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Ano 15 - Número 01 (Jul - Dez 2023)
Dossiê: Mulheres de Teatro
Edson Santos Silva, Renata Soares Junqueira, Fernanda Verdasca Botton e Flavio Botton (org.)
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P:03

TODAS AS MUSAS

Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

On line (ISSN 2175-1277)

Impressa (ISSN 2179-1937)

Dossiê: Mulheres de Teatro

Edson Santos Silva, Renata Soares Junqueira,

Fernanda Verdasca Botton e Flavio Botton (org.)

Toda forma de arte é, em determinado momento, expressão de um homem e

de uma sociedade. Se as artes se confundem com a história e encadeiam-se

com as nossas vidas, são também irmãs e merecem um espaço que não as

discrimine.

A revista nasceu com a intenção de ser um ponto de encontro para todos

aqueles que queiram discutir as diferentes manifestações artísticas, seja a

Literatura, o Teatro, a Pintura, a Escultura, o Cinema e a Música, além das

relações que essas artes travam muitas vezes entre si e com a História. Todas

as Musas é uma publicação semestral.

VISITE:

Contatos podem ser feitos pelo e-mail:

[email protected]

As normas para submissão de artigos encontram-se no site.

ATENÇÃO: O preço de capa cobre apenas os custos de impressão, impostos

e manutenção do site. A venda não visa lucros.

A revisão dos artigos é de responsabilidade dos autores e autoras.

P:04

EDITORES:

Flavio Felicio Botton – Editora Todas as Musas

Fernanda Verdasca Botton – Faculdade de Tecnologia de Diadema

CONSELHO EDITORIAL:

Alberto Roiphe - Universidade Federal de Sergipe

Alfredo Oscar Salun - Universidade Nove de Julho

Ana Lúcia Montano Boessio - Universidade Federal do Pampa

António Manuel Ferreira - Universidade de Aveiro

Arthur Correia de Freitas - Universidade Estadual do Paraná

Carlos Francisco de Morais - Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Cláudia Falluh Balduino Ferreira - Universidade de Brasília

Claudio Umpierre Carlan - Universidade Federal de Alfenas

Demétrio Alvez Paz - Universidade Federal da Fronteira Sul

Enéias Farias Tavares - Universidade Federal de Santa Maria

Fabricio Possebon - Universidade Federal da Paraíba

Flavia Maria Ferraz Sampaio Corradin - Universidade de São Paulo

Francisco Maciel Silveira (em memória) - Universidade de São Paulo

Gisele Reinaldo da Silva - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Graça Graúna - Universidade de Pernambuco

Graça Maria Pereira Teixeira (tut.) - Universidade Aberta de Portugal

Gustavo Vargas Cohen - Universidade Federal de Roraima

Ivair Junior Reinaldim - Universidade Federal do Rio de Janeiro

José Augusto Cardoso Bernardes - Universidade de Coimbra

Lílian Lopondo (em memória) - Universidade Presbiteriana Mackenzie

Marcos Júlio - Faculdade de Tecnologia de São Caetano

Maria Adélia Menegazzo - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Maria Aparecida Ribeiro - Universidade de Coimbra

Maria Candida Ferreira de Almeida - Univesidad de Los Andes

Raquel de Sousa Ribeiro - Universidade de São Paulo

Renata Soares Junqueira – Univ. Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

Telma Aparecida Mafra - Faculdade de Tecnologia de Mauá

Wellington Furtado Ramos - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

P:05

TODAS AS MUSAS

P:07

Sumário

Editorial ..................................................................................................7

Apresentação

Edson Santos Silva e Renata Soares Junqueira ...............................9

Dossiê

Patrícia Galvão, mulher de teatro brasileira

Gilberto Figueiredo Martins............................................................ 13

Figurações do feminino em O limiar, de Susan Glaspell

Rosemary Elza Finatti .................................................................... 48

Efeitos de espectralidade em Fala baixo, senão eu grito: um estudo

da presença metafórica dos objetos

Daniela de Castro Lima .................................................................. 66

Caminho de volta: uma análise semiológica do espaço dramático

Mariana de Oliveira Arantes ...........................................................81

Atemporalidade, tropos e a didática pós-colonial em Des-Medéia

Margarida Gandara Rauen – Margie Rauen ................................. 99

A colagem a serviço do esclarecimento pessimista de Elfriede Jelinek:

o caso de Bambiland

Ruth Bohunovsky e Tassia Kleine .................................................111

P:08

Lourdes Ramalho e a utopia em Anjos de Caramelada

Leandro de Sousa Almeida e Valéria Andrade ............................129

“Não sou dramaturga”: atravessamentos teóricos em dizeres de

atrizes-autoras

Sonia Vido Pascolati .....................................................................148

Mère Prison – A prisão de consciências

Larissa de Cássia Antine Ribeiro...................................................162

Artigos

Carmilla e suas representações no cinema

Michel Goulart da Silva .................................................................180

Olavo Bilac revisitado: possibilidades de multifaces

Robson Teles Gomes......................................................................193

Um currículo de abordagem sociopolítica no ensino musical

Sonia Regina Albano de Lima ....................................................... 211

Resenha

Ana Plácido por Fabio Mario da Silva

Maria Cristina Pais Simon............................................................ 236

P:09

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

7

A Todas as Musas sempre procurou dar visibilidade aos estudos

dedicados à produção que, muitas vezes, tinha pouco espaço na Academia.

Na história desta revista, que já vai para 15 anos de publicações,

tivemos o Dossiê “Diversidade étnica, psicobiológica e de gênero na

literatura e nas artes” (Ano 05 - Número 02 - Jan - Jun 2014), o Dossiê “Produção Literária Feminina” (Ano 07 - Número 02 - Jan - Jun

2016) e o Dossiê: “Escritoras em Língua Portuguesa” (Ano 13 - Número 01 - Jul - Dez 2021). Além dos dossiês dedicados à literatura

indígena, à literatura africana de língua portuguesa e àquelas literaturas que se opunham ao autoritarismo de forma geral.

Felizmente, esse cenário tem se alterado positivamente nos últimos anos e a academia permite que uma nova luz seja lançada sobre

produções cada vez mais intrigantes, inclusivas e representativas.

Queremos agradecer a inestimável participação da Profa. Dra.

Renata Soares Junqueira e do Prof. Dr. Edson Santos Silva na elaboração de mais esse brilhante dossiê.

Desejamos a todas e todos uma boa leitura, lembrando que estamos abertos a sugestões, reclamações e debates pelo nosso endereço

eletrônico.

Os editores

P:11

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

9

Reúnem-se neste auspicioso número de Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte – artigos constituintes do dossiê “Mulheres de Teatro”, que nos proporciona reflexões variadas, de grande interesse, sobre a atuação de mulheres em

teatro nos últimos cem anos, quer como dramaturgas e atrizes, quer

como críticas de teatro, sobretudo no Brasil, mas também no exterior, compondo um quadro de produções bastante significativas desde

o modernismo, com destaque para figuras de proa como Patrícia

Galvão (1910-1962) – a Pagú – no Brasil e Susan Glaspell (1876-

1948) nos Estados Unidos, até obras contemporâneas, já pertinentes

ao século XXI, passando por dramaturgas de produção relevante no

Brasil ditatorial das décadas de 1960 e 1970, como foram a mineira

Consuelo de Castro (1946-2016) e a paulista Leilah Assumpção (n.

1943).

O volume inaugura-se com o artigo seminal de Gilberto Figueiredo Martins, que traz resultados de pesquisa minuciosa sobre a atuação de Pagú como crítica de teatro destemida e valorosa, detendo-se

nos seus escritos dos anos 60 – que antecederam, pois, a morte da

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Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

10

escritora, ocorrida em dezembro de 1962 – sobre o teatro de Gianfrancesco Guarnieri e Dias Gomes. Destacam-se, nesse artigo, o lato

conhecimento que Pagú tinha do teatro brasileiro moderno – e não

só do brasileiro –, a consistência dos seus argumentos críticos e a

coragem de defrontar-se com críticos renomados como Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi.

Outra figura proeminente do teatro modernista, agora nos Estados Unidos, é contemplada pelo artigo seguinte. Rosemary Finatti

perscruta figurações do feminino na peça O limiar (1921), de Susan

Glaspell, salientando, através de uma análise da simbologia das flores, a subversão feminista da protagonista e a crítica da dramaturga

aos papéis sociais impostos às mulheres pelo patriarcado.

Depois, avançando pelo século XX e adentrando já na dramaturgia brasileira composta em tempos de ditadura, temos o artigo de

Daniela de Castro Lima sobre a peça de Leilah Assumpção, Fala baixo, senão eu grito (1969). A autora também lança luz sobre objetos

cênicos que representam o espectro opressor da família patriarcal

burguesa como espelhamento do regime ditatorial instaurado no

Brasil em 1964 e recrudescente em 1969, após o Ato Institucional n. 5

decretado no governo de Arthur da Costa e Silva.

Segue o texto de Mariana de Oliveira Arantes sobre a peça Caminho de volta (1974), de Consuelo de Castro, também lançando luz

sobre a importância da construção do espaço dramático na efabulação do drama, que denuncia o embuste do “milagre econômico” no

Brasil do truculento general Ernesto Geisel. Salienta-se, na análise, o

papel de Marisa, a personagem feminina da peça.

Em seguida, Margarida Gandara Rauen articula as suas reflexões

sobre a peça Des-Medéia (1995), de Denise Stoklos, identificando

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

11

uma poética pós-colonial na recriação que a dramaturga, encenadora

e atriz paranaense faz da trágica protagonista.

Na sequência, Ruth Bohunovsky e Tassia Kleine iluminam a atuação da austríaca Elfriede Jelinek (n. 1946) – Prêmio Nobel de Literatura em 2004 – como dramaturga, desvendando na sua peça Bambiland (2003) procedimentos de colagem que servem ao seu propósito

(pessimista) de desmascarar a intervenção deformadora das mídias

na nossa percepção de acontecimentos políticos em escala global.

A peça Anjos de Caramelada (2008), da potiguar Lourdes Ramalho (1920-2019), é esquadrinhada em seguida pelas lentes de Leandro de Sousa Almeida e Valéria Andrade, que mostram como a dramaturga contrapõe à distopia da desigualdade de gêneros um devir

utópico em que as mulheres se elevam como figuras soberanas.

Vêm depois os resultados da atualíssima pesquisa de Sonia Pascolati, que se dedicou a entrevistar e ponderar os processos criativos de

atrizes-autoras da cidade de Londrina: Carol Ribeiro, Chris Vianna,

Laura Franchi, Maíra Kodama, Marina Stuchi, Naomi Freire, Rafaela

Martins e Raquel Sant’Anna são contempladas nesta oportunidade.

O dossiê encerra-se com o artigo em que Larissa Ribeiro estabelece relações entre monólogos, diálogos e a participação dos espectadores na peça Mère Prison (2021), da jovem guianense Emmelyne Octavie (n.1986).

Oxalá os textos aqui reunidos inspirem novas buscas, novas pesquisas que também contribuam para que se viabilize, como realidade

plena, o devir aparentemente utópico em que todas as mulheres sejam, de fato, postas em pé de igualdade com os homens.

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

13

Patrícia Galvão, a brazilian theater Woman

1

Resumo: Poeta, romancista, tradutora, militante política e profissional do

jornalismo cultural paulista, Patrícia Galvão (1910-1962), a Pagú, escreveu

para o jornal santista A Tribuna uma série de textos sobre teatro, comentando publicações e espetáculos, entrevistando autores e diretores, ratificando

ou contestando pareceres emitidos por críticos de renome. Este artigo detém-se nos seus escritos dos anos 60 acerca dos dramaturgos Gianfrancesco

Guarnieri e Dias Gomes, que à época traziam à cena alguns de seus maiores

sucessos de público e crítica.

Palavras-chave: Patrícia Galvão (Pagú). Teatro brasileiro. Crítica teatral.

Gianfrancesco Guarnieri. Alfredo Dias Gomes.

Abstract: A poet, a novelist, a translator, a political activist and a professional

of São Paulo cultural journalism, Patrícia Galvão (1910-1962), known by the

nickname Pagú, wrote for the Santos newspaper A Tribuna a series of texts

on theater, commenting on publications and theatrical shows, interviewing

authors and directors, ratifying or contesting opinions issued by renowned

critics. This article focuses on what she wrote, in the early 1960s, about the

playwrights Gianfrancesco Guarnieri and Dias Gomes, who at that time were

bringing some of their greatest public and critical successes to the stage.

Keywords: Patrícia Galvão (Pagú). Brazilian Theater. Theater Criticism. Gianfrancesco Guarnieri. Alfredo Dias Gomes.

1 Doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. Na UNICAMP, realizou

estágio de Pós-Doutoramento acerca das relações entre Teatro e Religião no

Brasil. Possui Especialização em História das Religiões e das Religiosidades

pela UEM-PR e em Direção e Atuação pela Escola Superior de Artes Célia

Helena - SP. Desde 2006, é professor de Teoria da Literatura na

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP, campus de

Assis).

P:16

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

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O PRATO DO DIA

A situação teatral em S. Paulo continua insolúvel. / O teatro anda à

míngua. / Por que será? / - Dizem: organizem bons conjuntos... / Será? E o Oduvaldo que fracassou com uma companhia de primeira ordem? / - Mas... o Sorriso de Mulher... veio no fim. / - E o Arco da Velha? / Ora, tudo velho e conhecido. O empresário Macedo trouxe para

aqui uma companhia, parece-me – dizia o interlocutor – não está à

altura da Capital Futurista do Brasil. Veio sem repertório, cenários

velhíssimos, os mesmos que o explorador – Noé – usou para forrar a

sua formosa Arca no dia dos anos de Deus. / - Afinal, veio sem estrela... (Irman Paula, in ANDRADE; GALVÃO, 2009).2

CANAL

Nada mais sou que um canal

Seria verde se fosse o caso

Mas estão mortas todas as esperanças

Sou um canal

Sabem vocês o que é ser um canal?

Apenas um canal?

Evidentemente um canal tem as suas

nervuras

As suas nebulosidades

As suas algas

Nereidasinhas verdes, às vezes amarelas

Mas por favor

Não pensem que estou pretendendo falar

Em bandeiras

Isso não

Gosto de bandeiras alastradas ao vento

Bandeiras de navio [...]

Há coisas no ar...

(Patrícia Galvão, A Tribuna, 27/11/1960)

Toda escolha é também um teatro. Mas há peças verdadeiras e falsas,

fracas e fortes, peças que carregam vida e sangue e peças que apenas

repetem.

(Na segunda parte da sua vida, Pagu se apaixonará perdidamente pelo teatro).

(ARMONY, 2022, p. 12)

2 Irman Paula é um dos pseudônimos de Pagú/Patrícia Galvão, na coluna

“Palco Tela e Picadeiro”, do jornal O Homem do Povo. Ano I, n. 2, de

28/03/1931, p. 4 (Cf. ANDRADE; GALVÃO, 2009).

P:17

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

15

Mesmo naquela época, tinha medo do teatro em que podia me fazer

personagem.

(GALVÃO, 2020, p. 130)

Que o século XXI redescobriu Patrícia Galvão (1910-1962) – para

muitos ainda hoje conhecida pelo apelido atribuído por Raul Bopp

(1898-1984) na fase em que ela atuou junto aos primeiros modernistas paulistas e o qual depois renegou, Pagú (assim, com o acento

agudo, tal como gostava de assinar) – o comprova a maior parte da

atualizada fortuna crítica elencada ao final deste artigo. Porém, a ligação afetiva e a participação ativa que estabeleceu, sobretudo na

última década de vida, com o panorama teatral brasileiro são curiosamente reavivadas sob forma de homenagem pelo número em certa

medida surpreendente de espetáculos teatrais recentes, no eixo RioSão Paulo, dedicados a revisitar sua obra e, principalmente, sua biografia, o que pode ser confirmado em uma consulta breve acerca do

tema na internet: Evocação de Patrícia Galvão, Pagu (dirigida por

Marina Nogaeva Tenório, com a Companhia da Memória e as atrizes

Walderez de Barros e Ondina Clais); Pagu – Até onde chega a sonda

(de Martha Nowill, dirigida por Elias Andreato); Pagú pra quê? (de

Gleice Uchoa, dirigida por Luã Batista); Pagu, Anjo Incorruptível

(musical de Lilian de Lima, com o núcleo Toada); Olhos moles (com

Annete Moreira, dirigida por F. E. Kokocht e Gilda Vandenbrande);

Pagu Que. (de Christiane Tricerri); Dos escombros de Pagu (dirigida

por Roberto Lage, com Renata Zhaneta); entre outras peças que alcançaram maior ou menor repercussão de público e crítica.

E Patrícia Galvão foi, definitivamente, uma mulher de teatro –

atualizando-se aqui o sentido que há muito tempo se dá à expressão

homem de teatro –, pois atuou em várias frentes, buscando formação

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Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

16

profissional na EAD/USP (escola dirigida por Alfredo Mesquita) nos

anos iniciais da década de 1950, traduzindo e dirigindo peças, organizando festivais de grupos amadores, pleiteando direitos trabalhistas para a categoria, envolvendo-se na campanha de construção de

casas de espetáculo mais modernas e tecnicamente apropriadas, escrevendo críticas e artigos temáticos em diversos jornais, atuando

como professora de Artes Cênicas, entrevistando colegas, alimentando debates...

Em texto anterior, escrito para um evento da área de História, registrei o meu espanto de saber que ela esteve em Assis – cidade de

porte médio no interior do estado de São Paulo –, em abril de 1960,

apresentando-se como diretora da encenação pioneira de um jovem

autor espanhol àquela altura pouco conhecido no Brasil e hoje com

lugar definitivo na historiografia do teatro moderno ocidental: tratava-se da peça vanguardista Fando y Lis, de Fernando Arrabal (nascido em 1932), texto que ela própria traduzira do francês e que em

1968 ganharia adaptação fílmica homônima, dirigida por Alejandro

Jodorowsky, com quem Arrabal e Roland Topor criaram, na década

de 1960, o “Movimento Pânico” (do Pós-Surrealismo).3 Junto com

ela, veio um jovem ator cujo talento promissor os jornais locais destacaram: era o santista Plínio Marcos (1935-1999), cujas primeiras

incursões dramatúrgicas Patrícia também reconhecera e ajudara a

divulgar.

Desta vez, embora o foco de atenção ainda se detenha nesse mesmo período final da vida de Patrícia Galvão, busco contudo destacar

um momento específico e uma outra faceta de seu envolvimento com

o teatro, a saber, sua prolífica atividade no jornalismo cultural da

3 Cf. MARTINS (2020).

P:19

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

17

cidade portuária de Santos-SP, como reconhecida profissional do

centenário periódico A Tribuna, para o qual escreveu, no calor da

hora, breves mas importantes textos acerca do teatro brasileiro que

se fazia nos anos imediatamente anteriores ao golpe civil-militar de

1964, com o qual se instalaria a ditadura no Planalto Central do país.4

O FIEL DA BALANÇA

Em 1961, o crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000) dedicou

um artigo à encenação da peça teatral A semente, de Gianfrancesco

Guarnieri (1934-2006), dirigida por Flávio Rangel (1934-1988), com

cenografia de Cyro Del Nero (1931-2010) e música de Caetano Zamma (1935-2010), produção cuja estreia se deu em 27 de abril daquele

ano.5 Para ele, o texto do jovem dramaturgo era, antes do mais, “um

4 “Em 1955, [Patrícia Galvão] dá início à série ‘Palcos e Atores’, no

suplemento literário d’A Tribuna (Santos), onde publica 159 colunas sobre

teatro, a grande paixão da fase santista, entre 3/7/55 a 2/10/55 e 7/01/57 a

1961.” (Cf. JACKSON, 2011, p. 35). E, ainda: “Pagu levou para a cidade os

espetáculos da E.A.D.; inaugurou e coordenou grupos amadores como o do

Teatro Universitário de Santos; colaborou nos festivais nacionais e regionais

de dramaturgia; participou de debates no Arena em São Paulo; foi presidente

da União do Teatro Amador de Santos; integrou, em maio de 1961, a

Comissão de Teatro do Conselho Nacional de Cultura.” (NEVES, 2005, p.

65). Ver também GUIMARÃES, s/d; FURLANI, 2014; e COSTA, 2012

(sobretudo o capítulo 6, “O teatro nos tempos de Patrícia”, bastante

informativo).

5 Afirma o cenógrafo acerca de suas opções estéticas para a peça: “Abraçar

tudo o que A semente é, e encontrar uma visão unitária para dá-la ao público

foi construir uma série de planos universais e cortar a profundidade do palco

em fatias, sem a mínima preocupação de marcar na perspectiva convenções

visuais de distância e intimidade. / Somente com a Luz (a oblíqua destas

verticais e horizontais!) adoçaríamos a forma. / O chão é simétrico, direita e

esquerda não significam nada. Convenções de lugar se sucedem num mesmo

espaço.” (In GUARNIERI, 1978a, p. 10). Quanto à música, Caetano Zamma

decidiu “fazer o que fosse o mais brasileiro possível”, optando por entremear

aos “apitos de fábrica” e “sons de uma cidade industrial”, anunciados na

P:20

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

18

retrato das perplexidades do pensamento brasileiro de esquerda no

momento atual”, pois, ao agravamento das condições econômicas e

sócio-políticas que deveriam ocasionar o desenvolvimento de “um

amplo movimento operário, ou talvez mesmo uma guinada para a

esquerda”, não correspondera ainda “o amadurecimento de nenhum

grande partido”, ocorrendo até, ao contrário, o “enfraquecimento do

único partido de esquerda que chegou a representar, em certo momento, uma verdadeira força política dentro do País: o Partido Comunista.” (PRADO, 1964, p. 198). E contra alguns de seus quadros e

processos é que Guarnieri dirigia sua crítica na peça, denunciando a

substituição da “ação revolucionária direta” por uma visada teórica,

abstrata e intelectualizante, o que teria levado a liderança do Partido

a “não enxergar a realidade brutal, sangrenta, imediata, a não ser

através de chavões que acabaram por perder qualquer eficácia ou

virulência”. Era graças a esse recuo, a tal “ausência de direção firme”

que, por exemplo, “expressões mágicas” como “mentalidade pequeno-burguesa” tinham se convertido, quando levadas à cena, em motivo de riso na plateia:

Começam a ser motivos de comédia, não de drama – e a reunião secreta do Partido que a peça nos mostra, apesar da exaltação das personagens e da gravidade dos temas abordados, não deixa de ter por

vezes tonalidades quase paródicas, da mesma forma por que perpassa

pelo texto, aqui e ali, em rapidíssimas anotações, o desprezo que os

funcionários do Partido sentem pelos que não vieram do proletariado,

e mais particularmente pelos intelectuais (“não será um vigarista?” –

pergunta o protagonista ao ser informado que terá de passar a noite,

rubrica, “uma das mais puras linhas de composição de nossa música: a

modinha [...], porém atualizada, ou seja, [que] conserva a linha melódica

tradicional, mas sua harmonia é moderna”, inspirada pela “grande evolução”

trazida há pouco pela Bossa Nova. A orquestração foi feita por Rogério

Duprat, contando com mais de 15 instrumentos musicais.

P:21

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

19

escondido da polícia, na casa de um deles). (PRADO, op. cit., p. 198-

199)

Deriva dessa perspectiva crítica de Guarnieri a substituição do

habitual “otimismo de superfície” – presente em muitas criações tidas por ideologicamente revolucionárias – pela ausência do happyend tão ao gosto de Moscou ou de Hollywood; no palco e nas páginas,

“a greve e as reivindicações operárias falham, os líderes são presos,

os membros do Partido já não sabem como distinguir entre os fiéis e

os traidores, impulsionados pela mania das denúncias e das condenações sumárias e sem provas.” (PRADO, op. cit., p. 199). Apesar

disso, aponta Décio, a perspectiva dialética da peça permite entrever

certo otimismo do autor, em relação ao “conteúdo humano do pensamento de esquerda”, a seu essencial “impulso humanitário” e à

“crença revolucionária” na “tradição de luta” e na “revolução social”:

em suma, há ainda “a confiança plena na capacidade do homem de

modificar ao infinito a sociedade em que vive”, graças à qual, “resta

sempre o germe, a semente a que o título alude com tanta esperança.”

Como em Eles não usam black-tie, a classe operária assume lugar

de protagonista e, com a responsabilidade exigida dessa posição, vêm

à luz várias de suas contradições, cisões e dilemas, mas também se

iluminam liames de solidariedade, identificação e pertença.6 Seu líder é Agileu Carraro, “o revolucionário puro, que talvez só exista na

6 Em texto de apresentação à edição em livro da peça, o diretor Flávio Rangel

afirma que, se Black-Tie “tratava de um conflito ético dentro de uma

elementação social”, e em Gimba “havia a tentativa da criação de um drama

popular e de um herói legendário”, esta terceira obra vinha “como que

completar um flanco da dramaturgia do autor”, que agora “parte

decisivamente para a peça política por excelência, colocando o teatro como

um instrumento de reivindicação social.” (In GUARNIERI, op. cit., p. 7).

P:22

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

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ficção”, “o visionário, a pessoa de uma só face e de uma só verdade,

que não cede e não confabula”:

De fato, é o homem que fere a consciência alheia, que não dá tréguas,

o juiz implacável das nossas omissões, o exemplo insuportável de retidão, o indivíduo perigoso para a nossa comodidade espiritual e material. [...]. É aquele que torna mesquinha qualquer preocupação com

a nossa pequena felicidade pessoal e doméstica [...]. / Chegamos assim ao âmago da peça, ao conflito central [...]: a terrível tentação da

felicidade, em face dos nossos compromissos sociais ou políticos; o

desejo de deixar-se levar, de não se incomodar, de pensar unicamente

em si e nos seus, de viver em paz como os outros vivem. [...]. / Daí a

amplitude, a falta de sectarismo, com que o texto fala a uma variedade de públicos. Não é preciso ser esquerdista, e muito menos comunista, para entender o que A semente nos diz em sua linguagem tão

clara e tão direta. (PRADO, op. cit., p. 200-201)

Para o crítico paulista, o trunfo de Guarnieri estaria em sua “feliz

despersonalização”, ao não optar pelo “caráter discursivo e teórico”

no desenvolvimento do enredo, não se sobrepondo como autor a seus

personagens, evitando lhes emprestar suas próprias ideias, a “penetração de sua inteligência e a clareza de seu estilo”. O dramaturgo

“prefere exprimir-se dramaticamente, fazendo-o sempre através da

ação”; assim, A semente “não é uma discussão de ideias mas a apresentação de certas situações da vida que põem diretamente em foco

determinados conceitos políticos e morais.” Com exceção de Agileu

(vivido por Leonardo Vilar), os demais personagens da peça debatem-se sem saber como atender ao “apelo revolucionário” que sentem chamar, claudicando em “esforços desordenados” para fugir à

luta ou compreendê-la melhor. E, mesmo aquele, “não paira incólume sobre os outros. [...] Se é um padrão revolucionário, é igualmente

um homem movido pelo seu temperamento, por suas paixões, e não

apenas por ideias políticas, como deseja”:

P:23

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

21

Recomenda aos outros “cabeça fria” mas é um exaltado, um emotivo

prestes a explodir, a deblaterar, a impor violentamente a sua personalidade. Quando, na última cena, tenta convencer os mendigos de que

não devem gozar o calor do sol – qualquer prazer dessa ordem é um

acumpliciamento com a injustiça social, uma infidelidade à ação revolucionária – o público não pode deixar de sorrir, de tal modo já

aprendeu a sua maneira de reagir, tão compulsiva e irracional quanto

qualquer outra. (PRADO, op. cit., p. 202)

Décio conclui seu parecer caracterizando como “excepcional” esta

peça que é para ele “certamente a melhor de Gianfrancesco Guarnieri, a mais madura como pensamento e a mais ousada como técnica”,7 qualidades ampliadas pela “direção imediata, direta, sem elaborações desnecessárias”, na “encenação feliz” levada a cabo por Rangel, que contou ainda com os “admiráveis desempenhos” de um elenco formado pelo próprio dramaturgo, por Cleyde Yáconis, Flavio Migliaccio, Stenio Garcia (também assistente de direção), Nathalia

Timberg e Juca de Oliveira,8 entre outros.

Em texto posterior, o professor e crítico volta a comentar a peça,

contextualizando-a como parte de um conjunto mais amplo de obras

7 Opinião de que comunga o diretor da encenação, o qual nega que a peça

fosse “meramente tendenciosa ou doutrinária”, e sim a “mais adulta” do

dramaturgo, já que “até mesmo as ideias e os personagens contrários ao

protagonista receberam os melhores argumentos.” (In GUARNIERI, op. cit.,

p. 7).

8 Lembra o ator Juca de Oliveira: “Em 61, quando terminei a EAD [Escola de

Artes Dramáticas-SP], estreei profissionalmente em A semente, escrita por

ele e dirigida pelo Flávio Rangel, outra grande paixão da minha vida

profissional. A peça foi um marco na história do teatro brasileiro. Além da

qualidade excepcional do texto. Guarnieri, pela primeira vez, colocava em

cena o clandestino partido comunista com suas lutas, reuniões, greves e

contradições. A estreia, como era de se esperar, provocou um terremoto no

meio político, com direito a proibições, liberações, promessas de prisão para

o autor e diretor, interdição do teatro, enfim, tudo que um egresso da EAD

poderia esperar na sua estreia profissional. Adorei!” (“A Bolívia é logo ali”,

depoimento. In ROVERI, 2004, p. 172).

P:24

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do dramaturgo, apontando semelhanças e diferenças com Eles não

usam black-tie, quanto ao tema, à escolha do recorte socioeconômico

para a caracterização dos personagens e o desenvolvimento do enredo:

Ambas ocorrem em meio operário, com exclusão de intelectuais, não

infrequentes em peças de esquerda. Ambas organizam o enredo em

torno de uma greve, cujo desenvolvimento acompanhamos. E ambas

contrapõem, a partir desse acontecimento central, a firmeza dos pais

e uma certa indecisão e fraqueza moral dos filhos.” (PRADO, 2001, p.

6)

Porém, diferentemente daquela incursão anterior, n’A semente

desaparece o encanto do morro carioca, “os fatos e as pessoas como

que endurecem”, “a triste realidade operária ocupa agora todo o espaço, expulsando qualquer vestígio de pitoresco” e pouco resta do

“triunfalismo um pouco róseo da primeira peça” (p. 7):

A comédia retrai-se, quase desaparece, em face de lances altamente

dramáticos, que não dispensam inclusive três mortes em cena. Até o

ímpeto da greve revela-se menor. As incertezas pessoais são muitas,

os chefes não se conduzem à altura dos acontecimentos. Para culminar, a reação é poderosa, empregando ora a violência, ora a esperteza.

[...] Não que se ponha em dúvida a vitória final da esquerda ou se julgue inútil o combate empreendido. Mesmo na derrota, fica um exemplo de luta, uma semente – a semente do título – lançada para o futuro. Mas a revolução surge com sua verdadeira fisionomia: ela é dura,

difícil, exigindo não apenas uma clara compreensão do desenrolar

histórico como um esforço moral sobre si mesmo, um sacrifício das

aspirações pessoais [...] que raros têm condições de fornecer. (PRADO, 2001, p. 7)

Parecer bem diverso manifesta Patrícia Galvão, em texto publicado no jornal A tribuna (Santos-SP), no dia 17 de maio de 1961, sob o

título “A semente, um travesti”. De chofre, desde as primeiras linhas,

P:25

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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a resenhista contesta a alegada ausência de “intenção panfletária” tal

como fora declarada pelo autor, apontando judiciosamente o que a

ela parecia ser “o travesti do PC, arrumado por Guarnieri”, com que o

autor “cobriu a nudez ideológica do Partido Comunista” (do qual ela

própria fora aguerrida militante em sua fase “modernista”, na virada

da década de 1920 para a de 1930, e com o qual rompera de forma

igualmente definitiva e litigiosa, desde 1940). Para ela, o “primarismo” do texto (“Guarnieri prima em ser primário”) só havia despertado interesse do público e da imprensa devido à “promoção” involuntária conferida pelo aparato da Censura, que interditara o espetáculo,

e pela “propaganda” reversa da Igreja Católica, que explicitamente

desautorizara seus fiéis a assistirem à encenação no TBC (o Teatro

Brasileiro de Comédia de São Paulo).9 Afinal se tratava apenas de

9 Declara o dramaturgo: “Eu conheci a censura promovida por alguns setores

da sociedade, que fizeram pressão para que a peça fosse proibida, já que ela

tratava de um tema que, para muita gente, era espinhoso: a organização do

Partido Comunista e como uma de suas células se articulava durante uma

greve operária. [...] A peça foi, realmente, proibida em todo o território

nacional, menos no TBC, onde ela estreou. Não poderíamos viajar com ela

para parte alguma e, mesmo aqui em São Paulo, ela não poderia ser

encenada em outro teatro. A proibição foi feita um ou dois dias antes da

estreia, talvez um dia só, na véspera. [...] eles exigiram que fossem cortadas

algumas cenas que eles consideravam ofensivas. E sabe qual cena era uma

das mais ofensivas para eles? Uma sequência em que um personagem coloca

a cabeça na barriga de uma mulher grávida para ouvir o nenê chutando. [...]

Era um absurdo, um pretexto, um pretexto político para impedir que a peça

fosse encenada, já que o texto falava da criação do Partido Comunista e das

lutas partidárias. [...] A semente foi uma peça que de certa forma antecipou

alguns movimentos sociais, como as greves. Isso se deu porque eu era um

observador, só isso. Mas não sou um observador neutro, que diz apenas: eu

vou observar e ponto. Não, eu tinha um conhecimento, aquilo era a minha

vida. Eu ia fuçar mesmo para ver como eram as coisas, como eram os

movimentos estudantis, dos trabalhadores, dos camponeses. [...] Eu escrevia

minhas peças a partir de todas essas observações, que não eram observações

plásticas, mas de alguém que punha mesmo a mão na massa. Mas eu

também não era um Maria-vai-com-as-outras, um bobalhão que dizia, oba,

chegamos ao socialismo! Quando todos diziam isso, eu falava calma, não é

P:26

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“mau teatro” e bastaria que nossa “obtusa crítica” soubesse distinguir

“o que há de objetivo, de essencial, de necessário na peça”, a fim de

informar melhor o público.

A metáfora do travestimento ganha potência desabonadora na retórica argumentativa de Patrícia, apontando para aquilo que no texto

de Guarnieri seria “superficial” e que “falsifica tudo”: ancorada em

“vagas literatices de mitos e outros lugares-comuns”, a peça de “enredo fragmentado” encontrava modos esteticamente questionáveis

de fazer “propaganda” e de trazer “à tona uma possibilidade de marxismo atuante através do teatro”. Movido por marcado viés ideológico, o entrecho de “situações falsas, dentro de circunstâncias obsoletas” apoiava-se em “imagens vazias”, a fim de alçar à categoria de

personagem principal e por isso representativo um “tipo falso”, o do

“idealista colocado nas alturas do novo Cristo feito na Polícia”, o “militante destituído de tudo o que de humano possa haver”, acima de

quem só estaria a “massa popular”, tida fantasiosamente por real

“dona do mundo”. Não sendo ele nem o Filho de Deus, tampouco

possuindo a envergadura de um herói trágico grego, o tratamento

dramático conferido a Agileu Carraro errava por investir em “evidente confusão de altitudes”. E, ainda, ao condenar indistintamente várias espécies de “Paternidade”, o dramaturgo punha de modo impróprio numa mesma berlinda Padre, Patrão, Polícia e Pai (suicida),10 a

fim de diferençar positivamente o perfil do protagonista, que, aliás,

nada disso, não chegamos a lugar algum. Por mais torcida que eu tivesse, eu

sabia o quanto era difícil a vitória de um movimento popular. E nunca

escondi isso de ninguém.” (ROVERI, op. cit., p. 111-116).

10 No palco, a cenografia reafirmava tal pressuposto do texto dramatúrgico,

como afirma o próprio Cyro Del Nero: “Somente uma Repetição: o que é

Paternidade (Padre, Gerente, Polícia e a morte do Pai) acontece num mesmo

espaço” (GUARNIERI, op. cit., p. 10).

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se nega a se tornar progenitor, apesar da insistência em contrário de

sua companheira.

Mesmo um possível reconhecimento de certa adequação entre a

matéria histórica mobilizada e a forma escolhida por dramaturgo e

diretor na representação, sustentada numa “sucessão de quadros alegóricos”, é dispensado pela apreciação rigorosa da jornalista. Isso

porque o “tom litúrgico empregado” explicitaria o dirigismo partidário da empreitada cênica, numa “mascarada” que mal disfarçava a

“hediondez” daquela ideologia “esvaziada”, factível tão-somente em

um “passado morto”.11 Portanto, a montagem ganhava “o andamento

duma revista mais ou menos escusa, em que o cenário sempre supera

o texto”, o que constituía, ao fim e ao cabo, uma “armadilha” para o

público:

Não podia haver tratamento realista para um herói idealizado num

tempo inidentificável, e para dizer a verdade a única atualização que

existe, do autor e da peça, é a sua falta de gravitação, tudo está no ar,

num equilíbrio que só a mascarada explica. (GALVÃO, 1961a)

12

11 Diferentemente do que afirmava Guarnieri: “Acho que minhas peças

seguiam um movimento histórico, elas acompanhavam a realidade que

estava sendo vivida no país em cada época, e até desembocavam em algum

lugar. Só que não vejo nenhuma delas como um exercício de futurologia, eu

nunca tive talento para descrever o futuro distante. O que eu conhecia era a

visão do homem, principalmente a visão do homem brasileiro, que era objeto

da minha preocupação. Eu não tinha a mínima cultura para falar de outra

coisa” (ROVERI, op. cit., p. 117).

12 Acerca das opções cênicas, afirma o diretor Flávio Rangel: “O tratamento

da peça não é realista; havia alguns elementos de ‘teatro total’, havia uma

destacada influência cinematográfica, mas havia sobretudo uma liberdade

completa no que respeita à maneira formal. Lida, a peça apresenta enormes

dificuldades para a encenação, e aceitá-la era de algum modo uma disputa. A

tentativa de solucionar as vinte e duas sequências esparsas por dez cenários,

de maneira realista, afigurou-se impraticável. Hoje, tenho quase que certeza

de que seria também um erro” (GUARNIERI, op. cit., p. 8).

P:28

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O ápice mais evidente de tal “mascarada” estaria nas falas próximas ao desfecho em que Carraro identifica, reconhece (e aceita) que

o Partido decidira usá-lo como “traidor”, em conluio com a Polícia,

para desmoralizá-lo como líder, aproximando-o do “marginalismo

político e social”: “Nesta altura, o Partido precisa de um traidor...”

(GUARNIERI, 1978a, p. 137). Ao fim, a ex-militante comunista, no

palanque d’A Tribuna, decreta, peremptória: “A semente, sendo só

invólucro, não germinará.”

Em texto anterior, “Revolução”, publicado no início de novembro

de 1960, na coluna “Palcos e Atores” do mesmo jornal santista, Patrícia Galvão aproveitava a oportunidade de informar sobre o III Festival Regional de Teatro para fazer outra referência depreciativa a produções e autores ligados ao Arena. Assistira recentemente à Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, “um êxito de bilheteria”,

embora, para ela, ainda não configurasse o ingresso definitivo do

grupo “na inteira vanguarda de nosso palco.”13 Conquanto enfaticamente contestasse “o dirigismo com que se impregnou o simpático

teatrinho”, também reconhecia a importância dos “empreendimentos

do teatro de José Renato, o seu empenho em fazer algo de novo, o

seu imenso trabalho de pesquisa”. Afinal, reforçava, o “Seminário de

Dramaturgia é uma coisa nova em nosso palco, dando oportunidade

a autores nossos de se revelarem, bem como a atores moços de ter

13 Em excerto de artigo citado por CAMPOS (2014, p. 301), afirma uma

enfática Patrícia Galvão, contra “o dirigismo do socialismo romântico”:

“Divergimos, continuamos em divergência, continuaremos divergindo dos

pontos de vista de Augusto Boal, quando ele julga que o caminho ‘único

necessário à evolução de nosso teatro’ é o de ‘escrever brasileiro sobre temas

nossos, interpretar brasileiro peças nossas’. [...] Escrita na União Soviética

essa frase, substituída a palavra ‘brasileiro’ por ‘soviético’, teríamos então

uma exata determinação de arte teatral dirigida, no sentido do nacionalismo

político moscovita.”

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um lugar no sol.”14 Entretanto, desde então era clara sua posição discordante do grupo, estética e ideologicamente:

Teatro é obra de arte e não polêmica, manifesto. A mensagem tem

que ser a do artista e não de partidos políticos. A luta de classes pode

caber dentro de uma peça sem que isso incida em manifestos, onde o

tira tem que ser a arbitrariedade, o capitalista um explorador ou um

tarado e o operário o bonzinho, vítima de nosso sistema capitalista. A

humanidade dos personagens se dissolve dentro de dogmas que são

tão anacrônicos como os dogmas da Igreja, nos quais nem os padres

acreditam mais, pois procuram se humanizar, e muitos deles, pelo

menos os mais inteligentes, sabem que a fé não se impõe. (GALVÃO,

1960a)

O problema de Boal, na peça, foi que “tomou o partido” da “rebeldia” do protagonista José da Silva e “desumanizou os outros perso14 No dia 13 de fevereiro de 1962 (ano de sua morte), Patrícia Galvão volta a

escrever sobre o Teatro de Arena, “esse simpático conjunto profissional de

São Paulo”, quando compara a encenação que o grupo fez de Os fuzis da

Senhora Carrar, de Bertolt Brecht (1898-1956), e que levaria a Santos nos

próximos dias, a outra leitura da mesma peça, “esplendidamente montada

pelo Grêmio Horácio Leme, do Mackenzie”, com direção de Gigongnetto, à

qual assistiu durante o Festival de Teatro de Estudantes, em Porto Alegre:

“Um texto só, com direções e comunicabilidades absolutamente diferentes.

Ambas honestas e com suas razões.” Afirma a jornalista ter gostado de

ambas as encenações daquela obra de “realismo épico”, preferindo, no

entanto, à erudição de José Renato, a “mocidade” “exuberante” dos

“meninos” do grupo amador: “Animação, otimismo, consciência, sem lógica,

sem terror. [...]. Os revolucionários não são tristes. Cantam felizes contra

qualquer incidência dramática de fuzilarias. [...] depois do espetáculo, todo

mundo saiu cantando a vibrante mensagem contra o franquismo.” Já o

Arena, diferentemente, teria desprezado a música, “uma condicionante de

Brecht”, uma potente forma sua de “interpelar o público”: “é nas canções que

o gesto de designar se acha particularmente salientado”, já que “na relação

antitética da palavra falada e da palavra cantada é que reside a verdadeira

dialética do drama.” – “Renato nos deu um drama frio dentro do ‘assim vai o

mundo e ele não vai bem’. Consciente, mas pessimista, atuante e crítico. [...]

Do Teatro de Arena saímos gelados.” Finalmente, o empate se verificava em

duas ótimas interpretações, a se destacarem: a do “Operário” de Sérgio

Mamberti, do Mackenzie; e a da “esplêndida mãe Carrar”, de Dina Lisboa,

para o Arena (GALVÃO, 1960b).

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nagens”, com isso querendo “aquilatar-se a Brecht, procurando um

teatro épico.”15 Curiosamente, opondo-se nominalmente a parecer

expresso há pouco por outro crítico renomado, Patrícia reconhecia

no espetáculo até “uma certa vivacidade cômica, embora de efeito

dúbio”, “tudo dentro de lugares comuns”: enunciavam-se no palco

frases que “ouvimos continuamente nas esquinas, mais ou menos no

mesmo” tom de “realismo”, o que, se por um lado “sublinha o descontentamento coletivo”, por outro, “não é teatro. É polêmica.”. E

reitera: “O texto de Boal é uma espécie de travessia do Canal da Mancha com requintes, mas, lastimamos não estar de acordo com Sábato

Magaldi, pois teatro, para nós, não é um palanque.” 16

Vale ressaltar que, no parágrafo de abertura do seu artigo supostamente escrito para noticiar e comentar o Festival (o que praticamente apenas anuncia e pouco faz, repetindo aqui e ali a irônica co15 Em 31 de agosto de 1958, Patrícia anunciava: “Brecht invade o Brasil”,

ressalvando a obra do alemão das críticas que ela fazia ao teatro engajado,

pois em Bertolt “a intenção clara de proselitismo político, a qual, em outras

circunstâncias, amesquinharia o resultado artístico, aqui não atua

negativamente e até se deixa apagar pela beleza literária.” (Apud CAMPOS,

2014, p. 300).

16 José Renato Pécora (1926-2011), ou Zé Renato, histórico diretor do Arena,

relembra, no depoimento sobre Guarnieri intitulado “O Baixinho que abriu

novos caminhos para o teatro”: “Como o Arena era um grupo de jovens, a

gente sempre teve alguns atritos. [...] Então houve alguns momentos em que

a gente se enfrentou em questões de orientação de grupo. Mas felizmente

isso sempre foi contornado com clareza e discussões. Todos os confrontos da

época sempre foram produtivos. As discussões costumavam extrapolar o

campo do teatro e passavam para o terreno político. Muitas das nossas

contendas eram sobre a importância e a validade da presença do teatro. O

teatro servia para quê? Era útil para quê? Estava a serviço de quê? Nossa

pendência era essa: nós deveríamos nos servir do teatro ou servir ao teatro?

Isto é, através do teatro a gente estava travando uma grande batalha política

ou ocasionalmente as batalhas do teatro passavam pela área política? Este

era o cerne da briga: discutir a função primordial do teatro. Mas nada que

não pudesse se resolver através da palavra” (In ROVERI, op. cit., p. 188-

189).

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manda “falemos de outras coisas”), ela menciona, como que de passagem, a divergência de pareceres verificada na recepção de Gimba, o

Presidente dos Valentes, outra peça de Gianfrancesco Guarnieri dirigida por Flávio Rangel, com a Companhia Maria Della Costa, por encomenda de Sandro Polloni, para temporada entre 1959 e 1960 (incluindo apresentações internacionais), e encenada em palco do tipo

italiano:17

Malraux nos disse um dia que a crítica é parcial. No que está certo,

sob o ponto de vista artístico. Vimos, por exemplo, recentemente,

uma crítica de Décio de Almeida Prado, categorizado estudioso de teatro, elogiar a peça de Guarnieri, Gimba, quando a não menos categorizada Barbara Heliodora, crítica do Jornal do Brasil, quase que desmontou a peça em questão. Os dois pontos de vista são abalizados e

17 Na pioneira antologia dos textos de Pagú realizada por Augusto de

Campos, consta um breve artigo – “Bate-papo no mar”, publicado n’A

Tribuna, em 24 de maio de 1959 –, no qual a autora tece comentários acerca

de controvérsias recentes sobre a linguagem teatral brasileira: “Enquanto

alguns consideravam que se devia levar ao Teatro, para maior

comunicabilidade, a linguagem das ruas, outros se colocavam em posição

absolutamente refratária, acentuando o poder da criação artística contra

reportagens realísticas, figurando um pedaço da vida como ela é, à maneira

de Nelson Rodrigues. [...] No nosso conceito, Teatro Brasileiro, até agora,

não passou do que se sabe: A compadecida, que é uma ‘faixa regional’

compreendida por todo o Brasil e não um amálgama nacionalizador prévio.

Não é preciso ser regional também e só, para se ter teatro brasileiro. [...] O

intencional ‘nacionalista’ é que está errado e a sua condicionante ‘realidade

nacional’ também, pelo conteúdo idealístico que o move e o arma, no espaço

e no tempo, embora alguns autores se julguem bem armados de qualidades

ideológicas e não idealísticas, e como tais, ideólogos, se metam a basear a tal

‘realidade brasileira’ em materialismo dialético. Daí partindo a coisa dá em

água de barrela, que está nos chapetubas e nos gimbas. [...] Afinal, em

Chapetubas e Gimbas, o que prende o interesse dum público é o lado de

dentro da reportagem, mostrada até a brutalidade repugnante da cena em

que o policial se atraca com uma pequena do morro, sem haver necessidade

daquilo, a não ser para a sádica expectativa do auditório em assistir a um

crime. / A criação artística e só ela salvará o teatro brasileiro do melodrama e

da grosseria, de Gimba e Chapetuba, dando azo a que surja, nos dilemas de

nossa cultura, essa flor de civilização que é o texto a representar, a colocar

diante do público” (Apud CAMPOS, 2014, p. 303-304).

