GILFRANCISCO é jornalista, pesquisador e escritor, Doutor Honoris Causa – UFS. Membro do Grupo Plena/CNPq/UFS e do CPCIR /CNPq/UFS. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com

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Em 1821 D. João VI abandona seu refúgio no Brasil (onde se escondia dos franceses desde 1808) e volta a Portugal. Com sua volta, os portugueses reorganizaram as formas de explorar a colônia. A situação brasileira é instável; há um desejo de liberdade no ar. Há experiências recentes de rebeliões sangrentamente sufocadas: A Conjuração dos Alfaiates (1798), várias revoltas Malês, Revolução Pernambucana (1817).

O governo central “brasileiro” foi enfraquecido. Em 24 de abril de 1821 um decreto coloca todas as províncias sob domínio direto de Lisboa. Assim D. Pedro I não tem poder de fato. Autoridades são transferidas para Lisboa. Acompanham esses atos políticos algumas medidas econômicas, como o aumento dos impostos sobre as importações. Dessa maneira, a própria burguesia lusitana, que progredira no Brasil com a chegada da Corte, via-se agora prejudicada.

A burguesia mercantil queria liberdade comercial, era monárquica e aliada ao rei, não lhe interessava a companhia dos brasileiros lutando pela independência, porque eles eram republicanos e partidários de mudanças estruturais no sistema colonial, que obviamente seria liquidado se o Brasil se emancipasse.

Momentos Decisivos

O processo de Independência e de separação de Portugal foi tumultuado em várias províncias brasileiras; Em 1820 (agosto/dezembro) ocorre a Revolução em Portugal e organização do Governo Provisório que convocou eleição para a formação das Cortes constituintes da nação portuguesa. 1821 (janeiro/fevereiro) movimentos revolucionários no Pará e na Bahia e inícios das guerras civis nessas províncias. Manifestações de rua com o apoio de tropas armadas, no Rio de Janeiro e juramento antecipado da futura Constituição portuguesa por parte de D. João VI e D. Pedro e demais autoridades.

Em outubro/dezembro chega os decretos das Cortes de Lisboa, com o apoio de parte dos deputados das províncias do Brasil, modificando a organização das províncias e convocando o regente para voltar à Europa. 1822 (janeiro) manifestações de Rua no Rio, solicitando a permanência de D. Pedro no Brasil, resultando o “Fico”, ocorrido a 9 do mês. Em abril viagem de D. Pedro a Minas Gerais. Em razão de confrontos armados entre lideranças políticas de Vila Rica e São João Del Rei. Convocação de Assembléia dos representantes das províncias em junho, com caráter legislativo e constituinte.

Entre agosto/setembro, viagem de D. Pedro a São Paulo, na tentativa de conciliar divergência políticas locais. Oficializou-se a separação de Portugal. Entre outubro/dezembro ocorre a Aclamação de D. Pedro I como Imperador e coroamento solene do monarca. Em novembro de 1823 o fechamento da Assembléia Constituinte por tropas leais ao imperador. Em março de 1824, outorga da Constituição do Império, elaborada por seleto grupo de políticos da Corte. Organização da Confederação do Equador, envolvendo as províncias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte dispostas a se separar do governo imperial.

Economia Baiana

Baseado em estimativa, 90 por centro da população baiana vivia em condição de pobreza. Nos anos de 1820, a economia entrou em crise aguda, pois, dependendo em grande parte das exportações de açúcar, passara a enfrentar a concorrência do açúcar cubano e do açúcar de beterraba produzido na Europa. As dificuldades se agravavam em razão das guerras da Independência, entre 1822/1823, que na Bahia fora muito diferente das de outras províncias. Na Bahia houve resistência das tropas portuguesas, que ocuparam Salvador, ocasionando uma luta demorada e árdua.

Ao final dos combates, com a vitória das tropas da Independência, muitos negociantes portugueses fugiram, eles que era elemento essencial na economia baiana O quadro se agravou mais com a grande seca de 1824/1825. Os gêneros de primeira necessidade ficaram caríssimos, muita gente teve de fugir do interior para a capital ou para as terras férteis do Recôncavo. Em 1833 o presidente da província não tem alternativa se não pedir ao governo Imperial do Rio de Janeiro o envio de alimentos para salvar a população.

A situação se agravava dia a dia, com a descoberta de uma grande quantidade de moedas falsas circulante no mercado baiano, pois durante as guerras de Independência o governo provisório introduziu moedas de cobre de má qualidade e fácil imitação, conhecidas por xenxém, cujo valor era variável (10, 20 ou 40 réis). O excesso de dinheiro (falso e verdadeiro) ocasionava aumentos de preços incessantes, que o povo não podia acompanhar. Agravava-se também o profundo sentimento de ódio aos portugueses, vistos como especuladores, provocando ira aos pobres em revolta chamada “mata-marotos”, ondas de saques aos armazéns de negociantes portugueses, violência física contra eles e o incêndio de suas casas. A revolta foi sendo extinta à medida que a identificação entre comerciantes e lusitanos se tornou indevida. No exército imperial, o ódio se reproduzia: soldados desobedeciam a seus superiores portugueses.

