Jornada ABCA 2021: CRÍTICA DE ARTE DIANTE DAS CRISES ATUAIS

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ABCA JORNADA 2021

CRÍTICA DE ARTE DIANTE DAS CRISES ATUAIS


CRÍTICA DE ARTE DIANTE DAS CRISES ATUAIS


Anais da 62ª Jornada da Associação Brasileira de Críticos de Arte Organização Ana Lúcia Beck Paulo Henrique Duarte-Feitoza Sandra Makowiecky Projeto gráfico Fernanda Pujol

Desenho gráfico da capa realizado a partir da obra de Lucélia Maciel, Memórias, 2019. Copyright © 2021, dos autores - Proibida a reprodução total ou parcial

abca

1ª edição 2021


COMISSÃO DO EVENTO COMISSÃO ORGANIZADORA PRESIDENTE: Ana Lúcia Beck (ABCA/UFG) Paulo Henrique Duarte-Feitoza (UFG) Maria Elizia Borges (ABCA/UFG) Lisbeth Rebollo Gonçalves (ABCA/USP) Maria Amélia Bulhões (ABCA/UFRGS) Sandra Makowiecky (ABCA/UDESC) Thaysa Alarcão (UFG) Emmanuel Felipe A. Amaral (UFG) COMISSÃO CIENTÍFICA Alena Marmo (ABCA/UNIVILLE) Alice de Oliveira Viana (UDESC) Ana Lúcia Beck (ABCA/UFG) Danielle Benicio (UDESC) Elisa de Souza Martinez (ABCA/UnB) Francine Goudel (ABCA) Lisbeth Rebollo Gonçalves (ABCA/USP) Maria Amélia Bulhões (ABCA/UFRGS) Sandra Makowiecky (ABCA/UDESC) Luana Wedekin (ABCA/UDESC) Luciane Garcez (ABCA/UDESC) Nadja Lammas (ABCA/UNIVILLE) Rosangela Miranda Cherem (UDESC) Viviane Baschirotto (ABCA) EQUIPE TÉCNICA Fernanda Pujol – arte gráfica e diagramação


Realização

Apoio


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Jornada da Associação Brasileira de Críticos de Arte (62. : 2021 : São Paulo, SP - online) Anais da 62ª Jornada da Associação Brasileira de Críticos de Arte [livro eletrônico] / organização Ana Lúcia Beck , Paulo Henrique Duarte-Feitoza , Sandra Makowiecky. -- 1. ed. -- São Paulo : ABCA Edições, 2021. -- (ABCA jornadas) PDF. Vários colaboradores. Bibliografia. ISBN 978-65-87783-03-1 1. Arte contemporânea 2. Arte - Estudo e ensino 3. COVID-19 - Pandemia 4. Crítica de arte I. Beck, Ana Lúcia. II. Duarte-Feitoza, Paulo Henrique. III. Makowiecky, Sandra. IV. Título V. Série.

21-96082

CDD-709 Índices para catálogo sistemático:

1. Arte contemporânea

709

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


Sumário 9

Palavra da Direção da ABCA Maria Amelia Bulhões

10 Apresentação dos Anais da Jornada ABCA 2021 Ana Lúcia Beck Paulo Henrique Duarte-Feitoza Sandra Makowiecky

13 10 anos sem Benedito Nunes, 55 anos de um clássico Afonso Medeiros

20 Contornos do invisível: arte brasileira na pandemia e o fim do império cognitivo Alessandra Simões

28 Arte como levante – um filme Alexandre Sá

35 O avesso da crítica sobre a estética de terreiros Anderson Almeida

45 Entre consensos e dissensos: arte, estética, cultura e direitos democráticos André Arçari

54 Distinção na Apropriação Cultural: Os Modernistas Canibais Beatriz Arcoverde de Oliveira

63 Um panorama da crítica de arte em Goiás (1942-2020) Bianca Casanova

83 As primeiras exposições de arte em Goiânia e suas contribuições para a formação do modernismo goiano nas artes plásticas Divino Sobral

105 Margens, disputas e conquistas: conceitos e neologismos na crítica de arte Elisa de Souza Martínez


115 Cartografia, abstração e histórias: Hadassa Ngamba (R.D. Congo) e Mark Bradford (EUA) Emi Koide

123 A escritura em liame com a contemporaneidade da arte: rumores de críticas de arte por vir Lindomberto Ferreira Alves

132 Encruzilhada: como representar o que ainda não sabemos como descrever Lorraine Pinheiro Mendes

139 Imagens da pandemia na Índia: fórmulas de páthos no “afresco” de nossa época Luana M. Wedekin

151 Harriet Mena Hill, crise e pandemia: o silêncio e a desaparição na imagem Luciane Ruschel Nascimento Garcez

160 Transparências nas obras de Carlos Fajardo, Marcius Galan e Roberto Wagner Luis F. S. Sandes,

172 As resistências críticas da arte: análise cultural, interdisciplinaridade, interhistoricidade Marco Antônio Vieira

178 O último retrato: recortes históricos e estéticos da fotografia mortuária Marina Muniz Mendes Samuel José Gilbert de Jesus

186 Arte de rua e arte de ateliês em tempos da Covid-19: um estudo de caso no Rio de Janeiro Mirian de Carvalho

196 Crítica de arte diante das crises atuais: muitas incertezas e uma certeza Sandra Makowiecky


Palavra da Direção da ABCA Maria Amelia Bulhões Presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte, ABCA

Temos o prazer de apresentar os Anais da Jornada ABCA 2021, realizada totalmente online, com o apoio da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, FAV-UFGU. Sob a coordenação de Ana Lúcia Beck, Paulo Henrique Duarte-Feitoza e Sandra Makowiecky, esta Jornada integrou-se na programação do evento, de mesmo título, A crítica de arte diante das crises atuai, organizado pelas seções latino-americanas e do Caribe, da Associação Internacional de Críticos de Arte, AICA. Sua realização dá continuidade no projeto desenvolvido pela diretoria da ABCA para o estreitamento dos laços inter-regionais e interinstitucionais, no processo de ampliar a participação e a visibilidade das diferentes regiões do País, dentro de nossa Associação. Também destacamos a articulação com instituições universitárias, no fomento da pesquisa e da reflexão sobre artes visuais, através da atuação de diferentes docentes e técnicos desta instituição, que contribuíram de forma efetiva para a realização deste evento. Estes objetivos estiveram evidentes na Jornada e se registram agora nos anais sob forma de e-book que publicamos. Esperamos que os resultados dos esforços no sentido inclusivo e pluralista da ABCA possam repercutir cada vez mais no sistema da arte neste País. Agradecemos a dedicação e competência de todos os envolvidos no preparo e realização da Jornada 2021, assim como aos palestrantes, que com suas comunicações nos deram a ver estas diversidades e as possibilidades de atuação da crítica de arte em momentos de crise.

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Apresentação dos Anais da Jornada ABCA 2021 Ana Lúcia Beck Paulo Henrique Duarte-Feitoza Sandra Makowiecky

Para o esplêndido egotismo de um pensador, a existência dos outros é na verdade sempre inquietante. Ele não pode evitar enfrentar o grande enigma que o arbitrário do outro lhe propõe. O sentimento, o pensamento, o ato de um outro quase sempre nos parecem arbitrários. Fortificamos toda a preferência que damos aos nossos, por uma necessidade da qual acreditamos ser os agentes. Mas, decerto, o outro existe, e o enigma nos pressiona. Ele atua sobre nós de duas formas: uma que consiste na diferença das condutas e dos caracteres, na diversidade da decisões e das atitudes em tudo que diz respeito à conservação do corpo e de suas posses; a outra, que se manifesta pela variedade dos gostos, das expressões e das criações da sensibilidade. Paul Valéry1

Em poucos outros momentos históricos recentes pudemos observar tão fortemente o que o filósofo Paul Valéry nos lembra na passagem acima. Afinal, lidando com a pandemia de Covid-19 desde 2020, as arbitrariedades alheias – não respeitar o distanciamento social, não usar máscara, discursar contra medidas protetivas e atacar a ciência, não reconhecer o ímpeto destrutivo da pandemia sobre as parcelas menos favorecidas da população – puderam ser percebidas flagrantemente não somente como enigmáticas arbitrariedades, mas como efetiva ameaça à vida de todos. A pandemia nos confrontou diretamente com este espaço no qual reconhecemos que a conservação de nosso corpo perpassa o tecido social, sendo garantida pela permanência deste tecido enquanto matéria composta pela contínua relação entre urdidura e trama que mantém tensionados, porém integrados nós e os outros. É este tecido que não somente nos compõe como sociedade como garante nossa proteção em termos, agora sabemos, em nada metafóricos. Se a pandemia nos confrontou com a agudeza de percepção sobre os comportamentos do outro, na mesma medida, como afirma o filósofo, nos lembrou que o outro existe! E essa existência esteve – tanto a minha como a do outro – ameaçada por diferentes crises, sejam aquelas diretamente ligadas à existência do vírus e às diferentes atitudes tomadas para combate-lo, sejam aquelas que desde há muito colocam em xeque até mesmo valores basilares de nossa sociedade. É com essa realidade, que também a arte e a crítica de arte têm se confrontado. Tal paisagem temporal nos serviu de mote ao propormos o tema da Jornada ABCA de 2021: “Crítica de Arte diante das crises atuais”, enquanto espaço de reflexão e debate através da arte, a partir da arte e com a arte, sobre como estamos coletivamente lidando com a realidade atual e suas muitas crises.

1

VALÉRY, Paul. Leonardo e os filósofos. In: A arte de pensar. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. p. 81.

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Assim, após cuidadoso processo de análise, foram selecionadas propostas submetidas à equipe organizadora para a apresentação no dia do evento que ocorreu na modalidade on-line em 3 de julho de 2021. Todavia, dada a diversidade de sensibilidades – como diria Valéry – a diversidade de questões, artistas e debates que tal temática envolve, algumas propostas que não foram apresentadas no evento foram convidadas a compor seus Anais. Nosso intuito, nesse sentido, é garantir um panorama mais diverso e rico sobre essas questões, uma vez que o evento ocorreu excepcionalmente, de forma enxuta em apenas um dia, por ocorrer no fechamento do Encuentro de las AICAs Latinoamericanas. O evento ocorrido em 3 de julho contou com duas palestras de abertura que abrem nossos Anais. Proferidas por Divino Sobral, “As primeiras exposições de arte em Goiânia e suas contribuições para a formação do modernismo goiano nas artes plásticas”, e Bianca Casanova, “Um panorama da crítica de arte em Goiás (1942-2020)”, constituem textos que, sem dúvida, serão referência para o estudo e pesquisas sobre a arte produzida no estado de Goiás, pela sistematização dos dados e pelas reflexões deles oriundas. De igual forma, situam o estado de Goiás no cenário brasileiro da crítica de arte, nos Anais da Jornada da ABCA, assim como garantem visibilidade a um outro muito particular desde a perspectiva deste nosso país ainda voltado ao litoral a mirar perpetuamente a metrópole. Marca-se a presença e o desenvolvimento da arte e da crítica de arte no centro-oeste, zona periférica aos grandes centros do sistema artístico brasileiro, mas nem por isso menos relevante se lembrarmos nossa epígrafe inicial e seu reconhecimento da sensibilidade do outro. Em tempos de crise, a arte também é um outro, e permanecerá sendo lanterna a alumiar escuridões. Lamparina fulgente, ainda que desenhada em carvão, como na produção de Lucélia Maciel que escolhemos como imagem de nossa Jornada, numa imagem que integra a tradição e a simplicidade, os claros e escuros, os individuais e coletivos das memórias e do imaginário. Além da mesa de abertura, ao longo da Jornada, foram apresentadas comunicações agrupadas sob três eixos centrais: “Crítica de arte e imagens de crise”; “Crítica de arte para além da crise das imagens” e “Crítica de arte e a convivência de regimes de verdade”. Ainda que nestes Anais os textos sejam apresentados em ordem alfabética pelo nome dos autores, a lembrança destes três eixos é um interessante sinalizador ao leitor sobre como a crítica de arte – enquanto prática viva de reflexão a partir da produção artística - é capaz de fazer dialogar as questões “da arte” e “da crítica” com a realidade e a atualidade de um mundo em disputa. Aos que desejem conhecer ou rever as comunicações, as mesmas podem ser acessadas na íntegra no Youtube no canal do NIHA-UFG no endereço: https://www.youtube. com/c/NIHAUFG Enquanto registro de evento e de um momento histórico particular, cumpre recuperar na apresentação destes Anais a fala de um outro regional: a poesia de Cora Coralina, com a qual abrimos a Jornada. No poema intitulado “O longínquo cantar do carro”, a poetisa recorda: Dizia meu avô: Quando as coisas ficam ruins, é sinal de que o bem está perto. O ruim está sempre abrindo passagem para o bom. O errado traz muita experiência e o bom traz às vezes confusão: “Nem sempre assim nem nunca pior”. Meu avô conhecia todas as verdades e gastava a filosofia de quem muito viveu e aprendeu. Quando as coisas não iam bem, Ele dizia: amanhã estará melhor. E descia curvado para o seu engenho de serra. [...]2

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CORALINA, Cora. Melhores poemas. São Paulo: Global, 2017. p. 137. 11


Este poema foi selecionado por nós por um lado, num gesto de reconhecimento e valorização do outro, desenhado aqui na sabedoria dos chamados “homens simples”, tão bem captada por Cora. Com relação a nosso contexto específico de crise e pandemia, trata-se de mantermos a esperança na ideia de que o exacerbamento do ruim, do errado, possa ser prenúncio da vinda de tempos melhores. É com esta ideia em mente que abrimos a Jornada com um desejo intenso de que a arte e a crítica de arte possam ser também um “engenho de serra”. Local de trabalho que nos ajuda a perceber melhor o mundo e as condições em que estamos inseridos, local desde o qual possamos lançar luz às diferentes escuridões que nos ameaçam. De outra parte, tal escolha traduz também nosso desejo de estreitamento dos laços interregionais e interinstitucionais que, no caso desta Jornada, uniram aos esforços e atividades da ABCA também a dedicação da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), através da atuação de diferentes docentes e técnicos de ambas as instituições que contribuíram de forma efetiva para a realização deste evento. Em um cenário onde se busca a visibilidade local, regional e nacional da produção artística e a produção conjunta de conhecimento, a formação de alianças mediante a cooperação e o estreitamento dos laços inter-regionais e entre instituições é de extrema relevância. A ABCA, em suas jornadas, visa apoiar e incentivar ações e eventos que propiciem a mencionada integração e estreitamento de laços entre as instituições e entre críticos de arte de todo o país. Nesse sentido, fazemos votos que tal marca de atuação seja perceptível no conjunto dos textos que compõe os Anais e que as reflexões nele contidas possam despertar cada vez mais interesse investigativo nas regiões periféricas geograficamente e conceitualmente. Que a crítica de arte, fortalecida pelos laços inter-regionais e interinstitucionais que marcam a composição e a atuação da Associação Brasileira de Críticos de Arte, possa contribuir para o fortalecimento não dos nossos gostos pessoais – aqueles que nem sempre se apresentam como enigmáticos – mas dos gostos dos outros! Aqueles que, conosco, formam o tecido social do que podemos chamar, de fato, uma nação. Não podemos finalizar esta apresentação dos Anais da Jornada ABCA 2021 sem agradecermos as inúmeras pessoas e instituições cuja contribuição foi fundamental para que o evento ocorresse. Assim, agradecemos primeiramente à Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAVUFG), na pessoa de seu diretor Bráulio Vinicius por ter sediado o evento; à Secretaria de Comunicação (SECOM) pela logística de transmissão; à Comunica FAV, pela divulgação em diferentes redes sociais. Agradecemos também ao Curso de Artes Visuais Bacharelado, em especial aos acadêmicos Emmanuel Felipe A. Amaral, Levi Nascente Gomes e Thaysa Alarcão pelo auxílio na organização e logística, e à Lucélia Maciel que gentilmente cedeu seu trabalho para compor a identidade visual do evento e destes Anais; ao Núcleo de Investigação em Histórias da Arte (NIHA-UFG) pelo auxílio na organização e divulgação do evento; aos discentes e docentes do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da UFG, assim como do Programa de Pós-Graduação em História da UFG pelo auxílio na organização e na condução das mesas da Jornada, em especial Amanda Teixeira, Anna Carolina Mendes Ramos, Bianca Casanova, Maria Elizia Borges, Marina Muniz Mendes. Além disso, agradecemos à Viviane Baschirotto pela divulgação nas mídias sociais e ABCA Informa; Fernanda Pujol pelo gerenciamento, design e diagramação do site ABCA; Leila Kyiomura, editora do jornal da ABCA “Arte e Crítica”; Maria Amélia Bulhões Garcia, presidente da ABCA, pela confiança; a Lisbeth Rebollo Gonçalves, presidente da AICA, pelo incentivo; a Cauê Alves, tesoureiro da ABCA, pelo apoio; e finalmente, a todos os associados à ABCA que compuseram a Comissão Científica e que conosco dividiram suas pesquisas durante a jornada e nestes Anais. Desejamos a todos ótimas leituras.

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10 anos sem Benedito Nunes, 55 anos de um clássico 10 years without Benedito Nunes, 55 years of a classic Afonso Medeiros1 UFPA, CNPq - saburo@uol.com.br

RESUMO: Aproveitando o ensejo dos 10 anos de falecimento de Benedito Nunes e os 55 anos de lançamento de seu Introdução à filosofia da arte, este breve ensaio entrelaça os raros encontros que tive com o mestre aos muitos insights que sua obra agora cinquentenária provocou e continua a provocar. Benedito Nunes foi um dos poucos intelectuais brasileiros a exercer a crítica de arte num diálogo profícuo com a filosofia da arte (e vice-versa) quando o comum era o exercício da crítica como suporte ou desdobramento da história da arte. Esse enfoque diferenciado – laços mais íntimos com os modos da filosofia do que com os modos da história –, deram à crítica de Nunes um sabor sui generis e algo raro. Nesses entrelaçamentos busco perceber, no confronto com alguns trabalhos de crítica e filosofia que vieram a lume na virada do século XX para o XXI, a atualidade (ou não) de Introdução à filosofia da arte, particularmente no contexto das crises epistêmicas com as quais a arte vem assombrando o mundo acadêmico nesse mesmo entre séculos. PALAVRAS-CHAVE: Benedito Nunes; crítica de arte; filosofia da arte. ABSTRACT: Taking the opportunity of the 10 years of death (2011) of Benedito Nunes and the 55 years of the release of his Introduction to the philosophy of art (1966), this brief essay interweaves the rare encounters I had with the master with the many insights that his work now fiftieth anniversary provoked and continues to provoke. Benedito Nunes was one of the few Brazilian intellectuals to exercise art criticism in a fruitful dialogue with the philosophy of art (and vice versa) when the common was the exercise of criticism as a support or development of the history of art. This differentiated approach – closer ties with the modes of philosophy than with the modes of history – gave Nunes’ criticism a sui generis flavor and something rare. In these interweavings I seek to perceive, in comparison with some works of criticism and philosophy that came to light at the turn of the 20th to the 21st century, the contemporary relevance (or not) of Introduction to the philosophy of art, particularly in the context of the epistemic crises with which the art has haunted the academic world in the between centuries. KEYWORDS: Benedito Nunes; art criticism; philosophy of art.

1 Professor Titular de Estética e História da Arte da Faculdade de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA; Bolsista Produtividade do CNPq.

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Quando do lançamento da edição revista e atualizada de Filosofia contemporânea naquele cenário fabuloso que é a Igreja/Museu de Santo Alexandre na Cidade Velha de Belém, perguntei a Benedito Nunes se ele faria o mesmo com Introdução à Filosofia da Arte. Sua resposta foi mais ou menos esta: “Não pretendo. Teria que retornar a alguns autores [e obras] e me aprofundar em outros mais recentes. Seria um trabalho imenso, para o qual não tenho [mais] tempo”. Cabisbaixo, tascou na dedicatória: “Para Afonso Medeiros, já meu leitor, a simpatia intelectual de Benedito Nunes. Belém, 2009”. Fiquei sem saber se a “simpatia intelectual” referia-se à minha pessoa ou ao livro revisado e atualizado de filosofia contemporânea que ele acabara de nos presentear. Confesso que nunca degluti muito bem a desculpa do Mestre. Como aquela que talvez seja sua obra mais reeditada não teria sido objeto de sua revisão, já que ele estava lançando justamente uma atualização de seu Filosofia Contemporânea? Uma possível resposta talvez tenha sido dada cinco anos antes desse relançamento. Quando de sua conferência sobre arte e estética no II Fórum Bienal de Pesquisa em Artes (2004), realizada na Igreja/Museu de Santo Alexandre, Benedito Nunes foi questionado sobre a pós-modernidade: “Prof. Benedito, o que o senhor tem a dizer sobre pós-modernidade? Resp.: Pósmodernidade? Não sei. Eu sou moderno. Quando eu morrer virá a pós-modernidade. E aí ficará pra vocês saberem [rsrs]” – risada geral. Benedito Nunes faleceu em 27 de fevereiro de 2011 e seu velório ocorreu na mesma Igreja/Museu de Santo Alexandre. Só a partir desse início de pós-modernidade (ou de pós-beneditidade), comecei a juntar alguns fios dos meus poucos contatos diretos (e dos muitos indiretos) com o Mestre. A primeira edição de Filosofia Contemporânea (1967) sucedeu a primeira edição de Introdução à Filosofia da Arte (1966), este lançado pela Editora da Universidade de São Paulo (Coleção Buriti, 7) que tinha à época Antônio Cândido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes e Sérgio Buarque de Holanda em seu Conselho Diretor. Apesar do momento de perseguição ideológica, era um instante em que a ditadura instalada no Brasil desde 1964 ainda não tinha exposto suas afiadas garras. Na apresentação de Introdução à Filosofia da Arte assinada pelos editores (que não sobreviveu às sucessivas reedições da Editora Ática), lê-se: “Talvez pela primeira vez no Brasil a filosofia da arte seja exposta com tanta segurança e modernidade, e ao mesmo tempo com uma clareza e elegância que a tornam acessível aos não-especialistas” (EDITORES apud NUNES, 1966, p. 7). Naquela década em que os uspianos ainda estavam fazendo a operação rescaldo da modernidade na intersecção com as raízes estéticas, sociológicas e literárias do Brasil, Introdução à Filosofia da Arte deve mesmo ter soado como uma lufada modernizadora dos estudos filosóficos acerca da arte. Sobretudo, esta obra está atravessada por uma preocupação pedagógica que o próprio Benedito Nunes expressou em seu discurso quando da obtenção do título de Professor Emérito da Universidade Federal do Pará em 30 de novembro de 1998: Ensinei-me a jamais abordar um assunto de que não tivesse suficiente conhecimento, a ouvir o estudante, a ser por ele inquirido e confessar-lhe minha ignorância quando fosse o caso. A pesquisa, de que têm resultado meus livros, foi consequência desse ensino. (NUNES, 2009, p. 25).2

Na afirmação citada encontra-se algo que já não é mais relevante para muitos dos acadêmicos brasileiros contemporâneos: a percepção de que a pesquisa é baseada e retroalimentada pelos processos de ensino/aprendizagem, por esse laboratório de perceptos e afectos que é a sala de aula. Dado o assombroso desprestígio da atividade docente nas últimas décadas, não deixa de causarnos espanto o fato de que Nunes não tenha se apresentado como professor-filósofo ou professorpesquisador – estratégia de muitos de nós para driblar o desprestígio. Benedito Nunes era professor, um “simples professor” que não tinha aquele pavor acadêmico pós-conceitual de ser “simples”, “didático” e “pedagógico”, admitindo que seu caminhar investigativo era regido pelo confronto diário com as mentes juvenis. Apesar disso (ou por causa disso), poucos entre nós exerceram a crítica, a filosofia e a estética com tamanho refinamento – resta saber se Introdução resulta de notas e roteiros para os cursos que ministrou.

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Na dedicatória desse opúsculo, Nunes escreveu: “Para Afonso, simples, de um simples professor”.

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Imediatamente após ter sido aprovado em concurso público (1989) na área de Estética e História da Arte na UFPA, fui contemplado exclusivamente com turmas de Estética I para alunos de Artes Plásticas, Arquitetura e Comunicação – consegui dar aulas de História da Arte somente sete anos depois. Apavorado desde a preparação para o concurso com os parcos compêndios sobre estética disponíveis nas bibliotecas e livrarias de Belém, amealhei rapidamente alguns poucos títulos num momento em que, diga-se, não existia a internet para potencializar nossa sina de catadores de livros e artigos. Dentre eles estava Introdução à filosofia da arte e logo percebi, comparando-o com os outros títulos disponíveis3, o que os editores que assinaram a apresentação da primeira edição queriam dizer com “Talvez pela primeira vez no Brasil a filosofia da arte seja exposta com tanta segurança e modernidade”. De fato, todos os autores de compêndios sobre estética que juntei naqueles anos iniciais da docência universitária foram publicados em língua portuguesa ou espanhola bem depois do lançamento de Introdução. Diferentemente das estéticas de Huisman, Osborne, Bayer e Bastos que expõem cronologicamente a história das ideias estéticas no Ocidente (com exceção de Osborne, que também cita os chineses), mas mais próximo dos intentos de Lacoste, Souriau e Loureiro que expõem ideias centrais da estética em relação com diversas teorias das artes, Nunes aborda a estética em três grandes eixos não cronológicos: 1- Conceitos preliminares; 2- Arte e Realidade; 3- Arte e Existência, todos discutíveis por uma plêiade considerável de filósofos postos em relação conceitual com teóricos, sociólogos e historiadores da arte4. Pelo lido e relido, Nunes continuava atento ao campo da Estética como disciplina eminentemente filosófica sem descurar de suas relações com a literatura e as artes em geral, num esforço de fornecer visões transversais, mas nada simplistas ou totalizantes. Escrito justamente no momento em que os artistas conceituais atacavam de frente a pertinência de se encarar a arte com lentes fornecidas pela estética (pelo menos aquela identificada com os estatutos da beleza e do gosto), Benedito Nunes reelabora duas grandes questões ainda candentes nos anos 1960 e que, por debaixo dos panos, continuariam fulcrais para a teoria da arte contemporânea: 1- das relações entre estética e filosofia da arte5; 2- do conceito de poética. Nas relações entre estética e filosofia da arte, assinala que enquanto os fenômenos estéticos não são (todos) circunscritos pela arte, “a Arte excede, de muito, os limites das avaliações estéticas” (NUNES, 2006, p. 15). E reitera que a Filosofia da Arte, ao nascer (no séc. XIX) depois da Estética não prescinde dos pressupostos desta, mas que tal filosofia é [...] uma reflexão que tem como um de seus fins últimos justificar a existência e o valor da Arte, determinando, no conjunto das criações do espírito humano, a função que ela desempenha, ao lado da ciência, da religião, da moral e, também, fato digno de nota, ao lado da própria filosofia, cujo atual interesse pela Arte não encontra paralelo em épocas passadas (NUNES, 2006, p. 16).

Dessa maneira, Nunes “desabilita” a Estética como campo exclusivo das questões filosóficas específicas da arte, numa operação que ressoa a tentativa de Hegel de extirpar da disciplina fundada por Baumgarten (e revisada por Kant) a problemática do belo como imperativo categórico tanto na natureza quanto na arte. Ou seja, as categorias gerais da “ciência do sensível” ficam mesmo com a Estética, enquanto a Filosofia da Arte atém-se às questões específicas suscitadas pela historicidade das artes.