P:32

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os respeitamos, embora contraditórios. Entra aí uma questão de afinidades, comunicabilidade, digamos mesmo uma participação ingênita. (GALVÃO, 1960a)

18

18 Em seu breve texto de 1959, PRADO (1964) destaca a reação calorosa da

plateia que “aplaudiu tudo” na estreia de Gimba no teatro Maria Della Costa

(SP), desde os cenários de Tulio Costa – “que demonstram eloquentemente

que com alguns barracos pobres a subir pelos morros também é possível

fazer um belíssimo cenário” –, até “as batucadas de morro, os lances mais

melodramáticos, as cenas de violência e morte”, “numa explosão como não

nos lembramos de ter visto no teatro nacional” (p. 124). Apesar da lotação de

um teatro três vezes maior do que o de Arena, onde fizera sucesso duradouro

a primeira peça do dramaturgo, o crítico tentava manter a “cabeça fria” e não

se deixar levar pelas “ondas de entusiasmo”: “A segunda peça terá menos

defeitos mas também menos qualidades do que a primeira, faltando-lhe em

pungência e penetração humana aquilo que lhe sobra em espetaculosidade”

(p. 125). Isso porque agora as personagens lhe pareciam assumir os

contornos de “figuras míticas” e não de “criaturas de carne e osso”, tendo

“acima e por detrás, iluminando toda a ação, o grande mito por excelência: o

morro carioca, lugar estranho e cheio de sortilégio onde o amor, o samba, a

compreensão entre os homens e a alegria de viver redimem moralmente a

pobreza. O mal é a polícia”, com “seus métodos selvagens e desumanos”, sem

a qual o “‘presidente dos valentes’ se regeneraria” – visão “ingênua e rósea”,

mesmo do “ponto de vista político em que se coloca o ator”, e que pediria

maior complexidade de tratamento. Ainda assim, a sedução do espetáculo

era garantida pelo fato de que “Guarnieri possui, mais talvez do que qualquer

outro autor brasileiro, o dom do teatro, esse dom misterioso de conversar e

de se fazer entender pela plateia”, e graças também à sinceridade de suas

convicções, de sua “pregação antes humanitária do que propriamente

política” (PRADO, 1964, p. 126).

Em texto posterior, depois coletado no mesmo volume, Décio retorna ao

tema, em alguma medida reconsiderando sua apreciação inicial mais

positiva: afirma agora que Gimba “suporta mal uma segunda visita”, por se

valer principalmente de “efeitos de enredo”, cujo interesse naturalmente se

perde depois de este já ser conhecido. Reforça a crítica ao maniqueísmo

esquemático da peça, o que, segundo ele, “não combina com o ponto de vista

marxista”, para o qual “os defeitos fundamentais são do sistema, não das

criaturas”: “O que haveria de escandaloso no capitalismo seria o próprio

capitalismo, o funcionamento em si da máquina econômica, não estas ou

aquelas falhas secundárias. O marginal, portanto, como tema revolucionário,

interessa bem menos do que o trabalhador de fábrica [...].” Assim, Gimba

“quis ser um drama de protesto e acabou sendo um vibrante espetáculo

musicado, um entertainment bastante semelhante ao musical norteamericano, com a mesma simplicidade de linhas, a mesma esquematização

de situações e personagens, a mesma procura de efeitos vigorosos e até – por

obra da direção de Flávio Rangel – o mesmo estilo de representação, direto,

P:33

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31

O próprio dramaturgo paulista (porém italiano de nascimento)

apresenta uma possível motivação para tal discrepância de parecer

avaliativo:

Naquela época, a crítica se referia a mim como um moleque talentoso,

ou como um ‘molecote talentoso’, como alguém chegou a publicar. A

maioria deles, ou ao menos os mais importantes, como Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado e Delmiro Gouveia, parecia torcer muito por mim, para que eu continuasse a exibir o mesmo vigor que eu

havia demonstrado em Black-Tie. É provável que alguns críticos não

tenham gostado, mas os principais haviam ficado do meu lado. O

Arena tinha uma relação mais próxima com a crítica de São Paulo,

não que fôssemos amigos dos críticos, não é isso. Mas havia uma certa intimidade, ou um certo respeito, uma relação do tipo alunoprofessor. Eu, que sempre fui um autodidata, considerava aqueles críticos como mestres. Todo autodidata, creio eu, sente alguma insegurança em relação ao seu trabalho, e está sempre em busca de alguém

que possa dar uma benção. E eles me tratavam com muito respeito,

como se eu fosse mesmo uma espécie de aluno deles.

Era uma crítica muito digna, a feita naquele tempo. Talvez porque

eles tivessem mais espaço para ir fundo na análise dos espetáculos.

Com o tempo, isso também foi desaparecendo. Virou uma nota, nota

de rodapé. O espaço para a crítica, atualmente, está uma lástima. E é

uma pena, pois por mais contraditória que possa ser uma crítica, ela é

muito importante para o espetáculo. Eu penso que a contradição era o

objetivo dos críticos de 40 ou 50 anos atrás – eles promoviam uma

discussão sobre a peça. Não importa se a resenha fosse de louvação

ou de meteção de pau, o importante é que ela existia e cumpria o seu

papel (In ROVERI, op. cit., p. 105-106).19

exuberante, extrovertido, um ou dois pontos acima do que seria natural em

outras circunstâncias.” (PRADO, op. cit., p. 135-136).

Infelizmente, não foi possível ter acesso à crítica escrita por Barbara

Heliodora, indisponível em seus livros e nas pesquisas por mim realizadas na

internet.

19 O polêmico jornalista e crítico carioca Paulo Francis (1930-1997) assim

avaliou a peça do dramaturgo paulista: “As deficiências de Guarnieri são

excesso de ambição, falta de vivência dramática e imaturidade intelectual.

Nada disso é tão grave quanto parece. [...] Mas resta o problema da execução

P:34

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Ora, pode-se até com certa facilidade discordar parcial ou totalmente das avaliações que a leitora, espectadora e crítica Patrícia Galvão faz daquele importante momento da história do teatro brasileiro.20 Traços de ressentimento justamente acumulado a partir da sua

experiência radical de militante partidária e do policiamento que sua

produção artística sofreu na década de 1930 pelos próprios companheiros são reconhecíveis como o fiel da balança de suas apreciações

e juízos. Porém, é igualmente acertado admitir e atestar quão atualizada e embasada era sua visada, já que lia os textos dramatúrgicos,

assistia às principais encenações em cartaz, conhecia pessoalmente

os autores quando possível, e não apenas os brasileiros, mobilizava

conceitos do métier, chamando para o diálogo ou para o debate mais

ou menos contencioso outros profissionais do jornalismo e da acateatral. No afã de dramatizar simultaneamente elementos folclóricos, de

crítica social e psicológicos, Guarnieri expõe em demasia, retalha o texto

num abuso do episódico. Estamos contemplando com muito prazer o humor

doméstico dos barracos, a agilidade muscular dos dançarinos da escola de

samba ‘local’, ou ainda a legitimidade de sua inspiração musical popular,

quando somos levados à conscientização abrupta de sua miséria, ou à

pesquisa moral da decadência de Gimba, como valente, ou ao despertar

também moral de seu sucessor para as realidades das relações humanas.

Tudo é bom, mas tudo é demais. [...] cedo ou tarde nos vem a sensação do

embaraço de riquezas, que, isoladamente, nos interessam todas, mas que

nós, como o autor, ficamos sem saber por qual optar. [...] ele deveria ter dado

precedência, realce, a uma das componentes que imaginou. O que há é um

equilíbrio dessas componentes, que impede sua fusão num todo dramático”

(GUARNIERI, 1978b, p. 4).

20 Numa crônica em forma de carta, dirigida a Alfredo Mesquita (1907-1986)

e publicada na coluna “Palcos e Atores” do Suplemento de A Tribuna,

Patrícia lembra a seu ex-professor paulista aquele “caso tão escandaloso” de

quando ela escreveu a crítica de A semente, e que incluía a “crítica à crítica

obtusa”, assunto sobre o qual já teriam conversado em Brasília, na presença

de Décio de Almeida Prado. Ao que parece, a recensão jornalística, naquele

momento, rendia mesmo boas discussões. Outros tempos...

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demia, reavivando sempre a sua desde sempre conhecida verve de

polemista... Não é pouco.

Na coluna “Palco e Atores” do suplemento cultural do jornal santista, no dia 28 de agosto de 1960, Patrícia Galvão expõe nova reflexão combativa, destacando as dificuldades enfrentadas nos últimos

quinze anos (de Pós-Guerra, portanto) pelo teatro brasileiro, na busca tardia por renovação e identidade: “Verdadeiramente falta completar-nos, para viver a criação artística e cultural que o teatro implica.” E comenta especificamente acerca de seu papel:

Mas chega, então, o momento do crítico, que sobretudo pode ver mais

do que o público em geral, porque seu ofício é conhecer o espetáculo

em todos os seus pormenores e proceder a um levantamento da situação. Qual o melhor crítico? Pode-se dizer que não existe, pois raramente podem coincidir os critérios: a crítica é interpretação de criação artística, e nela coexistem tantos complexos fatores, que devemos

sempre recorrer a mais de uma opinião crítica. [...] / Diante da criação, a reação do público e da crítica poderiam, rigorosamente deveriam, fazer com que os erros fossem corrigidos. Mas os atores e autores

e diretores muitas vezes se armam de suficiência e não examinam os

argumentos da crítica, e desobedecem às suas recomendações. Nessas

condições, nada a fazer senão esperar. (GALVÃO, 1960d)

PROMISSORA PREMISSA

Em 5 de fevereiro de 1961, a jornalista soma-se a outros colegas

“escribas do teatro” que passam a fazer o balanço cultural da década

anterior, com o fito de avaliar percursos e traçar novas rotas: “o

avanço, em alguns pontos, foi grande demais – tudo é mais ou menos

desmedido, irregular, desconexo, heterogêneo, neste país.” Embora

breve, o exame de Patrícia demonstra algum fôlego em seu alcance:

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A turma que emergiu do primitivo quadro de Vestido de Noiva, que

veio através do Teatro de Estudante e dos Comediantes, ora traduzindo O’Neill, como se fôssemos capazes de fazê-lo, sem o background

da formação dos artistas, dos diretores e do público, assim como dos

cenaristas e até dos tradutores, continua errando e acertando, embora

agora tenhamos maiores conhecimentos das coisas. Se hoje o condicionante social que apareceu através do Seminário de Dramaturgia e

através do Teatro de Arena de S. Paulo afasta-nos de O’Neill,

21 aproxima-nos, contudo, doutro caso, quem sabe se mais difícil, do teatro

internacional, como é o teatro épico de Bertolt Brecht, de que peças

de maior envergadura já foram traduzidas e encenadas entre nós, como os casos bem conhecidos de A alma boa de Se-Tsuan e Mãe Coragem. (GALVÃO, 1961b)

22

21 Para além das constantes aproximações – por vezes mais, outras menos

consequentes – feitas entre as obras de Eugene O’Neill (1888-1953) e o

teatro de Nelson Rodrigues (1912-1980), é preciso lembrar o quanto o

repertório do dramaturgo norte-americano também foi importante para o

surgimento e consolidação do fundamental movimento capitaneado por

Abdias do Nascimento (1914-2011) na criação do Teatro Experimental do

Negro (TEN-RJ), na década de 1940. Nos ensaios acerca do teatro americano

moderno presentes em Panorama do Rio Vermelho, Iná Camargo Costa

apresenta os caminhos e atalhos que o levaram a ser considerado a

“expressão máxima” dessa dramaturgia, despertando o interesse da crítica de

vertentes biográfica e psicanalítica e daquela interessada nos

desdobramentos contemporâneos da tragédia e do Expressionismo. Só

posteriormente, e em proporção menor, estudos como o dela salientarão o

alcance político das primeiras peças de Eugene. Ver COSTA (2001).

22 Em “Ainda o nacionalismo”, de 19 de julho de 1959, Patrícia resume o

conteúdo de aula ministrada por Alfredo Mesquita, diretor da EAD, durante

o II Festival de Teatro, na qual ele frisava o papel de divisor de águas que a

montagem de Ziembinski (1908-1978) para o texto de Nelson Rodrigues teve

em dezembro de 1943: “Se a peça do escritor brasileiro requeria uma

compreensão das técnicas modernas de tornar expressivo o teatro que ele

tentava no contexto e na manifestação espetacular, foi dado a Ziembinski,

que pela sua formação era um expressionista, traduzir-lhe as implicações, e

desflorá-las para o grande público que assistia, sem saber por que, a uma

‘inovação’ no teatro brasileiro.” O fato de a renovação partir da iniciativa de

um profissional estrangeiro serviria para comprovar que “o teatro moderno

prescinde da coceira nacionalista de que se acha atacada a vida teatral

brasileira”. Em contrapartida, o professor opunha-se àqueles que julgavam

ter sido Deus lhe pague, de Joracy Camargo (1898-1973), uma obra que

“ensejara uma modernização do nosso teatro”, sendo antes “a cristalização

inevitável de todos os sinais de decadência do que o teatro brasileiro trazia

consigo, com todos os seus cacoetes inevitáveis, desde o texto à maneira de

representar”, marcando o “período de final de dissolução”. Segundo a

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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Para ela, faltaria, entretanto, aparecer nos cômputos empreendidos “um lugar para um teatro brasileiro outro, fora do urbano, de que

Gimba foi o escândalo nacional e internacional que se sabe, e de que

peças paulistas e de morro carioca continuaram abordando a possibilidade imensa...”. Tal teatro outro, o qual “responde às duas maiores

peças já concebidas por autores nacionais, como no caso de A Compadecida e O pagador de promessas, que, na verdade, desbordaram

o aproveitamento dos elementos folclóricos e regionais”, fez-nos alcançar – sobretudo no segundo caso – “uma realização muito acima

do que poderíamos esperar do tema em sua atmosfera”, chegando

aos “tons e notações do teatro notabilíssimo de Arthur Miller, em As

feiticeiras de Salem, menos a complicação encenadora que acompanha a peça do norte-americano.”23 Um salto, dado por esses dois auopinião de Patrícia, parte significativa dessa degradação do teatro brasileiro

estaria na “burrice empresária e histriônica do velho Procópio Ferreira que o

monopolizava” (Apud CAMPOS, 2014, pp. 304-305).

23 No livro mencionado, COSTA (2001) também dedica um capítulo a Arthur

Miller (1915-2005) – “um incômodo sobrevivente” (da “hegemonia

comunista nos meios intelectuais e artísticos nos anos 30, [d]a proliferação

dos grupos de teatro político e [d]a criação do Federal Theater, onde ele

mesmo trabalhou”) –, reconhecendo-lhe, de início, seu “ingrediente

explicitamente ibseniano”, para depois apontar como o dramaturgo

representou, sobretudo no período de 1935 a 1953, aspectos importantes da

história e da sociedade estadunidenses, como os “rituais de abjeção” da caça

às bruxas do “macartismo”, por meio da “crítica aos valores do american

way of life, ou [d]a abordagem analítica (aprendida em Ibsen) do passado”,

recorrendo a recursos formais do teatro épico. Assim, Miller retratou um

período no qual foi forjado pelo governo um “programa de lealdade que,

devidamente aliado a uma política de extradição, deportação, prisão de

imigrantes suspeitos, mais os programas de patriotismo em ampla escala,

[...] produziu mesmo, na vida cotidiana, um ‘salve-se quem puder’ nacional,

uma histeria análoga ao fenômeno religioso ocorrido em Salem, de que

Arthur Miller vai tratar.” (COSTA, op. cit., p. 141-154). Não fica difícil, com o

percurso que vimos fazendo, detectar os porquês da atenção de Patrícia

Galvão, em seu balanço comparatista, às peças dos dois dramaturgos do

Norte...

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tores nacionais, frente à “jovem glória da juventude de Guarnieri, que

serviu a um pastiche de literatura social, jogada no teatro”. No caso

especial do autor baiano, Patrícia espera que “o teatro de Dias Gomes

seja traduzido, para que possamos ter uma ideia da significação

imensa do tema abordado, e como foi abordado”; afinal, o drama de

Zé do Burro

precisaria ser discutido, debatido, e mais do que isso, propagado até

pelo teatro amador, pois só uma divulgação em grande escala dessa

notável peça poderá nos ajudar a compreender até que ponto Dias

Gomes contribuiu, com ela, para abrir uma clareira – formular uma

palavra original e, portanto, nova, no teatro brasileiro. [...] / Infelizmente, continuamos sem estudar em profundidade: a coisa vai na arrancada, e a ambição das bilheterias tem justificado todos os crimes

cometidos em nome da realização teatral... (GALVÃO, 1961b)

O pagador de promessas, do baiano Alfredo Dias Gomes (1922-

1999), foi obra constantemente utilizada por Patrícia Galvão como

exemplo positivo de distinção entre o bom “teatro regional, brasileiro” e o equivocado “teatro nacionalista”. Tendo a estreia do espetáculo ocorrido auspiciosamente – o termo é dela – na recentemente reformada sala do TBC paulista, com cerca de 40 pessoas em cena, o

público tinha a chance de se deparar ali com um “pensamento bem

estruturado”, com o qual o protagonista Zé do Burro (de Leonardo

Villar) era “elevado à altura da tragédia”, pois sua “fidelidade à fé” o

levava à “confrontação ativa”, ao “choque com a ordem temporal e

divina dos homens”. Humanizado pela ligação afetiva, estreita e poética com o sitiante, um burro ganha foro de símbolo na peça e vira

motivação legítima para o confronto contra a Igreja e a Polícia, “dois

pilares da estabilidade social ordinária” e das “limitações do dogma”

(GALVÃO, 1960c). Citando depoimento do próprio dramaturgo, que

reconhece certo quinhão de “facciosismo político” em suas criações,

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embora sem que tivesse a intenção de ser didático, Patrícia faz enfaticamente sua defesa, por acreditar que a obra investe contra a “intolerância universal” e, com isso, “ultrapassa sua pretendida posição”,

graças à “fé na dignidade humana, que não pode entrar em transação”. Para ela, o personagem “está certo em seu espírito de resistência à acomodação. E não cederá.”:

“Zé do Burro, diz-nos Dias Gomes, crente do interior da Bahia, podia

ter nascido em qualquer parte do mundo, muito embora o sincretismo religioso e o atraso social que provocam o conflito ético sejam

problemas locais, façam parte de uma realidade brasileira”. E aí estamos de acordo. / O que aconteceu foi que a imaginação criadora ultrapassou os quadros que o autor se traçou, e como ele foi consequente, com o seu personagem, com a trama de sua história em todo o seu

desenvolvimento, Zé do Burro não é faccioso, mas é a própria pureza

da fé que não admite contaminação na resistência, por mais que a

trabalhem, pela intolerância violenta ou pela persuasão. Ele raciocina,

ao contrário do que um crítico disse; mas raciocina pondo em paralelo os argumentos e as solicitações que se oferecem contra a sua fé, à

estruturação de seu pensamento ético, que só admite a correta observância ao compromisso que ele tomou consigo mesmo diante de uma

enteléquia. (GALVÃO, 1960c)

A conclusão do texto explicita e ratifica a empatia da resenhista

com a obra, sobretudo com o seu final “comovedor e simbólico”, onde o “teatro brasileiro chega à identificação litúrgica, da comunhão”.

A linguagem crítica mobiliza imagens poéticas ligadas ao campo semântico da peça, a fim de sustentar o argumento conclusivo:

O julgamento existencial que a peça de Dias Gomes implica dá, subitamente, grandeza a uma peça brasileira. E todos nós, da plateia, nos

levantamos e levamos aos ombros, contra todas as portas da intolerância, a pobre carcaça de Zé do Burro, o invólucro do herói com que

comungamos em sua luta e em seu sacrifício. (GALVÃO, 1960c)

Galvão voltará a militar em favor de que houvesse outras encenações da “peça grandiosamente brasileira de nosso teatro”, “a peça”

por excelência, para que servisse de base e estímulo de um teatro

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moderno no país, tão “vivo”, “atuante”, “empolgante” e “sincero”,

“porque emerge da carne, sangue e lágrimas de um povo”. Somente

assim, pleiteava, teríamos uma dramaturgia à altura de nossa literatura, num “esforço persistente”, “feito com inteligência e arte”, para

não dependermos mais de peças estrangeiras que não nos traduzem e

com as quais pudéssemos estabelecer relações de reconhecimento e

identificação. Afinal, para ela, “o teatro é um grande veículo” de produção do “choque” em nossas “consciências e sensibilidades”. Fora

assim, por exemplo, que a arte expressionista se empenhara em revelar os seres, mesmo aqui, em seus raros desdobramentos no palco,

mantendo-se “fora da comediazinha de costumes”, para se impor

como “corte em profundidade das nossas vidas e realidades”.

As experiências externas de vanguarda, como as do irlandês Samuel Beckett (1906-1989), do suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-

1990), do belga Michel de Ghelderode (1898-1962), dos franceses

Jean Paul Sartre (1905-1980) e Alfred Jarry (1873-1907), do italiano

Luigi Pirandello (1867-1936), do alemão Bertolt Brecht (1898-1956),

da norte-americana Lillian Hellman (1905-1984), do romeno Eugène

Ionesco (1909-1994),24 do espanhol Federico García Lorca (1898-

1936), ou mesmo dos artistas da Actor’s Studio e da Ópera de Pequim, multiplicam-se em suas colunas n’A Tribuna como fontes de

estímulo, inspiração e reflexão, parte de sua incansável pesquisa

acerca dos possíveis caminhos a serem trilhados pelo teatro brasilei24 Patrícia Galvão conheceu pessoalmente Ionesco, numa visita sua ao Brasil,

quando ele leu para uma plateia que também incluía a atriz paulista Cacilda

Becker (1921-1969) e o crítico mineiro Sábato Magaldi (1927-2016), trechos

de suas peças, como A cantora careca, As cadeiras e O rinoceronte,

afirmando que fazia paródias do teatro de boulevard, procurando

desarticular o mecanismo teatral com meios simples, apenas uma série de

lugares-comuns e verdades elementares.

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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ro, amador ou profissional, na década de 1960, da qual ela infelizmente pouco viria a participar, com sua morte prematura.25

Alguns dias antes de falecer, Patrícia publicou trechos de uma “informal entrevista com o autor Dias Gomes”, que ela fez no apartamento de Flávio Rangel, na Rua Maria Antônia, da capital paulista,

depois de a adaptação fílmica da peça de Zé do Burro ter sido laureada com a Palma de Ouro em Cannes e quando o dramaturgo já se

reunia com Cyro Del Nero para definir os cenários de A Revolução

dos Beatos, peça que discute aspectos do culto religioso (e político) à

figura do cearense Padre Cícero Romão Batista (1844-1934).26 Ela

relata:

Tivemos uma discussão inicial, quando Dias Gomes declarou que todo Teatro é dirigido, afirmando que qualquer neutralidade é impossível para o artista. Mas explicou, a seguir, que esse dirigismo deve ser

imposto pelo próprio artista, emanado de suas convicções de arte, não

admitindo uma imposição partidária ou estatal. / “Esse teatro seria

uma castração”, afirmou-nos.

25 “Ao iniciar a coluna ‘Palcos e Atores’, avisou aos leitores que logo teriam a

oportunidade de assistir, em Santos, a espetáculos de vanguarda, onde se

subvertem as regras do teatro convencional e não se visa ao lucro, mas ‘ao

enriquecimento da visão humana’, numa ação que ‘esforça-se por descobrir

novos rumos, novas fórmulas, abrindo assim, desinteressadamente, caminho

para o teatro de amanhã’” (COSTA, 2012, p. 122). Ver, neste mesmo livro,

reprodução fotográfica do texto, com o título “Que é afinal vanguarda?”,

publicado em novembro de 1959. Nele, Patrícia cita o teórico francês Bernard

Dort (1929-1994) e sua definição de vanguarda como recusa, ruptura,

descoberta e autonomia, apontando, ainda, sua função “terapêutica”:

“esvaziando a cena, ela restaura o espetáculo, colocando-o em situação de ser

uma ‘coisa a ver’ – o espectador, então, não se sentirá tranquilo como se

estivesse em sua casa, com os seus, na calma burguesa, pequeno-burguesa ou

proletária.” (COSTA, op. cit., p. 95).

26 Sobre essa peça de Dias Gomes, escrevi um artigo analítico-interpretativo,

no qual aponto alguns motivos para o fracasso da empreitada de a

encenarem para o público do TBC paulista. Ver MARTINS (2014).

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Logo, a entrevistadora passa a reproduzir algumas posições expressas pelo autor:

Ir às raízes, a uma certa vivência cultural do povo, em tipificação que

lhe seja familiar, mas resguardando a liberdade universal [...]. Afirmo-lhe que isso não é teatro nacionalista. Aliás, não reconheço nem

admito nenhum teatro nacionalista. / Certamente, existe a necessidade de uma tomada de consciência artística no palco. Pode haver uma

correspondência dramática, uma concentração social, correspondendo a um plano geral. Compreendo que haja uma tomada de posição,

digamos, dos problemas nacionais, mas com toda a liberdade. Assim,

O pagador de promessas abordou um tema universal, a luta do dogma e da fé, de uma forma brasileira. Um problema ilimitado, mas ao

alcance também de nosso povo. (GALVÃO, 1962a)

Pouco menos de um mês depois, no artigo “Duas peças de Dias

Gomes”, Patrícia lança a aposta: O pagador teria sido “uma trouvaille esporádica, ou constituiu um ponto de partida para a carreira regular em grande desdobramento de um novo dramaturgo”? Lançadas

em livro pela Civilização Brasileira (1962), A invasão e A revolução

dos beatos vinham acompanhadas de uma apresentação escrita pelo

diretor Flávio Rangel, na qual ele destacava a filiação de ambas à linhagem ou “agrupamento” do teatro épico, ligação de que a jornalista discorda, porque seria um “enquadramento não eficaz ou eficiente”:

[...] para nós, com estas duas peças, Dias Gomes continua a ser dramaturgia, e continua sem teatro épico nenhum, sem linha política nenhuma, sem uma relacionada situação num “certo teatro” que teria

em parte emergido do “seminário do Teatro de Arena”. Não há nessa

dramaturgia nada que a identifique com Guarnieri ou Boal, Jorge Andrade ou Oduvaldo Viana Filho. Isto para começo de conversa. [...] O

conteudismo da ação de Zé do Burro nada tem a ver com os objetivos

possivelmente socializantes de uma dramaturgia em que querem que

Dias Gomes se enquadre à viva força. (GALVÃO, 1962b)

Para justificar sua visão de que a peça sobre Zé do Burro não é

“teatro social” e que, sobretudo, não sofre de “dirigismo”, destaca o

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que nela há de caricatural no tratamento de motivos tão-somente

incidentais que poderiam conferir um ar “interessado” se comparecessem em outra chave: é o caso da “citação” do problema da reforma

agrária, por exemplo.

Nas novas obras, Dias Gomes também apresenta problemas brasileiros e realidades regionais, “com todas suas peculiaridades de subdesenvolvimento”, ainda que de dimensão universal, sem partir da

“chapada esquematização dialética de fácil apropriação dos nossos

politiqueiros extremistas em teatro”, e “sem conceder nada a um revolucionismo primário, como é o caso de Gimba, Chapetuba, Eles

não usam black-tie etc.” Para ela, somente “um Ariano Suassuna, de

O auto da Compadecida, pode enfrentar [as duas] com qualidade,

embora a temática do pernambucano (sic) sofra das limitações episódicas mais restritivas.”

Segundo Rangel,

As três últimas peças de Dias Gomes [...] formam, portanto, assim

como que uma trilogia. São significativas também dos novos caminhos que os dramaturgos brasileiros estão procurando: o abandono

completo dos drawing-room-plays, em favor de uma pesquisa formal

que lhes abra novos horizontes, com a sucessão ininterrupta de cenas,

com a preocupação permanente de ritmo, tudo isso resultando numa

síntese que se aproxima de um novo teatro épico; é um teatro ao ar livre. / As coisas estão entrelaçadas, e o moderno teatro brasileiro não

nasceu ao acaso. Os novos dramaturgos brasileiros [...] estão intensa

e fervorosamente voltados para os problemas do nosso País. São representantes da nova mentalidade do Brasil; a mentalidade de nãoconformismo, a noção de que os reveses não nos devem abater, uma

aspiração de desenvolvimento que chega a comover e sobretudo uma

aguda consciência social e política. Os temas distantes das problemáticas com as quais estamos a braços estão definitivamente banidos do

teatro. [...] Estas coisas estão todas entrelaçadas à sociologia, aos nossos problemas políticos mais fundamentais, às ligas camponesas, à

necessidade da reforma agrária, ao desenvolvimento industrial, à ascensão irreversível das classes proletárias etc. Assim, o novo teatro do

Brasil está olhando para dentro [...]. Hoje os protagonistas são operários, camponeses, líderes sindicais e agregados de fazenda. São brasi-

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leiros, e o que é melhor: falam nossa língua. / Há anos que Dias Gomes desejava esta possibilidade. Hoje finalmente pode escrever o seu

teatro. É um teatro engajado, é a noção completada de que um artista

decente não pode furtar-se à sua contribuição inalienável à história. É

também um teatro combativo, sobretudo censurado. Mas é o melhor;

e é o único de que temos necessidade. (Flávio Rangel, “Notícia sobre

Dias Gomes”, in GOMES, 1972, v. 1, p. 124-125)

Como se vê, perspectiva bem diversa da que tem a articulista d’A

tribuna, que contra-argumenta afirmando que, em A invasão, se trata de “um caso circunstancial de ocupação de um edifício em construção”, realizada por squatters expulsos de sua favela por conta de

um desmoronamento no morro. O caso retratado seria, portanto,

incidental, de fatos advindos de uma reação momentânea à consciência do estado de desabrigo. Já na peça sobre o padre do Juazeiro, haveria “um sentido de sátira aprofundado no tema que é o de uma

concorrência mitológica contra um mito esperto, consciente de sua

posição no meio”. E, apesar do aproveitamento magistral de dados

históricos na fabulação, para Patrícia, Dias Gomes erraria justamente

ao considerar que a linguagem escolhida adquirira uma “tonalidade

política”, perdendo com isso parte da eficiência satírica, sobretudo

quando se considerava a plateia do TBC, que mal reconheceria “uma

realidade tão distante”, a qual assim “se torna uma história completamente abstrata, cheia de alusões politiqueiras e sociais, sem um

suporte suficiente que suporte a estrutura da peça”; em suma, a plateia assistiria a “uma história passada em território e com gentes reconhecíveis, mas destituída de ligação com dados imediatos da realidade viva.” – “O folclore se impõe, e o tema é folclórico, e o tratamento não consegue fazer dele a trama social visada.” E, portanto, as

duas peças, tanto como a anterior, primorosa, “não realizam um teatro social. Felizmente, para nós e para o autor.”:

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O teatro didático está bem próximo da realização de Dias Gomes, mas

um teatro de moralidade leve e de superficiais consequências, que não

ferem a fundo os problemas que um teatro político (Piscator), ou um

teatro épico (Brecht) poderiam ambicionar. / Teatro, portanto, popular, como estava na intenção do autor – mas qual a eficiência proselitista se esse povo “representado, pesquisado, discutido e exaltado, em

forma e conteúdo” não vai aproveitar a “lição”, nem ouvir-lhe os conselhos e as advertências? O funcionamento para esta peça, a da “revolução dos beatos”, passa a ser de diversão... a públicos evoluídos. E

não seria esse o povo consumidor sonhado por Dias Gomes. Nem pelos dramaturgos do teatro interessado, do Seminário do Arena, por

exemplo. (GALVÃO, 1962b)

Infelizmente, para nós e para a autora, a maior parte desses textos

jornalísticos (sobretudo os da década de 1950) não estão disponíveis

em livro e sequer sob a forma de arquivos digitalizados, quiçá correndo o risco de se perderem definitivamente. Embora de alcance

muito restrito, este trabalho é parte de um esforço mais amplo, iniciado no mencionado artigo anterior, e que se quer partilhado e coletivo, empenhado em revisitar e reafirmar a potência reflexiva da obra

crítica de Patrícia Galvão sobre teatro.

Que assim seja.

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The figurations of the feminine in The Verge, by Susan Glaspell

1

Resumo: Este artigo analisa as figurações do feminino em O limiar (1921), de

Susan Glaspell, à luz da perspectiva dos signos teatrais presentes na peça.

Nesse sentido, intenciona-se mostrar como tais elementos delineiam a subversão da protagonista, que questiona as limitações da mulher a partir da

imagem simbólica das flores, por meio da dialética entre a essência do feminino e os papéis sociais impostos pelo patriarcado, figurando como um divisor de águas do drama moderno da década de 1920.

Palavras-chave: Teatro americano; Drama moderno; Escrita feminina; Feminismo; Didascálias.

Abstract: This paper analyzes the figurations of the feminine in The

Threshold (1921), by Susan Glaspell, from the perspective of the theatrical

signs present in the play. In this sense, it is intended to show how such elements outline the subversion of the protagonist, who questions the limitations of women from the symbolic image of flowers, through the dialectic

between the essence of the feminine and the social roles imposed by patriarchy, figuring as a watershed in the modern drama of the 1920s.

Keywords: American theater; modern drama; female writing; Feminism;

didascaly.

INTRODUÇÃO

Susan Glaspell (1875-1948) figura como uma das grandes representantes da dramaturgia moderna no contexto estadunidense. Co1 Doutoranda em Estudos Literários – UNESP – Universidade Estadual

Paulista Júlio de Mesquita Filho – Faculdade de Ciências e Letras.

Araraquara, São Paulo, Brasil.

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mo uma autora à frente de seu tempo, seus escritos privilegiam temáticas de crítica social, tais como política e a condição feminina na cultura patriarcal. Seu universo ficcional transita entre diversos gêneros

literários, que inclui “não apenas catorze peças, como também mais

de cinquenta contos e nove romances, muitos dos quais foram altamente aclamados tanto pela crítica como pelo público leitor de sua

época”2 (HINZ-BODE, 2006, p. 2, tradução nossa).

Em 1915, a escritora torna-se cofundadora do grupo The Provincetown Players, sob direção de seu marido George Cook, grupo que

se configura para a história da dramaturgia como o berço do teatro

moderno. O caráter experimental e inovador proposto pelo grupo

“surgiu como uma união de diferentes artistas que tinham a vontade

de pensar e criar um teatro norte-americano propriamente dito, sem

a importação de peças do continente Europeu” (FERRO, 2015, p. 1).

A participação de Glaspell junto ao grupo foi fundamental para a sua

atuação como dramaturga, exercendo inclusive a função de atriz (cf.

SANDER, 2003, p. 8). Nesse aspecto, o contexto cultural americano

bem como o cenário político-social novaiorquino influenciaram sobremaneira os temas abordados em suas peças, visto que “depois de

duas temporadas em Provincetown, o grupo se estabeleceu na cidade

de Nova York e marcou presença durante os seus oito anos de existência, de 1915 a 1922” (SANDER, 2003, p. 8-9). É interessante destacar a peculiaridade da composição teatral da autora, cujas peças

foram criticadas pelo predomínio de diálogos e reflexões em detrimento das ações, subvertendo, por assim dizer, as convenções do

gênero dramático, sobretudo pela abordagem referente questão fe2 “her oeuvre includes not only fourteen plays but more than fifty short

stories and nine novels, many of which were highly acclaimed both by the

critics and by the reading public of her own time”.

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minina e de todas as implicações do lugar social da mulher no âmbito

cultural das primeiras décadas do século XX. A esse respeito, a pesquisadora Maria do Nascimento Filha pontua que

ao nos depararmos com as peças clássicas citadas por Aristóteles

(1985), vê-se que as ações dessas peças eram feitas por personagens

do sexo masculino, diferentemente das peças de Susan Glaspell, cujos

personagens principais são do sexo feminino, sendo este um fator determinante para a suposta falta de ação de suas peças, sobretudo porque as ações se referem ao contexto restrito da vida doméstica das

mulheres daquela época, diferente do mundo amplo ao qual os personagens masculinos das tragédias gregas, tinham livre acesso (Nascimento Filha, 2018, p. 15).

O valor inaugural da dramaturgia de Glaspell alcança seu ápice

com O limiar, em 1921, obra que se destaca pelo caráter moderno e

experimental. Trata-se do último trabalho da dramaturga para os

Provincetown Players, sendo aclamado pelo público da época como

uma das peças mais impressionantes que ocupou a cena teatral americana, quando encenada nos anos vinte, cujo viés transgressor

“abriu um debate que atravessou o Atlântico e que a tornou, e à sua

peça, o assunto do momento no circuito teatral de Nova York e de

Londres” (Sander, 2003, p. 21), dividindo opiniões entre o arrebatamento do público e as críticas fervorosas que o consideraram um

drama “nonsense histérico”, nas palavras do jornal escocês The

Scotsman Weekly, de 1925, que para alguns espectadores transformou o palco em um hospício, assim como em um templo sagrado

para outros (cf. Sander, 2003, p. 21-22). Nesse prisma, “com a sua

combinação de forma inovadora ousada e tema radical, O limiar não

é apenas o trabalho mais experimental de Glaspell para o palco, mas

também continua a ser o seu trabalho mais controverso”3 (Hinz3 “with its combination of daring novel form and radical subject matter,

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Bode, 2006, p. 15, tradução nossa). Como uma obra avessa ao drama

tradicional empreendida no contexto conturbado do período entre

guerras, a peça retrata as inquietações da protagonista que busca vislumbrar a transformação do papel social da mulher imersa em uma

vida sem sentido. E apesar de toda a contribuição e inovação para o

drama americano, “no entanto, hoje ela é praticamente desconhecida

[...]. Após a sua morte em 1948, suas peças de teatro e romances foram deixados fora de circulação”

4 (Ben-Zvi, 2007, p. 9, tradução nossa). Contudo, a peça em questão revela-se como um divisor de águas

para o drama moderno, cuja transfiguração da realidade “possui o

potencial de conduzir a reflexões importantes acerca das vivências de

homens e mulheres na sociedade americana da década de 1920”

(Moreira, 2018, p. 768-769). Sob essa perspectiva, o resgate da literatura da autora é fundamental para a compreensão das raízes modernas do teatro americano de autoria feminina.

A EXPRESSIVIDADE DRAMÁTICA SUBVERSIVA

O limiar é dividido em três atos, tendo como cenário uma estufa

no primeiro e no terceiro atos, intercalados pela representação do

segundo ato, que ocorre em uma torre ao lado da casa. No primeiro

ato da peça, o conflito se inicia a partir da entrada de Harry, o marido

de Claire, na cena, em que pergunta para Anthony, que trabalha para

ela no laboratório de plantas, o motivo pelo qual o aquecedor da casa

The Verge is not only Glaspell's most experimental work for the stage, it

also remains her most controversional one. Very complex in its dramatic

representation, the play takes up many og Glaspell's most prominent

issues”.

4 “yet today she is virtually unknown. […]. After her death in 1948, her

plays and novels were forgotten and allowed to go out of print”.

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foi desligado e funciona somente naquele ambiente. Anthony esclarece que o fez a pedido de sua esposa, pois o frio prejudica o crescimento e o desenvolvimento das flores e das plantas. Na sequência, Harry

pede à empregada para servir o café da manhã na estufa para ele e

para as visitas, por se tratar do único lugar da casa em que há aquecimento. Em contrapartida, Anthony responde que a Sra. Claire ficará zangada por todos ocuparem aquele espaço.

É interessante observar que quando a protagonista entra na estufa, de acordo com a descrição que se faz na rubrica, “a presença de

Claire dá outro tipo de vida ao recinto” (Gaspell, 2003, p. 121). Dessa

forma, ela não admite que o seu espaço de trabalho seja invadido,

tornando-se, assim, uma cozinha improvisada na qual o marido e os

convidados desejam tomar o café da manhã, pois ela é taxativa em

dizer a Harry: “Eu não vou permitir você aqui, no meu lugar” (Glaspell, 2003, p. 121).

O efeito cômico é desencadeado pelo estranhamento causado tanto pela presença de todas as personagens ocupando o espaço da estufa no qual é servido o café, como também pela conduta de Claire em

se preocupar somente com o aquecimento de seus experimentos. Tais

ações desarticulam os conceitos vigentes acerca do poder de decisão

da mulher, visto que a protagonista privilegia as suas flores em vez de

se adequar às normas dos códigos sociais. Sob essa ótica,

há normas de conduta social que se definem em oposição àquilo que

se reconhece como inadmissível e inaceitável. [...]. Toda coletividade,

não só as grandes como o povo no todo, mas também coletividades

menores ou pequenas [...] possuem algum código não escrito que

abarca tanto os ideais morais como os exteriores e aos quais todos seguem espontaneamente. A transgressão desse código não escrito é ao

mesmo tempo a transgressão de certos ideais coletivos ou normas de

vida, ou seja, é percebida com o defeito, e a descoberta dele, como

também nos outros casos, suscita o riso (Propp, 1992, p. 60).

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No que tange ao espaço em que a ação acontece, o laboratório de

experimentação de plantas e flores não se trata de uma “estufa onde

plantas são expostas, nem um espaço convencional para o seu cultivo, mas um local para experimentação com plantas” (Glaspell, 2003,

p. 116). Considerando o simbolismo das flores como metáfora do feminino, o espaço da peça, cujas características são enfatizadas pelo

narrador, alude à ideia de que tais “experimentos” que dão vida às

novas plantas e flores subvertem, por sua vez, as convenções da imagem da mulher na cultura machista, na qual o arquétipo do feminino

é frequentemente moldado às imagens de beleza, fragilidade e delicadeza. Ademais, o cultivo das plantas e flores no laboratório ocorre

em um período de inverno rigoroso, o que denota que essas espécies

fogem aos próprios padrões da natureza, como a feminilidade que

não se enquadra nas construções sociais. Desse modo, os experimentos de Claire “possuem justamente o objetivo de romper o padrão da

flor perfeita, a fim de que outras combinações sejam criadas” (Moreira, 2018, p. 284). Considerando o “fato teatral como relação entre

dois conjuntos de signos, verbais ou não-verbais” (Ubersfeld, 2005,

p. 9), no desvelar da cortina na cena inicial da peça, “a luz é dirigida

para o alto e atinge as longas folhas e o enorme botão brilhante de

uma planta estranha cujos galhos retorcidos se projetam para a frente, à direita. Nada mais é visível, somente essa planta e sua sombra”

(Glaspell, 2003, p. 115). Nesse prisma, o jogo de luz que permeia o

cenário revela que a iluminação da cena focaliza apenas uma flor,

enquanto tudo ao redor ainda permanece na escuridão, o que denota

a clareza de ideais do processo criador de Claire, que se contrapõe à

visão limitada das demais personagens. Isto posto, os signos teatrais

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que compõem a cena, marcados por didascálias, imprimem significação ao texto literário.

A partir da premissa de que “no campo da representação, os signos, verbais ou não, são em princípio todos sinais, na medida em que

são teoricamente todos intencionais” (Ubesrfeld, 2005, p. 11, grifos

da autora), as imagens simbólicas da cena são construídas por meio

de diálogos em que Claire se expressa com uma linguagem metafórica, nem sempre compreendida pelo marido e pelos convidados. Nesse ínterim, é interessante observar nuances de comicidade quando a

protagonista não permite que Harry busque sal na cozinha para manter a porta fechada, visto que o cômico se expressa através de “um

revés nas coisas miúdas do dia a dia do homem, provocado por circunstâncias igualmente banais” (Propp, 1992, p. 94). Na cena, Claire

responde ao marido “Ah, Harry! Tenta comer seu ovo sem sal. Por

favor – Por favor tenta sem o sal!” (Glaspell, 2003, p. 124). No entanto, Harry se mostra inflexível ao responder que “[...] um ovo requer

sal” (Glaspell, 2003, p. 124). Partindo-se da premissa de que “o diálogo é sempre a voz de um outro — e não somente a voz de um outro,

mas de muitos outros” (Ubersfeld, 2005, p. 7), a expressividade da

cena reflete o pensamento restrito e superficial do marido que não

consegue ter uma perspectiva diferente no que diz respeito ao que

foge do habitual, bem como não compreende as divagações da esposa

acerca de tais questões, aludindo à ideia de experimentação que, na

peça, apresenta-se como símbolo de transgressão. Assim, há diferentes aspectos que convergem para o amplo sentido de experimentação

de novos caminhos, novos saberes e novas criações de espécies de

plantas e flores advindas da percepção transgressora da protagonista.

Dessa forma, Claire responde ao marido e ao convidado:

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CLAIRE: Mas seu espírito não se eleva nem um pouco com esse sal

que lhe é negado?

HARRY: Nem um centímetro. (Retorna ao seu café).

CLAIRE: E feliz – feliz consigo mesmo por não se elevar. É claro que

esse é o espírito certo – porque não se eleva (Mais alegre) Mas Dick,

você já deve ter provado o seu ovo sem sal.

DICK: Vou provar agora. (Se dirige à mesa do café)

CLAIRE: Você já deve ter provado muitas coisas. Não é assim que se

sai do normal e se entra no caminho da perversão?

HARRY: Claire.

DICK: (Afastando o prato com o ovo) Se é assim, eu prefiro esperar

pelo sal.

HARRY: Claire, há um limite.

CLAIRE: E é nisso que eu estava pensando. Para a perversão também

há um limite. As muralhas são intransponíveis. Se alguém jamais se

aventura a sair, suponho que seja – inesperadamente, e talvez – um

tanto terrível.

HARRY: Sair para onde?

CLAIRE: (Com um sorriso iluminado) Para onde você, meu querido,

jamais irá (Glaspell, 2003, p. 125).

Em relação aos elementos que compõem a cena, constata-se que

“emitidos voluntariamente, com plena consciência de comunicar, os

signos teatrais são perfeitamente funcionais” (Kowzan, 1978, p. 10).

Desse modo, o tom irônico das respostas de Claire é permeado de

crítica ao que é considerado imutável e limitante, cujo sorriso iluminado evidenciado pelo narrador lança luz na ideia de questionar as

limitações e convencionalidades pré-estabelecidas. Nesse viés, a comicidade em O limiar representa o desvio dos moldes construídos

sob a égide da hegemonia patriarcal, visto que Claire destoa da construção cultural de mulher restrita aos papéis sociais de mãe e esposa.

Diante disso, ela é incompreendida por todos que não conseguem

perceber suas reais motivações de se desvencilhar das amarras culturais estabelecidas como as únicas possibilidades de autorrealização

feminina.

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A LINGUAGEM DAS FLORES COMO METÁFORA DO FEMININO

Na trama dramática, a linguagem metafórica utilizada por Claire

toma como objeto representativo as flores que cultiva para gerar novas espécies que, no entanto, não denotam um trabalho contemplativo, ou uma forma de utilizar a jardinagem como uma simples distração, como sua filha Elisabeth se refere ao trabalho da mãe. A representação das flores que devem ir além dos padrões de beleza ou daquilo que é comumente esperado dentro de formas estabelecidas,

enquanto signo do feminino, revela que “o objeto pode ser também

metonímia de uma personagem ou de um sentimento [...]. A encenação joga com este tipo de evocação metonímica, mesmo se não são

textuais” (Ubersfeld, 2005, p. 121). Nesses termos, a peça articula tais

significados, porém, em uma perspectiva subversiva, uma vez que, ao

considerar o campo semântico das flores à submissão feminina e à

domesticidade, “O limiar de Glaspell parece incomum na sua utilização das flores como forma de experimentação da personagem principal e como símbolo do feminismo”

5 (Rhyner, 2012, p. 189, tradução

nossa). Logo, a protagonista busca novos cruzamentos e fragrâncias

de flores para quebrar estigmas: “– a flor que eu criei e que está além

do que as flores têm sido. O que ela se tornou deve trazer a fragrância

do que ela deixou para trás. Mas nenhuma fragrância definida, nada

que limite ou aprisione” (Glaspell, 2003, p. 126). No excerto em

questão, o signo teatral evoca múltiplos significados em relação à

simbologia das flores como imagens do feminino. Dessa forma, as

flores representam objetos teatrais que engendram significação à

5 “Glaspell’s The Verge seems unusual in its use of flowers as the form of

experimentation of the main character and as a symbol for feminism”.

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expressão teatral, visto que “o objeto tem, portanto, um funcionamento complexo, extremamente rico, do qual as tendências modernas do teatro procuram extrair todas as possibilidades” (Ubersfeld,

2005, p. 120). A transgressão das convenções é simbolicamente representada pelas experiências com as flores pela protagonista, cuja

ânsia de ultrapassar as fronteiras impostas para o feminino expressase na obra dramática como um “problema sem nome”, preconizado

por Betty Friedan, uma das pioneiras da segunda onda do movimento feminista nos Estados Unidos, em sua obra A mística feminina,

publicada em 1969. Nos termos da autora,

qual era exatamente esse problema sem nome? Quais as palavras

usadas pelas mulheres ao tentar descrevê-lo? Às vezes diziam: «Estou

me sentindo vazia... incompleta». Ou então: «Tenho a impressão de

não existir». Às vezes apagavam a sensação com um tranqúilizante,

julgavam que o problema relacionava-se com o marido ou os filhos.

Ou então que precisavam redecorar a casa, mudar-se para um bairro

mais agradável, ter um caso com alguém, ou mais um filho. De quando em quando consultavam um médico, apresentando sintomas que

assim descreviam: «Sinto-me cansada... Zango-me tanto com as crianças que chego a me assustar... Tenho vontade de chorar sem motivo» (Friedan, 1971, p. 20-21, grifos da autora).

Nesse aspecto, é interessante frisar que o teatro de Susan Glaspell

antecipa a temática que, posteriormente, é retratada por Friedan, que

postula que “o âmago do problema feminino não é de ordem sexual, e

sim de identidade — uma atrofia ou evasão do crescimento, perpetuada pela mística” (Friedan, 1971, p. 68). Em O limiar, essa questão é

evidenciada sobretudo quando Harry comenta com os amigos que

não consegue entender as razões que motivam as inquietações da

esposa: “HARRY: Mas o que é que perturba Claire? Eu me pergunto.