Portando, Salvador entre as décadas 1820/1830 era um grande palco de agitação movida pelas diferenciações sociais. Conflitos de toda natureza, desde um simples distúrbio de rua e saques, estimulados pela situação de penúria e fome, a quarteladas, revoltas escravas e rebeliões federalistas.

Bahia (1822 –1823)

A Bahia fervilhava de conflitos e contradições. Logo que tiveram notícias da Revolução do Porto, os baianos apaixonaram-se por seus ideais liberais e aderiram a seu projeto constitucionalista. Mas logo perceberam que os deputados brasileiros (entre eles o jornalista Cipriano Barata) não seriam ouvidos em Lisboa, passando então a defender a completa independência do Brasil em relação a Portugal. Mas a Bahia era também um importante centro de presença e influência lusitana. Havia em Salvador números comerciantes e militares portugueses, em sua maioria comprometida com o governo de Lisboa. Nessa cidade tão claramente dividida, qualquer pretexto servia para provocar brigas e tumultos – que podia ser o começo de uma longa e penosa guerra.

As lutas pela independência na Bahia foram marcantes. Mesmo antes da proclamação de D. Pedro, os baianos já lutavam contra os portugueses. Em 19 de fevereiro de 1822, soldados brasileiros e portugueses combatiam nas Ruas e vielas de Salvador e devido à força repressiva os baianos foram rendidos. Os portugueses liderados por Madeira de Melo procurando alguns soldados brasileiros que por acaso houvesse se refugiado, invadiam o Convento da Lapa e assassinou a golpes de baioneta a madre superiora, sóror Joana Angélica, que tentava impedir a entrada dos soldados portugueses.

Com a morte da madre os baianos se revoltaram ainda mais. As tropas brasileiras fugiram para o Recôncavo Baiano (Santa Amaro, Cachoeira e Iguape). Atacados pelos portugueses reagiram e aclamaram D. Pedro regente perpétuo do Brasil. Nas batalhas que ocorrem no interior baiano, uma mulher se destacou pela coragem e ousadia, Maria Quitéria de Jesus Medeiros, moradora de Feira de Santana. Tendo participado de quase todas as batalhas pela reconquista de Salvador e, por sua habilidade e dedicação, obteve o posto de cadete. Após o fim da luta, Quitéria teve a merecida homenagem e recebeu do Imperador a comenda da Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul.

Em dezembro de 1822, as tropas brasileiras apertaram o cerco a Salvador, com a famosa brigada de Itapuã chegando a se aproximar perigosamente das linhas inimigas, embora encontrando séria resistência. A situação dos defensores de Salvador tornava-se, no entanto cada vez mais desesperadora. Em meados de 1823, já subia a onze mil combatentes a quantidade de tropas cercando a capital baiana, contra pouco mais de quatro mil soldados lusos que a defendiam. Finalmente, em 2 de julho, Inácio Luis Madeira de Melo – governador das armas da Província da Bahia e seus homens deixavam Salvador, pressionados também pela esquadra inglesa comandada pelo almirante Cochrane, que veio oficialmente em auxílio a Labatut.

A Constituição de 1824

Outorgada por Pedro I depois da dissolução da assembleia Constituinte de 1823, obedecia aos princípios do liberalismo posterior à Revolução Francesa, mas, ao mesmo tempo, deixava espaço para o autoritarismo do príncipe. O poder Moderador, atribuído ao imperador, era incompatível com o sistema parlamentar, o qual, no entanto, foi instalado no segundo Reinado, graças à aceitação de Pedro II. A única emenda sofrida pela Constituição foi o Ato Adicional de 1834, de tendência federalista, mais tarde eliminado pela lei de interpretação de 1840.

O repúdio à Carta vem, principalmente, dos grupos que esperavam maior autonomia para a 19 províncias que formam agora o Brasil. Esse princípio perdeu qualquer chance de se tornar realidade já em novembro do ano passado quando o imperador dissolveu a Assembléia Constituinte. Ali estava a deixa de que uma centralização do poder estava a caminho.

Embora D. Pedro I tenha declarado que o conteúdo seria duas vezes mais liberal do que o proposto pela constituinte, o que se viu foi o resultado do trabalho dos integrantes de um Conselho de Estado totalmente nomeado por ele. O que mais tem incomodado principalmente os proprietários rurais de províncias como Bahia e Pernambuco, é o sentimento de que está sendo deixada de lado na, cada vez maior centralização do poder no Rio e em São Paulo. Não custa lembrar que o Brasil ainda está começando seu caminho como uma nação e que ainda são muito fortes as identidades regionais principalmente no Nordeste. Há, por exemplo, aqueles que se sentem bem mais baianos do que propriamente brasileiros.

Dois de Julho

O desfile do carro dos caboclos constitui o núcleo central do cortejo e sintetizam, alegoricamente, a complexidade do civismo que o Dois de Julho encarna – Fotos: Lucas Moura / Secom PMS

Essa epopéia tornou-se a maior data baiana, tem um significado muito mais amplo que uma data cívica, constituindo-se em objeto de estudo privilegiado na historiografia baiana, pois a Bahia “se sacrificou pelo Brasil”, no dizer de Braz do Amaral.