3 Se a memória não me falha: Elementos de estética de João de Jesus Paes Loureiro; Estética e teoria da arte de Harold Osborne (1968/1986); A estética de Denis Huisman (1954/1981); A filosofia da arte de Jean Lacoste (1981/1986); Panorama das idéias estéticas no Ocidente de Fernando Bastos (1987); A correspondência das artes de Étienne Souriau (1969/1983); e História da estética de Raymond Bayer (1961/1979). 4 Consta que em suas discussões com o dileto amigo Francisco Paulo Mendes (1910-1999), professor de História da Arte da UFPA, havia não poucas escaramuças sobre as fontes dos modernismos nas artes – Francisco (Chico) defendendo o Romantismo e Benedito (Bené) defendendo o Realismo. 5 Cf. Peter Osborne. El arte más allá de la estética: Ensayos filosóficos sobre arte contemporáneo. Murcia: Cendeac, 2010.

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Note-se que Benedito Nunes não só estabelece uma diferenciação epistêmica entre Estética e Filosofia da Arte, como também sugere a esta uma configuração precisa justo no momento em que a validade do campo estético para abarcar os fenômenos artísticos contemporâneos estava sendo seriamente questionada pelos artistas. Essa discussão, nos idos dos anos 1960, não era de pouca monta. Luigi Pareyson em seu Os problemas da estética, coincidentemente lançado no mesmo ano (1966) do aparecimento de Introdução à filosofia da arte também toca no problema afirmando que tanto o artista ou o historiador ou crítico que “falam na qualidade de filósofos” quanto os filósofos que “querem fazer estética sem fazerem caso da experiência da arte” (PAREYSON, 2001, p. 7) são correntes insalubres no campo estético-filosófico. Em Nunes e em Pareyson, uma defesa da filosofia da arte imbricada tanto na experiência estética quanto na experiência artística, fenomenológica e historicamente constituídas. Sem conhecer o filósofo paraense e já no século XXI, Peter Osborne vai aprofundar o que Nunes e Pareyson haviam sugerido décadas antes: a hipótese de que, no confronto com a arte contemporânea, opera-se um refluxo da Estética em prol do fluxo da Filosofia da Arte (OSBORNE, 2010). Nesse embate sobre a morte da estética ou de sua inadequabilidade filosófica no trato da experiência artística moderno-contemporânea, Nunes percebe no Heidegger de a Origem da obra de arte “uma destruição da estética-ciência” uma vez que este campo do conhecimento se comprometera “com determinada interpretação do Belo e da obra de arte” (NUNES, 2006, p. 118) – e eis aqui uma prova de que Nunes estava atento aos condicionamentos históricos e sociais dos conceitos. O filósofo paraense não se contenta em fazer um necrológio da Estética – postura de vários teóricos da arte na segunda metade do século XX. Ao contrário, citando a Estética de Max Bense, na qual este arregimenta “as incidências da lógica com a estética e da filosofia com a linguagem” (NUNES, 2006, p. 119) nos aspectos comuns entre artes plásticas e literatura, Benedito Nunes percebe caminhos filosóficos atualizados para a estética na medida em que a dimensão ontológica da obra de arte (vista como co-realidade) foi defendida pelo filósofo de Sttugart em meio a alguns aportes de Husserl, Heidegger, Morris e Wittgenstein. Ou seja, no instante mesmo em que Introdução foi lançado, Benedito estava atento aos novos horizontes descortinados para a estética par e passo com as questões filosóficas impostas pela produção contemporânea da arte, sobretudo aquelas interessadas no estatuto da arte como linguagem. De fato, enquanto o mundo acadêmico de línguas neolatinas estava em boa parte seduzida pelo estruturalismo de raiz semiológica (saussureana) nos anos 1960, uma pequena parte dos acadêmicos anglo-saxões se via às voltas com a lógica de raiz wittgenstainiana e/ou com a lógica semiótica de extração perciena, como é o caso do Morris que Bense absorveu. Diga-se de passagem, que os Estados Unidos se tornaram um campo privilegiado de confronto desses dois mundos a partir da presença de não poucos acadêmicos europeus nas universidades estadunidenses. Será que é naquelas incidências da lógica com a estética e da filosofia com a linguagem (percebidas por Bense) que Benedito Nunes encontraria terreno para a revisão ampliada de seu Introdução à filosofia da arte? Ou essa revisão abarcaria os chamados pós-estruturalistas, dado os contatos diretos com Foucault na década seguinte? Nunca saberemos ao certo, mas algumas pistas podem ser traçadas. Sobre o conceito de poética, numa citação que já se tornou clássica, Nunes afirma: “[póiesis] É produção, fabricação, criação. [...] Significa um produzir que dá forma, um fabricar que engendra, uma criação que organiza, ordena e instaura uma realidade nova, um ser.” (NUNES, 2006, p. 20). Longe de encetar aqui uma exegese sobre a poética em Benedito Nunes – tarefa para a qual não me sinto habilitado –, me pergunto se esta definição de poético ainda se sustenta diante da produção artística atual, se considerarmos que muito da estética do contemporâneo tem suas raízes nos anos 1960 do século passado, década atravessada pelos debates sobre tropicalismos, concretismos e neoconcretismos brasileiros. Se a prática consistir em desidratar os fenômenos artísticos até fazê-los caber numa grade conceitual, creio que não. Mas se, ao contrário (como faria Nunes), a prática privilegiar verdadeiramente o caráter fenomênico da obra dita de arte, creio que sim, pois aquela definição de poética de Nunes tem uma qualidade exemplar inerente a todo conceito filosófico que se preze: a plasticidade. De qualquer modo, salta aos olhos dos leitores de Introdução que Benedito Nunes arregimentou um time de teóricos que, embora contemple os gregos e passe pelos alemães dos séculos XVIII e XIX, 16


conforma sua diatribe sobre o poético sob a revisão contemporânea desses mesmos “clássicos” dos estudos estéticos em conexão com as contribuições de autores do século XX que ele considerava essenciais para as discussões que expunha e que se espraiavam bem além do campo filosófico em sentido estrito. A presença reiterada (na bibliografia sumária que encerra o livro) de Roger Bastide, Pierre Francastel, Lucien Goldmann e Arnold Hauser, de um lado, e de Ernst Cassirer e Suzanne Langer (única com duas indicações), de outro, atestam sua atenção, respectivamente, na sociologia da arte e na teoria das formas simbólicas, sem descurar da fenomenologia através (sobretudo) de Heidegger e de Merleau-Ponty – várias das obras indicadas com pequenos comentários estão em inglês, alemão, francês e espanhol. Considerando a impressão que tenho do prestígio da teoria da arte de franceses e italianos (Foucault, Deleuze, Didi-Hubermann e Agamben) no campo da pós-graduação em artes no Brasil, todos eles leitores de Nietzsche e Benjamin (como Nunes), sou tentado a afirmar que Introdução à filosofia da arte pode ser inserido nessa “angústia da influência” filosófica alemã que perpassa o pensamento dos professores-filósofos de línguas neolatinas. O motivo talvez esteja no fato de que Nunes exerceu sua crítica literária – mais conhecida que seu exercício crítico nas artes visuais – por entre percepções de nossa antropofagia não só artístico-estética, como também estético-filosófica. Nesse sentido, basta uma citação retirada de seu Oswald canibal: A atitude antropofágica, firmada no Manifesto de 1928, sofreu em A crise da Filosofia Messiânica, uma forte influência do esteticismo nietzschiano. Muito próximo do Nietzsche de A Origem da Tragédia, para quem a existência, em sua tragicidade, torna-se um fenômeno estético, e a arte um meio de “devorar” o conteúdo trágico da vida, a antropofagia, nessa versão de 1950, é uma filosofia trágica, que incorpora a psicologia orgiástica integrante dos ritos de sacrifício, ligados às matrizes primordiais das relações religiosas entre o homem e o universo. (NUNES, 1979, p. 66; grifos do autor).

Depois de fazer uma pequena arqueologia dos contatos de Oswald de Andrade e dos modernistas brasileiros com as vanguardas europeias e depois de expor a fortuna crítica então existente sobre estes contatos, Nunes foi reler o ensaio de Oswald de Andrade sob a chave da filosofia nietzschiana da história – trabalho um tanto quanto olvidado pelos exegetas de Oswald na atualidade, inclusive por aqueles que veem o poeta, crítico e ensaísta paulista como precursor do decolonialismo na cultura brasileira. Por essas e outras, para alguns de nós que se encontram atentos à tendência descolonial de nossa presentidade acadêmica, Benedito Nunes talvez soe hoje um moderno tão datado quanto os modernismos que ele procurou revisar como crítico e esteta. Entretanto, neste 2021 sanitária e politicamente pandêmico, às vésperas do centenário do modernismo paulista, talvez seja necessário problematizar a questão “moderno” muito além da discussão entre “datados” e “contemporâneos”, se partirmos da hipótese de que o moderno, par e passo com o capital e o colonial, sobrevive como uma fantasmagoria (in)cômoda que atravessa nossos modos contemporâneos de sermos e estarmos no mundo. Sem citar diretamente vários dos “pós” que definiriam nossa contemporaneidade e aduzindo que o pensamento filosófico contemporâneo talvez tenha sido plantado em algum momento do final do século XIX, Nunes nos oferece uma pista: Importa ao historiador atentar muito mais para as diferenças que introduzem as descontinuidades na História do que para as similitudes entre os períodos. [...] Mas também se pode dizer que essa contemporaneidade é extremamente móvel, o seu momento atual já vai muito distante daquele da década de 60, quando este livro foi escrito. Uma nova atualidade terá vindo, no espaço de outra geração, sobrepor-se à anterior, inaugurando como que um diferente trajeto no mapa temporal do que é contemporâneo. (NUNES, 2004, p. 14).

Nesta perspectiva traçada no livro que revisou e atualizou, talvez encontremos um dos porquês da “falta de tempo” de Nunes para revisar e atualizar Introdução à filosofia da arte, pois seguramente ele 17


percebeu não poucas diferenças estéticas entre as temporalidades modernas e contemporâneas. Conforme anunciado pelo próprio naquela conferência em 2004, Benedito Nunes era um moderno. Resta-nos verificar como seu pensamento sobrevive (ainda que feito fantasmagoria) em nossos modos de entrar e sair não só da (pós)modernidade, como também da (pós)história (da arte, inclusive), do (pós)colonial e de tantos outros “pós” que vicejam por aí, conscientes ou não das transversalidades entre tempos, espaços e identidades. Afinal de contas, [...] queiramos ou não, concordemos ou não com seus pressupostos teóricos e filosóficos, com suas escolhas no campo da filosofia e da literatura, [Benedito Nunes] ocupa um lugar imprescindível no cenário cultural brasileiro, de tal modo que ele se tornou um interlocutor fundamental no campo dos estudos de estética e filosofia da arte, por exemplo. (CHAVES, 2018, p. 24).

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Referências CHAVES, Ernani. O mestre que ria. Revista Cult, n. 231, São Paulo, Ed. Bregantini, setembro 2018, pp. 23-25. NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1966 (Coleção buriti, 7). NUNES, Benedito. Oswald canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979. NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 2006. NUNES, Benedito. Filosofia contemporânea (edição revista e ampliada). Belém: EDUFPA, 2004. NUNES, Benedito. Quase um plano de aula. Belém: EDUFPA, 2009. OSBORNE, Peter. El arte más allá de la estética: Ensayos filosóficos sobre arte contemporáneo. Murcia: Cendeac, 2010.

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Contornos do invisível: arte brasileira na pandemia e o fim do império cognitivo The outlines of invisible: brazilian art on the post-pandemic era and the end of cognitive empire Alessandra Simões1 UFSB - alesimoespaiva@gmail.com

RESUMO: Este trabalho avalia os impactos da pandemia nas artes visuais brasileiras e sua relação com a conjuntura da crise do capitalismo mundial. Nos últimos tempos, artistas e teóricos, entre outros agentes do sistema artístico, estão diante de um novo panorama: repensar as práticas estéticas a partir do olhar decolonial, isto é, da possibilidade de reconstrução das histórias e poéticas silenciadas pela hegemonia branca de origem europeia. Sinalizam assim possíveis novos modelos de produção, circulação e legitimação da arte brasileira, em conexão com a ideia de fim do império cognitivo proposta pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos. PALAVRAS-CHAVE: artes visuais; arte contemporânea; crise nas artes; decolonialismo; arte na pandemia. ABSTRACT: This paper assesses the impacts of the pandemic on the Brazilian visual arts and its relationship with the context of the crisis of world capitalism. In recent times, artists and theorists, among other agents of the artistic system, are facing a new panorama: rethinking aesthetic practices from a decolonial perspective, that is, the possibility of reconstructing histories and poetics silenced by rational European hegemony. Thus, they signal possible new models of production, circulation and legitimization of Brazilian art, in connection with the idea of the end of the cognitive empire proposed by sociologist Boaventura de Sousa Santos. KEYWORDS: visual arts; contemporary art; crisis in the arts; southern epistemologies; pandemic art.

1 Alessandra Simões - Membra da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA). Professora Adjunta na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), no Curso Licenciatura Interdisciplinar em Artes e suas Tecnologias e no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER), campus Jorge Amado. Mestrado: Interunidades em Estética e História da Arte (USP).

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Uma parte do título deste artigo, “Contornos do Invisível”, é uma referência ao livro escrito há poucos anos pela historiadora Tatiana Lotierzo, cujo título é “Contornos do (in)visível: racismo e estética na pintura brasileira (1850-1840)”. Neste livro (2017), a autora analisa extensamente o quadro “A redenção de Cam”, produzido em 1895 pelo pintor espanhol, radicado no Brasil, Modesto Brocos y Gómez. Esta obra icônica revela como a ideologia do “branqueamento” implementada neste período no Brasil também se expressou por meio da arte. E sua representação mais icônica no Brasil ocorreu nesta pintura. O mito bíblico da maldição lançada por Noé sobre seu filho Cam, condenando toda sua descendência à escravidão, foi utilizado como justificativa para a escravização dos africanos pelo Império Português a partir do século 15. Com a abolição da escravidão em 1888 e a proclamação da república brasileira no ano seguinte, a questão sobre “o que fazer” com a população “negra” livre passou a preocupar e ocupar as elites “brancas”. Diferentes teorias científicas foram importadas e adaptadas. Uma delas foi a do “branqueamento” ou “embranquecimento”. A ideia era a de que, por meio de sucessivos casamentos inter-raciais, o fenótipo “negro” seria progressivamente apagado e, ao longo de algumas poucas gerações, a população brasileira se tornaria inteiramente “branca”. No título do artigo, também há referência a outro autor, o pesquisador português Boaventura de Sousa Santos, que lançou em 2020 no Brasil o livro “O fim do Império Cognitivo: a afirmação das epistemologias do sul.” Em plena pandemia, Boaventura lança um extenso livro para reafirmar suas teorias sobre as epistemologias do sul. Explico o conceito resumidamente a partir das próprias palavras do autor (2020, p. 17): As epistemologias do sul referem-se à produção e à validação de conhecimentos ancorados nas experiências de resistência de todos os grupos sociais que têm sido sistematicamente vítimas da injustiça, da opressão e da destruição causadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado. Chamo o vasto e muito diverso âmbito dessas experiências de Sul anti-imperial. Trata-se de um sul epistemológico, não-geográfico, composto por muitos suis epistemológicos que têm em comum o fato de serem conhecimentos nascidos em lutas, produzidos onde quer que ocorram estas lutas, tanto no norte geográfico como no sul geográfico. O objetivo destes conhecimentos é permitir que os grupos sociais oprimidos representem o mundo como seu e nos seus próprios termos, pois apenas deste modo serão capazes de transformar o mundo de acordo com suas próprias aspirações.

Figura 1 - A Redenção de Cam, 1895, Modesto Brocos y Gómez. Óleo sobre tela. Fonte: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra3281/aredencao-de-cam.

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A proposta de trazer “contornos do invisível” à arte brasileira durante a pandemia e sua relação com o “fim do império cognitivo” requer uma reflexão a respeito do sistema das artes como um todo para que seja possível entender o impacto do crescimento exponencial da produção artística e teórica voltada para as questões de raça, etnia, gênero, classe social e geopolítica e sua contribuição para a consolidação da virada decolonial na arte brasileira. É bom lembrar que o Brasil vive um estado de exceção. Entretanto, ao mesmo tempo em que houve a expressiva emergência de forças conservadoras e genocidas que tomaram conta do poder federal, os movimentos sociais se fortaleceram com a construção de redes de articulação, proteção e visibilidade para as minorias, especialmente, por meio da internet. Este movimento se reflete também no crescimento exponencial da produção artística e teórica voltada para a consolidação de uma teoria decolonial na arte brasileira. Apesar da ainda exígua representatividade no sistema artístico brasileiro, inclusive em seus espaços de decisão, pessoas negras, indígenas e que não se encaixam no sistema binário de gênero vêm produzindo uma significativa massa poética e teórica, revelando a urgente necessidade de reparação frente ao sistemático apagamento de suas experiências e memórias pela história da arte de matriz eurocêntrica e colonialista. Importantes acontecimentos vêm confirmando como os alicerces do sistema artístico vêm mudando. A recente intervenção sobre a estátua do bandeirante Borba Gato em Santo Amaro (SP), que foi queimada em ato assumido pelo grupo Revolução Periférica, se tornou um episódio muito representativo, em uma manifestação em total alinhamento com o movimento mundial de derrubada de monumentos públicos que homenageiam personagens históricos reconhecidos como escravagistas, assassinos e colonialistas. Um dado interessante a partir de levantamento recente realizado pelo Instituto Pólis (https://polis.org.br/n-tags/monumentos): dos mais de 360 monumentos que homenageiam personalidades e fatos históricos na cidade de São Paulo, menos de 3% representam pessoas negras e indígenas. Sabemos que este não é um dado aleatório, mas sim mais uma peça no projeto de manutenção do poder da hegemonia branca que se assenta sobretudo no racismo estrutural. Assim, vemos no mundo um significativo processo de derrubada de monumentos especialmente ativado pela morte-gatilho de George Floyd, nos EUA, cujas imagens disseminadas em rede mundial reforçam o sentimento coletivo de que não é mais possível conviver com a celebração, em estátuas, nomes de ruas e edifícios, de assassinos, ladrões e estupradores. Não é mais possível aceitar em nossos caminhos monumentos colonialistas que são, na acertada expressão do filósofo Achille Mbembe: “[...] a extensão escultural de uma forma de terror racial” (2014, p. 220). Então, queimar Borba Gato seria, nas palavras de Fabiana Moraes e Moacir dos Anjos (2020): “[...] ato terrorista, ato performático, ato de cura, ato de amor [...]”, afinal, dizem eles, “[...] todo símbolo em algum momento paga pelo preço de representar algo para muitos (a iconolatria é tão poderosa quanto frágil)”. Se, ao longo dos tempos, tantos autores e autoras apontaram para a necessidade de se lançar mão das epistemologias abertas; agora, no século 21, não podemos pensar em arte sem a abordagem da singularidade, a interdisciplinaridade e a interface ciências-artes-humanidades. A complexidade, as conexões em rede, as condições sociais, a memória, o afeto, as contingências passaram a ser condições elementares a respeito do que entendemos como verdade. E isto vale para as “verdades da arte”. A evocação da universalidade como um referencial basilar (lembrando que a categoria “universal” é um padrão eurocêntrico), nestes tempos tão sombrios, em que uma pandemia coloca em xeque todos os modelos até então em vigor, produzir conhecimento nas artes (que implica em produzir discursos que, por sua vez, podem legitimar e reproduzir estruturas sociais) é uma missão que deve ser expandida a partir de modelos descentrados, capilarizados, ou mesmo rizomáticos, como nos ensina Deleuze (1995), numa visão antifundacional (isto é, questionadora da exclusividade da gênese eurocêntrica), desestabilizandose hierarquias e operando novas estados interpretativos (sempre questionáveis e reversíveis também, por que não?). Enfim, chegamos ao momento crucial de definirmos contornos mais precisos ao tema decolonialismo na arte contemporânea brasileira. Uma série de eventos e ações, ocorridos durante a pandemia, confirmam a dimensão das mudanças, numa espécie de condensação do tempo (era como se a pandemia funcionasse como uma fagulha a estourar o barril de pólvora no qual estavam represadas as forças incontíveis deste debate no campo das artes). As exposições indígenas . “Véxoa: Nós sabemos”, na Pinacoteca de São Paulo (2020), “Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea”, no Museu de 22


Arte Moderna de São Paulo (2021), o prêmio Pipa 2021, e grandes projetos de intervenção urbana estão entre estes principais acontecimentos que tiveram foco questões de raça, etnia, gênero, classe e geopolítica. “Véxoa”, a primeira exposição dedicada à produção indígena contemporânea na Pinacoteca, com curadoria da pesquisadora indígena Naine Terena, contou com a presença de 23 artistas/coletivos de diferentes regiões do país, apresentando pinturas, esculturas, objetos, vídeos, fotografias, instalações, além de uma série de ativações realizadas por diversos grupos indígenas. A mostra faz parte de um projeto de pesquisa maior, OPY, que reúne várias parcerias e levanta a questão que guiou a exposição: Se olharmos a história da arte do ponto de vista do que não existe? Além de identificar critérios de exposição que não a cronologia, ou uma história da arte pautada em movimentos artísticos, Vexóa colocou a questão do lugar da arte indígena no acervo da Pinacoteca e na narrativa da arte brasileira. A curadoria perguntou: como lidar com o paradoxo da arte indígena não estar presente nos museus de arte? Diversas obras corroboraram as orientações curatoriais da mostra. A artista Tamikuã Txihi Pataxó, que se utilizou da apropriação de sua própria cultura, apresentou pequenas esculturas para mostrá-las quebradas por conta de um ato de vandalismo racista. O artista Denilson Baniwa apresentou “Pátio Quintal da Pinacoteca”, por meio da qual ele criou um jardim, uma plantação ao mesmo tempo em que fez uma performance. Outro importante acontecimento em relação ao impacto da pandemia nas artes tem sido a afirmação do espaço da cidade enquanto suporte da arte. Em São Paulo, em 2020, o projeto Vozes Contra o Racismo contou com uma série de intervenções artísticas – de grafitti e lambes a projeções e até um webnário – visando valorizar o trabalho de artistas negros e indígenas. Um dos curadores da mostra, Hélio Menezes, disse o seguinte (https://artebrasileiros.com.br/por-ai/vozes-contra-o-racismo/): “O fato de estarmos em grande maioria trabalhando remotamente tem suas limitações, mas também tem suas potencialidades, e uma delas é de acelerar esse tempo, dos processos de conversa com os artistas, de elaboração dos projetos, de mapeamento dos locais, das visitas técnicas”. A arte urbana na pandemia reacendeu a discussão sobre o papel e o lugar da arte promovendo sua saída dos espaços idealizados das instituições. A arte realizada nos espaços públicos converteuse em estratégia de aproximação com a realidade e com o público. O conceito de site-specific ganhou maior potência na pandemia, uma vez que a cidade pôde se firmar como o espaço da coletivização e do encontro, em uma época de isolamento social. Frente à fragilidade humana e às catástrofes promovidas pelo capitalismo, a cidade com sua dinâmica se converte num reflexo do mundo. O artista usa isto como um caminho para a transformação, para a efetiva relação entre ética e estética, arte e política. “Vozes Contra o Racismo”, por exemplo, teve uma projeção do artista indígena Denilson Baniwa chamada “Brasil Terra Indígena”. As imagens foram projetadas sobre o Monumento às Bandeiras (SP) em parceria com o coletivo periférico Coletores. O vídeo começa com uma caravela portuguesa que é naufragada pela ação dos ventos, da chuva, do fogo, do mar e por isso nunca chega ao porto. A partir desse afundamento surgem bichos, plantas, seres espirituais da cosmologia Baniwa pintados com neon em meio a frases como “Brasil Terra Indígena” e “SP Terra Indígena”.

Figura 2 - Projeção da imagem de Tereza de Benguela na Igreja Rosário dos Homens Pretos, na Mostra Vozes Contra o Racismo Fonte: OsColetores

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Outra mostra de arte urbana bastante importante foi a última edição de CURA - Circuito de Arte Urbana, realizada também no ano passado, na cidade de Belo Horizonte, que teve em sua curadoria a artista e indígena Arissana Pataxó, juntamente com Domitila de Paulo. O festival, em sua quinta edição, defendeu a resistência por meio da arte e cuidado com as pessoas, afetos e natureza. Desta vez, decidiuse por uma curadoria que se aprofunda em um Brasil que não é somente urbano, trazendo artistas de diversas regiões e, por isso, com perspectivas estéticas diversas nas obras públicas. “É urgente ouvir as vozes que apontam outros caminhos”, explicam as curadoras da mostra (https://cura.art/index.php/ cura2020/). Foram feitas inúmeras ações artísticas como estes imensos painéis nas fachadas de prédios, como a impactante obra da artista Daiara Tukano, uma importante liderança indígena. O artista indígena Jaider Esbel também participou da última edição do festival CURA, com uma imensa obra inflável, na qual ele mistura ancestralidade e tecnologia.