Pelo que eu vejo ela tem tudo” (Glaspell, 2003, p. 141). Como uma

estratégia para curar o mal que a aflige, ele convida um médico para

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o jantar: “– ultimamente, eu não consigo entender o que se passa

com Claire. Eu queria que Charles Emmons a examinasse – ele já

consertou muitos que voltaram da guerra aos pedaços. Claire precisa

de algo que afine seus nervos” (Glaspell, 2003, p. 141). Assim, as atitudes de Claire em valorizar as flores e o seu trabalho em vez de se

dedicar às obrigações como esposa ressoam como um comportamento doentio, que necessita de tratamento, pois, para o marido, somente a insanidade pode justificar tais atitudes. É importante destacar

que o olhar incompreensivo das personagens masculinas se estende,

por sua vez, ao universo feminino da trama teatral, visto que a irmã e

a filha também não entendem a sua motivação para criar novas espécies de flores.

Tais indagações acerca da concepção de feminilidade da protagonista figuram como uma tentativa de dar voz aos anseios de liberdade

de agir e pensar, contrariando os ditames patriarcais., sobretudo

porque “a ‘natureza feminina’ precisaria ser domada pela sociedade e

pela educação para que as mulheres pudessem cumprir o destino ao

qual estariam naturalmente designadas. (Kehl 2007, p. 48, grifos da

autora). Dessa forma, Claire não se enquadra na concepção de feminilidade construída pelas convenções patriarcais, o que entra em

choque com a expressividade feminina da irmã Adelaide, que se responsabilizou pela educação de sua filha Elizabeth, fruto de seu primeiro casamento. Adelaide é uma mulher abnegada que dedica a sua

vida à família. Nas palavras da protagonista: “CLAIRE: Minha irmã é

talhada para criar filhos” (Glaspell, 2003, p. 149), evidenciando que

Adelaide figura como a mulher que se anula em prol das obrigações

de mãe e esposa, cujos papéis sociais constituem a sua feminilidade.

Diante disso, Claire sente-se incomodada com a presença da filha,

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uma vez que ela foi moldada justamente pelos valores sociais que

tanto a incomodam. Tal comportamento é visto como anormal por

parte de sua irmã, que considera “ADELAIDE: uma mãe que não

ama sua própria filha! Você é uma mãe desnaturada, Claire. CLAIRE:

Pelo menos isso me livra de ser uma mulher natural” (Glaspell, 2003,

p. 166). Ao rejeitar a condição de mulher normal, Claire desarticula

os ideais de feminino construídos pela hegemonia falogocêntrica,

que, de acordo com os pressupostos teóricos de Sandra Gilbert e Susan Gubar, a respeito da literatura de autoria masculina, restringem

a mulher às imagens de anjo e monstro. Nesse sentido, o estereótipo

angelical se caracteriza pela submissão, beleza e passividade, que se

contrapõe à faceta monstruosa do feminino, marcada pela autonomia, agressividade e assertividade (cf. Gilbert; Gubar, 1984, p. 46).

Ao questionar as obrigações da maternidade, Claire critica a passividade da filha, pois “ela é como um dos retratos pintados pelo pai dela. Nunca me interessaram. Ela também não. (Olha para os desenhos

que, ao contrário, a interessam)” (Glaspell, 2003, p. 158). Nesse aspecto, a cena dramática enfatiza os questionamentos da protagonista

sobre o sistema opressor que rege as atitudes da mulher em relação

às escolhas que possam dar sentido à sua vida, e que, no entanto,

sufocam a sua individualidade e subjetividade, restringindo-lhe a

liberdade.

A TORRE COMO PALCO DE DESCONSTRUÇÃO

No tocante ao cenário, o segundo ato da peça é delineado por uma

torre que tem um formato distorcido, o que motivou Claire a comprar

a sua casa. No entanto, sua irmã considera a torre como um lugar

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estranho, como descreve o narrador quando ela entra nesse ambiente: “ADELAIDE: (Mais uma vez seus olhos rejeitam as irregularidades da torre) [...], confesso que não gosto. Uma torre redonda deveria se manter redonda” (Glaspell, 2003, p. 157). Por outro lado, a

predileção por uma torre irregular revela o desejo de a protagonista

romper com os modelos estéticos, evocando a ideia de transgressão

das convenções, pois, ao longo da peça, a linguagem metafórica de

Claire evidencia o seu inconformismo diante da estagnação condicionada pelos padrões sociais, questionando, dessa forma, “CLAIRE:

[...], por que o tecido da vida tem que – se congelar em um padrão?”

(Glaspell, 2003, p. 170). Sob essa perspectiva, a imagética da torre na

cena dramática mostra, por sua vez, que o símbolo teatral “de acordo

com seu funcionamento e o uso que se faz dele, tanto ou mais do que

por sua natureza. [...] mais do que remeter a diegese, serve para

anunciar ou articular os episódios do relato” (Ubersfeld, 2005, p. 12).

É interessante observar que tanto a torre como a estufa são lugares

em que Claire está em contato com a sua subjetividade, figurando

como espaços femininos, que, no entanto, são invadidos “para confrontá-la e fazer pressão para que reconheça que agiu de forma irracional e retorne à ‘normalidade’” (Moreira, 2017, p. 86-87, grifos da

autora). Nesse ínterim, “o que Claire gosta na torre é o fato de representar o desvio de modelos antigos que ela tenta encontrar tanto para

as suas plantas como para a sua própria vida”

6 (Hernando-Real,

2011, p. 77). Nesses termos, Glaspell traz à baila em sua dramaturgia

princípios subversivos inspirados pelo teatro épico revolucionário de

Brecht, sobretudo por lançar luz em temas fundamentais de sua épo6 “What Claire likes about the tower is that it represents the deviation from

old forms she tries to find both for her plants and for her own life”.

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ca, e que perduram ainda na contemporaneidade, a partir do “intuito

didático do teatro brechtiano, à intenção de apresentar um ‘palco

científico’ capaz de esclarecer o público sobre a sociedade e a necessidade de transformá-la” (Rosenfeld, 1965, p. 148, grifos da autora).

Desse modo, a revolução empreendida pela dramaturga revela-se

tanto no aspecto formal como no conteúdo de sua expressividade

teatral, recriando, assim, o universo feminino tal qual era compreendido, como uma forma de contestação dos preceitos préestabelecidos cuja “ênfase especial da peça em experiências psicológicas e biológicas deu-lhe a oportunidade de criar dois cenários brilhantes e simbólicos, [...] que constituem a técnica mais inovadora da

peça”7 (Waterman, 1979, p. 20, tradução nossa). Nsse viés, a autora

apresenta a realidade opressora por trás das máscaras sociais, o que

a consagrou como uma das escritoras mais importantes do teatro

moderno americano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio das análises propostas, pode-se conjecturar que o título

da peça imprime a ideia do limiar articulado ao feminino sob diferentes primas que, por sua vez, evidencia a condição da mulher sob a

égide patriarcal. Permeada de nuances críticas, a dramaturgia de

Glaspell revela a fronteira que se estabelece entre a feminilidade livre

de toda e qualquer imposição que anula a individualidade da mulher

e as construções sociais do feminino pelo patriarcado, entre o paradigma da mulher como objeto e sujeito de sua própria história, entre

7 “the special emphasis of the play on psycological and biological

experiments gave her an oppotunity to creat two brilliant and symbolic

stage sets, [...] that comprise the most innovative techinque in the play”.

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as imagens extremas do feminino articuladas aos estereótipos de anjo e monstro, e, sobretudo, o limiar entre a sanidade e a loucura que

emoldura os papéis femininos na sociedade como um tema precursor

para grandes transformações no contexto americano, como advento

da segunda onda do Feminismo. Embora silenciada por muito tempo, a arte dramática de Susan Glaspell se faz presente como um legado que ainda ressoa, por descortinar no palco o poder de ação restrito ao universo masculino, cuja transgressão da forma convencional

da ação dramática lhe custou o esquecimento e a desvalorização de

suas obras. Em uma perspectiva corajosa e inovadora, sua dramaturgia inspirou e colocou em cena o teatro moderno de autoria feminina,

para além do limiar convencional e circunscrito do lugar da mulher

na sociedade.

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66

Spectrality effects in Fala baixo, senão eu grito: a study of the

metaphorical presence of objects

1

“MARIAZINHA – Onde será que eles estão? Onde será que eles estão?

(angústia) Onde será que eles estão? HOMEM – Quem?

MARIZINHA – Eles, os defuntos. Os ce-mi-té-ri-os!”

(Leilah Assumpção)

Resumo: O presente ensaio tem por objetivo analisar a presença dos objetos

que compõem o espaço dramático da peça Fala baixo, senão eu grito, escrita

pela dramaturga brasileira Leilah Assunção, em 1969. Observamos que os

objetos, metaforicamente dispostos na fábula, figuram uma presença espectral que atua como a terceira personagem da obra: a família patriarcal burguesa, ela mesma uma analogia à ditadura militar brasileira, espectro que

então assombrava a vida do país.

Palavra-chave: Leilah Assunção; Fala baixo, senão eu grito; Objetos metafóricos; Dramaturgia feminina; Teatro brasileiro.

Abstract: The purpose of this essay is to analyze the presence of the objects

that make up the dramatic space of the play Fala Baixo, senão eu grito, written by the Brazilian playwright Leilah Assunção, in 1969. We observe that

the objects, metaphorically arranged in the fable, represent a presence spectral that acts as the third character of the work: the patriarchal bourgeois

family, itself an implicit association with the Brazilian military dictatorship,

a specter that haunted the life of the country at the time.

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), no qual

pesquisa a dramaturgia de Leilah Assumpção na linha de pesquisa História e

Historiografia do Teatro e das Artes. Mestra em Artes Cênicas pelo Programa

de Pós-Graduação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Bacharel

em Interpretação teatral pela Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG). E-mail: [email protected]

P:69

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

67

Keywords: Leilah Assunção; Speak low, or else I scream; Metaphorical objects; Female dramaturgy; Brazilian theater.

APRESENTAÇÃO

Leilah Assumpção é uma dramaturga brasileira que estreou nos

palcos nacionais em 1969 com a peça Fala baixo, senão eu grito, a

qual rendeu à autora o prêmio Molière e o prêmio da Associação Paulista dos Críticos Teatrais, ambos na categoria de melhor autor do

ano. Ao lado de Isabel Câmara, Consuelo de Castro, José Vicente e

Antônio Bivar, Leilah Assumpção compõe o grupo intitulado por Sábato Magaldi como Nova Dramaturgia, denominação que buscou

demarcar a emergência de jovens autores no panorama do teatro nacional no final da década de 60. Dois aspectos fundamentam a aproximação proposta por Magaldi: o caráter de estreia desses nomes na

dramaturgia brasileira e a inovação da linguagem dramatúrgica refletida em suas obras.

Essa nova geração de autoras e autores, também conhecida como

“geração de 69”, é fruto de um contexto histórico, político e cultural

mais amplo. Em 1964, o Brasil sofreu um golpe militar que derrubou

o governo de João Goulart e instaurou uma ditadura no país. Em decorrência de cassações, perseguições, censura e outras severas medidas, diversos setores da sociedade sofreram restrições no que tange à

liberdade de expressão e ao exercício de seus direitos. Os setores cultural e artístico, no entanto, se fortaleceram diante do ímpeto revolucionário e da necessidade de assinalar um compromisso de resistência frente ao quadro político instaurado. Nesse contexto, artistas e

intelectuais de esquerda se mobilizaram e se engajaram em suas lutas

políticas, contribuindo para a formação de uma ampla frente de opo-

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sição ao regime militar. No campo teatral, grupos como Arena, Oficina e Opinião criaram seus espetáculos com base em estruturas e discursos contestatórios, culminando no que ficou conhecido como teatro de resistência. Apesar das restrições, a produção cultural e artística se manteve ativa e politicamente engajada nos anos que se seguiram ao golpe de 64.

Em 1968, porém, foi promulgado o Ato Institucional de nº 5, decreto de maior cunho repressivo e violador dos direitos de expressão

imposto pela ditadura militar brasileira. Essa medida teve como objetivo castrar a intervenção dos setores da sociedade que se mobilizaram em prol do despertar da consciência social da população. Nesse

sentido, a cultura passou a ser vista como uma ameaça ao regime

autoritário e o teatro se tornou um dos alvos de ataques das forças

militares e da censura, o que proporcionou um movimento de dispersão da classe teatral frente às lutas políticas. Grupos como Arena,

Oficina e Opinião, símbolos de resistência, tiveram suas atividades

interrompidas em decorrência do cerceamento de seus repertórios e

da perseguição aos artistas.

Mas, conforme observado por Pricila Del Claro (2015), esse não

foi o ponto final do teatro brasileiro de então. Jovens autores como

Leilah Assumpção, Isabel Câmara, Consuelo de Castro, José Vicente

e Antônio Bivar despontaram no cenário nacional com uma proposta

teatral muito diversa do que vinha sendo feito até o momento. Uma

vez que não era mais possível expressar a consciência crítica em discurso claro e aberto, esses autores se distanciaram das estruturas

contestatórias que caracterizavam o teatro político do período e apostaram na expressão dos conflitos do indivíduo, revelando os entraves

ideológicos e sociais pelas entrelinhas da subjetividade. A Nova Dra-

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69

maturgia demarca uma importante contribuição ao panorama teatral

daquele momento, na medida em que proporcionou o alargamento

das fronteiras da produção dramatúrgica e cênica do país.

A peça teatral Fala baixo, senão eu grito, escrita por Leilah Assumpção em 1969, é fruto dessa experimentação de linguagem dramatúrgica desencadeada pelo acirramento da ditadura militar no

Brasil. Trata-se de uma representação contundente do estado de sufocação no qual viviam os brasileiros naqueles anos de repressão. Ao

expor os conflitos de Mariazinha Mendonça de Morais, uma mulher

solitária e reprimida que vive sem qualquer perspectiva de realização

pessoal e profissional, Leilah Assumpção denuncia os abusos e as

consequências do poder autoritário. A pesquisadora Ana Lúcia Vieira

de Andrade (2005) observa que, ao retratar a condição submissa da

mulher em sociedade, a obra faz eco à falta de liberdade política imposta pela ditadura militar que assolava a vida do país. Mas, já que

não era possível abordar essa problemática mediante um discurso

literal e transparente, a metáfora, largamente utilizada na construção

da obra, se revelou como um recurso linguístico capaz de possibilitar

a autora expressar o seu pensamento crítico por vias indiretas, o que

permitiu que a peça driblasse as amarras da censura e se tornasse um

sucesso de bilheteria e público nos palcos da capital paulista.

Refletindo sobre a dimensão poética da dramaturgia leilahniana,

Welington Andrade afirma que “Alguns elementos constituintes do

melhor da produção dramatúrgica de Leilah Assumpção estão presentes na cuidadosa representação dos objetos que compõem materialmente o universo das personagens” (ANDRADE, 2013, p. 252). Isso

acontece porque tais objetos não configuram elementos meramente

decorativos, mas constituem signos construtores de sentidos no âm-

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70

bito da narrativa. Sendo assim, o que propomos a seguir é um estudo

dedicado aos objetos que compõem o espaço dramático da peça Fala

baixo, senão eu grito, averiguando de que modo esses objetos, metaforicamente elaborados na fábula, revelam uma instância espectral

que atua como a terceira personagem da obra, a família patriarcal

burguesa, ela mesma uma alegoria do autoritarismo instaurado no

Brasil com o golpe de 1964.

AQUI JAZ MARIAZINHA MENDONÇA DE MORAIS

A peça narra a história de Mariazinha Mendonça de Morais, uma

mulher sem idade definida que vive solitariamente em um quarto de

pensionato de moças na cidade de São Paulo. Mariazinha representa

o estereótipo da solteirona dos anos sessenta: é virgem, não se casou

e não constituiu família. Em termos profissionais, ocupa um cargo

público secundário, cuja renda obtida é direcionada para pagar as

prestações de uma quitinete comprada há cinco anos – aquisição

que, ironicamente, lhe traz a ilusão de alguma satisfação pessoal diante dos valores burgueses herdadas por uma tradição familiar. Mariazinha é uma mulher absolutamente sozinha, não tem família nem

amigos. Sua única diversão é assistir ao programa de Hebe Camargo

todas as noites antes de dormir. Reprimida em todas as instâncias de

sua vida, Mariazinha configura um projeto de mulher que não se realizou, que é inteiramente desprovida de autoconhecimento e de autonomia em relação à própria existência.

O conflito central da peça tem início no momento em que Mariazinha se encontra em seu quarto, preparando-se para dormir, quando, subitamente, é surpreendida pela invasão de um homem com um

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revólver na mão, personagem denominada apenas como Homem. O

Homem, ao contrário de Mariazinha, não tem um nome, não tem

uma história, não apresenta contornos psicológicos e nem uma personalidade definida. Trata-se de um “ladrão em dia de folga”, conforme ele mesmo o denomina. Esse ladrão invade o quarto da solteirona, mas não rouba nenhum de seus pertences: “O assalto é figurativo, já que a intenção do homem é invadir, metaforicamente, a cabeça de Mariazinha e de lá roubar suas certezas, assaltar seus pensamentos, usurpar sua inocência” (DEL CLARO, 2015, p.55). A partir

daí, o que acompanhamos é uma reviravolta provocada no quarto e

na mente de Mariazinha, desencadeada pela presença de um ladrão

que emerge para questionar a ordem vigente, na tentativa de suscitar

o senso crítico da protagonista diante da sua condição de aprisionamento e alienação.

Refletindo sobre a questão da espacialidade em Fala baixo, senão

eu grito, a pesquisadora Ana Lúcia Vieira de Andrade (2005) afirma

que a história de Mariazinha é escrita pelo espaço que a cerca. De

fato, o espaço dramático da obra apresenta tamanha força discursiva

que acaba agindo como uma personagem viva, passível de análises e

discussões. Observemos a rubrica que descreve o quarto da protagonista, ambiente em que transcorre a peça:

A cortina vai abrindo. Uma luzinha azul ilumina fracamente um quarto feminino, onde o mau gosto e o exagero dão o aspecto de absurdo,

mas dentro de uma realidade possível. A cama com colcha de chenile,

coberta com rendão. Um guarda-roupa antigo azul, ao lado de um relógio enorme tipo carrilhão. O despertador e o arranjo de flores naturais sobre o criado-mudo. Laços de fita arrematam os móveis, a janela, a porta, que são também enfeitados e pintados com flores, assim

como as bolas de gás penduradas no quarto todo. Flores de papel, flores e mais flores, colorido, bonecas, balões e rendinhas colocados no

quarto da forma mais absurda e mais organizada do mundo... (ASSUMPÇÃO, 2010, p. 98).

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72

A composição desse quarto abarca a coexistência entre objetos antigos, herdados dos pais, e uma infinidade de adereços infantis que

Mariazinha cuidadosamente dispõe pelo espaço. Essa configuração

nos faz inferir que a protagonista é uma mulher cujo vínculo com o

passado, com a infância e com a tradição familiar não apenas não foi

rompido, como permanece sendo cultivado por ela diariamente. O

solilóquio de abertura da peça nos revela, de imediato, o modo como

esses objetos se distanciam de uma função supostamente descritiva e

alcançam o status de objetos-personagens ao longo da narrativa:

MARIAZINHA – “Um bom sono pra você... e um alegre despertar”

(levanta-se e guarda a televisão que está sobre o carrinho, como se

fosse um bebê). “Dorme nenê, que a cuca vem pegar papai foi na roça,

mamãe no cafezal.” (pausa) Aspira oxigênio e desprende gás carbônico. A noite é prejudicial à saúde. O gás carbônico é prejudicial à saúde... (para as flores, no criado-mudo) Ah... estão aí felizes da vida,

pensando que eu esqueci, né? Quase, quase, mas eu não esqueci não.

Já, já para o banheiro! (ASSUMPÇÃO, 2010. p. 98-99).

Notemos que é por meio do processo de personificação que Mariazinha presentifica no espaço os seus filhos que jamais existiram: a

televisão é colocada sobre um carrinho e tratada como se fosse um

bebê, que adormece ao som de uma cantiga de ninar. As flores também são personificadas como se fossem crianças, as quais Mariazinha se encarrega de encaminhar ao banho todas as noites. Embora a

protagonista seja uma mulher absolutamente sozinha, seu comportamento revela que ela elaborou para si um modo metafórico de reproduzir a estrutura familiar da qual ela não conseguiu se desvencilhar. Assim, ao longo de toda a peça, Mariazinha atribui características humanas aos móveis e objetos do quarto que, então, começam a

povoar a narrativa como objetos-personagens capazes de agir no es-

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paço físico e mental da protagonista, delineando, gradativamente, o

espectro familiar que emerge para compor a fábula da peça.

Sobre a compreensão do conceito de “metáfora” interessa-nos a

discussão proposta pelos teóricos George Lakoff e Mark Johnson em

obra intitulada “Metáforas da vida cotidiana” (2002). Segundo a tese

desses autores, a metáfora não é apenas de um ornamento linguístico

como há muito se acreditava, mas integra a experiência cotidiana do

sujeito e alcança o status de uma operação cognitiva, por meio da

qual é possível “compreender e experienciar uma coisa em termos de

outra” (LAKOFF E JOHNSON, 2002, p.48). Nesse sentido, a metáfora não se restringe à linguagem, mas integra também nossos pensamentos e ações, constituindo um componente essencial do modo ordinário de compreendermos o mundo e a nós mesmos. Ora, essa

concepção lança luz à nossa reflexão na medida em que nos auxilia a

observar a atitude de Mariazinha e a compreendê-la como uma personagem que pensa e age metaforicamente por meio do exercício da

personificação.

O nome “Mariazinha”, no diminutivo, sinaliza uma importante

pista sobre o modo como essa personagem compreende e age no

mundo. Ao viver aprisionada no próprio passado, ela não se deu conta de que cresceu. Seu universo material e mental ainda é o de uma

criança, pois a ela foi negado o direito de despertar a própria sexualidade e de alcançar sua autonomia como mulher. O exercício da personificação, portanto, ocorre mediante brincadeiras entremeadas por

canções infantis, por meio das quais ela consegue apenas esboçar

para si determinadas experiências da vida adulta, como a experiência

de mãe e a experiência de esposa, sem jamais tê-las vivenciado de

fato. É brincando com os móveis e objetos de sua infância que Maria-

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zinha não somente inventa filhos e marido virtuais como também

invoca todo um passado familiar, povoando sua vida solitária com a

presença de seres espectrais:

MARIAZINHA – [...] Eu não sou uma mulher sozinha! Tenho tudo!

Posição! Conforto, segurança, amor, tenho amigos...

HOMEM – (corta rápido) Marido, filhos, pai, mãe, colega, irmão, irmã, vizinha, empregada, avó...

MARIAZINHA – É! Minha família! Os laços de sangue! A voz do sangue! Amigos, colegas! Todos me querem bem! Todos me compreendem! Todos estão sempre comigo! Aqui... aqui comigo... junto de

mim... (aponta o quarto todo, apalpa os móveis, abraça-os, cumprimenta-os, beija-os) Perto de mim, sempre! Sempre! (ASSUMPÇÃO, 2010. p. 115).

Vimos, na rubrica de apresentação do espaço dramático da peça,

que os móveis do quarto de Mariazinha são todos arrematados por

laços de fitas. Esses laços configuram também um processo metafórico pelo qual a personagem se mantém atada às correntes familiares

que a aprisionam em tradições e valores morais ultrapassados. Mariazinha foi ensinada que deveria ser uma boa moça, sempre religiosa e

dedicada aos cuidados da família e do lar, atributos que contribuíram

para impedir a sua livre manifestação como mulher e como ser humano no mundo. A “voz do sangue” a que ela se refere, portanto, é

uma voz reguladora do comportamento feminino que ecoa diariamente pela presentificação dos seus familiares na mobília do quarto,

da qual ela não consegue se desvencilhar. Podemos observar, desse

modo, certos efeitos de espectralidade produzidos pela presença metafórica dos objetos na peça, uma vez que é por meio deles que a família patriarcal burguesa, impregnada de valores repressores, se faz

ouvir. Essa família é o grande fantasma que sonda o cotidiano de Mariazinha, mantendo-se em posição de vigilância e cerceamento de sua

livre expressão como sujeito no mundo.

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Diante disso, cabe ainda ponderarmos sobre a representação da

figura paterna na obra, observando de que modo o pai de Mariazinha

se apresenta como personagem espectral no enredo da peça. Na

composição da mobília do quarto há um objeto grande, imponente,

detentor das horas e do tempo: o relógio carrilhão. Esse relógio é o

objeto de maior valor herdado pela protagonista e, não à toa, constitui o objeto da associação metafórica por meio da qual ela personifica

a figura do pai. É para o relógio-pai que Mariazinha se direciona para

tomar benção, receber ordens e a elas assentir com a cabeça em sinal

de extrema obediência: “Mariazinha – [...] (para o relógio grande,

assentindo com a cabeça) Certo, certo, está na hora de dormir, tem

razão” (ASSUMPÇÃO, 2010, p. 100). Ao longo da peça, nos damos

conta de que, além de muito antigo, esse relógio está velho, empoeirado e atrasando o andamento das horas. Trata-se do símbolo do autoritarismo e da estagnação de uma tradição que impossibilitam Mariazinha de seguir adiante e viver o seu próprio tempo.

Assim, o quarto de Mariazinha, antes solitário, torna-se um espaço povoado por seres espectrais manifestados na presença de objetos

personificados. Se, inicialmente, somos informados de que Mariazinha e Homem constituem as únicas personagens da peça, nos deparamos com a aparição de uma família virtual cuja força da ação dramática sobre a protagonista é tão ou mais eficaz, talvez, do que se

houvesse a presença de familiares literalmente representados. Imersa no convívio com os fantasmas do passado, Mariazinha sucumbe

em vida, na medida em que se deixa minar por valores e condicionamentos castradores de si. Em outras palavras, a personagem, juntamente com os seus objetos-familiares, assume também um caráter

espectral diante da própria existência, a qual ela somente vê passar e

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permanece incapaz de adotar qualquer postura ativa e transformadora da realidade.

A chegada da personagem Homem no quarto de Mariazinha promove a desestabilização de todo esse mundo de ilusões apresentado.

O Homem invade o quarto da solteirona e se apresenta como um “ladrão em dia de folga”, uma vez que seu interesse não consiste em lhe

roubar os pertences, mas sacudir as poeiras que impedem Mariazinha de olhar para a vida com clareza, autonomia e liberdade. Seu

intuito é despertar a protagonista para a realidade da vida, tirá-la do

sono profundo característico de uma existência mortífera. Quando

afirma para ela que os móveis são apenas móveis, que balões são balões e fitas coloridas são apenas fitas coloridas, esse ladrão está tentando roubar as suas fantasias, destruir suas crenças e exorcizar os

fantasmas que a aprisionam em um mundo de ilusões. O alvo dos

seus ataques é, portanto, a mobília do quarto que ele começa a revirar até promover a mais caótica desordem espacial, concretizando

uma ação de questionamento aos valores herdados pela protagonista.

Em dado momento da peça, o Homem teatraliza uma espécie de bazar beneficente com os móveis e objetos do quarto, fazendo saltar

diante de Mariazinha todas aquelas inutilidades materiais e morais

as quais ela se mantém apegada.

Em reação às diversas provocações advindas do Homem, Mariazinha assume, finalmente, uma inusitada atitude de revolta. Juntos,

eles realizam ações de desordenar e quebrar os móveis e objetos do

quarto, o que representa uma primeira tentativa de libertação da protagonista. A convulsão do espaço dramático reflete o desejo de Mariazinha de se desprender das amarras familiares que, ao longo de toda

vida, a mantém aprisionada e limitada em sua própria existência. O

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cume de sua ação subversiva é quando ela consegue, não sem hesitar,

atacar o relógio-pai, último objeto-personagem destruído:

“MARIAZINHA – (joga alguma coisa sobre o relógio) ÉÉÉÉÉÉ! Ele

também! É isso mesmo! Cala a boca! Você também! Arraso tudo! Hoje não sobra nada!, nada, nada! Quebra o relógio. Silêncio. Grande

pausa. Os dois param” (ASSUMPÇÃO, 2010, p. 127).

Quando Mariazinha se encoraja a calar “a voz do sangue”, ela abre

espaço para descobrir o som da própria voz. Dentro do quarto todo

devastado, as duas personagens, agora livres e felizes, teatralizam

entre si as mais diversas situações para que Mariazinha respire outros ares e experimente existir em liberdade. Sem a presença vigilante do espectro familiar, a protagonista consegue vislumbrar a manifestação da mulher que ela almeja expressar no mundo: “Ai! Sou intelectual! Bonita! Intelectual bonita! [...] Livre! Inteligente! Bonita!

(começa a rebolar com os livros na mão)” (ASSUMPÇÃO 2010, p.

147). Ao fim da peça, Mariazinha é capaz de verbalizar pensamentos

antes inimagináveis: “Se for pra ouvir disco, eu não vou, só se for pra

trepar, pronto!” (ASSUMPÇÃO, 2010, p. 149) e dispara um palavrão:

“Porra! Porra! Porra! Porra! Porra! Porra! Porra! Porrrrrrraaa!!!!”

(ASSUMPÇÃO, 2010, p. 156), enquanto a autora indica em rubrica:

“Mariazinha já não é mais ridícula. Os cachinhos desfizeram-se, os

laçarotes, os balões estouraram, assim como o seu mundo todo. Ela é

agora qualquer um da plateia” (ASSUMPÇÃO, 2010, p. 157).

Mas o final da peça denuncia os limites da suposta liberdade vivenciada pela protagonista no decorrer daquela noite. Quando o dia

amanhece, Mariazinha observa todos aqueles objetos desordenados e

começa a retomar sua atitude metafórica, personificando novamente

a sua família no espaço. Não se trata, no entanto, de uma regressão à

estaca zero, mas da instauração de uma ambiguidade: o quarto não é

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mais o mesmo e Mariazinha já não se relaciona com o espectro familiar tal como no início da peça. Embora subjugada: “(sorrindo para o

relógio) – Posso ir, né, papai?” (ASSUMPÇÃO, 2010, p. 155), a personagem consegue questionar: “(para o criado-mudo) – Vocês são

antiquados, mamãe, todas as minhas amigas vão!” (ASSUMPÇÃO,

2010, p. 155). Em suma, Mariazinha deseja ir. Ela despertou do sono

mortífero e almeja se experimentar pelo mundo, fato que demarca

uma revolução no âmbito individual da personagem. Contudo, fora

do seu quarto, no contexto social, o poder autoritário permanece ileso. Sendo ela agora “qualquer um da plateia”, Mariazinha figura o

retrato daqueles que, assistindo-a em espetáculo, respiram com ela

os mesmos ares da repressão.

BREVES CONSIDERAÇÕES

A partir dos exemplos dramatúrgicos apresentados e analisados,

buscamos ressaltar neste estudo a presença metafórica dos objetos

que compõem o espaço dramático da peça Fala baixo, senão eu grito. Averiguamos que, por meio da atitude personificadora da protagonista, esses objetos se distanciam de uma função supostamente

descritiva e alcançam o status de objetos-personagens, responsáveis

por delinear o espectro da família patriarcal burguesa que emerge

para atuar como a terceira personagem da narrativa.

Embora Fala baixo, senão eu grito seja uma peça de forma dramatúrgica breve, constituída por ato único, duas personagens, e uma

ação que se desenrola no período de uma noite, a dimensão metafórica em sua composição contribui para desencadear o alargamento dos

elementos estruturantes da fábula, de modo que a obra apresente

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diferentes camadas de construção de sentidos. No que diz respeito à

presença dos objetos, ênfase do estudo aqui realizado, constatamos

que, por meio deles, Leilah Assumpção expõe e questiona toda uma

engrenagem familiar, ela mesma um protótipo da engrenagem social,

política e cultural daqueles anos de ditadura militar no Brasil capaz

de cercear a liberdade do indivíduo, sobretudo, a liberdade da mulher.

A metáfora consiste, portanto, em um recurso linguístico largamente utilizado pela autora na elaboração dessa dramaturgia. Diante

do acirramento da censura sobre a produção teatral do período, em

que era necessário medir o que dizer e, sobretudo, como dizer, Leilah

Assumpção, ao lado das demais autoras e autores mencionados na

apresentação deste ensaio, desbravou caminhos para a constituição

de uma nova dramaturgia política que então se apresentava nos palcos nacionais.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Ana Lúcia Vieira de. Nova dramaturgia: anos 60,

anos 2000. Rio de Janeiro: Quartet/UNIRIO; Brasília, DF: PRODOC/CAPES, 2005.

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LAKOFF, George e JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Coordenação da tradução: Mara Sophia Zanotto. Campinas, SP:

Mercado de Letras; São Paulo: EDUC, 2002.

P:83

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

81

Caminho de volta: a semiological analysis of the dramatic space

1

Resumo: Este trabalho objetiva apresentar uma análise do texto dramático

Caminho de volta (1974), de Consuelo de Castro, com ênfase no espaço dramático. A semióloga Anne Ubersfeld (2005) categoriza a leitura e compreensão do lugar cênico em três instâncias; empregamos essas etapas organizativas na obra literária, a fim de verificar a função do espaço dramático (PAVIS,

2008) na construção da fábula consueliana.

Palavra-chave: Consuelo de Castro; dramaturgia brasileira; espaço dramático.

Abstract: This paper aims to present an analysis of the play Caminho de volta (1974) by Consuelo de Castro, with emphasis in dramatic space. The semiologist Anne Ubersfeld (1974) categorizes reading and comprehension of the

scenic place in three instances; we use these organizational steps in the literary work in order to check the role of dramatic space (PAVIS, 2008) in the

construction of the fable consuelian.

Keywords: Consuelo de Castro; Brazilian dramaturgy; dramatic space.

PRIMEIROS CAMINHOS DE ANÁLISE

Caminho de volta é uma dramaturgia de autoria de Consuelo de

Castro escrita em 1974. As duas primeiras peças escritas pela autora

foram Prova de fogo, de 1968, que nesse mesmo ano foi censurada, e

À flor da pele, escrita e encenada em 1969. Até o ano de 1974, o único

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários

FCLAr/UNESP. Bolsista FAPESP. Pesquisa atualmente as configurações de

espaço na dramaturgia de Consuelo de Castro. E-mail: [email protected]

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82

texto de Castro representado nos palcos foi À flor da pele. A autora,

perante as adversidades em criar para o teatro no período da ditadura militar brasileira, distancia-se da produção dramatúrgica e aprofunda em seu trabalho na publicidade. Após, portanto, alguns anos

longe da escrita ficcional, Consuelo de Castro retorna com a publicação e a encenação de Caminho de volta.

Encenada pela primeira vez em 1975, Caminho de volta, constituída por três atos, foi escrita em um dos momentos mais incisivos e

violentos da ditadura militar brasileira. Sob o governo de Ernesto

Geisel, que defendia a reabertura para uma democracia liberal, mas

respondendo às arbitrariedades do ditador governante anterior, a

obra dramática, de acordo com Castro (2009, p. 44), tem por objetivo

fazer um deboche frente ao dito “milagre econômico”. A obra é, nesse

sentido, fortemente embasada na política econômica do militar ditador Emílio Médici, governo instaurado entre 1969 e os meses iniciais

de 1974 (MACHADO, 2010). Durante esse período, sob a prerrogativa de recuperar os retrocessos econômicos dos períodos anteriores,

Médici investe em capital externo e seu governo se torna conhecido

pelo emblema do “milagre econômico”.

Tal escolha política é um aspecto datado na história brasileira,

mas que gera ainda hoje reflexos no país. A política de Médici promete avanço, mas retrocede, resultando em concentração de renda e em

uma dívida externa bilionária ao país2. Para a dramaturga, o ambien2 A realidade econômica ante o dito “milagre” econômico é analisada e

esclarecida em diversos estudos, dentre os quais a monografia de Marcelo

Machado (2010, p. 17): “Esta concentração de renda que se deu em benefício

dos lucros e salários mais altos em detrimento dos salários mais baixos,

fundamenta a tese de que o período do ‘milagre’ beneficiou principalmente

apenas uma parte reduzida da população, justamente aquela consumidora de

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83

te ideal para abordar o tema é uma agência de propaganda; e a personagem ideal para a situação dramática é o chefe da agência de propaganda prestes a falir. Consuelo de Castro traz, portanto, um forte

diálogo com o contexto pessoal e social da época. A peça teatral apresenta cinco personagens, trabalhadores de uma equipe publicitária:

Cabecinha, Marisa, Nildo, Dr. Gomes, o patrão da equipe, e Nandinho QI, um contato do grupo. As ações dessas personagens acontecem no seguinte cenário: “Sala de criação de uma agência de publicidade. Asséptica. Linhas retas. Modernidade absoluta” (CASTRO,

1989, p. 185).

O título da peça, Caminho de volta, não remete ao caminho em

frente, mas ao percurso do retorno. Cabe, então, questionarmos o

quê ou quem executa o ato de retornar. A ideia de um caminho que

não avança é possível colocarmos em paralelo com o ‘milagre econômico’; por ser esse um programa que busca avançar, mas resulta em

passos atrás à nação. Com isso, analisamos os percursos empreendidos pelas personagens, pois evidenciam que elas sofreram reviravoltas e retornos em suas jornadas, principalmente, devido ao fato de a

peça abordar as implicações econômicas e os jogos de poder frente ao

capital. Tais abordagens se sobressaem a partir do levantamento e do

estudo do espaço dramático.

Assim, no primeiro ato da peça, as personagens são apresentadas

pelos dizeres de Cabecinha e Marisa; por meio dos diálogos delas, o

leitor conhece a relação dos empregados com o patrão da agência e

também a situação econômica desta empresa. No segundo ato, a intriga se solidifica, pois as disputas entre as personagens ficam mais

bens de consumo duráveis, cujos setores produtores foram os mais

dinâmicos do período.”

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evidentes. Há tentativas de produzir uma campanha que garanta a

sobrevida da empresa. Contudo, diferente da personagem Marisa,

empenhada em assegurar o emprego, Nildo, apesar da confiança pelo

chefe nele depositada, está em crise. A personagem Cabecinha, por

sua vez, sempre recupera no discurso a vontade de sair daquele emprego, mudar de agência ou até mesmo país. Já na concepção de Marisa, as atitudes daquelas duas personagens são problemáticas, pois

reforçam a possibilidade de a empresa falir.

Para Marisa, a possibilidade de falência da empresa é desesperadora. Ela é quem tenta fortalecer e animar a equipe para que sigam

todos produzindo. A personagem Marisa defende seu emprego na

publicidade, pois por meio dele ela ascende financeiramente. O emprego na agência do Dr. Gomes representa a saída de um bairro humilde e conservador para viver em um local no qual se sente mais

confortável e livre. O drama, portanto, mesmo que explore as disputas financeiras, marca também como a ascensão ou a tentativa de

ascender reverbera nos sujeitos. Todas as personagens revelam o lado ‘obscuro’ do ser em prol da manutenção de uma riqueza, como no

caso da personagem Dr. Gomes, ou em prol de alçar determinado

prestígio econômico. Já no último ato, temos a resolução do conflito,

marcando ao longo dele se de fato as personagens irão progredir no

âmbito trabalhista ou se farão o retorno, se irão percorrer o caminho

de volta.

A CONSTITUIÇÃO DO ESPAÇO DRAMÁTICO

Após dispormos das ações principais segmentadas nos três atos

de Caminho de volta, considera-se outro elemento essencial na obra

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dramática. De acordo com Sonia Pascolati, no texto “Operadores de

leitura do texto dramático”, o espaço é um desses elementos. Esse

critério teatral quando analisado na obra de Castro é conduzido pela

linguagem teatral, ou seja, fala-se do espaço extracênico, do espaço

dramático (PAVIS, 2008), e não do espaço mimético (PASCOLATI,

2009), com o qual os espectadores se deparam visualmente. Em nosso estudo, empregamos o termo espaço dramático para mencionar a

composição da obra literária. Assim, na peça de Consuelo de Castro,

o espaço dramático, construído primeiramente na imaginação do

leitor, não extravasa as quatro paredes da agência publicitária, as

personagens estão sempre alocadas neste território de trabalho.

Os empregados subordinados ao chefe Gomes são homens e há

apenas uma mulher na agência. Desenvolvendo trabalho como redatora, Marisa está há pouco tempo nesse emprego. Isso contribui para

que realize ações que a possam favorecer dentro desse local de constante disputa entre os demais empregados e também contra outras

empresas publicitárias. Ou seja, é um espaço que oprime em dois

âmbitos; primeiro, localmente as personagens estão restritas e, segundo, estão restritas enquanto trabalhadoras, precisam responder

ao capital. E, ao retomarmos à personagem Marisa, ela responde triplamente às opressões que são expressas na peça de Castro, responde

ao espaço e aos contextos de classe e de gênero.

Analisar a obra dramática com base nas noções de espacialidade é

verificar nas didascálias externas e internas3 as concepções de lugar

cênico. Na perspectiva da semioticista Anne Ubersfeld (2005), o lu3 Anna Ubersfeld (2005) caracteriza as didascálias internas como as

marcações referentes ao tempo, espaço ou ação que aparecem no interior dos

diálogos.

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86

gar cênico é onde se concretiza o espelhamento das indicações textuais; a pesquisadora esclarece ser o local onde sempre se imita algo,

porém não ocorre a transposição dos espaços reais para o palco, mas

a imagem feita das relações de espaço em sociedade. Na perspectiva

da teoria semiótica, o signo cênico é um ícone, que tem por objetivo

tornar o universo cênico espacializado. No entanto, como a proposta

de análise é literária, pode-se dizer que o ícone torna o universo

dramático espacializado. E é nesse espaço construído pelas marcas

textuais que as estruturas se tornam significantes.

A fim de facilitar a percepção e análise da espacialidade, Ubersfeld sistematiza os campos semiolexicais em três momentos. As segmentações empreendidas no texto dramático consistem em: 1º momento - é preciso especificar tudo o que possa ser comparado a determinação de lugar; 2º momento - realizar um levantamento não

mais lexical, mas sim semântico-sintático das determinações e complementos de lugar; 3º momento - especificar uma lista voltada para

os objetos. Tal segmentação possibilita perceber qual uso Consuelo

de Castro faz do espaço dramático em Caminho de volta, resultando

na composição desse espaço a contribuir ou não com as ações das

personagens. E, por consequência, no estudo da fábula dramática por

completo. Posto isso, destacamos a sistematização dos campos lexicais do texto de Castro.

No primeiro instante de análise, segmenta-se as determinações de

lugares, presentes na obra, sem distinção alguma; entre parênteses,

estipulamos a quantidade de vezes que os termos são empregados no

texto: agência (10); laboratório (5); sala de criação (3); casa (17);

apartamento (3); ambiente (1); hospício (3); boate (1); consultório

(1); Stúdio (2); Cursilho (6); sala (5); hípica (3); bar (2); casinha (1);

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salão (1); cinema (1); escritório (3); banheiro (2); garçoniere (2);

bordel (1); igreja (1); túmulo (1); auditório (1); Penha (19); Fotocópia

(9); praça (1); loja (1); fábrica (1); Mackenzie (1); Avenida Higienópolis (1); Jardim Europa (1); Caixa Econômica Federal (2); Alcântara

(3); campo de concentração (1); oficina (1); Orlândia (3); Londres

(2); rua (2). Os espaços dramáticos listados aparecem na peça teatral

na fala das personagens e também nas rubricas.

No nível geográfico, localiza-se a agência publicitária do Dr. Gomes na cidade de São Paulo; além disso, são mencionados Londres, a

cidade de Orlândia e a empresa publicitária concorrente: Alcântara;

restrito à cidade, os bairros da Penha, Jardim Europa, e a Avenida

Higienópolis. As espacialidades Caixa Econômica Federal e Mackenzie também são termos que localizam o drama no Brasil e fazem um

recorte de classe. Os demais termos são localidades gerais, podendo

ser encontradas em diferentes cidades ou países. Essa percepção dos

espaços mencionados ou vivenciados pelas personagens demonstra

quais locais mais preponderam no drama.

Nesse sentido, as menções aos ambientes da agência publicitária

predominam, mas as personagens fazem menção também ao espaço

da casa e sinalizam o bairro Penha constantemente. No momento em

que as personagens mencionam termos referentes ao escritório, como: agência, laboratório, sala de criação e escritório, elas estão agindo nesse ambiente, é o espaço dramático da ação correlato ao instante de enunciação4 da personagem. Por outro lado, ao sinalizar o bair4 Com base no verbete de Patrice Pavis, “enunciação teatral – discurso

central e discurso da personagem – a enunciação é assumida em dois níveis

essenciais: aqueles dos discursos individuais das personagens, e o nível do

discurso globalizador do autor e da equipe de encenação. Esta primeira

‘desmultiplicação’ camufla a origem da fala no teatro e faz do discurso um

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ro Penha e a ideia de casa, assim como o termo correlacionado: apartamento, e os cômodos: sala e banheiro, as personagens não estão

nesses espaços dramáticos, eles são apenas enunciados, um aspecto

rememorativo no discurso da personagem.

Quando o espaço da casa é mencionado em Caminho de volta, a

relação que se estabelece é com a personagem Marisa, ela é quem

recorda de sua casa familiar onde morava antes de se tornar empregada na agência. A personagem Marisa, única personagem mulher,

discorre também acerca das distinções entre o lar, que mora no instante de ação da peça, e o que abandonou, a casa de seus pais com

quem o irmão também mora. Nessa comparação, Marisa, ao dialogar

com a personagem Cabecinha, detalha os dois ambientes, tanto no

aspecto estrutural, frisando ser a casa no bairro Penha uma morada

periférica, quanto no sentimento de liberdade e conforto vivenciado

na segunda casa.

MARISA: [...] Tem uns móveis que nem esses aqui, tudo retinho... me

sinto tão bem lá, Cabeça! Sabe que eu combinei com a Vera? Quando

acabar a campanha de cigarro, aí eu vou ter tempo pra ir ver o resto

da decoração com ela. A gente vai até uma loja onde tem essas coisas

que não servem pra nada, sabe? Mola, pano de prato com água dentro... E vamos comprar uma porção desses troços pra alegrar a casa.

Puxa, Cabeça, quando eu entro lá e não vejo a figura do meu pai sentado eternamente naquela cadeira de balanço... e não vejo o Beto,

chegando da oficina igual um cavalo, sempre morto de fome, sempre

gritando no ouvido de minha mãe –“Velha, cadê a bóia?”... Ufa, é um

alívio (CASTRO, 1989, p. 195).

A indicação ao bairro Penha também diz respeito à personagem

Marisa. A saída desse bairro, ao iniciar o trabalho na agência, torna

Marisa alvo das implicações feitas por Cabecinha:

campo de tensões entre duas tendências opostas: uma tendência a

apresentar discursos autônomos, miméticos e característicos de cada

personagem em função de sua situação individual” (PAVIS, 2008, p. 102).

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MARISA: (Irritada) Uso a roupa que eu quero!

CABECINHA: Larga de ser cafona!

MARISA: Que é que tem de cafona em mim?

CABECINHA: Publicitária tem que andar com outra roupa e outra cara.

MARISA: Eu ainda não sou publicitária. Não esquece que eu sou da

Penha.

CABECINHA: Não vejo nenhuma glória nisso. E não vejo porque ficar

mostrando o tempo todo que se é da Penha.

MARISA: Pare de me agredir (CASTRO, 1989, p. 189-190).

Marisa não omite ser da Penha, porém sempre que menciona essa

localidade de seu passado é motivo de deboche por parte, principalmente, de Cabecinha. Penha é um dos bairros mais antigos da cidade

de São Paulo e conhecido por suas inúmeras igrejas, o que emprega

uma conotação religiosa e conservadora ao local. Por isso, o humor

estereotipado feito por Cabecinha ao longo do drama.

No segundo ponto norteado por Ubersfeld (2005), a respeito das

noções semântico-sintáticas, percebem-se os limites nos quais as

personagens funcionárias da agência estão; com esses termos, notamos as movimentações delas como também o sentimento em relação

à agência a partir de falas como: “morando aqui dentro” (p. 194) e

“estar trancado aqui” (p. 204). No que tange ao levantamento dos

termos, distinguimo-los em duas colunas:

Noções semântico-sintáticas que

expressam movimento

Noções semântico-sintáticas que

expressam imobilidade

Pelo biombo; saindo do laboratório; vai lá pra dentro; enfiar minhocas na minha cabeça [localização

afetiva]; pôs nesta firma; eu entro lá;

lá em casa; te vi entrar; com a bola

na parede; entrando em casa; bolinha na parede; sai de cena; olhando

Fora do biombo; tô morando;

morando aqui dentro; outro ambiente; embaixo de carros; em cima da

mesa; estar trancado aqui; senta-se

numa poltrona; contra a parede;

sobre a máquina; na gaveta; sobre

ele; no armário; teu lugarzinho; a

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na janela; bate na porta; saindo do

laboratório; sai correndo ao banheiro; vou pra Alcântara; vai me levar

pra lá.

casa vazia; no lixo do cliente; ficam

na agência; ameaça sair; aceitou ficar

aqui; nem um minuto mais aqui.

