, sera inexpressivo num contexto saturado de superlativos. Ai, a forma simples do adjetivo é que tera valores conotativos. Ou seja, qualquer fato da lingua pode assumir uma fungao estilistica, mas nunca de modo permanente. © Em sintese, aantinomia norma e desvio nem sempre estabelece uma correspondéncia biunivoca com gramatica e estilo. Além de ha- ver desvios negativos, de nula expressividade, ha os que s6.0 sao as- sim definidos em relacaéo a determinado tipo de norma. Por outro lado, existem elementos estilisticos que nao se caracterizam como des- vios, mas apenas como possibilidade de escolha dentro da propria norma. Na realidade, quando se fala em desvio expressivo, pretende-se realcar o aspecto de criatividade exercido sobre a linguagem. Oescri- tor deve permanentemente estar imbuido desseesforco de recriagao em todos os niveis, mas as vezes ele alcanca a mais alta expressivida- de sem ferir-as regras do cédigo. Por isso, M. Lefebve (1975:28) aponta duas espécies de desvio literario: a desestruturacao ou violagao de uma norma e a estruturacao de novas formas de expressao nao conflitan- tes com as regras usuais. Diz-nos M. Murry (1949:114) que o escritor esta perpetuamen- te procurando forcar a linguagem a carregar mais do que pode con- duzir, incessantemente exercendo uma espécie de delicada viol€ncia sobre a linguagem. O motivo real para assim proceder é o seu impul- s0, o seu desejo de encontrar uma forma precisa para o seu conteu- do. E como se estivesse numa guerra; mas a vitdria, se ele a consegue, é também uma vitoria para a linguagem, que assim se vé enriquecida e embelezada. Foi também isto 0 que concluiu Leo Spitzer (1968:21), ao escre- ver que todo desvio estilistico individual da norma corrente ha de re- presentar um novo rumo histérico empreendido pelo escritor; ha de 16 A ESTILISTICA eee ote ~ revelar uma mudang¢a no espirito da época, mudanga de que o ever}. tor adquiriu consciéncia ¢ que quis traduzir em uma forma lingti{st). ca forcosamente nova. Emotividade e Sem desprezar a nogiio de desvio, costuma-se expressividade _relacionar 0 estudo estilfstico aos elementos ca.- -pazes de despertar contetidos emotivos. Mat- toso Camara Jr. (1962:56) assinala que nem toda peculiaridade line - gitistica de um escritor constitui um fato de estilo, mas somente aquela que for utilizada para fins de exteriorizacao psiquica. Alids, observa Stephen Ullmann (1968:122), o proprio Charles Bally, em suas primeiras reflexGes, ja havia limitado o alcance da es- tilistica ao estudo dos elementos emotivos. Percebendo depois que esse objetivo era bastante restrito, terminou por substitui-lo pelos fatores -expressivos-da linguagem. Dessa forma, Bally (1951:16 et passim) considera a estilistica co- -mo o estudo dos fatos expressivos da linguagem sob o 4ngulo do con-- tetido afetivo, ou seja, a expressdo dos fatos da sensibilidade pela’ -linguagem ea acdo dos fatos lingiiisticos sobre a sensibilidade. Con- forme suas observacoes, fica excluido aqui qualquer interesse pelo dis- -curso literario, ja que o escritor faz da lingua um emprego voluntario e consciente, determinado por uma intencdo estética, nisto se distan- ciando do falante comum. Mesmo assim, as zonas de aplicagaéo da estilistica, de acordo com Bally, so bastante vastas, enveredando por trés diregdes a saber: a) a linguagem em geral (os universais estilisti- cos); b) uma dada lingua (a estilistica da /angue); c).o sistema ‘expres- ‘sivo de-um individuo isolado (a estilistica do individuo). A dificuldade maior consiste talvez em formular um método de identificagao e andlise dos tipos expressivos, sem resvalar para a sub- — ~jetividade ou puro impressionismo; Segundo Bally (1962:95), hé duas formas de pdr em relevo os caracteres expressivos de uma ‘lingua: ou se comparam seus meios de expressAo com os de outra lingua ou ‘se cotejam entre si os-principais tipos expressivos da mesma lingua, le- vando em conta os ambientes-a que pertencem, as circunstancias de.. “seuemprego oportuno, as intengdes que determinam.a escolha:em=. ‘cada caso e, enfim, os efeitos que acarretam na sensibilidade dos fa-. ‘lantes e dos ouvintes: Os LIMITES DA ENTHASTICA " OS LIMITS DA er —— I Por outro lado, nao ha sempre distingdo nitida entre o emotivo eo expressivo. O proprio Bally (1962:125) termina por dizer que ex~ pressivo é todo fato lingtifstico associado a uma emogao. Cremos, porém, que a caracteristica fundamental da expressividade reside na énfase, na forga de persuadir ou transmitir os contetidos desejados, na capacidade apelativa, no poder de gerar elementos evocatdérios ou conotacées. Nesse ponto, cumpre indagar se existem tipos de construgdo fra- sica ou vocdbulos mais expressivos que outros, de tal modo que se possa organizar um conjunto de regras de escolha para 0 dominio da linguagem. Na realidade, parece que algumas palavras (estrela, ocea- no, saudade etc.) sio mais expressivas ou mais poéticas do que ou- tras (por exemplo, caderno, pires, farinha etc.). Gladstone Chaves de Melo (1976:79) diz que grito é mais expressivo do que brado, em virtude da adequacfio entre a massa sonora do vocdbulo e o conteu- do significativo. Todavia, entendemos que toda generalizacao nesse campo é bas- tante perigosa. Em primeiro lugar, talvez a expressividade nao esteja na forma lingiifstica em si mesma, porém na capacidade evocatéria do referente. Se a palavra oceano ¢ pottica ou expressiva, isto se de- ve em parte ao fato de estar ela associada a algo que nos desperta uma série de sensagdes: 0 oceano € belo, imenso, revolto, profundo e, por isso, nos causa perplexidade, encantamento e medo. Além dessa evidéncia, é preciso nao esquecer que qualquer rendimento estilistico s6 ocorre em funcdo do contexto. Isto é, 0 vocdbulo mais banal pode carregar-se de expressividade, tudo dependendo de fatores ligados ao contexto. Nao obstante, é facil argumentar que os vocabulos sinénimos, embora associados a um mesmo referente, nao possuem a mesma to- nalidade emotiva. Por esse raciocinio, palavras como oceano, mar, pélago etc. teriam niveis diferentes de poeticidade. A questo envereda, portanto, para a Orbita da imaginacao sen- sorial e das interferéncias da afetividade. Um exemplo ilustrativo: a expressdo ‘‘Sermao da Montanha”’ é-nos bastante familiar. Da-nos 7 Reduzir o campo expressivo ao emocional implica, de certa forma, desprestigiar as atitudes estéticas voltadas para o predominio da razdo sobre o sentimento. Ha poetas que, ao contrario dos romanticos, fazem do trabalho criativo um esfor¢o deliberada- ea cerebrino, tentando anular qualquer participacao de estados emotivos. Apesar isso, nem sempre se pode dizer que os textos produzidos com esse propdsi i inexpressivos. sai in & acrteenannan einen eteeenenaepinenentne te A ESEILINTICA os a visualizagdo de Cristo no (opo de um monte, pregando uma dag mais belas ligdes de sabedoria ¢ humildade. A palayra montanha transmite-nos a imagem da grandiosidade, da beleza, da altitude, da imensidade... Exatamente porque uma montanha nos sugere tudo js. to, Uma vez, a0 acaso, encontramos um optsculo intitulado "Ser. miio do Monte’’. E ai despertamos para o fato de que Jesus pregara realmente num pequeno monte ¢ nio numa grande montanha, Mas intuimos que o titulo do opisculo estava traindo todo o potencial ima- ginativo que o fermo montanha nos sugere. Nem por isso ousamos correr 0 risco de uma conclusao precipi- tada, atribuindo valores expressivos aos vocdbulos enquanto formas, Para Riffaterre (1973:195), ¢ muito raro que uma palavra seja cons- tantemente poética, Por essa razio, ele prefere falar de poetizagdo, processo pelo qual um vocdbulo, num dado contexto, se impde a aten- cdo do leitor, Dubois (1974:210) também defende que a capacidade expressiva ndo existe no material verbal em si mesmo, em virtude de uma poténcia imanente, mas representa a soma das experiéncias lin- giifsticas acumuladas pelo receptor. Se auscultar ¢ sucumbir \he evo- cam um “estilo poético”’, é sobretudo porque freqtientemente deve ter encontrado tais palavras em textos poéticos. Dessa forma, muitos elementos expressivos tém interpretacéo pessoal e se ligam a vivéncias individuais. Resultam geralmente do fato de que, conforme observam Wartburg e Ullmann (1975:121), des- de a infancia, certos contetidos sempre estiveram associados a deter- minados termos. Gilberto Freyre sentia, sem saber explicar 0 motivo, que molambo era uma palavra mais expressiva do que farrapo. Isto é muito subjetivo. Mas talvez, s6 por tratar-se de um termo de ori- gem africana, bastante usado na infancia do escritor pela mae-preta, o vocdbulo teria necessariamente de gerar toda uma-aura