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Reminiscências transcendentais: Glênio Bianchetti eternizado

Sob curadoria de Marília Panitz e acompanhamento de sua neta Joana, um acervo digital e casa atelier reunirão os setenta anos de vida artística de Glênio Bianchetti
Glênio Bianchetti (Fotos: Divulgação)

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A narrativa do artista muitas vezes se entrelaça com a própria trama da cidade que escolheu chamar de lar. Glênio Bianchetti, mais do que um prodigioso legado cultural a Brasília, tornou-se, ele próprio, um patrimônio indissociável da capital. Deixou a cidade, os alunos e a família em 2014, ainda assim, até hoje, sua obra ressoa no sustento memorial para as gerações atuais e futuras.

Nascido em Bagé, frequentou os corredores do Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, iniciando sua odisseia artística. Não demorou para que o seu dom inato o pavimentasse como membro do distinto Clube de Gravura de Porto Alegre.

Suas raízes profundas na xilografia e na linoleogravura, na década de 1950, narravam as crônicas dos costumes regionais, destilando uma voz própria e impactante. A magnitude de suas criações era tal que, ao lado de uma confraria que englobava Glauco Rodrigues, Danúbio Gonçalves e o mentor José Moraes, ele abriu um portal de intercâmbio artístico que transcendeu fronteiras, conectou-se com mentes criativas da Índia, Estados Unidos, União Soviética, Itália, França, Alemanha e México.

Em 1962, Darcy Ribeiro, então ministro da Educação, chamou Bianchetti para a recém-nascida capital. A missão era clara: contribuir para o corpo docente da Universidade de Brasília (UnB), a pedra angular do projeto visionário de Darcy.

Bianchetti aportou em Brasília e trouxe toda a família, dona Ailema – hoje com 97 anos – e os seis filhos pequenos. Aqui selou seu destino à terra que o abraçaria até os seus últimos dias. O artista gaúcho por nascimento, mas brasiliense por coração, inicialmente, atuou no curso de Arquitetura, além de ter sido o primeiro diretor do Ateliê de Artes Plásticas e do Setor Gráfico da UnB. Nos pilares da academia, o professor reverberava sua maestria nas artes, deixando marcas permanentes nos jovens que cruzavam seu caminho. Em 1965, entretanto, a Ditadura Militar lhe ceifaria esse papel e o colocaria atrás das grades.

Bianchetti seria um dos últimos professores a sair da prisão. Anos se passaram até que fosse reintegrado ao corpo docente da UnB, retornando em 1988. Durante o intervalo, o seu caminho artístico floresceu. Ele desempenhou um papel crucial na fundação do Museu de Arte de Brasília. Suas obras também cruzaram oceanos, marcando presença no Salão de Maio em Paris, em 1973. Cinco anos depois, teve um de seus trabalhos escolhidos para homenagear o então presidente francês Giscard d’Estaing, durante uma visita ao Brasil.

Nos círculos artísticos, a notoriedade era inegável. Até mesmo Jorge Amado, em 1972, ergueu a voz para um elogio a Bianchetti, escrevendo: “Sou um velho admirador da arte de Bianchetti, mestre inconteste da cor, tomando dela para fazê-la pão e vida, drama e ternura. Seus quadros me comoveram com sua luz profunda, tão buscada e conseguida, tão brasileira”.

O retorno à UnB marcou um renascimento repleto de júbilo. Glênio participou da criação do Instituto de Artes (IdA), na época chamado Instituto de Ciência e Arte, como parte do Conselho Universitário nº 017/88. Isso sucedeu um dos períodos mais tumultuados de sua vida, durante o qual sua bravura e luta política em prol da liberdade e democracia o fizeram conquistar merecidas condecorações. A década de 1990 o saudaria com honras, culminando em uma retrospectiva de sua carreira de cinquenta anos, realizada no Palácio Itamaraty em 1999.

Glênio Bianchetti encontrou voz também em palavras, graças ao trabalho de José Paulo Bertoni, que imortalizou sua jornada em um livro publicado em 2010. Seu percurso foi também eternizado em imagem, com o documentário de Renato Barbieri. Agora, dois grandiosos projetos estão a caminho para honrar seu nome: o Acervo Digital Glênio Bianchetti e a Casa Atelier Glênio Bianchetti, transformando o espaço em um oásis de criação e pesquisa pública.

Sob o comando da renomada professora, diretora de arte e curadora Marília Panitz, o Acervo Digital Glênio Bianchetti emerge como um museu virtual concebido para preservar, nas palavras de Marília, “um patrimônio histórico e artístico de importância ímpar, não só para o Distrito Federal, mas para todo o País”. O acervo abarcará uma riqueza de materiais, documentando os setenta anos de vida e carreira de Bianchetti.

Joana Piantino, neta de Bianchetti, também museóloga e produtora cultural, comandará, ao lado de Marília, o projeto, em resposta ao apelo de sua avó, Ailema. O acervo digital será uma vitrine para 21 obras do artista, abarcando desenhos, gravuras, pinturas, xilogravuras, linoleogravuras, litografias, serigrafias, livros e até mesmo cartas.

“Em 2018, a minha avó fez um pedido para que fosse escrito um projeto de preservação do acervo do meu avô. Ela, as tias e os tios ajudaram com informações e memórias que possibilitaram a organização e amarração de tudo que o site abarca e, como de costume, os amigos agregados também participaram”, conta a neta.

Boa parte do material digitalizado é fruto do cuidado e da gentileza de dona Ailema, que durante a carreira do marido teve a atenção de catalogar e organizar o seu trabalho. “Este projeto poderia estar sendo feito por pessoas fora da família pensado que o vô é uma figura de muita importância para o cenário cultural brasileiro, mas felizmente dentro da família existem pessoas empenhadas em preservar e difundir sua arte e sua história”, completa Joana.  

A outra parte desse tesouro artístico também será disponibilizado. O projeto da Casa Atelier Glênio Bianchetti, situada em seu espaço original, no Lago Norte, será um santuário do legado do artista. Apesar de ainda não haver data para abertura, a arte de Bianchetti voltará a ecoar através do tempo, convidando as mentes ávidas por conhecimento e beleza. À frente disso também está a família de Bianchetti por meio dos netos Joana e Lúcio.

“Durante décadas, seus trabalhos contribuíram para a construção da identidade artística de muitos artistas e seu lar será aberto para outros que ainda virão”, afirma. “A Casa Atelier foi pensada pela avó, filhos e netos. A família leva bem a sério as ideias propostas, então, acredito que em algum momento do futuro, a casa de Ailema e de Glênio seja definitivamente um ponto cultural da cidade, pertencendo, oficialmente, ao circuito artístico da capital”, finaliza Joana.  

 

@casaateliergleniobianchetti
@acervogleniobianchetti
www.acervogleniobianchetti.com.br

 

*Matéria publicada na Revista GPS 37