As estruturas semântico-sintáticas determinam lugares e complementos de lugares; em nosso estudo, defendemos o fato de que as

determinações a expressarem movimentos, ação de um lugar a outro,

é devido ao gênero dramático. Isto é, são marcas recorrentes nas rubricas, mostrando os gestos feitos pelas personagens nos espaços

dramáticos. No entanto, esse levantamento mostra ainda ações estanques, reforçando o ambiente, escritório publicitário, no qual as

personagens estão alocadas. Ao não saírem desse espaço, e em constante trabalho sob pressão, as personagens extrapolam uma convivência apenas entre colegas de serviço para discutirem questões subjetivas de cada uma das personagens.

Todas as personagens, em determinado momento, discutem seus

problemas pessoais, mas Marisa e Cabecinha detêm-se mais tempo

nessa articulação. Em um recorte das vivências violentas de Marisa

sofridas na agência, ela e Cabecinha estão em diálogo a respeito da

classe social que Marisa almeja abandonar e dos aspectos machistas

da casa de sua família. Cabecinha se contrapõe ao que a outra personagem afirma, mostrando características machistas em suas próprias

atitudes:

CABECINHA: (Fingindo-se de sério) Você traiu a classe!

MARISA: Pô, Cabecinha, você mesmo foi lá em casa, você até brigou com o Beto, você não acha o Beto insuportável com aquele machismo dele? E...

CABECINHA: Teu irmão é um saco! Eu sei disso, só o fato de ele querer me fazer casar com você, na marra, já dava pra eu achar ele um

saco até o final dos meus dias. Mas pô, Marisa, que você queria? Pobre, da Penha, mecânico de oficina, noivo de uma guria feia, burra,

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sem graça... só podia ser assim, deixa o Beto pra lá. É a Penha. Aquilo é um hospício. Um lixo (CASTRO, 1989, p. 195-196, grifos nossos).

Nesse diálogo das duas personagens, percebe-se que antes de trabalhar para a agência publicitária e morando ainda no bairro Penha,

Marisa sofria diversas opressões dentro da casa familiar, principalmente, violências machistas empreendidas pelo irmão Beto. O trecho

destaca um dos momentos de retomada ao passado de Marisa, e com

ele evidenciamos que tanto na agência, demonstrando independência

financeira, quanto na casa de sua família, Marisa está sempre subjugada a atos de violência. Como mulher, os ambientes retratados e

mencionados em Caminho de volta retratam opressões. A personagem Marisa não se vê livre para realizar as próprias escolhas e quando o faz é vítima de represálias. Ainda assim, a agência publicitária é

o ambiente ao qual Marisa se atrela para obter uma vida diferente a

que levava no bairro Penha.

Na terceira e última ação empreendida por Ubersfeld (2005), a

análise semiológica do espaço implica a composição de uma lista de

objetos mencionados no texto dramático. Os objetos podem ser mencionados pelas personagens e/ou manuseados por elas. A fim de delimitar essa aparição no texto Caminho de volta, dividimos a listagem dos objetos presentes na obra nos seguintes pontos: objetos referentes ao escritório publicitário – objetos referentes à casa.

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Lista de objetos do escritório

publicitário

Lista de objetos da casa

Fotos; relógio; máquina; telefone; prancheta; Nikon; cigarros;

caderneta; bola; lápis; cartão de

crédito; shampoo; computador;

poltrona; porta; engov; gaveta;

escada; Blusa; revista; livros; lata

de lixo; Philips; tecidos; vestido

de voile; foto; corda; casaco; cama; cílio; espelho; Bíblia; telefone; carteira de trabalho; relógio

de ponto.

Batedeira; geladeira; móveis; televisão; eletrodomésticos; liquidificador; mola; pano de prato; moedor

de carne; sofá; tv; quadro; lingerie;

eletrodomésticos; sacolas de massa

de tomate; Bombril; coador de café;

soutiens; calcinhas; aliança.

Constitui maioria os termos mencionados e usados no espaço do

escritório. Evidentemente, os locais extracênicos, como a casa de Marisa em Caminho de volta, têm uma existência apenas verbal, portanto, quando esses objetos são mencionados pelas personagens, elas

estão ocupando o espaço do escritório. Porém, por vezes, na alusão

ao espaço da casa, tais objetos são mencionados, a fim de compor

com mais detalhes esses ambientes somente enunciados. A respeito

dos objetos listados na primeira coluna, a maioria é usada em interação com as personagens. Outros objetos surgem situados apenas no

discurso de uma delas, sem ser manuseado, por exemplo, os objetos:

corda, cama e bíblia. É interessante, portanto, observar a contribuição que os objetos empregam ao texto dramático antes mesmo de ir à

cena, pois eles detalham o cômodo de ação e também contribuem

para as características das personagens.

A personagem Marisa é quem traça essa interligação com o ambiente doméstico. Em umas de suas falas, ao marcar sua nova residên-

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cia em relação a anterior, Marisa exalta o fato de compor a casa com

móveis “sofisticados”, semelhante ao modo da agência publicitária e

de organizá-la ao seu modo.

Marisa: [...] Tem uns móveis que nem esses aqui, tudo retinho... me

sinto tão bem lá, Cabeça! Sabe que eu combinei com a Vera? Quando

acabar a campanha de cigarro, aí eu vou ter tempo pra ir ver o resto

da decoração com ela. A gente vai até uma loja onde tem essas coisas

que não servem pra nada, sabe? Mola, pano de prato com água

dentro... E vamos comprar uma porção desses troços pra alegrar a

casa (CASTRO, 1989, p. 195, grifos nossos).

No discurso de Marisa essa distinção entre as duas localidades é

marcada, pois ela inicia citando a qualidade e a ordem dos móveis da

nova casa, estipulando objetos inúteis que devem alegrar a morada e,

na sequência de sua fala, traz o relato da localidade antiga, citando

móveis corriqueiros: cadeira de balanço e televisão, circunscritos por

termos de desprezo e de desgaste. O emprego como redatora proporcionou à Marisa a saída da casa no bairro Penha, ambiente que ela

relaciona com a violência e opressão. Contudo, Marisa já não vivencia esse espaço decadente, agora ela ‘praticamente’ mora no serviço -

sem considerar a problemática dessa situação - e constrói para ela

um outro sentido de lugar. A mudança social calcada em Marisa é um

reflexo do dito milagre econômico à época, mas que se mostra falho.

Por esse motivo, a ameaça de falência da empresa é razão para os

gritos e irritações expressas por Marisa. Comparado aos demais empregados, homens, ela é a única sem outro plano caso a falência ocorra. Sem esse emprego, Marisa apresenta chances de efetuar o caminho de volta, retornar aos locais onde suas vivências como mulher se

restringem. O medo do retorno obscurece, na percepção da personagem Marisa, as violências que ela também sofre dentro da agência

publicitária, o que leva a personagem a defender o sistema e o pa-

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trão: “Ele sempre foi tão bom pra vocês. Seus egoístas! Insensíveis!

Impiedosos! Algum dia ele deixou de pagar o salário de vocês? Alguém tem que ajudar esse homem! E me digam o que que eu faço se

a agência falir! Eu odeio falências!” (CASTRO, 1989, p. 211).

A personagem Cabecinha, ao contrário de Marisa, demonstra desagrado em relação ao emprego na agência desde o primeiro ato. Em

suas falas, ele ressalta a possibilidade de ser empregado em outra

empresa do ramo e ser mais valorizado como profissional. Além disso, em alguns momentos, Cabecinha tenta convencer Marisa a pedir

demissão e a se mudar com ele para Londres. Os discursos daquela

personagem reforçam uma vontade de sair do espaço da agência de

publicidade do Dr. Gomes; Cabecinha verbaliza o desejo de ir para

outra empresa ou outro país, mas ao longo dos três atos suas falas

são apenas ameaças, não se concretizam. Desse modo, a linguagem é

o que possibilita o transporte geográfico, a menção aos outros espaços, mas sem sair do escritório publicitário.

Restritos ao ambiente de trabalho, os incômodos e as inseguranças de cada personagem vêm à tona. O impasse geral da empresa,

que afeta a todos os funcionários, precisa ser resolvido e também os

aspectos subjetivos, que foram levantados ao longo dos diálogos das

personagens. Nesse sentido, o “milagre” econômico do período brasileiro também não foi suficiente para concretizar as perspectivas do

Dr. Gomes sobre os lucros da empresa. A ascensão visada não ocorre

e os diversos escritórios concorrentes são o empecilho que resulta em

estagnação da empresa publicitária. Mas é preciso que alguém leve a

culpa de tal falha; e na peça de Consuelo de Castro, o empresário Dr.

Gomes decide demitir Nildo, pois ele e seu pensamento em ‘crise’ são

os motivos para a agência não avançar economicamente em compa-

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ração com os demais grupos sociais que Gomes cita como exemplo do

“milagre econômico” brasileiro que funcionou.

[...] Até os camelôs da esquina estão vendendo seus alfinetes com a

maior dignidade. O poder aquisitivo do povo continua crescendo. A

classe média está cada vez menos média. E a burguesia nunca esteve

tão emplumada, tão cheia de requintes e necessidades na vida. Este

país está atravessando um milagre econômico. Entende? E por que só

eu não ganho nada nesse milagre? (CASTRO, 1989, p. 253-254).

Não ganhar nada é o caminho de volta que a empresa faz, ela não

avança financeiramente e, cada vez menos, organizativamente. Dr.

Gomes assume uma postura superior às demais classes trabalhadoras, tentando ostentar um patamar elevado que não o iguale a elas,

pois ele é um empresário. A falta de consciência de classe faz com

que a personagem questione a razão de todos ascenderem, mas a

empresa dela não. Ao não se enxergar como também pertencente à

classe trabalhadora, Dr. Gomes culpabiliza os pobres, os trabalhadores, sem entender a lógica de um sistema que está funcionado para

atender apenas os detentores do capital.

Por fim, após a demissão do Nildo, quando os demais funcionários se reúnem para a produção de uma nova publicidade, Cabecinha

se rebela contra o trabalho pouco remunerado, ambiente no qual todos se vendem para garantir o mínimo. A personagem então que, no

decorrer da peça, faz alusão aos ambientes externos à agência decide

ir embora, demite-se e sai sem destino. O que resta às personagens é

questionar se ele irá voltar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A peça teatral Caminho de volta traz em seu conflito as implicações de um discurso falho a respeito do milagre econômico brasileiro.

Na concepção de um único espaço dramático que abarca a todas as

personagens, os problemas advindos ficam mais ressaltados, pois

estão todos sob o julgo de um chefe desumano que não aparece nos

instantes iniciais da peça, mas, quando em cena, manifesta a possível

falência da agência e ordena as criações publicitárias. Ou seja, o poder da personagem Gomes fica ainda mais evidente, pois dentro do

espaço das quatro paredes não é possível fugir, mas sim produzir, ou

ao menos tentar produzir.

Enquanto Marisa percebe o trabalho como uma ascensão social,

ao destacar as localidades organizadas e modernas que passa a frequentar, Cabecinha reitera o caráter de submissão do espaço de trabalho e almeja acessar outros ambientes. Apesar de aquela personagem ser objeto de assédio tanto dos colegas quanto do chefe, Marisa

é a única que pronuncia a necessidade de salvar a agência e destaca a

bondade do chefe. Já Cabecinha vê na falência a chance de finalmente sair daquele ambiente. Todavia, para Marisa não ter mais o emprego seria motivo para retorno a locais que não pretende habitar.

Analisar o espaço dramático de Caminho de volta a partir do levantamento de estruturas semiolexicais (UBERSFELD, 2005) expande a percepção dos locais de ação das personagens. Ao especificarmos as determinações de lugares, é perceptível a recorrência de

ambientes que fazem alusão à agência publicitária. As personagens

permanecem cerceadas a esse local e quando mencionam outros lu-

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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gares, tais espaços dramáticos ficam no nível da enunciação, pois não

há movimento das personagens para um espaço dramático diferente

ao escritório. Nesse sentido, a constância das personagens ao mencionarem os territórios outros, externos, denota uma vontade de ruptura com o espaço de trabalho opressor.

Assim, o fato de estarem alocados ao ambiente fechado da agência

gera uma justaposição entre as discussões trabalhistas e as discussões subjetivas de cada personagem. Os conflitos pessoais delas e o

conflito que engloba a todos os funcionários, como a possível falência

da empresa, precisam ser resolvidos no espaço da sala de criação.

Um espaço que se mostra a cada ato mais opressivo e violento. Logo,

o que destacamos é a impossibilidade de fuga das opressões apresentadas. As respostas do setor econômico não favorecem de modo esperado, sobrecarregando as personagens em diferentes níveis. Esses

movimentos que oscilam entre o progresso enquanto trabalhador,

mas também de regresso enquanto sujeitos, demarcam o retorno, por

vezes cíclico, especificam os espaços dos quais as personagens não

conseguem efetivamente sair.

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P:101

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

99

Timelessness, tropes and the postcolonial didactics in Des-Medéia

1

Resumo: Este artigo situa a dramaturgia de Denise Stoklos em DESMEDÉIA (1995) numa poética pós-colonial de resistência e terror, com notável atemporalidade associada ao tom didático da peça enquanto manifesto

político. Argumenta-se que os efeitos duradouros emergem da recontextualização de três tropos, cuja universalidade também é observada: o da Medeia

metáfora de mulher assassina e vingativa; o do bumerangue incerto e o do

voto paraquedas.

Palavras-chave: Ativismo; Dramaturgia; Contradiscurso.

Abstract: This article locates Denise Stoklos’s dramaturgy in DES-MEDÉIA

(1995), in a postcolonial poetics of resistance and terror, with a stunning

timelessness that is associated to the didactic tone of the play as a political

manifesto. It is argued that the lasting effects emerge from the recontextualization of three tropes, the universality of which is also notable: the one of

Medea as a metaphor of revengeful and murderous women; the dubious boomerang and the parachute ballot.

Keywords: Activism; Dramaturgy; Counter-discourse.

Este artigo nasceu de uma palestra que ministrei no evento Sábados Literários, na UNICENTRO, em 14 de maio de 2022, intitulada

“De bumerangues, paraquedas e cadáveres 1995-2022: DES1 Ph.D. e Teatro pela Michigan State University, E.U.A. 1987. Docente Sênior,

Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da UNICENTRO, Irati e

Guarapuava, Paraná, Brasil. Pesquisadora Visitante (2022-23) e Associate

Fellow (2023-2025) no Centro de Pesquisa sobre a América Latina e Caribe

(CERLAC) da York University, Toronto, Ontario, Canada.

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Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

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MEDÉIA2, de Denise Stoklos,” trabalho pensado no contexto das

perdas de amigos e parentes, e das consequências pouco conhecidas

da pandemia da Covid-19, entre março de 2020 e março de 2022.

Milhões de pessoas morreram até as vacinas serem disponibilizadas

em dezembro de 2020, no Reino Unido. Dada a incompetência do

governo do Brasil para implementar a vacinação, foi marcante, para

mim, o depoimento do Prof. Dr. Luiz Carlos Dias, do Instituto de

Química da UNICAMP:

No Brasil, que ocupa o nada honroso segundo lugar em número de

mortos pela Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos, a população

brasileira, estarrecida, assiste a uma briga política entre o presidente

Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Dória. O Ministro Eduardo Pazuello (Saúde) afirmou no dia 8/12/2020, [...] ‘Se houver demanda e preço, o governo federal irá comprar a vacina do Butantan’.

Demanda? Precisa mais mortes e mais gente infectada e uma quarentena ainda mais prolongada?3

Esta e tantas outras denúncias de genocídio durante a pandemia

me trouxeram ecos de DES-MEDÉIA, peça lançada por Stoklos, em

1995, mas ainda atual no Brasil das muitas declarações negacionistas

e atos histriônicos do ex-presidente, o Jair das poses de atirador e

saltos de paraquedas, em busca de adrenalina (Soares; Maia, 2019).

Neste artigo, examino esses ecos e o porquê da atualidade da peça.

Procuro demonstrar que a atemporalidade não resulta apenas da

apropriação de um mito e da rehistoricização dos tropos existentes,

2 Des-Medéia, título da peça de Denise Stoklos, publicada em1995, tem

acento agudo aqui reproduzido, embora o da peça de Eurípedes seja correto

sem acento desde 2009, com a vigência do novo acordo ortográfico, a

exemplo das traduções da Medeia, de Eurípedes, por Vieira (2010) e

Barbosa (2013).

3 Texto datado de 09/12/2020, disponível em

https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/luiz-carlos-dias/momentohistorico-tem-inicio-vacinacao-contra-covid-19-pelo-mundo

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os quais comento no primeiro tópico. Ela emerge da poética póscolonial, atrelada ao valor didático deste monólogo-manifesto, conforme analiso no segundo tópico.

TIPOS DE APROPRIAÇÃO DE TEXTOS CANÔNICOS E ALTERAÇÕES DE ESTRUTURA.

Neste tópico, resumindo teorias basilares de adaptação (Hutcheon, 2012; Sanders, 2015), opto por iniciar frisando que a composição

dramatúrgica segue procedimentos previsíveis e comuns nas obras

cujo processo de criação busca transpor um texto canônico para os

tempos atuais. O primeiro e o mais óbvio é o de corte ou enxugamento do texto, ajustando-o para

[...] um menor tempo de apresentação ou para destaque de algum aspecto do mesmo. Trata-se de: a) cortar falas e trechos, principalmente

as descrições de espaço e tempo que podem ser substituídas por efeitos de luz e som; b) rever e eventualmente modificar as rubricas do

texto de partida para atingir efeitos específicos na encenação; c) cortar sub-tramas para destaque da trama principal; d) cortar e/ou reorganizar cenas (combinando-se informação de várias cenas); e) cortar

personagens secundárias (Rauen, 2005, p. 373).

Um segundo caminho é o da apropriação com foco em temas e situações atemporais e universais. O que é atemporalidade? Os verbetes de dicionários tendem a destacar que comportamentos e personagens com atemporalidade não são afetados pelo tempo, ou seja,

não se modificam. Ao longo dos séculos, padrões atemporais também

parecem ganhar caráter universal, um vício da mentalidade. Um

exemplo típico são as práticas culturais do patriarcado, centradas na

dominação masculina (Bourdieu, 2012). Assim, a dramaturgia de

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peças atemporais e universais pode envolver os seguintes procedimentos gerais:

[...] a) a transposição do texto para uma época e/ou local atual, através de escolhas de adereços, figurino, cenário, música; b) a transposição das personagens para novas situações sociais e/ou políticas através da interpretação e de trabalho de ator/ atriz, sem modificar o texto [...]; c) a transposição da trama da peça para outra época e ambiente sócio-histórico, com implicações tais como atualização da linguagem e adaptação da dramaturgia em função da relocalização (ex. mudança de nomes de personagens, mudança de referências geográficas

e históricas) (Rauen, 2005, p. 374).

A Medeia de Eurípedes é um texto canônico, com uma extensa

história de transmissão em traduções e apropriações literárias, teatrais e de cinema, muitas das quais são comentadas no livro Medea

in Performance 1500-2000 (Hall, 2001). Em consonância com

os procedimentos já citados, algumas delas envolvem a recriação da

peça ou transposição do texto integral para outra época, tal qual A

Gota D’Agua, de Chico Buarque e Paulo Pontes (1975). Selecionar

um aspecto da trama, para desenvolver um novo texto ou roteiro é

outra prática comum discutida por Sônia Aparecida dos Anjos (2014)

em sua tese, na qual analisa o uso do phármakon (veneno ou remédio) por Medeia, em Eurípedes, e por personagens de Nelson Rodrigues (o médico Ismael e a branca Virgínia, em Anjo Negro) e de

José Triana (María, em Medea en el espejo).

Denise Stoklos, apesar de incorporar reflexões geradas nas leituras de livros aos seus trabalhos de criação de cenas4 ,tende a contestar padrões de comportamentos atemporais e universais. Assim se

processa a apropriação criativa com características de dramaturgia

4 Depoimento em videoaula ministrada online por Denise Stoklos e assistida

pela autora em 2016; link não disponível.

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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pós-colonial, envolvendo diversos outros procedimentos, numa dinâmica mais complexa de

a) discordar de e/ou questionar a mentalidade/ visão-de-mundo de

uma peça e colocá-la em diálogo com uma mentalidade alternativa ou

mais atual [...] b) retomar um problema ou conflito de uma peça para

discutir possíveis soluções ou ampliações dos mesmos em nova peça;

c) escolher uma cena, personagem ou aspecto de uma peça para colocá-lo em diálogo com outra época, ideologia ou ambiente; d) modificar o gênero e/ou concepção geral da forma de uma peça [...]; e) rever o papel do público na peça (ex. ao invés de espectador passivo,

torná-lo partícipe da ação) (Rauen, 2005, p. 378-379).

Muitos estudos voltados à análise comparativa de adaptações da

Medeia, de Eurípedes, analisam o teor crítico e transgressor da

dramaturgia de DES-MEDÉIA, tais como os artigos de Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho (2005), Luiz Gustavo Marques Ribeiro (2008/2019), Gilcimara Juliana Gabriel e desta coautora, ou o

de Pedro Leites Junior e Lourdes Kaminski Alves (2013).

Para além do propósito de transgressão efetivado na dramaturgia

de manifesto, a atemporalidade se desenvolve pelas conexões adquiridas pelo mito de 431 a. C, não somente até a transposição de DESMEDÉIA, em 1993/1994, mas tendo em vista a sua recepção em

2022, no contexto da campanha eleitoral na qual Bolsonaro e Lula

foram finalistas. Por sua vez, as conexões se dão por meio de três

tropos5 utilizados em DES-MEDÉIA: o da Medéia metáfora de mulher assassina e vingativa, mentora do esquartejamento e fritura do

rei Pélias, autora do envenenamento de Gláucia e de seu pai, o Rei

Creon, e autora do filicídio utilitarista dos filhos com Jasão, Merme5 Etimologia: tropo vem do Grego Tropos. Existem três grandes grupos de

figuras de linguagem: “1) de palavras ou Tropos, como a metáfora, a

metonímia, a hipérbole; 2) de sintaxe, ou de construção frasal, como o

anacoluto, a elipse; 3) de pensamento, como a ironia, a lítotes, a

prosopopeia.” (Câmara, 1978, apud Claro, 2022, p. 9).

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ros e Pheres; o do “bumerangue incerto” (Stoklos, 1995, p. 28), sugerindo um ato prejudicial a quem atira, por causa do efeito de volta

dessa arma; e o do “pára-quedas” (sic - Stocklos, 1995, p. 29) caindo

como as cédulas de voto, em percurso pouco previsível, apesar de

planejado. De que modo se processa, então, a atemporalidade desses

tropos no Brasil de 2022 e, talvez, no mundo?

DOS TROPOS NA DRAMATURGIA DE 1995 AOS ANOS 2020

Enquanto os tropos caracterizam os dispositivos sustentadores da

violência, a proposta didática da peça está no ensinar acerca da urgência de transformar o Brasil, evidente no manifesto do Coro, por

Desmedeiar a alma brasileira:

Que a nossa Medeia, portanto, se desmedéie, se transforme, evolua,

remedie-se o mito já, que se remende essa característica simbólica do

perdurável escuro da natureza humana. Que aqui essa abordagem ao

mito da paixão seja subvertido em um grito de: Remendéia, alma brasileira! Desmedéie-se! (Stoklos, 1995, p. 9).

Se, na peça, o “bumerangue incerto” (Stoklos, p. 28) representa a

história de fracassos repetida num país que não consegue consolidar

a democracia, o paraquedas a despencar como as cédulas de voto

(Stoklos, p. 29) constitui as apostas feitas por uma população dividida de eleitores e eleitoras responsáveis por definir, num eterno jogo

de esperanças frustradas, os nomes de quem venha a Desmedeiar o

Brasil. E Desmedeiar significaria, também, frear todos os tipos de

mortes violentas no país, mesmo sem contar com dados adequados

sobre o problema:

Em suma, o crescimento das mortes violentas por causa indeterminada dificulta uma melhor compreensão da evolução da violência letal

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no Brasil. [...] Além disso, os homicídios não computados também

podem afetar os resultados de outras variáveis, reduzindo o nível de

confiança das análises sobre juventude, homens e mulheres, negros e

não negros, pessoas indígenas e homicídios por armas de fogo (Cerqueira et al., 2021, p. 22).

Situar a recepção do texto historicamente é indispensável, pois,

no discurso, o contexto define “[...] o plano do conteúdo exposto no

plano da expressão. É na relação entre [...] denotação e conotação,

que verificamos a transcendência do signo, na sua plasticidade, ao

remodelar-se por uma significação extralinguística, por onde serão

construídos os tropos de linguagem” (Claro, 2020, p.6).6

Em outras palavras, a atemporalidade é um efeito do discurso instaurado em decorrência da dinâmica polissêmica do signo e, na peça

em discussão, dos tropos. Porém, o estado de atualidade não é definido somente pela intencionalidade estética de Stoklos na escolha de

tropos (o uso de Medeia, do paraquedas e do bumerangue).

O vigor atemporal, nos fluxos de transmissão e recepção deste e

de outros textos, resulta das leituras atravessadas por diversos posicionamentos e contextos culturais de leitores(as), diante da lógica do

material artístico e dos lugares de ler/performar (ics) em diferentes

contextos. Ao situar DES-MEDÉIA numa poética pós-colonial, percebo que essa dinâmica poderia incluir conexões com o repertório de

conceitos e construtos advindos da leitura de outros textos. Destaco

As Origens do Totalitarismo, no qual Hannah Arendt já mencionara, em 1949, o efeito bumerangue do imperialismo britânico na

Índia e na África do Sul, e de certo modo nos países europeus, quan6 Estudos atuais de Semiologia e Epistemologia, dedicados ao

desenvolvimento de uma teoria de ressignificação. proporcionam a

percepção e compreensão dos meandros da reconstrução de significados

conciliando as teorias de Charles Sanders Peirce e Ferdinand de Saussure

(Claro, 2020).

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do elabora o surgimento da ralé/plebe na sociedade capitalista, gerando seus próprios tiranos: “O fato de que essa ralé pudesse ser manuseada somente por políticos imperialistas e inspirada apenas por

doutrinas raciais fez crer que somente o imperialismo podia resolver

os graves problemas domésticos, sociais e econômicos dos tempos

modernos” (Arendt, 1989, p. 186/pdf).7

Para Elleke Boehmer, é indispensável reimaginar a poética como

uma partitura, tal qual temos em música e dança: “[...] A Poética Póscolonial vê o leitor/a leitora como intérprete daquela partitura, até

mesmo como seu performer […]” (Boehmer, 2018, p. 9 – minha tradução).

Por analogia, a partitura DES-MEDÉIA também é marcada pelo

terror, outro traço temático de literatura pós-colonial discutido por

Boehmer (2018). Mas não se trata do terror mediatizado dos inúmeros ataques de escala global nos anos 2000, incluindo o 9 de setembro de 2011. É o terror da violência sistêmica, inerente aos projetos

coloniais e neo-coloniais. Aproveito a distinção de Boehmer entre a

literatura pós-colonial com temática híbrida global e a de cunho resistente, na qual situo DES-MEDÉIA, com um certo compromisso

de “[...] questionar e atacar os remanescentes coloniais, especialmente conforme expressados na globalização, e a desfazer colaborações

coloniais e neo-coloniais...” (Boehmer, 2018, p. 70 – minha tradução). Apesar de a crítica pós-colonialista ter sua produção mais focada no sul e oeste da África e na Ásia, a aplicabilidade das teorias é

óbvia para todos os continentes.

7 Outros autores discutem o efeito bumerangue do imperialismo, em especial

Aimé Cesaire e Michel Foucault.

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Desmedeiar, a rigor, implicaria conter tudo aquilo que continuadamente permite analisar a atemporalidade de DES-MEDÉIA no

mundo, e não só no Brasil: a Medeia, mãe que não cuida, nutre ou

protege, mas vista de uma ótica feminista, reproduz a cultura patriarcal de violência, espelhando o lado doentio de tantos países, as Pátrias assassinas de seus filhos e filhas. E são tantas as maneiras: os

feminicídios; os crimes de racismo, de xenofobia, homo e transfobia;

as invasões e os crimes em terras dos Yanomami e de outros povos

indígenas; o tráfico humano e o abuso sexual de crianças e jovens; a

fome; a pobreza; a manipulação política da educação.8

A didática de desmedeiar requer ativismos diversos ou, minimamente, exercer o direito ao voto, na esperança de que votos paraquedas possam quebrar os bumerangues dos sistemas oligárquicos, desarticulando a sua atemporalidade e universalidade e agregando novos verbos de luta contra a violência, todos com um potente hífen

pós-colonial para des-cronizar/ des-saturnizar os homens devoradores de filhos, des-jasãoniar [sic] Jasões, des-iaguizar Iagos, desbarbazulizar os Barba Azuis opressores de mulheres, des-Beberibizar

os Barões de Beberibe que seguem traficando e escravizando pessoas,

desnaturalizar, enfim, as disposições adquiridas de autoritarismo,

ganância, dominação e opressão.

8 Vidas inteiras poderiam ser dedicadas ao jornalismo comparado, em

pesquisas sobre o teor de notícias de jornais estrangeiros e brasileiros que

cobriram os fatos horrorosos dos anos pré e pós 1964 no Brasil.

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

111

Collage in the service of Elfriede Jelinek's pessimistic enlightenment: the case of Bambiland

1

2

Resumo: O presente artigo visa contribuir para a divulgação da dramaturgia

de Elfriede Jelinek ao público brasileiro, com foco no método de colagem

empregado pela autora a fim de atingir um dos objetivos centrais de sua

obra: o esclarecimento pessimista. Parte-se de um breve panorama de sua

produção para o teatro, com considerações específicas à sua relação crítica

com mídias diversas, e investigam-se, em seguida, recursos e efeitos frequentes em sua obra, por meio de uma análise do texto teatral Bambiland, de

2003.

Palavras-chave: Elfriede Jelinek; Bambiland; Textos teatrais; Teatro pósdramático.

Abstract: This article aims to contribute to the dissemination of Elfriede Jelinek's dramaturgy to the Brazilian public, focusing on the collage method

used by the author in order to achieve one of the central objectives of her

work: the pessimistic clarification. It starts with a brief overview of her production for the theater, with specific considerations on her critical relationship with different media, and then investigates frequent resources and ef1 Mestrado na Universidade de Viena (1997); doutorado na Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP, Estudos da Tradução, 2003); pósdoutorados na UNICAMP e Universidade de Viena (2004 até 2007), na

UFSC (2014) e nas Universidades de Viena e Graz (2019). Desde 2008, atua

como Professora Doutora na Universidade Federal do Paraná, nas áreas de

Literatura Alemã (sobretudo austríaca), Tradução e Língua Alemã.

2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade

Federal do Paraná e professora de Português A – Língua e Literatura do

Programa International Baccalaureate (IB), do Colégio Suíço-Brasileiro de

Curitiba.

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112

fects in her work, through an analysis of the theatrical text Bambiland, from

2003.

Keywords: Elfriede Jelinek; Bambiland; Theatrical texts; Postdramatic theatre.

POZAREVAC, Yugoslavia – Neither war against the Western world,

nor missiles in his father's house, nor scurrilous rumors that he skipped the country to avoid fighting in Kosovo have kept President Slobodan Milosevic's only son, Marko, from realizing his theme park

dream.

The dream goes by the name of Bambiland.

(Blaine Harden, The New York Times, Jul. 1999)

O TEATRO DE ELFRIEDE JELINEK: VOZES E CONTRAVOZES

Em 2004, Elfriede Jelinek foi agraciada com o Prêmio Nobel de

Literatura. No seu pronunciamento oficial, a Academia Sueca fez referência explícita à produção dramática da autora austríaca, justificando a escolha da premiada pelo “fluxo musical de vozes e contravozes em romances e dramas que, com extraordinário zelo linguístico, revelam o absurdo dos clichés da sociedade e seu poder de subjugo\". Há aproximadamente vinte anos, Jelinek escreve preferencialmente para o teatro3, com uma capacidade ímpar de reagir com extrema velocidade a assuntos e acontecimentos políticos de relevância

nacional (austríaca) ou internacional – seus textos teatrais mais recentes versam sobre temáticas tão diversas como a pandemia de Covid-19 (Lärm. Blindes Sehen. Blinde Sehen!), escândalos de corrupção do governo austríaco (Schwarzwasser) ou a ascensão de políticos

populistas da extrema-direita no mundo todo (Am Königsweg).

3 Devido à organização dos textos que Jelinek escreve para o teatro e suas

características que permitem pensá-los como próximos ao teatro pósdramático, evitamos aqui o uso da terminologia “texto dramático” e

seguimos a terminologia usada pela autora, textos teatrais.

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A força reveladora, esclarecedora, de seus textos acerca dos temas

que aborda não se origina em alguma argumentação bem construída

ou em personagens de pretensão realista com os quais o leitor, a leitora ou os espectadores de uma eventual montagem cênica poderiam

se identificar. Muito pelo contrário, eles carecem de praticamente

tudo que esperamos de um texto dramático nos moldes tradicionais:

não possuem rubricas, nem indicação de falas, nem personagens e

tampouco algo que possa ser entendido como enredo. São apenas as

primeiras peças da autoria de Jelinek que se atêm às convenções do

drama convencional – por exemplo, O que aconteceu após Nora deixar a Casa de Bonecas ou Pilares das Sociedades [Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der

Gesellschaften], escrita em 1979, traduzida e publicada recentemente

pela editora Temporal, o primeiro texto teatral da autora disponibilizado ao público brasileiro em forma de livro (JELINEK, 2023). Nessa

peça, Jelinek estabelece um diálogo intertextual e uma atualização de

dois clássicos do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, Casa de Bonecas (1879) e Pilares da Sociedade (1877), juntando referências a

esses dramas com outras de discursos feministas, nazistas e capitalistas do mundo contemporâneo. Desde 1988, quando escreveu Wolken.Heim. (ainda sem tradução no Brasil), a dramaturga austríaca

não faz mais uso das convenções do formato dramático tradicional

para elaborar seus textos teatrais que, justamente por causa disso,

costumam ser chamados de “superfícies textuais” [Textflächen] ou

“superfícies linguísticas” [Sprachflächen]. Ou seja, trata-se de textos

que, caso Jelinek não os houvesse definido como “teatrais”, poderiam

ser associados ao gênero de ensaio, pois são blocos de texto corrido,

sem indicação de falas ou personagens, divididos apenas em parágra-

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114

fos. Mesmo assim, uma leitura atenta desses textos revela em todos

os casos a presença de múltiplas vozes e lugares de fala, fato amplamente aproveitado em montagens cênicas4.

Sem poder abordar, neste artigo, as características da obra teatral

de Jelinek de um modo abrangente, limitamos nossa argumentação a

dois aspectos centrais e que marcam toda sua produção teatral, desde

O que aconteceu após Nora deixar a Casa de Bonecas ou Pilares das

Sociedades (JELINEK, 2023) até seus textos mais recentes como

Sonne, los jetzt! (de 2023, sem tradução brasileira), definidos como

“superfícies textuais”: seu formato como colagem textual e seu potencial revelador, esclarecedor.

A obra de Jelinek é repetidamente alvo de críticas ferozes por parte de representantes de um imaginário mais tradicional de arte que já

chegaram a classificar sua obra como pornográfica, perversa, niilista

e exagerada. A própria Jelinek costuma reagir a tais críticas de modo

irônico, ressaltando que nada daquilo que escreve em seus textos é

inventado, mas que se trata de material linguístico que já foi dito por

outros e que ela apenas usa de modo singular, juntando vozes e gêneros textuais fora dos lugares em que os costumamos ouvir e ler. As

“vozes e contra-vozes” que ouvimos em sua obra são das mais diversas origens, elas vêm tanto de autores da Antiguidade (Ésquilo e Ovídio) quanto de clientes de uma rede ilegal de prostituição cuja negociação acerca da “mercadoria” desejada foi interceptada e gravada

pela polícia (Über Tiere, 2007, sem tradução brasileira), mas também dos representantes mais clássicos da literatura e filosofia alemãs, como Johann Wolfgang von Goethe ou Martin Heidegger

4 Cf. Por exemplo, a tradução parcial de Sombra (Eurídice diz), publicada em

https://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/27435

(acesso em 21 de junho de 2023).

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(FaustIn and out, 2011, sem tradução brasileira), assim como daqueles cujas vozes não podem mais ser ouvidas, como vítimas de guerra

ou mortos pelo nazismo (Die Kinder der Toten, 2011, sem tradução

brasileira) – para citar apenas alguns exemplos.

A originalidade de Jelinek não se encontra, portanto, na invenção

de assuntos ou enredos esclarecedores acerca da realidade que nos

cerca, mas na criação, em cada uma de suas obras, de um “fluxo musical de vozes e contra-vozes” que versam sobre determinado assunto

(os temas que mais se destacam em sua obra são: economia, estruturas patriarcais da sociedade, feminismo, pátria, natureza, nazismo,

esporte, corpo, guerra, mídias, música etc.). Com esses fluxos discursivos, criando ligações e relações entre discursos e vozes que não estamos acostumados a relacionar, é que Jelinek consegue expor contradições inconciliáveis que marcam nossa atualidade e as quais

aprendemos muito bem a esconder de nós mesmos. Jelinek, sem levantar o dedo indicador simbólico ou se excluir de suas próprias críticas acerca do comportamento do ser humano que se acredita do

bem, não deixa ninguém de fora de seu olhar analítico quando, por

exemplo, em Nach Nora (ainda sem tradução brasileira), de 2013, dá

vozes às crianças e mulheres que morreram no incêndio seguido de

desabamento de uma fábrica têxtil da Índia que produz roupas para

grandes marcas do mercado europeu, como H&M. Na referida peça,

as apresenta ao lado da voz do diretor da empresa H&M (em trechos

tirados de uma entrevista dada a uma revista alemã após o incêndio,

em que defende a política sustentável e humanista de sua empresa) e

daqueles que compram roupas da referida marca por alguns euros

(ou seja, todos nós, a quem cabe o papel de consumidores no sistema

capitalista). É nessas colagens que Jelinek, sem inventar nada, expõe

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os absurdos que constituem o nosso mundo e o nosso comportamento contraditório. Ao ler ou ouvir um texto de Jelinek, as estratégias

que desenvolvemos para nos entender como sujeitos autônomos, esclarecidos, politicamente corretos e ecologicamente sustentáveis perdem força, o poder revelador da obra jelinekiana se evidencia.

Partindo dessa compreensão, não estranha que muitos teóricos já

destacaram a proximidade entre o teatro político de Bertolt Brecht e

a obra da autora austríaca (p. ex. MEISTER, 2013). Ainda mais tendo

em vista que ambos partem de uma visão marxista no que diz respeito à compreensão do mundo e das relações humanas. Diferentemente

de Brecht, porém, os textos de Jelinek não sugerem que haja alguma

possível saída dos entrelaçamentos nefastos entre capital, política e

ideologia em que os humanos constroem suas vidas ou que o ser humano seja capaz de alterar tal situação. É importante lembrar que

essa observação vale para sua obra; como pessoa privada e pública,

Jelinek tem participado e se engajado em inúmeras ações em prol de

causas políticas e humanitárias. Sua obra emana um pessimismo

inegável, procura um “esclarecimento desconstrutivista, ou seja,

compreendido de modo anti-humanista” (LÜCKE, 2013: 190), mas o

fato de Jelinek escrever e, através de sua escrita, contribuir para entendermos melhor o mundo em que vivemos pode ser visto, sem dúvida, como um indício de que a própria autora não deixou de acreditar na capacidade humana de interferir no seu ambiente.

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O CASO DE BAMBILAND

Depois dessa pequena – e, certamente, lacunar – introdução a algumas das particularidades da obra literária e teatral de Elfriede Jelinek, passamos agora a nos deter em um texto específico, com o intuito de ilustrar nossa argumentação. Trata-se de Bambiland, publicado originalmente em 2003, encenado pela primeira vez no dia 12

de dezembro do mesmo ano no Burgtheater de Viena, com direção

de Christoph Schlingensief5, e encenado já diversas vezes em diferentes palcos, inclusive além das fronteiras dos países de língua alemã

(por exemplo, em 2007 em Vilnius, numa montagem impressionante

assinada pela encenadora americana Yana Ross6, ou em 2017 em

Glasgow, no James Arnott Theatre).

Primeiramente, algumas palavras sobre o contexto históricopolítico em que Jelinek escreveu e publicou essa obra. Entre 24 de

março e 10 de junho de 1999, a mídia internacional lançou seu olhar

sobretudo aos conflitos que marcariam o fim da Guerra do Kosovo,

entre a então Iugoslávia e a Organização do Tratado do Atlântico

Norte (OTAN). Foram dias de bombardeios promovidos pela OTAN,

parte de uma estratégia que ampliou seu alvo – a princípio constituído apenas por bases militares – e acabou por levar aproximadamente

5 Informação encontrada no Internet Archive, em página que faz referência a

já não existente página do Burgtheater Wien com informações sobre as

encenações do início dos anos 2000. Disponível em:

<https://web.archive.org/web/20060621060037/http://www.burgtheater.a

t/Content.Node2/home/spielplan/vorschau/5143.php#>.

Acesso em: 19 Jun. 2023.

6 Cf. o trailer em: https://www.youtube.com/watch?v=lLFRvedCFR8.

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528 civis à morte7

. Belgrado e Novi Sad viram sua infraestrutura civil

devastada, impacto que se deixou sentir na economia da Iugoslávia

de modo agudo.

Faz sentido pensar, aqui, a respeito da indisposição de muitos iugoslavos – e, sobretudo, de servos, que foram o alvo principal do ataque da OTAN – em relação aos Estados Unidos da América, apoiadores diretos da intervenção, à ocasião dos ataques. Marko, filho do

então presidente sérvio Slobodan Milosevic, não deixou de perceber

que símbolos norte-americanos poderiam vir a ser perturbadores a

seus conterrâneos. Mesmo assim, os acontecimentos não o demoveram de prosseguir com os preparativos para a abertura de seu Bambiland – o primeiro parque de diversões temático da Sérvia, inaugurado poucas semanas após os últimos bombardeios. Porém, a sensibilidade do jovem e de sua equipe viu por bem alterar o nome do empreendimento, suavizando a alusão à Disney(land): inaugurava-se,

assim, Bambipark.

A pouca efetividade da solução encontrada e a posição política de

Marko, cujo pai teve a própria casa atingida por uma bomba lançada

pela OTAN, tornaram o parque de diversão Bambiland (ou Bambipark) um símbolo da alienação. The Guardian, The New York Times,

Le Temps e BBC são alguns dos jornais que publicaram notícias com

reflexões a esse respeito, já à ocasião da abertura do parque, em

1999. A alteração do nome como medida que visava aplacar críticas

da população, como estratégia de marketing aplicada justo por um

cidadão que poderia se sentir sobremaneira vitimizado pela cultura

7 HUMAN RIGHTS WATCH. Civilian Deaths in the NATO Air Campaign.

Fev. 2000. Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Human_Rights_Watch>. Acesso em: 26

nov. 2019.

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que conscientemente homenageava, pode ser vista como uma forma

de perversão.

Desse modo, Elfriede Jelinek nos dá boas pistas ao dar o título de

Bambiland a seu texto teatral publicado em 2 de abril de 2003: o

leitor informado a respeito da Guerra de Kosovo e seus personagens

estabelecerá uma relação entre o texto, a temática da guerra e a supremacia dos Estados Unidos quanto à imposição de símbolos culturais. Mais clareza sobre o eixo condutor do texto jelinekiano se obtém

por meio da segunda parte da epígrafe: (meus agradecimentos a Ésquilo e aos “Persas”, traduzido por Oskar Werner. Por mim, você

pode ainda adicionar uma pitada de Nietzsche. Mas o resto também

não é meu. É de má procedência. Vem da mídia.) (JELINEK, tradução nossa, 2003, s/p.)8

A construção da epígrafe já marca a presença de vozes que se sobrepõem à da autora – “não é meu”. Ou seja, mais uma vez, ela ressalta que nada disso que escreve é invenção de sua autoria, mas a

realidade supera a imaginação humana em termos de incoerência.

Mais do que um diálogo sutil com outros textos, temos aqui um caso

de hipercolagem: trata-se da organização de registros díspares, de

natureza ficcional ou não, que se propõe a produção de sentidos a

partir desta variedade. Este recurso, que em partes consiste na exacerbação de técnicas de retomada dos discursos midiáticos já empregadas, por exemplo, pelo também austríaco Karl Kraus9, é frequente

na produção jelinekiana. É, também, uma chave para a crítica que se

8 (meinen Dank an Aischylos und die \"Perser\", übersetzt von Oskar Werner.

Von mir aus können Sie auch noch eine Prise Nietzsche nehmen. Der Rest ist

aber auch nicht von mir. Er ist von schlechten Eltern. Er ist von den Medien.)

9 KRAUS, Karl. Os últimos dias da humanidade. Trad. e comentários:

Mariana Ribeiro de Souza. São José do Rio Preto, SP: Balão Editorial, 2017.

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volta, em um único golpe, a eventos de relevância pública e internacional e a discursos já naturalizados cujas incoerências e contradições se destacam por meio da combinação proposta por Jelinek.

O contato estabelecido com Ésquilo nos fornece chaves de leitura

interessantes no que diz respeito à estrutura da peça. No entanto,

pensemos aqui sobre os sentidos propostos pela intertextualidade

com a tragédia no que se refere à matéria proveniente da realidade à

qual se refere a peça. Em primeiro lugar, se o título pode fazer com

que pensemos que Bambiland se refira especificamente à Guerra do

Kosovo, a citação dos Persas (427 a.C.) na abertura desloca o foco à

região em que se situava, na Antiguidade, o Império Aquemênida

(550 a.C. – 330 a.C.), e em que hoje se encontram, entre outros, Israel, Irã e o Iraque. A menção ao povo da Babilônia já no primeiro parágrafo localiza com mais precisão o país de que se trata aqui: o Iraque.

Também a data de publicação pode ser acionada como elemento

paratextual que evidencia o conflito o qual fornecerá matéria para a

elaboração dramática: o monólogo-polílogo é publicado menos de

um mês depois do início da Guerra do Iraque. A indicação da data já

mencionada na primeira publicação e nas atualizações, nos dias 5 de

abril de 2003 e 5 de maio de 2004 – ou seja, enquanto a guerra ainda

se desenrolava –, contribui ainda com a proposição de sentidos de

uma das vozes que se faz ouvir em Bambiland: a que emula o discurso de um correspondente de guerra:

Talvez venhamos a ver a tempestade de fato nos próximos dias, eu me

esforço, me esforço mesmo. Já estou me esforçando. Não consigo escrever mais rápido. E certamente escrevo mais rápido do que você.

Você quer que eu descreva a tempestade antes que ela aconteça? Posso tentar, diabo talentoso que sou, o jeito durão como vou aos fatos e

os torço, fazendo-os olhar para trás, mas aqueles que ainda olham pa-

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ra o futuro, trago-os aqui. Eu torço o pescoço deles, dos fatos. Para

começar, uma pergunta: você acha que essa religião vale alguma coisa, para que se lute assim por ela? (JELINEK, tradução nossa, 2003,

s/ p.)10

Entende-se aqui que o propósito narrativo de Bambiland não é lidar com os eventos da guerra, ainda que o ritmo da publicação, consonante ao dos conflitos, e sua matéria, pudessem constituir sugestão

neste sentido. A investigação que a peça se propõe a fazer se relaciona antes com as práticas da mídia e com a alienação promovida pela

veiculação das notícias de guerra – dado que nos pode ser antecipado

pelo título, conforme anteriormente mencionado. Em questão está o

acesso aos fatos: observam-se os observadores, evidenciando-se, com

visível exagero, aspectos de sua ideologia e de seus procedimentos. O

olhar hiperbólico ao caráter alienado deste observador ocidental

conduz à reflexão em torno dos mensageiros, aqueles enviados à

guerra e cuja subjetividade seleciona e molda a “verdade” das informações às quais teremos acesso. É sobretudo por meio do emprego

deste mesmo olhar, alienado e alienante, que se manifesta no texto a

temática da alteridade:

Talvez eles não conheçam pessoalmente nenhum dos sentimentos.

Uma vez que acreditam em Deus. Mas isso não lhes basta. Querem libertar a pátria. Mas não podem, pois só nós resistimos ao corruptor

que apenas nos deteria e colocamos em questão a religião e colocamos

em questão as pedras e colocamos em questão a areia e colocamos em

10 Vielleicht werden wir in den nächsten Tagen den eigentlichen Sturm

erleben können, ich bemühe mich, ich bemühe mich ja. Ich mach ja schon.

Schneller kann ich nicht schreiben. Und schneller als Sie kann ich es auf

jeden Fall. Soll ich den Sturm etwa schon schildern, bevor er noch stattfand?

Ich kanns ja probieren, ich talentereicher Dämon, wie ich allzu hart

anspringe die Tatsachen und sie verdrehe, daß sie nach hinten schauen, aber

diejenigen, die noch in die Zukunft schauen, die hol ich mir her. Ich dreh

ihnen den Hals um, den Tatsachen. Erst einmal Frage: Meinen Sie, diese

Religion ist es überhaupt wert, daß man so um sie kämpft?

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questão a água, apenas nós conhecemos Deus e reconhecemos que

não o queremos, nós, corruptores de ninguém, que só corrompemos a

imagem. Quando chegamos em casa, ligamos a imagem de imediato.