Figura 3 - Obra de Daiara Tukano (CURA) Fonte: https://cura.art/index.php/cura2020/

Do lado de fora de seu prédio, o Museu Afro fez uma “mostra-protesto”, em homenagem a João Alberto Silveira Freitas, homem negro brutalmente assassinado, em 2019, em um supermercado da rede Carrefour na cidade de Porto Alegre. Intitulada “Foram os homens e as mulheres negras que construíram a identidade nacional: vidas negras do Brasil”, a mostra conta com os trabalhos de seis artistas que fizeram grafites na faixada externa da instituição, localizada no Parque Ibirapuera, em São Paulo. Questionando o racismo, a violência e as desigualdades do país, a exposição concebida por Emanoel Araujo faz, além de um protesto evidente, a reafirmação positiva das contribuições negras para a formação da sociedade brasileira, cumprindo uma agenda compromissada com a superação do racismo e a promoção dos Direitos Humanos no país. Estas ações apresentam artistas que estão na linha de frente da virada decolonial na arte brasileira, como a artista Castiel Vitorino, que está entre os cinco nomes que ganharam o Prêmio Pipa 2021, um dos mais importantes termômetros das artes visuais no país, cujo resultado foi recentemente divulgado. O prêmio este ano sofreu uma profunda revisão e, além de Castiel, reconheceu a contribuição de Jota Mombaça, Denilson Baniwa, Ilê Sartuzi, Marcela Bonfim e Ventura Profana; artistas predominantemente decoloniais. No vídeo de apresentação do Pipa, Castiel se apresenta como artista e psicóloga que trabalha onde lhe for possível. Seu corpo negro, testiculado e feminino, compõe as experiências poéticas em torno do que ela chama de liberdades perecíveis. Outro artista premiado no Pipa, Denilson Baniwá, indígena do povo baniwá do rio negro no amazonas (que atualmente vive em Niterói, no Rio de Janeiro), vem realizando uma série de obras e ações nas quais debate as várias questões que rondam a arte indígena. A artista Ventura Profana é descrita na página do prêmio Pipa como “Doutrinada em templos batistas, pastora missionária, cantora evangelista, travesti, escritora, compositora e artista visual, que profetiza a 24


multiplicação e abundante vida negra, indígena e travesti. A artista e fotógrafa Marcela Bonfim é outra importante representante dos artistas que atuam na linha decolonial, com sua poética-fotográfica de mapear a Amazônia negra. Estes fenômenos comprovam que podemos falar “na hora e na vez do pensamento decolonial nas artes brasileiras” (Simões, 2020). E esta premissa não parte precisamente dos saberes constituídos a partir dos lugares de fala hegemônicos no sistema das artes: teóricos (as), críticos (as), curadores (as), historiadores (as); em sua grande maioria pessoas brancas que ditam as normas e os valores da circulação da arte e a legitimação do seu conhecimento. A produção artística em si e as teorias estéticas constituídas por pessoas negras, indígenas e que não se encaixam no sistema binário de gênero, entre outras, têm se mostrado como a grande alavanca para a consolidação de uma teoria decolonial na arte brasileira, sacudindo os confortos teóricos mantidos pelo sistema da arte hegemônico. Recapitulamos aqui a gênese do pensamento decolonial enquanto categoria que busca a problematização da manutenção das condições colonizadas da epistemologia; a emancipação de todas as formas de opressão e dominação; e ainda a articulação da cultura, política e economia de maneira a se construir um campo de conhecimento plural, com base nas territorialidades e nas pessoas e suas subjetividades. O decolonislimo, portanto, enfrenta o histórico protagonismo branco e europeu, que manteve-se firme em seu projeto de epistemicídio para a manutenção de uma sociedade colonial e patriarcal, na qual as chamadas minorias políticas e sociais são violentamente eliminadas pelos grupos das elites assentados nos lugares de poder e de decisão. Entretanto, afirmamamos que está em curso no Brasil um gigantesco projeto de “desobediência epistêmica” que tem como ideal político reforçar processos de liberalização das experiências, memórias e histórias daqueles que foram silenciados pela colonialidade. É importante diferenciar aqui os pensamentos “pós-colonial” e “decolonial”, sendo que ambos se constituem como possibilidades teóricas construídas à medida que as relações sócio-históricas acontecem na modernidade (ROSEVICS, p. 191, 2017). Enquanto o pós-colonial denuncia as assimetrias entre colonizador e colonizado fruto do projeto de domínio e opressão, a partir de matrizes teóricas diversas (Franz Fanon, Albert Memmi, Aimé Césaire, Edward Said, Stuart Hall, Grupo de Estudos Subalternos, Ranajit Guha), o decolonial entende a colonização como evento prolongado, com muitas rupturas, mas não como uma etapa histórica já superada (o vocábulo “decolonial” nasce de sua oposição ao “descolonial” para diferenciar os propósitos do Grupo Modernidade/Colonialidade da luta por descolonização no pós-Guerra Fria, bem como dos estudos pós-coloniais asiáticos). No campo das artes brasileiras, falar em decolonialismo significa contextualizar a complexidade dos sistemas simbólicos que amparam e definem as engrenagens sociais. Neste sentido, nas disputas pelo poder social e econômico, a cultura e a arte entram como peças-chave nas negociações simbólicas e na manutenção das hegemonias; fazem parte de um “sistema”, como classificado por Jorge Hilton de Assis Miranda (2017), enquanto um complexo ordenado por partes que se interrelacionam. A arte seria mais um dos “campos” (à luz das teorias de Pierre Bourdieu), entre outros, como o econômico, educacional, científico, religioso etc., reprodutores de desigualdades sociais reafirmadas pela articulação entre instituições e agentes que definem suas regras e valores. Na visão de Miranda (2017), o racismo, por exemplo, é um sistema de poder; e acrescentamos a esta perspectiva o recorte das discussões de etnia e gênero; sendo todos estes tópicos e suas interseccionalidades o que podemos chamar das causas mais urgentes na arte contemporânea. Interessa propor aqui uma reflexão sobre estas poéticas a partir da ótica decolonial e as relações geopolíticas implícitas no processo da colonialidade do poder. Se paradigmas não surgem da noite para o dia, podemos dizer que estamos vivenciando um momento único em nossas histórias simbólicas e culturais; a virada do decolonialismo nas artes. Esta abordagem deve considerar não apenas as experiências praticadas por artistas indígenas, negros, negras e não binários, mas ainda por experiências artísticas compartilhadas contemporâneas, como nos mostra o artista Xadalu e o coletivo Kókir e seus modos de trocas entre indígenas, não indígenas, artistas e não artistas. Estes exemplos parecem ir ao encontro deste “antes”, porém a um “antes” ainda mais longínquo; na direção do que Mignolo (2010) classificou como a “aesthesis”, palavra que, do grego antigo, significa vocábulos como sensação, processo 25


de percepção, sensação visual, sensação gustativa, sensação auditiva. Daí sinestesia se referir ao entrecruzamento de sentidos e sensações. Entretanto, Mignolo aponta que já no século XVII o conceito de “aesthesis” passou a significar a sensação do belo, um belo supostamente universalizante. Aparecem embutidas nesta construção epistemológica as noções aristotélicas de representação, imitação e catarse, que alicerçam esta nossa ideia de estética ocidental. Quase dez anos depois, em seu segundo texto, Mignolo (2019) retoma suas reflexões adicionando à “aesthesis” o conceito de gnosis. Explica que ambos se configuram como esferas do conhecer e do sentir não sujeitas à epistemologia e à estética, lembrando que na civilização ocidental fenômeno e conhecimento se separam a partir do século XVIII. “[...] pensar decolonialmente es un constante desprendimento (delinking) de la epistemología moderno/ colonial y um constante hacer gnoseológico/aesthésico” (2019, p.20), pontua Mignolo. Se para a língua maya não há uma palavra equivalente à arte, como explicou Mignolo ao citar as palavras do artista guatemalteco Benvenuto Chavajay, é preciso nos perguntar como chegamos à ideia de estética como ela é. As expressões estão, antes, ligadas à esfera do sagrado e da espiritualidade, e impregnado de memórias, sensações, ruídos, cores de seus ancestrais. Segundo Mignolo, é preciso, portanto, libertar a “aesthesis” da estética, descobrir a geopolítica do sentir, pensar, fazer e do acreditar por meio da “aesthesis”, esta sim biologicamente universal em um sentido inverso ao pensamento brotado no Renascimento e reforçado no século XVIII, que criou mitos como o da genialidade do artista, da sobressalência das artes liberais sobre as artes mecânicas, da autoria individual. Para tanto, não apenas artistas, mas críticos e teóricos devem pensar decolonialmente. Estas “poéticas-ação” corroboram o que o filósofo Achille Mbembe diz a respeito do suposto caráter representacional da arte: “[...] o objeto central da criação artística, ou mais exatamente o espírito da sua matéria, tem sido a crítica da vida e a mediação das funções de resistência à morte” (2014, p. 291). Nesta operação de afirmação da vida, Mbembe (2014, p. 297) recorre à metáfora de uma humanidade livre de tudo e, portanto, capaz de se auto-inventar: “A verdadeira política de identidade consiste em incessantemente alimentar, atualizar e reatualizar suas capacidades de auto-invenção.” Portanto, a cultura ocidental (e com ela o sistema da arte contemporâneo) agora se vê diante do desafio de sonhar para além de seus próprios e antigos futuros, como lembrou Davi Kopenawa, no livro A Queda do Céu, ao dizer que os brancos dormem muito “[...] mas só conseguem sonhar com eles mesmos” (2015, p. 390).

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Referências ANJOS, Moacir dos; MORAES, Fabiana. Derrubar monumentos, um ato de amor. São Paulo: Revista Rosa, n. 2, vol. 2, 10/11/2020. Disponível em: https://revistarosa.com/2/derrubar-monumentos-um-ato-deamor. Acesso em: 25 set. 2021. DELEUZE, Gilles. Mil platôs. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. KOPENAWA, D; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Trad. de B. Perrone-Moisés. São Paulo: Cia das Letras, 2015. LOTIERZO, Tatiana. Contornos do (in)visível: racismo e estética na pintura brasileira (1850-1840). São Paulo: Edusp, 2017. MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014. MIGNOLO, Walter. Aiesthesis decolonial. CALLE14, vol. 4, n. 4, janeiro-junho, 2010. ______. Reconstitución epistémica/estética: la aesthesis decolonial una década después. Calle 14: revista de investigación en el campo del arte 14 (25). pp. 14-32, 2019. MIRANDA, Jorge Hilton de Assis. Branquitude invisível – pessoas brancas e a não percepção dos privilégios: verdade ou hipocrisia? In: Branquitude: Estudos sobre a Identidade Branca no Brasil. (Org.: Müller, Tânia M. P.; Cardoso, Lourenço). Curitiba, Appris, 2017. SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do Império Cognitivo: a afirmação das epistemologias do sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. SIMÕES, Alessandra. A hora e a vez do decolonialismo na arte brasileira. Revista Visuais, Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 1–17, 2021. DOI: 10.20396/visuais.v7i1.15657. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/ inpec/index.php/visuais/article/view/15657. Acesso em: 25 set. 2021.

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Arte como levante – um filme Art as uprising – a movie Alexandre Sá1 UERJ - alexandresabarretto@gmail.com

RESUMO: Através de um escrita imagética, absolutamente entrópica e repleta de fios soltos, o artigo estabelece algumas considerações sobre a possibilidade de reinvenção do próprio exercício crítico da arte, sem obviamente apontar nenhuma resposta, mas provocando e promovendo névoas de reflexões poéticas e políticas que poderão servir de estruturação para uma reinvenção de tais práticas nos dias atuais. PALAVRAS-CHAVE: levante; crítica; arte contemporânea; política; crise. ABSTRACT: Through an imagetic writing, absolutely entropic and full of loose threads, the article establishes some considerations about the possibility of reinvention of the critical exercise of art itself, without obviously pointing to any answer, but provoking and promoting mists of poetic and political reflections that may serve as a structure for a reinvention of such practices today. KEYWORDS: criticism; contemporary art; politics; crisis.

1 Artista-pesquisador, curador, crítico de arte e psicanalista. Atual diretor do Instituto de Artes da UERJ. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ. Sócio da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - Comitê de Poéticas Artísticas. Editor-chefe da Revista Concinnitas. Líder do Grupo de Pesquisa A Arte Contemporânea e o estádio do espelho (CNPQ). Idealizador do projeto @ istonaoeum e do site: acrítica.org

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“Nós tínhamos raízes que cresciam na direção do outro sob o solo e, quando todas as flores bonitas caíram dos nossos galhos, descobrimos que éramos apenas uma árvore, e não duas” Louis de Bernièrres

Cena 1 – a cama Como pensar em uma produção poética e inevitavelmente política, após a pandemia do Covid-19? Em que medida é possível apostar em uma continuidade do processo criativo diante do quantitativo galopante de mortos e de um inevitável redimensionamento da experiência que fomos obrigados a atravessar? Os sentimentos são díspares, mas é impossível não experimentar uma angústia de abismo que se imprime em nós. Por outro lado, em que medida tal sensação de fato nos é totalmente estranha? Se a experiência do real é próxima da devastação, como considerar, para além das catástrofes, do horror e dos corpos mortos, uma dobra poética que escape da clausura metafórica que nos acompanha desde muito? Será que em algum momento já fomos capazes de viver para longe do espectro da clausura? Considerando o paradigma da produção critica contemporânea e de seu inevitável campo expandido que surge como oportunidade e limite, é possível produzir além do isolamento (não unicamente físico)? A emoção agora é, talvez, comum. Espera-se. Um misto de estranheza que em pequenas reviravoltas se revela extremamente familiar, como um vírus. Freud, no texto O estranho, discorre sobre as analogias semânticas entre as palavras unheimlich (estranho) e heimlich (familiar) e não se exime de indicar de forma extremamente rara, a relação de aproximção e distanciamento que se coloca como vínculo entre as duas. Estranho e familiar são, segundo Freud, experiências conjugadas. Em uma recente edição de 2019, publicada pela editora Autêntica e traduzida por Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, é possível ler: De todo modo, lembremos que essa palavra heimlich não é clara, pois diz respeito a dois círculos de representações, os quais, sem serem opostos, são, de fato, alheios um ao outro, ao do que é confiável, confortável e ao que é encoberto, o que permanece oculto. (FREUD, 2019, p. 45)

Estranho e familiar são experiências não alheias entre si. E embora o ano de 2020 tenha trazido uma sensação inefável e intransponível, incapaz de ser comparada a qualquer outro marco histórico da nossa geração e completamente abissal em sua presença violenta, particularmente no Brasil, é fundamental lembrar que a fantasmática da experiência do viver sempre será deambulatória entre o desconforto e o possível. Obviamente não estou me referindo a um descaso político, diante de uma calamidade sanitária. Mas semanticamente, acredito ser necessário lembrar tal difusa complementaridade como uma aposta e alguma possibilidade de refluxo, já que em toda a experiência familiar há um núcleo de dissenso que o gera como estranho, num certo tipo de movimento curioso e talvez até natural, de parto e fagocitose. Movimento esse que sempre se dará em uma via/vida de mão dupla. Paradoxo incômodo que foi potencializado ao longo do século XX e que pode ser metaforizado na experiência constante de não-pertencimento, erigindo uma atmosfera que nutre e dependendo do caso, esvazia a experiência criativa contemporânea. O estranho-público nesse caso, é termos sido obrigados a atravessar tamanha devastação para que consigamos relembrar que somos fragilíssimos e que talvez tenhamos sucumbido à ingenuidade torpe de acreditar que poderíamos vir a ser outra coisa que não apenas passagem, instante e átimo de segundos diante de uma universalidade muito maior e essa sim, completamente mitológica e onipotente, repleta de particularidades, diferenças e diálogo. O real precisou se apresentar, então, mais uma vez, como retorno do óbvio recalcado. O real compreendido aqui como experiência limite de pura devastação. Por certo, a produção contemporânea em alguns momentos fetichizou tal drama inevitável, tal dissenso como se isso fosse suficiente para a produção de si. E esse dissenso foi parte de um legado 29


não tão amigável da modernidade em sua experiência deambulatória, fruto de algum desamparo que se explicitava na mudança radical das cidades, ou mesmo do paradigma pictórico e espacial que se consolidava na fratura e na desconfortável incompletude que se apresentava nas obras.

Cena 2 – a janela Boaventura de Sousa Santos, em O futuro começa agora, comenta a produção urgente, necessária e desassossegada de alguns filósofos diante da pandemia e seus inevitáveis desacertos. E aponta que, talvez, uma possibilidade futura seja a de optarmos pela posição da retaguarda. Como um avesso da vanguarda. Ou aqui, como interpretação não menos ingênua, a vanguarda como retaguarda diante do presente e do tempo. Como uma aposta no distanciamento da presentidade do presente em seu abismo, arriscando de maneira contundente uma experiência de observação menos ansiosa e mais atravessada pela compreensão de que o experimento do viver, também se faz por alguma observação, sempre distanciada e naturalmente disjuntiva.

Cena 3 – a penteadeira Em um texto imprescindível, publicado pela editora n-1, chamado I’m alive ou I’m a live?, Renan Marcondes levanta, entre muitas outras questões, o diálogo entre o aparelho e a experiência da morte em um tempo que conjuga a vida e sua reprodução sem tempo para o ócio em virtude de sua inquietação diante do apagamento. Para além de muitas referências, o texto inicia com uma citação de um filme chamado Ghost dance de 1983 que explora as perspectivas assombradas de presença no próprio cinema e no qual o filósofo Jacques Derrida faz uma rara aparição. Em uma das cenas, Derrida responde a pergunta se ele acreditaria em fantasmas da seguinte forma: - “Primeiro você estaria perguntando a um fantasma se ele acredita em fantasmas. Aqui o fantasma sou eu”, indicando o espectro inevitável da imagem quando mediada pelo aparelho que se aproximaria de um ventríloquo, capaz de substituir o seu papel concreto. O que parece urgente é a compreensão prévia, nada trágica e nada melancólica, de um efeito de presença que termina hoje, ganhando outros contornos diante de sua intransponibilidade eventualmente ignorada, talvez por falta de coragem, em algumas propostas de vida, esta já agora talvez apartada absolutamente da arte.

Cena 4 – o banheiro Em seu livro mais recente, Hal Foster lança uma pergunta já no título: o que vem depois da farsa? Por certo é possível considerar um primeiro movimento em aberto que é fundamental: qual farsa? A qual farsa ele se refere ou melhor, quantas farsas podemos elencar dentro de um processo histórico que norteia o país desde a sua fundação? Embora o autor esteja se referindo a um panorama americano e potencialmente característico do norte, é curioso como algumas considerações iniciais são completamente cabíveis para nós, aqui. Hal Foster discute de maneira considerável, como é possível que, em algumas situações expositivas, as obras e as imagens dos trabalhos em exibição, numa imbricada relação com o conjunto e com a proposta curatorial, podem deslocar e esvaziar os elementos fundadores de suas poéticas. De alguma forma, o autor nos alerta para o risco do maneirismo curatorial que termina por deslizar significantes em flutuação, para o lugar, também em trânsito, de significantes contundentes. (FOSTER. 2021, p.23) Neste caso específico, a transmutação política proposta pela curadoria estabeleceria uma outra cadeia de significantes que uniria tais trabalhos em uma outra situação diretiva proposta a priori e não necessariamente, legítima. Por certo, se ingênuos fôssemos, poderíamos responder que talvez seja esse um devir da prática curatorial: o estabelecimento de vínculos conceituais, narrativos, históricos, formais, 30


visuais, simbólicos entre os trabalhos. De fato o é. Contudo, o que Hal Foster aponta é a possibilidade da exposição como parte de uma prática curatorial-readymade que desconsidera os elementos estruturais das obras e que insiste em uma urgência também expográfica e não menos midiática, amparada pela segurança do seu espaço de poder e visibilidade. Se em seu célebre texto, O artista como etnógrafo, o autor apontava para o risco de patronato ideológico do trabalho de arte em relação ao outro cultural, aqui, o tônus do perigo é outro: trata-se de um risco iminente de patronato ideológico curatorial que desconsidera a estranheza do trauma, ao promove-lo unicamente pelo mais-de-gozar de sua fetichização como imagem. Por certo, é possível lembrar que esse risco de servir-se a outrem que não viveu a experiência abismal da falta, aqui no caso efetivado uma proposta curatorial, seria parte da responsabilidade da escolha do artista, como se fosse possível creditar alguma pureza recôndita do domínio condominial dos sentidos expressos e alocados no trabalho unicamente pelo autor. Essa hipótese seria eliminada facilmente por duas razões: a primeira e mais lógica é a resposta de que o trabalho após produzido, pertence ao mundo. O que, por sua vez, também poderia vir a ser questionado, já que sabemos que existem camadas diferentes de artistas com históricos distintos de diversas classes sociais e que as demandas que os erigem são múltiplas e impossíveis de serem alocadas em alguma unicidade. A segunda é a de que respeitar o trabalho de arte em suas proposições vibratórias é uma demanda urgente de novas práticas expositivas que estamos precisando lidar agora, no Brasil e obviamente, no mundo, diante de uma expansão considerável da formação, da abertura gradativa do espaço da produção e da visibilização poéticas e como avesso, de uma demanda ávida e não menos desdentada do mercado de arte diante de sua fantasmagoria que mescla exotismo e culpa histórica. Então, nesse sentido e a partir do que Hal Foster indica, não caberia nenhuma responsabilização dos artistas diante da mutabilidade política do seu trabalho, inclusive porque dependendo do caso, lhe faltariam forças suficientes para negociar com uma estrutura que é rígida e ainda ecoa potências coloniais de nossa história mais recente. A perversidade possível de transmutação contundente de uma cadeia significante construída através de um conjunto de obras é um risco iminente das instituições, dependendo de como atravessam a realidade de seus desejos, e do curador, hoje já agregado à figura outrora carismática do crítico. Para que tudo não fique extremamente abstrato, o ideal seria neste momento, citar alguns exemplos e discutir de forma responsável situações expositivas que esbarraram em questões como essas. Contudo, apesar da “abertura democrática nas Artes Visuais no Brasil”, há um vício peculiar de considerar tudo a partir da esfera pessoal e o chamamento para o debate, também dependendo da sua urgência, pode culminar com listagens possíveis de prejuízos prováveis a quem ainda insiste em propor o diálogo. Então, revertendo um pouco jogo, talvez seja mais útil, embora desonesto, lembrarmos aleatoriamente de algumas exposições dos últimos cinco anos no Brasil, que paradoxalmente, provocaram um certo silenciamento das vozes que exibiu, pressupostamente tentando visibilizá-las; visibilizar esse que já seria por si só um paradoxo e um endosso de legitimação de regimes de poder. Ou ainda, elencarmos proposições expositivas e pedagógicas, também violentas, que pela sustentação no alto de suas faixas contestatórias, reduziram um conjunto considerável de trabalhos a um local específico e não menos enclausurado, a que convencionou-se chamar de identidade. Neste caso, não necessariamente, dialógica, múltipla e brasileira. Por certo também caberia lembrar a retroalimentação de tal fantasma identitário promovida pelo mercado internacional de arte, mas isso, pelo menos por agora, seria outro assunto. Mais uma vez convém endossar que não estamos desconsiderando o processo legítimo de tentativa de diminuição de uma injustiça histórica factual e narrativa nas Artes Visuais que silenciou grande parte de uma minoria que, por preconceito e hábito inconsciente, não pôde estruturar redes de conexões suficientes para que o trabalho circulasse na medida justa. Nesse sentido, seria perverso apostar na inocuidade de algumas políticas institucionais que têm investido na possibilidade de reescrita inclusive da própria historia da arte brasileira, dentro de uma perspectiva mais ampla, sem promover o fetiche absoluto da diferença e de nossa própria miséria estrutural. E é lógico que se considerarmos os 31


programas, bolsas e residências que hoje investem fortemente no fomento e na aprendizagem em mãodupla junto aos discursos minoritários, talvez possamos respirar um pouco menos sôfregos diante da nossa paradoxal responsabilidade. Contudo, é fundamental lembrar que além do risco readymade sistêmico, houve nos últimos anos uma prática discursiva que talvez sem considerar em profundidade seu possível legado, optou pelo esvaziamento da potência política de determinados trabalhos e artistas, como se, ao priorizar um exercício de pasteurização paradoxalmente espetacular da alteridade, cumprisse seu papel institucional. Por certo, instituição aqui merece ser compreendida de maneira ampliada e caberia inclusive considerar práticas artísticas e propostas coletivas que investiram suas forças na produção de um certo tipo de imagem ingênua que, além de atender às demandas de consumo, optaram conscientemente pela estruturação de uma experiência que se aproxima de uma lógica imagético-narrativa kitsch, fundamental para as campanhas especulares que reestruturaram o nacional-populismo nos dias atuais.

Cena 5 – o vizinho Há um outro problema que aqui prefiro chamar de relacional: há uma certa tradição no Brasil que H.O. já havia indicado – a coni-convivência; aquela convivência que se daria pura e simplesmente pela manutenção dos interesses particulares e que, obviamente, depois dos anos 1980 ganha força com a expansão e aprofundamento da política neoliberal. Ou seja, como pensar uma crítica que se afaste de uma certa aproximação efetiva que se justificaria apenas pelo estabelecimento de laços e vínculos profissionais e em consequência direta, financeiros? Qual o devir que nos aguarda e que também seremos capazes de construir pós-pandemia em um outro espaço-tempo como possibilidade de escavação? 1. O possível é um infra fino A possibilidade de muitos tubos de cor se tornarem um Seurat é ‘a explicação’ concreta do possível como infra fino O possível implicando o devir – a passagem de um a outro acontece no infra fino

O possível infrafino duchampiano implica em um devir. Um vir a ser. Transformar-se. Algo de deixar-se atravessar pela possibilidade de mudança ou ainda a abertura de um a um outro de si. Pensando no exercício da crítica de arte e tentando alguma metáfora, o que torna os tubos de cor, um Seurat, é algo de sua responsabilidade ética como corpo coletivo em pintura que, na técnica pontilhista, faz com que o espaço pictórico mesmo que reunido, seja capaz de manter suas individualidades, legando ao espectador, a possibilidade de construção de uma narrativa. De todo modo, entre os tubos de cor e um Seurat, há um levante?

Cena 6 – os fungos Sendo possível um levante, estaríamos imbuídos de coragem suficiente para questionarmos nossa posição e o próprio espaço de poder que supomos ocupar? E se assim o for, qual seria o conjunto heterodoxo de discursos que seríamos capazes de questionar? O que ele representa e a quem ele representa? É importante ainda lembrar que esse tema tão caro a Didi-Huberman, gerou dois seminários. Um que ainda está acontecendo, sobre a nossa possibilidade de imaginar, a partir do texto de Ernst Bloch, A Esperança, a ser publicado em outubro de 2021. E um anterior que se chama Desejar, desobecer, aquilo que nos ergue 1, que gerou um livro publicado em 2019 pela Éditions de Minuit e ainda sem publicação no Brasil no qual, o autor indica que o levante é atravessado por uma paradoxal confiança. E que nos levantamos para que manifestemos um desejo de emancipação, não como um bibelô em uma vitrine ou uma roupa em um desfile de moda, ou mesmo como uma performance em uma galeria de arte. Trata-se do resultado da força e da profundidade da inocência fundamental daquilo que é 32


inusitado. É possível então considerar que o levante é o resultado indireto dos próprios movimentos interiores que, no caso da crítica de arte, se daria por uma reinvenção da própria escrita, bem como por uma inevitável insatisfação do seu legado anterior que terminou por pasteurizar suas nuances e fragilizar sua urgência como proposta de mediação, diálogo e enfrentamento com as obras produzidas. Não se trata obviamente de uma militância já ultrapassada, mas uma tentativa de borramento de seus limites e uma tentativa de reestabelecimento sua potência política, extremamente necessária em tempos de angústia como os que estamos vivendo atualmente em 2021 no Brasil. Por último importante lembrar que no capítulo 9, Didi-Huberman marca uma diferença entre potência e poder. E na página 49, talvez haja algo que merece atenção: Sentimos, um pouco de maneira confusa, que a potência é próxima ao recurso e a fonte, como se denotasse a maneira pela qual uma torrente criada, por sua força intrínseca, a forma que o rio terá. Sentimos que o poder é antes de mais nada, próximo do canal ou da barragem: em outras palavras, é uma maneira completamente diferente de extrair, da fonte e de seus recursos, uma energia mais útil, mais controlável, em suma, mais manejável.

Cabe a nós, aqui e hoje, pensar como devir, que modo de operação nos interesssa.

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Referências DIDI-HUBERMAN, Georges. Désirer Desobéir Ce qui nos soulève 1. Paris - FR: Les Éditions de Minuit, 2019. DUCHAMP, Marcel. Notes. Paris-FR: Flammarion, 2008. FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? Arte e crítica em tempos de debacle. São Paulo: Ubu Editora, 2021. FREUD, Sigmund. O estranho. São Paulo – SP: Editora Autêntica, 2019. MARCONDES, Renan. I’m a live ou I’m alive. In: Pandemia crítica. São Paulo SP, 2020. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro – RJ: Editora Rocco, 1986. SANTOS, Boaventura de Sousa. O futuro começa agora. São Paulo – SP: Boitempo Editorial, 2019.