Em comemoração a vitória aos brasileiros na guerra pela separação entre colônia e metrópole, surgiu em Salvador o festejo ao Dois de Julho. Essa comemoração da Independência produziu uma memória urbana que vem a ser um conjunto de manifestações de uma coletividade. Um rito que anualmente repete o trajeto percorrido pelos soldados e moradores, do bairro da Lapinha ao terreiro de Jesus.

Atualmente, nas primeiras horas do dia 2, estudantes, políticos, militares, intelectuais, baianas, jornalistas, sambista, vendedores de bandeirinhas, bebidas e quitutes, dentre outras personagens, preparam-se para a festa. O desfile do carro dos caboclos constitui o núcleo central do cortejo e sintetizam, alegoricamente, a complexidade do civismo que o Dois de Julho encarna.

O cortejo era e continua ser um espetáculo onde os baianos representam a si mesmo no espaço público em sua organização social, em suas convicções políticas, expectativas e lembranças de um passado histórico.

Hino ao Senhor do Bonfim

Arthur de Salles

Glória a ti, neste dia de glória,

Glória a ti, redentor que há cem anos

Nossos pais conduziste à vitória

Pelos mares e campos baianos

Dessa sagrada colina,

Mansão da misericórdia,

Dá-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia

Glória a ti, nessa altura sagrada,

És o eterno farol, és o guia,

És Senhor sentinela avançada,

És a guarda imortal da Bahia.

Dessa sagrada colina,

Mansão da misericórdia,

Dá-nos a graça divina

Dá justiça e da concórdia.

Aos teus pés que nos deste o direito.

Aos teus pés que nos deste a verdade,

Canta e exulta num férvido preito

A alma em festa da tua cidade.

Dessa sagrada colina, Mansão da misericórdia.

Dá-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia.

À alma heróica e viril do teu povo,

Nas procelas sombrias da dor,

Como a pomba que voa de novo,

Sempre abriste o teu seio de amor.

Dessa sagrada colina,

Mansão da misericórdia,

Dá-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia.

Esse poema de Arthur de Salles “Hino ao Senhor do Bonfim”, escrito em 5 de maio de 1923 e publicado no Rio de Janeiro, na revista A Ordem, dirigida pelo poeta sergipano Jackson de Figueiredo, edição de outubro/novembro, deste ano, a pedido da Comissão Oficial do Centenário da Independência da Bahia, evoca um fato consignado no poema de Ladislau Santos Titara, Paraguassu. Havendo os portugueses, durante a campanha, retirado de sua igreja a imagem do Senhor do Bonfim, julgaram os baianos que a vitória ficaria incompleta se a imagem não fosse restituída ao seu templo. Por esse motivo, realizou-se, um cortejo para levá-la de volta, participando da romaria o povo, as tropas vencedoras e os membros do governo.

O Hino tornaria nacionalmente conhecido, quando musicado pelo maestro João Antonio Wanderley e incluído na faixa 6, lado 2, do LP Tropicália ou Panis et Circencis, Philips, 1968, (segunda tiragem pela Fontana, Série Econômica, 1979) cantada por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Os Mutantes (Rita Lee, Arnaldo e Sérgio), com arranjos e regência de Rogério Duprat. Entretanto, por motivos desconhecidos a autoria do poema foi omitida, aparecendo apenas o nome de Wanderley. Em 1993, a Philips relançaria o antigo vinil Tropicália, em versão cd e mais uma vez a autoria do “Hino ao Senhor do Bonfim” seria omitido.

E como não bastasse, quatro anos depois, foi lançado pelo selo Natasha, para as comemorações dos 30 anos do movimento Tropicalista o cd, em homenagem ao carnaval da Bahia, aonde vamos encontrar, na faixa 13, o Hino ao Senhor do Bonfim, na interpretação dos cantores Virginia Rodrigues e Lazzo, e mais uma vez o nome de Arthur de Salles deixa de ser registrado. Devido à desatenção desses produtores, esses equívocos foram reproduzidos em mais de duas dezenas nos livros, que trataram sobre o movimento tropicalista. Numa dessas publicações (Tropicália: Alegoria, Alegria, de Celso F. Favaretto, 1979), o autor atribui o “Hino ao Senhor do Bonfim”, ao poeta baiano Péthion de Villar (Egas Moniz Barreto de Aragão, 1870-1924).

Bibliografia

AMARAL, Braz Hermenegildo. História da Independência. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1923.

CALMON, Pedro. História da Bahia (das origens à atualidade). Rio: Livraria Leite Ribeiro, 1927.

GILFRANCISCO. O Poeta Arthur de Salles em Sergipe. Aracaju: Polikromia, 2006.

MATTOSO, Kátia. A Bahia no século XIX. Uma Província no Império. Rio: Nova Fronteira, 1992.

SILVA, Arlenice almeida. As Guerras da Independência. São Paulo: Editora Ática, 1999.

TAVARES, Luis Henrique Dias. A Independência do Brasil na Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

_________. História da Bahia. São Paulo: Editora Ática, 1979.