Vai funcionar. E funciona. De imediato. Nunca desaparecem sem deixar vestígios nossas imagens de divindades que vemos lá, que só nós

vemos lá na tela luminosa. Então, demovemos este povo de sua fé,

concedemos para tanto nossa imagem e pronto. Então ficará tudo

bem. Então este povo que não tem noção do primado do indivíduo será exterminado, pois um povo sem cada pessoa individual não existe.

Mas Deus, esse eles conhecem. É o que importa. Não conhecem ninguém, não amam ninguém, mas Deus, esse eles conhecem. Não conhecem sentimentos, mas um Deus, esse eles supostamente conhecem. Dizem. (JELINEK, tradução nossa, 2003, s/ p.)11

A voz, que emula um “nós” ocidental, evidencia de modo exagerado sua ignorância no que diz respeito aos habitantes do país invadido. Também este observador, nosso representante, delineia-se de

modo estereotipado. A crítica é clara: os discursos em defesa da individualidade não são o suficiente para que nos definamos como sujeitos complexos, com uma subjetividade original, a partir do momento

em que na nossa relação com o outro lançamos mão de simplificações grotescas no que deveria ser uma tentativa de compreensão

mais sofisticada. Do mesmo modo, esta crítica pode ser vista como

11 Vielleicht kennen sie gar kein einziges von den Gefühlen persönlich. Wo sie

doch an Gott glauben. Das genügt ihnen aber nicht. Sie wollen das Vaterland

befreien. Können sie aber nicht, denn nur wir halten dem Verführer, der uns

nur aufhalten würde, stand und stellen die Religion in Frage und die Steine

stellen wir in Frage und den Sand stellen wir in Frage und das Wasser stellen

wir in Frage, nur wir kennen Gott und haben erkannt, wir wollen ihn nicht,

wir Verführer von niemand, wir Verführer des Bildes allein. Wenn wir ins

Haus gekommen, dann drehn wir das Bild sofort auf. Das muß

funktionieren. Und es funktioniert auch. Sofort. Nie spurlos fort unserer

Gottheit Bilder, die wir dort sehn, die nur wir dort sehn auf dem leuchtenden

Schirm. So, wir entfernen dieses Volk vom Glauben, geben ihm dafür endlich

unser Bild und aus. Dann wir es gut sein. Dann wird dieses Volk

vollkommen am Ende sein, das keinen Begriff vom Primat der Person hat,

denn ein Volk ohne jede einzelne Person, das gibt es nicht. Aber den Gott,

den kennen sie. Das ist die Hauptsache. Sie kennen keinen, sie lieben keinen,

aber den Gott, den kennen sie. Gefühle kennen sie nicht, aber einen Gott,

den kennen sie angeblich. Sie sagen es.

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ineficaz: o público alvo não pode deixar de reconhecer que permanece na mesma posição de ignorância à medida que avança em sua leitura e constata as próprias limitações. Observa-se aí projeto frequente, bastante criticado, na literatura de Jelinek: o esclarecimento pessimista. Algo, no entanto, nos intriga, conforme já apontamos acima:

ela escreve, e é notória sua posição política.

Guldall, ao pensar sobre os motifs recorrentes de Bambiland,

confere destaque à oposição binária entre o “nós” que continuamente

se manifesta e os outros – outras culturas de modo geral, ou especificamente a população do Iraque. Em sua análise, cuja conclusão depõe contra a existência de atributos verdadeiramente literários na

obra de Jelinek e de outros escritores europeus que manifestam uma

postura antiamericana, o procedimento, a insistência infantil da voz

presunçosa que representaria a cultura norte-americana, não constituiria uma análise comportamental, mas antes postularia o que os

Estados Unidos seriam – no caso, um “atoleiro de violência e desejo e

vontade de poder” (GULDALL, tradução nossa, 2011, p. 194). Conforme o autor, a simplificação a que se sujeita esta voz central tornaria Bambiland uma propaganda antiamericana grosseira – e nem a

musicalidade e os fluxos de vozes resgatariam a peça dessa falta de

qualidade. Mesmo que em outros momentos do livro demonstre

consciência acerca da falta de originalidade como projeto e perceba a

aparente regularidade do procedimento em diferentes autoras e autores, Guldall não investiga a fundo possíveis proposições críticas e

estéticas do que podemos compreender como uma negação da ideia

de essência (GULDALL, 2011, p. 201).

A presença da individualidade na própria cultura, que é reiteradamente afirmada por uma voz que se apresenta como “nós”, é ape-

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nas um primeiro movimento reflexivo em torno do inevitável entrelaçamento entre o privado e o político. Trata-se de um tema caro à

Jelinek e que coloca em xeque justamente a efetividade do conceito

de individualidade e originalidade. Quanto à falta de sutileza, cabe

pensarmos aqui que esta atua no sentido de evidenciar que em jogo

estão discursos, e não processos psicológicos ou eventos em sua

complexidade:

Uma técnica literária que eu uso é a das colagens. Em uma peça, eu

chego a diferentes camadas linguísticas ao colocar enunciados que já

existem na boca das minhas personagens. Não me esforço para criar

pessoas redondas com falhas e fraquezas, mas sim polêmicas, com

contrastes fortes, cores vigorosas, pintura em preto e branco; uma espécie de xilogravura. (JELINEK, 1984, p. 14. Tradução de Angélica

Neri e Tassia Kleine)12

Enfatizam-se assim a meta- e a intertextualidade – procedimento

que também remete à proposta do teatro épico de Brecht. Porém,

como já mencionamos acima, na obra de Jelinek estamos diante de

uma produção que não nos oferece indicações de conduta em relação

ao contexto em questão, e que esvazia de sentido a própria ideia de

uma “postura crítica” como solução. O posicionamento politico é claro: “O que ela revela por trás do ‘excesso de palavras’ pelo narrador

oscilante e as vozes que justificam a guerra é o total silenciamento

das vozes das vítimas da guerra e da política e da economia globais”

(BASTIAN, tradução nossa, 2017, s/ p.). No entanto, a falta de propósito – e mesmo certa impossibilidade – de se manter uma atitude

12 Eine literarische Technik, die ich verwende, ist Montage. Ich erziele in

einem Stück verschieden Sprachebenen, indem ich meinen Figuren

Aussagen in den Mund lege, die es schon gibt. Ich bemühe mich nicht um

abgerundete Menschen mit Fehlern und Schwächen, sondern um Polemik,

starke Kontraste, harte Farben, Schwarz-Weiß-Malerei; eine Art

Holzschnittechnik.

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consistente no que se refere a esses posicionamentos fica igualmente

evidente no texto, inviabilizando noções como a de um espectador/leitor ideal, que desenvolveria a postura crítica ideal a partir do

que vislumbrasse no palco ou no papel.

Sem recepção ideal, deixa de haver também a necessidade de se

definir de que modo se conduziria uma encenação ideal a partir do

texto. As várias camadas de linguagem em Bambiland refletem a

consciência acerca da limitação do conceito de autoria e, por conseguinte, da propriedade da autora em relação ao seu próprio texto. Há

aqui material para uma discussão radical a respeito da impossibilidade de uma “encenação fiel” – e Jelinek está longe de exigir ou sugerir aos encenadores algo nesse sentido, muito pelo contrário, pois

ela é conhecida por dar liberdade total aos agentes criativos que se

propõem a encontrar uma forma cênica ou performativa para seus

textos.

Jogando de modo consciente com sua característica ficcional, tomando de empréstimo elementos provenientes de discursos comprometidos com o pacto de veracidade13 em sua forma bruta, o texto

permite que se indague a respeito dos limites entre os discursos e a

vida – qual o impacto dessas duas instâncias uma na constituição da

outra? No texto, temos o empréstimo declarado, o que fica mais evidente pela mídia original da publicação (um site/blog atualizado à

medida que os fatos de base, relacionados à guerra, progrediam) e

pelo registro linguístico adotado. O hiperrealismo por si traz a aten13 O termo, cunhado por Walter Mignolo em seu texto “Lógica das diferenças

e política das semelhanças da literatura que parece história ou antropologia,

e vice-versa” (1993), refere-se a narrativas das quais se espera conteúdo

baseado na interpretação de acontecimentos com referencial histórico,

construído a partir de testemunhos ou de documentação específica.

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ção ao modo como se organiza o texto, à elaboração por meio de colagem, sugerindo que se inicie a reflexão em torno das propostas e

dos efeitos de diferentes discursos literários e midiáticos em sua relação com nossa experiência da vida. Se vamos, aqui, ao encontro de

considerações relevantes à crítica elaborada por Guy Debord – que

radicaliza algumas noções da Escola de Frankfurt ao apontar que, em

nossa sociedade atual, as relações ocorrem necessariamente pelo intermédio das imagens, motivo pelo qual o espetáculo conteria tudo e

estaria contido em tudo (DEBORD, 1997, p. 24) –, podemos observar

que damos ainda um passo além: não se trata, em Jelinek, apenas de

dizer que nesta conjuntura o que parece ser é mais relevante do que

aquilo que é, mas sim de limitar o ser àquilo que ele parece.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo partindo de uma visão declaradamente pessimista em relação ao mundo e, sobretudo, ao convívio humano em sociedades, a

obra de Jelinek tem um enorme potencial esclarecedor. A partir do

exemplo da peça Bambiland, procuramos mostrar esse potencial,

especialmente no que diz respeito ao papel das mídias na nossa percepção de acontecimentos políticos em escala global. Na sua peça,

Jelinek evidencia que são mínimas nossas possibilidades de experiências autênticas, de acesso direto a eventos reais. Trata-se, sem dúvida, de uma faceta da nossa cultura, hiperbolicamente exposta por

Bambiland à medida que o texto nos fornece, lance após lance, diferentes frases e estruturas que são velhas conhecidas e que encontramos aqui em combinações que destacam a indiferença dos fatos em

relação à construção de um sentido e a impossibilidade da manifesta-

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ção de algo original, que não encontraria espaço no sistema em que

vivemos. Percebe-se, assim, uma reflexão em torno da organização

social de um modo mais amplo – essa organização, no entanto, teria

como centro a própria configuração de seus discursos. E parece ser a

partir dessa perspectiva que Jelinek opta, em sua dramaturgia, por

uma linguagem que se faz visível e que, ao operar como protagonista

das produções, revela com clareza ímpar incongruências e incoerências próprias da contemporaneidade.

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1993.

P:131

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Lourdes Ramalho and utopia in Carameled Angels

1

2

Para as mulheres de todos os tempos e lugares, o mundo tem sido

predominantemente distópico.

Luciana C. Deplagne; Ildiney Cavalcanti, 2019

Resumo: Este artigo objetiva apresentar os resultados de um estudo pautado

em revisão bibliográfica sobre a estratégia estética da utopia empreendida na

dramaturgia de Lourdes Ramalho, com ênfase no repertório destinado ao

público infanto-juvenil produzido a partir dos anos 2000. Postulações teóricas à luz dos estudos críticos sobre a utopia, discutidas por Andrade (2011),

Ayala (1997) e Pavis (2015), ajudam a conceber que os utopismos ramalhianos formalizados em seus textos teatrais utópicos apontam para uma problematização sobre as identidades de gênero feminino e masculino em contextos de desigualdade em sociedades distópicas regidas por valores patriarcais extremos. O texto teatral Anjos de Caramelada (RAMALHO, 2008),

aqui discutido, suscita uma crítica aos papéis de autoridade distribuídos de

maneira desigual entre mulheres e homens, dado que o mundo em que as

mulheres são subordinadas é convertido num outro, ideal, em que as mulhe1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Literatura e

Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba (PPGLI/UEPB),

Professor de Linguagens e Códigos lotado na Secretaria de Educação da

Prefeitura Municipal de Sumé (SEDUC/SUMÉ),

[email protected].

2 Pós-Doutora em Estudos Avançados sobre a Utopia na Faculdade de Letras

da Universidade do Porto-Portugal (ARUS/FLUP/U.PORTO), Professora na

Universidade Federal de Campina Grande (CDSA/UFCG) e no Programa de

Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual

da Paraíba (PPGLI/UEPB), [email protected].

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res são figuras soberanas sobre os homens. A obra ajuda a refletir sobre as

relações de gênero na contemporaneidade, perspectiva que instiga Lourdes

Ramalho na elaboração de enredos críticos e criativos que levam as(os) leitoras(es)-espectadoras(es) a sonhar com o devir utópico da equidade de gênero

em tempos distópicos.

Palavras-chave: Lourdes Ramalho, Dramaturgia, Gênero, Utopia.

Abstract: This article aims to present the results of a study based on a bibliographic review on the aesthetic strategy of utopia undertaken in Lourdes

Ramalho's dramaturgy, with emphasis on the repertoire intended for children and youth produced from the 2000s onwards. Critical studies on utopia, discussed by Andrade (2011), Ayala (1997) and Pavis (2015), help to conceive that Ramalhian utopianisms formalized in his utopian theatrical texts

point to a questioning of female and male gender identities in contexts of

inequality in dystopian societies governed by extreme patriarchal values. The

theatrical text Anjos de Caramelada (RAMALHO, 2008), discussed here,

raises a critique of the roles of authority unevenly distributed between women and men, given that the world in which women are subordinated is converted into another, ideal, in which women are sovereign figures over men.

The work helps to reflect on gender relations in contemporary times, a perspective that Lourdes Ramalho expresses through critical and creative plots

that lead the reader(s)-spectator(s) to dream of the utopian future of gender

equality in dystopian times.

Keywords: Lourdes Ramalho, Dramaturgy, Genre, Utopia.

LOURDES RAMALHO

Maria de Lourdes Nunes Ramalho (1920-2019) ainda não era

nascida quando em meados do século XIX o movimento de escrita

dramatúrgica protagonizado por mulheres começara a germinar na

cena teatral brasileira, historicamente marcada pela autoria de homens. Não raramente, nomes como Josephina Álvares de Azevedo

(1851-1913), Maria Angélica Ribeiro (1829-1880), Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Maria Jacintha (1906-1994) são pouco estudados ou sequer conhecidos (ANDRADE, 2012). Herdeira dessa tradição e inspirada pelas suas ancestrais, entre elas sua mãe, Anna Brito,

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entre o século XX-XXI, a dramaturga se destacara em seu tempo não

só porque se posicionava diante de injustiças sociais, históricas e políticas, senão porque seu empreendimento de ressignificação das raízes populares ibéricas do universo cultural do Nordeste brasileiro a

consagrou como mulher das letras e da cena cultural (ANDRADE,

2012).

Não é novidade o fato de que no Brasil a produção literária de autoria de mulheres esteve às margens dos “cânones” de autoria de

homens das metrópoles, principalmente que atua(ra)m no circuito

entre Rio de Janeiro e São Paulo. Nomes como José de Alencar

(1829-1877), Monteiro Lobato (1882-1948), Carlos Drummond de

Andrade (1902-1987), Machado de Assis (1839-1908), Graciliano

Ramos (1892-1953), Mario Quintana (1906-1994), Guimarães Rosa

(1908-1967), podem ser mencionados como emblemas da literatura

brasileira. Sabemos que o surgimento de mulheres escritoras fora

muito mais evidente a partir do século XIX, dado que até a altura

enfrentavam desafios para exercer atividades intelectuais e culturais

com liberdade de expressão. Consideradas transgressoras do sistema

normativo do patriarcado que condicionava a atuação feminina, inclusive no universo das letras, as mulheres resistiam enquanto liam e

escreviam.

Resistindo a este sistema de apagamento da escrita de mulheres

que fora majoritariamente masculino, as escritoras do século XIX

abrem portas para que outras mulheres venham a encontrar espaço

na cena literária. Escritoras como Cora Coralina (1889-1985), Cecília

Meireles (1901-1964), Adalgisa Nery (1905-1980), Rachel de Queirós

(1910-2003), Clarice Lispector (1920-1977), Lygia Fagundes Telles

(1923-2022), Hilda Hilst (1930-2004), entre outras, são emblemas

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de pelo menos três séculos de resistência no universo das Letras. Em

se tratando de uma escrita dramatúrgica de autoria de mulheres, a

qual desde o final do século XIX vem se descortinando na cena literária nacional – a passos lentos e tardiamente –, a problemática relativa ao desconhecimento e/ou silenciamento é ainda maior, inclusive

porque esse gênero literário ocupara uma posição marginal em relação às outras manifestações dos gêneros lírico e épico no campo dos

estudos literários cunhados no âmbito da área de Letras. Por essa

razão, é preciso somar esforços – na condição de leitoras(es), professoras(es) e pesquisadoras(es) – à militância dramatúrgica (e teatral),

voltada em particular para a de autoria de mulheres, como somos

inspiradas(os) a fazer em Autoria feminina e o texto escrito para o

palco: editar é preciso, ler também (ANDRADE, 2010). Essa militância há de começar pelas nossas salas de aula, bibliotecas, clubes

de leitura, lugares onde alunas(os) e/ou professoras(es) leitoras(es)

podem protagonizar processos de ensino-aprendizagem, fruição estética, apropriação, interpretação, criação, edição, leitura e encenação

de obras na forma dramática.

É, portanto, de uma posição adjacente que Lourdes Ramalho ousa

sair do anonimato e fazer da sua dramaturgia um espaço de reinvenção do mundo, pondo no papel e nas luzes da ribalta não só a vida

real, mas também uma vida ideal, um sonho utópico de um Mundo

ao Avesso (AYALA, 1997), a fim de instaurá-lo nos palcos e, sobretudo, fora dele, impulsionada pelo seu comprometimento com a propagação de uma reflexão crítica sobre os papéis de mulheres e de homens na sociedade, cujas jornadas são marcadas por confrontos de

gênero. É, pois, por meio de sua dramaturgia que a autora intervém,

a ponto de marcar a história do teatro no Brasil, pelo que na discus-

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são a seguir apresentamos considerações sobre a produção dramatúrgica destinada às crianças e jovens – sendo o repertório deste ciclo, de particular interesse da pesquisa –, que recebeu nova roupagem em sua obra.

Lourdes Ramalho é considerada autora paraibana, embora tenha

nascido em Jardim do Seridó – Ouro Branco, no Rio Grande do Norte. Tendo fixado residência em Campina Grande desde fins dos anos

1950, por meio da sua atuação emblemática nesta cidade, imprimiu

seu nome na agenda artístico-cultural da Paraíba, tornando referida

também pelo codinome “grande dama da dramaturgia nordestina”. A

autora se destacara em seu tempo não só por se posicionar diante de

injustiças sociais, históricas e políticas, mas porque seu empreendimento de ressignificação das raízes populares ibéricas do universo

cultural do Nordeste brasileiro a consagrou como empreendedora

sociocultural, resultando em extraordinário contributo para a formação de uma identidade singular em meio ao processo social e estético

da discussão artística e cultural na Paraíba dos séculos XX-XXI.

Lourdes Ramalho empreendeu uma obra dividida em três ciclos,

sistematização proposta por Valéria Andrade (2006; 2007), segundo

a qual temos o seguinte:

1- Nas décadas de 1970 e 1980 houve um projeto cuja finalidade

teria sido (re)inventar criticamente a cultura do Nordeste brasileiro.

A dramaturga catalogara distintos modos de viver e de dizer o mundo

de mulheres e homens nordestinos, registrando hábitos, inclusive

linguísticos e alimentares, costumes e comportamentos relacionados

à vida familiar e em comunidade, crenças e práticas religiosas.

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2- A partir de 1990 em diante, a autora trabalha na promoção de

uma ressignificação das raízes ibero-judaicas do universo popular

nordestino do século XVI. Se debruça em restaurar traços ancestrais

da cultura da sua região, dado que a proposta estética de desvendamento e de ressignificação das raízes étnicas e culturais do universo

popular nordestino remete à cultura ibérica.

3- Intensifica-se a partir dos anos 2000 uma produção visceralmente comprometida com a infância e suas peripécias, que se insere

na obra ramalhiana já desde os inícios de sua escrita dramatúrgica,

quando, ainda menina, tinha como diversão favorita brincar de teatro. Neste outro ciclo, a autora revisita personagens mitológicos, das

fábulas, do folclore e da literatura popular em verso e de contos de

fadas, além de provérbios e danças dramáticas. Sua crítica social se

funde à brincadeira e ao humor, na recorrência a temas e personagens que povoam o imaginário popular. Em seu ofício de dramaturga

adaptadora, se apropria das narrativas tradicionais para transmutálas à luz das dinâmicas socioculturais do seu tempo, em diálogo com

a crítica social emergente nos seus dias de mulher dramaturga e nordestina do século XXI.

Apresenta-se, portanto, os resultados de uma investigação sobre

como, em sua produção dramatúrgica, Lourdes Ramalho faz uso de

procedimentos estéticos da utopia para empreender uma reflexão

crítica à sociedade distópica, sendo que neste artigo buscamos evidenciar o terceiro ciclo acima referido. Mediante sua dramaturgia,

intervém contra as mazelas da realidade distópica, marcando de modo singular o entorno cultural em que atua, contribuindo para propor

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sua reimaginação coletiva à luz do sonho utópico de uma sociedade

mais harmoniosa para mulheres e homens.

ANJOS DE CARAMELADA

Como nos ensina Karl Mannheim, em Ideologia e Utopia (MANNHEIM, 1972), um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre, razão

que as utopias contêm elementos transformadores por serem, antes

de tudo, ideias e desenhos de possíveis realidades melhores. À luz

deste pensamento, a criação literária, portanto, de uma determinada

escritora ou escritor, poetisa ou poeta, dramaturga(o), seria um produto espiritual de alguém que, analisando o seu tempo e seu contexto

incongruentemente, intervém em determinado estado da realidade

com o qual não se conforma. É, pois, nessa direção que conseguimos

analisar o fazer dramatúrgico de Lourdes Ramalho, uma vez que sua

obra joga com as semelhanças e dessemelhanças das múltiplas culturas que incorpora e, ao mesmo tempo, as transforma criativamente.

Consciente das discussões sobre as identidades feminina e masculina, a utopista Lourdes Ramalho imprime, na sua obra como um

todo, a tendência cultural do confronto e das relações de poder travadas entre mulheres e homens em diferentes circunstâncias. A dramaturga paraibana desponta no cenário teatral do Nordeste do país

trazendo a proposta de colocar no centro da ação dramática falares,

hábitos, visões de mundo, experiências e problemas vivenciados cotidianamente por mulheres e homens da sua região (ANDRADE,

2007, 2012). Alinhamo-nos a ideias defendidas pelas utopistas brasileiras Luciana Calado Deplagne e Ildney Cavalcanti, na coletânea

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Utopias sonhadas/distopias anunciadas: feminismo, gênero e cultura queer na literatura (DEPLAGNE; CAVALCANTI, 2019), que:

Para as mulheres de todos os tempos e lugares, o mundo tem sido

predominantemente distópico, uma vez que tem se configurado (de

modo transcultural, hegemônico e histórico) como patriarcal. É dentro dos mais variados contextos de supressão da voz e do desejo das

mulheres que emerge o feminismo como força expressiva da insatisfação e catalisadora de mudanças (DEPLAGNE; CAVALCANTI, 2019,

p. 9).

Tendo em vista que à luz de uma sociedade regida por valores patrilineares que decorrem, quase sempre, em atitudes machistas por

homens e mesmo reproduzidas por mulheres que podem ser consideras cúmplices e/ou reféns do sistema, Lourdes esteve a par de que

esse processo de problematização e conscientização precisara ser assumido num projeto desnormatizador e subversivo mais amplo, a

dramaturga incorpora estratégias que ajudam as(os) leitora(es)/espectadoras(es) no confronto consigo mesmo, ou seja, com

suas suposições, seus paradigmas e suas concepções equivocadas

sobre os papéis identitários e sociais construídos socialmente. Notadamente, os utopismos ramalhianos atravessariam modos de pensar

e tomaria como base, tal como se vêm formalizados em sua estética

literária-dramatúrgica, tropos crítico-reflexivos recorrentes no horizonte das utopias feministas.

A insatisfação com a realidade social terá, provavelmente, motivado a autora a fazer de sua dramaturgia um espaço de reinvenção da

sociedade, baseada num processo de reflexão cuja pauta principal

perpassa as discussões sobre os problemas do presente e a esperança

no futuro, principalmente no tocante aos desafios de ser mulher em

meio a uma sociedade regida por valores machistas. Movidos pelo

sonho, tal como a dramaturga, diversas(os) autoras(es) utopistas

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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contemporâneas(os), particularmente romancistas – dos gêneros

policial, ficção científica, histórico etc. –, têm apresentado em suas

obras temas utópicos, por mais que essas não se definam enquanto

gênero literário utopia.

No texto teatral ramalhiano Anjos de Caramelada (RAMALHO,

2008), o virar utópico da ampulheta (PAVIS, 2015), que configura a

reorganização identitária e sociocultural estabelecida de um quadro

de cenas para o outro, aponta para o rompimento das estruturas ideológicas patriarcalistas que condicionam os papéis de mulheres à

baliza dos papéis de homens. Sabemos que o tropo das inversões de

papéis não é um traço das utopias feministas contemporâneas. É preciso lembrar que desde os tempos de Aristóteles se observava que na

polis grega as mulheres travestiam a performance masculina como

estratégia alternativa para se expressarem (ARISTÓTELES, 1997).

A estratégia estética da utopia, ademais, se articula em uma dinâmica aproximada ao que se propõe no virar da ampulheta segundo

Patrice Pavis – em sua obra O Teatro no cruzamento de culturas

(PAVIS, 2015) –, cujo movimento reestabelece o lugar dos elementos

nas extremidades do gargalo, o que para essa discussão poderia ser

concebida, no campo da representação metafórica, como uma reestruturação sociocultural, um deslizamento de signos e sentidos que

passam de um lado para outro, na intersecção e ressignificação de

traços identitários e socioculturais. A metáfora do movimento da

ampulheta desenvolvida por Pavis nos ajuda a supor que as identidades de gênero feminino e masculino seriam suscetíveis à mudança,

mesmo que decorrente do cruzamento de extremos que se distinguem significativamente.

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Para ilustrar a ideia, a Cena 2 do Quadro 1 de Anjos de Caramelada destaca:

Cena 2

(Crianças entram.)

Pinto Fessora, venha arrumar a gente.

Bela Está na hora de me maquiar.

Rico Venha botar minhas botas e meu chapéu!

Professora Vão embora – saiam daqui!

Pinto Lá embaixo está cheio de gente pra festa!

Diretor Entrem, seus pestinhas, vamos ter uma conversinha!

Professora Saiam, não falem com ele! Saiam depressa!

Diretor Voltem!

Pinto Que vai e vem é esse? É pra sair ou pra voltar?

Diretor Venha cá! Como é seu nome, moleque?

Pinto Meu nome é Pinto.

Diretor Pinto? Será filho de alguma galinha?

Pinto Olhe o respeito!

Diretor Há tanta coisa que se chama “pinto”...

Pinto Qual é a graça?

Diretor Ou a desgraça? E você, como se chama?

Bela Meu nome é Bela.

Diretor Feia desse jeito?

Professora Não maltrate as crianças...

Diretor E elas não me maltrataram? Seu nome, pivete...

Rico Meu nome é Ricardo, mas me chamam de Rico.

Diretor Só se for de pena e bico. Seu pai é industrial?

Rico Não, senhor.

Diretor É latifundiário, empresário, político?

Rico É funcionário do Estado.

Diretor Um lascado que nem eu e ainda diz que é rico?

Sabem que vão ficar todos presos, nesta sala, pra nunca

mais depredarem o patrimônio público?

Professora Eles não fizeram nada!

Diretor Fizeram minha pressão subir a mil e descer a zero! E

por toda essa bagunça, vão ficar trancados! Boa festança e até

amanhã!

(Sai.)

Bela E agora?

Professora Não se preocupem. Alguém virá nos soltar. E enquanto

esperamos, vou contar uma história de Nossa Senhora, o

Céu, preparando a festa de aniversário de Jesus!

Todos Oba! Conte, conte, conte.

Professora Era uma vez...

(RAMALHO, 2008, p. 30-32).

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Nota-se que a atitude da Professora, no tocante à organização da

sala para a realização de uma peça teatral alusiva ao Dia das Crianças, foi repreendida pelo autoritário e agressivo Diretor, o qual ofende a educadora e as crianças Pinto, Bela e Rico, chamando-as de ladrões dos equipamentos que ali estavam. No ápice de sua raiva, o

Diretor decide trancá-los todos, porém, a Professora, na esperança de

que alguém venha resgatá-los, alternativamente aproveita aquele

tempo para realizar uma contação de história, na qual narra a história de Nossa Senhora nos preparativos para a festa de aniversário do

seu filho Jesus.

Para além de exercer uma atitude utópica, decorrente do seu modo de pensar criativo (VIEIRA, 2021) para diminuir a tensão do

momento junto às crianças, a Professora usa o poder da palavra para

combater a realidade distópica marcada por depreciação das atividades artísticas não tradicionais na sala de aula, bem como marcada

pelo autoritarismo, agressividade e ignorância representadas nas atitudes do Diretor no âmbito do espaço reservado para a realização da

pecinha de teatro.

O ato de contar uma história, como nos lembra John Langshaw

Austin, em Quando dizer é fazer (AUSTIN, 1990), aponta para uma

ação interventiva na realidade. Grosso modo, o autor defende que

dizer também é fazer, no sentido de que se propõe, pela linguagem,

agir. Por esta razão, a Professora, mesmo em condições de cerceamento do seu direito fundamental de liberdade para ir e vir, se põe a

agir livremente no universo da imaginação criadora acompanhada de

estudantes “espectouvintes” – no exercício do pensamento utópico

para combater a realidade instaurada pela truculência do diretor da

escola.

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Em estudo anterior, intitulado “Inês&Nós: Leitura Performativa

Gamificada, Formação de Professores Leitores e o Mito de Inês de

Castro” (ANDRADE; BARROS; ALMEIDA, 2022), inserido na coletânea Teatro e Política, organizada por Alexandre Flory e Priscila

Matsunada, do “GT Dramaturgia e Teatro” da Associação Nacional

de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL),

argumentamos que por muito tempo, os filósofos e cientistas da linguagem acreditaram que o papel de uma declaração era apenas de

“descrever” o estado das coisas, ou “declarar um fato”, o que deveria

fazer de modo verdadeiro ou falso. No entanto, em conformidade

com as ideias de Austin (1990), podemos inferir que a linguagem não

tem apenas uma função “constatativa”, isto é, ela não é utilizada apenas para descrição, pois ela também é uma forma de “ação” intencional e, por assim dizer, performativa/dramática. Os atos de fala

das(os) leitoras(es) – “dizedoras(es)”, diseures, declamadoras(es) –

em experiências performativas de leitura, nos mostram que dizer é

fazer e, por conseguinte, agir (ANDRADE; BARROS; ALMEIDA,

2022).

A contação de história realizada pela Professora, ademais, é usada

como estratégia contra o medo e o complexo de inferioridade que

poderiam ser sentidos depois de terem ouvido palavras abusivas do

Diretor. Seu pensamento criativo e resiliente seria tomado como

exemplo para as crianças que, mesmo ofendidas, seriam inspiradas

pela educadora a ressignificar aquela experiência traumática e transformá-la em um momento de prazer estético e aprendizado por meio

da escuta de uma história.

Assim sendo, o texto dramatúrgico apresenta, no Quadro 2, um

novo cenário, ou seja, o majestoso Céu, onde Nossa Senhora é uma

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mulher investida de soberania. Um trecho da Cena 1 deste Quadro 2,

destaca:

Nossa Sra. Eu não peço – MANDO!

São pedro E o que a senhora MANDA?

Nossa Sra. Venha me ajudar a fazer uns caramelos para a festa do

natal de meu filho.

São pedro Caramelos? Os anjos já fizeram, os querubins já fizeram e os serafins também. Tem doces demais!

Nossa Sra. Mas eu não fiz. Vá buscar açúcar na despensa.

São Pedro Não tem mais. Os anjos fizeram suspiros para os tristes da Terra.

Nossa Sra. Pois vá buscar chocolate.

São Pedro Fizeram ovo de páscoa pras crianças da Terra.

Nossa Sra. Vá buscar alfenim.

São Pedro Não tem mais nada, nada! A despensa está pelada!

Nossa Sra. Pois vá tirar três baldes de leite das vacas celestes!

São Pedro (Saindo.) – Tem gente que pensa que Céu é só descanso.

(Voltando.) – E haja leite pra encher o caldeirão!

(RAMALHO, 2008, p. 36).

Observa-se o projeto ramalhiano de romper com os velhos modelos de organização social fundados na desigualdade entre as pessoas,

em particular entre mulheres e homens. Os dois quadros que estruturam o texto não apenas propõem a brincadeira de inserir uma ação

dramática na outra, como num jogo de espelhos que multiplicam as

imagens, brincam entre si como um sendo o avesso do outro, com

foco especial no jogo de poder entre masculino e feminino. A professora, que, no Quadro 1 é humilhada e coagida, até fisicamente, pelo

diretor da escola onde ensina – terminando trancada com seus alunos, proibida de apresentar a pecinha de teatro que ensaiara para

comemorar o Dia das Crianças –, no Quadro 2 faz o papel de chefe da

cozinha do Céu, ninguém menos que a mais que soberana mãe do

Menino Jesus, tendo sob suas ordens o porteiro do lugar, um São

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Pedro preguiçoso e tão ranzinza quanto seu duplo no primeiro quadro, o diretor autoritário (ANDRADE, 2011).

Se uma Professora oprimida na escola pode ser convertida em

uma Nossa Senhora, figura de autoridade nas dependências celestiais

e, em uma virada utópico da ampulheta (PAVIS, 2015), o autoritarismo de um Diretor agressivo pode ser convertido em submissão na

figura de São Pedro, não há como duvidar que Lourdes Ramalho

vale-se da estratégia estética da utopia como quem brinca seriamente. A perspectiva utópica empreendida nesta obra tem como base

uma crítica aos papéis de autoridade distribuídos de maneira desigual entre mulheres e homens, dado que o mundo em que as mulheres são subordinadas é convertido num outro, idealmente possível,

em que mulheres são figuras de poder próprio consubstanciado em

soberania. A utopia de um mundo ideal, portanto, aponta para esta

soberania, representada na figura de Nossa Senhora, mulher de muitas virtudes e poderes exercidos no céu. Numa intercompreensão

tridimensional, essa estratégia estética da utopia figura com um Jogo

de Espelhos (ANDRADE, 2011), cujo objetivo é brincar de inventar

um Mundo às Avessas (AYALA, 1997), em que as mulheres não são

objetificadas, humilhadas e agredidas por Homens sem Coração

(MURDOCK, 2022).

Consideramos que é através do seu pensamento utópico, especialmente através do modo de pensar criativo (VIEIRA, 2021) – mesmo em tempos distópicos, de extrema desigualdade, preconceito,

opressão, privação, medo etc. – que Lourdes Ramalho faz da arte

dramatúrgica um espaço de imaginação de mundos utópicos, em

muitos dos quais a figura da mulher encontra direito e liberdade para

ser protagonista de sua história a par de uma heroína mítica, o que

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na vida real vem a ser um grande desafio de ordem sociocultural.

Tendo sido bem-sucedida na realização de sua utopia, o que se observa é um estratagema para o confronto contra a conjuntura cultural

e ideológica do modelo de sociedade baseada na imposição masculina, confrontando-o e desestabilizando suas estruturas a fim de pôr

do lado superior da ampulheta, oportunamente, a voz e a vez das mulheres silenciadas e subjugadas.

A estratégia estética da utopia de Lourdes Ramalho configura-se

como modo interventivo de posicionamento contra modelos sociais,

políticos e culturais de sociedade contra os quais resiste. Visando

projetar mundos melhores, a dramaturga ressignifica as conjunturas

sociopolíticas, valores, princípios éticos e afetivos dominantes, insatisfeita com as condições de existência presentes. Sua estratégia como base para a criação de obras de temática ideológica, notadamente

na ficção, destina-se à conscientização da sociedade frente a problemas no mundo real.

Sendo, pois, utopista, Lourdes Ramalho não apenas sonha com

um mundo em que a maldade pode ser combatida e vencida por meio

da atitude solidária, como incita os leitores de sua dramaturgia a se

engajarem nesse processo contínuo de melhoria do mundo. Consideramos que Lourdes Ramalho esperara que sua realidade fosse transformada à luz do sonho de uma sociedade melhor para mulheres e

homens. Acreditando, pois, em um Reino Utópico em que particularmente as mulheres são heroínas míticas, a dramaturga brinca e

promove um processo de reflexão que desestabiliza as estruturas patriarcais nos textos que escreveu para o público infantil.

Lourdes Ramalho denuncia com mais evidência o lugar das mulheres na sociedade patriarcal, inclusive exacerbadamente mal repre-

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sentada nas manifestações artísticas e literárias. Por meio de textos

teatrais para crianças, a dramaturga tomou estratégias múltiplas de

reinvenção de mitos e lendas populares para agregar questões relacionadas às ordens sociais e políticas decorrentes da igualdade nas

identidades de gêneros feminino e masculino na perspectiva da utopia.

Maureen Murdock (2022) nos lembra que quanto mais apreciamos a arte produzida por mulheres, poesia, peças de teatro e de dança incluídas, como também ambientes de trabalho projetados por

mulheres, mais valorizamos a voz da mulher, porquanto toda mulher

que dissipa o mito da inferioridade feminina, se torna um exemplo

para outras. Nos seus termos, “embora eu saiba que temos um longo

caminho a percorrer para alcançar a igualdade de gênero e de raça, as

jovens que hoje crescem em famílias das quais os valores femininos

são respeitados terão um foco em relações familiares e sociais mais

saudáveis amanhã” (MURDOCK, 2022, p. 65).

Antes que uma revolução se torne realidade, é preciso projetá-la,

seja por meio de procedimentos estéticos e ficcionais, seja por meio

do modo de pensar lógico e científico. Não por acaso concebe-se a

arte literária como vanguarda das mais significativas transformações

sociais, porquanto cria mundos alternativos quando o nosso muitas

vezes retrocede ou estagna. Enfim, não se pode esperar que a realidade mude antes da decisão de idealizá-la de outra maneira e, de fato, transformá-la com a nossa ação, pois de atitudes nossas depende

ela para que haja uma verdadeira mudança, missão que nos é dada

para sonhar a cada dia com um mundo mais harmonioso, habitado,

como indica Murdock (2022), por Mulheres e Homens com Coração.

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145

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Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

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“I am not a playwright”: theoretical crossings in the words of actress-authors

1

Resumo: A fim de mapear e valorizar a produção dramatúrgica de mulheres

em Londrina, PR, temos desenvolvido uma pesquisa cujas etapas principais

são entrevistas com dramaturgas para levantamento de dados sobre a participação da mulher na criação teatral na cidade e recolha de textos dramáticos

para estudo e análise. Neste texto, refletimos sobre a resistência dessas mulheres em serem consideradas dramaturgas.

Palavras-Chave: texto dramático; teatro contemporâneo; autoria de mulheres.

Abstract: In order to map and value the dramaturgical production of women

in Londrina, PR, we have developed a research whose main steps are interviews with playwrights to collect data on the participation of women in theatrical creation in the city and collection of dramatic texts for study and

analysis. This paper reflects on these women's resistance to being considered

playwrights.

Keywords: dramatic text; contemporary theater; women's writing.

1 Docente do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas e do Programa

de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) da Universidade

Estadual de Londrina. Graduada em Letras (1994) e Pedagogia (1997),

Mestre em Letras (1999), Doutora em Estudos Literários (2005). Realizou

estágios pós-doutorais na Sorbonne- Paris IV (2012) e na UEPB (2017-2018).

Atua nas áreas de dramaturgia e teatro, literatura comparada e literatura

infantil e juvenil. Contato: [email protected]

P:151

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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INTRODUÇÃO

O que pode explicar a dificuldade de mulheres que escrevem para

teatro em assumirem-se dramaturgas? Essa questão norteia nossa

reflexão, cujo objetivo é compreender a resistência de atrizes que escrevem para teatro em Londrina, município do norte do Paraná, em

serem chamadas de dramaturgas, e destacar as implicações teóricas

presentes nesses discursos.

A pesquisa2, em andamento desde agosto de 2020, começou como

projeto de iniciação científica realizada por Adalgiza Arantes Loureiro3, graduanda em Letras Vernáculas e Clássicas, com a finalidade de

mapear a produção dramatúrgica por mulheres em Londrina, especialmente no século XXI, embora sem exclusividade. Após um levantamento inicial, em redes sociais, sobre dramaturgas em atividade na

cidade, iniciamos a fase de entrevistas a partir das quais acessamos

dados sobre a produção textual e cênica de quarenta e quatro mulhe2 Vinculada ao projeto “Dramaturgia e teatro contemporâneos e suas

experimentações”, em desenvolvimento na Universidade Estadual de

Londrina desde novembro de 2018 (encerramento em agosto de 2023) sob

minha coordenação e desde maio de 2023 proposta como projeto

independente sob o título “Dramaturgia escrita por mulheres em Londrina:

pesquisa, estudo e divulgação”.

3 Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de

Londrina, em 1999. Graduanda do quarto ano de Letras Vernáculas e

Clássicas da UEL. Bolsista da Fundação Araucária (2020-2021) e do CNPq

(2021-2023). Contato: [email protected]. Agradeço imensamente a

Adalgiza pela transcrição dos trechos das entrevistas aqui utilizados e pela

seriedade e competência com que desenvolveu a pesquisa ao longo desses

três anos.

P:152

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

150

res. As entrevistas4 semiestruturadas, isto é, conduzidas a partir de

um roteiro prévio, mas flexível ao fluir da conversa e das digressões

de entrevistadas e entrevistadoras, elucidam questões como as motivações para a escrita, os contextos de criação dramatúrgica, as relações entre a criação textual e a criação cênica, dados sobre a produção textual (como títulos, datas de escrita e encenação, financiamentos, circulação etc.), a participação da mulher no meio de produção

teatral e cultural de Londrina, os principais temas abordados e as

relações entre eles e uma “visão feminina” da sociedade, dentre outros aspectos que dizem respeito a especificidades da produção de

cada dramaturga com que conversamos.

Durante os três anos de pesquisa (agosto de 2020 a julho de

2023), coletamos cinquenta e dois textos, alguns dos quais incompletos, e acessamos vinte e dois espetáculos em vídeo, portanto, o material para análise é composto de entrevistas, textos dramáticos e espetáculos teatrais. Por tratar-se de um vasto material, especialmente as

entrevistas, neste artigo recortamos apenas uma das questões pontuadas por várias das mulheres: a resistência em reconhecerem-se

dramaturgas. Do total de entrevistadas, são contempladas aqui as

declarações e as criações de apenas oito: Carol Ribeiro, Chris Vianna,

Laura Franchi, Maíra Kodama, Marina Stuchi, Naomi Freire, Rafaela

Martins, Raquel Sant’Anna.

As conclusões parciais da pesquisa apontam que há muitas jovens

mulheres escrevendo para teatro em Londrina, ocupando a cena teatral, operando para além do papel de atriz – geralmente reservado às

mulheres, enquanto os homens escrevem e dirigem. Elas são forte4 Em razão da pandemia de covid-19, as entrevistas foram todas realizadas

via Google Meet e gravadas com autorização das dramaturgas para utilização

na pesquisa em desenvolvimento.

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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mente motivadas pela concepção da cena, ponto de partida para suas

criações, desconstruindo a noção clássica de “dramaturgo/a de gabinete”, alheio/a ao processo da sala de ensaios. Muitas delas são professoras de teatro, o que implica, por exemplo, o trabalho coletivo e

colaborativo e assumirem o papel de dramaturgista, organizando

materiais e todo o processo de criação de texto e espetáculo.

A despeito da relevância dessa atividade criativa empreendida em

Londrina por tantas mulheres, inquieta a resistência delas em entenderem-se dramaturgas, questão que passamos a discutir.

“NÃO SOU DRAMATURGA”

Como parte da metodologia da pesquisa, Adalgiza entra em contato com as mulheres, esclarece o intuito do trabalho e convida para a

entrevista. Aí já começam as resistências... Algumas demoram a responder porque não imaginam atender ao critério base: ser dramaturga; outras entendem que não escrevem, apenas “costuram” um material produzido coletivamente; e ainda há as que acentuam o papel

secundário do texto, uma vez que a escrita deriva do processo de criação cênica, uma necessidade pragmática de registrar um “roteiro”

do que deve se desenrolar na cena.

Laura Franchi5, atriz e docente do curso de Artes Cênicas da UEL,

é um caso exemplar para a discussão desses aspectos, a começar pela

resistência declarada em atender a nosso pedido, justificada especialmente pelo fato de não se considerar dramaturga: “A Sonia está

5 Entrevista concedida a Adalgiza Arantes e Sonia Pascolati, via Google Meet,

em 15 fev. 2021, com duração de 65min.

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fazendo uma pesquisa com um monte de artistas da cidade. O que eu,

que estou lá dentro da academia, dirigindo montagem de formatura,

de quarto ano, vai querer falar alguma coisa disso, né?” (Depoimento

de Laura Franchi, 2021).

A fala de Laura traz à tona vários aspectos. Primeiramente, a improdutiva separação entre o universo de criação artística dentro e

fora da Universidade, especialmente considerando que boa parte de

nossas entrevistadas são egressas do curso de Artes Cênicas da UEL,

portanto, a Universidade tem um papel fundamental no fomento do

cenário teatral, formando atrizes, dramaturgas, produtoras, técnicas,

dentre outras possibilidades de atuação profissional. Alguns solos

são fruto de disciplinas da graduação, sem falar nas montagens de

formatura, campo fértil para o exercício da criação coletiva e que evidencia os múltiplos papeis da professora que acompanha o processo

dos alunos, afinal, ela faz direção de ator, direção de cena, dramaturgia, além de assessorar figurinos, iluminação, produção, divulgação

etc. O depoimento de Laura sublinha tanto o processo de criação

quanto a atuação da professora como dramaturgista – ou dramaturga-rapsoda, como preferimos –, aquela que reúne o material e lhe dá

uma organização, uma coerência, por mais que o resultado (propositadamente) seja híbrido e fragmentado.

Então, trabalha com improvisação, com jogos, a partir de textos, a

partir de situação. Independentemente de onde vem o material, chega

uma hora que você olha [...] pra aquilo que tá a cena, você vai organizar aquilo. Seja através de mapas, de tabela, de um texto dialógico, né,

de só rubrica. Mas, aquilo é organizado. E eu passei a tomar gosto por

aquilo, entendeu? De organizar esse material. (Depoimento de Laura

Franchi, 2021).

O processo de elaboração artística descrito por Laura deixa clara a

predominância do espetáculo, do improviso e da performance sobre

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a construção textual, aliás, algo nada surpreendente no contexto do

teatro contemporâneo, afinal, é notório o primado da encenação sobre a construção textual, evidenciando, como defende Josette Féral

(2008, p. 198), o quanto a arte teatral integrou em suas linguagens os

procedimentos da performance, uma das razões pelas quais ela propõe o conceito de teatro performativo para qualificar as produções

contemporâneas.

[...] se há uma arte que se beneficiou das aquisições da performance, é

certamente o teatro, dado que ele adotou alguns dos elementos fundadores que abalaram o gênero (transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação cênica em detrimento da

representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo à [sic] uma receptividade do espectador de natureza essencialmente especular ou aos modos

das percepções próprias da tecnologia...). Todos esses elementos, que

inscrevem uma performatividade cênica [...], constituem as características daquilo a que gostaria de chamar de “teatro performativo”.

Vários aspectos das encenações contemporâneas esclarecem as

razões pelas quais essas mulheres não se consideram dramaturgas,

com destaque para o fato de que, em grande parte dos processos (espetáculos solo ou criações coletivas) relatados nas entrevistas, especialmente com alunos mais maduros, não se trata mais de construção

de personagens e apresentação de um universo ficcional totalizador,

mas da presença de um corpo produzindo sentidos em cena, logo,

fora do espectro de uma representação de cunho mimético e aproximando-se de performances, “[...] processos que envolv[e][ia]m a execução de ações que não emergem de uma operação ficcional explícita

[...]”, que manifestam “[...] um desejo de não permitir que as próprias ações sejam vistas como representação, ou como agentes explícitos de ficcionalização.” (BONFITTO, 2013, p. 98). Logo, está implícita no discurso das entrevistadas uma concepção mimética de dra-

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ma, aos moldes do drama aristotélico-hegeliano, com os quais, pela

natureza da prática teatral (teatro performativo) desenvolvida, elas

não se identificam.

A configuração formal do texto dramático ou dos roteiros de encenação, afastados do modelo de drama puro – este calcado sobre o

diálogo intersubjetivo que move a ação e desenvolve os conflitos –, é

uma chave de leitura para a compreensão de que uma parte da recusa

das mulheres em compreenderem-se dramaturgas advém de certo

conceito de texto dramático. De acordo com Sarrazac (2017, p. 20),

sucede ao drama moderno e contemporâneo um processo de desdramatização, isto é, o fim da progressão dramática (pressuposto

aristotélico) e do conflito ou colisão dramática (pressuposto hegeliano), substituídos por microconflitos descontínuos, portanto, emerge

uma nova concepção de drama, que não mais progride à espera de

uma reviravolta e em direção ao desfecho. Desse modo, podemos

compreender que as mulheres por nós entrevistadas são sim dramaturgas, porém, não em um sentido clássico do termo.