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O avesso da crítica sobre a estética de terreiros The backward of the critique about te aesthetics of terreiros Anderson Almeida1 UFRGS - andersondiego.almeida@gmail.com

RESUMO: Há arte em objetos de terreiros. Este artigo parte desta constatação para discorrer sobre a crítica construída, por alguns autores, a respeito da estética produzida por artistas anônimos e sobre o olhar marginalizado e questionador, indo de Nina Rodrigues a Roberto Conduru, mostrando que há um avesso entre o que se configurou como Bellas-Artes, a partir do primeiro autor, e o silêncio sobre as contribuições plásticas africanas, na formação da arte no Brasil, do segundo. A tessitura se dá a partir da Coleção Perseverança, fruto do fático Quebra do Xangô, e seu estado de arte. PALAVRAS-CHAVE: Estética de terreiros; Coleção Perseverança; Objetos de ritual; Crítica de arte; Arte afrorreligiosa. ABSTRACT : There is art in terreiro objects. This article starts from this finding to discuss the criticism built by some authors about the aesthetics produced by anonymous artists and about the marginalized and questioning look, ranging from Nina Rodrigues to Roberto Conduru, showing that there is an opposite between what was configured as Bellas-Artes, from the first author, and the silence about the African plastic contributions, in the formation of art in Brazil, from the second. The texture is based on the Coleção Perseverança, the result of the factual Quebra do Xangô, and its state of the art. KEYWORDS: Aesthetics of terreiros; Coleção Perseverança; Ritual objects; Art criticism; Afroreligious art.

1 Doutor em Artes Visuais, com ênfase em História, Teoria e Crítica da Arte (PPGAV-UFRGS). Atualmente leciona no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS-Vacaria). Pesquisa estética de terreiro, memória e arte afro-brasileira nas coleções formadas a partir de batidas policiais entre os séculos XIX e XX.

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No entrelaçar, o olhar estranho Analisando artefatos provenientes da África como obras de arte (esculturas, máscaras, tatuagem), os relacionando às tradições socioculturais das quais provêm e ao devir da arte em sentido universal, são discutidas questões referentes à percepção e criação artística, forma e espaço, corpo e sociedade, bem como à história, crítica e teoria da arte (EINSTEIN, 2011, p. 31).

Este artigo é fruto de uma inquietação iniciada num processo de doutoramento em Artes Visuais, na Universidade Federal de Alagoas, concluído em 2021. Do pressuposto, tem como base o potente texto de Roberto Conduru, Esse “troço é arte? Religiões afro-brasileiras, cultura material e crítica, publicado em 2019. O que os apontamentos de Conduru e esse texto em construto têm em comum? O posicionamento sobre a arte produzida nos terreiros e seu percurso na história da arte brasileira. Fica evidente, no referido autor acima, a crítica e os processos que analisam os objetos que carregam a marca dos rituais de religiões de matrizes africanas. Responder se eles são arte não será nosso intento. Todavia, é partindo desse pressuposto que mostraremos alguns pontos, ao longo da história crítica que se construiu, sobre o estado artístico deles. Da citação de Carl Einstein, em Negerplastik, tomemo-la como referência que nos condiciona a pensar o lugar e a importância da arte de terreiro na história da arte brasileira. Não nos custa e nem é um exercício difícil de compreensão. Assim, tomado pela sensibilidade e precisão da análise de Einstein, Conduru (2010, p. 878) completa que é neste autor que as obras são valorizadas enquanto arte, “exibidas em museus e coleções particulares, estudadas em disciplinas e pesquisas universitárias”; argumento que nos instiga pensar sobre os espaços que ocupam as coleções de peças de terreiros na dita história branco brasileira. Para caminhar pela crítica, antes de tudo, precisaremos apontar o lugar de onde falamos e com quem nos relacionamos – nossos interlocutores. Aqui, daremos ênfase aos enunciados de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Mário Barata, Mariano Carneiro da Cunha e Roberto Conduru. Estes que consideraremos como os aportes teóricos que foram enfáticos em suas análises diante da possível existência de uma arte produzida nos recessos dos terreiros e por mulheres e homens negros, por artistas invisibilizados por ações e discursos racistas e eugenistas. De certo, o artigo aqui propõe dialogar com esses autores, mostrando seus pontos de vistas, tendo como arremate a Coleção Perseverança, fruto da devassa acontecida em 1º de fevereiro de 1912, na cidade de Maceió, Alagoas, por um grupo de milicianos que invadiu as casas religiosas, conhecidas como xangôs. O resultado foi a destruição e apreensão de muitos objetos. Alguns queimados, outros tirados do fogo e levados para a delegacia, como provas do feito que levou o credo a silenciar até 1950.

O terreiro no museu: arte ou feitiçaria? [...] o texto de Einstein oferece elementos para análises de assentos de inquices, orixás e voduns encontrados em muitas dessas comunidades religiosas. [...] devese pensar nesses assentos e em outras obras e rituais religiosos afro-brasileiros independentemente de suas dimensões sacras, avançando no entendimento de coisas e práticas dessas religiões como arte (CONDURU, 2011, p. 298-299).

As palavras de Conduru poderiam resumir o texto que aqui se pronuncia: reivindicar o lugar da Coleção Perseverança a partir do seu contexto artístico, atualmente velado pelo assombro que se enraizou pelas histórias de racismo, silêncio e perseguição. Uma das primeiras coisas que teremos que compreender, nesse construto de reinvidicação, é como surgir a Coleção Perseverança e quais as circunstâncias que a levaram a ser parte, hoje, do acervo do Museu do Instituto Histórico de Alagoas (IHGAL). 36


A Coleção Perseverança, enquanto conjunto expositivo, é formada em 16 de setembro de 1950, quando o referido museu abre suas portas e divulga, com ostentação, o maior, talvez mais completo, acervo de objetos apreendidos pela polícia no Brasil.

Figura 01: Peça da Coleção Perseverança. Sem autoria. Ferro para Exu, tridente duplo. Ferro batido, 19 cm. Fonte: Acervo IHGAL.

Antes dessa constatação, o lugar das peças eram pejis de religiosos que levavam a vida no entre manter o credo e fugir dos olhares preconceituosos de uma sociedade alagoana que almejava uma 37


limpeza, urgente, das ruas. Era a cobrança para que o Código Penal de 1890 fosse aplicado, proibindo a prática de curandeirismo e venda de sortilégios. Era muito mais do que denunciar um batuque que parecia perturbar a noite dos engravatados e das mulheres de longos saiotes. Maceió, em 1912, era uma revolução Industrial atrasada e já falida. Era quase noite de 1º de fevereiro de 1912, quando um grupo de homens armados seguiu para um dos terreiros do centro da capital. O golpe, conhecido como Operação Xangô, e depois pelas páginas iniciais como Quebra de Xangô, fora deflagrado. O motivo torpe estava centrado na falácia de que o então governador, Euclides Malta, era um assíduo frequentador dos batuques e tinha como mãe de santo, Tia Marcelina, a negra mais afamada do estado. A falácia bastou para que se tornasse o principal motivo que impediria Malta de reeleger-se. Seus opositores estavam dispostos a enfrentar qualquer situação. Assim, o quebra-quebra se fez. Terreiros foram invadidos, numa rota meticulosamente desenhada, pais, mães e filhos de santos foram presos, outros conseguiram fugir. Grandes fogueiras foram preparadas em frente das casas invadidas. Muitos outros objetos, alguns de valor, saqueados. O que restou, após mais de cem anos ainda é visto como o ato bravio daqueles homens incautos que promoveram o “candomblé em silêncio” (FERNANDES, 1941). O silêncio. Somente o silêncio, o apagar das memórias. Musealizados os objetos, o sagrado passou a ser uma qualidade que aparece sendo maléfico (MAGGIE, 2008), despertando o temor das pessoas. Assim, perderam suas ambiguidades, funções originais, sejam elas quais forem, assumindo um valor de exibição (GONÇALVES, 2009); mas, tenhamos a certeza que não perderam a ligação com seu passado, independente de quão radical tenha sido seu processo de transformação. Passaram, então, a desempenhar o papel de representar identidades e memórias dos que lhes deram vida. Em sua condição plástica, o que nos revela a Coleção Perseverança enquanto arte? Estendemos o questionamento atendo-nos para o fato de agora como coleção institucionalizada, por que custou e ainda custa aos pesquisadores olharem para ela em teor artístico sem arrodeios? Vejamos o processo de artificação (SANT’ANNA, 2017), por exemplo, que num ritual de passagem, do cotidiano ao artístico, levou inúmeras coleções, vistas fora do “sistema”, ao status de arte. Com a Perseverança é visível que o referido status somente a clareou pelas margens, mantendo-a na escuridão. Isto se deu pelos apontamentos incompletos e reduzidos ao campo primitivo e escultórico. Se pegarmos as observações de Abelardo Duarte (1974) e Raul Lody (1985), dois homens que estudaram a coleção em seu primevo, veremos que no primeiro, há a reprodução do pensamento de Nina Rodrigues, e no segundo, afirmações sobre o campo religioso. Ambos incompletos e, até certo ponto, duvidosos. Não ouve quem chancelasse ou ousasse afirmar que ali, na Coleção Perseverança, estaria a maior forma de apreciarmos a arte afrobrasileira feita nos recessos dos terreiros de Alagoas. Lembremos que um dos motivos que levou Abelardo Duarte a despertar e acelerar seu interesse nos objetos, abandonados no porão da Sociedade Perseverança, depois desta receber a apreensão logo após a noite da quebra, e anos depois vir à falência, foi a notícia de que um museu americano estaria prestes a comprá-los. Quem sabe, se adquiridos pelo museu, estivessem hoje em consonância ao sistema das artes, provocando uma revisão do conceito de arte afrorreligiosa no Brasil, que parece apenas se relacionar com o Barroco. Acreditamos que tal devaneio não se trata de teor reducionismo, pois nosso papel com este artigo é evidenciar, ainda que brevemente, em todas as suas potencialidades, valor artístico e sígnico que a Coleção Perseverança carrega e, certamente, apontar para o avesso da crítica reducionista que está enraigada na sua história. Assim, colocá-la no construto de que arte é uma ação simbólica, e como tal, na qualidade de documentos plásticos, estaremos afinado com a concepção de que a coleção revela a memória religiosa afro-brasileira, esses objetos induzem à compreensão do importante papel das sociedades religiosas de base africana, que, num determinado momento da história brasileira, sustentaram secretamente o culto aos reis, heróis, mitos e fundadores, mitos civilizadores, guerreiros divinizados, elementos naturais, etc., formadores de repertório dos terreiros de candomblé (SODRÉ, 2006. p. 156).

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Propomos aqui outra reflexão: quantas vezes vimos uma exposição ou lemos algum livro de história da arte brasileira, que aponte os objetos de culto como representativos à arte afro-brasileira? Seguramente, uma ou outra lembrança ou pequena referência de algum autor nos virá. O tempo da arte afrorreligiosa, nitidamente, avançou sobre o contexto da arte contemporânea brasileira. Aqui referenciamos Ayrson Heráclito e Castiel Vitorino que usam elementos e códigos dos rituais para criarem sua plástica. Entretanto, o mesmo tempo parou para as coleções de cunho ritualístico, pouquíssimas analisadas em sua condição artística.

Olhar o avesso da crítica, a feitiçaria é arte Por que a recusa em pensar, por que o silêncio sobre as contribuições plásticas africanas à formação das artes plásticas no Brasil? (CONDURU, 2013, p. 204).

Quando buscamos referenciais para este tema, dois nomes surgem de imediato. Um deles é Mariano Carneiro da Cunha e o outro, já mencionado, Roberto Conduru. Pode parecer estranho não citarmos Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Mário Barata nesta suposição. Entretanto, sem negar o pioneirismo dos autores, preferimos ratificar nossa convicção a respeito do estranhamento e reducionismo, principalmente em Rodrigues, promovidos pelos três. Não nos parece sincero quando estes atestaram que nos negros é possível encontrar uma grande expressão artística, ao tempo em que evocam apenas a escultura como um possível elemento que “salva” o negro da sua falta de intelectualidade (RODRIGUES, 1904). É tão incômodo que, afirmá-los como os primeiros que se posicionaram sobre a arte produzida nos terreiros, aos seus olhos “Bellas-Artes dos colonos pretos”, torna-se incoerente; não pelo fato de citarem um conceito para o que normalmente não era visto como arte (é isso que lhes atestam o pioneirismo), mas, por aparentar que estavam se referindo como arte tudo aquilo produzido para os rituais, o que não é verídico. Também acrescentamos o incômodo em pensarem que o artista de terreiro não via seu objeto como arte. Pensemos que para este artista não havia diferença entre arte maior e menor, simplesmente ela estava lá, na potência do seu trabalho e animada pelo sagrado. Voltamos ao sentido do “chancelar”. Para que esse “status de arte” aparecesse, Nina Rodrigues e Mário Barata chancelaram às esculturas o padrão de beleza que se aproximava da arte dos artistas estudados, deixando aos demais objetos, as impressões de feitura, “um quê de artístico” sem ser arte. Contudo, abandonaram os símbolos bordados nos tecidos e os recortados das latas reaproveitadas (Figura 2) e as pinturas dos vasos e adornos. Como próprio Rodrigues (1904, p. 11) afirma: “Pouco sabemos da pintura negra que mesmo em África não parece ter ido além de toscos desenhos [...]”, e mesmo enfatizando a escultura negra como valor artístico, renega-a: Não passaria pelo espírito de homem mediocremente instruido a idéia de applicar a determinação do seu valor as exigencias e regras artisticas por que se aferem productos da arte nos povos civilisados. Os fructos da arte negra não poderiam pretender mais do que documentar, em pecas de real valor ethnographico, uma phase do desenvolvimento da cultura artistica. E medidas por este padrão revelam uma phase relativamente avançada da evolução do espírito humano (RODRIGUES, 1904, p. 16).

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Figura 02: Sem autoria. Abebê. Lata reciclada e ferro batido, 30 x 22 cm. Coleção Perseverança. Fonte: Acervo IHGAL.

Barata, por exemplo, parece seguir os passos de Rodrigues, ao tempo em que ameniza seu discurso exemplificando dois potes de barros produzidos por africanos nas minerações de Mariana e Ouro Preto: “[...] apesar de sua extrema simplicidade mostram que os negros traziam da África uma técnica material já envolvida. Numa delas a tentativa de ornamentação é bem interessante, dentro de sua espontaneidade” (BARATA, 1941, p. 16). A citação em nada acrescenta sobre o que ele considerava arte, mas, difere dos seus apontamentos irônicos que enfraquecem sua posição sobre a ideia de serem as esculturas arte: “Pela rusticidade parece ter sido feita por crianças, com areia, na praia de Copacabana” (BARATA, 1941, p. 17); e no mesmo tom, enfatiza um ídolo: “A forma do corpo e a falta de braços são detalhes estranhos. O resto, como todo o conjunto, demasiado primitivo” (BARATA, 1941, p. 16). Arthur Ramos, mesmo com o pé em seu mestre Nina Rodrigues, é quem, de fato, vai destacar as dimensões artísticas dos demais objetos juntamente com as esculturas. Neste sentido, o autor se propõe a identificar os poucos registros de arte do Congo, Angola e Golfo da Guiné, acreditando estarem na fabricação de “alguns instrumentos de música, de objetos do culto, de materiais de ornamentação, sagrados e profanos” no Brasil: Os negros escondiam suas manifestações de arte no recesso dos candomblés, onde continuaram a esculpir na madeira seus ídolos e emblemas ou a fabricar objetos de culto, da mesma forma como faziam na África. (RAMOS, 2010, p. 252).

É a partir de Ramos, portanto, que concordaremos com os apontamentos de Conduru (2019), em detrimento de sua análise sobre os três autores. Para nós, neste caso, não fica claro se Rodrigues e Barata realmente pensaram que as “bugingangas”, os “troços”, eram obras de arte. Entretanto, para ser justo com esses autores, é necessário ressaltar que sobretudo Nina Rodrigues e Ramos, mas também Barata em seu primeiro texto (1941), procuraram conjugar as categorias artísticas europeias a princípios etnológicos e antropológicos em suas análises das especificidades das religiões afro-brasileiras. O que os levou a incorporar outros tipos de artefatos em seus textos. Nina Rodrigues (1904) apresenta insígnias cerimoniais como esculturas e Barata (1941), potes cerâmicos como arte, mas é Ramos (1949) quem mais propõe outros tipos de objetos como obras de arte: armas cerimoniais e outras insígnias religiosas,

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amuletos, fios de contas e joias, além de esculturas de madeira e ferro. Embora estivessem um tanto limitados pelas escolhas policiais, esses autores esboçaram métodos de análise que ensaiam uma conciliação de crítica, história e antropologia da arte (CONDURU, 2019, pp. 107-108).

Pensemos que a importância dos autores esteja em posicionar a palavra arte num universo totalmente avesso e assombrado em que se encontravam os objetos, mesmo tecendo a crítica, de certo modo, sobre um viés europeizado, nos padrões de uma análise que vai escolher, separar e diferenciar o que é bom e ruim, numa interpretação que pouco revela a potência do objeto (FERREIRA, 2019). Consideramos Mariano Carneiro da Cunha como aquele que olhou para os objetos, que não se configuravam entre as esculturas, os aparentemente esquecidos por Nina Rodrigues, e neles apontou o grande potencial artístico produzido pelos negros, já com características locais (Figura 2) e longe do sentido de pureza: [...] o ambiente mais favorável à eclosão do talento negro era o espaço das casas de culto. Neste, a arte ritual, embora não tenha sofrido solução de continuidade, limitou-se, porém à feitura de objetos indispensáveis ao culto e ao rito. A arte ritual afro-brasileira, na realidade, não mais identifica etnicamente apenas a negros, mas serve também de identificação cultural a brancos e mestiços, assumindo, portanto uma dimensão, ao que parece, nacional (CUNHA, 1983, p. 1022).

Cunha dá uma reviravolta na história do que podemos chamar de arte afrorreligiosa. Todavia, é em Conduru (2010) que encontraremos a mais completa contribuição sobre a arte feita nos terreiros. Não hesitemos em afirmar que este autor prolonga o enunciado de Cunha e se desafia a tensionar as razões pelas quais dos objetos não serem configurados como arte: “[...] estes artefatos permanecem restritos a instituições orientadas por outros conceitos e princípios, [...] evitando enfrentar a questão sobre o estatuto artístico” (CONDURU, 2019, p. 110).

Figura 03: Escultura da Coleção Perseverança, citada por Mariano Carneiro da Cunha, como exemplo de produção feita em Alagoas. Sem autoria. Xangô. Madeira e tecido de algodão, 38 x 8 cm .Fonte: Acervo IHGAL.

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É em Conduru, por exemplo, que estarão as referências da relação dos candomblés com a igreja católica, além do Barroco; o enunciado sobre as condições de culto dos escravizados; o olhar para dentro dos terreiros e deles a extensão para falar da arte afro-brasileira, e nesta, a religiosidade como elemento essencial. É ele quem vai posicionar sobre a estética assombrada (VIEIRA COSTA, 2014) que há em meio às peças utilizadas nos ritos, e delas, seguramente, afirmar que ali o condicionante do ser arte foi transformado a partir do simbólico: Materiais e objetos que causam estranheza. Ao olhar leigo, sobressaem materiais inusitados, misturas insuspeitas, composições calculadas associadas ao acaso, ritos com deslocamentos e conjunções de coisas díspares, de diferentes tipos e origens, da natureza e fabricadas, banais e raras. Também espanta a plenitude no que é coposto de poucos e simples elementos: uma pedra em uma bacia, vasilhames nos quais coisas usuais, corriqueiras, estão imersas em líquidos de cor e cheiro, aparecendo reinventadas, ressurgindo como novas à visão e aos demais sentidos (CONDURU, 2007, p. 35).

Dessa estética assombrada apontada por Conduru, suscita-nos perguntar que arte é esta? O que a conceitua? Poderíamos mencionar diversos autores para explicar o sentido do ser arte e, desses direcionamentos, identificar em quais circunstâncias os objetos de terreiros se fazem arte, ou melhor, tomando como referência a pergunta de Conduru (2007, p. 45), “Como entender o que dizem essas peças sem dominar os códigos?”, substituirmos a palavra “peças” por arte assombrada, e assim pensar: é possível ler essa arte assombrada produzida nos terreiros mesmo sem entender seus códigos? Encontraremos a resposta mais contundente em Alfred Gell, que com maestria, dimensiona como devemos olhar para este assombro: [...] olhar para uma obra de arte é como encontrar uma pessoa: encontra-se uma pessoa, um ser pensante, copresente, reagindo a sua aparência externa e a seu comportamento. Do mesmo modo, responde-se a uma obra de arte como a um ser copresente, um pensamento encarnado (GELL, 2001, p. 183).

É assim que devemos olhar para as “bugigangas”, como objetos de arte, procurando as intenções que levaram um artista a produzir tais códigos, cores, texturas, materiais; e nós, “de olhos e ouvidos abertos” (CONDURU, 2007, p. 45), conectando-os aos sentidos e promovendo perícia, sermos levados a compreender o tempo e o espaço em que foram criadas, e nesta perspectiva, também sermos conduzidos à plenitude artística, sem, necessariamente, saber o que cada elemento significa. Sem dúvidas, a artista afro-brasileiro, ao produzir o sagrado, não estava somente preocupado em evidenciar seu credo, todavia, sua relação com os xangôs e, mais ainda, demonstrar os conhecimentos técnicos intrínsecos à sua etnia, a expressão do sagrado como arte (BASTIDE, 2011). Gostaríamos de finalizar este artigo com a citação de Conduru, para enaltecer que os objetos de terreiros, hoje em diversas coleções espalhadas pelo Brasil, são documentos da presença forte e da contribuição direta dos africanos e seus descentes à arte deste país, a Coleção Perseverança está aí para nos provar: “(...) estes objetos têm significações múltiplas, se abrem a uma ampla rede de sentidos, estão disponíveis a vários tipos de questionamentos” (CONDURU, 2013, p. 198).

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Entre consensos e dissensos: arte, estética, cultura e direitos democráticos Between consesus and dissensus: art, aesthetics, culture, identity and democratic rights André Arçari1 PPGAV-EBA, UFRJ - andrearcari@outlook.com

RESUMO: Este artigo busca analisar o que está em jogo na esfera pública quando da instauração de um Estado de Exceção, onde os valores humanos parecem desvanecer e o governo é capaz de ditar regras sem precedentes para o controle dos corpos. Sabe-se que no cerne do estado moderno a vida natural passou a ser atrelada e governada pelas noções do político, e que essa mesma política tomou o poder do humano. Assim, pela interpretação do Jetzeit benjaminiano, analisamos a Shoah com seu gesto necropolítico, pondo em pauta a instalação sonora Study for Strings (2012) de Susan Philipsz para a dOUCMENTA 13, esta que tem como ponto de partida a peça do compositor tcheco Pavel Haas e que foi realizada em seu período de deportação para o estabelecido gueto-modelo e campo de concentração de Theresienstadt, antes de ser transladado para o triste fim de sua vida em Auschwitz-Birkenau. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Política; Estética; Democracia; Direitos Humanos; Shoah. ABSTRACT: This article intends to analyze what is at stake in the public sphere when a State of Exception is established, where human values ​​seem to vanish and the government is capable of governing unprecedented rules for the control of bodies. It is known that at the heart of the modern state, natural life came to be harnessed and governed by the notions of the political, and that this same politics took over the power of the human. Thus, through the interpretation of Benjamin’s Jetzeit, we analyze the Shoah with its necropolitical gesture, putting into analyzing the sound installation Study for Strings (2012) by Susan Philipsz for dOUCMENTA 13, elaborated from the play by Czech composer Pavel Haas, performed in his period of deportation to the established model ghetto and concentration camp of Theresienstadt, before being transferred to the sad end of his life at Auschwitz-Birkenau. KEYWORDS: Political Philosophy; Aesthetics; Democracy; Human rights; Shoah.

1 Artista visual e pesquisador independente. Possui graduação em Artes Visuais e Mestrado em História Teoria e Crítica da Arte ambos pela Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente é doutorando em Linguagens Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – Escola de Belas Artes / Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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A tese central da Teoria do Poder de Foucault diz: desde o século XVII o poder já não se manifesta como poder de morte do soberano, mas como poder disciplinar e biopoder. Byung Chul Han. Topologia da Violência, 2017. A pureza é um mito. Hélio Oiticica. Tropicália, Penetrável PN2, 1967.

I. O filósofo italiano Giorgio Agamben destinou 20 anos de sua vida ao seu projeto Homo Sacer (1995-2015). O livro Homo Sacer III. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o testemunho (1998) trata-se da segunda das publicações desse programa, que por sua vez inicia-se com Homo Sacer I. O poder soberano e a vida nua (1995). Agamben publica tal projeto de forma não-cronológica e assimétrica em relação a cada uma das quatro partes, ora adicionando volumes a mesma seção, ora criando outras, na medida que a escavação por cada ponto avançava durante os anos, constituindo uma obra de trama complexa e intrincada que apenas recentemente foi reunida e publicada como obra completa em italiano2. Assim, tal projeto de fôlego reestrutura e esgarça importantes pontos do pensamento filosófico ocidental, ressignificando-os para os dar vida no Jetzeit3 a que nos fala Benjamin. Retornando à esteira do pensamento para Homo Sacer I, livro em que o Agamben tensionará dois pensamentos, a fim de se aprofundar na relação do homem com a política moderna. Ele escava o conceito de biopolítica apresentado por Foucault, para realizar seu alargamento, pondo-o em relação ao pensamento desenvolvido por Hannah Arendt em A condição humana, de progressivo valor que o animal laborens ocupa na sociedade. É esta ocupação social do ser (bíos) na cidade (polis) que o interessará para o entendimento da tensão que se instaura nas sociedades modernas. A clara frase introdutória do primeiro volume sumariza o ponto de partida da pesquisa, dando um entendimento inicial, sobre as bases que compõem o subtítulo deste programa, o poder soberano e a vida nua: Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. (AGAMBEN, 2002, p. 9)

Portanto, esta relação entre a zoé e o bíos, presente na base da investigação do Homo Sacer são conceitos basilares para o início da pesquisa, e que permeará em certos momentos as demais seções. Ao concentrar tal investigação na busca pelo limiar que separa a vida nua da vida biopolítica é que o autor nos oferece uma reflexão da atuação da política (ou a ausência dela) sobre os corpos (ou ausência deles). E no que consistiria o biopoder? Para Agamben: “A ambição suprema do biopoder consiste em produzir em um corpo humano a separação absoluta entre o ser vivo e o ser que fala, entre a zoé e o bíos, o nãohomem e o homem: a sobrevivência.” (AGAMBEN, 2008, p. 156)

2 Esta edição definitiva a que pontuamos foi publicada recentemente, em 2018, que esgotou rapidamente, e que, por sua vez, foi republicada em 2021. Tal obra completa possui reajustes, que devolveram os títulos originais idealizados pelo autor, que também realizou uma longa revisão, realizando assim as desejadas correções e acréscimos - como a longa nota sobre o conceito de guerra. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer (Edizione integrale). Macerata: Quodlibet, 2021. 3 Termo caro usado por Walter Benjamin em suas Teses sobre o conceito de História, o Jetztzeit (do original em Alemão), caracterizaria o problema do agora. Benjamin diz e.g., em sua Tese XIV: “A história é objeto de uma construção cujo lugar é constituído não por um tempo vazio e homogêneo, mas um tempo preenchido pelo Jetzeit”. Cf. BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de História. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. Para o filósofo alemão, o passado contém o presente, e a história se forma no preenchimento de um continuum de tempos-do-agora.