afetiva (Me- lo, 1976:46). Nao obstante, é inegdvel que, assim como os valores se sedi- mentam num dado ambiente cultural, inimeros vocdbulos sao por- _tadoresde evocagoes associadas a propria cultura. O erro esta apenas -em pretender que sempre eles comuniquem a mesma expressividade. Por conseguinte, 0 método estilistico tem que recorrer constan- temente a nogao de contexto: As informagées de ordem biografica (aspectos da vida do escritor que esclaregam a preferéncia por certos vocabulos) ou de cunho socioldgico tém utilidade na medida em que comprovem as inferéncias obtidas pelo estudo das relagdes contextuais: OS LIMITES DA ESTILISTICA 19 Denotac&o —_ Outro modo de demarcar as fronteiras da estilfs- e conotacao _ tica leva em consideragéio os aspectos conotativos da linguagem, por oposicdo aos denotativos, es- tes mais apropriados a defini¢éo da norma ou grau zero. Costuma-se as vezes identificar a conotagdo com a linguagem figurada, o que nem sempre é verdade. As conotagées existem em le- xemas empregados no seu sentido proprio e podem anular-se em inti- meras metdforas desgastadas pelo uso. Na realidade, sao os componentes afetivos do significado, em» qualquer plano da linguagem, que instauram a atmosfera conotati- va. A denotacdo, ao contrario, é ligada ao aspecto conceitual, esta- belecendo uma linguagem univoca, desde que menos sujeita as inter- fer€ncias de ordem subjetiva. Nesse sentido, Herculano de Carvalho (1973:168, I) ensina que, enquanto a denotacio corresponde ao nucleo intelectual ou concep- tual do significado, a conotagdo é.a margem volitivo-emotiva que 0° envolve. M. Lefebve (1975:59) afirma, do mesmo modo, que 0 ter- mo conotagao deve ser reservado aos sentidos que existem virtual- mente como resultado da experiéncia com 0 objeto representado ou das associages que nascem do uso da palavra. Parece assim evidente que certos objetos ou eventos terminam por adquirir uma tonalidade emotiva que se transfere ao significado. dos vocabulos. Sao principalmente os fatos que nos marcaram, que continuam presentes em nossa memoria, despertados a todo instante pelas associagdes com outras impressOes. A lembranga da casa ma- terna é um exemplo disto. Quem, ao tentar descrever as imagens de sua infancia, ndo sente quase a magia das palavras que chegam a per- mitir o retorno a um mundo de recordagées, a uma atmosfera distan- te mas, ao mesmo tempo, tao nitida na imaginagdo? Sera este sem duvida um campo propicio para instaurar-se a linguagem conotati- va, tal como se encontra em Vinicius de Morais (1984:90,1): Acasa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que ‘a olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: 0 licoreiro ma- gro, a bandeja triste, o absurdo bibeld. E tem um corredor a escuta, de cujo teto 4 noite pende uma luz morta, com negras aberturas para quar- tos cheios de sombra. (...) Na escada hé o degrau que estala e anuncla aos ouvidos mater- nos a presenga dos passos fillals. Pols a casa materna se divide em dois mundos: 0 térreo, onde se processa a vida presente, @ 0 de cima, onde vive a memoria. (...) Em cima ficam os guardados antigos, 08 Me yros que lembram a Infancia, o pequeno oratério em trente ao qual nin: 4 20 __A ESTILISTICA guem, a nado ser a figura materna, sabe por que queima as vezes uma vela votiva. Ea cama onde a figura paterna repousava de sua agitagao diurna. Hoje, vazia. E oportuno dizer que as conotagdes de uma palavra nem sem- pre pertencem a um so individuo. Elas podem ser sentidas pelos mem- bros da comunidade lingiiistica, em virtude de uma espécie de acordo intersubjetivo. Ha, entéo, duas modalidades de conotacao:-a-que re- sulta de experiéncias unicas e pessoais, integrando o discurso de cada “individuo (mito individual), e aque se sedimenta na lingua por um longo processo de tradi¢ao cultural ou influéncias ambientais (mito coletivo). 5 E claro que, em muitas palavras, os valores afetivos parecem ausentes, ao passo que em outras predominam sobre a parte concei- tual do significado. Assim, 0 vocdbulo panela expressa menos carga emotiva que mamde. ® Mas, insistimos com’M. Lefebve (1975:59), *a conotacaéo depende basicamente do contexto. A palavra primavera somente se associa as nogGes de novidade, clareza, fecundidade e pu- reza, quando encarada poeticamente. O numeral treze nada sugere de supersti¢ao em diversos enunciados. Por conseguinte, qualquer evo? cacao sé ésentida e passivel'de andlise mediante 0 conhecimento da» »situagao oudo:contextoy Dai decorrem os equivocos e desentendimen- tos: muitas vezes, alguém interpreta mal uma palavra, captando-lhe tragos afetivos que normalmente ela possui, mas que deixa de apre- sentar num contexto especifico. Freqtientemente ocorre também que um mesmo vocabulo pas- sa a ter um duplo sentido, variarido expressivamente seus efeitos co- notativos. E 0 que vemos, por exemplo, na seguinte quadra: Um dia, estando entre nds dois 0 Atlantico, Senti a tua mo na minha. Agora, tendo a tua mao na minha, Eu sinto entre nds dois o Atlantico. A analise das conotagées no texto literdrio se torna praticamen- te inesgotavel. Ela se funda nos mecanismos de relacionamento para- digmatico, que tanto pode ser desencadeado a partir do significado como do préprio significante. Ou seja, um vocabulo sugere outros * Confronte-se a afetividade positiva deste termo com o sentido pejorativo que se atri- bui a madrasta. E fato que boas madrastas tem havido, mas continua a existir uma Tepugnancia afetiva em torno deste vocdbulo (Camara Jr., 1977:51). Algo semelhante a0 que ocorre com sogra. ‘ § DA ESTILISTICA 21 que com ele mantenham alguma semelhanga fonoldgica ou vinculo sem&ntico, Ha, pois, multiplas formas de inferir os valores afetivos de um enunciado, Em geral uma palavra se associa com outra que: a) possa substitui-la em determinado contexto; b) relembre alguma identidade f6- nica ou grafémica; c) tenha estrutura semAntica parcialmente idéntica; d) possa normalmente combinar-se com ela. Além disso, sao comuns as associagées do referente dessa palavra com outras entidades do mun- do real, o que gera novas fontes de conotagao (Dubois, 1974:168). De tudo se deduz que a Jinguagem conotativa é extremamente rica, as vezes de dificil decodificagéo, em face dos multiplos signifi- cados que engloba. A denotacao, ao contrario, costuma ser nivelada ao grau zero, limite para o qual tende a linguagem univoca. Encontra- se no grau zero o discurso que visa apenas 4 comunicagdo mais clara possivel, aplicando estritamente as regras do cédigo. A linguagem cien- tifica é, para certos autores, o modelo mais vizinho do grau zero (Le- febve, 1975:27). Esses dois diferentes usos da linguagem se relacionam direta- mente com o propésito que se tem no ato comunicativo. Desse mo- do, sera util examinar alguns esquemas das fungGes da linguagem, a fim de tragar outro limite do campo estilistico. Fungées da linguagem 0 problema das fungées da lingua- gem tem sido objeto de atencdo nos mais variados ramos do conhecimento humano. Ogden e Richards (1976:230 s), pretendendo esgotar 0 assunto, enumeram cinco fun- g6es, a saber: a) simbolizacdo da referéncia, b) expressdo de atitude para com o ouvinte; c) expressdo de atitude para com 0 referente; d) promogio dos efeitos pretendidos; e) apoio. de referéncia: Outro esquema apresentado, talvez de maior repercussdo, foi o de Karl Biihler. Para este autor, a linguagem possui uma triplice fungdo: a representativa (al. Darstellung), a apelativa (al. Auslosung ou Appell) e a de exteriorizacéo psiquica-(al. Kundgabe). ® Biihler posteriormente adotou uma outra terminologia: a) fungdo simbdlica; b) fun- ¢ao de sintoma; c) fun¢do de sinal (Penna, 1970:132). 