De fato, o termo dramaturgista ou dramaturga-rapsoda seria mais

adequado para indicar o modo de trabalho de boa parte das produções comentadas nas entrevistas, uma vez que muitas são trabalhos

coletivos, portanto, se fazem a partir da reunião de contribuições de

atrizes, atores, alunas e alunos em formação ou já profissionais, material sobre o qual a responsável pela condução do processo se debruça a fim de dar-lhe coesão, organicidade. Esse processo de trabalho

resulta no que Sarrazac (2002; 2012; 2017) chama de drama rapsódico, avesso ao “belo animal” harmônico e uno descrito por Aristóteles

(1993).

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O drama rapsódico tende a heterogeneidade, irregularidade, hibridismo, fragmentação, multiplicidade, caracterizando-se especialmente pela “[...] oscilação entre os modos [épico, lírico e dramático] e

o transbordamento mútuo desses modos entre si” (SARRAZAC, 2017,

p. 251). O dramaturgo rapsodo é a figura que orquestra toda a heterogeneidade do novo drama, quem distribuiu a palavra, conduz as

personagens (SARRAZAC, 2017, p. 257). Ele opera num movimento

incessante de colagem de materiais e, “[...] no mesmo movimento em

que fragmenta [...], o autor-rapsodo congrega, expondo as costuras,

aquilo que acaba de rasgar, de pôr em pedaços” (SARRAZAC, 2017,

p. 273).

Um exemplo desse processo de escrita rapsódica é o texto É crua

a vida (2005), de Chris Vianna6, atriz, poeta, editora e produtora

cultural em Londrina, cujo processo de escrita ela assim descreve: “A

primeira montagem que eu fiz foi um recorte de três escritoras que é

a Hilda Hilst, a Clarice Lispector e Cecília Meireles” (Depoimento de

Chris Vianna, 2020), portanto, a dramaturgia (e a performance) se

constrói a partir de fragmentos de materiais preexistentes, costurados por meio de montagem e colagem. Para a construção de Como

cheguei até aqui, Marina Stuchi7 (2019) realiza uma montagem rapsódica de narrativas das atrizes da Cia. Relatos e dela própria e utiliza

músicas de diferentes épocas e estilos como fio a partir do qual consegue cerzir essas experiências reais reconfiguradas ficcional e dramaturgicamente e performá-las como um espetáculo de cabaré. O

resultado é um espetáculo crítico e bem-humorado que denuncia vio6 Entrevista concedida a Adalgiza Arantes e Sonia Pascolati, via Google Meet,

em 24 nov. 2020, com duração de 42min.

7 Entrevista concedida a Adalgiza Arantes e Sonia Pascolati, via Google Meet,

em 19 out. 2020, com duração de 48min.

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lências físicas e psicológicas sofridas por jovens mulheres em pleno

século XXI.

O texto Dentro da cozinha, assinado por Maíra Kodama8, também

é resultado da colagem de textos escritos por Maju Ferretti e Ana Curotto, jovens atrizes. Por partir de um material preexistente, Maíra

não se assume como dramaturga, argumentando:

Eu não entendo como uma participação na escrita porque o texto, ele

veio pra mim pronto. As meninas já trouxeram pra mim pronto. Tudo

foi construído muito coletivamente [...], eu não entendo isso como estar dentro da dramaturgia, eu entendo isso como conduzir, como

roteirizar os dois textos que elas escreveram. [...] Eu uni os dois. Eu

coloquei a música. [...] A única coisa que eu fiz foi juntar. Pegar um

fragmento de um, um fragmento de outro. Fragmento não, o texto

inteiro. Dividir eles e colocar numa ordem para ser dita [...] (Depoimento de Maíra Kodama, 2020. grifo nosso).

O processo descrito por Maíra vai completamente ao encontro do

que defende Sarrazac (2017) acerca do caráter rapsódico do drama

moderno e contemporâneo, reforçando que a negação do status de

dramaturga tem forte relação com uma concepção canônica de texto

dramático, já intensamente revista ao longo do século XX e neste

início de século XXI. Interessante notar que os termos utilizados por

Maíra, especialmente unir e juntar, remetem ao processo de costura

evidenciado pelo teórico francês.

Em 2018, as atrizes Raquel Sant’Anna9 e Raíssa Bessa formam a

companhia Te-Ser10 e estreiam o primeiro espetáculo em 2019: De

8 Entrevista concedida a Adalgiza Arantes e Sonia Pascolati, via Google Meet,

em 14 dez. 2020, com duração de 44min.

9 Entrevista concedida a Adalgiza Arantes e Sonia Pascolati, via Google Meet,

em 20 out. 2020, com duração de 40min.

10 Observar que, além de implicar a ideia de rapsódia (tecer), o nome da

companhia também remete à ideia de tessitura de vozes femininas, de dar

concretude à existência da mulher (SER) como categoria social, e

materializar experiências particulares de mulheres à medida que faz o outro

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uma à outra. Reunindo relatos de mulheres comuns e de destaque

em Londrina, além de experiências pessoais, o espetáculo se constrói

de modo fragmentado e como um quebra-cabeças, uma vez que a

cada apresentação o público escolhe quais objetos / relatos ficarão de

fora e decide a ordem em que as narrativas serão organizadas para o

espetáculo daquela noite.

Raíssa: Este espetáculo tem como tema o feminino, e foi construído

a partir de entrevistas e perguntas que fizemos com outras mulheres,

e também das nossas memórias.

Quel: A intenção é que a plateia possa participar de forma ativa do

que acontece em cena. Deu medo, né? Mas não se preocupem, vocês

não vão precisar nem sair do lugar de vocês para colaborar com a gente.

Raíssa: O que a gente precisa é que vocês façam escolhas.

Quel: Nós temos no palco diversos objetos espalhados... e para cada

um deles uma história. E são vocês que vão escolher quais objetos vão

fazer parte do espetáculo de hoje, ou seja, quais histórias serão contadas; e em que ordem isso vai acontecer.

(Leitor, você escolhe a ordem das suas cenas e escreve na última folha deste capítulo, quando explicamos como dar sequência à leitura

e seguir sua ordem pelo sumário. Fique livre para ler na ordem que

quiser as cenas. Cada sequência confere uma experiência diferente.)

(SANT’ANNA, 2019, p. 4)11

.

Tanto a leitura quanto a experiência como espectador remetem ao

modo hipertextual do ato de ler, procedimento inerente ao universo

digital que se espraia para outras formas de atividade do receptor,

como o teatro ou textos ficcionais impressos. Importante ressaltar o

papel atribuído a esse leitor-espectador, não só pelo jogo da escolha,

mas especialmente porque, ao instituir uma postura ativa, De uma à

outra instiga o receptor a sentir-se parte do processo, como de fato é

(Te = tu) reconhecer a potência do ser mulher.

11 Todos os textos dramáticos são inéditos e foram gentilmente cedidos para

estudo pelo grupo de pesquisa.

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no tecido social no qual as manifestações concretas do patriarcado e

do machismo afetam o ser da mulher.

Dois relatos chamam a atenção pelo predomínio da atuação masculina sobre a feminina. No primeiro caso, trata-se de uma situação

de ensino na qual o professor/diretor trabalha com materiais produzidos pelas alunas12, porém, embora elas contribuam diretamente

para o processo, não se veem como copartícipes e Naomi Freire13,

nossa entrevistada, minimiza a contribuição das alunas para a criação da dramaturgia – “[...] A primeira peça que a gente montou, né,

claro que com a direção do [omitido], ele sempre costurando

tudo, assim. A gente escrevendo mais as cenas, é..., cenas soltas,

assim. Eu escrevi alguma coisa, sobre algo específico [...]” (Depoimento de Naomi Freire, 2021). grifo nosso) – sem aperceber-se que

se trata, de fato, de coautoria, de processo colaborativo no qual o professor/ diretor atua como autor-rapsodo. O segundo exemplo vem do

trabalho de um coletivo formado durante a graduação de Laura

Franchi, relato permeado pela tomada de consciência do papel secundário muitas vezes atribuído à mulher na criação teatral.

Quando a gente estava fazendo faculdade, aqui em Londrina, a gente

teve um grupo de teatro. [...] E adaptava os textos. Mas era o [omitido] [...], o homem do grupo, o diretor do grupo que colocava o

texto em formato de dramaturgia, né. [...] Parece que as mulheres

realmente têm dificuldade de ocupar esse lugar [...]. (Depoimento de Laura Franchi, 2021. grifo nosso).

É fundamental as mulheres se darem conta de seu protagonismo,

pois, mesmo quando elas não contribuem com textos escritos, são

autoras da dramaturgia na medida em que o material criado como

12 Dos dez integrantes, nove eram mulheres.

13 Entrevista concedida a Adalgiza Arantes e Sonia Pascolati, via Google

Meet, em 09 fev. 2021, com duração de 37min.

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improviso na sala de ensaio é também uma participação, na tessitura

do texto, como atrizes, mesmo o resultado do processo sendo assinado por um outro. Isso vale para o ato da escrita: por mais que os materiais sejam híbridos e alheios, atua como dramaturga-rapsoda

quem organiza esse material, ainda que conservando sua heterogeneidade, sua natureza caleidoscópica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa pesquisa desvelou um rico cenário de mulheres dramaturgas: são jovens escritoras, em sua maioria formadas pelo curso de

Artes Cênicas da Universidade Estadual de Londrina (UEL) ou pela

FUNCART (Fundação Cultura Artística de Londrina), que se multiplicam nas funções de atrizes, diretoras, dramaturgas, professoras de

teatro, produtoras culturais, portanto, desempenham claro protagonismo no contexto teatral da cidade. O teatro londrinense chega ao

século XXI com uma gama de dramaturgas em plena atuação, tratando de questões feministas, sublinhando o caráter político da arte e

procurando conquistar seu espaço. Rafaela Martins fala como vê a

mulher dramaturga em Londrina:

[...] Eu acho muito importante sim, que tem que ter muitas e muitas

mulheres dramaturgas pra renovar a cena de Londrina. Londrina tem

esse histórico superimportante do FILO. É uma cidade que respira arte, que respira teatro. A gente tem o curso de Artes Cênicas da UEL,

que é uma referência nacional [...]. Eu dou toda força pra que as escritoras londrinenses se aventurem também na dramaturgia. (Depoimento de Rafaela Martins, 2020).

A despeito de nossa própria surpresa pela quantidade de mulheres que escrevem para teatro em Londrina, algumas mulheres relataram dificuldade em se lembrar de mulheres escrevendo para teatro, e

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não apenas quando perguntamos sobre isso e pedimos indicações de

dramaturgas, mas desde o momento do convite para colaborar com a

pesquisa, como a reação de Carol Ribeiro14 ao contato de Adalgiza,

explicando se tratar de uma pesquisa sobre mulheres dramaturgas

em Londrina:

[...] e aí eu fiquei pensando: bem, eu acho que eu preciso falar das

dramaturgas londrinenses, né [...]. Daí foi muito interessante isso,

porque eu fiquei pensando quem são as dramaturgas londrinenses,

né. Tipo, não conheço. Quem é meu Deus? Será que tem? [...] de modo algum eu me incluí nesse rol de possibilidades, né, enfim... (Depoimento de Carol Ribeiro, 2020).

Nossa pesquisa responde tranquilamente que sim, que há mulheres produzindo dramaturgia e teatro em Londrina, soltando a voz

para falar de questões que as tocam pessoal e coletivamente. As mulheres com quem prazerosamente conversamos não apenas têm assumido a própria voz ao escreverem dramaturgia, ocupando um espaço predominantemente masculino, como também dão voz a muitas

questões que tocam a tantas mulheres, como o machismo e o patriarcado, a violência física e simbólica, o empoderamento feminino e os

movimentos de resistência. Acreditamos que a escrita e a criação teatral sejam, para as dramaturgas que atuam em Londrina, uma forma

de partilha de experiências de condições femininas e um modo de

(re)existência.

14 Entrevista concedida a Adalgiza Arantes e Sonia Pascolati, via Google

Meet, em 06 nov. 2020, com duração de 53min.

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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SARRAZAC, Jean-Pierre. Poética do drama moderno – de Ibsen

a Koltès. Tradução Newton Cunha, J. Guinsburg e Sonia Azevedo.

São Paulo: Perspectiva, 2017.

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Mère Prision – The prision of consciences

1

Resumo: Mère Prison é uma peça de teatro da autora guianense Emmelyne

Octavie. O texto apresenta a rotina de uma mãe que se submete regularmente a visitas ao sistema carcereiro para acompanhar seus dois filhos que se

encontram na prisão. Ela vive com o outro filho que se encontra trancado no

universo dos videogames. O presente trabalho tem como objetivo analisar a

função dos monólogos e dos diálogos dessa obra. Em conjunto eles provocam

a experiência participativa do leitor/telespectador. Para tanto, recorre-se aos

apontamentos de Ryngaert (1998).

Palavras-chave: Teatro. Monólogo. Diálogo. Drama. Reflexão.

Abstract: Mother Prison is a play by Guyanese author Emmelyne Octavie.

The text presents the routine of a mother who regularly undergoes visits to

the prison system to accompany her children who are in prison. She lives

with her other son who is locked in the universe of videogames. This work

aims to analyze the role of monologues and dialogues in this work. Together

they provoke the reader/viewer's participatory experience. For that, Ryngaert's notes (1998) are used.

Keywords: Theater. Monologue. Dialogue. Drama. Reflection.

1 Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná –

UFPR; Professora de Língua Francesa no Centro de Línguas - CEL - da

UNICENTRO- Irati /PR; Professora Mentora na Universidade Virtual do

Paraná (UVPR) no Curso de Especialização em Ambientes de Aprendizagem

no Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE). E-mail:

[email protected].

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INTRODUÇÃO

Mère Prision traz como enredo a história de uma mãe que, duas

vezes por semana, enche-se de coragem, respira fundo e vai ao parloir. Essa palavra pode ser traduzida como salão, confessionário, parlatório ou locutório (S.BURTIN-VINHOLES, 1938, p. 506). É nesse

espaço que entoam as falas que serão colocadas em destaque. Tudo

que é dito nesse ambiente irá repercutir por meio de reflexões íntimas e solitárias em outros momentos. Essa mulher nas terças-feiras

visita seu primeiro filho na prisão; nas quintas o segundo, também

encarcerado, e nesse intervalo convive com o terceiro em sua casa

que está totalmente submerso no mundo dos videogames. Percebe-se

o quanto o universo prisional atinge a todos. Cada um carrega uma

pena específica.

A partir desse título “Mãe Prisão” a mãe ganha a conotação de

“prisão”. Nota-se que a escolha pelo substantivo ao invés do adjetivo

“prisioneira”, amplia o conceito de maternidade. A maternidade pode

representar um cárcere, segundo tal designação. Seguindo essa denominação, como todos tem uma mãe, todos possuem uma prisão

específica, subjetiva.

Nessa peça de construção cuidadosa, acompanhamos as barreiras

que prendem, as linhas que unem a mãe e seus filhos. Porém, o modo

como os entrelaçamentos estão dispostos nos faz questionar o próprio conceito de prisão. Os diálogos se revelam estratégias interessantes para o desenho de cada personagem; no entanto a força dos

monólogos ocupa um espaço privilegiado. Eles ocorrem nos momentos de solidão que antecedem ou sucedem as visitas. São as conside-

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rações íntimas sobre o que foi ou será dito. No momento dos diálogos, as ideias tecidas nesses monólogos estão ou estarão colocadas à

prova. Assim no ato dialógico, as palavras são as ações, pois cada sujeito irá se colocar em determinado posicionamento diante do processo prisional; nos monólogos ocorre a reflexão sobre as condições

dessas ações. Esse fluxo de dizer e reconsiderar evidencia as dores, os

amores e as amarras que os encarceram.

Todos os filhos exigem a atenção dessa mãe e a reprovam por diversos motivos. Em contrapartida, ela jamais os abandona e espera

calada o reconhecimento pela sua dedicação desmedida. Conhece-os,

sabe muito bem a diferença daquilo que são e do que julgam ser, mas

está fixa no discurso que proferem de maneira crucial. Para que ela

consiga ver seus filhos livres, faz -se necessário que se veja liberta de

si mesma.

Nos arredores das celas, temos os diálogos entre as mães e o coro

dos detentos, mais uma vez o par diálogo-monólogo aparece em potencial. As mães reúnem ideias parecidas que caminham para o fluxo

das ações positivas - a espera e a solidariedade compartilhada; os

detentos reúnem os julgamentos produzidos pelas consciências delituosas e a expressão de ironia e sarcasmo sobre si mesmos. Além disso, nos deparamos com as reverberações dos pensamentos do guarda

que age e simboliza suas ações.

Em Mère Prision, o leitor ganha um espaço de participação contínua, pois ele precisa preencher os vazios colocados pela autora que

insere, mas não define, aponta mas não explica. Desse modo, é impossível não penetrar nesse cárcere. Ao nos aproximarmos de cada

um deles, exercemos a nossa experiência para presentificá-los e

compreendê-los de modo próximo. O presente trabalho tem como

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objetivo analisar a função dos monólogos e dos diálogos dessa obra.

Em conjunto eles provocam a experiência participativa do leitor/telespectador. Para tanto, recorre-se aos apontamentos de Ryngaert (1998) que discute o uso dessas estratégias dentro do teatro

contemporâneo.

ENTRE O PESO DE SER E A MEDIDA DO PARECER

Émmelyne Octavie é uma autora guianense nascida em Caiena em

10 de outubro de 1999. Ela começa a escrever muito jovem e recebe

reconhecimento. Laureada com o prêmio inédito da África e outro

Mar em 2020 pelo seu texto Mère Prision, ganha o Prêmio JeanJacques Lerrant des Journées des auteurs de Lyon em 2022 pela

peça À contre-courant que será publicada em 2023 pela editora

Lansman Editeur. Ela ganhou o Prêmio SACD de la Dramaturgie

Francophone 2022. Suas obras trazem todo um universo de pessoas

que se situam à margem da sociedade. Em seus textos essas vozes

quase sempre ignoradas ou desconhecidas ecoam a tal ponto que

chegam a desafiar o leitor/espectador.

Mère Prision de modo específico traz questões universais: o papel

da mãe dentro da sociedade, o tratamento para quem infringe uma

lei, as prisões subjetivas, bem como retrata as individualidades por

meio do retrato preciso do fluxo de pensamento de cada uma dessas

personagens. Vale ressaltar que fisicamente elas são apenas esboçadas. Não sabemos nem ao menos seus nomes, suas idades, suas características físicas. Mas acabamos por conhecê-las devido a seus

pensamentos e comportamentos.

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A estrutura lacunar é aqui determinada pela construção da peça

que requer o preenchimento participação do leitor a cada instante.

Desde o início, o leitor se depara com a necessidade de participar

ativamente, as personagens são apresentadas da seguinte maneira:

“Les personages: Mère, Fils 1, Fils 2, Fils 3, Gardien, Détenu cellule

1, Autre mère, Choeur de détenus. (Aux yeux de auteure, ces moments du choeur, pourraient être accompagnés de performances

poétiques et choréografiées.)” (OCTAVIE, 2020, p. 6). 2. Observa-se

que não há uma descrição subjetiva, o que faz com que as personagens simbolizem uma coletividade. Assim, somos levados a vislumbrar uma cadeia de relacionamentos, pois podemos associar várias

identidades a essas figuras evocadas. A indicação cênica que se refere

ao coro, permite que o apelo social seja ainda mais acentuado, pois o

uso da coreografia e da performance imprime a importância do grupo e de sua perspectiva compartilhada. Dessa maneira, a peça traz

para a reflexão o senso comum sobre o significado dessas representações.

A estrutura da obra é organizada por meio da alternância entre

diálogos e monólogos, sendo que aqui serão destacadas as funções de

ambos. Os primeiros mostram a falta de comunicação e os segundos

implicam uma revelação e uma reflexão sobre essa falha de compreensão mútua.

A primeira parte abre-se com o parloir da prisão. A mãe vai visitar o filho 1 e a fala de ambos mostra um clima conflitante:

2 Personagens: Mãe; Filho 1, Filho 2, Filho 3, Guarda, Detento da cela 1,

Outra mãe, Coro de detentos. (Aos olhos da autora, esses momentos do coro

poderiam ser acompanhados de performances poéticas e coreografadas).

(OCTAVIE, 2020, p. 6- Tradução minha).

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Mardi: Parloir de la prision

Fils1 : (agacé) Arrête de faire ça.

Mère : quoi.?

Fils 1 :: Ce truc que tu viens faire quand tu te tais. Arrête de faire ça.

Ça me stresse. T’es pas venu ici pour te taire.

Mère : Est-ce que tu dors bien ?

Fils 1 (énervé) : Pose pas des questions idiotes non plus. sinon taistoi ! T’as cru que c’étais en cinq étoiles ici ? Tu crois quoi ?

Mère : Désolée. Je voulais ...

Fils 1(doux): T’excuse pas, mamam ! C’est juste que ton fils ne supporte plus d’être enfermé.

Mère : Je comprends... (OCTAVIE, 2020, p. 7).3

Nessa cena é possível identificar que esses momentos são de verdadeiros insultos para com essa mãe. Que se faz calada ou diz muito

pouco. Seu papel é de acompanhar esse filho que se mostra muito

irritado. Mais do que palavras, são as ações de um para com o outro

que trazem o drama conflituoso para a cena: ele só acusa e ela só suporta. O preso só pensa em sua situação, é incapaz de perceber a dor

dessa mãe. Divide com ela o peso da prisão. Mesmo calmo, ele continua justificando a sua agressividade.

Temos acesso às palavras da mãe somente com a apresentação do

seu monólogo. Ela profere um discurso longo, repleto de cenas externas que remetem a sentimentos mais dolorosos:

Dehors; en attendant le bus

Mère : Après le parloir, j’aimerais rentrer à la maison. Prendre une

douche. Me frotter fort pour faire disparaître ce que je crois être

l’odeur de la prision. Je suis incapaple de vous dire quelle odeur c’est.

3 Terça : Parlatório da prisão

Filho 1 : (irritado) Pare de fazer isso./ Mãe : O quê.?/Fils 1: Essa pegadinha

que você faz quando fica quieta. Pare de fazer isso. Me irrita. Você não veio

aqui para se calar./ Mãe: Você dorme bem? / Filho 1 (nervoso) : Não faça

pergunta idiota. Senão fique quieta! Pensa que isso aqui é um cinco estrelas?

O que está pensando? / Mãe : Desculpas. Eu só queria .... / Filho 1(calmo):

Não se desculpe, mamãe! é que seu filho não suporta mais ficar trancado./

Mãe : Eu compreendo ... (OCTAVIE, 2020, p. 7 Tradução minha).

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Mais elle existe. Elle est bien là.. Mais cette douche ne saurait enlever

de ma tête le bruit des portes qui s’ouvrent et se referment.

(OCTAVIE, 2020, p. 10).4

Estamos diante de um desabafo. A mãe se revela uma prisioneira,

pois mesmo não estando em uma cela, ela carrega o cheiro e o barulho das portas. O odor é um dos sentidos mais sutis, pois ele é bastante próximo da abstração. Não o tocamos, não o vemos, mas o sentimos. Também é assim a prisão para a personagem. Durante o caminho para o trabalho ela pega dois ônibus. No primeiro observa as

mães, os filhos e os homens que não estão na condição paterna, distantes. Ela se vê nessas pessoas, reitera a sua situação de mãe solteira. No segundo, observa a liberdade das pessoas, apressadas e apaixonadas, perfumadas. Nesse caso, ela se diferencia do que considera

como sinônimo de felicidade. Ela só consegue vislumbrar para si a

situação carcereira, vitimada e solitária. Relata trabalhar até mais

tarde para compensar o horário da visita na prisão: “Je finira après

tout le monde. Comme tous les mardis. Ainsi va ma peine”. (OCTAVIE, 2020, p. 10) 5. Observa-se que essa remissão contínua a sua dor

a coloca dentro de um pensamento fixo, asfixiante, recorrente que

não a deixa viver outras experiências. E isso nos é fornecido nessa

peça através desse monólogo.

Ryngaert (1998, p. 94) afirma: “O monólogo pode ser considerado

como uma espécie de limite da escrita dramática, às vezes irritante

pelo narcisismo que desvela quando é tratado com ingenuidade, ain4 Lá fora ; esperando o ônibus/ Mãe: Depois da visita, eu gostaria de entrar

em casa. Tomar um banho. Me esfregar bem até desaparecer esse cheiro que

eu creio que é da prisão. Ele está bem aqui ... Mas esse banho não poderia

tirar da minha cabeça o barulho das portas que se abrem e que se fecham.

(OCTAVIE, 2020, p. 10- Tradução minha).

5 Eu terminarei depois de todo mundo. Como todas as terças. Assim segue a

minha pena. (OCTAVIE, 2020, p. 10- Tradução minha).

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da que frequentemente fascine o público pelo sentimento do risco

assumido pelo ator”. Nesses momentos de conversa íntima as personagens apresentam um respiro diante das ações mais tensas vivenciadas por meio dos diálogos. Segundo o teórico: “A utilização dos monólogos após o acontecimento ou fora dele exclui as situações fortes

demais, diminui ou elimina o que ele tem de dramático.” (RYNGAERT, 1998, p.98).

Tal recurso é muito recorrente nessa obra, o que possibilita ao leitor ou espectador avaliar e analisar os conflitos de um modo mais

amplo, pois todas as personagens ao proferirem seus monólogos acabam que por se aproximar do público, revelam-se e chamam para si a

atenção de suas perspectivas, sensações, razões e sentimentos.

Considerando que os diálogos estabelecem os conflitos e os monólogos as reflexões sobre eles, analisa-se nesse momento alguns dos

monólogos mais relevantes da obra a fim de estabelecer os entrelaçamentos entre o pensar e o agir.

ENTRE A FORÇA DO AGIR E A SUTILEZA DO PENSAR

Observamos que o Filho 1 estabelece um relacionamento bastante

autoritário com a mãe: a todo momento ele ordena, ameaça e exige

um ou outro comportamento dela. Mas quando está diante de si

mesmo e passa a pensar na sua vida e nas suas próprias atitudes, ele

se revela terno e bastante grato para com a mãe. Ao comparar a atitude dela com a da sua ex-mulher declara:

Therèsa m’a rendu visite quatre fois au parloir. Elle n’a même pas eu

le courage d’une cinquième visite pour venir me plaquer. Maman, elle, ne m’a donné laisser tomber. C’est une brave ! C’est ma femme !

Pour le meilleur et pour le pire, même si pour l’instant les barreaux

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nous séparent. Je surveillerai le temps pour lui dire: Je t’aime ma petite maman. (OCTAVIE, 2020, p. 31).6

Nesse monólogo ocorre a comprovação do quanto esse filho ama a

sua mãe e ao mesmo tempo como ele é incapaz de expressar toda a

sua ternura por ela.

O segundo filho, se comporta de maneira menos impulsiva, mas

não é cordial com a mãe. Sua maior característica é o cálculo e o raciocínio lógico. Foi preso por exercer a função de tesoureiro do tráfico.

Segundo as suas palavras: “Je n’ai rien à voir avec tous ces criminels.

Moi : j’suis un matheux. Un scientifique. J’ai la solution à mon problème pour sortir d’ici. Faut juste que maman me donne un coup de

main.” (OCTAVIE, 2020, p. 17)7

. Ele não sente a culpa pelo crime;

ressalta as suas habilidades e sempre declara que precisa da mãe para conseguir o que necessita. Demonstra com essas reflexões o quanto é egoísta, renuncia às responsabilidades e acaba por sacrificar as

forças e os recursos dessa mulher mãe a fim de conseguir atingir os

seus objetivos.

Quando ela tenta exprimir a sua afetividade, ele a ignora e vai direto ao alvo de suas preocupações: “Jeudi - parloir de la prision.

Mère : Je te trouve en pleine forme. Fils 2 : La semaine prochaine, je

passe enfin devant le juge des réductions de peine. Tu entends ça

6 “Therèsa me visitou quatro vezes. Ela não teve coragem de visitar pela

quinta para me encarar. Mamãe, essa nunca me deixou cair. É uma

guerreira! É a minha mulher! Para o melhor e para o pior, mesmo se neste

instante as grades nos separam. Eu acharei o momento oportuno para lhe

dizer: Eu te amo minha mãezinha.” (OCTAVIE, 2020, p. 13 - Tradução

minha).

7 Eu não tenho nada a ver com esses criminosos. Eu sou um matemático. Um

cientista. Tenho a solução para sair daqui. Mas é preciso que mamãe me dê

uma mãozinha. (OCTAVIE, 2020, p. 11- Tradução minha).

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maman? ” (OCTAVIE, 2020, p. 11).8 O diálogo fica cada vez mais tenso quando ele descobre que ela não conseguiu pagar tudo ao advogado que o defende: “Fils 2: Maman, tu déconnes? Tu sais bien que je

n’aime pas devoir. J’aime pas des dettes. Arrange-toi pour payer

rapidement. Faut pas que tu merdes ce coup. J’ai besoin de toi, mamam. Tu entends?” (OCTAVIE, 2020, p. 11)9. A fala revela o seu raciocínio claro e objetivo, ao mesmo tempo, é frio e desumano. Obrigando-a a pagar a sua dívida, ele tenta saldar seus débitos para com a

sociedade, mas não observa o quanto está endividado para com a sua

própria matriarca. Explora-a, justificando que uma mãe tem uma

responsabilidade eterna para com seus filhos.

Quando ela falta à visita do irmão, pela primeira vez depois de

anos, ele a acusa de modo bastante cruel. Coloca-a na posição de alguém que infringe uma lei social: “Maman est libre. Tout le monde a

vu. Tout le monde parle ici. Tous quartiers seront au courant avant

même la promenade. FAIT DIVERS EN PRISION. UNE MÈRE

ABANDONNE SES GARÇONS.” (OCTAVIE, 2020, p. 37).10 A notícia

dessa mãe que falta à visita é retratada como uma manchete de um

jornal sensacionalista. Ele alardeia e julga, tal como um jornalista

tendencioso que quer chocar com as suas palavras. O fato de ela ser

8 Quinta – parlatório da prisão. Mãe : Você está com uma ótima aparência.

Filho 2 : Semana que vem, eu passo enfim pelo juiz de redução de penas.

Você está escutando, mãe? (OCTAVIE, 2020, p. 11- Tradução minha).

9 Filho 2: Mamãe, você está brincando? Você sabe muito bem que eu não

gosto de ficar devendo. Não gosto de dívidas. Dê um jeito para pagar tudo

rapidamente. Não vá estragar essa chance. Eu preciso de você mamãe . Está

escutando ? (OCTAVIE, 2020, p. 11- Tradução minha).

10 Filho 2: Mamãe é livre. Todo mundo viu. todo mundo fala aqui. Por todos

os cantos corre a notícia antes mesmo do fato acontecer. MANCHETE NA

PRISÃO: UMA MÃE ABANDONA SEUS FILHOS. (OCTAVIE, 2020, p. 37 -

Tradução minha).

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livre é retratado de maneira bastante negativa e maldosa. Ele quer

que ela sinta culpa pela condição desses filhos criminosos.

Em contrapartida, à meia-voz, , ela reclama: “Les hommes que

vous êtes devenus n’ont plus rien de l’enfance.” (OCTAVIE, 2020, p.

13)11

. A fala se remete não apenas à vida adulta e as suas responsabilidades, mas também implica o reconhecimento da inocência desses

filhos. Assim, ela mesma os condena. Observa-se que não há uma

compreensão mútua. O filho repete várias vezes a expressão: “você

está entendendo?”. Ela o enxerga como responsável pelos seus atos,

enquanto ele tenta provar sua inocência por meio de planos e raciocínios lógicos.

Com o filho 3 também ocorre uma sequência de incompreensões.

Quando ela retorna para a casa, sem ânimo e sem as compras, esse

reclama: “Au lieu de rapporter des courses tu rapportes sur toi

l’odeur Prision j’adore! Ça tout la gerbe et moi. J’ai faim dans tout

ça.” (OCTAVIE, 2020, p. 15)12. Ele também exige dela , utiliza-se da

ironia, brincando com o famoso perfume J’adore, recorre ao cheio da

prisão e da injustiça pois, a partir dessa concepção, a mãe se doa para

os detentos com enlevo e o deixa de lado. A fome que ele tem do

amor de mãe está expressa por meio da fome física. Em conversa

com si mesmo, declara:

Du jour au lendemain je suis devenu l’homme de la maison sans mode d’emploi. Sans aucune préparation. Je veille sur maman, J’évite les

conneries et j’évite les copains. J’evite aussi les filles. J’évite la vie. Je

reste longement assis sur ce canapé pour ne faire de mal à personne,

11 “Os homens que vocês se tornaram não têm mais nada de infantil. ”

(OCTAVIE, 2020, p. 13 - Tradução minha).

12 Ao invés de trazer as compras, você traz a fragrância Prisão que eu adoro!

O que se espalha e se aproxima de mim. E eu só tenho fome nisso tudo.

(OCTAVIE, 2020, p. 15 – Tradução minha).

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soutout pas à maman. Elle finira par craquer, c’est sûr. J’ai vu ça à la

télé. Je me prépare pour ce jour-là. Maman aura encore plus besoin

de moi.” (OCTAVIE, 2020, p. 29).13

Ela o responde por meio de sua visão analítica, mas o filho não a

compreende: “Mère: On a tous dans la vie une porte de prision qui

nous pend au nez.” (OCTAVIE, 2020, p. 15).14 Dessa forma, alerta-o

para os conflitos humanos que impedem a liberdade plena dos sujeitos.

Os monólogos imprimem a revelação desse olhar interior, o qual é

posto à prova por meio dos diálogos. O filho 1, sozinho, compreende

a sua impulsividade desmedida e até mesmo se compromete a melhorar seu comportamento. Porém, é nos diálogos que ele realiza o

contrário. Em uma das cenas mais fortes, humilha tanto a mãe porque essa vai visitá-lo, mais arrumada do que o costume, mas instantes antes, refletia sobre a sua maneira de agir.

Fils 1: Le mardi c’est parloir. Je vois ma mère. Je sais qu’elle a honte

parce que moi j’ai honte de moi. Honte de la faire venir ici, mais au lieu de dire à ma mère, maman je t’aime, merci à mardi prochain, la

honte me glifle tellement fort que je déconne sur maman. Je déverse

ma violence carcérale sur cette pauvre dame. (OCTAVIE, 2020, p.

25)15

13 “De um dia para o outro eu me tornei o homem da casa sem manual. Sem

nenhuma preparação. Eu cuido da mamãe. Evito os divertimentos, evito os

amigos e evito as garotas. Eu evito a vida. Fico longamente sentado nesse

sofá para não fazer mal a ninguém, sobretudo à mamãe. (...) Ela terminará

por desabar, é certo. Eu vi isso na tevê. eu me preparo para esse dia. Mamãe

terá ainda mais necessidade de mim. (OCTAVIE, 2020, p. 15 Tradução

minha).

14 “Mãe: Todos temos uma porta de prisão bem em nosso nariz.” (OCTAVIE,

2020, p. 15 Tradução minha).

15 Filho 1: Terça é dia de visita. Eu vejo a minha mãe. eu sei que ela tem

vergonha porque eu tenho vergonha de mim. Vergonha de a fazer vir aqui,

mas ao invés de dizer a minha mãe, mamãe eu te amo, obrigado até terça que

vem, a vergonha me fere tão fortemente que eu a desmereço. Eu despejo

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Observa-se a consciência dos atos, a reflexão sobre as ações e a

falta de controle. Há uma honestidade nessas palavras. As expressões: “minha mãe” e “mamãe” são repetidas várias vezes, o que acarreta a representação da emoção, acentuada pela descrição “pobre

senhora”. Essas escolhas denotam uma forte afetividade e valorização do esforço dessa mãe. Entretanto, diante de sua presença, somente a violência é posta em cena:

Fils 1:Comprends ça, si moi ici je ne peux pas être beau, tois dehors,

t’as pas le droit de te faire belle. J’ai besoin de sentir que tu partages

ma peine. Tu as tout gaché, maman. Et dire que je voulais blottir

mes mots tout contre toi. Gardien ! (OCTAVIE, 2020, p. 26)16

Esse filho mostra entre o monólogo e o diálogo, seu bloqueio em

ser amoroso, tem medo de mostrar a sua afeição, por isso sempre

encontrará algum motivo para expressar a sua violência. O fato de a

mãe ter se arrumado para visitá-lo, despertou-lhe a sua situação subalterna, de preso fragilizado - bela e livre, ela possui uma grande

vantagem sobre ele.

Mas essa mãe confessa, novamente, a sua própria prisão interna.

Em um monólogo indica, por meio de uma profunda análise, como

essa prisão teve início: “Moi, je n’ai eu le luxe de la préférence. Un

jour, mon téléphone sonne, je décroche, ne comprends rien et depuis

ma vie est en attente. L’enterrement, lui, ne dure qu’une fois. Alors,

minha violência carcerária sobre essa pobre senhora. (OCTAVIE, 2020, p. 15

- Tradução minha).

16 Filho 1: Compreenda isso: se eu aqui não posso ser belo, você lá fora, não

tem o direito de ficar bonita (foge do tom informal = ficar bonita?. Eu preciso

sentir que você divide comigo a minha pena. Você estragou tudo, mamãe. E

pensar que eu queria te dizer doces palavras. Guarda! (OCTAVIE, 2020, p.

26 - Tradução minha).

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je me suis faite belle pour ne plus me détester moi-même. Pour ne

pas être deuil.”(OCTAVIE, 2020, p. 27).17

O trecho tece a comparação entre a prisão e a morte. Para ela, essa condição de espera é um desfalecer contínuo. O passado é expresso com o tempo presente, o que aproxima o momento em que recebe

a ligação e presentifica a eterna condição de espera pela liberdade

dos filhos. O fato de ela ter se arrumado, é descrito como uma iniciativa diante dessa sentença. Como se não mais sofresse passivamente,

decide agir, cuidar de si, não apenas dos filhos, sentir-se viva, autora

de seus próprios atos.

Após essa concepção, ela contradiz o seu discurso reflexivo, assumindo a responsabilidade materna: “Ces mêmes fils que la justice

m’a pris étaient avant blottis dans mon ventre. Ils sont passés des

barreaux des berceaux à ceux de la prision. À croire que je n’ai pas

prié Dieu assez fort.” (OCTAVIE, 2020, p. 27).18 Com tal confissão, a

mãe recai na não aceitação das prisões, não compreende como os

filhos se tornaram bandidos. Acusa à justiça e ainda se intitula como

não merecedora da misericórdia divina. Esse olhar que descreve é

bastante autopunitivo, o que não lhe permite dar continuidade a atitudes positivas. Em conjunto, os monólogos acusam a sua duplicidade de consciência.

17 Eu, eu não tive o luxo da preferência. Um dia, meu telefone toca, eu

atendo, não compreendo nada e desde então minha vida está esperando? Um

enterro não passa de uma única vez. Então eu me fiz bela para não me

detestar mais. Para não mais estar em luto. (OCTAVIE, 2020, p. 27 -

Tradução minha).

18 Esses mesmos filhos que a justiça me prendeu, estavam antes

aconchegados em meu ventre. Eles passaram das grades dos berços para as

grades da prisão. Deve ser porque eu não roguei o suficiente a Deus.

(OCTAVIE, 2020, p. 27 - Tradução minha).

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O mesmo ocorre quando decide não fazer a visita ao filho 1 pela

primeira vez: “Une mère suporte plus qu’elle ne devrait. Aujourd’hui,

pour la première fois depuis plusieurs années, je reprends ce qui

m’appartient. Ma part de ma liberté.” (OCTAVIE, 2020, p. 27)19. Ela

ganha autonomia e consegue agir de maneira assertiva, sabe-se mais

livre. Mas na sequência, retoma a posição de prisão ao cair em desânimo e desespero: “C’est comme je n’étais partie nulle part au final.

Je n’ai rien oublié de la présence insoutenable de ces portes, ce

bruit ! Il n’y a pas de barreaux ici. Il n’y a que des portes. Des centaines de portes...” (OCTAVIE, 2020, p. 39)20 . Ocorre o desabafo e a

sensação de estar presa vem à tona de maneira muito clara. As portas

são intransponíveis. Vê-se um sujeito machucado, que precisa curar

as feridas e os traumas para conseguir resgatar a sensação de liberdade.

Após toda essa demonstração de alternância entre os diálogos e

monólogos, o que permitiu ao leitor/espectador conhecer as contradições de cada uma das personagens, a autora nos fornece um exercício interessante: imaginar as últimas reflexões dessa mãe.

Na cena final ocorre o encontro simultâneo entre ela e os dois filhos presos. Têm-se a tensão e a tentativa de uma nova configuração

a respeito do fato de ela ter faltado à visita. Eles tentam assegurar o

domínio, porém no fim esperam a contrapartida dela, o seu pronunciamento:

19 Uma mãe suporta bem mais do que deveria. Hoje , pela primeira vez desde

muitos anos, eu retomo o que me pertence. Minha cota de liberdade.

(OCTAVIE, 2020, p. 31 - Tradução minha).

20 É como se eu tivesse partido para lugar algum no fim das contas. Eu não

esqueci da presença insustentável dessas portas. Esse barulho! Não tem mais

nada além de barreiras aqui. Não tem nada além de portas. De centenas de

portas. (OCTAVIE, 2020, p. 39 - Tradução minha).

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177

Fils 1: (la en coupant violement) On t’as pas donné la parole.

Fils 2: Y a des règles ici, même pour les visiteurs.

Fils 1: Est-ce que c’est bien compris, MAMAN?

(La mère arrange sa larme et secoue la tête).

Fis 2: C’est bon. Je crois qu’elle a compris.

Fils 1: Maintenant, on écoute. Tu voulais nous dire quelque chose

MA-MAN?

(Noir final brusque). (OCTAVIE, 2020, p. 27).21

A peça é finalizada de maneira abrupta. Desse modo, cabe a nós

imaginarmos as palavras finais e nos questionamos: um fim seria

mesmo necessário ou apenas a experiência vivida durante o acompanhamento das personagens já seria o suficiente? Cabe a nós dar uma

resolução para esses dilemas apresentados? Compreender a situação

de cada um é a oportunidade que nos é ofertada. Se a aceitamos tornarmo-nos mais humanos e acessíveis às peculiaridades alheias. Dessa maneira, podemos até mesmo nos tornar menos prisioneiros dos

outros e de nós mesmos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da leitura da peça é possível nos deter nas funções dos

diálogos e dos monólogos. Os primeiros instauram os conflitos; os

segundos nos dão acesso às intimidades e reflexões de cada uma das

personagens. Em conjunto, eles fornecem as possibilidades de participação consciente desse leitor. Temos condições de julgar, analisar,

21 (cortando violentamente a fala da mãe) Filho 1: Nós não te demos a

palavra! / Filho 2: Existem regras aqui, até para os visitantes. / Filho 1: Está

entendido, MAMÃE? (A mãe enxuga a lágrima e segura a cabeça). / Filho 2:

Está bem. Eu acho que ela entendeu. / Filho 1: Agora , a gente escuta. Você

queria nos dizer alguma coisa, MA-MÃE?/ Escuro. Final brusco. (OCTAVIE,

2020, p. 40 - Tradução minha).

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porém antes de tudo, podemos sentir o peso de cada uma dessas

complexas experiências.

Com relação aos monólogos, eles são de extrema relevância, inclusive são exercidos até mesmo pelas personagens periféricas. O

guarda mostra-nos todo o cenário carcereiro por meio de suas colocações pessoais:

J’ai vu des hommes grandir en prision. J’en ai vus d’autres vieillir.

Des hommes devenir tombe. Je donne des ordres et je fouille des hommes qui auraient pu être mon père. Je suis le gardien du temps. Je

confisque. Je vol aux enfants leurs parents. Répercutions dehors,

des gamins privés d’affections. Je rappelle à l’ordre. (OCTAVIE,

2020, p. 20).22

Observa-se nessa fala não somente a função social do guarda, mas

o peso de uma culpa. É ele que de certa forma impede a convivência

das crianças com os seus pais. Além disso, observa a transformação

dos presidiários, bem como o passo lento em direção de sua ruína,

diariamente. A declaração é uma lástima por presenciar esses destinos tão tristes e irremediáveis. Seu pronunciamento é uma crítica ao

sistema prisional que degenera os sujeitos, ao invés de reeducá-los

para a reinserção social.

O coro dos detentos também exerce o papel interessante de pronunciamento público. Essas vozes ecoam dentro e fora da prisão, tal

como um inconsciente coletivo que reverbera: “La guerre, c’était

demain! N’oublie pas ceux qui ne t’ont pas oubliés. Ceux qui dehors

22 Eu vi homens crescer na prisão. Vi outros envelhecer. Homens se

tornarem tumba. Eu dou ordens e revisto homens que poderiam ter sido meu

pai. eu sou o guardião do tempo. Eu confisco. (OCTAVIE, 2020, p. 20 -

Tradução minha).

Eu roubo os pais das crianças. A guerra seria amanhã! Não esqueça aqueles

que não te esqueceram. E quando chegar o dia da partida, não esqueça esses

questão aqui no fundo. (OCTAVIE, 2020, p. 32 - Tradução minha).

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t’attendent. Et quand viendra le jour du départ, n’oublie pas ceux

d’un fond. (OCTAVIE, 2020, p. 32).23 Esses pensamentos que ecoam

e ficam no ar; acompanhando toda a trajetória desse enredo.

Como as personagens não são nomeadas, a significação desses monólogos apresentados expande-se. Tais reflexões e pensamentos são compartilhados e repetidos, por sujeitos similares que descrevem as mesmas posições diante do cenário coletivo.

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Andréa Stahel M. da Silva: Martins Fontes. São Paulo, 1998.

23 Eu vi homens crescer na prisão. Vi outros envelhecer. Homens se

tornarem tumba. Eu dou ordens e revisto homens que poderiam ter sido meu

pai. eu sou o guardião do tempo. Eu confisco. Eu roubo os pais das crianças.

A guerra seria amanhã! Não esqueça aqueles que não te esqueceram. E

quando chegar o dia da partida, não esqueça esses aqui no fundo. OCTAVIE,

2020, p. 32 - Tradução minha).

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Carmilla and her representations in the cinema

1

Resumo: Este ensaio discute a representação cinematográfica de Carmilla,

vampira criada pelo escritor Sheridan Le Fanu no final do século XIX. Para

tanto, são analisados os filmes realizados a partir do final da década de 1960,

especialmente The Vampire Lovers, de 1970. Procura-se demonstrar como

esses filmes expressam o ideário conservador de reação ao ascenso do feminismo, em grande medida bebendo em representações expressas na obra

original, escrita no final do século XIX.

Palavras-chave: Carmilla; Cinema; Conservadorismo; Vampiros.

Abstract: This essay discusses the cinematographic representation of Carmilla, a vampire created by the writer Sheridan Le Fanu in the late 19th century.

For this, films made from the end of the 1960s onwards are analyzed, in particular The Vampire Lovers, from 1970. It seeks to demonstrate how these

films express the conservative ideology of reaction to the rise of feminism,

which largely derived from in representations Expressed in the original

work, written at the end of the 19th century.

Keywords: Carmilla; Movie theater; conservatism; Vampires.

Os vampiros tiveram diferentes representações artísticas, especialmente a partir da segunda metade do século XIX. São exemplos

obras literárias clássicas escritas por nomes como John Polidori,

Bram Stoker e Sheridan Le Fanu.

2 O cinema rapidamente se apropri1 Realizou pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutor em História

pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atua no Instituto

Federal Catarinense (IFC).

2 Existe uma retomada editorial da novela Carmilla, sendo exemplos

recentes Le Fanu (2010, 2018, 2022).

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ou dessas representações, sendo marcante filmes como Nosferatu e

outras adaptações de Drácula, realizadas ainda na década de 1920.

A partir do final da década de 1960, observa-se o lançamento de

muitas produções que colocam em cena personagens mulheres vampiras, algumas das quais lésbicas, em especial na chamada Trilogia

Karnstein, que inclui os filmes The Vampire Lovers (“Carmilla”,

1970), dirigido por Roy Ward Baker, Lust For a Vampire (“Luxúria

de vampiros”, 1971), de Jimmy Sangster, e Twins of Evil (“As filhas

de Drácula”, 1971), de John Hough. Para além dessa trilogia, também

foram produzidos outros filmes que destacam mulheres vampiras,

como Vampyros Lesbos (1970), do diretor espanhol Jess Franco, que

adapta livremente uma novela de Bram Stoker, intitulada “O hóspede

de Drácula”, modificando o gênero da personagem, a qual ganha traços que lembram Carmilla.

3 Neste ensaio serão comentados apenas o

filme The Vampire Lovers.

Essas mulheres, apresentadas como criaturas perigosas que ameaçam a sociedade patriarcal burguesa, em grande medida são inspiradas em uma personagem clássica da literatura de terror, a vampira

Carmilla. Publicada em 1872 pelo escritor irlandês Joseph Sheridan

Le Fanu, a novela acerca de Carmilla personificava alguns dos maiores medos das famílias burguesas e aristocráticas do período. Na

obra original e nos filmes que nela se inspiraram, constrói-se a representação de mulheres que são, ao mesmo tempo, independentes e

cruéis, descrevendo-a como destruidora da família e de tradições, ao

seduzir jovens apresentadas como inocentes.

