Blog do Mauro Ferreira

Por Mauro Ferreira

Jornalista carioca que escreve sobre música desde 1987, com passagens em 'O Globo' e 'Bizz'. Faz um guia para todas as tribos

MEMÓRIA – É possível que haja quem, na efervescência social de 2020, identifique Zélia Duncan mais pelos vídeos em que a artista se posiciona politicamente em redes sociais do que pelos discos que lança desde 1990. Sim, é transformada em ativista que a cantora, compositora e instrumentista fluminense Zélia Cristina Duncan Gonçalves Moreira completa 30 anos de carreira fonográfica em 2020.

A rigor, a cantora pôs os pés na profissão em 1981, em Brasília (DF), e já caminha para os 40 anos de atividade profissional na música. Em 1989, a artista chamou alguma atenção na cidade do Rio de Janeiro (RJ) com o show Zélia Cristina no caos com o nome artístico que adotava até então.

Mas foi em 1990 que começou a ser notada (timidamente) em escala nacional com o titubeante primeiro álbum, Outra luz, editado naquele ano com algumas pistas da (in)formação musical de Zélia em regravações de músicas de Luiz Melodia (1951 – 2017) e Rita Lee, além da primeira parceria da compositora com Christiaan Oyens.

A primeira virada aconteceu quatro anos depois. Já adotando o nome artístico de Zélia Duncan, a cantora lançou em 1994 um segundo álbum de tom pop folk que denunciava a influência de cantoras compositoras como a canadense Joni Mitchell.

Primoroso, Zélia Duncan – o álbum produzido por Guto Graça Mello – ampliou e solidificou a parceria da artista com Christiaan Oyens, retomada no recente Tudo é um (2019), afetuoso álbum que repôs Zélia no trilho autoral após discos e shows calcados em cancioneiros alheios como o fundamental Tudo esclarecido (2012) – disco em que a cantora abriu janela pop para o cancioneiro vanguardista de Itamar Assumpção (1949 – 2003) – e o menos impactante Invento + (2017), registro de estúdio de show em que Zélia abordou o repertório de Milton Nascimento somente com o toque do violoncelo de Jaques Morelenbaum.

Com voz grave que ecoa o timbre de Lucina, de quem se tornou parceira nos anos 1990, Zélia Duncan é da mesma geração de Adriana Calcanhotto, Cássia Eller (1962 – 2001) e Marisa Monte. Nunca foi adulada pelos críticos como as colegas de geração, talvez pela generosidade com que Zélia sempre se permitiu colaborar com artistas de menor cotação na bolsa de valores do universo pop, mas chega respeitada aos 30 anos de carreira fonográfica.

Zélia Duncan tem carreira fonográfica iniciada em 1990 com a edição do primeiro álbum, 'Outra luz' — Foto: Roberto Setton / Divulgação

Quando parecia que começaria a se repetir, lá pelo fim dos anos 1990, Zélia soube se reinventar. Soube se transformar em outras, para usar expressão já clichê quando se trata de reportar o maior sortimento que pautou a obra fonográfica da artista a partir dos anos 2000. Pré-pós-tudo-bossa-band (2005) e Pelo sabor do gesto (2009) são álbuns aliciantes que resistem bem ao tempo.

No fundo sempre mutante, Zélia Duncan experimentou ocupar por um tempo o posto de vocalista do grupo de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias no retorno da banda em 2006, deixando já em 2007 a função que havia sido da parceira Rita Lee na fase áurea d'Os Mutantes.

No fim de 2006, enquanto ainda era oficialmente uma mutante. a cantora já estava em cena com Simone, dividindo o palco em show eternizado no álbum ao vivo Amigo é casa (2008). Em 2011, com a segurança de quem fez curso de atriz na juventude, a artista uniu música e teatro em antológico espetáculo, Totatiando (2011), baseado na obra do compositor paulista Luiz Tatit e editado em DVD em 2013.

Em plena atividade, Zélia uniu música e ativismo no ano passado ao orquestrar, em parceria com Ana Costa, álbum-manifesto que saiu em defesa da mulher em mundo machista que registra intoleráveis casos diários de feminicídio. Gravado com estelar elenco feminino que incluiu Alcione, Daniela Mercury, Mônica Salmaso e Simone, o disco Eu sou mulher, eu sou feliz (2020) merecia ter sido mais louvado tanto pelo repertório inédito (composto por Zélia com Ana) quanto pelo caráter político.

Inabalável aos 55 anos, enquanto espera a contenção da pandemia do coronavírus para poder estrear a turnê nacional do show que a juntará em cena com o amigo e parceiro Paulinho Moska, Zélia Duncan segue sendo a porta-voz de indignações sociais em vídeos que repercutem até mais do que os discos dessa cantora e compositora transformada em ativista.

Mais letrista do que melodista, Zélia Duncan tem o dom da palavra.

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!