22__A FSTILISTICA 22__A STULISTICA Aproveitando-se do esquema de Karl Biihler, Mattoso Camara Jr. (1977:12) firma uma correspondéncia da funcdo representativa com ‘a propria lingua, objeto de estudo da gramatica. Os fendmenos espe- cificos da manifestacao animica e do apelo, ficando 4 margem desse estudo, merecem a atencdo da estilistica. Cumpre ressaltar que o predominio de uma sobre as outras des- sas func6es diferencia o tipo de discurso: um texto literdrio tem mui- to mais de exteriorizagao psiquica do que um cientifico, onde a camada representativa 6 esteio dominante. E, como exemplo de discurso mar- cado pelo fator apelativo, lembramos a propaganda comercial, onde © que se pretende é levar o consumidor a adquirir os produtos su- geridos. Trata-se, contudo, de diferencas de grau e dificilmente algum ato lingiifstico se define pela completa auséncia de duas das fun¢ées em proveito de uma sé. Na realidade, a tipificacdo dos discursos, se- gundo esse prisma, esté na dependéncia direta dos signos que o estru- turam. O processo de seleciio e combinacdo permite ao emissor aproveitar do repertério que 0 cddigo lingiiistico Ihe faculta aquelés signos mais ajustaveis 4 funcdo da linguagem que convém ao caso. “E todo um esforco ao qual se subordina a coeréncia e eficacia da co- municagao. A orientacao de Karl Biihler foi modificada por diversos auto- res, porém continua com sua validade, j4 que realmente a linguagem » manifesta contetidos intelectivos e/ou emocionais e tem por objetivo. precipuo a comunicacao. “Irving M. Copi (Penna, 1970:123) apresentou a mesma classifi- cacao, apenas com alteracdes nomenclaturais. Para ele, a linguagem preenche trés fungdes fundamentais: a informativa, a expressiva € a diretiva.. ‘Halliday (1976:136) formulou um esquema um tanto diferente. De acordo com sua concepgdo, as fungdes basicas so: a) ideacional — A linguagem.serve para manifestar contetidos relacionados a-experiéncia que o falante tem do mundo real ~ou de’seu universo interior. b) interpessoal — A-linguagem serve para manter relagdes SO- ciais, para expressar papéis sociais em que ha contacto entre duas-ou mais pessoas: ¢) textual —-Alinguagem:possibilita 0 estabelecimento de vin -culoscom ela prépriae com as caracteristicas da situagaoem> OS LIMITES DA ESTILISTICA _23 que é usada. Por esta fungdo, o falante ou escritor é capaz de elaborar textos e 0 ouvinte ou leitor consegue distinguir um texto de um conjunto aleatério de frases. A-fungao.tex- tual é, pois, instrumental das-outras duas, j4 que sempre 0: ato comunicativo necessita da elabora¢ao de discursos. André Martinet (1968:15 s) assinala como essencial a fun¢do.co- municativa. Mas diz que a linguagem exerce outras funcées, além da que assegura a miitua compreensdo. Ela serve de suportedo pensa- -mento,;-uma vez que s6 podemos pensar através dalinguagem, Ha também a funcdo expressiva, pela qual o emissor analisa o que sente sem ocupar-se excessivamente com as reagGes dos receptores. Em outra ocasiaio, Martinet (1976:149) nos fala de possiveis fun- c6es marginais que convém apenas a determinados niveis de lingua- gem como o-caldo-(funcdo criptica) ou as linguas secretas dos ritos, (fungao mdgica). *° Entretanto, o que talvez mais interessa a estilistica € a fungao. que Martinet (1968:16) denomina de-estética) embora para ele seja dificil distingui-la das funcdes comunicativa e expressiva: 41 Cremos, porém, que esta funcao estética corresponde a fungao poética do es=« quema de Jakobson (1971:129), a qual Riffaterre (1973) preferiu de- nominar de funcdo estilistica e Dubois (1974), de fungao retdrica. » Como se vé, ha bastante divergéncia quanto A designacdo e nu- mero exato das fungoes. Para Karl Biihler, eram basicamente trés. Jakobson ampliou esse total para seis. E por que nao admitir outras fungdes? Martinet nos fala de fungdes marginais (a lidica, a magica, a criptica); Malinowski, em sua explicacdo etnografica, também se refere a funciio magica, ao lado da pragmatica: Herculano de Carva=. tho'(1973:27 s, 1) identifica duas fungées basicas: a comunicagao (ex- teriorizacdo) e o conhecimento. A primeira considera uma externa € o conhecimento, uma fungao interna. 10 Ernest Cassirer (Penna, 1970:126) distingue como fungdes basicas a fungdo mdgica ea fungdo semdntica. A primeira cedo se manifestou na humanidade ¢ se verifica com. intensidade na infancia, na fase de aprendizagem da linguagem. Pela fungao magica, supde-se que os sons lingiiisticos tém 0 poder de atender as necessidades ou mesmo. de atuar sobre os objetos circundantes. E somente a partir da constatagdo da impor- tancia das palavras que estas passam a ter um Uso semfintico. é 11 Segundo o autor (1976:147), trata-se mais da utilizagdo da lingua com vista a uma melhor comunicagao do que de uma fungdo auténoma isolavel. 24 _A ESTILISTICA E oportuno analisar um pouco a concepcao de Herculano de Carvalho. Na realidade, o que ele designa como fungao externa abarca 5 todo o esquema de Karl Biihler. Isto é, configuram a fungao externa a informacao, a expressio e 0 apelo. Eis como Herculano de Carvalho (1973:39, I) define cada as- pecto: informacdo ¢ a funcao lingiiistica pela qual se exteriorizam con~ teidos*-cognitivos de natureza predominantemente intelectual; « ~expressio é a funcdo da linguagem em que o individuo da vazdo a. seus sentimentos; apelo é a que manifesta contetidos de carater voli tivo, orientando-se para a acdo, para uma finalidade pratica. E necessario insistir que todo ato comunicativo assume simul- taneamente essa triplice fungdo. Nao ha informagao que deixe de ex= teriorizar algo do estado emotivo do sujeito, ainda que esse estado. seja o do puro desinteresse. Nao ha também informagao sem apelo: ao transmitir a teoria mais abstrata, sempre 0 emissor tem, pelo me- nos, 0 desejo de agir sobre o seu interlocutor. Por outro lado, nao * -ha expressdo pura que seja expressao lingilistica. A que se manifesta pelo grito de dor ou de prazer, pelo riso ou pelo choro, pelas reagdes faciais, muitas vezes é expresso pura mas nao, evidentemente, de na- tureza lingiiistica (Carvalho, 1973:48 s, I). Sendo assim, o que deli= ‘mita-um discurso’como informativo, expressivo ou apelativo €0 gra -de predominancia de uma das fungGes sobre as demais: Passemos agora ao estudo do modelo jakobsoniano, que rela- ciona cada elemento do processo de comunicagao a uma fungao es- pecifica da linguagem, de acordo com a seguinte correspondéncia: Fungées da linguagem Elementos do processo Referencial Contexto “Emotiva: Remetente. Conativa ~Destinatario. Fatica > Contacto* Metalingiistica: Cédigo» Poética — Mensagem * As trés funcées iniciais (referencial, emotiva e conativa) sao as mesmas identificadas por Karl Biihler, com outras designacdes.. A Te- ferericiali(denotativa ou cognitiva) define a maioria das mensagens, ja que tem como orientagao o préprio-referente. A’emotiva ow expressi- » va;.centrada novremetente, tem por objetivo a exteriorizacao da atitu- de dé quem fala em relacao aquilo de-que.esta»falando. A conativa * se orienta para o:destinatario, sendo o-vocativo eo imperativo as suas formas de expressao gramatical mais usuais (Jakobson, 1971:123 s)- OS LIMITES DA ESTILISTICA 25, As demais fungées, de certa maneira, se revestem desses mes- mos contetidos, porém apresentam tragos formais nitidamente dis- tintivos. Tentemos examindé-las separadamente: A fungao fatica, assim designada por Malinowski, se encontra nas mensagens que servem para:prolongar ou interrompero circuito comunicativo, para'testar o canal, para atrair.a.atencdo-do interlocu- tor. Séo exemplos as formulas de contacto interpessoal:““— Alé, co- mo vai?’’; “‘— Vou bem, e voce?” A fungao metalingiiistica’ocorre quando se usa a linguagem com o fim de explicar'a prépria’ linguagem: Pode tratar-se de uma expli- .cacao sobre um cédigo ndo-verbal, como a pintura, a musica, a mi- mica etc. ou sobre elementos do cédigo verbal que exigem alguma elucidacéo. Quando se interpreta um filme ou um poema, quando se analisa um quadro de pintura, quando se explica uma equacao de matematica, enfim, quando se da o'sinénimo de uma palavra desco- nhecida ou a definic&o de qualquer objeto, tem-se a funcao metalin- gilistica. Por ai se vé o largo emprego que ela assume em nossa vida cotidiana. Finalmente, de todas as fungdes, a que desperta a maior aten- ¢ao do estilisticista ¢ a que se centra na mensagem em si mesma, a que destaca os aspectos criativos ou expressivos da linguagem. Ja- kobson (1971:129 s) dedica varias paginas a andlise do que configura esse trabalho de recriagéo da linguagenre diz que a ambigiiidade cons--» -titui-uma caracteristica intrinseca, inalienavel, de toda-mensagem vol=. tada para’si-prépria. E, em suma, 0 mesmo pensamento de-Umberto» ‘Eco (1968:40), para quem a forma se torna esteticamente valida na medida em que pode ser vista e compreendida sob miltiplas perspec- tivas, manifestando riqueza de aspectos e ressonancias. A aceitacaéo do modelo jakobsoniano se torna cada vez mais ge- ral. Todavia;-D. Hymes-acrescentou outra funcdo, a contextual, (cu- jo exemplo saoas descricdes do ambiente fisico que cerca-emissor-e.. -Teceptor). As correspondéncias com os elementos do processo de co- — municacao sao as mesmas ja estabelecidas por Jakobson: fungao ex- pressiva / emissor; diretiva / receptor; contactante / canal; referencial / tépico; metalingitistica / cédigo; poética / mensagem; contextual / situagao. Resta, porém, uma duvida: a de saber qual das funcées limita de fato.os dominios da estilistica,-se a emotiva ou apoética. Na reali- dade, -o poético’é sempreemotivo, mas.a reciproca