Por Dener Alano, Rodrigo Salgado, g1 Minas — Belo Horizonte


Policiais militares vigiam protesto de estudantes no Centro do Rio de Janeiro contra a ditadura militar e passam por pichação com os dizeres 'Ditadura assassina', em 1º de abril de 1968 — Foto: Correio da Manhã/Arquivo Nacional

Passados quase dez anos da entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que reuniu crimes e violações cometidos durante o Período Militar, o governo brasileiro cumpriu apenas duas das 29 recomendações propostas pelo documento. O intuito era fortalecer a democracia e prevenir abusos.

O levantamento de dados foi feito pelo Instituto Vladmir Herzog. Outras seis recomendações foram cumpridas parcialmente, 14 não foram realizadas e sete retrocederam.

  • Há exatos 60 anos, as tropas do exército saíam de Minas Gerais, sob comando do general Olympio Mourão Filho, com destino ao Rio de Janeiro (RJ) , para derrubar o governo do então presidente João Goulart. (leia mais abaixo)

Confronto entre polícia e estudantes durante o regime militar — Foto: Reprodução/Globo News

Uma das recomendações cumpridas é a realização das audiências de custódia, iniciadas em 2015 e previstas por lei desde 2019.

Por meio delas, presos em flagrante e acusados de crimes têm direito a ser ouvidos por um juiz, que avalia se concede ou não liberdade ao suspeito. O intuito é prevenir prisões arbitrárias.

A outra recomendação cumprida é a revogação da Lei de Segurança Nacional, que ocorreu em 2021. Criada durante a ditadura militar, a legislação foi atualizada após ser alvo de críticas por prever crimes abstratos e muito genéricos e que, de alguma forma, cerceavam a liberdade de expressão em nome da proteção da democracia.

"É uma agenda que não é para olhar para o passado, não é para garantir apenas o direito de quem foi afetado pela ditadura. São recomendações de aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito, são recomendações para consolidação da democracia e também para garantias de direitos humanos", explicou Rafael Schincariol, coordenador de Relações Governamentais do Instituto Vladmir Herzog.

Retrocessos

Entre as recomendações que retrocederam, estão a ausência de legislação que prevê a proibição de eventos oficiais que comemorem o golpe militar de 1964.

O documento do Instituto ainda cita que, além da falta de normas nesse sentido, ainda ressaltou que, na gestão de Jair Bolsonaro (PL) à frente do governo federal, "se intensificaram as manifestações de agentes públicos favoráveis à efeméride".

Entre outros pontos considerados como retrocedidos, estão a falta de apoio a instituições e órgãos de promoções de direitos humanos, a ausência de políticas para localização de desaparecidos políticos e para abertura dos arquivos da época.

Já entre os pontos que não foram realizados, destaca-se a responsabilização de agentes públicos e instituições pelo período, a desvinculação de institutos médicos legais e órgãos de perícia das forças de segurança e o estabelecimento de um órgão permanente para dar seguimento às ações da CNV.

"Estamos preocupados com a criação de políticas públicas voltadas à verdade, à memória e à justiça, ao aperfeiçoamento das instituições, das forças armadas e do papel constitucional do Estado Democrático de Direito", completou o pesquisador.

Indígena da etnia Krenak foi amarrado em pau-de-arara durante desfile da ditadura militar; imagem real — Foto: MPF/Divulgação

'Dívida histórica com o Brasil'

O g1 procurou o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania que, até a conclusão desta reportagem, não tinha se manifestado sobre o assunto.

Em 2023, durante audiência na Câmara dos Deputados, o chefe da pasta, Sílvio Almeida, reconheceu a necessidade de cumprir as recomendações elaboradas pela CNV.

"É mais do que necessário o cumprimento das recomendações porque se trata de um pagamento da dívida histórica com o Brasil e, especialmente, com o povo brasileiro", disse o ministro na ocasião.

Almeida também anunciou a criação de uma comissão para monitorar e formular estratégias para implementação dessas recomendações. O ministério não informou sobre o andamento da adoção dessa política.

Manifestações durante a Ditadura Militar em Belo Horizonte

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Estudantes da Faculdade de Direito em manifestação contra a Ditadura Militar, em 1979. — Foto: Acervo

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Protesto estudantil na Faculdade de Direito (UFMG), em outubro de 1968. — Foto: Acervo

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Helena Greco na escadaria da Igreja São José. Movimento feminino pela anistia em Belo Horizonte, em 1978. — Foto: Acervo/Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania

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Repressão contra a tentativa de realização do 3º Encontro Nacional dos Estudantes em Belo Horizonte, em 1977. — Foto: Acervo

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Repressão contra a tentativa de realização do 3º Encontro Nacional dos Estudantes em Belo Horizonte, em 1977. — Foto: Acervo

60 anos do golpe militar

As tropas deixaram Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, no dia 31 de março de 1964. O governador de Minas Gerais na época, Magalhães Pinto, era favorável e contribuiu para as articulações em prol do golpe.

"Minas Gerais tinham diversas personalidades que desejavam o golpe. Havia uma ala conservadora muito importante em Belo Horizonte e vemos reflexos do golpe até hoje. Mas, ao mesmo tempo, também de muita resistência, com personagens importantes como Helena Greco e Clube da Esquina", relembrou Bruno Viveiros, historiador e pesquisador da UFMG.

Moradora de Belo Horizonte, a professora aposentada Maria Dalce Ricas relembra os 14 meses em que passou presa durante o período militar, no antigo prédio do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), localizado na Avenida Afonso Pena, que hoje abriga o Memorial dos Direitos Humanos.

"Na primeira noite que eu fui presa, houve as habituais sessões de tortura, choque, soco, tudo. Depois disso, continuaram as torturas psicológicas, os insultos, que eles eram muito bons nisso. Mas realmente não foi só a prisão, não. A prisão por si já é terrível porque eu não matei, não roubei, não dilapidei patrimônio público ou privado. Mas, mesmo assim, fiquei 14 meses na cadeia porque ousava, ousei discordar do governo militar", recordou Maria Dalce.

Ficha criminal de Maria Dalce, durante o período militar. — Foto: Acervo Pessoal

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