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Figura 1 - The Auschwitz Album, ca. 1944. Yad Vashem - Museu do Holocausto. Fonte: https://www.yadvashem.org/yv/en/ exhibitions/album_auschwitz/index.asp

Na figura 01 destacamos uma imagem do Auschwitz Album, como é chamado este material encontrado em 1945 pela testemunha Lilly Jacob-Zelmanovic Meier. Composto de 56 páginas e 193 fotos, trata-se do único documento fotográfico remanescente de Auscwitz-Birkenau que, realizado pelos próprios soldados da SS, reúne imagens tiradas entre maio ou início de junho de 1944, até hoje por razões incertas, e que foram atribuídas aos guardas nazistas Ernst Hofmann ou Bernhard Walter. Jacob-Zelmanovic Meier nunca o escondeu, pelo contrário, quando sobreviventes que a procuravam reconheciam um familiar na imagem, ela doava a foto a pessoa. Desde 1945, a dona do álbum “[...]o manteve todos os anos até que o famoso caçador de nazistas Serge Klarsfeld a visitou em 1980 e a convenceu a doar o álbum para Yad Vashem” (tradução nossa) (YAD VASHEM – MUSEU DO HOLOCAUSTO, 2021), onde o material está localizado até a atualidade.

II. A Shoah, situação vivida no século XX pelos judeus, desvela a condição biopolítica do ser no mundo, daquele controle dos corpos que Foucault teorizou em sua sociedade disciplinar, e que será caro na elaboração deleuziana da sociedade de controle, bem como se torna referencial no pensamento de Agamben. É também válido destacarmos o interesse do italiano pela filologia, onde o autor habitualmente atua como um arqueólogo, escavando a etimologia das palavras, seus usos, contextos e relações sociais. Nesse sentido, cabe destacar que o próprio substantivo genocídio foi um termo fundado após a tragédia sofrida pelos judeus durante o nazismo. Na Enciclopédia do Holocausto encontramos a história do advogado judeu polonês Raphael Lemkin (1900 -1959) que, 47


[...] ao tentar encontrar palavras para descrever as políticas nazistas de assassinato sistemático, incluindo a destruição dos judeus europeus, criou a palavra ‘genocídio’ combinando a palavra grega geno-, que significa raça ou tribo, com a palavra latina -cídio, que quer dizer matar. Com este termo, Lemkin definiu o genocídio como ‘um plano coordenado, com ações de vários tipos, que objetiva à destruição dos alicerces fundamentais da vida de grupos nacionais com o objetivo de aniquilálos’. No ano seguinte, o Tribunal Militar Internacional instituído em Nuremberg, Alemanha, acusou os líderes nazistas de haverem cometido ‘crimes contra a humanidade’, e a palavra ‘genocídio’ foi incluída no processo, embora de forma apenas descritiva, sem cunho jurídico. (ENCICLOPÉDIA DO HOLOCAUSTO – UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, [s.d.])

A partir de uma série de investigações sobre a Shoah, a guerra civil na Espanha, o fascismo na Itália, bem como as ditaduras latino-americanas – como a vivida no Brasil durante os longos 20 anos do Século XX –, entendemos definitivamente a noção de direitos humanos não como algo absoluto e inalienável, mas uma questão contingencial e em constantes disputas na Öffentlichkeit democrática. A intenção de destruir total ou parcialmente os judeus, além de instaurar um novo termo na linguagem, o genocídio, também foi responsável por um evento traumático sem volta, que se fincou no núcleo da noção de progresso, daquele ser humano conceituado no século das luzes, assim como tal gesto sem referenciais prévios chancelou um procedimento sem igual de autoritarismo e força do poder vigente opressor pelos corpos em uma sociedade, instaurando simultaneamente uma crise ética e uma prática histórica rigidamente agressiva que volta e meia assola nossos direitos.

Figura 2 - The Auschwitz Album, ca. 1944. Yad Vashem - Museu do Holocausto. Fonte: https://www.yadvashem.org/yv/en/ exhibitions/album_auschwitz/index.asp

O regime nazista, ao desnacionalizar seus cidadãos judeus, abre caminho a uma prática comum 48


do Estado moderno de legitimação da barbárie em um grau nunca antes visto na história, e nos fazem pensar como essa mesma desnacionalização se tornará uma forte arma da política totalitária. Esta retirada de um pertencimento a um lugar e a uma comunidade culminará no projeto dos guetos, campos de concentração e na solução final do extermínio judeu. Na figura 02, mulheres e crianças na chegada de Birkenau (judeus deportados da Hungria) são vistas na terrível plataforma conhecida como a rampa, um lugar destinado a triagem. Ao saírem dos trens, essas pessoas desprovidas de direitos enfrentavam, sem ter conhecimento prévio, o processo de seleção, do qual muitos eram imediatamente enviados para a morte, enquanto os remanescentes eram direcionados para o trabalho escravo. As cicatrizes da história são inapagáveis e, no Brasil, em diálogo com a privação dos direitos temos o exemplo da ditadura como um dos nossos grandes traumas que, muito distante de se encerrar os debates, mostra-se um evento persistente à atualidade. Daí, Maria Angelica Melendi nos lembra em seu projeto de pesquisa O que resta da ditadura. Transgressão na arte de América Latina entre dois séculos. (2016-Atual) que a longa duração da ditadura (1964-1985) não só circunscreveu marcas agressivas na história de nossa sociedade como naturalizou definidamente malesas e procedimentos autoritários. Assim, como um fantasma a nos assombrar, os longos anos de censura desestimularam propostas de uma arte com caráter crítico-reflexivo que agisse explicitamente sobre o campo do real, promovendo muitas vezes em parte da produção artística nacional obras alegóricas, de caráter formal e composição visual harmônica4. É então nesse sentido do trauma e da barbárie que o homem é convocado a uma nova ética, esta que por sua vez será a démarche de Agamben em seu Homo Sacer III, abrindo uma pasta investigativa sobre o arquivo e o testemunho. Para este autor, e alargando as conceituações foulcaultianas desenvolvidas em sua arqueologia do saber é que ele entende, na constituição do arquivo, um pressuposto; a exigência que o sujeito ocupe uma posição vazia, i.e., que este efetue um gesto neutro, uma intenção esvaziada, dessubjetivada, desprovida de autoria, tornando-se um ser qualquer que não apresente uma potência subjetiva. O testemunho, por sua vez, é a contraforma do sujeito vazio, pois é justamente nesta posição vazia que este mesmo sujeito deve atuar, para que porte a parole através de sua própria langue. Ipsis litteris: Enquanto a constituição do arquivo pressupunha deixar fora do jogo o sujeito, reduzido a simples função ou a uma posição vazia, e o seu desaparecimento no rumo anônimo dos enunciados, no testemunho a questão decisiva se torna o lugar vazio do sujeito. (AGAMBEN, 2008, p. 146).

O arquivo apresenta-se então entre o dito e o não-dito, ao passo de que o testemunho designa uma relação entre o dentro e o fora da langue. Entre o dizível e o não-dizível em toda língua. Entre uma vontade de potência do dizer e sua forma de existência, Ipsis litteris, entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer. Em oposição ao arquivo, que designa o sistema das relações entre o não-dito e o dito, denominamos testemunho o sistema das relações entre o dentro e o fora da langue, entre o dizível e o não-dizível em toda língua - ou seja, entre uma potência de dizer e a sua existência, entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer. (AGAMBEN, 2008, p. 146).

Nesse sentido o sujeito trata-se de uma testemunha da palavra (que per se tem a impossibilidade falar), e a subjetividade existente entre a língua e o arquivo – da possibilidade de falar à impossibilidade da palavra – que formam o jogo paradoxal de estar ambos em um sujeito ou em uma consciência, esta indivisível intimidade é o testemunho.

4 Informações extraídas da descrição do projeto desenvolvido atualmente pela pesquisadora em âmbito acadêmico na Universidade Federal de Minas Gerais.

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III. A partir justamente da significativa potência subjetiva presente no testemunho é que a artista escocesa Susan Philipsz realizará seu trabalho Study for Strings (2012), figuras 03 e 04, apresentado no programa da dOCUMENTA 13. Em tal projeto, Philipsz propõe uma interpretação da epônima Studie pro smyčcový orchestr (Studie für Streichorchester / “Studie” for string orchestra), peça composta em 1943 pelo músico tcheco Pavel Haas (1899-1944) durante sua estada em Theresienstadt, o declarado híbrido de gueto e campo de concentração aberto pelos nazistas em 24 de novembro de 1941 para judeus da República Tcheca, cujo funcionamento aproximado de três anos, apesar da atmosfera brutal e inóspita que o circundou, teve em seus habitantes uma mostra de resistência através da arte.

Figura 3 - Susan Philipsz. Study for Strings, 2012. Instalação sonora composta por 24 canais sonoros especializados pela estação central de trem de Kassel (Kassel Hauptbanhof). dOCUMENTA 13, Alemanha. Duração: 13’ 00’. Foto: Detalhe do Livreto. Fonte: http://d13.documenta.de/research/assets/Uploads/Studyforstrings.pdf

A fortaleza construída pelos austríacos no século 18, a pedido do imperador austríaco José II de Habsburgo na região norte da Boêmia, destinado a ser parte integrante da idealização não conclusa do sistema monárquico de fortalezas, tornou-se um fosso quando os soldados de Hitler tomaram Praga e passaram a ocupar o lado ocidental do país em 1941 e, como destaca a professora e psicóloga social Ecléa Bosi (1936-2017) em seu artigo sobre tal cidade, a transformação da Boêmia-Morávia num Protetorado do Reich (Reichsprotektorat) acentuou medidas anti-semitas cada vez mais opressivas em busca do que chamavam de purificação. (BOSI, 1999, p. 11). Em adendo, a testemunha Ruth Elias, na época com seus 20 e poucos anos, única sobrevivente de uma família que por lá transladou, relata: “Em Theresienstadt estava a elite da época, professores, pensadores e artistas” (ELIAS apud BULAU, 2021). O Reich o usou como uma imagem-farsa, mostrando Terezin como um lugar de habitação intelectual e bem-intencionado com pessoas de diversas cidades distintas. “Ela lembra que vinha gente da Dinamarca, da Áustria e da França, judeus burgueses e intelectuais de toda a Europa. O lugar era considerado gueto-modelo pelo regime nazista” (ELIAS apud BULAU, 2021), quando no fundo esta grande e cruel falácia, a priori de segregação, era apenas uma armadilha da governabilidade necropolítica hitleriana. Além do compositor tcheco Pavel Haas (18991944), muitas figuras ligadas ao campo artístico e musical5 foram alojadas no gueto, muitas delas professores universitários, músicos, artistas e escritores.

5 Para mais informações sobre a música produzida não apenas em Terezín, mas em outros campos durante a Shoah, cf. o projeto Music and the Holocaust, realizado com apoio da organização não-governamental de educação e treinamento ORT House. Disponível em: <https://holocaustmusic.ort.org/places/theresienstadt/>. Acesso em: 27 Set. 2021.

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Figura 4 - Susan Philipsz. Study for Strings, 2012. Instalação sonora composta por 24 canais sonoros especializados pela estação central de trem de Kassel (Kassel Hauptbanhof). dOCUMENTA 13, Alemanha. Duração: 13’ 00’. Courtesia da artista, Galeria Tanya Bonakdar e Isabella Bortolozzi Galerie. Foto: Eoghan McTigue. Fonte: https://www.moma.org/ interactives/exhibitions/2013/soundings/artists/11/works/

Assim, sublinhamos a superficialidade da propaganda a qual Terezín foi refém para que o regime nazista pudesse implantar uma positiva imagem de seu projeto necropolítico antissemita formado por guetos, campos de concentração e aqueles de extermínio instaurados por diversas partes da Alemanha e territórios dominados pelos alemães no decurso da segunda guerra. Sabe-se que no cerne do estado moderno a vida natural passou a ser atrelada e governada pelas noções do político, e que essa mesma política tomou o poder do humano. O controle biopolítico da vida, no nazismo, buscava eliminar a diferença em busca da pureza do mito da raça ariana. Quando ainda detinha direitos como cidadão antes de ser deportado, o músico tcheco Pavel Haas – autor da peça a qual Susan Philipsz converterá numa instalação sonora – sofreu uma perseguição até o momento em que foi proibido de apresentar suas obras. Em 2 de dezembro de 1941, Haas foi enviado em um transporte de Brno para Theresienstadt, onde continuou a compor. Sua primeira composição no ‘gueto modelo’ foi a obra coral Al S’fod (Do Not Lament), baseada em um texto hebraico de David Shimoni, seguida por Study for Strings (1943), e as Four Songs on Chinese Poetry (1944), ambos realizados por prisioneiros na própria Theresienstadt. (MUSIC AND THE HOLOCAUST; ORT HOUSE, 2000-2021).

Instalar o trabalho na Kassel Hauptbahnhof também levantava uma questão importante a respeito do funcionamento econômico da própria cidade durante o período da guerra, que em grande parte se dava pela produção de armamento bélico e peças para tanques pela construtora de locomotivas Henschel & Sohn, fundada em 1800, que durante a segunda começou a produzir armamentos. Em 1955, dez anos após o fim da guerra, a criação da dOCUMENTA sob cargo de Arnold Bode marcava a história de uma reconstituição cultural da cidade, que tinha na imagem do Fridericianum, construção de 1779, o primeiro museu público da Europa - este que por sua foi parcialmente destruído nos bombardeios de novembro de 1944. A cidade sofreu bombardeios de 1942 até 1945 e, para se ter uma ideia, entre os dias 22 e 23 de outubro de 1943, a Real Força Aérea Britânica (RAF) já havia atacado a cidade com 569 bombardeios sobre seu centro, o que devastou de forma tão abrupta que os incêndios duraram 7 dias. Estima-se que a Kassel Hauptbahnhof tenha sido 90% destruída durante esses ataques, principalmente pelo fato da 51


cidade produzir armas e estar localizado em um ponto estratégico de transporte na Alemanha. Frente ao presente, algumas informações históricas que integram o livreto do trabalho de Philipsz completam sua fração discursiva. Entretanto, como relata o escritor catalão Enrique Vila-Matas, que também participou do evento no período, em seu livro Não há lugar para lógica em Kassel: “Study for Strings era uma instalação sóbria, uma obra simples que mergulhava diretamente na grande tragédia do fim da utopia de um mundo humanizado.” (VILA-MATAS, 2015, p. 81). Um projeto de angústia e vazio, que Vila-Matas completa em suas observações: “[...] uma música bela, mas de uma tristeza imensa, uma espécie de música fúnebre para fracassados [...]” (VILA-MATAS, 2015, p.81) que desprovidos de direitos e sonhos, teriam, em grande número, suas vidas abruptamente encerradas.

IV. Esta figura do judeu desolado compõe o esfacelamento do mote direito a ter direitos. Agamben nos fala muitas vezes que para tornarmos um cidadão na bíos precisamos primeiramente ter o direto básico de pertencer a uma comunidade, de ser aceito por nossos contemporâneos nas esferas macro e micro. As figuras do apátrida, assim como a do continuamente atual refugiado, irrompem com estas condições básicas. Seu (des)pertencimento a uma comunidade, sua vulnerabilidade física, social e o conseguinte desvanecimento dos afetos no espaço coletivo são catalizadores, para que eles sejam atraídos pelo imã do ódio, da repulsa e mesmo da agressão física e psicológica os quais sofrem massivamente essas pessoas, quer sejam em medidas tomadas por governos de extrema-direita quanto por cidadãos que identificam-se com a brutal face do eixo e das ideologias movidas pelo ódio. A tragédia do holocaustum (do grego: totalmente queimado; vítima de um incêndio), evento que por sua vez os judeus preferem intitular Shoah (do hebraico: destruição, catástofre ou ruína) nos trazem um debate sobre a relação dos corpos frente ao sistema, entre a biopolítica que nos falava Foucault e o atual conceito de necropolítica esmiuçado por Mbembe. As disputas por direitos zum Zustand demokratischer Öffentlichkeit mostra-nos que esse mesmo espaço vive em constantes disputas. Resta-nos pensar como esses traçados possíveis presentes nas relações entre democracia/direitos humanos, espaço público/ privado podem nos auxiliar na defesa do presente, e como parece-nos cada vez mais atual e urgente escavar a história como um arqueólogo não para prender-se a um passado, mas para reconstituir as cinzas e vestígios desse mesmo tempo anterior nas mãos do presente. É este o importante gesto anacrônico o qual devemos nos atentar; atualizar no presente essas escavações para que, diante de sua fragmentada arkhé, possamos elencar dentro dessa mesma atualidade uma interpretação do antes não como um bloco solidificado imutável, mas algo capaz de sofrer transfigurações; golpear a história, conturbá-la à revelia, escová-la a contrapelo como nos fala Benjamin, para que a partir disto possamos constituir contínuas ressignificações desta matéria viva.

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Referências AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer (Edizione integrale). Macerata: Quodlibet, 2021. ______. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 9. ______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008. BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de História. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BOSI, Ecléa. O campo de Terezin. In: Revista Estudos Avançados, v. 13, nº 37. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados Universidade de São Paulo (IEA-USP), 1999, pp. 7-32. ELIAS, Ruth apud BULAU, Doris. 1941: Aberto o campo de concentração de Theresienstadt. Deutsche Welle Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/1941-aberto-o-campo-deconcentra%C3%A7%C3%A3o-de-theresienstadt/a-676518>. Acesso em: 24 Set. 2021. O que é genocídio? Enciclopédia do Holocausto – United States Holocaust Memorial Museum, [s.d.]. Disponível em: <https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/what-is-genocide>. Acesso em: 23 Jun. 21. PAVEL Haas. Music and the Holocaust; ORT House, 2000-2021. Disponível em: <https://holocaustmusic. ort.org/places/theresienstadt/pavel-haas/>. Acesso em: 28 Set. 2021. THE Auschwitz Album, 2021. Yad Vashem - Museu do Holocausto. Disponível em: <https://www. yadvashem.org/yv/en/exhibitions/album_auschwitz/index.asp>. Acesso em: 28 Set. 2021. VILA-MATAS, Enrique. Não há lugar para lógica em Kassel. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

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Distinção na Apropriação Cultural: Os Modernistas Canibais Distinction and Cultural Appropriation: The Cannibal Modernists Beatriz Arcoverde de Oliveira1 beatriz.arcoverde@gmail.com

RESUMO: Este artigo é uma exploração da história da apropriação cultural nos movimentos artísticos modernistas latino-americanos do século XX, a partir da teoria da distinção, apresentada por Pierre Bourdieu. Argumenta-se que, embora a Distinção seja um modelo/teoria forte e forneça o conjunto mais abarcante de instrumentos disponíveis para compreender o destino dos campos da arte moderna, não leva em conta a apropriação cultural como fator que eleva a estética popular para o pertencimento acatado pelo mundo da arte, ou seja, como um modo de distinção. Exemplos de apropriação cultural por vanguardistas, especialmente em espaços de culturas híbridas como a América Latina, trabalham para expandir o argumento de Bourdieu em favor da Distinção, que tem continuidade como consumo “onívoro” de arte nos tempos contemporâneos. PALAVRAS-CHAVE: Bourdieu; distinção, apropriação cultural; modernismo latino-americano. ABSTRACT: This article is an exploration of the history of cultural appropriation in Latin American modernist movements of the early twentieth century, through the lens of the theory of distinction, put forth by Pierre Bourdieu. It argues that even though distinction is a strong model/theory and provides the most comprehensive set of instruments available to understand the fate of modern art fields, it does not take into account cultural appropriation as a factor which furthers popular aesthetics into the realm of the fine arts, or as a mode of distinction in this field. Examples of cultural appropriation by avant-gardes, especially in spaces of hybrid cultures such as Latin America, work to expand Bourdieu’s argument for Distinction, which gain continuity as “omnivore” consumption in contemporary times. KEYWORDS: Bourdieu; distinction; cultural appropriation; Latin American Modernism.

1 Beatriz Arcoverde de Oliveira é socióloga pela Universidade de British Columbia, no Canadá e historiadora da arte pela Universidade de Lindenwood, nos EUA. Vive em Olinda, Pernambuco, onde trabalha com produção cultural de diversos artistas e pesquisa a apropriação da estética da cultura popular na arte contemporânea.

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Introdução Frida Kahlo é hoje a artista mexicana mais conhecida do mundo. Além de lembrada como pintora, ela tornou-se um símbolo. É representante do modernismo mexicano que surgiu após sua Revolução Cultural (1910-1920), e tornou-se famosa mundialmente. Um aspecto que a tornou tão icônica é sua figura: a artista fez amplo uso do pitoresco e da estética popular do México ao criar a sua, tornando-a moda no seio das elites do mundo da arte. Não obstante, também se pode indicar como apropriação cultural o uso da estética indígena e popular em seus trabalhos. Na lente de Pierre Bourdieu (2015), um subproduto de qualquer ato de consumo cultural é a criação de distinções sociais, logo, divisões sociais. No entanto, embora a Distinção seja um modelo/teoria forte, não considera a apropriação cultural como um fator que eleva a estética popular para o campo das belas-artes. Exemplos como Frida e outras vanguardas podem expandir o argumento da Distinção. Ao entrarmos no século XX, observa-se uma incorporação cada vez maior da estética popular e uma procura de autenticidade no primitivismo em muitos movimentos artísticos reconhecidos. Isto acontece na arte europeia e, enquanto fenômeno, pode ser observado em movimentos de vanguarda artística do Sul Global e da América Latina, como México e Brasil. Alguns artistas do século XX, como os mexicanos Diego Rivera, Rufino Tamayo, Frida Kahlo, e artistas brasileiros como Cândido Portinari, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti, utilizaram tais ideias para expressar e reforçar mudanças políticas e sociais e, dentro delas, fizeram amplo uso da estética popular. Bourdieu (2015) atribui um valor à cultura erudita sem contar que, frequentemente, apropriase da estética popular. O autor vê a estética popular como um reflexo rudimentar da arte erudita, e não atribui grande valor à cultura e aos esforços artísticos das massas (ibid., p. 220). Este artigo é uma exploração destes conceitos, estruturado em torno da ideia de apropriação cultural como uma forma de distinção. A estética “popular” assume aqui características que, ao falar de “popular”, abarca sinteticamente todas as situações de subordinação, e dá uma identidade partilhada a grupos que convergem, a partir de Canclini (2008, p. 272). Isto liberta o termo “popular” de uma conotação de classe e permite englobar a estética das massas e dos grupos minoritários e subalternos. É importante pensar tais definições porque esta análise busca compreender a forma como a distinção é colocada pelo consumo e produção de arte que tenta se afastar da estética hegemônica, assumindo a estética popular e transformando-a em vanguarda. É imperativo ilustrar a teoria apresentada por Bourdieu em Distinção: uma crítica social do julgamento do gosto, de 1984. Essa teoria potencializa estudos sobre cultura e consumo cultural, e intenta expor os mecanismos sociais que estão por trás da formação do gosto, beleza, do desejável, e da racionalização do processo de experiência estética. O autor compreende que estes operam nas subjetividades e individualidades dos sujeitos sociais e na esfera da partilha social. Estes indivíduos constroem seu repertório de mediação com o mundo a partir de uma dimensão coletiva, portanto, mesmo a mais íntima das subjetividades, como a aquisição do gosto, é construída socialmente (ibid., p. 34). Para Bourdieu,o gosto é a propensão e a capacidade de se apropriar de uma determinada classe de classificados, objetos ou práticas. Assim, quando a cultura é consumida, as pessoas também estão a se classificar e a distinguir-se daqueles que não consomem os mesmos produtos culturais. As pessoas estão sempre à procura de produtos culturais que os tornarão distintos – dentro do campo em que existimos. Isto é bastante claro no campo do mundo da arte. Na distinção, há poucos indivíduos que compreendem as regras da arte e estabelecem o jogo – aqueles que têm um elevado capital econômico e cultural e esta essência no seu habitus, mais a posição no campo (ibid., p. 395). Ser distinto significa ter o conjunto de ferramentas para compreender profundamente a arte, que outros não teriam. Bourdieu propõe que “gosto puro” baseia-se na recusa do gosto impuro da sensação – formas simples, que se reduzem aos sentidos. Este tipo de arte é facilmente decodificada e oferece prazer imediato, enquanto a “arte legítima” provoca prazer diferido, exigindo respeito e distância. Neste sentido, o princípio do gosto puro de Kant é uma recusa aos objetos que impõem o prazer. Pura estética é a racionalização do ethos (ibid., p. 493). 55


Ao introduzir a estética popular, Bourdieu argumenta que é “constantemente obrigado a definirse em termos da estética dominante” (ibid., p. 30). Quando confrontados com obras de arte “legítimas”, a maioria das pessoas sem competência específica aplica-lhes os esquemas perceptuais do próprio ethos (ibid., p. 66). Trata-se de realizar um trabalho de definição numa estrutura espelhada, em que as disposições estéticas burguesas e da classe trabalhadora são construídas servindo como antíteses umas das outras. Este artigo argumenta que, no campo da arte, a apropriação cultural da estética popular é incorporada à estética dos grupos dominantes, e o que outrora foi considerado “baixo-núcleo”, é revertido em algo que produz distinção social para aqueles criadores culturais de elite. Tal como o consumo cultural de arte feito pelas classes mais baixas, e outras, que trazem a distinção no consumo cultural revela um sujeitoque se torna um “onívoro”, tendência apresentada pela capacidade de consumir todo tipo de cultura, como traz Patterson e Kern (2001). A apropriação cultural significa a adoção inadequada e não reconhecida de costumes, práticas, ideias ou estéticas de uma sociedade por membros de outras sociedades, tipicamente mais dominante, de acordo com Root (2019, p. 6). Atualmente, isto questiona até que ponto as culturas poderão existir fora da capital mundial ou, melhor dizendo, em que termos ocorrerá o hibridismo. Como conceito acadêmico, a apropriação cultural coloca as artes/culturas em xeque no tocante à autenticidade, que assumiu a legitimidade cultural e a aura do mundo da arte. Difere de uma troca, porque implica um desequilíbrio de poder inerente. Há uma explosão da ideia de apropriação cultural no final do século XX, devido a ocorrências socio-históricas do que poderá ser o cheque do século do imperialismo cultural. Na virada do século XX, 85% do mundo era dominado por potências europeias, e é este contexto histórico que os pintores modernistas assumem. Com tanta coisa acontecendo dentro da apropriação cultural, o foco dos movimentos modernistas de vanguarda no primitivismo deve-se ao excesso de sua política. A escolha da estética não-ocidental para artistas como Gauguin, Picasso e Derain, não foram simples valores inovadores, foram declarações políticas incorporadas na crítica social, e seu objetivo seria ter o “exótico” em pé de igualdade com a arte ocidental, que era vista como dogmática e decadente, de acordo com Leighten (1990). As empresas coloniais dos séculos XIX e XX tornaram-se demasiado caras para as potências ocidentais se empenharem, no entanto, a conquista e a mercantilização das formas estéticas tradicionais e populares continuam possíveis. Através da apropriação cultural, outras culturas tornaram-se sinais e fragmentos de um mundo destruído antecipadamente, de uma diferença e autenticidade que poderia ser esteticamente consumida pelo Ocidente, prevalecendo à justaposição de subalternos, como aponta Canclini (2008). Entendemos que a apropriação cultural não acontece necessariamente através das fronteiras, e sim por grupos de pessoas. Além disso, uma discussão séria sobre tal categoria requer cautela, pois estão em jogo várias disputas tensas, e também exige uma discussão sobre a propriedade da cultura e sobre quem é dono da estética e das ideias. É este cruzamento, entre a política progressista e o que acontece no campo da arte, que é interessante de desconstruir para compreender as afirmações políticas dos artistas de esquerda, de seus movimentos e quais podem ser os seus impactos. Devido aos elevados ideais associados à arte ocidental, muitas pessoas não estão dispostas a reconhecer que a estética depende de conjuntos explícitos de relações de poder. Esta relutância parece, na melhor das hipóteses, desonesta. Essa dependência é óbvia na forma como tipos particulares de imagens de culturas colonizadas são cuidadosa e habitualmente mantidas como fontes do que se chama “inspiração”.

