Opinião


O Globo, 07/03/1989

A presença de Vossas Excelências na inauguração da mostra “Pintura Moderna Brasileira — Coleção Roberto Marinho” confere uma dimensão mais ampla a esta iniciativa de contribuir para um maior conhecimento em Portugal das realizações artísticas de meu país.

Apesar das raízes culturais e históricas que nos aproximam e que redundaram em importantes trocas havidas em campos como o da literatura e da música, restam zonas no panorama artístico dos dois países ainda não atingidas por nosso mútuo empenho de intercâmbio.

O recente interesse despertado na audiência portuguesa pelas novelas de televisão brasileira é uma demonstração expressiva do que ainda nos cabe realizar. Nesse sentido é que trago a Lisboa uma seleção de obras que venho reunindo ao longo de quase toda uma vida, abrangendo a transição do classicismo para o modernismo e posteriores tendências contemporâneas.

Dividida em núcleos que abrangem o período decorrido entre as décadas de 20 e de 80, a mostra pretende permitir uma avaliação inicial da evolução da pintura brasileira nessa etapa.

Sem mencionar o conjunto de artistas notáveis que a compõem, desejo destacar a presença de quatro das personalidades mais pujantes das artes brasileiras, pintores com cujos quadros convivo há várias décadas, sem jamais ter sentido o menor arrefecimento de emoção ao contemplá-los. Refiro-me aos pintores José Pancetti, Alberto da Veiga Guignard, Emiliano Di Cavalcanti e Candido Portinari.

Homem do mar que se manteve sempre próximo da natureza, Pancetti revela em sua forma límpida uma extraordinária empatia para com o ambiente físico e humano em que viveu.

Alberto da Veiga Guignard é um dos mestres de lirismo brasileiro. Criado na Europa dos anos que antecederam a 1ª Guerra Mundial, Guignard recebeu na Alemanha formação acadêmica, tendo optado pela vertente modernista quando viu em Munique, em 1911, os trabalhos do Grupo Blaue Reiter. O frescor de sua pintura, ora melancólica, ora compassiva, corresponde à alma de quem soube preservar, intacta, a pureza do olhar primordial.

Irreverente, explosivo e sensual, Erniliano Di Cavalcanti foi o pintor da vida carioca, o expressionista formado nas idéias de Paris, mas voltado para o registro do cotidiano de sua terra, para a humilde existência de seu povo, para a doce indolência do verão brasileiro, para a enérgica consagração de riqueza racial de nossa sociedade. Amante do exótico, do ornamental, do luxuriante, sociável, rebelde e boêmio, Di Cavalcanti foi um dos mais dinâmicos propulsores da renovação cultural brasileira, iniciada com a revolucionária Semana de Arte Moderna de 1922.

Cândido Portinari mereceu o reconhecimento de seus coetâneos por ter sido o introdutor decisivo do modernismo na história cultural brasileira. Com seus reconhecidos méritos de pintor acadêmico, deu foros de competência artística à revolução pictórica em curso. Dono de imensos recursos plásticos, Portinari apresenta, ao lado de sua pintura de vibrante conotação social, uma face nostálgica, retrospectiva, que até hoje surpreende e inquieta.

Desejo registrar o especial orgulho que sinto pelo fato de ver realizada a presente exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, cujas iniciativas de natureza cultural vêm constituindo um dos fatores mais relevantes para o atual desenvolvimento científico e artístico de Portugal e do Brasil, onde também se reflete o estímulo de suas edições de alto nível em nossa língua comum.

Aproveito a oportunidade para renovar algumas considerações que, há algum tempo, tive ensejo de expor à colônia portuguesa no Brasil, justificando o meu constante empenho em estreitar o nosso relacionamento.

O meu país se originou no processo civilizatório de um povo que, a partir da conquista de Ceuta, prolongou-se até hoje como um padrão lingüístico e ético que abrange diversas nacionalidades.

Suas expedições no início da era moderna levaram as insígnias do reino a tremular dos Andes à Amazônia, de Calicut ao Tibet. E o fizeram numa época em que os limites do orbe eram desconhecidos, e as distâncias pareciam insuperáveis, arriscando-se “mais do que prometia a força humana”. Feito igual nenhum povo jamais realizara, senão nos mitos da literatura épica. Em virtude disso, Luís de Camões podia vangloriar-se de que os seus heróis eram homens e não deuses, cujo valor “vence toda a grandíloqua escritura”.

Vale ressaltar que, ao contrário de outros exploradores, os navegantes portugueses criavam cidades, erguiam templos, estabeleciam centros universitários, difundindo as idéias científicas que então se renovavam, conciliando-as com a propagação da doutrina cristã e a implantação dos valores morais do ocidente. Nessas condições, Damião de Góis podia afirmar que “por toda a Terra se ouvem as suas vozes e até nos confins do mundo ressoam as suas palavras”, acrescentando que “das colunas de Hércules à China, por obra nossa, todos conhecem a lei de Cristo’’.

Assim, nos dias atuais, quando o santo padre João Paulo II resolveu percorrer todo o universo, procurando reanimar as sementes do cristianismo plantadas na África e na Ásia, pôde descobrir que os semeadores foram os portugueses.

Coube a Portugal, por conseguinte, a missão histórica de revelar a verdade de que só agora tomamos plena consciência, ou seja, que o mundo é um só. Que todos os povos se podem comunicar e se devem compreender. Que os continentes podem se integrar econômica ou politicamente, mas não se devem isolar da comunidade mundial.

A revelação desse espírito criador que impulsiona o homem a não se deter, a viajar para o futuro, decidindo-se a viver entre a saudade e a esperança — palavras que ficaram características de nossa língua — é que tornou possível os sucessivos movimentos que marcaram a civilização moderna.

O Brasil nasceu e vem crescendo sob essa inspiração. Cabe-nos portanto a primazia e o dever de procurar nos ensinamentos da mensagem civilizadora de Portugal a orientação mais adequada para enfrentar a crise contemporânea.

Acredito que a lição maior que Os Lusíadas nos legaram é a de que não pode haver liberdade, como as doutrinas liberais exigem, nem igualdade, como os sistemas socialistas reclamam, sem que se fundamentem na fraternidade. Para nos declararmos livres e iguais, precisamos nos reconhecer irmãos.

Nessas condições interpreto este ato inaugural, não como um evento diplomático, mas como um fraterno encontro de família. Nas telas aqui expostas, acredito que ireis reconhecer traços portugueses, reflexos da obra civilizadora dessa “nação criadora de nações”.

Roberto Marinho, 7 de março de 1989.

Discurso de Roberto Marinho na abertura da exposição “Pintura Moderna Brasileira - Coleção Roberto Marinho”, em Lisboa. O Globo, 07/03/1989 — Foto: Acervo Roberto Marinho