QUAL O SENTIDO DO DESENHO DE RETRATO?

Parte do conteúdo teórico a ser ministrado no Workshop “Desenho de Retrato” (Porto Alegre| 14, 15 e 16 de Dezembro | 2016) Mais informações aqui!

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RICHARD MORRIS, Sem título 2 | carvão sobre papel, 2014

Ao desenho de Retrato se atribui de antemão uma dificuldade natural. A primeira tarefa do desenhista que se ocupa deste gênero é, portanto, desmistificar essa crença compreendendo precisamente em que consiste essa dificuldade. As causas são de ordem tanto plástica (formal), quanto simbólica (conceitual). As primeiras dizem respeito à bem conhecida dificuldade do “detalhe”. Desenhar detalhes é difícil porque são partes que vemos menos – as soluções de síntese tornam-se assim muito obtusas. Noutros termos: a abstração intrínseca às soluções formais é maior. Por exemplo, por que nunca ficamos bem em retratos 3×4; por que sequer se parecem conosco? Justamente porque em retratos muito pequenos a síntese realizada é muito extrema e faz com que tenhamos que eliminar vários elementos da face.

Esse mesmo exemplo dá conta de ilustrar outra dificuldade técnica do Desenho de Retrato: a síntese volumétrica. Dizer que o desenho é composto por sínteses, como já mencionamos em outro post implica atribuir uma dinâmica inventiva ao Desenho, compreendido como plataforma criativa de soluções plásticas. A luz que devo criar em meu trabalho evidentemente não é feita de fótons, mas de pó de carvão; o tamanho real do modelo obviamente não é o mesmo do papel, nem suas cores, texturas e assim por diante… Tudo em um desenho terá de ser criado, especialmente a sua característica mais definidora: o volume. O modelo possui uma dimensão de profundidade que o papel não tem. Essa é a síntese material que o desenho opera, sem a qual será incapaz de “simular” a densidade corpórea do modelo. Tudo no desenho deve figurar como “substitutivo” que atue como “representação”: em lugar de sombra e luz – escalonamento tonal; no lugar do tamanho real – proporcionalidade; em lugar de textura – solução gráfica, etc. Ou seja, utilizo manchas de tons diferentes de carvão para figurar planos distintos e emular condições de volume.

Essa é a causa do retrato 3×4 ficar sempre tão estranho: o flash da máquina cria uma síntese tão sumária dos planos (fazendo com que a luz pareça incidir igualmente em todas as partes do rosto) que este parecerá achatado, “deformado” pela luz – gerando uma forma diferente da que nosso rosto de fato apresenta. Não se pode esquecer que a luz é o organizador geral da forma – e sua boa condução em uma obra é devida a um profundo “sentimento de amor” como afirma poeticamente Kenneth Clark (A Paisagem na Arte, 1961). A luz é o fundamento essencial da visualidade: desenhar significa recriar a luz que incide no corpo de um modelo. Esta é a dificuldade central do gênero da paisagem, que também se expressa fortemente no desenho (e na pintura) de Retrato.

Outra dificuldade é o fato de a face ser inteiramente formada por linhas côncavas. Devido à tessitura muscular sob a pele, todo o corpo humano é assim, mas no rosto estas curvas são infinitamente pequenas; qualquer mínima alteração de ângulo aparece imediatamente. Curvas são muito mais difíceis de serem reproduzidas do que retas; para resolver esse problema, a solução é uma constante aferição do espaço.

DIFICULDADES ICONOLÓGICAS

O segundo tipo de dificuldade ao se fazer um Retrato é relativo ao âmbito iconológico, ou “simbólico”. Uma vez que está ligado a um imaginário muito forte, o Retrato situa-se em cheio num processo de “apagamento”. Possuindo apelo afetivo extremamente forte, é por isso veiculado de forma exaustiva na cultura; nesta mesma proporção é banalizado, e perde em termos de significação. O experimento do vídeo a seguir – onde pessoas conhecidas ou desconhecidas estiveram na condição de olharem-se umas às outras durante 4 minutos – nos mostra como deixamos de olhar para o rosto das pessoas, substituindo nossa visão quando estamos diante delas por uma imagem tipificada. Esse, sem dúvida, é o principal motivo de dificuldade na hora de desenhar um Retrato: não olhamos para a face, nem mesmo das pessoas mais íntimas e queridas:

Para quebrar esse espaço de invisibilidade é necessário decodificar culturalmente nosso tema, começando por questionar o estatuto da própria visão do desenhista. Desenhar, afinal se trata disso: efetuar uma reconstituição permanente do olhar.