néio é verdadeira> 26__A ESTILISTICA Por isso, desde que o modelo de Karl Bihler seja ampliado, ‘convém isti i gem que se desvia da norma; COMO resultado de um tra-: ‘balho de recriacdo exercido na propria linguagem. Assim, a fungao, ‘postica ndo se acha-confinada aos textos posticos, ™mas a todo dis: “pressivos. O desvio estilistico Figuras ou metaboles Grande parte do.descrédito da reto- rica tradicional se deve ao acumulo de figuras inventariadas, muitas delas tao semelhantes que as diferen- ciagdes parecem sibilinas e desnecessdrias. Com efeito, os manuais que exploram 0 assunto, entre os quais destacamos o de Hénio Tavares (1981), relacionam centenas de nomenclaturas, cada qual a mais diff- cil de gravar. S6 para se ter uma idéia, se a figura é uma simples repe- tigdo de palavra, poderd ser designada como anéfora, epistrofe, didcope, epizeuxe, anadiplose, homoptoto, epanafora, epanalepse, epa- nadiplose, epanastrofe, epanodo, didfora, mesoteleuto, poliptoto etc. conforme o local ou a forma em que aparece a palavra repetida. i Por outro lado, na maioria das vezes, nao se vai além da pura identificagao, © que nada representa em termos de andlise estilistica pier Teconhecer uma figura, se nao se descobre o seu potenci pressivo. A interpretacao dos aspectos conotativos, a compreensdo dos tracos evocatérios, ° rendimento que o desvio gera como instau- rador da funcéo poética tem maior validade do que o ESfOTCOvao estipido da memorizacao. i E preciso ter plena consciéncia de ciso ter pl que sé merece ser classificada como desvio estilistico aquela figura que encerra tracos. expressivos, 28 _A ESTILISTICA justamente por afastar-se da norma, Para nos servirmos de uma ilus- traciio, somos de opiniao que a elipse do sujeito, quando pronome- pessoal, nem sempre constitui um desvio. No portugués, ao contra- rio d& inglés, as desinéncias nimero-pessoais revelam 0 sujeito do ver- bo e, portanto, na maioria dos casos, a presenca do pronome é uma simples redundancia. Nao ha nenhum afastamento da norma se o omi- _tirmos. Nesse sentido, adverte-nos M. Lefebve (1975:56), uma figura ~s6-é legitima na medida em que corresponde a uma alteragio do sen- tido, enriquecendo 0 texto com significagdes novas. A figura nao tem por fim a informagiio, emitida no discurso neutro ou denotativo, mas a apreensao de uma realidade particular das coisas, conhecida como presentificacao. Nao é, pois, relevante dizer que nesta ou naquela frase ocorre a elipse de um termo, nem muito menos discutir se se trata de elipse ou de zeugma. O importante é perceber se a omissiio do ter- mo traz alguma conotacao ou se, pelo contrario, nenhum rendimen- to estético apresenta no contexto. Mantendo-se essa condi¢ao, o estudo das figuras ou metaboles » volta a ser o centro de interesses da anilise estilistica. Foi assim que _J. Dubois (1974) redignificou-a antiga retérica, partindo de uma es- quematizagdo moderna dos tipos de metabole. Para tanto, levowem » -conta os planos da expressio e do contetido, bem como as operagdess fundamentais de supressao, adjun¢ao, supressao-adjun¢io e permu- tacao.No plano da expressao, distinguiu os metaplasmos das meta- taxes; no plano do contetido, os metassememas dos metalogismos O esquema de Dubois é bastante coerente. Se as metaboles apa recem no discurso que, por sua vez, é elaborado com os elementos da lingua, torna-se evidente que elas se diferenciam em fungio dos niveis estruturais em que incidem. Dessa forma, as operagédes funda- mentais citadas acima geram metdboles de natureza diversa, consoante © seguinte esquema: Plano da’expresséo { Metaplasmos (nivel da morfologia) Metataxes (nivel da sintaxe) v sta Ro dow? Metassememas (nivel da semantica) p+ Plano-do conteudo { 5 Metalogismos (nivel da ldgica). vw wae a ise til e didatico examinar separadamente as espécies de me- oles, oferecendo exemplos.das que produzem melhores efeitos eX- we ESTILISHIOD 29 -pressivos. Todavia, cumpre nao esquecer que, uma vez destacados. os exemplos perdem muito de sua capacidade evocatéria, em virtude de que esta age sempre em func&o do conte Metaplasmos ‘Sdovas alteracdes ou desvios que incidem na-forma das pala- vras, em sua constituicao sonora. Dai, de modo mais adequado, de- veremos dizer que os metaplasmos se processam num nivel . morfofonoldgico, nao apenas no morfoldgico ou no fonoldgico. Os mais comuns sao os seguintes: aférese, apdcope, sincope, prétese, epéntese, aliterac&o, sinérese, diérese, trocadilho, neologismo, meta- tese, palindromo etc. Selecionemos alguns para explicacdo: a) Aférese — supressao de fonema ou silaba no inicio de pala-_ vra. Como exemplo, lembramos que a forma dialetal esymo- ralizado, em que houve a perda do fonema /d/, traz uma série de associacdes fonoldgicas inexistentes em desmoralizado. Talvez por isso, Guimaraes Rosa (1964) usa a expressao ‘““bur- ro esmoralizado’’, onde se percebe a intensificacdo do valor depreciativo. E possivel no caso estabelecer vinculacdes com esmola e com esmo, sugerindo que o animal, além de impres- tavel, andava sem rumo definido. b) Sincope — queda de fonema(s) no meio de vocdbulo. Para traduzir a idéia de uma fracdo de minuto, Guimaraes Rosa empregou a forma mito, com sentido polivalente: ‘no zuo de um minuto mito’’. Com efeito, a queda da silaba medial traz, pelo menos, trés conseqiiéncias: mito funciona como ad- jetivo, reforcando a nogdo de rapidez ou instantaneidade; mi- to associa-se ao vocdbulo homénimo, significando algo inacreditavel; mito, sendo a reducao do corpo fonoldgico da palavra minuto, intensifica a motivagdo-sonora que induz a idéia de brevidade. Apesar disso, Gladstone Chaves de Melo. (1976:118) faz severas criticas a Guimaraes Rosa, partindo do pressuposto de que ‘ninguém pode desfigurar os vocabu- Jos, eliminando silabas, sobretudo se for a tonica. c) Apécope —supressao no fim de palavra. E um recurso de que muito se serviu Guimaraes Rosa: abrevid (abreviada), pri- vo (privado), supro (supremo) etc. Alguns poetas, por neces- 30 A ESTILIST! 3A ET TE sidade métrica ou rimica, costumam também eliminar sj bas finais, como nos seguintes exemplos colhidos em An i. nio de Padua (s/d: 16-17): brumo (brumoso), is (agourenta), /ustra (lustrosa), pdipito (palpitante) etc, te d) Prétese — aumento de fonema no-inicio de palavra. Um exemplo expressivo se encontra em ‘‘Deus nos sacuda’’ (Ro- sa, 1976:121). A adjungao do /s/ propicia a formacao de um trocadilho (acuda/sacuda), com énfase na idéia de que a ajuda de Deus seja para despertar, dar vitalidade e interesse, e nao apenas para socorrer. e) Epéntese — acréscimo de fonema no meio de vocabulo. Sio comuns os trocadilhos obtidos com esse recurso. Como ilus- tragao, lembramos que Fernando Pessoa, ao autografar um retrato em que aparecia bebendo, escreveu: ‘‘Em flagrante delitro’’. f) Paragoge — aumento no fim. Geralmente tem um efeito in- tensivo, como em noturnazd (Guimaraes Rosa), em vez de noturna. Essas modificagGes efetuadas na forma dos vocabulos sao as mesmas que ocorrem na evolucao da lingua. No registro coloquial, costuma-se dizer brigado, td, pra etc. Foi seguindo processos idénti- cos que o latim vulgar se transformou em portugués. Assim, os escri- tores ndo fazem mais do que aproveitar os mecanismos existentes nov sistema lingiiistico, para alterar as construgdes morfoldgicas com in- tencao estilistica. A nosso ver, sobretudo no sistema aberto "2 da lin- gua, as possibilidades de alteracao ou criag&o sao inesgotaveis. Gladstone Chaves de Melo (1976:116) pensa de maneira dife- rente. Segundo ele, a morfologia nao da margem a uma exploracdo estilistica, em virtude de seu carater estatico e armazenirio. Ela ¢ a> parte mais resistente da lingua, aquela em que mais fortemente se ma- nifesta o sistema. Por isso, permite poucos desvios ou-inovagoes. Entendemos que a criatividade nao tem limites ¢ se exerce em qualquer plano da lingua. Observemos que até as normas do sistema ortografico, que devem ser uniformemente cumpridas por motivos *? Os verbos e 0s nomes (substantivos, adjetivos e advérbios) fazem parte desse os mia, que se renova continuamente pelas regras de derivagdo. Os instrumentos gramatt cais (artigos, preposigdes, conjung6es) constituem, por outro lado, classes fechadas, cujo nimero de elementos ¢ bastante reduzido. © DESVIO ESTILISTICO _31 de toda ordem, so desrespeitadas quando o autor sente uma necessi- dade interior, de carater expressivo: Foi o que experimentou Rachel de Queiroz, ao dar o titulo de seu romance Déra, Doralina. O acento diferencial havia sido abolido por lei, mas a auséncia dele faria que o nome Dé6ra pudesse ser lido como Dora (6). Rachel de Queirdéz quis associar 0 nome da personagem as conotagées do vocabulo dor e, para tanto, a vogal ténica de Dora teria que ser fechada. Alias, logo no primeiro pardgrafo do romance, essas conotag6es se tornam explicitas: “Bem, como dizia o Comandante, doer, déi sempre. S6 nao déi depois de morto, porque a vida toda é um doer” (1975:3). Tais infragdes as regras ortograficas tém, por conseguinte, uma -funcdo estilistica. ? Incluem-se entre os metaplasmos e recebem a de- signacdo de metdgrafos. Ainda como ilustracao, anotamos que Dar- ci Ribeiro (1982), com a ironia que o caracteriza, usa insistentemente o recurso de dobrar a letra / em final de palavra para acentuar o des- vio prosddico em relacéo ao fonema pés-vocdlico, que, na maioria das regides brasileiras, deixa de ser consonantal. O desvio, que con- siste na pronuncia do fonema /I/ em oposi¢éo ao uso generalizado do ditongo, sugere o pedantismo e afetacao da personagem descrita, conforme se percebe nos grifos das seguintes citacdes: “Vejam sé — reclama o preto, com toda razao — eu, o tenente G. Car- valhall, do glorioso Exército Nacional, aqui sou chamado Pitum e tido como maricas” (1982:51). 