Metodologia Este artigo é uma revisão analítica da Distinção, tendo em conta a estrutura cultural de dois países latino-americanos – México e Brasil, e suas vanguardas artísticas do século XX. Utilizo uma metodologia qualitativa, que examina dados bibliográficos e históricos, juntamente com observações sobre obras de 56


arte específicas, a fim de argumentar que a estética popular não é apenas um mau reflexo da estética dominante e, muitas vezes, é ela quem alimenta a estética dominante. O artigo apresenta a investigação de casos específicos, em que a estética popular se tornou sinal de distinção no México e no Brasil, e faz discussões sobre a importância desta investigação e as possibilidades de investigações posteriores.

Discussão/Análise: Uma América Latina Antropofágica

Figura 1 - Diego Rivera (1886 - 1957). Epopeya del pueblo mexicano, 1929-1935. Mural, 7,49 X 8,85 m. Palácio Nacional, Cidade do México. Fonte: ArtSTOR Digital Libraries.

Durante o processo de descolonização, há muitos exemplos de países latino-americanos procurando reiterar suas raízes estéticas. No México, após a Revolução de 1910-1920, houve escritores, pintores e artistas que assumiram a estética das culturas nativas e a elevaram ao plano de identidade nacional. Isto é facilmente reconhecível nas obras dos muralistas, que pintaram a cultura nativa com a simbologia indígena e o orgulho nacionalista. O caso brasileiro vê uma trajetória semelhante, e os artistas começam a usar os sinais da arte folclórica, nativa e popular como sinal de diferenciação e distinção cultural nos anos 1920, com o início dos movimentos modernistas. Canclini tem sido um dos proeminentes investigadores a questionar os estudos culturais na América Latina. Ele propõe pensar as complexidades de lidar com a apropriação da cultura popular num contexto em que “a modernidade ainda não terminou a sua chegada” (2008, p. 33). Assim, a fim de compreender o diálogo vivo que acontece no contexto contemporâneo latino-americano entre cultura popular, “alta cultura”, tradição e modernidade, o autor faz uma análise interdisciplinar, elaborando uma interpretação das contradições e fracassos das teorias que explicam a cultura moderna e pós-moderna, e dentro dela, uma leitura da Distinção. O México e o Brasil são grandes exemplos de apropriação cultural nas artes, tornando-se um ponto alto no esquema das distinções, onde a admiração pelo sistema estético popular pode conotar a mente aberta e, ao mesmo tempo, lisonjear as pretensões estéticas ou políticas do conhecedor, como aponta Root (2019). No Brasil e no México, artistas produziram composições radicais de modernidade social e política. Há uma ruptura social, que retirou obras de arte do museu e da coleção privada para espaços públicos com muralismo, artes gráficas, programas de Educação Popular, e houve projetos governamentais 57


conscientes, que ligaram a estética popular às identidades nacionais, de acordo com Canclini (2008). Estes projetos cívicos foram fundamentados numa crítica ao colonialismo como projeto original de modernização, e numa rejeição de sua violência continuada ao longo do século XX. Como o discurso colonial se baseava em violentas formações raciais e de gênero, os movimentos modernistas confrontaram estes conceitos na forma como na substância do seu trabalho, de acordo com Gabarra (2019). Durante o período pós-revolucionário mexicano, por exemplo, as políticas culturais que visavam à integração da alta cultura, da cultura popular e da cultura de massas, por um lado, incorporaram a cultura popular na educação, murais e grandes monumentos; por outro lado, promoveram a popularização da cultura internacional de elite nas escolas e nos coletivos populares e operários, como aponta Canclini (1993). Muito importantes para este esforço foram as obras de três grandes muralistas no México – Diego Rivera, José Clemente Orozco, e David Alfaro Siqueiros. Os rituais indígenas, a arquitetura, a vida pré-hispânica, são todos representados em suas obras. O próprio muralismo era uma prática préhispânica, frequentemente referenciado (figura 1), de acordo com Canclini (2008). A maioria destes murais retratou os trabalhadores que vão continuar a construir e unificar o México, seus camponeses e as “mães de milho” (figura 2). Rivera veio da elite e esteve à frente de uma série de cargos poderosos ao longo da sua carreira, mas o que ele pintou foi a estética da vida indígena e camponesa, uma realidade que não era sua.

Figura 2 - David Alfaro Siqueiros (1896 - 1974). Mural, cerca de 1930. Castillo de Chapultepec, Cidade do México. Fonte: ArtSTOR Digital Libraries.

Frida Kahlo é outro exemplo de artista de vanguarda que se apropriou da estética popular no México. Kahlo nasceu em uma família de classe média alta, de um pai descendente de judeu-alemão, e abraçou a identidade de “mestiça” de forma muito política. Seus autorretratos são representativos de uma subjetividade autogerada, conscientemente sexuada e racializada, aponta Bakewell (1993). Em sua arte, há uma apropriação do que se argumentava ser primordial na essência da mexicana, que vai de uma violenta idealização anti-espanhola do México asteca, até um interesse mais racional na “questão indígena” como chave para uma verdadeira cultura mexicana, assim, houve um forte enlace de culturas camponesas e rurais. Para além da sua arte, Frida defendeu a ideia de celebrar o primitivismo em sua persona públicaartística. No dia do seu casamento com Diego Riviera, em 1929, pegou emprestado o vestido da sua governanta indígena para a cerimônia. O vestido que ela usou foi um conhecido como vestido Tehuana, 58


das mulheres do Istmo de Tehuantepec, Oaxaca. A partir daí, o vestido Tehuana torna-se um elemento chave da sua auto-apresentação – tanto no seu vestir quotidiano como no seu trabalho e iconografia (figura 3).

Figura 3 - Frida Kahlo e Diego Rivera no dia de seu casamento, 1929. Autoria desconhecida. Fonte: ArtSTOR Digital Libraries.

O Brasil teve um processo colonial semelhante, em muitos aspectos. Os brasileiros revelam-se uma população altamente miscigenada, na qual os descendentes dos colonizadores europeus compõem a elite, e uma vasta população de negros, mestiços e indígenas permanecem marginalizados. Desde o seu início, o Brasil foi considerado culturalmente rico, mas em termos do campo da arte, o que aconteceu na Semana de Arte Moderna, em 1922, colocou a arte brasileira no mapa internacional e exemplifica o argumento deste artigo. Um grupo de artistas, da metrópole São Paulo, dedicou uma semana à arte moderna, projeto que decorreu ao lado do governo, que organizou celebrações centenárias. A ênfase da Semana foi o modernismo e a identidade nacional, onde foram dadas palestras sobre arte moderna, foram tocados novos estilos de música e foram lidos poemas difíceis em voz alta. Entre as obras exibidas, destacaram-se as poesias de Mario de Andrade e as pinturas de Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti. Alguns dos traços mais pronunciados das obras exibiam um desejo de livrar o Brasil da arte, literatura, ideias e ideologias importadas. Mais tarde, o artista Oswald de Andrade concebeu este processo como uma “antropofagia” artística e cultural, ou canibalismo, no qual os artistas brasileiros devoravam as culturas dos povos europeus, indianos e africanos para produzir a sua, própria e única. Um dos artistas mais conhecidos do Brasil, Cândido Portinari, ganhou tanta influência que seus murais adornaram a Sala de Leitura Hispânica na Biblioteca do Congresso dos EUA, em 1940 (figura 4). O “popular” é um tema óbvio dos painéis, que mostram trabalhadores de pele castanha num local ao 59


Figura 4 - Candido Portinari (1903 - 1962). Catequese, 1940. Mural, 4,94 x 4,63 m. US Library of Congress, Washington D.C. Fonte: ArtSTOR Digital Libraries.

Figura 5 - Candido Portinari (1903 - 1962). O Lavrador de Café, 1934. Óleo sobre tela, 100 x 81 cm. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Fonte: ArtSTOR Digital Libraries.

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lado do porto. Há representações de cestos de frutas tropicais, crianças e cores ousadas, que muitas vezes são ligadas a partes quentes e tropicais. Sua pintura mais famosa, “O Lavrador de Café”, de 1934, retrata um trabalhador negro, típico das fazendas de café do Sudeste do Brasil, descalço e segurando uma pá (figura 5). No quadro, o homem aparece com as mãos e pés muito maiores do que o resto do corpo, o que demonstra a aproximação de Portinari ao expressionismo europeu, assim como enfatiza sua tentativa de destacar a dificuldade que os trabalhadores do campo tiveram de suportar nessa altura. Portinari era, como muitos artistas de vanguarda de seu tempo, membro do Partido Comunista e muito ativo politicamente. Outro exemplo de antropofagia na arte brasileira é a obra Abopuru, de 1928, de Tarsila do Amaral. Hoje em dia, reconhecida como um símbolo chave do movimento, a pintura parece representar uma mistura de arte popular brasileira e arte colonial latino-americana barroca, com influências do cubismo e do surrealismo. É uma pintura a óleo de um indivíduo desumanizado, com proporções distorcidas e sem rosto, mas muito detalhada, com cores brilhantes, um sol brilhante sobre o céu azul e um enorme cacto. É certamente influenciada pela idealização e técnicas europeias, mas abrange cores, temas e colorações que são hoje facilmente reconhecíveis como brasileiras – e antropofágicas. Combina estudos da abstração ameríndia e da arte diáspora africana com a sua exposição aos movimentos europeus, para conceber um plano de imagem fundamentalmente diferente. O que se vê com estes movimentos artísticos de vanguarda é que uma elite, urbana e branca, fez um pesado uso da estética popular, tanto das culturas indígenas como negras. Nas empresas artísticas, as vanguardas desculpam-se frequentemente da responsabilidade, sendo a estética do outro tomada como capital cultural e, muitas vezes, para aqueles que a consomem com ironia e têm o poder do desprendimento. Quando isto acontece, o que antes era criminalizado, estereotipado e visto como carente de criatividade, gera o tipo de capital cultural que cede o caminho à Distinção. Estes são exemplos de membros de um grupo dominante que explora, com pouca compreensão das tradições, culturas de grupos menos privilegiados, realçando um enorme desequilíbrio de poder. O que é então chamado de antropofágico e transformado em símbolo nacionalista é também, embora não somente, violência e apropriação simbólica.

Conclusão Talvez seja desagradável supor a ideia da arte como um instrumento para a segregação e manutenção das desigualdades, como aponta Bourdieu, ao pensar que ao consumir um produto cultural, se cometa invariavelmente um ato de violência simbólica. Talvez alguns queiram desafiar a Distinção por receio de que sua teoria não dê espaço suficiente para que os agentes tomem as coisas em mãos, mudem a si próprios, seu trabalho ou suas relações no terreno de forma autônoma. O modelo de formação de gosto proposto por Bourdieu não aborda a apropriação cultural e esta “elevação” de produtos culturais per se; mas o fato é que os criadores daquilo que Bourdieu consideraria sempre um empréstimo legítimo de culturas populares, se apropriam da estética popular o tempo todo. Ao examinar estas ideias, torna-se mais compreensível o sucesso de Frida Kahlo e das suas dotações imaginativas. As regras da arte são complexas de jogar. No entanto, manter uma consciência das consequências de que cada ato é social é essencial para compreender o mundo social. O conceito de apropriação cultural que existe hoje não estava em vigor no início do século XX, quando o Primitivismo estava no seu auge e Picasso vestiu os seus modelos de tela com máscaras africanas. A compreensão do desequilíbrio de poder e da subjugação de grupos desfavorecidos com base na apropriação cultural só é possível com o reconhecimento do poder de troca do consumo cultural para enfrentar as injustiças sociais. Assim, as vanguardas politicamente engajadas ficam com um desafio: como radicalizar a estrutura e a forma, e abandonar o realismo e a narrativa, sem abandonar questões centrais de conteúdo e alusão às preocupações da vida real. 61


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Um panorama da crítica de arte em Goiás (1942-2020) Una panorámica de la crítica de arte en Goiás (1942-2020) Bianca Casanova1 UFG - biancacasanovahistoriadora@gmail.com

RESUMO: Este artigo busca compreender parte do ideário artístico da sociedade goiana através da análise da crítica de arte realizada em Goiás em intersecção com aquela feita acerca da arte goiana, seja ela escrita por críticos goianos ou não. Procuramos localizar as nuances interpretativas sobre a atividade artística goiana sob diferentes perspectivas de críticos de outros estados, reputados nacionalmente e convidados a analisarem obras goianas, e aqueles radicados em Goiás. Interpretaremos críticas encontradas em jornais, revistas e catálogos de arte goiana de todas as décadas, a partir de 1942, data da inauguração de Goiânia. Concluiremos com o entendimento de que há majoritariamente na crítica um ufanismo da arte local, em processo similar a diversas outras regiões do país, que em Goiás assume uma narrativa voltada à modernidade e ao progresso próprios do discurso da fundação de Goiânia. PALAVRAS-CHAVE: Crítica de Arte Brasileira; Crítica de arte em Goiás; História de Goiás. RESUMEN: Este artículo busca comprender parte de la ideología artística de la sociedad de Goiás a través del análisis de la crítica de arte realizada en el estado en intersección con la realizada sobre el arte de Goiás, ya sea escrita por críticos de Goiás o no. Buscamos ubicar los matices interpretativos sobre la actividad artística de Goiás desde diferentes perspectivas de críticos de otros estados, reconocidos a nivel nacional e invitados a analizar obras de Goiás, y aquellos radicados en Goiás. Interpretaremos críticas encontradas en periódicos, revistas y catálogos de arte de todas las décadas, desde 1942, fecha de la inauguración de la ciudad de Goiânia. Concluiremos entendiendo que en la crítica hay sobre todo un orgullo por el arte local, en un proceso similar a varias otras regiones de Brasil, que en Goiás asume una narrativa centrada en la modernidad y en el progreso propios del discurso de la fundación de Goiânia. PALABRAS-CLAVE: Crítica de arte brasileña; Crítica de arte en Goiás; Historia de Goiás.

1 Graduada em Direito, chegou a advogar por pouco tempo. Licenciou-se e tornou-se mestra em História pela UFG. Atualmente leciona História da América Colonial na Faculdade de História da UFG, e faz doutorado em História sob orientação da dra. Maria Elízia Borges, pesquisando a biografia da marchand Célia Câmara e procurando compreender o mercado de arte goiano através da sociologia da arte.

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O Panorama Neste trabalho acompanharemos o desenvolvimento da crítica de arte em Goiás, interpretando-a à luz de sua história. Não será objeto de nosso estudo a crítica feita até o início do século XX, quando a cidade de Goiás ainda era a capital do estado e a arte produzida aqui se adequava ao estilo tradicional. Iniciaremos com a inauguração oficial de Goiânia, em 1942, ocasião em que houve também o batismo cultural da cidade. Ao longo deste trabalho, interpretaremos críticas encontradas na revista Oeste (1942-1944), críticas acerca da Sociedade Pró-Arte de Goiaz (1945), da Escola Goiana de Belas-Artes (1953), e do I Congresso Nacional de Intelectuais, realizado em Goiânia (1954), além de texto de Pietro Maria Bardi (1967) sobre a arte goiana, textos críticos sobre o Salão de Arte da CAIXEGO nos anos 1970 e sobre os Concursos de Novos Valores da década de 1980, um artigo sobre a Revista Goiana de Artes (19801992), e, por fim, apreciações diversas de catálogos de arte goiana (1993-2020).

Década de 1940 A cidade de Goiânia começou a ser construída em 1933, fruto da política varguista da “marcha para o oeste”. Getúlio nomeou o médico Pedro Ludovico Teixeira, que lutara na revolução de 1930, como interventor do estado. Este fazia oposição à oligarquia política sediada na cidade de Goiás, e propôs a construção de uma nova capital com novas lideranças e que, além disso, impulsionaria a ocupação do Estado, direcionando os excedentes populacionais para espaços demográficos vazios, com a intenção de aumentar a produção econômica e ligar a região Centro-Oeste ao sul do país. Na ocasião da inauguração oficial de Goiânia, em 5 de julho de 1942, nomeada de Batismo Cultural, a cidade foi palco de eventos culturais que duraram mais de uma semana, apresentando a nova capital ao Brasil e atraindo personalidades políticas, intelectuais, artísticas e eclesiásticas do país, além da presença do então presidente Getúlio Vargas. A revista Oeste, constituída por intelectuais goianos em seu corpo editorial e de colaboradores, sob a direção de Zecchi Abrahão, foi lançada no dia da inauguração de Goiânia. Criada especificamente para esta ocasião, a revista tinha o objetivo de contribuir com a propaganda do Estado Novo. Segundo a historiadora da arte Maria Elízia Borges, “havia um espaço destinado para os jovens escritores goianos, para que os mesmos pudessem publicar textos e expressarem seu culto à modernidade do Estado de Goiás mediante a instalação da nova capital do Estado” (2007, p. 129). Para tanto, a Oeste Revista Mensal ilustrava suas capas e corpo com fotografias de personalidades políticas do momento, de cidades do interior do estado, e principalmente da nova capital. As imagens das cidades sempre reforçavam a prosperidade, progresso e desenvolvimento propiciados pela “marcha para o oeste”, e os textos que acompanhavam as imagens consolidavam esse ideal: Goiânia – cuja construção é uma afirmação da nossa capacidade realizadora e de nossa confiança nos destinos de nossa terra, oferece, a cada momento, em conseqüência de seu progresso incessante, os mais surpreendentes aspectos. Na fotografia acima, a Praça cívica aparece no seu conjunto admirável, batizada de sol, na manhã luminosa (Revista Oeste, nº. 14, março, 1944, apud BORGES, 2006, p. 131)

Três anos depois do batismo cultural, artistas vindos da antiga capital, a Cidade de Goiás, “ligados ainda à arte mimética de cunho notadamente decorativo e ao modelo acadêmico neoclássico europeu de herança colonial” (GOYA, 1998, p. 70), juntamente a intelectuais recém-chegados a Goiânia, criaram, em 1945, a Sociedade Pró-Arte de Goiaz, a primeira movimentação direcionada ao desenvolvimento das artes na cidade. José Amaral Neddermeyer, arquiteto, pintor, escultor e músico, arregimentou os artistas da cidade para a estruturação da Sociedade Pró-Arte, que foi inaugurada com apresentação de orquestra 64


e exposição de artes plásticas e arquitetura, “que se repetiu regularmente nos anos de 1946, 1947 e 1948, atraindo artistas das cidades de Goiás, Anápolis, Catalão, Pirenópolis e Ipameri” (MENEZES, 1998, p. 39). A Sociedade Pró-Arte de Goiaz foi, assim, a primeira escola de artes plásticas do estado, apesar de sua tendência para as atividades musicais. Os arquitetos Neddermeyer e Jorge Félix de Souza e o pintor José Edilberto da Veiga começaram a dar aulas gratuitas de desenho e pintura na Praça Cívica, ao ar livre, em frente ao Palácio do Governo, “como que denunciando a falta de um espaço adequado ao ensino de arte em Goiânia. Essa ação foi fundamental para a criação, poucos anos depois, da Escola Goiana de Belas-Artes” (MENEZES, 1998, p. 40). O jornal Folha de Goiaz2 de 4 de novembro de 1945 faz um texto altamente crítico – na acepção negativa da palavra – da primeira exposição da “Sociedade Pró-Arte”, intitulado “Iniciação à arte em Goiás”: De início podemos dizer que a exposição não foi grande coisa. Aliás, não esperávamos mesmo que a Pró-Arte, em sua inauguração, apresentasse obras primas. Mas é de se considerar o esforço e a coragem de seus iniciadores. Demais, tivemos a oportunidade de apreciar expressões artísticas que são uma bela promessa de um futuro confortador para a arte em Goiás, se a Sociedade vier a encontrar em nosso meio o estímulo que necessita para prosseguir. Para o observador mais consciente de sentido de Arte, via-se que ali não haviam quadros ou motivos que apresentassem originalidade, tanto quanto ao tema como quanto a composição ou construção plástica. Percebia-se perfeitamente, que os autores expostos não se filiam, de modo algum, ao sadio esforço modernista de nossa pintura e demais artes plásticas, que busca ansiosamente, por todos os caminhos da percepção e do sentimento, aceitando todas as concepções no setor da arte, o original, a visão nova, a fuga desesperada ao balofo dos eternos dos velhos temas. Não havia, portanto, na exposição que se abriu no Jóquei Clube, no dia 22, qualquer traço de revolução artística, um indício sequer que trouxesse aos iniciantes no conhecimento da arte, entre nós, o conhecimento das novas correntes. Mas isso, diante das mais sadias concepções da arte, não pode, mesmo pelos modernistas mais ferrenhos e mais avançados ab absurdum, ser considerado um defeito – em tese – porquanto também dentro das correntes chamadas clássicas pode-se ainda hoje criar, quando sobram ao artista talento e grandes recursos técnicos. Contentamo-nos, portanto, com o que vimos exposto: motivos simples, já muito explorados; exercícios bem feitos de plástica; falhas secundárias que o público talvez não viesse a perceber. Pudemos observar uma sequência de quadros em que predominava o primarismo do vermelho forte, como recurso de colorido, uma série de vermelho ocre, quase trágico, em motivos que em nada lembravam ou podiam lembrar as concepções do humano-trágico de Van Gogh, por exemplo. Demais, o fundo em que estavam expostos os quadros era também vermelho. Discriminando os trabalhos lançados destacamos: “Êxtase”, de Neddermeyer, pela construção e acabamento, pois o motivo é mais que explorado. O estudo de “Cabeça”, exposto por Brasil Grassini, não é mais que um exercício bem feito de aluno aplicado. No setor da pintura: as duas “Paisagem”, de Neddermeyer, negaram talvez o pintor, mas foram bem acolhidas pelo grande público que desfilou diante da exposição. De Péclat esperamos, com mãos prontas para as palmas, a galeria que promete expor dentro de breves dias, e em que nos trará, sabemos, muita coisa de original. Bem concebida e realizada, a exposição fotográfica de Sílvio Berto, sobrelevandose os motivos humanos: “Vívere”, “Retrato”, “Resignação”, “Assim é melhor” e “Tédio”. (Folha de Goiaz apud FIGUEIREDO, 1979, p. 102).

2 O Folha de Goiaz, fundado no final da década de 30, cujo acervo “deu aporte a inúmeras produções de intelectuais goianos” (MEDEIROS, 2015, p. 16), foi extinto em 1984.

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Já no ano seguinte, a reportagem “Pró-Arte – Exposição de Pintura”, de 1° de novembro de 1946 do jornal Folha de Goiaz, traz um texto muito mais informativo sobre a exposição e elogioso em relação a um artista em específico: Octo Marques. Não sabemos quem foi o autor de ambos os textos da Folha de Goiaz, nem se foram escritos pela mesma pessoa, mas é notável a discrepância de opiniões sobre a Pró-Arte emitidas pelo mesmo jornal, e o posterior engajamento em apoiar a sociedade. A Exposição de pintura, escultura e arquitetura organizada pela Sociedade Pró-Arte de Goiás vem constituindo, como já temos dito anteriormente, um grande sucesso nos meios artísticos de Goiânia. Nesse certame, que é no momento o centro de atração da nossa sociedade, estão expostos cerca de 60 quadros, e trabalhos de escultura e diversos outros de arquitetura, de autoria de vários artistas residentes no Estado de Goiás. Como a Folha de Goiaz pretende dar todo o seu apoio a essa iniciativa da PróArte, publicará diariamente notas sobre a exposição, preferindo, por isso mesmo, mencionar de cada vez as obras de determinado autor, com ligeiras referências. Iniciamos assim pelos trabalhos do Sr. Oto Marques, artista ainda moço, com um auspicioso futuro pela frente nas artes plásticas, e que se ainda não faz mais é porque o nosso meio é excessivamente acanhado e pouco animador para aventuras desse gênero. Ali encontramos desse jovem artista 8 quadros, que reproduzem cenas de nossa natureza nas regiões do Araguaia. Seis desses trabalhos que são respectivamente “Pescadores”, “Barreiras”, “Praia”, “Remanso”, “Chavantes” e “Catequeses”, estão trabalhados a óleo, e dois outros, isto é, “Cargueiro” e “Lavanderia”, são em aquarela. O Sr. Oto Marques nos dá nesses quadros belas paisagens daquela região preferindo deixar predominar em todos eles um cinzento suave, o que nos induz a concluir que a paisagem dele é melancólica e bastante diferente de outras regiões goianas, muito embora não conheçamos aqueles lugares. Nos demais trabalhos Oto Marques nos apresenta interessantes aspectos sociais do nosso sertão. (Folha de Goiaz apud FIGUEIREDO, 1979, p. 102).

É digno de nota que, após um ano, a opinião da Folha de Goiaz foi de “a exposição não foi grande coisa” para “vem constituindo, como já temos dito anteriormente, um grande sucesso nos meios artísticos de Goiânia”. Indagamo-nos se a exposição organizada pela Sociedade Pró-Arte de fato elevou a qualidade das obras no espaço de um ano, ou se cooptou a Folha de Goiaz para legitimar sua presença na cena artística goianiense. É incoerente também o jornal descrever o meio artístico goiano como “excessivamente acanhado e pouco animador” para justificar o fato de Octo Marques ainda não ter despontado na carreira, mas no ano anterior ter destilado inúmeras críticas à primeira edição de uma exposição de arte ocorrida em uma capital recém-contruída, e que certamente não corroboraram para um ambiente “animador” deste meio que ainda engatinhava. Por fim, é interessante a escolha de Octo Marques, em início de carreira, para inaugurar a seção que discorreria sobre os artistas da Pró-Arte – e que provavelmente os encheu de elogios também, nos textos subsequentes. Sobre isso, Marcela Aguiar Borela explica que, com esse destaque, o jornal chama a atenção para a poética do sertão no trabalho de Octo Marques. Apesar de a autora não ter encontrado obras do período em acervos públicos e privados, ela interpretou as produções do artista a partir da década de 1960. Assim, é muito importante enfatizar que, dos artistas envolvidos com a Pró-Arte, Octo Marques merece atenção redobrada. A visualidade por ele empreendida se diferencia em muitos aspectos daquela mais geral que se observou na PróArte, assim como nos conta a Folha de Goiaz. Octo é quem constroi uma visão de mundo mais relacionada com aspectos de uma elaboração identitária sobre o lugar visto e vivido chamado Goiás no início do século XX. A partir de um instinto documentarista de revelação da realidade regional, mesmo que, todavia, fora de uma investigação formal que poderia ligá-lo a uma experimentação modernista, produz, principalmente em desenhos em bico de pena e pinturas realistas, uma imagem dos modos de vida de sua cidade natal a partir de temas populares. (...) Conclui-se, portanto, que, do ponto de vista temático, sua investigação se

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aproxima do que se revelará como a busca modernista posterior e que significará um encontro identitário. É Octo Marques que, nos anos 1940, estará perseguindo a revelação do mundo desconhecido do sertão, seus personagens, seu desenho mais constante: vontade de saber e de representação que não é encontrada na obra de outros artistas do período. (BORELA, 2010, pp. 75 e 76)

O grande mérito de Octo Marques para configurar com enaltecimento no texto da Folha de Goiaz é, portanto, o encontro de uma identidade tradicional e o flerte com o modernismo. Sobre uma possível categorização de Octo Marques, Marcela Borela fala de uma estética de fronteira: “arte popular, academicismo neorromântico e modernismo começam a se encontrar, encontro que marca definitivamente uma estética de fronteira para a experiência moderna nas artes plásticas que virá a se constituir mais adiante” (BORELA, 2010, p. 76). Nascido em Vila Boa de Goiás em 1915, Octo retrata “situações de passagem ocorridas nas paisagens da Cidade de Goiás ou mesmo no universo sertanejo, rural e caipira que a circunda” (BORELA, 2010, p. 75), o que reforça o velho tradicionalismo antípoda da nova e moderna Goiânia. Mesmo com a intenção de valorizar a cultura de sua cidade natal, Octo Marques corroborava com o discurso estadonovista da construção de Goiânia, o que também pode explicar o entusiasmo do artigo da Folha de Goiaz. De toda forma, Octo Marques é atualmente identificado como um dos artistas plásticos goianos precursores no desenvolvimento de uma identidade pictórica própria. Segundo Divino Sobral (2000), sua obra é “pioneira no exercício da linguagem visual” em Goiás, e provavelmente foi este aspecto que a crítica do jornal Folha de Goiaz observou ao chamar sua paisagem de “melancólica e bastante diferente de outras regiões goianas (...); nos apresenta interessantes aspectos sociais do nosso sertão” (Folha de Goiaz, 1946, apud FIGUEIREDO, 1979, p. 103).