3 Observa-se em produções recentes uma adaptação menos conservadora da

obra original, especialmente nos filmes The Unwanted (2014) e Carmilla

(2019) e na web série Carmilla produzida entre 2014 e 2016.

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O vampiro é representado como uma criatura que vive a partir do

sangue alheio, sobrevivendo em função de outras vidas, como uma

espécie de parasita. Não por caso, ainda que possam ser identificados

precursores em outros momentos históricos, o vampiro é um monstro criado na sociedade capitalista, representando, “no imaginário

burguês, a classe decadente dos nobres. A fantasia burguesa associa a

decadência moral, com sua carga de perversões, à classe que ela derrotou e que se encontra extinção” (NAZÁRIO, 1998, p. 74). Remetendo-se à figura de Drácula, pode-se afirmar, diante da viagem do

vampiro à Londres do final do século XIX, que

[...] o Conde representa o medo da dissolução da estrutura social, da

contaminação da cultura e dos valores e dos valores do patriarcado vitoriano por um estrangeiro, que agora se aproveita da mesma estrutura criada pelo Império, para fazer o movimento inverso e ocupar o

centro do poder (VUGMAN, 2018, p. 128).

O vampiro, criado pela ficção literária, é um ser estranho ao convívio em sociedade, especialmente àquela que emergiu a partir da

Revolução Industrial. O vampiro nada produz, se apropriando do

sangue ou mesmo da vida de das pessoas que ataca. O vampiro, como

o capital, nas palavras de Karl Marx (2013, p. 307), vive “apenas da

sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo

suga”. Marx (2013, p. 329), em outra passagem de sua principal obra,

quando se refere ao “prolongamento da jornada de trabalho além dos

limites do natural”, se remete à “sede vampírica por sangue vivo do

trabalho”. Portanto, para Marx, o capitalista se refere a uma classe

que nada produz e se apropria do trabalho vivo, sendo, por isso,

comparado a um vampiro.

O fato de Carmilla voltar à tona no final da década de 1960 parece

ter relação com a consolidação do feminismo como movimento soci-

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al. A própria personagem original é produto de transformações em

sua época, marcada pelo que foi chamado de “nova mulher”, no final

do século XIX, referindo-se “a mulheres que começavam a surgir

com as novas oportunidades de trabalho e de formação educacional.

No seu uso pejorativo, descrevia uma mulher intelectual masculinizada, ou, de maneira oposta, uma mulher supersexualizada e sedutora” (VUGMAN, 2018, p. 130).

Na década de 1960, a recuperação de personagens mulheres vampiras, algumas das quais lésbicas, possivelmente expressa uma forma

de reação à consolidação do feminismo enquanto um movimento

social. O feminismo, que questiona tanto a opressão feminina do

mundo do trabalho como no âmbito da política na sociedade patriarcal, problematizava também a dominação da mulher no cotidiano e

até mesmo a vida sexual na sociedade. Essa crítica, que vinha se inserindo na cultura desde a década de 1960, apontava para um novo

comportamento sexual das mulheres, acerca da qual durante muito

tempo preponderou uma imagem permeada por uma moral que atribuía um papel ideal de castidade. Nesse contexto, consolidava-se na

sociedade a ideia de que mulheres de sexualidade livre ou que se colocavam abertamente no espaço público não eram mulheres doentes

ou mesmo aberrações.

Os anos 1970, que consolidam mudanças profundas no comportamento sexual e na própria forma de encarar o sexo, “que prolongam o movimento de contracultura dos anos 1960, sublinham a luta

dos movimentos de libertação das mulheres, não apenas na reivindicação de novos direitos, mas de questionamento do domínio político”

(CISNE, 2014, p. 138). Esses movimentos apontavam que a opressão

sofrida pelas mulheres afetava todas as esferas da vida, como o mun-

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do do trabalho e a vida política, refletindo acerca da dominação masculina na vida privada, inclusive na vida sexual. Essas mudanças que

se paulatinamente vinham ocorrendo na sociedade não se deram sem

que houve resistência de setores conservadores. Nesses setores, à

medida que as atitudes em relação ao sexo tornavam-se menos conservadoras, refletia-se “os medos sobre o sexo hedonista, despersonalizado, que coexistia com as atitudes sexuais liberalizantes”

(GRONEMAN, 2001, p. 150). Essa resistência manifestou-se no “aumento de políticos da Nova Direita condenando a independência das

mulheres, manifestantes contra o aborto jogando bombas incendiárias em clínicas e pregadores fundamentalistas condenando as feministas como ‘prostitutas’ ou ‘bruxas’” (LAROCCA, 2015, p. 7). O conservadorismo vivenciado pela sociedade acabou também sendo representado pela cultura popular, na medida em que

[...] no cinema e na televisão mulheres solteiras, independentes e feministas eram cada vez mais representadas de forma negativa, em

uma tentativa de demonstrar que a revolução sexual não deu certo e

que as mulheres tidas como livres tornaram-se desesperadas e infelizes (LAROCCA, 2015, p. 6-7)

Esses embates no âmbito da cultura e da política tiveram seu impacto também nas telas de cinema. Carmilla ou as personagens nela

inspiradas, representadas no cinema como uma ameaça para a sociedade, podem ser entendidas como representações das feministas que

questionavam os padrões da sociedade patriarcal. Pode-se afirmar,

que “a caçada e o assassinato de Carmilla mostram a forma como a

sociedade conservadora encara sua postura livre” (SILVA, 2018, p.

10). Contudo, essa representação de mulheres perigosas não é exclusividade dos filmes de vampiros, mas das próprias produções de terror realizadas nas décadas de 1970 e 1980, especialmente os filmes

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slasher, nos quais o assassinato de jovens por um assassino misterioso está associado “a um comportamento socialmente condenável em

relação a sexo, drogas ou outros aspectos moralistas” (SILVA, 2018,

p. 10). Essas produções, que também podem ser definidas como

[...] “filmes de terror adolescente” apresentam elementos que quase

sempre se repetirão: o monstro indestrutível, repugnante e extremamente violento que não fala, ou quase não fala, cuja ação aterrorizante irrompe em meio a jovens de classe média, cuja preocupação principal é o sexo; ao final, sobrevive a única jovem que permaneceu casta

e virgem (VUGMAN, 2018, p. 221).

Nos filmes que têm Carmilla como inspiração o enredo é bastante

semelhante entre as diferentes produções realizadas a partir do final

da década de 1960. Nessas histórias, com pequenas variações, uma

mulher misteriosa se coloca em um ambiente familiar, seduzindo

alguma jovem até então apresentada como casta e inocente. Nessa

questão, reina uma certa ambiguidade, presente na obra original, ao

mostrar como as jovens ficam fascinadas ou mesmo apaixonadas por

Carmilla, tendo isso em certa medida um caráter sobrenatural. Cabe

lembrar que, nessas narrativas sobrenaturais, “as mulheres vampiras

são sedutoras e irresistíveis e morrer sob seus beijos é um prazer”

(LECOUTEUX, 2005, p. 30). Em determinado momento da obra original acerca de Carmilla, a protagonista, que também narra a história, afirma:

De vez em quando experimentava uma excitação estranha e tumultuada que era prazerosa, misturada com uma vaga sensação de medo e

repulsa. Não tinha pensamentos distintos sobre ela enquanto essas

cenas duravam, mas estava ciente que um amor crescia em estado de

adoração, mas também de aversão. Sei que isso é um paradoxo, mas

não consigo explicar o sentimento de outra forma (LE FANU, 2022, p.

65).

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Está presente nessa passagem tanto a atração ou mesmo a paixão

por Carmilla, como a confusão sentida pela protagonista e, ao mesmo

tempo, uma certa repulsa por essas sensações que não consegue explicar. Não é estranho que, diante do conservadorismo da época, uma

jovem se sinta confusa ou mesmo com certa repulsa ao se sentir atraída por outra mulher. Em outra passagem, a obra se remete à sedução por parte de Carmilla como uma força sobrenatural, afirmando:

“Suas palavras murmuradas socavam como uma canção de ninar em

meu ouvido e reduziam minha resistência a um transe, do qual eu só

parecia recuperar-me quando ela retirava os braços” (LE FANU,

2022, p. 65).

No filme The Vampire Lovers, apresenta-se uma mulher belíssima e misteriosa que manipula e seduz todos ao seu redor. Em uma

primeira parte, ela se insere na família da jovem Laura e, em uma

segunda parte, de Emma, ambas com sua sexualidade ainda não aflorada. Essas personagens estão ainda inseridas no ambiente do patriarcado, devendo estar sob o controle da família, especialmente de

figuras masculinas – o tio, no caso de Laura, e o pai, no caso de Emma. Não por acaso, apesar da morte de Laura, é essa estrutura familiar masculina que consegue salvar o corpo e a alma de Emma.

Esse filme apresenta um significativo elemento conservador, na

medida em que as representações de Carmilla são mostradas como a

expressão de uma sexualidade associada à promiscuidade. Carmilla é

mostrada como uma espécie de híbrido entre humanidade e selvageria, sendo incapaz de controlar seus instintos. Carmilla simboliza um

mal que ameaça as mulheres, ameaçando afastá-las do papel social a

que o ambiente patriarcal as insere, colocando-as em um caminho

que não seja o da submissão. Esse filme, como em outras produções,

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[...] cristaliza a imagem de que não haverá felicidade para as mulheres

que transcenderam o seu destino de gênero, a sua condição de mulheres que se casam e constituem família, pois marido devotado e filhos

bem-criados são a razão da felicidade feminina. Sucesso profissional,

liberdade sexual, integridade intelectual e independência econômica

não são valores que poderão ser agregados à vida das mulheres independentemente da família (CÉSAR, 2011, p. 189-190).

Nesses filmes atribui-se à sexualidade feminina um caráter em

certo sentido sobrenatural. Cabe lembrar que, desde séculos antes,

nas sociedades patriarcais ocidentais, “o homem definiu-se como

apolíneo e racional por oposição à mulher dionisíaca e instintiva,

mais invadida que ele pela obscuridade, pelo inconsciente e pelo sonho” (DELUMEAU, 1993, p. 311). Essa construção da imagem da

mulher carrega em grande medida certo medo masculino, afinal,

[...] no inconsciente do homem, a mulher desperta a inquietude, não

só porque ela é juiz de sua sexualidade, mas também porque ele a

imagina de bom grado insaciável, comparável a um fogo que é preciso

alimentar incessantemente, devoradora como o louva-a-deus. Ele teme o canibalismo sexual de sua parceira (DELUMEAU, 1993, p. 315).

Não por acaso se criaram figuras mitológicas que atacam os homens, como a súcubos, que retira sua energia vital. Além disso, uma

personagem que permeia a cultura ocidental há séculos é Lilith, supostamente a primeira esposa de Adão. Essa figura, feita da mesma

matéria que o homem, simboliza uma mulher independente e dona

de sua própria sexualidade, ou seja, “representa o aspecto sombrio do

feminino – desejos e sensualidade ilícitos –, reprimidos da consciência” (PIRES, 2008, p. 45). Em função do seu desejo sexual instintivo

e exacerbado, Lilith “retrata o sexo como fim em si mesmo, transformando o homem em objeto para obter os próprios intentos” (PIRES, 2008, p. 47).

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Carmilla pode ser inserida nesse arquétipo construído ao longo de

séculos de uma figura feminina perigosa para a sociedade e que, por

isso, deve ser marginalizada, combatida e, de preferência, destruída.

Nos últimos séculos, em grande medida isso passa figura da “mulher

fatal”, da qual, em certa medida, Carmilla se tornou um dos principais exemplos. Cabe lembrar que o termo “vampiro” não tem o mesmo sentido quando se refere a homens e mulheres:

O vampiro macho continua um vampiro, isto é, um ser sobrenatural,

um morto-vivo que se alimenta de sangue humano e que apenas uma

estaca enterrada no coração pode destruir. Aplicado à mulher, o termo imediatamente se torna tão amplo como banal; pode designar

qualquer mulher real, se for considerada perigosa para o homem

(DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 277).

Como se observa nas várias interpretações de Drácula, há sempre

uma história de origem, que o transformou em vampiro. Carmilla,

por sua vez, nasceu em uma família amaldiçoada e, por isso, é uma

vampira. Pode-se concluir, portanto, que

[...] o homem torna-se vampiro por encontro fortuito ou maldição ancestral. Mas a mulher é vampira, nasce vampiro, justamente porque é

mulher: perde sangue, toca no sangue, tem com ele uma familiaridade que só pode amedrontar ou repugnar os que só o conhecem por ferimentos, doença ou violência (DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 282).

Outro exemplo do conservadorismo presente nos filmes que adaptam Carmilla se expressa no abuso de imagens que expõem o corpo

das atrizes. Em The Vampire Lovers, é comum que sejam mostrados

desnecessariamente muitas vezes a nudez das personagens femininas, inclusive como uma passagem de sua versão casta para a jovem

pretensamente corrompida por Carmilla. Essa exibição do corpo visa

criar um erotismo para um público principalmente masculino. Seus

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corpos são explorados pelo olhar masculino, que consome o “produto”, seja na exibição dos corpos. Conclui-se, assim, que

[...] o olhar masculino determinante projeta sua fantasia na figura

feminina, estilizada de acordo com essa fantasia. Em seu papel tradicional exibicionista, as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua aparência codificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual de forma a que se possa dizer que conota a sua condição de “para ser olhada” (MULVEY, 1983, p. 444).

Portanto, os filmes deixam explícito que essas mulheres são objetos manipulados em um mundo masculino, servindo para sua contemplação e dominação, e que sua autonomia e seu despertar sexual

devem ser punidos. Contudo, ao exibir mulheres independentes, as

representações podem criar uma estranha contradição. Embora seja

comum que os filmes de terror veiculem “fantasias de confiança nas

autoridades e instituições vigentes, como agentes de eliminação do

mal”, podem também revelar “uma sociedade em crise, onde as forças destrutivas são assoladoras, e as autoridades e os valores convencionais são incapazes de derrotar e eliminar os males que não param

de avançar” (KELLNER, 2001, p. 166). Esses filmes não conseguem

legitimar as instituições e os valores da sociedade, “mas mostram que

a violência horrífica e a desintegração social são forças onipresentes e

poderosas na ordem social” (KELLNER, 2001, p. 166).

Retornando aos filmes em tela neste ensaio, pode-se afirmar, na

medida em que, mesmo associando Carmilla a um mal abstrato,

também mostram uma personagem forte e independente, que tem

seus momentos de sensibilidade, e que constrói seu próprio caminho

apesar da perseguição que sofre. O filme não esconde a ambiguidade

de Carmilla, que se apaixona pela sua presa e, de certa forma, procura controlar seu instinto. Isso fica claro se comparada à sua primeira

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vítima apresentada no filme, que morreu. Essa perspectiva ambígua

na representação de Carmilla é herdada da própria obra original,

quando, entre outros momentos, a vampira falava, segundo a narradora, “tantas e apaixonadas declarações sobre o quanto gostava de

mim e de sua confiança em minha honra” (LE FANU, 2022, p. 64).

Portanto, ao mesmo tempo que os filmes afirmam que na sociedade a independência dessas mulheres não tem espaço, também

mostram que é possível uma vida de menos opressão. Pode-se concluir que

[...] os movimentos de liberação feminina encorajaram as mulheres a

tomar posse de sua sexualidade, homo ou hetero. A exibição ostensiva

da sexualidade feminina tem sido uma ameaça para o patriarcado e

tem exigido um nível muito maior de objetividade acerca das causas

subjacentes de a mulher ter sido relegada à ausência, ao silêncio e à

marginalidade. Os mecanismos (quer dizer vitimização, fetichização,

assassinato em nome da virtude) que nas décadas passadas funcionavam para ocultar os medos patriarcais não funcionam mais nessa era

pós-60: a mulher sexual não pode mais ser taxada de “má”, uma vez

que adquiriu o direito de ser “boa” e “sexual” (KAPLAN, 1995, p. 23).

Em certa medida, os filmes constroem uma metáfora que compara o vampirismo ao despertar da sexualidade feminina, dando a isso

uma conotação negativa. Caberia aos homens que se consideram protetores e responsáveis por elas controlar esses institutos aflorados e

resolver os problemas em que essas mulheres acabam por se colocar.

No caso dos filmes, isso passa por punir Carmilla e o risco de a vampira mostrar a possibilidade de uma vida de menos opressão patriarcal. Nesses filmes, a necessidade de matar Carmilla é uma espécie de

mensagem de que não cabe socialmente a sexualidade independente

das mulheres e de que deve ser destruída qualquer coisa que ameaça

essa representação social.

P:193

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191

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e na televisão. Todas as Musas, nº 18, 2018.

VUGMAN, Fernando. A invenção do monstro. Rio de Janeiro:

Luva, 2018.

P:195

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

193

Olavo Bilac revisited: multifaceted possibilities

1

Resumo: O presente texto propõe demonstrar o multifacetismo da poesia de

Olavo Bilac, ao apontar aspectos sensuais, sociais, políticos, ideológicos, fonológicos e linguísticos em poemas assumidamente pouco parnasianos – o

que contradiz a insistente classificação de poeta beletrista a ele conferida ou,

ainda, a alcunha de escravo da fôrma parnasiana.

Palavras-chave: Olavo Bilac, multifaces, poesia, Parnasianismo.

Abstract: The present text aims to demonstrate the versatility of Olavo Bilac’s poetry, by pointing out sensual, social, political, ideological, phonological, and linguistic aspects in poems openly not very Parnassian – which contradicts the insistent classification of belletrist poet conferred on him or,

even, the sobriquet of slave of the Parnassian way.

Keywords: Olavo Bilac, multifaced, poetry, Parnasianism

Em muitas formações e informações referentes à História da Literatura Brasileira, hoje, a obra de Olavo Bilac é apresentada de forma

reduzida, seja no Ensino Médio, seja nos cursos de Letras. Uma simples investigação nos faz constatar que quase todos repetem as mesmas informações e os mesmos textos: Profissão de fé, o soneto XIII

de Via-Láctea, Língua Portuguesa, quiçá A um poeta. O conteúdo

desses poemas — exceto o soneto de Via-Láctea — e a referência

constante a eles tendenciosamente reforçam a ideia de que Bilac

1 Doutor em LETRAS, área de concentração: Literatura e Cultura; professor

da UNICAP; professor colaborador do PPGCL/UNICAP; conselheiro da

ASLE/Brasil; vice-presidente do ICOL (Instituto Cultural Osman Lins);

dramaturgo; encenador. [email protected]

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apenas trabalhou o aspecto formal da poesia, que é um poeta beletrista, escravo da forma/fôrma, que em seus textos “Não há mais poesia, / Mas há artes poéticas”, como diz Manuel Bandeira em Os Sapos. Nesse sentido, as nuances de um ‘multifacetamento’ quase passam despercebidas. Além do mais, a citação constante daqueles poemas cria certa antipatia do leitor/ estudante2 para com Bilac e não

dá, assim, a dimensão real do que a produção desse poeta representa

para a Literatura.

Tal posicionamento estético-político-pedagógico parece sugerir

que “Repetem-se hoje os estereótipos criados pela estratégia do combate modernista há cem anos, como se essa fosse uma perspectiva

absoluta” (TEIXEIRA, 2001, p. 12-13). Das leituras críticas sobre Bilac e sua obra, destacamos as de Marisa Lajolo (2003), em Melhores

Poemas de Olavo Bilac, na qual se destaca o Bilac lírico-amoroso, já

que, segundo a organizadora, este retrata os

melhores poemas: aqueles pelos quais ele pode, sem desdouro, dialogar com a sensibilidade do público contemporâneo e, de quebra, onde

assomam alguns indícios da superação do figurino parnasiano e convencional que muitas vezes espartilha sua poesia (LAJOLO, 2003, p.

9).

Para a autora, tais poemas sobrevivem não porque a temática do

sentimento amoroso seja universal e transponha qualquer barreira,

mas porque Bilac era um bom poeta, como não gostam de admitir críticos engajados, e, sobretudo, por certos procedimentos modernos

(ou modernizantes, vá lá...) que, talvez, à própria revelia, Bilac praticou aqui e ali, de permeio a amadas e estrelas, e apesar da riqueza da

rima e da exatidão do metro (Ibid, p. 9-10).

2 A figura do leitor e a do estudante destacadas aqui correspondem a

iniciados no universo literário, que estejam no processo de formação escolar

e/ou que sejam interessados por textos poéticos.

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A apreciação de Lajolo se refere, também, ao comportamento crítico que se tem em relação à obra bilaquiana, a qual, apesar de vastamente conhecida, a ponto de ter sido declamada nas ruas, nas festas, goza, hoje, de pouca atenção. Mantém-se, ainda, de maneira geral, a ideia de um poeta escravo da forma/fôrma e ilustre representante da estética parnasiana no Brasil, o que fez de Bilac uma espécie

de bode expiatório dos modernistas de 22, conforme a expressão de

Lajolo. Evidentemente que esse posicionamento crítico a Bilac é reforçado por este fazer uso de um vocabulário mais afeito à erudição,

pelo grande teor academicista de sua poesia, pelo menor envolvimento com questões de crítica social de seu tempo. Porém, é preciso que

se pense que o preconceito, o pré-julgamento acaba por impedir,

quase sempre, a leitura da obra bilaquiana. Não seria mais sensato

primeiro compreender para depois julgar negativa ou positivamente?

Em uma consulta rápida a acervos eletrônicos, o volume de produção que tem por tema Olavo Bilac e sua obra continua tímido. Demarcado o ano 2000 como o início dessa consulta, os artigos que dialogam com a tese aqui defendida de que Bilac é multifacetado são

Olavo Bilac e as inferências do Romantismo em seus versos, de Joildo Sousa C. de Oliveira, Danielle A. Campos Moura e de Nágila Cristina R. de Oliveira Lira, na Revista MultiAtual (v.4, n.2), em 2023;

Artifício, persuasão e sociedade em Olavo Bilac, de Ivan Teixeira, na

REVISTA USP (n.54), em 2002; Aspectos românticos e eróticos nas

entrelinhas da poesia de Olavo Bilac, de Ruth Fonseca Abecassis,

Francisco Bezerra dos Santos e de Dilce Pio Nascimento, nos Anais

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Eletrônicos do XIV Congresso Internacional – fluxos e correntes:

trânsito e traduções literárias, da ABRALIC, em 20153.

Uma leitura de fruição, sem preocupações escravizantes teóricometodológicas, nos permite perceber que o estigma de um poeta

apenas parnasiano se desvanece sob as multifaces dos Bilaques. O eu

lírico do Soneto XVIII de Via-Láctea, como ocorre com frequência na

produção bilaquiana, se dirige diretamente a um interlocutor, o que

confirma aquela ideia de envolvimento com o leitor: \"Dormes...; Encher teus sonhos; teu corpo inteiro...; Beijam-te a boca; teu hálito

sorvendo”, num ambiente de intimidade e de sensualidade. De maneira bastante representativa, os “seios” se constituem no verdadeiro

leito em que o eu lírico deseja estar. É uma espécie de colo generoso,

espaço que expande dádivas que podem ser, ao mesmo tempo, símbolo de proteção e símbolo de provocação sexual; para um ou para

outro, um espaço vivificador.

Ademais, os cabelos negros podem refletir uma imagem de teia de

aranha, na qual o eu-lírico ambiciona enredar-se numa louca paixão.

Ou ainda os cabelos podem ser o reflexo das mãos sedentas, que querem estar no outro corpo, que querem encher-se do outro corpo,

apalpar, apertar, sentir, esquentarem-se. Todo esse ambiente é dissolvido quando chega, muito “cedo, a luz do dia”, que representa a

razão.

O lirismo intimista que Bilac revela, sobretudo, nos sonetos de

Via-Láctea representa a visão de um amor iluminado, sob o brilho

das estrelas e atrelado a abstrações. Mas também constatamos que o

3 As outras produções acadêmicas encontradas que dizem respeito a Bilac e a

sua obra no período histórico em destaque abordam a conexão entre o poeta

e a Antiguidade Clássica, as crônicas, o jornalismo, o nacionalismo, a

instrução brasileira e aspectos políticos nos textos bilaquianos.

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eu lírico em Bilac ama de maneira intensa, entrega-se à paixão com

uma sensualidade que realça “formas, cores, texturas, sons, temperaturas, brilhos e movimentos que espreitam o leitor a cada verso, dando concretude ao mundo criado” (LAJOLO, 2003, p. 10):

Beijam-te a boca tépida e macia,

Sobem, descem, teu hálito sorvendo...

Por que surge tão cedo a luz do dia?!

O interesse que a lírica de Bilac ainda pode despertar, atualmente,

no leitor parece “residir na profunda plasticidade do universo que

seus poemas constroem. Seu mundo, como o nosso de hoje, é um

mundo de imagens” (Ibidem). Além disso, as imagens revelam sensualidade, erotismo, materializam o amor e a mulher amada, numa

imagética libidinosa, lúbrica:

Dormes, com os seios nus, no travesseiro

Solto o cabelo negro... e ei-los, correndo,

Doudejantes, sutis, teu corpo inteiro...

“que, transbordando, erotiza todo o universo, mesmo aquele permeado de valores outros, mais perecíveis” (Ibidem), Lajolo destaca.

E a natureza se converte num cosmos lascivo, embora em alexandrino ou em decassílabo elegantes, no qual a emoção, os sentimentos, as

sensações se metaforizam em “forças encarnadas pelos elementos

mais concretos da natureza” (Ibid, p. 11), e o lirismo exala-se “no clima nada platônico de uma sensualidade palpitante e palpável” (Ibidem), prossegue a autora.

Ainda nesse sentido, Lajolo comenta que essa dimensão sensual e

sensorial contagia outros poemas, mesmo os não amorosos. Em alguns textos de caráter patriótico, histórico, épico, “as imagens de

posse e conquista da terra se constroem a partir de uma linguagem

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que feminiza a pátria e o território, masculinizando o herói conquistador” (Ibidem). Sobre isso, escreveu Affonso Romano de Sant’Anna

em sua análise a O Caçador de Esmeraldas: “Substitui-se o objeto do

desejo: já não é mais a mulher, simbolizando a interdição do desejo

erótico [...]”. Agora este

acresce-se de um qualitativo a mais: além de erótico é econômico. O

objeto não é a mulher, mas a terra. E o sujeito que deseja não é apenas o amante, mas o herói nacional. Bilac vai privilegiar as imagens

eróticas para narrar uma versão ideológica da história (Apud LAJOLO, 2003, p. 11).

Além do drama do bandeirante Fernão Dias Paes Leme, o “violador de sertões, plantador de cidades”, numa evocação de caráter épico, espraiam-se paixões em imagens da natureza, da terra, que valem

menos por sua descrição objetiva, e mais pela alegoria dos estados de

espírito e das sensações que envolvem o herói e a terra, amante e

amada:

E, no seio nutriz da natureza bruta,

Resguardava o pudor teu verde coração!

Ah! Quem te vira assim, entre as selvas sonhando,

Quando a bandeira entrou pelo teu seio, quando

Fernão Dias Paes Leme invadiu o sertão!

A feminilização da terra está muito clara nesse trecho de O Caçador de Esmeraldas, principalmente quando a voz que fala no texto

faz uma representativa referência ao seio − elemento bastante recorrente na produção poética bilaquiana. E também ao mencionar a

imagem da bandeira entrando na terra, “quando / Fernão Dias Paes

Leme invadiu o sertão”. A partir daí, não seria tão distante a ideia de

uma relação sexual, o que se acentua nas sugestões de movimento

para dentro presentes no texto: “entrou”, “invadiu”. O lirismo amoroso bilaquiano é, pois, em muitas composições poéticas, algo palpá-

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vel e realizado. Na opinião de Lajolo, “é essa concretude um dos elementos responsáveis por sua [do lirismo amoroso] sobrevivência

neste nosso final de século XX, de poucas estrelas e muitos satélites”

(Ibid, p. 13).

Outro elemento de atualidade presente na produção bilaquiana

destacado por Lajolo é uma espécie de coloquialismo e de oralidade,

bem como de uma íntima relação estabelecida entre a voz que fala no

texto e o leitor, na maioria dos poemas. Claro que não se trata do coloquialismo convencionalizado pela tradição modernista, no qual se

encontram modos cotidianos e informais da fala. Um poeta como

Bilac, sabemos, empenhado em “recuperar o verso de um certo desalinho e descompasso a que algumas vertentes românticas o tinham

conduzido” (Ibid, p. 14) e que faz uso de um léxico rebuscado, não

iria compor sua poesia de elementos linguísticos informais.

Nessa perspectiva, segue a autora, “coloquialismo e intimidade se

instauram entre leitor e poeta [...]”, por este mimetizar, em sua produção, “situações de diálogo: às vezes com a amada, presente em

forma de vocativo; às vezes com o próprio leitor, alçado assim à condição de confidente e interlocutor” (Ibid, p. 15). Essa participação

ativa do receptor do texto é um importante ponto. Afinal, possibilita

ao leitor sair da passividade enquanto receptor de uma obra de arte,

numa visão muito mais participativa, já que se oferecem amplas possibilidades quanto à análise do papel de tal leitor no momento em

que a comunicação é efetivada. Destacam-se aí, portanto, o efeito

produzido, a recepção e a concretização do sentido que se dão no

contato entre o universo suscitado pelo texto e as experiências e os

conhecimentos internalizados em quem os recebe. “Com isso, a lírica

amorosa bilaquiana reserva um espaço importantíssimo para o inter-

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locutor, muitas vezes trazido ao texto pela presença explícita de um

pronome da segunda pessoa” (Ibidem).

Talvez um dos melhores exemplos que possam ilustrar essas observações acerca do relacionamento entre o poeta e o interlocutor

seja aquele famoso e antológico diálogo, em que Bilac explica e justifica suas conversas noturnas com as estrelas:

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,

Que, para ouvi-las, muita vez desperto

E abro as janelas, pálido de espanto...”

(Via-Láctea, Soneto XIII)

Há nesse soneto uma mescla entre o discurso do Poeta e o discurso desse misterioso interlocutor, numa atitude de concordância e/ou

conivência com o que é dito, o que denota uma profunda identificação entre o leitor e o texto poético. Ressaltamos que essa identificação não é característica da impassibilidade proposta pelo Parnasianismo. Esse movimento Iiterário busca demonstrar, quase sempre,

um amor pelo estilo e uma ânsia de perfectibilidade. É importante

lembrar que \"nem todos os parnasianos revestiram os seus sonetos

numa armadura de bronze, à semelhança de Heredia\" (JORGE,

2007, p. 34) ou de Leconte de Lisle. \"Nascido num país tropical e

possuinclo sangue latino, Bilac\" (Ibid, p. 35), por exemplo, \"nao poderia ser um poeta frio, impassível\" (Ibidem).

Em outros textos de sua lírica amorosa, Bilac consubstancia uma

interlocutora, uma figura de mulher, presente nas composições poéticas como tema ou metáfora, além de ser materializada “pela posição

de vocativo que ocupa, implícita ou explícita na segunda pessoa verbal” (LAJOLO, 2003, p.16):

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“Olho-te: cega ao meu olhar te fazes...

Falo-te — e com que fogo a voz levanto! —

Em vão... Finges-te surda às minhas frases...”

(Via-Láctea, Soneto XIX)

Pela intimidade estabelecida no texto, temos a impressão de um

diálogo entre amante e amada.

Em seu ensaio, Bueno (2001), inicialmente, destaca a imensa popularidade de Olavo Bilac e o prestígio de que o Poeta dispunha. O

ensaísta afirma:

Figura paradigmática do lírico da nossa belle époque, Bilac propiciava

aos seus inúmeros leitores o que para eles representava a própria

quintessência da poesia, motivo provável de seu imenso prestígio entre contemporâneos e da perda posterior desse prestígio (2001, p.15).

Prosseguindo em sua análise, o ensaísta diz que, reagindo ao desleixo técnico dos românticos, a hipertrofia formal do credo parnasiano já propiciava terreno a essa queda de tons na poesia.

Reducionista, esse pequeno excerto de Bueno nos faz desconfiar

de que ele não concebe as multifaces ou o rico universo imagético

que se realça na poética bilaquiana. “Talvez seja mais atual ler o Parnasianismo como se leem os demais estilos do passado, isto é, com

relativismo histórico, não em termos de adesão ou recusa estética”

(TEIXEIRA, 2001, p. 30-31). Comparando a prosa e a poesia infantil

bilaquianas, Bueno faz referência ao fato de que “é na obra poética

séria (sic) que encontramos os processos técnicos que representaram

a máxima estesia verbal para toda uma geração de leitores brasileiros” (BUENO, 2001, p.21)4.

Num outro momento de seu ensaio, Bueno aponta que

4 Não constitui a intenção deste artigo discutir os preconceitos relacionados à

Literatura Infantil e à Infantojuvenil, mas é necessário, pelo menos, registrar

uma referência.

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o levantamento do ideário de Bilac revela uma das chaves de sua popularidade. Bilac representa, sem um momento de dissidência, o ‘senso comum’, aquela sabedoria de todos e de ninguém que é o axioma e

o gozo dos povos” (Ibid, p.19).

O autor ainda destaca um marcante historicismo na obra bilaquiana, muito mais do que nos outros dois componentes da tríade parnasiana. Ora,

projetar no passado convicções adquiridas no presente pode gerar

anacronismos incompatíveis com a boa inteligência dos textos, além

de funcionar como armadilha para possíveis preconceitos (TEIXEIRA, 2001, p. 31).

Ademais, o ensaio de Bueno parece estar utilizando como critério,

predominantemente, o gosto pessoal, desprezando, assim, de uma

maneira geral, as contribuições artísticas que a poesia de Olavo Bilac

representa para a Literatura Brasileira. Tal posicionamento crítico

deve ter contribuído para que muitos estudantes e leitores interessados na poesia e na crítica literária tenham mantido uma postura vilipendiadora quanto à produção bilaquiana.

SETE FACES BILAQUIANAS?

Teixeira (2001) divide em sete tópicos seu ensaio sobre Bilac. De

início, observa as relações entre Bilac e os Modernistas, mencionando pontos em comum, embora bastante periféricos, entre o ‘Príncipe

dos Poetas’ e Machado de Assis. Este “partilha de princípios adotados

por Bilac, tanto no verso (Ocidentais) quanto na prosa (Quincas

Borba). O desejo de clareza, concisão, harmonia, penetração e simplicidade aproximam os dois escritores” (TEIXEIRA, 2001, p. 10).

Ambos foram consagrados em vida e muito criticados pelos moder-

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nistas de 22. Machado é atacado por Mário de Andrade e por Drummond, que lhe creditam admiração, mas, por conta do excesso de

técnica, “empenham-se em fixar o mestre no passado, restringindo

sua importância à história” (Ibid, p. 11). Com Bilac, o ataque é mais

intenso; juntam-se àqueles dois Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, dentre outros jovens modernistas, os quais apontam a poesia

bilaquiana um mero culto à forma, de um esteticismo desinteressante.

Outro ensaísta sobre a obra bilaquiana, Ivan Teixeira chama atenção para o fato de que não podemos repetir, hoje, o posicionamento

daqueles autores, que tinham um objetivo bastante específico. Seus

textos “eram ‘manifestos’, modalidade textual que necessariamente

tem de combater a situação dominante em favor de uma nova plataforma” (Ibid, p.13). Alguns críticos e leitores da obra bilaquiana não

têm levado em consideração os aspectos teóricos e históricos dos

modernistas. E isso pode inibir o nosso contato com Bilac e com o

Parnasianismo. De acordo com o estudo de Teixeira, “muito do melhor Drummond seria impossível sem Bilac. Veja-se Claro Enigma,

tão próximo dos procedimentos retóricos consagrados pela prática

bilaquiana” (Ibid). Nessa obra, Drummond apresenta poemas de

grande perícia formal, como A ingaia ciência.

A multiplicidade bilaquiana também é destacada no ensaio de

Teixeira, tópico que se justifica como o momento em que o ensaísta

oferece, sobre a obra de Bilac, “uma divisão provisória, com propósitos didáticos: poemas de impassibilidade parnasiana, poemas de erotismo espetacular, poemas de lirismo intimista, poemas épicos e poemas reflexivos” (Ibid, p. 18).

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Dos “poemas da impassibilidade parnasiana”, Teixeira destaca

aqueles em que Bilac está mais preocupado com a beleza, plástica,

visual, numa flagrante absorção dos ideais da “arte pela arte”. Entretanto, tais poemas não são completamente estáticos, e sim “uma espécie de contemplação ativa”. No soneto A Ronda Noturna, por

exemplo, no qual o poeta “descreve, com objetividade de nouveau

roman, um ambiente noturno dominado pela imobilidade, de súbito,

surge o movimento de guardas em seu ofício de espreita” (Ibid, p.18).

No referido poema, o primeiro quarteto apresenta uma nítida

sensação de inércia, uma descrição aparentemente objetiva, que denota um universo estático, revelado nos termos “cerrada”, “escura”,

“trevas”, “imoto”, além de “mudez”, no primeiro verso do segundo

quarteto. Esse ambiente começa a ser transformado de maneira sutil,

já que “Flébil murmura / [...] a voz do vento: / E há um rasgar de sudários pela altura, / Passo de espectros pelo pavimento...” denotam

suavidade de movimento. Subitamente, o ambiente é modificado,

pois “os gonzos das pesadas / Portas rangem...” e “Ecoa [...] / Leve

rumor de vozes abafadas. / E [...] / Do claustro [...] / Passa a ronda

noturna, lentamente...” O que poderia ser a mera descrição de um

pormenor desinteressante e inexpressivo do ambiente, ganha uma

expressividade visual e auditiva.

Além disso, atentemos, por exemplo, para a aliteração de passos

marcados com o fonema P no seguinte verso: “Passo de espectros

pelo pavimento...” e a sugestão de distanciamento desses passos que

as reticências provocam. O movimento dos guardas, “em seu ofício

de espreitar”, assume uma “brusca movimentação” que “saúda a vida, que se impõe contra a inércia da noite. Trata-se, essencialmente,

de um poema que registra o momento solene de um instante da vida

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exterior” (Ibid, p. 19). Contra essa descrição de um momento solene,

insurgem-se os modernistas, valorizando o cotidiano, as “coisas miúdas de todo dia” (Ibid, p. 20). É flagrante a percepção de que discursivamente ressoa um ambiente acrítico quanto à abordagem social.

Mas será que tal condição invalida o poema?

Conscientemente, Bilac “preferiu flagrar a realidade a partir de

arquétipos da tradição clássica” (Ibid, p. 21); daí resulta “o princípio

da impassibilidade”, como os poemas “A Sesta de Nero, O Incêndio

de Roma e o Sonho de Marco Antônio, todos de Panóplias”, o livro,

por isso mesmo, “mais radicalmente parnasiano do autor” (Ibid, p.

22).

Sarças de Fogo e Alma Inquieta seriam as duas obras em que ficam mais evidentes os “poemas de erotismo espetacular” na lírica

bilaquiana. Essas obras “compõem a face mais popular de Olavo Bilac” (Ibid, p. 24). Há descrições de mulheres nuas, em posições bastante insinuantes, em uma notória “expansão de desejos e ímpetos

sexuais” (Ibidem). Mas apesar desse universo lúbrico, libidinoso,

mantém-se a elegância bilaquiana, fruto de um poeta que sabe jogar

com sentidos, imagens, descrições, sugestões, sons:

[...] Desata, como um véu,

Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!

Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;

Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;

Surjam feras a uivar de todos os caminhos”

(A Alvorada do Amor – Alma Inquieta)

O amor iluminado — imagens de estrelas, luar e amplidão celeste

— se revela nos “poemas de lirismo intimista”, nos quais a musa, “a

um tempo mulher e santa, inunda-se de luz e música das esferas”

(Ibid, p. 28). Nessa perspectiva, convencionou-se falar em “lirismo

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estelar de Olavo Bilac”, justamente por causa da popularidade de

Via-Láctea: “Ora (direis) ouvir estrelas!” é um dos versos mais conhecidos do Poeta. Entretanto, nem todos os poemas de lirismo intimista bilaquianos estão presentes em Via-Láctea; muitas dessas

produções estão em Sarças de Fogo e em Alma Inquieta. Alguns desses poemas “representam o que há de mais persuasivo na poesia brasileira” (Ibid, p. 32), como é o caso de Nel Mezzo Del Camin...” (Sarças de Fogo):

“E eu, solitário, volto a face, e tremo,

Vendo o teu vulto que desaparece

Na extrema curva do caminho extremo.”

Esse soneto de Bilac, de certa maneira, deixa transparecer “um

sensualismo reprimido, sublimado em mágoa e ressentimento”. Isso

sugere a Teixeira observar que o Poeta “inspirou-se na tradição arcaica do lirismo português para fugir da poesia social dos realistas e do

lirismo sexualista dos primeiros baudelarianos brasileiros, dos anos

70-80” (Ibidem).

O ensaio menciona, ainda, mais uma relação da obra bilaquiana

com a drummondiana: Nel Mezzo Del Camin... e No Meio do Caminho. Dessa vez, afirma que “a imitação irônica de Drummond talvez

seja mais conhecida do que sua matriz bilaquiana” (Ibid, p. 36).

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra

(Alguma Poesia, 1930)

Claro que o poeta itabirano reproduziu, com ironia, apenas “o esquema retórico de Bilac, que é a repetição invertida do quiasmo”, e,

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propositadamente, incluiu a oralidade cotidiana tão a gosto dos modernistas, na troca do clássico haver pelo uso coloquial do verbo ter.

Indiscutivelmente consagrado pela produção lírico-amorosa, “Bilac sempre se preocupou com a ideia de compor um hino às glórias

do passado nacional” (Ibid, p. 38). E sua principal experiência épica

é, sem dúvida, O Caçador de Esmeraldas, no qual refulge um forte

caráter patriótico, na tematização das “bandeiras do século XVII,

que, em busca de riquezas, alargaram as fronteiras do país” (Ibid, p.

39). Além desse poema, Bilac produziu outros de caráter épico, como

Sagres, no qual celebra as navegações lusitanas e comemora o quarto

centenário da descoberta do caminho marítimo para as Índias, e o

conjunto de sonetos intitulado As Viagens.

Por fim, como negar em Olavo Bilac um universo avesso às vozes

parnasianas, objetivas, em poemas assumidamente sensuais, eróticos, românticos? Na produção bilaquiana, a mulher, por exemplo,

ganha dimensões românticas e até naturalistas, contrariando a visão

da mulher clássica no Parnasianismo, como podemos perceber nestes versos de Satânia:

Sobe... cinge-lhe a perna longamente;

Sobe... — e que volta sensual descreve

Para abranger todo o quadril! — prossegue,

Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura,

Morde-lhe os bicos túmidos dos seios,

Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo

Da axila, acende-lhe o coral da boca

(..)

E os seios dizem: ‘— Que sedentos lábios,

Que ávidos lábios sorverão o vinho

Rubro, que temos nestas cheias taças?

Para essa boca que esperamos, pulsa

Nestas carnes o sangue, enche estas veias,

E entesa e apruma estes rosados bicos...-‘

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Nesse poema de Sarças de Fogo (1888), o processo descritivo, assumidamente erótico, ressalva uma intertextualidade por alusão com

textos naturalistas, de um Aluísio Azevedo, por exemplo, quando da

descrição de Rita Baiana, em O Cortiço (1890), aproximando poesia e

prosa num mesmo período histórico, embora esteticamente diferente.

Alguns detalhes desses textos são atraentemente sugestivos. É o

caso do movimento de circularidade que há neles: “cinge-lhe”; “volta”; “abranger”; “abraça-lhe a cintura”; “os bicos túmidos dos seios”;

“o recôncavo / Da axila”; “boca”, no primeiro trecho do poema Satânia. Já no segundo, “seios”; “lábios” (como metonímia de boca); “taças”; “boca”; “bicos” (como metonímia de seios). Também se fazem

ver interessantes os enjambements, que, de certa forma, materializam a intencionalidade do verso, como em “... e que volta sensual

descreve / Para abranger todo o quadril” e em “... espia-lhe o recôncavo / Da axila”, insinuando uma relação íntima entre a forma dos

versos e a continuidade do toque físico.

A partir desses textos, podemos estabelecer relações entre as imagens sensuais bilaquianas e as imagens sensuais azevedianas. Em

Bilac, tais imagens revelam um estado d’alma; a alegoria é a mulher,

em toda sua plenitude. No caso de Aluísio Azevedo, evidenciam-se

valores sócio-históricos, numa forte referência às Teorias Cientificistas da segunda metade do século XIX, principalmente ao Determinismo de Taine. Além disso, enquanto Aluísio Azevedo constrói o

texto com as melodias fricativas das palavras, Bilac faz uso das oclusivas, o que lembra suor, a vontade de lamber — a sinestesia lúbrica,

lasciva. “E lasciva é a musicalidade de seu verso, como lasciva é a luz

que, ‘tremendo, como a arfar, desliza’ pelo corpo de Satânia e, ‘como

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uma vaga preguiçosa e lenta’”(Ivan Junqueira, apud BUENO, 2001,

p. 63).

Se acaso houvesse um encaixe desses excertos de Satânia com alguns trechos de O Cortiço, num simulacro, talvez não fosse tão fácil

identificar qual foi escrito por Bilac e qual o escrito por Aluísio Azevedo, no caso de os dois assumirem, ao mesmo tempo, a forma poética ou a prosaica. Embora percebamos isso, é bastante claro que as

intenções dos autores são distintas. O Naturalismo, como símbolo da

Teoria Determinista de Taine — o homem é produto do meio —,

chama a atenção para o momento histórico em que está inserido.

Agora o elemento português [Jerônimo] está sendo conquistado pela

mestiça sensual brasileira [Rita Baiana], graças ao meio tropical em

que convivem. Enquanto em Bilac a abordagem temática é inquietação d’alma, resultante de uma atmosfera lúbrica consubstanciadora

da alcunha que o Poeta recebeu, por ter sido “envolto numa fama de

boêmio e dissoluto” (MERQUIOR, 2011, p. 170).

Para sentir e admirar a obra bilaquiana, é necessário que o receptor se deixe levar pelo poder sugestivo de que se revestem as palavras, visite o centro, o centro de tudo, de onde se originam as multifaces de Olavo Bilac e em que tudo toma sentido: a poesia. Talvez

com Bilac a crítica tenha deixado de encontrar ou de reencontrar a

erupção que as palavras podem assumir quando postas em atrito – o

poético – porque tenha havido mais atenção a posicionamentos político-ideológicos do homem do que ao poeta. A obra redime o homem.

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210

BIBLIOGRAFIA

BUENO, A. In: BILAC, O. Obra reunida. Organização de Alexei

Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

JORGE, Fernando. Vida e poesia de Olavo Bilac. 5 ed., São Paulo: Novo Século, 2007.

LAJOLO, M. Apresentação. In: Melhores poemas de Olavo Bilac. Seleção de Marisa Lajolo. 3 ed., São Paulo: Global, 2000.

TEIXEIRA, I. In: BILAC, O. Poesias. Organização de Ivan Teixeira.

São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. São Paulo: É Realizações Editora, 2011.

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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A socio-political approach curriculum in musical teaching

1

Resumo: Na atualidade a educação tem dialogado e interagido com as diversas áreas de conhecimento, com as camadas socioculturais e com a distribuição de poder entre as variadas culturas, povos e nações, de modo a consolidar uma função social intervencionista, capaz de melhor contribuir na construção de conhecimentos mais inovadores. O ensino musical deve seguir a

mesma tendência. O referencial teórico que embasou as argumentações concentrou-se nos estudos de A. J. Severino e H. A. Giroux e na discussão de

ordenamentos pedagógicos e questões curriculares voltados para essa modalidade de ensino sob uma perspectiva de análise qualitativa, os resultados

apontados demonstram que esses procedimentos se adotados, propiciarão ao

ensino musical a possibilidade de melhor intervir na sociedade e na cultura

de nosso país.

1 Doutora em Comunicação e Semiótica (Artes) pela PUC-SP; Pósdoutoramento em Música pelo IA-UNESP; Bacharelado em Direito pela

USP; Bacharelado em instrumento (piano) pela Faculdade de Música Carlos

Gomes. Foi diretora e professora da Escola Municipal de Música de São

Paulo e da Faculdade de Música Carlos Gomes. Atua no Programa de PósGraduação em Música do IA-UNESP desde 2005. Possui inúmeras

publicações de livros e artigos científicos na área de educação musical,

música e interdisciplinaridade. Foi Presidente da Associação Nacional de

Pesquisa e Pós-Graduação em Música no período de 2015 a 2019. Idealizadora do site www.saber.musical.com.br e de alguns materiais didáticos virtuais.

É membro de Conselhos Editoriais e Consultivos de Revistas e Coletâneas

nacionais e internacionais relacionados à música. É segunda líder de

pesquisa do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Musical (G-PEM-IAUNESP). Membro pesquisador no Grupo de Pesquisa – CNPqFenomenologia da Música da Universidade de Maringá que tem como líder o

Dr. Flavio Apro

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Palavras-chave: função da educação atual, questões curriculares, ensino musical, análise qualitativa dos dados, desenvolvimento humano e sociocultural.

Abstract: Currently, education has been concerned with dialoguing and interacting with the various areas of knowledge, with the sociocultural layers and

with the distribution of power among the various cultures, peoples and nations, in order to consolidate an interventionist social function, capable of

better contribute to the construction of more innovative knowledge. Music

education should follow the same trend, in the sense of better reflecting the

role of music in society and how it can contribute to the integral development of individuals. The theoretical framework used was largely concentrated on the studies of researchers Antônio Joaquim Severino and Henry A.