A melhor forma para iniciar essa decodificação é relativizar o desenho de Retrato por meio de uma área muito próxima – a fotografia. Comparações e paralelos entre essas duas categorias podem expor melhor a natureza de ambas, dado que seus desenvolvimentos são bastante semelhantes, e chegam mesmo a se confundirem. Na era dos selfies, em que a produção (e reprodução) de retratos é instantânea, mais do que nunca este gênero precisa ser ressignificado, especialmente no tocante a seu sentido filosófico. Quais significados pode ele fornecer à produção estética atual? Que sentido há em estudarmos o Retrato hoje em dia?

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DENNIS J. MARTIN | desenho, ouro sobre papel (ponta de prata)

QUEM VEIO PRIMEIRO, “RETRATO” OU “RETRATADO”?

Ao olhar para um retrato, esperamos que ele nos mostre quem realmente é o retratado. Esta é a primeira expectativa a ser descartada; primeiro porque a dimensão única da imagem não pode revelar a totalidade da existência – a qual se expressa em múltiplas dimensões. Depois, porque o que ocorre é algo bem diferente: o retratado é revelado pelo retrato; este inventa seu retratado (e na mesma medida, inventa também o seu autor). O brilhante escritor inglês Oscar Wilde considerou essa verdade: “Todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, e não do modelo”. Pablo Picasso, que sem dúvida teve tempo bastante para refletir sobre a forma, ao pintar sua amiga Gertrude Stein, ouviu dela a clássica reclamação quanto à falta de semelhança “– Este retrato não se parece comigo” disse ela ao amigo. E o artista replicou: “Não parece… mas parecerá!”. (Hoje, mais de um século depois, quando penso em Gertrude Stein a única imagem que me ocorre é justamente a pintura que Picasso fez dela. O artista estava certo: Gertrude se pareceria com o retrato…). Como a imagem é a expressão simbólica materializada de nossa subjetividade, ela adquire poder de “representação”; por isso confundimos tão intensamente um retrato de fulano com o próprio fulano.

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PABLO PICASSO, “Gertrude Stein”, 1905-6 | óleo sobre tela

Em geral, diante de uma fotografia, nossa “suspensão voluntária da descrença”[1] é tão alienante que tendemos a abandonar a resistência crítica deixando à imagem o trabalho de expressar por nós. Somos convencidos a acreditar que 1) a fotografia é a coisa que figura nela, e 2) a imagem concilia e expressa tudo o que pensamos dessa coisa. Assim, depositamos na imagem as projeções de nossa expectativa, julgando que ela diz o que queremos que mostre; e não efetivamente o que está mostrando. E o que ela de fato mostra é, na maioria das vezes, invisível.

Se o desenhista não considerar isso, estará sempre um passo a frente de seu desenho, achando que este representa muito bem o modelo, quando na verdade há o desenho (que diz exatamente o que diz), e há aquilo que o desenhista enxerga em seu modelo – e que supõe estar no desenho que fez. A maneira como vemos o mundo determina o que vemos do mundo. Um desenho não é (nem deve ser) a reprodução imediata do que o artista vê, tampouco expressão da forma como ele vê o mundo. O desenho (ao menos o realista) é a reconstituição das coordenadas da experiência visual – e assim é que deve ser considerado. Ou seja, o desenhista só pode dizer por meio de coordenadas visuais (sínteses plásticas e conceituais). É através delas que algo será (ou não será) dito. Sem considerar de forma pungente esta realidade prosaica, eminentemente formal, o desenhista verá em seu desenho o que não está, situando-se a um passo a frente, vendo coisas que o espectador é incapaz de ver, simplesmente porque ali não estão.  O desenhista deve ter, sobretudo. consciência de que um Retrato é uma “convenção”; mais suscetível às normatizações de época que os demais temas artísticos. O Retrato advém de um pacto entre modelo e artista, onde a tarefa é chegar a uma mediação entre a técnica e as normas estéticas do tempo – e buscar rompê-las.

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MICHELANGELO, Tumba de Giuliano de Médici “Duque de Nemours” | Mármore (detalhe, 1534)

Para se ter uma ideia do poder de convencimento do retrato enquanto convenção, diremos que a relação de semelhança com o retratado na pintura firma-se plenamente apenas por volta do século XVII[2]. Quanto aos retratos produzidos na Alta Idade Média, não temos nenhuma certeza quanto à semelhança física real (tal como a concebemos hoje) com seus retratados. Em uma anedota célebre, quando criticado pela ausência de semelhança entre o Duque de Nemours e o retrato escultórico realizado por Michelangelo na Capela dos Médici – já no início do XVI – o artista teria respondido “Não importa, daqui a 500 anos ninguém se importará com isso!”. Presentemente, essa relação de semelhança física entre retrato e retratado também é assimétrica (e não esqueçamos também que as vanguardas do último século não tinham nenhum apreço à ideia de mimesis).