13 Mansur Guérios (s/d:182 s) interpreta por esse Angulo a pratica generalizada da ca- cografia dos oniénimos ou marcas de produtos industrializados: Sukita (reftigerante), Keique (guarana), Kibom (sorvete), Q Boa (agua sanitaria) etc. Ha inumeras aberra- gdes desse tipo, palavras as vezes de dificil leitura, como se fossem estrangeiras. Alids, cremos que o apelo maior reside exatamente na impressdo de que 0 produto ¢ estran- geiro, j4 que talvez 0 inconsciente coletivo dos brasileiros desvaloriza as marcas nacio- nais. No mesmo plano, est4o os nomes de fantasia de firmas comerciais, sobretudo bares ¢ restaurantes: Kerumais, Kuxixo, Alykte, Arapuka etc. A nosso ver, conforme jé frisamos em outra ocasiao (Monteiro, 1980 c), essa pratica constitui uma séria per- turbaedo e atenta contra a unifc ‘ormidade do sistema ortogrdfico luso-brasileiro. Resta saber até que ponto é valido desfigurar os vocdbulos por motivos de ordem expressi- va. Alias, tal pratica nao existe apenas no Brasil. E muito comum em outros paises, como na Franga, onde Marcel Cressot (1963:35) procurou analisar-lhe as motivagdes estilisticas. Assim, a propésito de um inseticida denominado Oxycharancon, Cressot observa que, se 0 vocdbulo fosse grafado com occit (raiz de um verbo que significa matar), poderia impressionar desfavoravelmente os clientes. A grafia com oxy, bem ao contrario, atua de modo favordvel, por sugerir todas as virtudes benéficas do oxigénio. M__AESTILISTICA “Limbo sabia que nao era, porque fol batizado por padro Italiano 6 cris. mado por bispo alemao la do Rio Grande do Sul!" (1982:25), i “E lA vai o major perorando © sonhando com seu amado Brasii) brasi- leiro, verde-amarolo, cristao @ varonill” (1982:61). De modo analogo, 0 alongamento de vogal, com valor superla- tivo ou intensivo, ¢ marcado graficamente pela repeticao sucessiva da mesma letra, como nesta passagem de Carlos Drummond de An- drade (1984:26): “Ai que lindo, liiliindo”. Também ha metdgrafo quando s to expressivo, sem que as regras de hifenizacdo ou de translinea © permitam. No poema ‘‘Pequeno canto ex-ético’’, de Cassiano Ri- cardo, 0 vocadbulo exdrico passa a ser bissémico (significa ao mesmo tempo “‘estranho”’ e ‘‘fora do olho ou da visio’’), conforme se per- cebe na seguinte disposicaio dos versos: mprega um hifen com intui- “O encanto dtico Pen Tornou 0 pranto ex- Sinia Maria Nogueira ético.” RG, 8909533.ssp-sp Mas, de todos os recursos morfoldgicos, o metaplasmo mais fre- qiiente em muitos escritores é 0 neologismo. O fato se deve em gran- de parte ao desejo de suprir possiveis lacunas do repertério efetivo da lingua, aliado ao intuito de atingir a maxima expressividade, pelo aproveitamento da prépria constituigdo sonora do vocabulo como fon- te de novas conotagées. Os processos de formacio dos neologismos so, como nao po- deriam deixar de ser, os operantes na gramatica da lingua, sendo a sufixacdo o mais fértil deles. Em geral, o emprego do sufixo apenas atualiza uma forma inexistente mas possivel, '* forjada de acordo com ** Essa espécie de neologismo é motivada por algum fator de ordem expressiva, Que tanto pode ser a necessidade de definir de modo preciso uma idéia concebida como a intencao de sugerir conotagdes afeti im, entre os sufixos, existem aqueles que transmitem nogdes pejorativas, aos quais se recorre quando se pretende formar vood- bulos depreciativos. O sufixo — udo, por exemplo, traduzindo a idéia de algo grande ou disforme, se presta muito bem para essa finalidade, Candido Juca Filho (1958:34) observa, sem muita razdo, que munca seri possivel agrega-lo a um vocibulo nobre, como labio, rosto ou fronte. Acrescenta que, ao contrario, termos vulgares come be $0, focinho ou testa, com toda a naturalidade formam os derivados beigudo, fociehu- doe testudo. O mesmo autor apresenta-nos uma série exaustiva de abonaydes, eat QUE Se constata o efeito depreciativo provocado pelo sutixo, aplicade aos mais civersos Vocibulos: ‘mao sapuda’’ (Eca de Queirds), “mulher gorda, fayuda’” (Camilo). “S°- quei na bocuda”” (Valdomiro Silveita) etc. © DESVIO ESTILISTICO__33 © paradigma derivacional, como os vocabulos coruscdncias, estrele- cere australizar, criados por Martins Fontes (Bueno, 1964:157). Nao raro, porém, o neologismo causa certa estranheza porque, em seu lugar, ja existe outra forma que normalmente o bloqueia. Es- se procedimento foi bastante utilizado por Guimaraes Rosa e José Candido de Carvalho e copiado mais tardé por Dias Gomes. 1 Em Guimaraes Rosa, ha imaginamento (1960:406), manha noiteira (1964:5), satisfattvel (1976:122), meninamente (1969:49), grandidade (1968:39) etc. Em José Candido de Carvalho (1982), ha parentagem (p. 21), conselhagem (p. 108), pormenorizagens (p. 128), companhei- ragem (p. 167), educativismo (p. 176), finalméncia (p. 88), pondera- cdo severista (p. 7), camarada vingancista (p. 19), desculpento (p. 220), maridanca (p. 67), pratrasmente (p. 125) etc. O mesmo discurso que, mais tarde, caracterizaria Odorico Paraguassu... Outro desvio consiste em agregar um sufixo a uma base que nor- malmente o rejeita. E o que se verifica em Guimaraes Rosa: “— Ah... e quase, quasinho... Quasezinho, quase” (1976:125). “_. Pois egsezinha, essezim” (1968:14). As vezes, € 0 verbo que recebe o sufixo diminutivo, conforme se 1é em Carlos Drummond de Andrade (1984:53): “Ah, disse a moga, vocé ficou zangado comigo, diga, ficouzinho?” O recurso € caracteristico da linguagem afetiva e, por isso, no registro coloquial, sao comuns as formas unzinho, tudinho e seme- Ihantes. Alias, ja se constatou que a freqiiéncia de diminutivos na fa- la de um povo se correlaciona com 0 seu grau de afetividade, a sua disposig&o emotiva. Dai, sem duivida, a explicacao para o excesso de diminutivos, tao constante entre portugueses € brasileiros. Bem a pro- pésito, Silveira Bueno (1964:113) destaca uma passagem de Camilo Castelo Branco, em que esta caracteristica do povo é satirizada, sem duvida com certo exagero. Comprovemos: «_ E que se vossemecé fosse frade, eu queria ser frada, e haviamos de ter casinha ambos e um quintalinho e as nossas galinhinhas que nos haviam de pér os seus ovinhos, que nés haviamos de cozinhar am- 45 Ant6nio de Padua (s/d:12) menciona varios vocdbulos criados por outros autores, segundo processos andlogos: estrelosos (Sousndrade), langorenta (Luis Delfino), vi- rential (Gilka Machado) etc. E adverte que inexiste qualquer justificativa estilistica a influir em tais criagdes, além da pura manifestagdo de artificialismo ou ineditismo. 