Década de 1950 O Batismo Cultural de Goiânia em 1942 e a atividade, de 1945 a 1947, da Sociedade Pró-arte de Goiás, foram os antecedentes ideológicos e criativos da experiência moderna que começa a ser vivenciada apenas a partir do funcionamento da Escola Goiana de Belas-Artes, a EGBA. Fundada em 1953 e posteriormente ligada à Universidade Católica de Goiás, a escola tinha como professoresfundadores Nazareno Confaloni, Luiz Curado, Gustav Ritter, José Edilberto da Veiga, Jorge Félix de Souza, Antônio Henrique Péclat, o médico Luís da Glória Mendes (para lecionar anatomia) e o professor de história da arte José Lopes Rodrigues. A mudança da capital e a fundação da Escola Goiana de Belas Artes foram marcos para o desenvolvimento das artes plásticas em Goiás. Amaury Menezes, artista plástico que vivenciou como aluno e professor da EGBA o processo de modernização da arte em Goiânia, afirma que a faina pelo “novo” ensejada pela nova capital propiciou também um maior contato e conhecimento das vanguardas artística que já há algumas décadas se desenvolviam no sudeste brasileiro. Em suas palavras, “não podemos afirmar com segurança que a fundação de Goiânia e a consequente mudança da capital tenham propiciado o surgimento de novos artistas, mas, seguramente, a menor dificuldade de intercâmbio com o restante do país possibilitou uma efervescência cultural com reflexo principalmente nas artes plásticas” (MENEZES, 1998, p. 34). Em 1954 foi realizado o I Congresso Nacional de Intelectuais, que reuniu em Goiânia as mais representativas figuras do universo cultural do Brasil, mantendo o “clima de renascimento e renovação, desejando conhecer o que se fazia lá fora e tentando mostrar uma face mais contemporânea do Estado” (MENEZES, 1998, p. 43). A EGBA se encarregou da realização de uma exposição de artes plásticas, na qual reuniu e expôs pela primeira vez ao público as esculturas do mais importante artista sacro goiano, o santeiro Veiga Valle, que ainda era desconhecido no Brasil.

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A exposição mostrava desde a arte dos índios Carajás, arte popular e ex-votos de Trindade, passando por artistas modernos radicados em Goiás, como Luiz Curado, Ritter e Confaloni, até trabalhos de Alfredo Volpi, Carlos Scliar, Georgina de Albuquerque, Sérgio Milliet, Glauco Rodrigues, Inimá de Paula, Mário Gruber, Luiz Ventura, entre outros nomes de peso nacional. Sobre esta exposição, podemos conferir uma crítica feita por Regina Lacerda3, então secretária da EGBA, para o caderno da escola, intitulada “O que foi a exposição do Congresso Nacional de Intelectuais”: Em Goiânia, em fevereiro do corrente ano, realizou-se o Congresso Nacional de Intelectuais. Os professores da EGBA foram convidados a participar do certame integrando uma das comissões organizadoras. (...) Era uma grande oportunidade para a escola dar a conhecer ao público do Brasil a expressão artística de que é dotada a gente de nosso Estado, e trazer a esta gente os valores reais do resto do Brasil (...). Em observação ao que ficou estabelecido no temário “preservação da característica nacional” a comissão organizadora da exposição, resumindo o pensamento que a orientou, anotou em seu livreto muito sabiamente um conceito – “Para a preservação da arte nacional é indispensável o conhecimento da expressão artística popular”. E foi assim que o folclore de Goiás se evidenciou na apresentação das mais belas peças de cerâmica popular, nas figuras de santos e peças de presépio de modestos santeiros como foi Sebastião Epifânio e como é Maria Beni (de Pirenópolis), nos exvotos vindos de Trindade onde a alma do povo se manifesta através da arte em atos de louvor ao Divino Pai Eterno. Estava ali a expressão de um Brasil que nasce, que vive, que sofre, que trabalha e que sente as emoções mais diferentes. Foi nessa oportunidade que vimos os nossos primeiros artistas, os patronos da EGBA – os índios Carajás nas suas cerâmicas ricas de imaginação, despidas de esnobismo civilizado, portadoras de expressão sincera de emoção e arte. Era nossa etnologia que se fazia ver; como já dissemos: o Brasil nascente. Ao lado de tudo isso tivemos as grandes representações dos estados de São Paulo, Rio, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Ceará, em gravuras, óleos, esculturas, desenho, etc. Foram expostas ao todo 720 peças. Jamais Goiás viu coisa tão grandiosa. Honrou-nos a presença de trabalhos de nomes ilustres como Osvaldo Teixeira, Georgina de Albuquerque, Jordão de Oliveira, Quirino Campofiorito, Sérgio Millet, (...). (Regina Lacerda, Caderno da EGBA, 1954, apud FIGUEIREDO, 1979, p. 103).

O artigo faz, logo depois, um compilado de textos de diferentes jornais e de escritores brasileiros e estrangeiros (uma francesa e um argentino) que festejam o acontecimento do congresso em Goiânia. Gostaria de salientar aqui algumas observações: primeiramente, a preocupação em inserir na exposição arte indígena e arte popular juntamente a artistas conhecidos em Goiás e de renome nacional, o que demonstra uma valorização dessas diversas formas de arte, não pretendendo apresentar aos visitantes de fora apenas um segmento modernista da arte goiana, que traria maior “status” cultural, denotando uma acuidade e sensibilidade na seleção feita por Luiz Curado e Nazareno Confaloni. Por outro lado, percebemos uma subserviência à arte “nacional” nos escritos de Regina Lacerda, principalmente nos trechos “Honrou-nos a presença de trabalhos de nomes ilustres como (...)” e “grande oportunidade para a escola dar a conhecer ao público do Brasil a expressão artística de que é dotada a gente do nosso Estado, e trazer a esta gente os valores reais do resto do Brasil”. Quanto a este último trecho, podemos questionar o que seria um “valor real do resto do Brasil”? Na visão da autora os artistas de Goiás não eram valores reais? Com relação à honra na “presença de trabalhos de nomes ilustres”, o termo pode ter sido empregado por educação, em agradecimento à disponibilização das obras para exposição. De todo modo, Regina não comentou sobre as obras expostas, limitando-se a listar os “nomes ilustres”.

3 Regina Lacerda (1921-1992) foi uma folclorista nascida na Cidade de Goiás. Em 1970 tomou posse como membra fundadora na Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás. Foi também membra da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores - Seção de Goiás, da Associação Goiana de Imprensa, do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás e da Academia Trindadense de Letras (AFLAG, 2021).

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Uma última questão a ser pensada no artigo de Regina Lacerda é a flagrante lisonja associada a uma falta de compreensão da arte carajá, “nas suas cerâmicas ricas de imaginação, despidas de esnobismo civilizado, portadoras de expressão sincera de emoção e arte”. Como uma carta branca que participa do jogo, mas que não sofre as penalizações da crítica, os termos que designam as obras indígenas na exposição, “ricas de imaginação” e “expressão sincera de emoção e arte”, são termos genéricos que podem ser empregados a qualquer tipo de arte, apresentando uma vontade gratuita da autora em engrandecer a arte carajá sem saber falar de seus aspectos. Mais problemática ainda é a expressão “despidas de esnobismo civilizado” que, querendo demonstrar uma apologia à arte carajá em detrimento à arte “civilizada”, na verdade suprime a civilidade própria da sociedade carajá e nega o labor artístico que procura adequar-se aos padrões do próprio imaginário carajá. Fica mais um exemplo na História de autores que, querendo defender a cultura indígena, aprisionam-na em uma eterna menoridade necessitada de tutela “civilizada”, em uma profunda incompreensão da alteridade.

Década de 1960 Passamos agora para a década seguinte, mais especificamente no ano de 1967, quando da comemoração de 33 anos de Goiânia. Pietro Maria Bardi, jornalista, historiador e crítico italiano radicado em São Paulo, escreveu um divertido texto sobre o acontecimento para a revista Mirante das Artes (São Paulo, jan/fev/1967), intitulado “Goiânia comemora 33 anos – Corrida de motocicletas. Roberto Carlos e uma Revista”. Goiânia comemorou o seu 33° aniversário de fundação com dois acontecimentos: convite a Roberto Carlos e corrida de motocicletas e outros festejos miúdos, circunstanciais. Entretanto um grupo de intelectuais, em meio ao barulho dos motores e dos histerismos de costume, comemorou a data com o lançamento do primeiro número de uma revista de poesia e de ficção (...). Existe uma Goiânia preocupada com os problemas da cultura, com bons sinais de vivência, com obras no ativo e rumos bem traçados; tudo está em fermentação, como sempre acontece numa cidade construída às pressas (cerca de 300.000 habitantes), beneficiando-se do extraordinário espírito de “província”. Isto significa encontrar caminhos genuínos, desbravar mentalidade, olhar para si e peneirar o que vem de fora, com bom senso e simplicidade. A tradição não é “cassada” como acontece em São Paulo ou no Rio; aliás, é prezadíssima. Não tem gênios na história goiana; tem o escultor José Joaquim da Veiga (1806-1874) apelidado de Aleijadinho de Goiás e às vezes de Fra Angelico brasileiro. Todavia a verdadeira escultura é a popular. Quem lançou a revista foi o GEN (Grupo Escritores Novos), presidido por Miguel Jorge (...). A reunião se fez no museu que, na ocasião, apresentava uma patética exposição histórica, a da fundação: o altar da primeira missa celebrada, fotografias da pequena aldeia, dos fundadores da capital, o telegrama de Getúlio Vargas e a escrivaninha na qual se redigiu a ata da transferência deliberada por Pedro Ludovico. História administrativa breve, repleta, porém, de lutas políticas no Palácio das Esmeraldas, belas páginas cívicas. (...) Goiânia não tem história mas Goiás sim. É nesse hinterlande insulado que poetas e romancistas atingem, ainda, um pouco de “regionalismo”. Somente agora, talvez, os escritores estejam vendo o ambiente na sua realidade agreste, fora do convencionalismo dos movimentos românticos, que tampouco conseguiram, fechados como estavam na Capital, deduzir que a mitologia não era somente grega (...). A imprensa é francamente aberta à discussões literárias, com abertura generosa para a jovem guarda (...). É este o milagre goiano: a existência de uma vida artística. Além da Católica há a Escola da Universidade Federal. Duas escolas de arte já é luxo demais (...). No campo das artes o que se faz é importante: as livrarias, abertas, inclusive à noite (...); a pintura começa a penetrar nas casas (...). O “provinciano” é levado a divagar: é como se a um faminto fosse oferecido um banquete de fazenda e não soubesse por onde começar. O provinciano quer

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mostrar tudo. Agora vamos tratar de um assunto que ultrapassou os limites dos goianos: o Teatro Inacabado, pois ainda se encontra em construção; lançaram a pedra fundamental em 59. (...) Concluindo nossa reportagem procuramos saber como nasceu a vivência goiana. Informaram-nos que a flama surgiu com a realização do Congresso Nacional de Intelectuais, de 54, quando o núcleo local da Associação Brasileira de Escritores conseguiu trazer Jorge Amado, Pablo Neruda, Cláudio Santoro, Vanja Orico, Lima Barreto, Alberto Cavalcanti, Maria Della Costa, Mário Gruber, Vilanova Artigas, Djanira e outros progressistas. (...) A cor também era política, mas como é possível deixar de lado esta atitude nas contingências da vida assim como elas vão se desenvolvendo? E mais: uma cidade nova em folha, que deve afugentar, antes de tudo, a mentalidade em contraste com os tempos. (Pietro Maria Bardi, 1967, apud FIGUEIREDO, 1979, pp. 105 a 107).

O tom irônico de Pietro Maria Bardi já é perceptível no título. Na primeira frase, “convite a Roberto Carlos e corrida de motocicletas e outros festejos miúdos, circunstanciais”, o autor critica finamente os “festejos” que não têm relação com a cultura, voltados ao entretenimento popular. Em meio aos “histerismos de costume”, surge a revista do Grupo Escritores Novos, o GEN, esta sim preocupada com a promoção cultural. Bardi pontua que em Goiânia, aos seus 33 anos, há um “espírito de província” que fermenta a cultura, que tem “obras no ativo e rumos bem traçados”. Elogia o fato de a cidade prezar sua tradição, ao contrário do que “acontece em São Paulo ou no Rio”. O grande acontecimento da comemoração, na visão de Bardi, é o lançamento da revista do grupo GEN, que ocorre no museu onde havia uma “patética exposição histórica”. O Grupo Escritores Novos atuou entre 1963 e 1967, em meio a grandes transformações econômicosócio-culturais em Goiás, com a fundação de Brasília em 1960 e a criação de duas universidades em Goiânia: a Católica em 1959 (que incorporou a EGBA, fundada, como vimos, em 1953) e a Federal em 1960. Nas palavras de Pietro Maria Bardi, “É este o milagre goiano: a existência de uma vida artística. Além da Católica há a Escola da Universidade Federal. Duas escolas de arte já é luxo demais”. Composto por jovens artistas que se reuniam frequentemente para discutir e trocar experiências, inspirados pela Semana de Arte Moderna de 1922, o objetivo do GEN era ampliar o campo artístico, atuando não apenas na literatura, mas também nas artes visuais, no teatro e na música. Os encontros, muitos em espaço cedido pela musicista Belkiss Spenciere, resultaram na produção de diversas obras. No livro “Gen: um sopro de renovação em Goiás” (2000), Moema de Castro e Silva Olival assinala a significativa contribuição do grupo à renovação e modernidade dos estilos literários em Goiás, com notável participação no debate cultural. Muitos de seus participantes viriam a se tornar representativos da literatura goiana, como o seu criador, o poeta Mário Chamie, além de Miguel Jorge, que presidiu o grupo por duas vezes, Yêda Schmaltz, Heleno Godoy, Geraldo Coelho Vaz, Carlos Fernando Magalhães, Luiz Araújo e Luiz Fernando Valadares. Miguel Jorge, especificamente, logo seria um expoente da crítica de arte em Goiás, além de poeta, teatrólogo, romancista e contista com inúmeros prêmios literários. Por diversos anos pertencente aos quadros da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte) e da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte), ele é frequentemente convidado para fazer curadorias e participar de comissões julgadoras de salões e concursos em Goiás e em outros centros do país. Para Amaury Menezes, “o nome de Miguel Jorge merece citação especial (...) como testemunha e profundo conhecedor da evolução das artes plásticas no Estado de Goiás” (1998, p. 192). Pietro Maria Bardi comenta o atrasado movimento modernista na literatura em Goiás, promovido pelo GEN, que na década de 1960 inspirava-se na semana de 1922 ocorrida em São Paulo: “Goiânia não tem história mas Goiás sim. É nesse hinterlande insulado que poetas e romancistas atingem, ainda, um pouco de ‘regionalismo’. Somente agora, talvez, os escritores estejam vendo o ambiente na sua realidade agreste, fora do convencionalismo dos movimentos românticos (...)”. O termo hinterlande utilizado por Bardi é uma adaptação do alemão “Hinterland”, que significa literalmente “terra de trás”, e também se refere à parte menos desenvolvida de um país, menos dotada de infraestrutura e menos densamente 70


povoada, sendo, assim, sinônimo de sertão ou interior (Dicionário Aulete da Língua Portuguesa). Goiânia é, dessa forma, nas palavras de Bardi, um interior insulado – ilhado – onde as mudanças ocorridas no eixo Rio-São Paulo demoram muito a chegar – neste caso, 41 anos entre a Semana de Arte Moderna e a fundação do GEN. É por isso que os escritores do grupo, mesmo se auto-intitulando como divisores de água entre o modernismo e o regionalismo em Goiás, ainda “atingem um pouco de ‘regionalismo’”, uma vez que “Goiânia não tem história mas Goiás sim”: o regionalismo é a história de Goiás, que a moderna Goiânia, querendo ou não, precisa se apoiar.

Década de 1970 Goiânia passou a ser um pólo importante no Centro-Oeste nos anos 1960, enriquecida pelo arroz e pelo boi e aproveitando a irradiação de Brasília. Para Aline Figueiredo, “sentiu necessidade do progresso cultural, uma vez conquistando o progresso material, almejando afirmar seus próprios valores. No início dos anos setenta, encontramos Goiânia se agitando na espera pressagiosa de sua definição artística” (1979, p. 99). Os sucessos de Bernardo Élis, que entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1975, e de Siron Franco, reconhecido no mesmo ano pelo júri internacional da Bienal de São Paulo, repercutiram as artes goianas para o país, alimentando o anseio histórico de Goiânia em participar da vida cultural nacional. Nascido na Cidade de Goiás em 1947, Siron Franco ainda criança passara a morar em Goiânia, e em 1960 começara a “frequentar o ateliê do pintor DJ Oliveira na EGBA, tendo ainda como orientadores Frei Nazareno Confaloni e Cleber Gouveia” (MENEZES, 1998, p. 239). A cidade de Goiânia despontou, logo então, com um “grupo artístico de indiscutível penetração local. Consegue manter um grande número de artistas, a cidade é rica e há vontade de formar uma tradição, e já que é tão jovem – um fato qualquer é notícia e vira história” (FIGUEIREDO, 1979, p. 99), deslumbramento este que vai ao encontro do comentário de Pietro Maria Bardi: “O ‘provinciano’ é levado a divagar: é como se a um faminto fosse oferecido um banquete de fazenda e não soubesse por onde começar. O provinciano quer mostrar tudo”. O surgimento de galerias e salões de arte na década de 1970, como o da Caixego, motivou artistas que, por sua vez, formaram outros artistas, que ficaram no estado, ministrando aulas, participando dos salões e apresentando obras para as galerias recém-surgidas, formando um sistema do mercado de arte. No mesmo período, se intensificaram as matérias sobre artes e cultura no jornal O Popular (COELHO, 2015), o que demonstra o aquecimento das atividades do sistema de artes plásticas em Goiás. Só o fato (...) que as duas maiores galerias de Goiás estavam ligadas a pessoas envolvidas com o jornal O Popular, já permite avaliar a importância do jornal na cena artística da capital. Como atores do Sistema da Arte, os jornalistas divulgavam as atividades e conquistas dos artistas, o que alimentava o sistema, mas eles mesmos contribuíam para o desenvolvimento deste ao noticiar esta atividade artística de forma intensa e cujo teor demonstrava visível intenção de estimular o mercado da arte em Goiânia, notadamente a partir da década de 70. (COELHO, 2015, p. 157)

Aline Figueiredo percebe que, até o ano de lançamento de seu livro “Artes Plásticas no CentroOeste”, 1979, não havia em Goiás uma crítica especializada em artes plásticas e os escritores é que geralmente atendiam a essa demanda, notabilizando-se Miguel Jorge à frente do Suplemento Cultural do O Popular, entre 1977 e 1983. Como não há ainda em Goiânia uma crítica de arte especializada em artes plásticas, quem geralmente atende a essa tarefa são os escritores locais que conseguem manter intensa agitação na cidade, em constantes lançamentos de livros. O poeta e escritor Miguel Jorge, que há cerca de 10 anos acompanha as atividades dos artistas, é o que mais corresponde a essa necessidade. Através do jornal O Popular, Miguel Jorge edita o Suplemento Cultural que traz, semanalmente, comentários sobre literatura e música, contos e poesias, entrevistas com escritores, poetas e

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artistas, depoimentos e ensaios diversos e uma coluna, “Acontecimentos”, assinada pelo editor, com informações gerais sobre arte. (FIGUEIREDO, 1979, p. 100)

Aguinaldo Coelho referenda que os jornais da época publicavam páginas inteiras com “reportagens jornalísticas elogiosas sobre artistas sem nenhum talento ou meros principiantes, transparecendo uma clara intenção mercadológica, criando ao público uma confusão de valores, posto que não havia o fortalecimento de um parâmetro, um discernimento crítico verdadeiro para estabelecer uma escala” (2015, p. 60). No mesmo período, estreou o “Salão da Caixego”, em 1973, com o nome oficial de Concurso Estadual de Artes Plásticas, que no ano seguinte ampliou-se para o plano nacional, com o nome de Concurso Nacional de Artes Plásticas, e que ocorreu anualmente até 1977. A Caixa Econômica adotou um sistema de convites especiais, com a compra de trabalhos para o seu acervo, visando um futuro museu, com a finalidade de garantir a participação de nomes significativos da arte brasileira. Apesar de sua contribuição ter sido “apenas no âmbito estadual” (FIGUEIREDO, 1979, p. 101), os salões da Caixego possibilitaram aos artistas e ao público um confronto da produção local com a de outros estados, impulsionando a arte goiana. Além dessa estratégia para contar com a participação de artistas de todo o país, o Salão de Arte da Caixego também convidava para seu corpo de jurados críticos de arte e jornalistas de outros estados, de notoriedade nacional, buscando sua valorização no campo nacional como instância de legitimação para agregar valor no campo local. Ao longo de seus cinco anos, os salões trouxeram os críticos de arte Hugo Auler, Jacob Klintowitz, Jayme Maurício, José Roberto Teixeira Leite, Márcio Sampaio, Paulo Mendes de Almeida, Ramiro Martins Pereira, Roberto Marinho de Azevedo, Roberto Pontual e Walmir Ayala, que puderam conhecer de perto a arte e os artistas goianos e “estudá-los em suas colunas das metrópoles” (FIGUEIREDO, 1979, p. 101). O I e o II Salão Nacional da Caixego foram notabilizados por seu êxito pelo mineiro Frederico Morais, um dos nomes mais importantes da crítica de arte brasileira. Ele fez considerações positivas em artigo para O Globo em janeiro de 1976, no qual ressalta que Os Salões da Caixego ‘têm proporcionado bons frutos à Goiânia, levando artistas de outros estados, premiando também os locais e gerando boa movimentação’. Concluía que isto estimulava o sistema das artes de Goiás, começando a se constituir. Cita as galerias LBP e Casa Grande e o fato de que os artistas começavam a vender seus trabalhos e a produzir com regularidade. (Frederico Morais apud COELHO, 2015, p. 107).

Já em relação ao último salão, o IV Salão Nacional da Caixego, ocorrido em 1977, o crítico de arte pernambucano Roberto Pontual tece críticas severas sobre sua realização em artigo intitulado “Pela metade não”, publicado no Jornal do Brasil em 12 de novembro de 1977. Ele havia sido jurado do salão juntamente com Hugo Auler, Aline Fiqueiredo, Jayme Maurício e Jacob Klintowitz. Estamos chegando a um estado de exaustão total do velho sistema de amostragem da arte que inclui regulamentos esclerosados, repetitivos e amadorísticos; seleções às pressas, hipócritas e irresponsáveis; (...) conchavos e barganhas; e montagens preguiçosas para as quais o aproveitamento didático é a última das providências em que se cogita (quando se cogita). Um sistema cada vez mais esbanjador no uso dos recursos humanos e materiais, que só tem feito incompatibilizar mutuamente todos os que atuam no circuito: o artista, as instituições, o crítico, o marchand e o público. Ninguém parece satisfazer-se com o estado de coisas, mas o estado de coisas continua. (Roberto Pontual apud COELHO, 2015, p. 107)

A reclamação de Roberto Pontual sobre a organização do IV Salão Nacional da Caixego é compartilhada por Aline Figueiredo, que comenta sobre os espaços inapropriados – “improvisados”, em suas palavras – para as expografias dos Salões da Caixego, além da grande quantidade de obras, tornando a montagem “apertada, desordenada e exaustiva de se ver” (FIGUEIREDO, 1979, p. 101). 72


Foi inteiramente louvável a iniciativa da Caixego, porém devemos acrescentar que deixou muito a desejar a forma como as exposições foram apresentadas ao público, carecendo dos mais simples recursos de montagem e de satisfação visual, que revela um clima de improvisação desprofissionalizante a refletir contra o próprio movimento de arte. O aproveitamento didático, por exemplo, foi pequeno. Faltou um catálogo mais didático para registrar melhor o evento. No último salão, nem mesmo a relação dos participantes, mimeografada, chegou a sair. (FIGUEIREDO, 1979, p. 101)

Apesar do amadorismo, os Salões da Caixego, ocorridos em um momento de aquecimento econômico no Brasil e em Goiás, que contribuíram para despertar o sistema das artes plásticas no estado, foram fundamentais na divulgação dos artistas goianos, animando a cena cultural do estado e sua repercussão nacional. Além disso, o acervo destes salões foram os responsáveis pela posterior formação, em 1988, do Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Goiás.