Anedotas como essa são reveladoras da atitude dos artistas e da diferença entre os termos da arte em cada época. Para um neoplatônico como Michelangelo, espelhar a realidade fenotípica dos retratados não era sequer concebível: para ele, assim como para todo o humanismo do período, a arte deveria plasmar o ideal e manifestar-se no plano da eternidade – coisas incompatíveis com a realidade perecível do corpo físico.

Um Retrato que parece “realista” pode em outro momento se tornar alegórico – sua importância, seu valor e os referentes que o qualificam se transformam. Não devemos esquecer que o Retrato é um gênero, e, portanto uma “elaboração estética”, uma invenção poética, uma síntese; nunca o próprio retratado. Esse esclarecimento parece dispensável, mas insistimos: nunca é demais considerar sua importância. Leve-se em conta que, se até no Iluminismo (o chamado século “das luzes”) persistiu o costume de se mandar fazer retratos de condenados fugitivos reincidentes da polícia, os quais eram depois expostos publicamente e sobre eles se aplicava uma punição física (exatamente como se se tratassem do corpo presente dos condenados), hoje em dia nossa adoração pelas imagens ainda é significativa; talvez até maior…

A magia com que o Retrato conquistou os artistas no Renascimento voltou a exercer seu poder no contexto de surgimento da fotografia (cerca de 1826). No texto A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin reproduz um relato acerca dos primeiros retratos tirados em daguerreótipo:

Não se ousava de início olhar por muito tempo as imagens que ele produzia. Ficávamos intimidados pela nitidez desses homens, e acreditávamos que esses pequenos, minúsculos rostos das pessoas fixados sobre a placa eram eles também capazes de nos ver, tão desconcertante era para todos os efeitos produzidos (…) em decorrência do caráter insólito da nitidez e da fidelidade.

Não foi por acaso que o Retrato (assim como a “Perspectiva” e a “Anatomia Artística”) tenha surgido na pintura justo no século XV. Trata-se da expressão simbólica mais bem acabada de uma visão de mundo que se inicia no Ocidente precisamente no início da Idade Moderna (final da Idade Média), junto ao aparecimento de um novo processo de subjetivação, onde os indivíduos passam a compreender a si mesmos como sujeitos definidos por uma verdade científica. O Retrato aparece, portanto, na esteira de um processo de “identificação”, de “reconhecimento” subjetivo deste indivíduo que acabava de nascer, e então necessita ver a própria imagem:

Daí que sua execução se afigure [entre os séculos XV e XVI] inspirada por um impulso racionalista subjacente, impressão essa reforçada pelos requisitos de verossimilhança com a realidade e de verificabilidade dos temas (…) paradoxalmente, os retratos desta época exibem ainda muitas características mágicas ou fetichistas (SCHNEIDER, 1997)

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VANIA COMORETTI, “Whisper” |  aquarela , china e pastel sobre papel, 2007

“– QUAL O SENTIDO DE ESTUDARMOS O RETRATO HOJE?”

Como dissemos, o retrato tradicional tem um desenvolvimento na história da pintura muito semelhante ao da fotografia – e não por acaso ambos iniciam-se e se esgotam rapidamente. A pintura de Retrato conhece seu apogeu e alcança uma elaboração quase definitiva no início de sua vigência (durante poucas décadas do século XV), momento de criação de convenções e fórmulas de composição que perduram até hoje (corpo inteiro, retrato em perfil ¾, busto, perfil, ½ corpo, frontal e grupo).

Mas não é verdade que a fotografia “suplantou” ou tornou “obsoletos” os pintores de Retrato e o próprio Retrato tradicional. Na verdade, é outra a relação entre a fotografia e a pintura: quando a primeira surge, os artistas se veem desincumbidos da tarefa de “retratar” – em sentido amplo, não eram mais obrigados a representar seu meio, traços anedóticos e circunstanciais dos eventos, o cotidiano e seus indivíduos, etc. Os pintores continuaram pintando, é claro; mas a independência da pintura em relação à fotografia forneceu aos pintores as condições de criação efetiva da “pintura”, pois outro sentido à atividade artística tradicional ora se apresentava. Vendo-se liberado do testemunho imediato da realidade física, o retratista pode voltar-se à figuração do mundo imaginário – onírico, lírico, transcendental – e às questões pertinentes à própria pintura enquanto linguagem. Tudo isso influenciou no desencadeamento das vanguardas modernistas que vieram na sequência.