34__ A ESTILISTICA binhos na nossa cozinha e depois a gente dizia a sua missinha.., ¢ de- pois a gente vinha tomar o sol no seu quintalinho... e depois... ” Alias, Castelar de Carvalho (1978:65), em pesquisa de resulta- dos irrefutaveis, demonstrou que nos diminutivos prepondera a fun- go emotiva (psicoldgica) sobre a funcdo ldgica (idéia de Pequenez), E afirma, com seguranga, que da fantasia e emog¢ao é que decorreu, Por extensao natural, a conceituagdo indicativa de coisas pequenas, Repetimos, pois, com Castelar de Carvalho (1978:129) que é a fun- ¢ao emotiva, e nao a funcao empequenecedora, a predominante nos diminutivos portugueses. Mas nao sao apenas os diminutivos que traduzem 0 carinho e a sensibilidade inerentes 4 nossa formacao étnica. Também Os aumen- tativos e superlativos sao usados abundantemente com efeitos andlo- gos. O mesmo fenémeno observado no emprego dos diminutivos Ocorre com 0 sufixo -issimo, aplicado atualmente de modo enfatico em vocabulos que originariamente nao sao adjetivos, como se vé nos exemplos abaixo: “— Coladinhos Para sempre e toda a vida... E erao paraiso. O teuissimo, Joao” (Machado, 1965:132), “..08 Indios comegaram um interrogatério cerrado na lingua 14 deles, de que o preto nao entendia nada. Nadissima” (Ribeiro, 1982:76). “— Ejanamanha madrugadissima, era chamado a palacio” (Ro- Sa, 1969:18). As possibilidades expressivas da sufixagao mantém, portanto, um dominio muito vasto. Se pensarmos na formacdo de verbos, ve- TemOs que 0 recurso é um dos que mais geram efeitos evocatérios. Para ilustrar, citemos a Seguinte passagem de Guimaraes Rosa (1960:427): “O mato — vozinha mansa — aeiouava.” Nota-se que 0 escritor usou a escala das vogais, a fim de insi- nuar a sensacao da voz do vento, como se fosse uma sinfonia. O va- lor imitativo ou onomatopaico relembra os ruidos caracteristicos da mata e, para isso, nada mais sugestivo que 0 aproveitamento das pro- priedades expressivas de cada som vocalico. Por vezes, o neologismo tem a finalidade de estabelecer um ue cadilho, o que se percebe neste poema de Manuel Bandeira (1966:193): © DESVIO ESTILISTICO__35 Beijo pouco, falo menos ainda. Mas invento palavras Que traduzem a ternura mais funda E mais cotidiana. Inventei, por exemplo, o verbo teadorar. Intransitivo: Teadoro, Teodora Analisando a passagem, é facil concluir que a rigor so houve a jungao do clitico com 0 verbo, sem nenhuma alteracao morfoldgi- ca. Mas isto foi o bastante para provocar um efeito associativo, de tal modo que o nome proprio Teodora quase se tornou cognato do verbo, dele recebendo todas as conota¢6es. A prefixag&o € também um processo que dé margem a multi- plas associagdes. Guimaraes Rosa (1968:43) usa 0 vocabulo desexis- tir, cujo significado se elastece pela dupla possibilidade de interpretagdo: além de anténimo de existir, engloba o verbo desistir, como se fosse uma fusdo de desistir de existir. Anote-se de passagem que o prefixo des- é fertilissimo no discurso de Guimaraes Rosa: des- lembrar (1968:77), desfeliz (1964:20), deslua (1968:27), destempo, de- sendoidecer, desdoidar, desmergulhar, desenorme etc. Por ultimo, cabe destacar 0 processo da composicdo. Anténio de Padua (s/d:23) assinala que o recurso, além do sabor erudito que transmite ao enunciado, tem a vantagem estilistica de suprir a peri- frase ou a dupla adjetivacao. Dos exemplos que cita, anotamos: asas neviluzentes (Sousandrade), auriargénteo (Alvares de Azevedo), au- riflorido (Luis Delfino) etc. Os casos mais expressivos ocorrem quando se da o cruzamento analdgico, eliminando-se alguma(s) silaba(s) do primeiro componente, como acontece em inumeros neologismos de Guimaraes Rosa: sussurruido (sussurro e rutdo, com haplologia), anhanjo (aglutinagao de Anhangd e anjo), adormorrer (adormecer e morrer), enxadachim (enxada e espadachim), esperanceio (esperanca e anseio), perséquito, psiquiartista etc. Esses cruzamentos, em termos mais precisos, configuram um processo de formacio vocabular dis- tinto da composi¢ao e podem ser denominados de amdlgama, Como aproveitam segmentos fénicos dos vocdbulos que os produzem, a con- seqiiéncia imediata € 0 trocadilho ou a duplicidade de interpretacao. Para melhor fixar esse processo, tomemos ainda um raciocinio espi- rituoso de Moacir C. Lopes (1982:62): “Mil esquilos correspondem a uma estonelada, mil epigramas séo iguais a um epiquilo.” Em face do que se comentou até o momento, parece que o at minio da morfologia nao é tao inflexivel quanto se supée. B, ae se ter uma idéia mais clara dos Tecursos que Os metaplasmos Ofere. cem ao desempenho da criatividade do escritor, transcrevemos a se. guir um trecho do poema “‘Ao Deus KOM UNIK ASSAO”, de Carlos Drummond de Andrade (1976:3-7): Eis-me prostrado a vossos peses que sendo tantos todo plural 6 pouco. Deglutindo gratamente vossas fezes vai-se tornando sao quem era louco. Nem precisa cabega pois a boca nasce diretamente do pescogo e em vosso esplendor de auriquilate faz sol 0 que era osso. Genucircunflexado vos adouro vos amouro, a vOs sonouro deus da buzina & da morfina que me esvaziais enchendo-me de flato e flauta e fanopéia e fone e feno. Vossa pa lavra o chao de minha carne e planta beterrabos balougantes de intenso carneiral belibalente em que disperso espremo e desexprimo © que em mim aspirava a ser eumano. Salve, deus compato cinturdo da Terra calga circular unissex, rex do lugarfalar comum. Salve, meio-fim de finrinfintim Plurimelodia distriburrida No planeta, Nossa goela 5 ‘empre sempre engole elefantes pre sempre escdocarada enoale Catastrofes do naturalment, e of E PEDE MAIs, nee, A carne pisot ead; Plsaduras mela '@ de cavalos reclama 4 vontade F Sem vont, Sontravontades a ei oncrespa-se exige 86 co) some no consumo, Senhor dos lares € lupanares Senhor dos projetos edo alfabeto Senhor do épio e do cor-no-copo Senhor! Senhor! De nosso poema fazei uma dor que nos irmane, Manaus é Birm: pavdo € Pavone pavio € povo pangaré e Pan € Ré D6 Mi Fé Sol — apante salmoura n’alma, cago podrido. T&o naturalmente como se como ni ou niente. Se estou doente, devo estar doentes. Se estou sozinho, devo estar desertos. Se estou alegre, devo estar ruidoso: Se estou morrendo, devo estar morrendos? Cumpro. Sou geral. E pouco? Multi versal E nada? Sou al. Dorme na tumba a cultura oral Era uma vez a cultura visual Quando que vem a cultura anal na recomposta aldeia tribal? O meio é 2 mensagem O meio é a massagem O meio é a mixagem O meio é a micagem A mensagem é o meio de chegar ao Meio. O Meio é o ser em lugar dos seres, isento de lugar, dispensando meios de fluorescer. 38__A ESTILISTICA O poema inteiro é uma jronia a sociedade de consumo, caracte- rizada pela massificagao, pela robotizacdo do homem, que age € pen- sa segundo a programacao exercida pela estrutura de poder econdémico que, para esse fim, se vale dos canais de comunicagao. Na visio do poeta, 0 individuo foi aniquilado em favor da massa, tornando-se alie- nado, irracional. Dai, a referéncia constante a essa animal metaplasmos sdo, portanto, usados com varias func6es, P nia é a marca mais evidente. Comentemos alguns deles: _ Na primeira estrofe, destacamos 0 neologismo auriquilate, por ter sido criado de modo a ter uma bivaléncia semantica: quilate signi- fica a maior pureza ou perfeigéo do ouro, mas pode também ser en- tendido como ‘‘que late’. O verso seguinte, em que aparece a palavra osso, nao deixa dividas quanto a essa interpretacao. Além disso, leve- se em conta o propésito de descrever ironicamente o homem na Cor dicdo de animal: o “‘intenso carneiral’’, a “goela (.-) escdocarada”’, a “‘carne pisoteada de cavalos’’, 0 “‘caco podrido”’ etc. A segunda estrofe esta cheia de metaplasmos: genucircunflexa- do (insercgao de circun- no vocabulo genuflexado, isto €, ajoelhado ao redor, associando-se também a circunflexo); adouro, amouro e so- nouro (influxo da palavra ouro, com todas as conotacGes que ela pos- sui no sistema capitalista); flato e flauta e fanopéia e fone e feno (aliteracdo cujo efeito estilistico aproveita a impressao acustica do fo- nema /f/, a indicar a sensagao de sopro e escapamento); pd lavra (tro- cadilho); beterrabos (permuta do tema com Obvia intengAo irénica); belibalente (aglutinacdo que dd margem a mais de uma interpreta- ¢4o, j4 que as raizes dos componentes podem ser as de bélico e balir ou de belo e balir, além de se entrever a raiz de libagdo, libido etc.); eumano (fusao de eu e humano) etc. So por esses exemplos ja se nota que o autor conscientemente alteroua forma dos vocabulos com base em mecanismos associativos que desencadeiam uma séria aberta de conotagdes. Mas ha inimeros outros desvios morfoldégicos nado menos expressivos: compato, rex. lugarfalar comum, plurimelodia, distriburrida, cor-no-copo. Sol. bee multi/versal, al, fluorescer etc. Ressalte-se também que a ana- eee eee Fane eee ees atico € semantico, © mesmo poema para consideracao de ordem interpretativa. lizacao. Os orém a iro- Metataxes Sa i mation en cesvios que afetam a estrutura sintatica. A dificuldade 'm saber quando uma regra de concordancia, regéncia © DESVIO ESTILISTICO 39 ou construgao esta sendo violada ou quando se trata apenas de uma escolha entre duas ou mais variantes estilisticas. De qualquer forma, © que fixa o valor do desvio é sua expressividade e é s6 esse aspecto que o legitima. : _Retomemos uma estrofe do poema ‘‘Ao Deus KOM UNIK ASSAO”’: Se estou doente. devo estar doentes. Se estou sozinho, devo estar desertos. Se estou alegre. devo estar ruidosos. Se estou morrendo, devo estar morrendos? No plano da sintaxe, as figuras de repeticao (a anafora, o me- soteleuto, 0 poliptoto) sao relevantes para a intensificacdo dos con- telidos e estruturacdo do ritmo. Entretanto, a que mais chama a atencao pelo rendimento expressivo é a silepse de numero que, no ca- SO, constitui um desvio bastante acentuado.'