Artigo

Jum Nakao e a ‘Costura do Invisível’

Tudo aconteceu em junho de 2004. À época, eu ainda era um acadêmico prestes a concluir o curso de Comunicação Social e, já bastante voltado a pensar e discutir acerca da moda, tive a honra de presenciar na plateia, como convidado, um dos momentos mais incríveis e impactantes da minha vida: a apresentação da coleção “A costura do invisível” que Jum Nakao levou à São Paulo Fashion Week daquele ano.

Nunca me identificando com o perfil do fashion victim e nem sendo um consumidor voraz do mercado de moda e de suas tendências, eu já conseguia vê-la (a moda) como uma forma incontestável de expressão não verbal e que, ao longo dos anos, sempre foi capaz de demonstrar nossos gostos, estilos de vida, status e tantas outras coisas. Assim, foi diante daquele desfile que eu creio ter surgido de maneira mais forte para mim uma questão que já martelava em minha mente, rendendo reflexões e, até mesmo, alguns trabalhos acadêmicos que viriam a ser mais desenvolvidos adiante… Refiro-me aos questionamentos acerca do real valor que damos às roupas e se a concepção das mesmas podia ou não ser considerada uma forma de arte.

Por incrível que pareça já se passaram 17 anos desde a apresentação de “A costura do invisível” e a mesma continua atualíssima, sobretudo nestes tempos de pandemia do novo coronavírus, a qual, entre outras coisas, nos levou até mesmo a questionar o nosso consumismo, o valor que damos à vida e o quanto a nossa existência é frágil e fugaz. É como se tudo aquilo que nos rodeia, inclusive as pessoas, tivesse um prazo de validade e, de uma hora para outra, deixasse de existir.

Bom, todas essas reflexões feitas até aqui foram para tentar “linkar” com aquilo que o próprio Jum buscou transmitir com aquele icônico trabalho que levou mais de 182 dias para ficar pronto e apenas alguns minutos para ser literalmente destruído na própria passarela. Uma forma de mostrar o quanto a moda (em uma metáfora da própria existência humana) é efêmera.

O DESFILE

Pode-se dizer que “A costura do invisível” foi um desfile de moda, mas também não. A coleção era formada por roupas confeccionadas, artesanalmente, com o uso de meia tonelada de papel vegetal como matéria-prima, tudo milimetricamente recortado para simular rendas e brocados. Os trajes foram inspirados na moda do século XIX e concebidos com riqueza de detalhes e encantamento. Com uma ambientação sonora criada a partir de um remix de “Bachianas Brasileiras nº 5”, de Villa-Lobos, a atmosfera do desfile parecia querer transportar o público para uma realidade distante, quase onírica.

As modelos se apresentaram todas iguais: usando uma malha preta cobrindo os corpos e, na cabeça, uma peruca que lembrava os bonecos Playmobil. Um contraste instigante com a delicadeza das roupas que trajavam.

Ao final, quando todas entram juntas na passarela, elas se posicionaram diante do público e, em uma mudança brusca de iluminação e som, começaram a rasgar as roupas/obras de arte que vestiam. O choque causado por aquele gesto que denotava uma mescla de sentimentos, entre eles raiva, tristeza e desolação, levou as pessoas a uma atitude de incredulidade e, algumas, até mesmo às lágrimas, incluindo a mim. Outras, chegaram a adentrar à passarela para juntar pedaços daquela obra e guardá-las consigo, como que para eternizar algo tão lindo e mágico que deixara de existir abruptamente diante de seus olhos.

Magistralmente, aquela foi a maneira encontrada por Jum Nakao para protestar contra os exageros do consumismo desenfreado. Perguntado sobre a apresentação, o designer falou que não possuía apego por aquele trabalho. Seu objetivo era chocar e levar o público a um questionamento acerca da efemeridade das coisas, dos desafios de se ver e fazer moda, ontem e hoje.

LEGADOS

Deixando memórias que jamais serão esquecidas, creio eu que até mesmo por aqueles que não o assistiram presencialmente, o desfile/performance/manifesto de Jum Nakao recebeu o título de desfile da década do SPFW e foi considerado, também, um dos maiores do século pelo Museu de Moda da França.

De tão icônico, “A costura do invisível” se tornou um livro e DVD lançados em 2005 nos quais são mostrados o processo de trabalho do estilista e diretor de criação, desde as primeiras ideias acerca da coleção, seus desdobramentos, bastidores e depoimentos sobre o desfile que até hoje é discutido nas salas de aula do país inteiro nos cursos de Moda, Filosofia e Artes Visuais, por exemplo.

O que aconteceu naquele dia no SPFW intriga até hoje e deixou para mim um imenso orgulho de termos no Brasil um criador com a genialidade de Jum Nakao, ao mesmo tempo que lamento o fato de serem tão raros na moda brasileira momentos como aquele que nos foi apresentado em 2004, com as inquietações despertadas e que ainda seguem reverberando nas mentes de quem se preocupa com as consequências do consumismo descontrolado para a vida em nosso planeta.

Para terminar, compartilho o trecho de uma entrevista sobre A Costura do Invisível dada por Jum Nakao à versão digital do jornal o Povo em julho de 2019: “Borda permanência na efemeridade ao ‘vestir’ sem existir: a coleção de papel foi inteira rasgada em seu lançamento sem uma roupa sequer posteriormente ter sido produzida, e perdura através dos tempos como referência de moda. Assim como estrelas que morrem, mas deixam rastros de luz pelo espaço, precisamos compreender que nossos atos são como efêmeras centelhas no infinito, brilham para sempre, têm permanência no tempo e espaço“. A íntegra da entrevista pode ser conferida aqui.

Fotos e vídeo: Reprodução

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