Giroux, on the discussion of pedagogical systems aimed at Brazilian musical

education and on curricular issues involving this type of teaching.

Keywords: sociocultural intervention in teaching, music education, curriculum issues, human development.

Na atualidade a formação e a atuação de um profissional ou docente de qualquer área de conhecimento necessita extrapolar a missão tecnicista que tem norteado os cursos superiores e técnicos. Em

igualdade de condições este profissional deve estar capacitado para

enfrentar e solucionar questões sociopolíticas, econômicas e culturais

que circundam a sociedade, a sua profissão e o seu desenvolvimento

pessoal. Essa tendência tem sido um grande desafio tanto para os

docentes como para as escolas de modo geral, pois interfere no processo de ensino/aprendizagem, na aquisição de novos conhecimentos, na articulação da escola com a sociedade, na função social que

cada estudante terá durante o seu exercício profissional e com a sua

saúde física e emocional. De forma gradual, quando esta tendência

for intensificada, ela permitirá que as escolas, os docentes e alunos

intercedam de forma mais incisivas nas políticas, estruturas e práticas educativas. Até então não havíamos sentido tão intensamente a

importância de articularmos no nosso aprendizado, conhecimentos

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teóricos e práticos e as questões que envolvem o nosso psiquismo, o

cognitivo, as questões éticas, sociais, físicas e artísticas, já que essas

relações se encontram em indissolúvel unidade e só por um processo

de abstração podemos separá-las.

Observamos que o crescente desenvolvimento tecnológico tem alterado substancialmente o mundo do trabalho, a forma de adquirirmos o conhecimento, a comunicação entre os povos e as relações interpessoais; contudo, ainda persiste um certo desajuste entre o progresso tecnológico veiculado na sociedade e a sua utilização no cotidiano escolar, seja no ensino básico, profissional ou superior. Situações envolvendo a cidadania, as relações de poder, a ética, a moral, a

subjetividade, o lazer, a sustentabilidade planetária são temas bastante priorizados pela sociedade atual, na tentativa de construirmos

um mundo mais justo, sem tantas desigualdades, contudo, a escola,

mesmo sendo um lugar privilegiado para discutir e até mesmo solucionar parte dessas transformações, caminha a passos lentos devido a

sua estreita ligação com uma política governamental que privilegia

em grande parte o atendimento e cumprimento de interesses econômicos, provocando um grande descompasso de compromissos entre

uma e outra.

Ao refletir sobre os problemas e ameaças que acercam a Universidade brasileira, o pedagogo e pesquisador Antônio Joaquim Severino

assim se expressa:

Externamente, as ameaças são muito grandes: a ausência de políticas

governamentais efetivamente comprometidas com o interesse público, ausência de planejamentos adequados, orgânicos e abrangentes,

de disponibilização, à altura das necessidades, de recursos humanos

técnicos e financeiros. Ameaças que se agravam pelas pressões políticas e econômicas dos organismos transnacionais interessados em implementar seus projetos globalizadores. [...]O ensino superior, em

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nosso contexto, não pode ser visto como se fosse apenas um lugar de

preparação de técnicos para o mercado de trabalho ou um adendo de

ilustração, um burilamento cultural destinado à uma minoria elitizada, sob a diletante batuta de uma suposta meritocracia. Muito ao contrário, é uma necessidade básica e fundamental para o país, para que

ele possa levar avante seu processo de desenvolvimento social, processo que, por sua vez, é imprescindível para que ocorra a humanização de todas as pessoas que integram a sociedade, inclusive daquelas

que não frequentarão a universidade. [...] Para uma sociedade como a

brasileira, a universidade significa um investimento fundamental, não

uma sofisticação artificial ou um luxo perverso (SEVERINO, 2017, p.

17/19).

Em grande parte, os cursos de formação de docentes e de profissionais nas diversas áreas de conhecimento têm privilegiado uma

matriz curricular que capacita um profissional para atuar quase que

exclusivamente no mercado de trabalho, minimizando o valor de disciplinas mais preocupadas em auxiliar sob igualdade de condições o

desenvolvimento social e integral dos indivíduos.

O pensador e professor Henry A. Giroux em obra publicado no

ano de 1988 já argumentava a inadequação dos currículos tradicionais pelo seu comprometimento com uma visão de racionalidade ahistórica, orientada por um consenso politicamente conservador.

Giroux aponta para a necessidade de as escolas implantarem um currículo que permita aos seus usuários desenvolverem e discutirem

novos tipos de relacionamentos e questões circunscritas a esta temática:

Ela (a visão de racionalidade a-histórica) favorece uma visão passiva

dos estudantes e parece incapaz de examinar as pressuposições ideológicas que a prendem a um modo operacional estreito de raciocínio.

Sua visão de ciência ignora os elementos de competição e estruturas

de referência dentro da própria comunidade científica[...] Além disso,

ela termina substituindo a investigação científica crítica por uma

forma limitada de metodologia científica baseada na previsão e no

controle. Em vez de promover uma reflexão crítica e compreensão

humana, o modelo curricular dominante enfatiza a lógica da probabi-

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lidade como principal definição da verdade e do significado. Os conceitos que caracterizam este modelo parecem não apenas pouco críticos, eles são como cheques em branco que apoiam o status quo (GIROUX, 1997, p. 47).

Giroux relata que se fosse adotado esse novo modelo curricular, a

escola poderia ser parte de um processo social mais amplo e, nesse

sentido, cada instituição poderia avaliar o relacionamento e a interligação existente entre o currículo implantando, a escola e a sociedade.

Em um currículo tradicional, o autor admite que as questões que avaliam a forma como os professores percebem seus alunos e as experiências realizadas em sala de aula ou mesmo como os materiais didáticos particulares são veiculados, são menosprezados. Pouco espaço é

destinado aos estudantes para que eles gerem seus próprios significados cognitivos ou se atenham em suas próprias vivências; não há

uma preocupação que habilite esse aluno a desenvolver um pensamento crítico. É importante pensarmos em um currículo que considere o conhecimento como uma construção social:

Devemos desenvolver uma espécie de currículo que cultive o discurso

teórico crítico sobre a qualidade e propósito da escolarização e da vida

humana. Precisamos desenvolver perspectivas mais amplas que mais

enriqueçam do que dominem o campo. A teoria curricular crítica deve

ser situacional. Ela deve analisar as várias dimensões da pedagogia

como parte das conjunturas históricas e culturais nas quais elas ocorrem. E ela deve fazer isso com os instrumentos que são criados a partir de uma variedade de disciplinas. [...] precisamos enriquecer nosso

foco através da utilização dos conceitos e instrumentos que as outras

disciplinas nos oferecem; [...] Os educadores curriculares devem ser

capazes de reconhecer a relevância e importância da aceitação e utilização de múltiplas linguagens e formas de capital cultural [...] poderíamos partir da noção de que a realidade nunca deveria ser tomada

como dada, mas que, em vez disso, deve ser questionada e analisada

(IBID, p. 50-1).

Hoje não se espera dos cursos de formação um acúmulo de conhecimentos técnicos. Outras prioridades também necessitam estar

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interconectadas ao ensino, exigindo dos indivíduos, sejam eles alunos, professores, gestores, diretores, coordenadores e profissionais

em geral, uma postura reflexiva e crítica do aprendizado repassado

nos bancos escolares, a fim de que esses personagens possam atuar

no mundo sob condições mais satisfatórias.

De modo geral, as matrizes curriculares dos cursos de formação

tornaram-se um tanto engessadas; a desarticulação entre o pensar e

o agir nesses cursos tem sido um entrave na concretização e obtenção

de novos conhecimentos, não privilegiando a formação de um indivíduo capaz de atender aos interesses de uma sociedade globalizada

que cada vez mais põe fim às fronteiras territoriais.

Atualmente o saber, de modo geral, precisa transcender o conhecimento obtido nos cursos de formação, ele deve se estender para a

complementaridade existencial dos indivíduos. Velhos e costumeiros

padrões de ensino estão perdendo força dia a dia. Uma postura mais

dialógica e transformadora tem sido propagada pelos ordenamentos

pedagógicos, principalmente quando direcionados à educação básica,

projetando um ensino mais holístico e humanizado, a fim de que o

indivíduo possa interagir mais prontamente na complexidade que

tem norteado o planeta e a própria existência humana no decorrer de

sua formação. Mesmo assim, as escolas brasileiras, por ingerências

político-econômicas e situações das mais adversas, não estão acompanhando essa evolução, petrificando suas matrizes curriculares tecnicistas, massificando o ensino e propagando uma democratização

irreal do conhecimento. Seria importante aos educadores e as escolas

em geral se prepararem para a construção de um projeto de ensino

que transcenda o tecnicismo, o individualismo territorial, a teorização excessiva, a falta de sequenciamento pedagógico entre a educa-

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ção básica e o ensino superior, entre outras medidas. Cada vez mais é

necessário às instituições escolares transcenderem as exigências econômicas que norteiam o mercado de trabalho, integrando os vários

níveis de educação e modalidades de ensino, desde a educação básica

até a educação profissional e a educação superior, a fim de habilitarem seres humanos que efetivamente trabalhem em suas áreas de

conhecimento de forma mais ativa e participativa.

Na atualidade o coletivo deve ser o baluarte de uma educação

multifuncional, interdisciplinar e pluridimensional, capaz de atingir

e dialogar com todas as camadas socioculturais e com a distribuição

do poder entre as variadas culturas, povos e nações. Não podemos

mais referendar uma educação que ainda cultua uma estrutura curricular não flexibilizada e massificada, como se ela fosse a forma mais

segura de obter conhecimento. O dialogismo; a inclusão de parcerias

interinstitucionais nacionais e estrangeiras; as parcerias sócio comunitárias; a inclusão de projetos sociais na educação, de cursos extracurriculares e de formação continuada destinadas a comunidade; a

relação teoria/prática a ser devidamente investigada no sentido de

promover a inter-relação entre os processos de ensino e aprendizagem e a pesquisa no setor; a inovação curricular e metodológica como proposta de produzir novas formas de aprendizagem e novos conhecimentos; a preservação dos bens culturais de cada país e o estudo de outras culturas, considerando-se que a globalização tem promovido a desterritorialização planetária; a inclusão das artes nos

processos de ensino, com o intuito de trazer para o indivíduo o conhecimento e a vivência de uma linguagem subjetiva que atenda mais

intensamente a essência humana; a preocupação com o desenvolvimento psíquico, físico, espiritual, social e ético dos indivíduos; a in-

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ter-relação das diversas áreas de conhecimento; a valorização do cotidiano cultural trazido pelos alunos; a não hierarquização dos saberes docentes frente ao conhecimento do corpo discente, são medidas

mais do que necessárias no ensino atual e que permitirão cada vez

mais, o enriquecimento do discurso proposto pela Educação. As discussões e reflexões dessas questões ampliarão a visão de mundo dos

educadores, dos alunos, das instituições de ensino e da Educação

como um todo.

Ainda que os ordenamentos atuais afirmem a necessidade de uma

Educação cada vez mais democratizante e inclusiva, as instituições

escolares estão longe de realizarem essa missão com eficácia. Pessoas

com deficiências físicas e mentais, classes minoritárias, menores carentes, entre outros, ainda estão minimizados e distanciados dos

bancos escolares.

Na atualidade é necessário que o professor exerça, além da docência, uma função social intervencionista, no sentido de reproduzir,

questionar, problematizar e reafirmar quando necessário, a construção de conhecimentos diferenciados. É importante que ele esteja

alerta aos perigos de um serviço pedagógico excessivamente mecânico e burocrático e que compreenda mais enfaticamente qual o seu

real papel e impacto na sua área de atuação e na sociedade.

Embora uma determinada formação acadêmica não tenha condições de abarcar toda a área de conhecimento a que está vinculada, é

necessário que essa formação dialogue cada vez mais com outras

áreas de conhecimento e tenha uma função profissional e social mais

atuante. A educação atual tende a seguir uma tendência holística,

como o foi na Antiguidade. Nesse sentido, torna-se importante a

produção de um currículo de bases mais qualitativas que atenda os

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reais interesses do corpo discente e da sociedade. Para isso, as escolas devem manter matrizes curriculares mais flexibilizadas, convalidar conhecimentos trazidos pelos alunos advindos de outras instituições de ensino ou mesmo dos indivíduos que tenham uma atuação

prática mais consolidada, fato que propiciaria aos estudantes melhor

consolidação dos conhecimentos adquiridos.

Essas ações exigem das instituições um sistema contínuo de avaliação e um diálogo interinstitucional, que permitirá ao corpo discente

avançar em sua formação, cumprindo disciplinas que realmente sejam importantes tanto para a sua formação como para a sua atuação

profissional e social. Essa conduta educacional traria maior dinamicidade ao aprendizado. A massificação e o engessamento curricular

do ensino, a inflexibilidade na transmutação das disciplinas ofertadas

necessitam de uma remodelação tanto por parte dos ordenamentos

quanto das instituições de ensino.

O caminhar e o aprimoramento cada vez mais intenso do ensino a

distância (EAD) também não deve ser menosprezado diante das condições favoráveis de sua propagação em comunidades carentes ou

mesmo em instituições internacionais. Também é importante pensarmos que após vencermos a pandemia instaurada no mundo com a

propagação da Covid 19, padrões de ensino até então consagrados,

serão extintos, modificados, transformados. Para o futuro presumese que o ensino presencial dividirá espaço com o ensino virtual.

Os ordenamentos educacionais, visando uma formação integral

do indivíduo e a construção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva tem tentado fortalecer o regime de colaboração entre a

educação e o governo, inserindo valores e ações capazes de transformar a sociedade e preservar a natureza, a fim de obtermos melhores

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possibilidades de vida neste planeta, mesmos assim, observa-se a

forte vinculação da Educação com a política governamental.

A educação artística, um tanto minimizada nos currículos escolares, como parte de sua proposta formativa, tem buscado a fruição e

valorização das diversas manifestações artístico-culturais, na tentativa de promover um diálogo intercultural que pode nos conscientizar

das semelhanças e diferenças existentes entre uma cultura e outra,

sempre com o intuito de aprimorar nossa sensibilidade, nossas emoções, a subjetividade, principalmente na educação básica, e está sendo encarado, na visão de muitos educadores contemporâneos, como

uma das práticas sociais importantes para o desenvolvimento cognitivo e emocional dos indivíduos.

O ensino das Artes na atualidade tem sido considerado por muitos pesquisadores e estudiosos, um espaço e uma área de conhecimento capaz de transformar e auxiliar o desenvolvimento físico, cognitivo e mental dos indivíduos. Mesmo assim, os cursos superiores de

artes ainda estão privilegiando uma formação centrada no domínio

técnico de suas linguagens e com poucas informações acerca dos benefícios socioculturais que as artes em geral oferecem.

O ensino superior de música (Bacharelado e Licenciatura), por

sua vez, ainda está voltado para um aprendizado de tradição eurocentrista e tecnicista que embora necessário, não tem priorizado práticas e ações musicais voltadas para a inclusão social, o melhor desenvolvimento humano, nem a formação de docentes com uma formação artística polivalente para atuarem na educação básica de forma plena, como determinado pelos ordenamentos educacionais. O

excessivo número de disciplinas teórico-práticas para o aprendizado

dessa linguagem no ensino superior agrava-se pelo fato da quase ine-

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xistência deste aprendizado na educação básica, restando para o ensino superior de música uma preocupação pedagógica com este

aprendizado. Por vezes essas questões têm sido priorizadas nos projetos educacionais, atividades extracurriculares e ações e práticas de

investigação abordadas nos programas de pós-graduação da área.

A Música, como parte integrante da Grande Área de nº 8, veiculada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Linguística, Letras e Artes), comporta uma diversidade

de subáreas, entre elas: Música (8 03 03 00 5), Regência (8 03 03 01

3), Instrumento Musical (8 03 03 02 1), Canto (8 03 03 04 8), Ópera

(8 03 06 00 4), Educação Artística (8 03 10 00 1), além de outras

linguagens, entre elas a Dança e o Teatro, em suas várias vertentes2.

Cada uma dessas subáreas contempla disciplinas focadas no aprendizado desta tradição musical específica, sejam elas, disciplinas teóricas ou práticas, ainda que as Diretrizes Curriculares voltadas para a

Graduação em Música propaguem um ensino e uma matriz curricular mais flexível, atenta as reais necessidades de nossa sociedade e

capazes de promover um diálogo intercultural e a troca musical entre

as diferentes culturas.

Na educação básica tem sido disseminada uma proposta pedagógica para ensinar todas as artes concomitantemente e de forma integrada, visando sensibilizar artisticamente esses alunos, sem a preocupação de trabalhar com essas linguagens sob uma perspectiva tecnicista. Vejamos o que está sendo priorizado para o aprendizado das

artes no ensino fundamental:

2 Acesso em 01 de maio de 2021.

In: http://www.cnpq.br/areasdeconhecimento/index.htm.

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No ensino fundamental, o componente curricular Arte está centrado

nas seguintes: as Artes visuais, a Dança, a Música e o Teatro. Essas

linguagens articulam saberes referentes a produtos e fenômenos artísticos e envolvem as práticas de criar, ler, produzir, construir, exteriorizar e refletir sobre formas artísticas. A sensibilidade, a intuição, o

pensamento, as emoções e as subjetividades se manifestam como

formas de expressão no processo de aprendizagem em Arte. O componente curricular contribui, ainda, para a interação crítica dos alunos com a complexidade do mundo, além de favorecer o respeito às

diferenças e o diálogo intercultural, pluriétnico e plurilíngue, importantes para o exercício da cidadania. A Arte propicia a troca entre culturas e favorece o reconhecimento de semelhanças e diferenças, entre

elas. Nesse sentido, as manifestações artísticas não podem ser reduzidas às produções legitimadas pelas instituições culturais e veiculadas

pela mídia, tampouco a prática artística pode ser vista como mera

aquisição de códigos e técnicas. A aprendizagem de Arte precisa alcançar a experiência e a vivência artísticas como prática social, permitindo que os alunos sejam protagonistas e criadores. A prática artística possibilita o compartilhamento de saberes e de produções entre os

alunos por meio de exposições, saraus, espetáculos, performances,

concertos, recitais, intervenções e outras apresentações e eventos artísticos e culturais, na escola ou em outros locais. Os processos de criação precisam ser compreendidos como tão relevantes quanto os

eventuais produtos. Além disso, o compartilhamento das ações artísticas produzidas pelos alunos, em diálogo com seus professores, pode

acontecer não apenas em eventos específicos, mas ao longo do ano,

sendo parte de um trabalho em processo [...]. Os conhecimentos, processos e técnicas produzidos e acumulados ao longo do tempo em Artes visuais, Dança, Música e Teatro contribuem para a contextualização dos saberes e das práticas artísticas. Eles possibilitam compreender as relações entre tempos e contextos sociais dos sujeitos na sua

interação com a arte e a cultura (BRASIL, BNCC, 2018, p. 163).

Hoje os Cursos de Graduação em Música apresentam as seguintes

propostas:

O curso de graduação em Música deve ensejar, como perfil desejado

do formando, capacitação para apropriação do pensamento reflexivo,

da sensibilidade artística, da utilização de técnicas composicionais, do

domínio dos conhecimentos relativos à manipulação composicional

de meios acústicos, eletroacústicos e de outros meios experimentais, e

da sensibilidade estética, através do conhecimento de estilos, repertórios, obras e outras criações musicais, e revelando habilidades e aptidões indispensáveis à atuação profissional na sociedade, nas dimensões artísticas, culturais, sociais, cientificas e tecnológicas, inerentes à

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área da música. [...] O curso de graduação em Música, atento às tecnologias de produção e reprodução musical, de novas demandas de

mercado e de sua contextualização marcada pela competição e pela

excelência nas diferentes modalidades de formação profissional, deve

possibilitar formação profissional que revele, pelo menos, as competências e habilidades para que o formando possa: I - intervir na sociedade de acordo com suas manifestações culturais, demonstrando sensibilidade e criação artísticas e excelência prática; II - viabilizar pesquisa científica e tecnológica em música, visando à criação, compreensão e difusão da cultura e seu desenvolvimento; III - atuar, de forma significativa, nas manifestações musicais, instituídas ou emergentes; IV - atuar nos diferenciados espaços culturais e, especialmente,

em articulação com instituições de ensino específico de música; V -

estimular criações musicais e sua divulgação como manifestação do

potencial artístico.[...] O curso de graduação em Música deve assegurar o perfil do profissional desejado, a partir dos seguintes tópicos de

estudos ou de conteúdos interligados: I - conteúdos básicos: estudos

relacionados com a cultura e as artes, envolvendo também as ciências

humanas e sociais, com ênfase em antropologia e psico-pedagogia; II

- conteúdos específicos: estudos que particularizam e dão consistência à área de Música, abrangendo os relacionados com o conhecimento instrumental, composicional e de Regência; III - conteúdos teóricopráticos: estudos que permitam a integração teoria/prática relacionada com o exercício da arte musical e do desempenho profissional, incluindo também estágio curricular supervisionado, prática de ensino,

iniciação científica e utilização de novas tecnologias (BRASIL, Parecer

CNE/CES 0195/03, p. 2/4).

Observa-se pela leitura desses ordenamentos que tanto as instituições de ensino superior, como os cursos de ensino técnico de música ainda concentram seus esforços para ensinar música sob uma

perspectiva tecnicista, voltada para a compreensão, domínio e execução de um repertorio europeu tradicional, nesse sentido, algumas

remodelações curriculares precisam ser remodeladas.

Questões ecológicas, humanitárias, sociais e culturais poderiam

estar presentes no currículo dos cursos de música, caso houvesse a

implantação de um ensino musical gradativo desde a educação básica

até o ensino superior, o que desafogaria a missão pedagógica do ensino superior de música. A visão pluridisciplinar, multidisciplinar,

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transdisciplinar ou interdisciplinar do cenário musical tem sido bastante propagada na legislação educacional, principalmente, na educação básica. Hoje é importante refletir a música em suas relações

com a sociedade, interligá-la com as demais linguagens artísticas,

tendo em vista o que rezam os ordenamentos voltados para a educação básica, considerando-se que a música também se configura como

uma das formas de comunicação e parte integrante da cultura de um

país.

No estudo dos contextos culturais de um povo não basta estudarmos os efeitos sonoros trazidos pelos índios, negros e demais culturas em nossa música; fatores bem mais pontuais devem ser considerados, entre eles, verificar o que a música representa para esses povos e mesmo para nós, enquanto área de conhecimento.

Os programas de pós-graduação em música, aos poucos têm revertido esta situação, buscando se inter-relacionarem com outras

áreas de conhecimento (etnográfica, tecnologia, neurocognição, psicologia, sociologia, antropologia, saúde, ecologia, entre outras), visando compreender e analisar a música de outras culturas, ou cuidando de resolver questões problemáticas que estão presentes em

nossa sociedade e que podem encontrar amparo no ensino musical e

na propagação de seu repertório. Muitos de nossos pós-graduandos

estão realizando pesquisas ou cursando disciplinas em programas de

pós-graduação de outras áreas de conhecimento, buscando algum

tipo de solução de questões socioculturais que envolvem nossa área.

Hoje tem sido priorizado pelos mestrandos ou doutorandos de música realizarem disciplinas em outros programas que não os de música,

o que tem enriquecido sobremaneira nosso campo de atuação

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Temos consciência que a formação acadêmica em música não pode dar conta da totalidade de ensinamentos da área. Estudar música

é uma tarefa que se estende para toda vida, no entanto, seria importante que os currículos de música contemplassem, além do estudo de

um repertório musical com tendências eurocêntricas e tecnicistas, a

diversidade musical do nosso país, as questões étnico-raciais e as

questões socioculturais, considerando-se que os profissionais que se

propuserem a trabalhar com tais questões irão se deparar com várias

demandas e deverão estar preparados para lidar com essas situações.

A Lei n° 11.645, de 10 de março de 2005, que trata da obrigatoriedade do ensino das culturas e histórias africanas, afro-brasileiras e

indígenas nos currículos das escolas do país, ainda não está presente

na maioria dos cursos superiores de música. Essa discussão tem alcançado projeção nos Congressos Nacionais e Internacionais, nos

Encontros, Lives, Simpósios e Fóruns presenciais e nos eventos virtuais, bastante disseminados a partir de 2020, em razão da pandemia

instaurada no mundo e, com certa periodicidade, nas pesquisas realizadas por alunos da pós-graduação em música. De modo geral, seria

importante que os cursos de música refletissem qual a função social

da música em nossa sociedade e no mundo, qual a melhor maneira

de atuarmos musicalmente na sociedade e de que forma as disciplinas teórico-musicais poderiam ser vivenciadas e empiricamente testadas. Como relata H. Giroux:

[..] uma vez perdida a dimensão subjetiva do saber, o propósito do

conhecimento torna-se a acumulação e a categorização [...] Esta visão

de conhecimento geralmente é acompanhada de relações sociais hierarquizadas em sala de aula conducentes a comunicados, e não comunicação [...] O controle, e não a aprendizagem, parece ter alta prioridade no modelo curricular tradicional (IBID, p. 46).

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Ao se reportar aos estudos culturais a serem ofertados nas Universidades e fora delas, este pesquisador também relata que esses

estudos deveriam encarar com suspeita os projetos que trabalham

contextos culturais de forma hierarquizada, de maneira a considerar

apenas uma determinada parte de uma certa cultura como política

dominante e eticamente importante. O que deveria ser considerado

nos estudos culturais em geral, seria a possibilidade de analisarmos

suas próprias condições de existência, o que seria um pré-requisito

para não privilegiarmos estruturas culturais dominantes (GIROUX,

1997, p. 185). Isso realmente traria para as universidades ou demais

instituições de ensino, maior autonomia e reconhecimento, privilegiando transformações sociais importantes:

A fim de preservar sua integridade teórica e política, os estudos culturais devem desenvolver formas de conhecimento crítico, bem como

uma análise crítica do próprio conhecimento [...] Por causa de sua

constituição, as estruturas disciplinares impedem a derrubada de divisões de trabalho técnicas e sociais das quais são parte e as quais

ajudam a produzir. Os estudos culturais precisam desenvolver uma

teoria da maneira pela qual diferentes formações sociais são produzidas e reproduzidas dentro das relações assimétricas de poder que caracterizam a sociedade dominante. [...] Os estudos culturais, nesse

sentido, devem desenvolver um discurso de oposição e uma práxis

contradisciplinar para lidar com as disputas sobre diferentes ordens

de representação, formas conflitantes de experiência cultural e visões

diversas do futuro. É evidente que os interesses que informam tal

problemática não podem ser desenvolvidos dentro dos departamentos tradicionais (IBID, p. 192).

Henry Giroux, em outra publicação clama por trazer aos discursos

acadêmicos e aos estudiosos da cultura uma nova política cultural

baseada na construção de novas identidades, zonas de diferença cultural e formas de comunicação ética, que permitam transformar as

linguagens, as práticas sociais e as histórias que são parte da herança

colonial:

P:229

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

227

[...] essa posição oferece nova esperança para expandir tanto a prática

do trabalho cultural quanto as possibilidades libertadoras de transpor

as fronteiras que abrem novas possibilidades políticas e pedagógicas.

[...] A categoria de fronteira assinala um reconhecimento daquelas

margens epistemológicas, políticas, culturais e sociais que estruturam

a linguagem da história, do poder e da diferença. A categoria de fronteira também prefigura a crítica cultural e os processos pedagógicos

como uma forma de transpor fronteiras. [...] também (as fronteiras)

se refere à necessidade de criar condições pedagógicas em que os alunos passem a transpor as fronteiras para compreender o Outro em

seus próprios termos, e de criar outras regiões fronteiriças em que os

diversos recursos culturais permitam a composição de novas identidades dentro das configurações de poder existentes (GIROUX, 1999,

p. 40-1).

As duas publicações aqui mencionadas trazem uma abordagem

profunda sobre as possiblidades de trabalharmos problemas culturais sob óticas diferenciadas e inovadoras, tanto na academia, quanto

nas pesquisas, o que motiva a importância de remodelarmos os critérios de análise dos contextos culturais em qualquer área de conhecimento e, como consequência, nas artes, mais atentamente, na música. Essa ótica traria ao mundo acadêmico e à sociedade um avanço

considerável, tanto epistemológico, quanto político-cultural.

Se compararmos o ensino da língua portuguesa, da matemática e

das ciências sociais com o ensino musical desde a educação básica,

vamos observar um profundo descompasso proveniente da falta de

uma trajetória formativa gradual e ininterrupta entre essas disciplinas e a música. Mesmo com relação às demais linguagens artísticas, o

ensino musical, em relação as demais artes, ainda é ocasional, não

possui uma proposta pedagógica devidamente delineada e progressiva nos diversos níveis escolares, apesar de a LDB nº 9394/96 considerar a música uma área de conhecimento.

P:230

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

228

Essa problemática, bem como o número de especialidades que a

música comporta em cada uma de suas subáreas (composição, regência, performance, docência, entre outras) faz com que muitos dos

alunos que ingressam nos cursos superiores de música, não estejam

devidamente preparados para realizarem um ensino profissional e

uma atuação profissional adequado aos diferentes setores sociais onde essa arte é disseminada.

Não é incomum às demais áreas de conhecimento habilitarem um

aluno para o mercado de trabalho em quatro ou cinco anos. O aluno

de um curso superior de Direito, ou Engenharia, por exemplo, em um

prazo de cinco anos ou um pouco mais, já sai devidamente capacitado para exercer sua profissão na especialidade escolhida, graças a

uma formação educacional gradual e contínua obtida no ensino básico. Diferentemente, nos cursos superiores de música é quase impossível abarcar todo o conhecimento musical em um período de quatro

ou cinco anos, a não ser que esse aluno tenha iniciado seu aprendizado musical anteriormente, ou tenha estudado em uma escola de ensino técnico de música, que tem como missão pedagógica iniciar o

aluno no aprendizado do instrumento e de matérias teóricas específicas a esta formação, entre elas, teoria musical, harmonia, análise,

história de música ocidental, percepção musical e rítmica.

Diante desta realidade, como mesclar em tão pouco espaço de

tempo, práticas e repertórios de outras culturas no ensino superior

de música? Como lidar com alunos advindos de uma heterogeneidade cultural e de níveis sociais distintos? Como trabalhar estéticas diversificadas e contextos musicais que circundam a mídia contemporânea? Como preparar no mesmo curso, alunos que querem estudar

música popular, música antiga, música folclórica, ou música de ou-

P:231

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

229

tras culturas que não a ocidental? Como preparar arranjadores, produtores musicais ou demais especialidades? Como preparar alunos

que adentram nas faculdades privadas sem nenhum aprendizado

musical anterior?

Também é importante pensarmos como poderíamos avançar o

currículo para os alunos que ingressam na academia com conhecimento musical suficiente para se especializarem mais intensamente

em determinado repertório, subárea ou atividade musical. Essas

questões são bastante complexas e exigem maior reflexão. Estudar

música sob uma perspectiva histórica, cultural, estética, epistemológica, filosófica e sociopolítica não é tarefa fácil de se obter em um

curso superior de música com duração de 4 a 5 anos, principalmente

para alunos que não tiveram uma formação musical anterior. Um

estudo mais apurado da música deveria incidir sobre aspectos relativos aos seus significados, a sua vinculação afetiva, a motivação e ao

processo criativo propriamente dito, capacitando um profissional

com características multifuncionais. Isso só seria possível se a matriz

curricular dos cursos superiores de música fosse pensada não como

uma operação mecânica, tecnicamente precisa e inalterável.

Não bastasse, ainda prevalece no ensino musical o estigma infundado de que ele só pode ser realizado por quem tem um talento ou

um dom natural para aprender música. Não há talento ou dom que

sobreviva se não houver um ensino musical sólido que permita ao

aluno atuar com eficiência em uma das especialidades musicais que

ele porventura tenha escolhido. Para que isso ocorra é indispensável

que a educação musical siga de forma gradual e contínua desde a

educação infantil até o ensino superior, independentemente da missão pedagógica que lhe for atribuída.

P:232

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

230

O problema do ensino musical não está na missão pedagógica que

cada nível escolar deve desenvolver, mas na falta de continuidade,

planejamento e periodicidade com que o ensino musical é realizado,

o que sobrecarrega sensivelmente o trabalho pedagógico realizado

nos cursos superiores de música. Também não reside no grande número de disciplinas voltadas para a compreensão e domínio prático

de um repertório tradicional e eurocentrista, já que boa parte do conhecimento musical produzido no Ocidente, seja ele teórico ou prático, está embasado na compreensão e execução deste repertório.

Se formos pensar no conteúdo curricular que o ensino superior de

música deixa de atender em função dessa problemática, compreenderíamos os motivos por que a música, e em menor proporção, as

demais artes, não conseguem ter a projeção dos demais cursos superiores em outras áreas de conhecimento. Basicamente o ensino de

música nas Universidades e Faculdades privilegia o estudo de uma

produção musical de excelência, culturalmente elitista, com valor

devidamente consolidado. Em contrapartida deve ser observado que,

cada vez mais, estudiosos e pesquisadores de outras áreas de conhecimento têm encarado o ensino das artes como um propiciador para

o desenvolvimento de outras habilidades cognitivas, fato que vem

disseminando pesquisas relevantes, algumas delas formuladas por

pesquisadores musicais.

A Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais (ABCM) tem

promovido vários eventos científicos e publicações acadêmicas, a saber, o SIMCAM – Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais e o ENCAM – Encontro de Cognição e Artes Musicais, além do

periódico Percepta e dois volumes da Série Music & Cognition. A

Sociedad Argentina para las Ciencias Cognitivas de la Musica (SAC-

P:233

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

231

COM) acompanha essa importante missão científica, promovendo

inúmeras atividades voltadas para esta área de pesquisa. Outras

áreas de conhecimento têm se preocupado em avaliar a importância

da música em nossa sociedade e, em que medida, novos valores a ela

foram agregados, independentemente da tendência tecnicista e eurocentrista atribuída à área. Como dito anteriormente, não se trata de

rechaçá-la, mas integrar a esta tendência, novos olhares, novas perspectivas de trabalho, novas formas de apreciação e estudo do repertório musical do mundo.

De forma mais intensa, a falta de uma visão multicultural e reestruturante das matrizes curriculares dos cursos superiores de música

deixa de lado nichos importantes que poderiam estar agregados ao

aprendizado musical e que estão sendo ofertados fora da Academia

ou com mais habitualidade nos programas de pós-graduação em música ou em artes. Por razões das mais diversas, muitos dos estudantes

de música ainda se encontram impossibilitados de participarem desses cursos.

A descontinuidade do ensino musical na educação cada vez mais

impede que as Universidades e Faculdades de Música possam se desenvolver sob uma perspectiva mais holística. Os cursos superiores

de música viabilizam uma matriz curricular homogeneizante e, dessa

maneira, sofrem alguns problemas ao adotarem um outro comportamento.

A pedagoga Nelli Silva (1990, p. 5/6) relata que a proposta de um

currículo abstrato, predeterminado, em qualquer área de conhecimento, necessita ser suprida por uma proposta mais específica, concreta, construída para atender a realidade do ensino sob uma visão

transformadora, voltada para uma prática mais criativa e comprome-

P:234

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

232

tida. Esta autora recorre aos ensinamentos veiculados por H. Giroux,

quando ele afirma que uma nova sociologia da educação e do currículo deve derivar de uma compreensão teoricamente refinada a respeito da forma como o poder, a estrutura e a ação humana funcionam

para reproduzir não só a lógica da dominação, mas também o cálculo

da mediação, da resistência e da luta social.

Para Nelli Silva (1990), um currículo de bases tecnicistas possibilita a união do poder com o saber, nesse caso o Estado intervém na

educação, fazendo com que prevaleça a hegemonia estatal do grupo

no poder. Ele fortalece o poder dos técnicos e enfraquece o poder

decisório do professor em sala de aula para orientar os rumos da

ação educativa. Nesses casos a expressão, a experiência do aluno,

suas vivências são ignoradas; o capital cultural do aluno não é utilizado como base de conhecimento e o professor não trabalha com as

diferenças culturais ou diversidades sociais. Desta forma, o ensino e

o currículo permanecem dicotomizados. Seria importante para as

instituições administrarem um currículo crítico, que iria de encontro

ao concreto, um currículo capaz de trabalhar com questões éticas,

políticas e sociais e não só com as questões técnicas e instrumentais.

Nelli Silva prega um formato de currículo que se consolida coletivamente, desempenhando três funções distintas, porém complementares: a de reprodução, a da produção e a da legitimação do conhecimento adquirido. No papel reprodutivo a escola seleciona e distribui

o conhecimento, relacionando-o com o controle social e cultural da

sociedade. Na produção de conhecimento, a escola enquanto instituição cultural, cria conhecimento técnico-administrativo em alto nível

para ser utilizado no exercício profissional. A legitimação desse conhecimento ocorre quando o trabalho educacional justifica uma ação

P:235

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

233

em grupo que tenha aceitação social. Só dessa maneira o currículo

possibilita um diálogo coletivo permanente, crítico e reflexivo - parte

de um processo de recriação permanente, impedindo que as ações

curriculares se transformem em ideias estanques. Sob essas condições o currículo vai mais diretamente ao encontro do cotidiano do

aluno, dentro de uma cultura da qual ele é portador (NELLI SILVA,

1990, p.11/13).

Antonio Joaquim Severino (2017) também tem produzido textos

relatando a importância de o ensino superior estar focado nas práticas investigativas, a par do trabalho técnico que ela desenvolve. Esse

procedimento traz à tona reflexões sobre as questões que envolvem a

docência, mas também aquelas voltadas para as metodologias de ensino, para o currículo e para os contextos sociopolíticos que circundam o ambiente educacional. Para este pesquisador, o profissional de

qualquer área deve se apropriar do acerco de conhecimentos científicos relativos ao seu campo de trabalho; deve dominar um conjunto

de habilidades técnicas adequadas a sua ação interventiva sobre a

natureza e sobre a própria sociedade; deve desenvolver uma sensibilidade aos valores culturais necessários para se inserir de forma ética

e política em sua sociedade histórica. A citação que se segue aponta

com muita propriedade o que deve ser o ensino superior nas diversas

áreas:

[...] o ensino superior é mediação intencional e sistemática de uma

educação voltada para a qualificação científica e técnica, com vistas à

preparação de profissionais dos diversos campos da atividade humana, incluindo aqueles profissionais que vão se dedicar ao próprio

exercício de construção e disseminação do conhecimento científico.

Prepara então os cientistas, os técnicos, os especialistas, todos direcionados para atuar no universo da produção material, no âmbito da

vida social e na esfera da cultura simbólica, os três grandes espaços

em que se dão as práticas fundantes do existir humano. É pela sua

P:236

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

234

prática real que os homens conduzem sua existência histórica, direcionando-a rumo a fins que eles mesmos devem estabelecer a partir de

valores que vão balizar suas opções [...] o que se espera da educação

universitária é, em primeiro lugar, que desenvolva ao máximo o conhecimento científico e tecnológico em todos os campos e dimensões

que contribuem para a superação do amadorismo e a apropriação da

ciência e da tecnologia disponíveis para alicerçar o trabalho de intervenção na realidade natural e social (SEVERINO, 2017, p. 23/25).

Muito ainda poderia ser dito sobre a importância de os pesquisadores e educadores musicais trabalharem no sentido de atribuírem

um novo e real significado ao ensino superior de música, ainda que

pese em seus ombros todos os problemas acima aventados. A música

é um campo de saber e, como tal, deve ser ensinada de forma que os

valores substanciais ao desenvolvimento humano sejam a ela incorporados. Esta busca deve ser desenvolvida de forma coletiva, encabeçada pelos próprios educadores e pelas instituições. Não podemos

pensar em um ensino de música alijado dos princípios que norteiam

a Educação e a Sociedade como um todo, apesar de esta ser uma luta

duradoura e de difícil implantação. Na melhor forma, devemos pensar que o ensino musical não pode ser repassado somente nos cursos

superiores, mas deve se estender por toda a nossa existência a fim de

que cumpra os objetivos aqui aventados.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL, BNCC (Base Nacional Comum Curricular), aprovada e homologada integralmente pelo Conselho Nacional de Educação (CNE)

em 14 de dezembro de 2018 pelo Ministério da Educação. In:

http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em 2 de maio de

2021.

P:237

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

235

BRASIL, Parecer nº CNE/CES 0195/2003, publicado no Diário Oficial da União de 12/2/2004, seção 1, pág. 14. In:

http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES_0195.pdf, acesso

em 02 de maio de 2021

GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a

uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas,

1997.

GIROUX, Henry. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas,

1999.

NELLI SILVA, Terezinha Maria. A construção do currículo na

sala de aula: o professor como pesquisador. 1990. São Paulo. EPU,

1990.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Filosofia na formação profissional: porque ter valores políticos, éticos e estéticos na formação profissional é importante? São Paulo: Cartago Editorial, 2017.

P:238

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

236

1

Resenha de:

SILVA, Fabio Mario da. Ana Plácido e as representações do

feminino no século XIX Uberlândia, MG : Tavares & Tavares,

2022, 178 p.

Fabio Mario da Silva, professor de literatura na Universidade Federal Rural de Pernambuco / UAST, acaba de dar à estampa, em

2022, uma obra de fôlego que vem colmatar grande falta nos estudos

placidianos : Ana Plácido e as representações do feminino no século

XIX.

Um sólido prefácio de contextualização da Professora Cláudia Pazos Alonzo da Universidade de Oxford introduz as 178 páginas deste

ensaio perfeitamente documentado e confortado por pareceres e citações dos mais eminentes camilianistas, de alguns recentes placidianos e de diversos estudiosos do século XIX: Alexandre Cabral, Aníbal

Pinto Castro, Jacinto do Prado Coelho, Adriana Mello Guimarães,

Cláudia Pazos Alonso, Paulo Motta Oliveira, Irene Vaquinhas, entre

outros

A obra é constituída por três capítulos em que o autor analisa

gradual, lógica e pertinentemente o percurso da escritora oitocentis1 Maître de conférences en Estudos Lusófonos, Université Sorbonne

Nouvelle-Paris 3.

P:239

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

237

ta, mais conhecida como a escandalosa amante de Camilo Castelo

Branco, do que como mulher de letras.

No primeiro capítulo intitulado \"O estereótipo feminino oitocentista e o Romantismo\"

é definida a sociedade em que evolui e escreve Ana Plácido. Uma

sociedade regida pelos barões do liberalismo cujo conservadorismo

assenta obviamente numa conceção e num discurso de género castradores no que respeita ao feminino. A ciência da época, e a biologia,

em particular, confortam semelhante visão considerando a mulher

como um ser doméstico passivo, física e mentalmente débil, destinado submeter-se ao poder masculino e a procriar.

Ora, e embora pareça paradoxal, é precisamente neste contexto

que, em meados do século XIX, a mulher portuguesa começa a reivindicar o direito de expressão, o que, segundo os padrões morais em

vigor, compromete não só a sua feminilidade, como também a honra

familiar. Surgem, então, os primeiros jornais femininos e afirma-se e

manifesta-se às claras o gosto da mulher pela leitura, em particular

pelo romance, tão condenado por descuro da boa moral.

Após estas esclarecedoras parametrizações, Fabio Mario da Silva

introduz Ana Plácido que, nos anos de 1860, após a absolvição do

processo de adultério, em que perdida a honra, mas ganha certa liberdade, faz questão de enveredar pelo jornalismo e de viver das suas

publicações, numa época em que o Código Civil exige para tal autorização marital. Assim, enquanto colabora em diversos jornais, entre

os quais, O Futuro (Rio de Janeiro), Gazeta de Portugal, O Civilizador – o civilizador, jornal de literatura, ciências e belas artes (1860-

1862), Gazeta Literária do Porto, Diário Ilustrado, O Nacional, publica em 1863 o seu primeiro romance, Luz coada por ferros.

P:240

Ano 15 Número 01 Jul – Dez 2023

238

No capítulo II, “Esboço da formação educacional placidiana”, o

ensaísta analisa o significado e o alcance de “instrução” e de “educação” femininas no século XIX a fim de avaliar o possível acesso de

Ana Plácido à posição de escritora e, baseando-se em Júlio César Machado, autor da Introdução a Luz coada por ferros, refere a sua vasta

cultura literária: autores greco-latinos, clássicos portugueses, livros

eclesiásticos, Racine, George Sand, Jules Janin, Dumas pai e filho,

André Chénier, e alguns contemporâneos nacionais, como Almeida

Garrett.

O profundo conhecimento por parte Fabio Mario da Silva da obra

placidiana permitiu-lhe, ainda, discernir, sobretudo em Herança de

lágrimas (1871, assinado pelo pseudónimo Lopo de Souza), outros

autores de vulto que, quiçá, tiveram alguma influência na autora,

Shakespeare, Eugène Sue, Lamartine, Alfred de Musset, Madame de

Staël, Chateaubriand, Stendhal, Charlotte Brontë, entre muitos outros.

Outro aspeto importante deste capítulo, esclarecedor da posição

da mulher como escritora, consiste na preocupação do ensaísta em

sublinhar a posição perfeitamente analítica e crítica de Ana Plácido

perante a insignificância da literatura feminina em Portugal, mas

também perante a sua própria produção condenando, em particular,

a literatura de índole excessivamente romântica e valorizando uma

escrita edificadora. Por essa razão, dá nos seus textos grande importância à educação das personagens femininas e releva os efeitos negativos da literatura enganosa, a sentimental, responsável pelos infortúnios da mulher, para o que adverte a leitora. Assim, o processo

de escrita de Ana Plácido terá sido em grande parte autobiográfico e,

ipso facto, catártico.

P:241

Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

239

Para exemplificação e ilustração destes aspetos da obra placidiana, o segundo capítulo termina-se por uma longa apresentação de

um dos primeiros textos da autora, muito ao gosto ultrarromântico, e

altamente influenciado pela literatura de terror, Visões, assinado em

1860 pelas simples iniciais A. A. e publicado n’O Atheneo, n° 5, em

1860.

Assim definidos os padrões femininos oitocentistas e a formação

cultural de Ana Plácido, educada num colégio francês do Porto, o

terceiro e último capítulo do ensaio, “Problemáticas femininas na

obra de Ana Plácido”, aborda os temas mais recorrentes da sua obra.

Na primeira subparte, “Os enclausuramentos femininos”, relacionando a escrita com as experiências vividas por Ana Plácido, o ensaísta evoca os lugares habituais de enclausuramento feminino, recorrentes na ficção romântica, conventos e casas de recolhimento. A argumentação é exemplificada por resumos de passos particularmente

significativos de Herança de lágrimas e de diversos textos de Luz

coada por ferros que ilustram a função e a representação destes lugares de reclusão na sociedade e na economia das obras.

“A cumplicidade e a rivalidade femininas”, segunda sudivisão do

capítulo, baseia-se em Esboço de uma novela incompleta e em textos

reunidos em Luz coada por ferros: \"Adelina\", \"O amor\", e \"Impressões indeléveis\", em que a inveja, a rivalidade amorosa, a cobiça fazem e desfazem amizades, levando por vezes a mulher ao crime e à

loucura.

Em “As mulheres e a luta contra o patriarcado”, terceira parte do

capítulo, a análise assenta essencialmente em crónicas de \"Meditações\" (Luz coada por ferros), texto marcado por um tom irónico e

certa revolta. A autora reflete aqui sobre os poderes que regem a so-

P:242

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240

ciedade e cuja afirmação exponencial atribui à ascensão da nova família burguesa. Advêm, estes, esencialmente da religião e do patriarcado que tanto corresponde a salvaguarda, proteção, quanto a condenação e perdição.

A feminilidade, cujos sentidos são analisados, a condição feminina e a atitude que convém adotar perante o patriarcado são outros

pontos de interrogação de Ana Plácido que afirma que a mulher só

pode escapar à sua condição pela leitura e pelo estudo.

Para terminar o terceiro capítulo, em \"Infidelidades masculina e

feminina : o adultério e a separação\", demonstra-se como a escritora

transformou em matéria literária as experiências traumáticas da sua

vida amorosa a fim de levar as leitoras a refletir sobre o adultério e a

separação a partir de perspetivas bem distintas como o posicionamento masculino e o feminino, a legislação, a moral social. Para melhor entendimento da posição placidiana e da questão em análise,

Fabio Mario da Silva introduz nesta parte do texto úteis e esclarecedoras informações sobre os Códigos Penal e Civil de 1865, 1867 e

1910.

A uma conclusão cuidada em que são retomadas as problemáticas

principais do ensaio, segue-se uma bibliografia que consigna as publicações da autora, do século XIX às mais recentes, no século XXI,

bem como textos, impressos ou em linha, de crítica literária ou de

cariz autobiográfica. Na última parte, constam títulos sobre o século

XIX, em geral.

Até 2022, somente três obras dedicadas exclusivamente a Ana

Plácido foram publicadas (1930, 1991, 2008), duas bibliografias e um

estudo cronológico completado por uma antologia. O ensaio publicado agora por Fabio Mario da Silva, tem o mérito de, além de não dei-

P:243

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241

xar de parte esses aspetos, se focalizar numa análise rigorosa da obra

placidiana que terá o maior interesse para os estudiosos da escritora,

da questão e da autoria femininas no século XIX.

P:245

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