® A mensagem de plena integracdo do individuo 4 coletividade, ou melhor, a humanidade, é definida pela pluralizagao dos termos em fungao predicativa. E co- MO se O poeta quisesse dizer: se adoego, se fico triste ou alegre, se caio em depressdo, também a sociedade de que faco parte, de uma forma ou de outra, reflete o ritmo de minha propria existéncia. Saliente-se, todavia, que essa pardfrase nao atinge o significa- do subjacente aos recursos utilizados pelo autor. Por que, por exem- plo, desertos em vez de sozinhos? Talvez porque sozinhos altera substancialmente o sentido de sozinho, esvaziando-se um pouco a idéia de isolamento que marca a solidao: nds estamos sozinhos pode ser entendido como se estivéssemos afastados dos demais, porém juntos uns dos outros. Ja o emprego de desertos, além de trazer as conota- g6es do vocabulo originariamente substantivo (aridez, imensidade, se- quidao etc.), enfatiza a nocao de distanciamento, de soliddo sem fim. Quanto a ruidosos em vez de alegres, talvez haja uma intencdo iréni- ca: a verdadeira alegria é algo que so 0 individuo experimenta: a ma- nifestacao popular de jubilo é estardalhaco, é barulho, é explosdo. ** Na realidade, o efeito estilistico das metataxes varia em grau de intensidade confor- Me Os aspectos que consigam agucar nos mecanismos de recepcdo do leitor. Dessa for- ma, Yvette Louria (1975:151) entende que os polissindetos, as andforas, as repetic¢des em suma tém um efeito basicamente sensorial, agindo de preferéncia sobre a memoria (auditiva ou visual), sem que seja necessdrio ao leitor penetrar no sentido. Ja os ana- colutos, as silepses, as inversdes e elipses impelem o leitor a um esforco intelectual a fim de penetrar no sentido do enunciado e, por isso, acarretam um efeito estilistico muito mais acentuado. 0A ESTILISTICA ST esl Finalmente, a pluralizacéo do gerindio morrendo €0 de ra a maior ambigiiidade. O ponto de interrogacdo parec colocado com dupla fungao: indicar a duvida quanto 4 dade da formacao do plural de um gertindio (metaplasm, se a destruicado da sociedade acontece gradativamente c de cada individuo. Essas séo apenas algumas reflexdes em anialise propicia. Na realidade, a cada leitura que pertaremos para novos enfoques e indagacées, sem j mos chegar a um significado definitivo. A tentativa de conferir ao texto literdrio um significado pluri- valente, sempre sujeito a releituras, encontra no campo da sintaxe in- finitas possibilidades de romper com a norma. Alguns escritores desprezam as leis de coesdo e deixam as Palavras soltas, desordena- das, as vezes sem Pontuacao. Entre nés, o escritor mais fecundo nes- sas experiéncias foi Guimaraes Rosa. Em seus livros, sao constantes as constru¢6es elipticas e anacohiticas, em que as palavras ficam em liberdade, em virtude de que a ruptura dos esquemas légicos pode acarretar a revalorizacdo dos contetidos emotivos. Algumas frases sao praticamente agramaticais, como a seguinte: SViO que ge. € haver Sido IMpossibilj_ ©) ¢ inquirir OM a morte que a estrofe fizermos, des- jamais Conseguir- “Agora, porém, durante que morto, em nao-tais condigées”. As vezes, a desestruturagao consiste numa regé€ncia anormal (“Sei que ele esta sempre em atormentado”’; ‘‘eu estava bébedo de meu’’), o que torna mais presente e concreta a visao da realidade, afastando o texto do sentido puramente conceitual (Facé,1982:21). Outras vezes, a alteracdo incide na ordem tradicional das pala- vras, com 0 objetivo de revitalizar um grupo fraseoldgico ou expres- Sao ja fossilizada. E o que se percebe em: “O feio esta ficando coisa” (1976:124). “Depois me cuspiu de quente na boca” (1968:43). “O multitudinal siléncio das pessoas de milhares” (1976:123). Clarice Lispector também destréi a sintaxe normal da lingua com 0 intuito de atingir a maxima expressividade. Muitas de suas frases sao fragmentarias, truncadas, com uma pontuacdo mais psicoldgica ou ritmica do que Idgica ou sintatica. Chega inclusive a iniciar um livro (Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres) por uma virgula € a termind-lo por dois pontos. Em conseqiiéncia, os seus romances atingem uma dimensdo €stética incontestdvel. A interpretagéo ganha €m riqueza conotativa, condicionada pelo arranjo dos termos nas fra- © DESVIO ESTILISTICO__41 ses, nao raro incompletas. Observe-se, como ilustragao, a plurivalén- cia funcional e significativa da locugao apesar de, cujo emprego rei- terado adquire os mais diversos valores: “— Lori, disse Ulisses, e de repente pareceu grave embora fa- lasse tranqiilo, Lori: uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é 0 proprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angustia que insatisfeita foi a criadora de minha prdépria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para vocé enquanto vocé esperava 0 ta- xi” (1980:25). Mas, € bom insistir, o desvio sintatico requer plena consciéncia das possibilidades de expressdo que 0 cddigo oferece. Se cometido por simples modismo, cedo perde sua eficacia ou redunda num her- metismo condendavel. Por isso, as frases agramaticais, quando nao passam de um simples amontoado de palavras, tornam-se sem nexo. Elas s6 se justificam estilisticamente se contribuem para a manifesta- ¢ao de estados emotivos que, por sua prépria intensidade, exigem a ruptura dos padrées Idgicos. Esse o motivo pelo qual os desvios sin- taticos se ausentam dos textos puramente informativos e proliferam nos enunciados em que prevalece a func4o emotiva da linguagem. Se- gundo a observacao de Thorne (1976:186), as frases agramaticais ocor- rem com muito maior freqiiéncia na poesia do que na prosa. E que na poesia, sobretudo na lirica, o fluxo de sentimentos nem sempre pode ser controlado. Como € impossivel expressd-los logicamente, s6 resta o recurso de sugeri-los por meio de interjeic6es, reticéncias, fra- ses truncadas, repeticdes, inversdes bruscas, elipses etc. Essa, em ul- tima andlise, é a funcdo dos desvios sintaticos ou metataxes. Metassememas Segundo a definic¢ao de Dubois (1974:52), o metassemema é uma figura que substitui um semema por outro, isto é, que modifica os conjuntos de semas do grau zero. Eo que acontece com a sinédoque, a metdfora, o oximoro etc. Ilustremos com a metdfora: O significado de um lexema é composto de semas ou tragos se- manticos. Basta que haja a transposicdo de semas de um vocdbulo para que se configure o processo metaférico. As vezes, a motivacao reside numa analogia de cardter formal, quando se usa, por exem- The por tia, Nesse caso nao ha grande dificuldade para se en. ntido figurado. QOutras vezes, porem, Os mecanismos de as. esaiqedo so bastante sutis, de cunho subjetivo, ea metéfora ganha soci ; snsio psicoldgica ou significado plurivoco. Acompanhemos ae d z Gait a tentativa de explicagao metalingiiistica num trecho de a le de Carlos Drummond de Andrade (1984:53), em que personagens (0 namorado) quase se frustra em ndo ser com- ao elogiar a namorada com a metdfora ‘boca de luar’: plo. hosta tender 0 se uma das preendido, “— Voce tem boca de luar, disse 0 rapaz para a namorada, ea namorada riu, perguntou ao rapaz que espécie de boca é essa, 0 rapaz respondeu que é uma boca toda enluarada, de dentes muito alvos e Ieitosos, entende? Ela nao entendeu bem e tornou a perguntar, desta vez que lua correspondia a sua boca, se era crescente, minguante, cheia ou nova. Aoque o rapaz disse que minguante nao podia ser, nem cres- cente, nem nova, s6 podia ser lua cheia, uai. Ai a moga disse que mi- neiro tem cada uma, onde é que se viu boca de lua cheia, até parece boca cheia de lua, uma bobice. O rapaz nado gostou de ser chamada de bobice a sua invengdo, exclamou meio espinhado que boca de luar, mesmo sendo de luar de lua cheia, é completamente diferente — in- sistiu: com-ple-ta-men-te — de boca cheia de lua”. Uma espécie de metafora de amplo rendimento estilistico, por desencadear associagdes de ordem imaginativo-sensorial, ¢ a sineste- sia. Consiste no amalgama de sensacées distintas, as vezes obtido pe- la simples deslocacao de um termo que normalmente se relacionaria a outro. E normal, por exemplo, a construgdo ‘‘cheiro de café quen- te’’. Mas, se deslocarmos 0 adjetivo, teremos 0 cruzamento da sensa- cdo olfativa com a térmica: ‘“‘cheiro quente do café’’. ae A sinestesia é um processo freqiiente nos escritores das mais va- riadas tendéncias estéticas. Encontra-se em Graciliano Ramos (1964:10): “‘o vGo negro dos urubus”’; em José Américo de Almeida (1974:72): “um berro doloroso”’; em Clarice Lispector (1980:12-13 € 1977:16): “0 grande choro seco”’, ‘‘o fino frio fino’, ‘‘o cheiro das sombras’’... Contudo, segundo a opinido de Anténio de Padua (s/d:25), 840 Os parnasianos e simbolistas os que mais empregaram 0 sinestesismo re de exemplos expressivos que realizou entre di- leiros, destacamos como amostra: 7 : Essa dimensiio psicoldgica define o v: Quanto mais afastados forem Os objet va da metafora. Tal éa ‘ida Breton haver estabeleci de comparar dois objet forma subit: alor e o grau de originalidade de uma figura. s da associacdio, maior serd a riqueza conotart tegra defendida pelos escritores surrealistas, a pomto se a ido que a mais alta tarefa que a poesia pode Cae = gba 0s to distantes um do outro quanto possivel ¢ reunilar ee rpreendente (Ullmann, 1964:445) O DESVIO ESTILISTICO 43 a) Audigado = Visao “musica vermeiha” (Luis Delfino) ‘sons soturnos e cinzentos” (Gilka Machado) “brancas sonoridades de cascatas” (Cruz e Sousa) b) Olfato = Visao ‘verde aroma da erva” (Luis Delfino) “luz perfumada das manhas” (idem) c) Audigao = Olfato “cangées cheirosas” (Alvares de Azevedo) “alarido de rosais” (Luis Delfino) d) Audigéo = Tato “fresca musica da brisa” (Luis Delfino) “murmurios macios” (Gilka Machado) €) Olfato = Tato “cheiro macio” (Gilka Machado) “calidos aromas” (Cruz e Sousa) f) Visdo = Tato “Juz macia, verde e macilenta” (Luis Delfino) A imaginacgao poética nao tem limites. Insatisfeitos com 0 cru- zamento de duas ordens sensoriais, os escritores tentam exprimir, num s6 enunciado, um complexo imaginativo de que participam varios sen- tidos. E 0 que se nota nesta estrofe de Cruz e Sousa: Mais claro e fino do que as finas pratas. 0 som da tua voz deliciava... Na doléncia velada das sonatas como um perfume a tudo perfumava. Metalogismos As figuras de pensamento (hipérbole, antitese, eufemismo, iro- nia, paradoxo etc.) rompem com os aspectos ldégicos do discurso. Na linguagem denotativa, espera-se que haja coeréncia, plena concate- nacdo entre as idéias. O desvio dessa coeréncia ldgica constitui 0 do- minio dos metalogismos. E verdade, porém, que o proprio contexto literdrio cria uma or- dem nova em que tais desvios se justificam, sem que introduzam uma nota de artificialismo ou de inverossimilhanca. Pensemos nas hipér- boles comuns nos textos surrealistas. Ai, a deformacao do real ins- taura uma zona de associacGes imprevisiveis, onde o que atenta contra a légica nao parece falso mas, ao contrario, é imposto estilisticamente. 4A ESTILISTICA Ha, porém, o problema de demarcar as fronteiras entre os me. talogismos e Os metassememas. Vejamos 0 seguinte exemplo; «ele ndo largava o fogo de ge/o daquela idéia” (Rosa, 1968:33), A expressio fogo de gelo é de andlise complexa, uma vez que os termos se antitetizam num sentido mas, num outro plano, assu- mem valor metaférico. Assim, como sera possivel dizer que se trata de um metalogismo ou de um metassemema? A resposta nao é facil. Dubois (1974:176) da como pista 0 fato de que todo metalogismo estabelece uma referéncia necessdria a um dado extralingiiistico. Ou seja, é preciso conhecer o referente para contradizer a descrigao fiel que dele se poderia dar. Por isso, ainda segundo Dubois (1974:178), as nogGes de sentido literal, uso e desvio nao bastam para explicar o metalogismo. Clichés 0 que singulariza um desvio estilistico, insistimos ainda uma vez, é a expressividade. E esse objetivo que leva 0 escritor a experimentar toda sorte de procedimentos que instaurem uma nova forma de dizer o que, em esséncia, ja foi dito e repetido Por outros escritores. O que tipifica um texto literdrio nao é 0 con- tetido, mas a forma. Um mesmo assunto pode servir para uma repor- tagem jornalistica, um texto puramente informativo, ou para um grande romance. Tudo vai depender dos procedimentos formais uti- lizados. Por essa razao, desde os formalistas russos, passou-se a con- siderar tautologicamente que a especificidade do texto literario reside €m sua literariedade. Todavia, se o fator expressivo se relaciona diretamente com 0 Sona atime eo congue dee mse Aneel a oncn de uso restrito. Desde que um desvio pass © com freqiiéncia, fatalmente se tornaré um fato normal, aciiendio-se Sua expressividade, mean gt (0 3 ion a cair em desuso ou se ae fon oc ae onus ansforma em linguagem denotativa. _ amento da expressividade se dA Iquer espécie de metabole, Muitas Tea el ie se da em qualquer e a Je perderam todo 0 Poder eee pee es escritos por principiantes, $4 otacdo € quase s6 aparecem em te : - 980 descricées eivadas de perifrases 4¢ © DESVIO ESTILISTICO__45 gastadas: astro-rei (sol), rainha da noite (lua), véu da noite (céu) etc. Em outras palavras, cheias de clichés ou chavdes. Os manuais de estilo s4o, em geral, implacdveis contra 0 em- prego dos clichés. Rodrigues Lapa (1970:72) os define como “‘muleta ridicula de preguigosos, duma trivialidade insuportavel”’. Um escri- tor verdadeiramente inventivo procura evita-los de todas as manei- ras, renovando sem cessar a sua forma de expressa HA situacdes em que os chav6es parecem inevitaveis, como nos textos jornalisticos, elaborados sem tempo de uma revisdo ou limpe- za estilistica. As noticias sobre suicidio invariavelmente concluem que “ninguém sabe os motivos do tresloucado gesto’’. Nas colunas so- ciais, os registros de aniversdrio abusam das expressGes ‘‘apagar mais uma velinha’”’, ‘trocar de idade’’, “fazer uma primavera’’, ‘‘colher mais uma rosa do jardim de sua vida’”’ etc. Nas paginas esportivas, entdo, quase tudo é cliché! Mas, se nesse caso a pressa serve de justificativa, cumpre lem- brar que, mesmo na linguagem falada, as expressGes gastas costumam ser desprezadas quando perdem sua expressividade. John Lyons (1979:92) explica por esse Angulo a extrema rapidez com que sao subs- tituidos os termos da giria. Uma ressalva deve ser feita. Embora quase todos os estilisticis- tas condenem o chavo, Michael Riffaterre (1973:155) adverte que ndo se deve confundir desgaste com banalidade. Por esse raciocinio, o cliché nem sempre perde sua eficacia, desde que funcione como agen- te de expressividade, em virtude de sua propria banalidade. Riffater- re (1973:171) entende que o cliché nao precisa ser renovado para desempenhar um papel ativo de contraste criador de expressividade, ja que é a propria percepcao de sua banalidade que lhe permite isso. Cremos, no entanto, que em principio o cliché deve ser evitado. Nao s6 depée contra a criatividade do escritor, como deixa de vitali- zar a linguagem literdria. Seu emprego s6 € justificdvel em funcdo do contexto que, em certos casos, lhe devolve as conotagdes perdidas. Mas isso requer muita habilidade do escritor. Eo que se nota na seguinte passagem de Lygia Fagundes Telles (1984:7), em que um simile alencarino é reaproveitado com a substi- tuicao da palavra cabelos por peruca: “4 dona era uma velha balofa, de peruca mais negra que a asa da grauna.” Ainda a titulo de ilustragao, transcrevemos 0 poema “Satéli- te”, de Manuel Bandeira (1966:232). Aqui hé uma série de chavoes 4A ESTILISTICA, a i ee romanticos (céu phimbeo, golfao de cismas, astro dos loucos e dos enamorados etc.), porém existe uma intengao estilistica evidente, qual seja a de contrastar duas percepg6es: a que mitificava a lua, envolvendo-a numa aura de fantasia, e a que considera a lua em rea- lidade, como coisa em si. Quando o homem pisou pela primeira vez o solo lunar, o poder de simbolizacao ou de inspiracao da lua parecia a muitos estar sendo destruido. Mas o poeta, ao confrontar as duas visdes (a da fantasia e a da realidade) conclui que gosta da lua tal como ¢ ela em sua esséncia, desmetaforizada e desmitificada. Nesse contexto, os clichés adquirem plena funcionalidade. Confiramos: Fim de tarde. No céu plumbeo A Lua baga Paira Muito cosmograficamente Satélite Desmetaforizada, Desmitificada, Despojada do velho segredo de melancolia, Nao é agora 0 golfao de cismas, O astro dos loucos e dos enamorados, Mas tao-somente Satélite. Ah Lua deste fim de tarde, Demissionaria de atribuigées romanticas, Sem show para as disponibilidades sentimentais! Fatigado de mais-valia, Gosto de ti assim: Coisa em si, — Satélite. Mas foi sem diivida Machado de Assis 0 escritor brasileiro ae mais utilizou o cliché com efeito estilistico. Nesse sentido, Maria stU- zaré Lins Soares (1968), ao realizar um admirdvel e penetrante te do da obra machadiana, teve a percepgao de que 0 Set chavGes, quase uma peculiaridade do estilo do autor, tinha um ae to expressivo que agora, depois de exaustivamente analisado, P a todos bem evidenciado.

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