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Na fotografia de Charles Emile Joachim Constant (“Adormecida”, 1897) vemos a simulação de um tratamento pictórico

É sintomático, e paradoxal neste sentido, que a pintura “Realista” tenha aparecido quando a fotografia e o daguerreótipo eram já procedimentos amplamente absorvidos pela cultura[3]. Isso indica que a fotografia tenha mobilizado os pintores não apenas para o terreno das emoções e da fantasia: levou-os também à representação realista com vias à objetividade científica. Enquanto muitos artistas reagiram contra a fotografia (como Daumier e o escritor Baudelaire), outros encontraram nela uma nova referência para seu trabalho plástico.

Charles Émile Joachim Constant Puyo, “The Straw Hat” | Fotografia, 1906

Curiosamente, alguns dos primeiros fotógrafos, tendo vivido em um contexto de convenções estéticas neoclássicas, criavam fotos à maneira de telas – buscando deliberadamente emular em suas fotografias as composições, temas e elementos formais da arte acadêmica. Nesse movimento – conhecido como Pictorialismo – os fotógrafos deveriam simular os efeitos da tinta e do pincel, evitando o registro do real: “Os primeiros retratistas obedeciam cegamente aos conceitos de composição dos pintores do juste millieu (…) mas logo surgiram os grandes retratistas, insuperados, Nadar e Carjat, que desenvolveram uma nova abordagem lançando as bases de uma visão fotográfica do Retrato”[4]. É este o momento em que a fotografia conquista sua independência em relação à pintura.

No entanto, o esgotamento da temática do Retrato na fotografia acontece muito rapidamente: em 1854 o fotógrafo Adolphe Disderi patenteia um novo formato fotográfico – o carte de visite, (primeiro cartão de visitas) que incluía uma fotografia do cliente (imagem abaixo). Vendida a baixíssimo custo, o carte torna-se extremamente popular. Mais preocupado com seus lucros do que com explorações estéticas, porém, ao massificar a produção Disderi “aniquilou a arte do retrato”: padronizando poses, adereços e composições, que então passaram a receber um tratamento superficial. (idem, p. 30) Como resultado, já no final do século XIX a fotografia havia perdido sua aura romântica.

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O carte de visite incluía foto do contratante

Hoje esses processos se complexificaram e intensificaram; mas é difícil não pensar nos atuais softwares de manipulação de imagem (que realocaram o papel da fotografia) e sua notável tendência de reproduzir os efeitos das antigas técnicas da pintura. Respondendo à pergunta inicial – acreditamos que a ressignificação da categoria tradicional da retratística faz parte de um processo maior de reconstrução da imagem como resistência à banalização. E tal reconstrução do sentido da imagem pressupõe a reconstituição dos sentidos do “olhar”. A figura humana sofre um processo brutal de estereotipificação pela mídia, pelo cinema comercial, pela publicidade (introjetado muitas vezes em nós mesmos, que veiculamos imagens e inumeráveis selfies instantâneos sem refletir no conteúdo estético do que compartilhamos).

Um retrato, como vimos, não é mero reflexo da aparência do ser, nem representação imediata de sua existência ou raio-X de uma suposta “verdade”: mais do que isso, o Retrato pode funcionar como matriz de reflexões, questionamentos e possibilidades, sendo um antídoto poderoso contra a banalização da vida humana e sua instância de alteridade.

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[1] Expressão do crítico Samuel Coleridge de 1817, que afirma ser no excesso de verossimilhança que a ficção se torna fidedign.

[2] Schneider, N. A Arte do Retrato. São Paulo: Taschen, 1997 (p. 18)

[3] A pintura “Realista” (movimento liderado por Gustavo Courbet) surge na França em 1855; já a fotografia e o daguerreótipo são criações das décadas de 20 e 30 daquele século.

[4] FREYRE, Gilberto; PONCE DE LEON, Fernando; VASQUEZ, Pedro. O Retrato Brasileiro, Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983.

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foto da capa | GOLUCHO, “Retrato de insomnios” (lápis e aguada, 2006)

Publicado por Gustavot Diaz

Artista visual e escritor, co-fundador do espaço artístico MÍMESIS | Conexões Artísticas em Curitiba, e ministrante do curso Processos Poéticos. Vive atualmente em Porto Alegre (RS).

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