Década de 1980 A década de 1980 usufruiu dos reflexos da atividade cultural impulsionada em Goiás na década anterior. O mercado de arte vai ganhando espaço e se consolidando como um mercado profissional e ascendente, sendo Goiânia uma das cidades do Brasil possuidoras do maior número de galerias por habitante. Apesar de bares e restaurantes abrirem seus espaços para as exposições, novas galerias surgiram em profusão, com o intuito de viver da venda de arte. Até o início da década de 1990, um total de 20 galerias abriram suas portas na capital (COELHO, Armando, 2015, p. 98). A pintura era o meio expressivo mais comum utilizado pelos artistas, e o interesse pela arte local crescia proporcionalmente ao avanço do artista Siron Franco no cenário nacional. Dessa forma, há uma maior mercantilização da obra de arte em Goiás, permitindo aos artistas plásticos durante os anos 1980 sobreviverem sem o auxílio de políticas culturais assistencialistas, que eram praticamente inexistentes na primeira metade da década, em âmbito regional. Artistas vinham do interior de Goiás e de todo o Brasil lutar por um lugar ao sol neste mercado promissor. Por outro lado, faltava uma crítica de arte especializada que gerenciasse o “crescimento da produção de arte em Goiás” (COELHO, Armando, 2015, p. 96). Os artistas jovens possuíam duas janelas de inserção: o Salão Valores Novos promovido pelo Governo do Estado e o Salão de Novos Valores promovido pela Casa Grande Galeria de Arte, que todos os anos lançavam novos artistas no mercado. “Dentre os artistas que apareceram nestas promoções, vemos hoje, constituídos como profissionais da arte local e alguns a nível nacional, nomes como Vânia Ferro, M. Cavalcante, Eliezer Sturm, Nonato, Edney Antunes, Di Paiva, Enauro de Castro entre outros” (COELHO, 2009, p. 122). Miguel Jorge costumava, ao final de todo ano, fazer uma retrospectiva da cultura goiana no Suplemento Cultural do jornal O Popular. Evidenciava as boas atuações dos artistas consagrados e destacava o aparecimento de novos valores, dentre os quais configurou Carlos Sena no ano de 1981: Pode-se falar ainda em um outro valor novo na pintura: Carlos Sena, conseguindo uma linguagem plástica moderna, atual, recorrendo aos Fatos e Fotos. Falta-lhe, no entanto, uma maior intimidade com a figura humana, sentir mais, ou colocar mais movimentação e expressão em suas figuras. (O Popular, Suplemento Cultural, 23/01/82, apud COELHO, 2009, p. 47)

Percebemos uma crítica moderada de Miguel Jorge, que elogia, mas traz pontos a serem melhorados pelo artista. O escritor e crítico foi destacado pelo artista Omar Souto, se referindo ao Salão Regional de Arte (que tinha um júri misto de críticos locais e nacionais), pelo “valor da atuação (...) em sua posição no júri de defender os artistas goianos (apud COELHO, 2009, p. 45). 73


Mas não era fácil se impor como um novo valor em Goiânia, principalmente para um artista vindo de outro estado, como é o caso do baiano Carlos Sena. Predominava um júri de origem local na comissão de seleção das obras dos concursos de Novos Valores, diferentemente do que ocorria nos salões de arte da Caixego da década de 70. Em poucas ocasiões vieram críticos de outros centros artísticos. “Isso muito se deu pela necessidade de afirmação de uma arte local, que vinha se deparando com um crescimento no setor. Essa particularidade gerou uma tendência a determinados estilos de composição assim como criou grupos de proteção por parte de alguns artistas, excluído novos valores da arte local em eventos institucionais” (COELHO, 2009, p. 122). No texto “Ou acabam as ‘Panelas Culturais’ ou continua o marasmo do setor em Goiás”, o jornalista José Sebastião Pinheiro descreve, em tom de revolta, as dificuldades de se embrenhar no cenário cultural goianiense, Fica difícil até pensar culturalmente em Goiás, principalmente quando se sabe que há certas correntes fortemente arraigadas a atitudes altamente radicais, seja no que diz respeito à forma como levam à frente os projetos, seja com relação à pouca ou quase nenhuma aceitação de novos valores nas rodas que se têm como representativas da cultura do Estado. (O Popular, Caderno 2, 18/10/81, apud COELHO, 2009, p. 69)

Pinheiro ilustra com clareza a problemática da rejeição que novos valores sofriam por parte de alguns artistas já estabelecidos, ainda mais se apresentassem uma proposta que não seguisse aos padrões estéticos já preestabelecidos, como vemos no trecho “certas correntes fortemente arraigadas a atitudes altamente radicais”. Ainda durante a década de 1980, o Instituto de Artes da Universidade Federal de Goiás começou a publicar a Revista Goiana de Artes, com a proposta de ser “Um veículo de divulgação do ensino e da pesquisa nas diversas áreas artísticas, para publicação da produção acadêmica dos professores da UFG e demais universidades, como também de especiais colaboradores” (vol. 12/13, nº 1, Jan./Dez.1991/1992, apud BORGES, 2007, p. 132). A periodicidade da revista foi inicialmente semestral (1980- 1984), passando a anual (19851987), por problemas financeiros, e por último bienal (1988- 1992). A maioria dos artigos versa sobre a produção artística goiana e são escritos por professores da Universidade Federal de Goiás, artistas, críticos e intelectuais de Goiânia. Dentre as normas de publicação estavam a originalidade e o ineditismo do assunto. A historiadora da arte Maria Elízia Borges constata que Carlos Fernando Magalhães apresenta um breve histórico sobre o desenvolvimento do cenário artístico goiano, especificando a trajetória do artista Cleber Gouveia (...); o artista plástico Siron Franco traça um perfil narrativo do Frei Confaloni, aquele que ele considera como o “primeiro pintor de nível em Goiás” (...); o pesquisador regionalista Elder Camargo de Passos descreve uma biografia e faz considerações gerais sobre a técnica de trabalho do escultor Veiga Valle (...). Dentro deste objetivo ainda de enaltecer os artistas da região, Amphilóphio de Alencar Filho, professor da Faculdade de Educação da UFG, faz um texto sobre a arte sacra no Brasil para em seguida analisar peças dos escultores santeiros de Goiás: Veiga Vale, Padre Francisco Ignácio da Luz, Antônio José de Sá, Sebastião Epifânio e Maria de Beny. A revista recebeu pouca colaboração de textos de críticos de repercussão nacional e estes, por sua vez, também contribuíram para legitimar artistas locais. Pietro Maria Bardi e Walmir Ayala deixam registradas suas impressões a respeito da obra de Siron Franco, quanto ao aspecto formal e temático (...); Walmir Ayala traça a trajetória da artista Cléa Costa (...). A incidência de artigos sobre artes plásticas ao longo de todas as edições da Revista Goiana de Artes foi irrisória se comparado ao espaço dado para historiografia musical e literária. De modo geral, os textos voltados à historiografia das artes plásticas se apresentam não como artigos científicos, condizentes com a proposta da revista, mas sim como resenhas, depoimentos, enfim, textos advindos da experiência de vida pessoal de cada autor. A revista consistiu em se configurar como um espaço de comunicação cultural da

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década de 1980, dentro da Universidade Federal de Goiás, legitimando e difundindo certos artistas como se fossem produtores artísticos de uma identidade goiana. Ela centralizou também em alguns artistas que já estavam sendo reconhecidos nacionalmente por meio de suas participações nas Bienais de São Paulo, como Henning Gustav Ritter e Siron Franco.

Preocupou-se também em reconstruir um imaginário artístico popular ao mitificar a importância dos santeiros. Provavelmente, isso se deve ao grande peso que a editora da revista dava a assuntos vinculados à arte folclórica. (BORGES, 2007, p. 134) Dessa forma, a Revista Goiana de Artes buscava disseminar e validar a produção artística local, que começava a ser reconhecida dentro do circuito artístico nacional. Sendo Goiás, historicamente, uma região que não participou como “precursora de nenhum movimento artístico nacional, logo, a revista propunha preencher uma lacuna cultural no ambiente artístico vigente” (BORGES, 2007, p. 132). Maria Elízia ainda lembra que Goiânia contava com outros meios de divulgação artística, como o Caderno 2 do jornal O Popular: “Tinha-se como hábito escrever matérias críticas sobre artes visuais de âmbito nacional e internacional, muitas delas escritas pelo critico de arte local, Miguel Jorge. O ufanismo regional também existia, todavia mais diluído” (BORGES, 2007, p. 135).

Década de 1990 Já na década de 1990, o mercado de arte em Goiânia entrou em decadência (COELHO, Armando, 2015, p. 164). Muitos artistas que tiveram êxito na década de 1980 pararam de produzir nos anos 90, e foram trabalhar em outros ramos. Dentre algumas explicações, a Lei Sarney de 1986, que concedia incentivo fiscal a quem investisse ou patrocinasse produções de cunho cultural, foi decisiva para quem queria investir em obras de arte. E foi esse o problema com a década de 90: faltou dinheiro. Os colecionadores que compravam lotes de pintura sumiram, os restaurantes que abriam suas portas para todo trabalho de arte passou a ver que a pintura não mais atraía clientela, e assim o mercado de arte foi se enfraquecendo e galerias foram fechando suas portas. E é na década de 90 que se dá início a decadência do grande comércio promissor de arte que foi visto durante os anos 80. (COELHO, Armando, 2015, p. 99)

Outra explicação, do ponto de vista sociológico, foi o intenso uso da mídia como meio de legitimação. Durante o processo de construção de público no início dos anos 80, os artistas consagrados exploravam a mídia, que estava totalmente disponível, uma vez que a arte moderna agregava valor simbólico aos veículos de comunicação, com textos vindos de importantes críticos de grandes centros. Os artistas jovens também tentavam exposições em espaços já canonizados, e buscavam fulgurar em qualquer nota nos jornais goianos. Contudo, os agentes do sistema de arte goiano não se atentaram ao fato de que a “distinção” é a grande moeda do mercado de arte. Ao apostarem todas as suas fichas na popularização, chegando ao conhecimento do grande público, perderam sua razão de ser. A distância das linhas modernistas com o grande público era enorme. De alguma forma esse hiato foi encurtado e essa ajuda veio através da mídia. Essa relação íntima que os artistas tinham com a mídia em geral é uma característica acrítica. Portanto, o artista acrítico perde seu poder de distinção da distância do público e esse poder passa para a mão do mercado e como o mercado não é excludente, a relação artista e público se perde enfraquecendo o poder simbólico de sua produção, pois perde o sentido de “seita”, de “sociedade de admiração mútua” (BOURDIEU, 1982, p.107), perde o sentido de grupo. (COELHO, Armando, 2015, p. 21)

Dessa forma, o que era até então um mercado de arte super aquecido, no final da década de 1980 sofre uma neutralização que, já no início dos anos 90, ocasiona o fechamento de galerias e a diminuição 75


no número de artistas. Continuam a acontecer exposições esparsas, mas sem o vulto mercadológico ou a pretensão de formar maior público para as artes plásticas. No âmbito estético, a arte na década de 1990 estava entre a modernidade e a contemporaneidade, e já apareciam em Goiânia artistas que questionavam os suportes tradicionais das obras (COELHO, Armando, 2015, p. 140). Começa também uma assimilação no mercado brasileiro em geral de obras que trabalhavam dentro da dinâmica da experimentação, o que aparece como uma alternativa para o mercado. O goianiense Divino Sobral, artista visual autodidata, pesquisador e crítico de arte, inicia-se na arte com exposições no ano de 1989, e ao longo dos anos 90 tem seu nome reverberado tanto através de exposições de suas obras quanto de resenhas críticas que produziu para diversos catálogos de exposições. “Frequentemente convidado para proferir palestras e curadorias (...), foi professor do Curso de Arte Moderna e Contemporânea do MAC (MENEZES, 1998, p. 107). Selecionamos um trecho de seu texto sobre Siron Franco para um catálogo do Museu de Arte de Goiânia (MAG) de 1997 como um referencial da crítica goiana da década de 1990. A exposição se chamava “Goiás, nossa arte”, e reunia trabalhos de Antônio Poteiro, D. J. Oliveira e Siron Franco, que o catálogo denominou como “os três artistas vivos de maior proeminência no cenário cultural goiano”. Nestas quase três décadas de trabalho, Siron Franco sempre prezou o exercício da inquietação e da participação como dispositivos deslocadores de sua obra, empreendendo outras experiências além da pintura. Em suas instalações, por exemplo, predominam um foco temático centrado criticamente sobre algum aspecto da situação social como a mortalidade infantil, a violência no trânsito e até mesmo questões ecológicas, que se configuram sobre o símbolo da identidade brasileira: a Bandeira Nacional. As bandeiras formadas por antas e por caixões infantis, instaladas junto ao Congresso Nacional, efetivam uma crítica veemente à omissão e à inoperância das instituições diante dos problemas que afligem a sociedade brasileira. (...) A importância de Siron para a história da arte goiana é de valor inestimável, pois, além de ser o primeiro artista nascido em território goiano a conquistar relevância nos circuitos nacional e internacional de arte, é também o primeiro aqui a desenvolver uma obra capaz de contribuir para a ampliação dos debates em torno da arte contemporânea; sua presença em Goiânia é fato igualmente importante visto inseri-la no contexto geográfico da produção cultural brasileira, além de fomentar o desenvolvimento e o amadurecimento do processo artístico local. (Divino Sobral apud MAG, 1997, p. 68)

É perceptível, no texto de Sobral, a inserção da contemporaneidade no imaginário artístico goiano, mesmo que se limite aos círculos dos que se envolvem profissionalmente com arte. Sobral preza uma característica de Siron que é notória nos ideais da arte contemporânea: a inquietação. Também comenta as instalações do artista, um novo modo de se fazer arte, extrapolando os suportes tradicionais.

Década de 2000 Já no início da década de 2000 vemos o aparecimento de leis regionais de incentivo à cultura, como a Lei Municipal de Cultura4 e a Lei Goyazes5, que foram criadas em 2000, e o Fundo de Cultura6,

4 LEI N° 7.957, DE 06 DE JANEIRO DE 2000 altera pela LEI N° 8146, DE 27 DE DEZEMBRO DE 2002, que institui incentivo fiscal em favor de pessoas físicas e jurídicas de direito privado, para a realização de projetos culturais e dá outras providências. (BRASIL, 2000) 5 LEI Nº 13.613, DE 11 DE MAIO DE 2000 institui o Programa Estadual de Incentivo à Cultura – GOYAZES e dá outras providências. (BRASIL, 2000) 6 LEI Nº 15.633, DE 30 DE MARÇO DE 2006 Dispõe sobre a criação do Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás

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de 2006. A partir de então, percebe-se uma dependência do fomento público pelos artistas e demais trabalhadores do segmento de artes visuais em Goiás, devido a pouca atividade do mercado de arte goiano. Mas, exatamente por causa do fomento público, os artistas goianos têm desde então catálogos de arte que, diferentemente das reclamações que vimos sobre o material gráfico dos salões da Caixego nos anos 1970, são hoje muito bem elaborados, tanto nas informações técnicas, na qualidade das impressões, quanto na apresentação e nos textos curatoriais que acompanham as obras plásticas. Apresentamos aqui, para finalizar este panorama da crítica de arte, textos de três catálogos deste último momento do sistema de arte goiano, assinalado pelo fomento proporcionado por leis de incentivo à cultura. São eles “Memória Roubada”, da década de 2000, “A Imagem Adquirida”, da década de 2010, e “Geração 80”, de 2020. No catálogo “Memória Roubada”, de 2002, o fotógrafo, jornalista e na época professor da FAV/ UFG, Jofre Silva, interpreta obras de Ana Maria Pacheco expostas no Centro de Formação Artística da UEG: A arte de Ana Maria Pacheco apresenta uma discussão complexa do que compreende por natureza humana. Seus temas examinam noções de identidade, o universo da paixão, o desejo e a mágica, o espaço espiritual, o exercício do poder político e sexual, bem como o destino e histórias. Suas imagens são surpreendentes e instigantes. O impacto é causado não só por sua narrativa e sua visão do ciclo da vida, mas sobretudo pela realização plástica de suas obras. Em seu trabalho prático, tem mantido uma autonomia artística impressionante. Seu método criativo é marcado por um contínuo processo de pesquisa e experiência (...). O objeto principal que orienta a história deste catálogo é o grupo de pinturas e esculturas intitulado “Memória Roubada”, realizado em 1992, em resposta às comemorações da chegada de Colombo nas Américas. As esculturas tomam forma anos mais tarde, em 2001, motivadas pela discussão do tema da ausência, de novo estabelecendo referências ao processo histórico e cultural do Brasil (...). Outra característica da obra de Ana Maria Pacheco é sua própria capacidade de síntese. Ela consegue reunir velho e novo, lendas, fábulas, histórias do continente europeu, sul-americano e africano (...). Nesse grupo de pinturas, seus personagens observam inspiradas, incrédulas, contemplativas e indiferentes o prêmio da conquista e a descoberta do outro, de um continente, de seu povo e sua cultura. As metáforas de Ana Maria Pacheco são cabeças de animais e, posteriormente, cabeças humanas (...). (Jofre Silva apud PACHECO, 2002, pp.5-7)

Ana Maria Pacheco, escultora, desenhista, pintora e gravadora goianiense, tem notória projeção internacional. Formou-se em 1964 na Escola de Belas-Artes da UCG, tendo sido aluna de Luiz Curado, DJ Oliveira, Ritter e Confaloni, e colega de Siron Franco, Iza Costa, Sáida Cunha, dentre outros artistas de destaque. Foi professora da UCG entre os anos de 1966 e 1973, “quando se mudou para Londres como bolsista do Conselho Britânico para aperfeiçoamento em escultura e gravura na Slade School of Art, entre 1973 e 1976. Foi professora e diretora ‘head of fine art’ da Norwich School of Art em Norfolk, Inglaterra, entre 1985-89” (MENEZES, 1998, p. 70). Também foi a primeira artista estrangeira convidada para expor na National Gallery, de Londres, onde em 1999 fez uma exposição individual de pintura e escultura.

Década de 2010 Já no ano de 2013, o Museu de Arte Contemporânea de Goiás, sob a curadoria de Gilmar Camilo (que fora durante anos diretor da Itaú Galeria e atualmente é diretor da Villa Cultural Cora Coralina), realiza a exposição “A Imagem Adquirida” em comemoração à transferência do museu para o Centro

- FUNDO CULTURAL, e dá outras providências. (BRASIL, 2006)

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Cultural Oscar Niemeyer (CCON). Desde sua criação, em 1988, o MAC ficava no Edifício Parthenon Center, no centro de Goiânia. No processo de transferência para o novo prédio, houve também uma ação conjunta de órgãos do governo para o retorno ao acervo das dezenas de obras de arte que se encontravam fora do museu, “espalhadas pelas diversas secretarias e outras instituições estaduais”, de acordo com Nasr Fayad Chaul, então chefe do Gabinete Gestor do CCON (MAC, 2013, p. 5). A exposição “A Imagem Adquirida”, assim, reunia o conjunto de obras pertencentes ao acervo do museu, a maioria fruto de doações dos próprios artistas e de instituições. O texto curatorial de Gilmar Camilo, portanto, procurou abarcar todos os artistas que figuravam na exposição: Difundir, promover e estudar o acervo museológico através de leituras constantes e levar ao olhar do público um recorte das coleções do Museu de Arte Contemporânea de Goiás: é neste sentido que realizamos a exposição A Imagem Adquirida. (...) Reúne 65 obras representativas desse acervo, realizadas por 32 artistas das diversas regiões brasileiras. (...) Utilizando-se dos mais variados recursos tecnológicos, esses artistas vão além do campo do registro e documentação em suas investigações, rompendo as fronteiras originais da arte. Sendo assim, a curadoria privilegiou os diálogos e poéticas recorrentes, representadas em suas frentes e respectivos suportes. O ativismo político, a crítica contundente às injustiças e mazelas sociais, nas crônicas visuais atualíssimas dos artistas Siron Franco e Luiz César Monken. A pesquisa e a representação contemporânea acerca do corpo, que permeiam os trabalhos de Ângela Freiberger, Rachel Korman e Yuri Firmeza. (...) O olhar atento e crítico dos artistas Fernando Peixoto, Rodrigo Araújo e Elder Rocha Filho, analisa os sistemas e estratégias político-artísticas e as formas de comunicação no cenário cultural, diante das eminentes transformações do que nos cerca. (...) A busca por novos territórios, dentro do campo da arte, está nos documentos visuais captados pela lente do artista Rafael Castanheira, nos recônditos do Brasil, e faz-se notar nas superfícies que se movimentam nos dinâmicos desenhos de Rodrigo Godá. (...) Partindo das perquirições e questões presentes nesta mostra, qual é a visão que adere ou fixa à mente, considerando um mundo tomado por imagens em quantidades incomensuráveis? Quais os seus fins? Como ela se torna a imagem eleita ou A Imagem Adquirida? As obras desses artistas, que detêm o conhecimento da época em que vivem e atuam, com suas trajetórias que comprovam o alto grau de comprometimento e investigação artística, em suas inquietações sobre o tempo e o universo que nos cerca, oferecem a nós um passeio com indagações e reflexões sobre o olhar. (Gilmar Camilo apud MAC, 2013, pp. 7-8)

2020 Finalmente, em 2020, acontece a exposição “Geração 80” no Centro Cultural da UFG, sob curadoria de Aguinaldo Coelho, artista plástico, professor da FAV/UFG e membro do Conselho Estadual de Cultura. Rememorando as artes plásticas da década de 1980, Coelho enfatiza a crise conceitual e a acusação de descompromisso político sofrida pelos jovens artistas da época, mesmo período que em Goiás também se acentuou o aspecto mercadológico da arte. Inicialmente queria dizer que a presente mostra no Centro Cultural UFG – CCUFG além de evidenciar o trabalho dos artistas expositores pertencentes ao seu acervo, dá oportunidade de revisitar a década de 80, com certeza especial na história recente da arte brasileira. Foram escolhidos os artistas do acervo presentes nas três exposições que tiveram como tema a produção dos anos 1980 (...): “Como Vai Você Geração 80”, na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro em 1984, “BR-80 Pintura Brasil Década 80”, em 9 capitais em 1991, “Onde Está Você Geração 80”, no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro em 2004. A exposição “Como Vai Você Geração 80” foi considerada o evento brasileiro de arte mais importante da década. Foi uma mega exposição que reuniu 123 artistas de 20 a 37 anos, sendo a maioria pintores, aconteceu numa época em que se discutia sobre a morte da pintura, diante da argumentação de que tudo já havia sido feito.

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Não havia na mostra uma linha conceitual única mas, pelo contrário, eclética. A produção não era cerebral como a arte dos anos 70, porém explicitava um rompimento (...). Politicamente vivia-se a abertura, com a volta dos exilados, Diretas Já e outras atitudes. Esse clima de alegria e, às vezes, euforia contagiou a produção que embora tivesse seus diálogos com artistas europeus e americanos que transitavam pelo pop, grafites, neo-expressionismo alemão, badpainting, transvanguarda, mantinha um hedonismo característico local, um caráter efêmero e uma impulsividade ligada talvez à pouca idade dos participantes. O crítico Frederico Morais enxergou a produção como uma reação ao hermetismo e ao caráter excessivamente intelectual que predominou nos anos 70, por meio da volta à subjetividade do artista com gestos e cores intensas. (...) É importante verificar que essa nova postura trouxe uma grande quantidade de jovens para as artes plásticas (o que não estava ocorrendo anteriormente) e demais linguagens artísticas (...). A Geração 80 foi muito criticada, alguns anos logo a seguir, talvez pela irreverência extrema, pela festa, pela questão do sensível, que já foi abordada pela imaturidade e ainda pelo aparente não engajamento político. Enfim, pela falta de compromisso com os valores e conteúdos dos anos 70. Mas o rompimento, a ruptura é uma desacomodação. Você festejar uma abertura política é um posicionamento. Você romper com certos formalismos também é. O fato é que o tempo mostrou o valor daqueles artistas pois temos exemplos de belas carreiras oriundas daqueles eventos. Se notabilizaram, tiveram êxito no mercado e se tornaram grandes nomes da arte contemporânea brasileira, alguns internacionais. (...) Os artistas Selma Parreira, Luiz Mauro, de Goiânia, e Elder Rocha, de Brasília, foram selecionados na BR-80 em 1991. (...) A presença destes artistas enriquece significativamente o acervo do CCUFG. (Aguinaldo Coelho apud CCUFG, 2020, pp. 6-8)

Aguinaldo Coelho, estimulado por sua própria vivência como aluno durante a década de 1980 da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, faz uma crítica abrangente sobre o espírito artístico do período, marcado pela irreverência não somente nas artes plásticas, mas também no teatro, com Luís Fernando Guimarães, Regina Casé, Evandro Mesquita, dentre outros atores, e na música, com Blitz, RPM e outros grupos do rock brasileiro, que, apesar de pertencerem a uma cena carioca, “repercutiam em todo o Brasil, visto que o Rio era uma vitrine cultural”. Tanto é que Aguinaldo Coelho cita artistas plásticos de todo o país que fizeram parte do movimento e que expuseram nas mostras dos anos 80 no Rio, que foram referidas na exposição do CCUFG; dentre eles os goianos Selma Parreira e Luiz Mauro. Coelho entende que a própria ruptura com a geração anterior já é uma “desacomodação”, um posicionamento contra formalismos na arte que é tão válido quanto um posicionamento no âmbito político.

Conclusão Dadas as amostragens de críticas de arte em Goiás que compreendem todas as décadas desde a inauguração oficial de Goiânia, percebemos que a crítica se inicia profundamente ufanista, ávida por construir na nova capital uma tradição que fizesse frente à capital antiga, fazendo-se uso inclusive da arte indígena e popular como meio de afirmação territorial e histórica. Olvidamos se em outras regiões do Brasil também houve no mesmo período dos anos 1950 um reconhecimento dessas artes pelas instituições intelectuais, voltadas à arte erudita. Os textos, que inicialmente se baseavam no enaltecimento de nomes notórios esparsos, paulatinamente foram contando a história do surgimento de grupos, alguns que se tornaram instituições, que reuniram artistas para fazer e pensar sobre a arte goiana. Tateando a construção de sua história, houve tropeços e acertos que levaram a um aquecimento do mercado de arte de Goiás na década de 1980, e depois sua queda, devido a contingências diversas, principalmente de cunho econômico. O fomento público impediu que essa história morresse, e hoje desfrutamos de textos críticos bem elaborados, eruditos, respaldados em teorias da arte e filosóficas, estimulados pelo contato frequente 79


e de longa data com críticos de peso nacional. Apesar disso, Goiás carece de novos nomes para a crítica de arte, permanecendo no circuito pessoas – merecidamente – consagradas durante as décadas de 80 e 90. O ufanismo, no entanto, não deixou de existir, apenas se amenizou. Como em qualquer localidade do Brasil e do mundo, o escritor goiano tende a enaltecer o artista de sua terra, que fala para seu povo, conta sua história e o representa em níveis nacional e internacional – tendência que é percebida inclusive no mercado de arte, onde se alcançam preços mais elevados com compradores locais. Os críticos de fora, por outro lado, enxergam amadorismos, exageros e presunções, mas também pontuam as qualidades. Nada anormal: apenas a arte, como linguagem e produto cultural que é, transmitindo mensagens diferentes a receptores de vivências diferentes.

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As primeiras exposições de arte em Goiânia e suas contribuições para a formação do modernismo goiano nas artes plásticas The first art exhibitions in Goiânia and their contributions to the formation of modernism in Goiânia in plastic arts Divino Sobral1

RESUMO: O artigo analisa as cinco primeiras exposições de arte realizadas em Goiânia pela Sociedade Pró-Arte de Goiaz e pela Escola Goiana de Belas Artes, e trata das suas contribuições para a formação do modernismo goiano nas artes plásticas entre as décadas de 1940-1950. Investiga a estrutura das mostras em seus aspectos teóricos e técnicos, arrolando artistas, conceitos curatoriais e relações com a História, discutindo a linguagem modernista criada entre os ambientes urbano e rural, gerada do encontro do imigrante com a cultura local e associada à ideia de identidade; esmiúça as implicações do bandeirantismo cultural, as relações com a arte Iny Karajá e com a arte popular e religiosa, além do encontro com o modernismo brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Modernismo goiano; exposições de arte; Sociedade Pró-Arte de Goiaz; Escola Goiana de Belas Artes; Congresso Nacional de Intelectuais. ABSTRACT: This article analyzes the first five art exhibitions held in Goiânia by the Sociedade Pró-Arte de Goiaz and the Escola Goiana de Belas Artes, dealing also with their contributions to the formation of art modernism in Goiânia between the 1940s and 1950s. It investigates the structure of the exhibitions in their theoretical and technical aspects, listing artists, curatorial concepts and relations with History, also discussing the modernist language elaborated by the encounter between urban and rural environments, as much as that of immigrants with local culture. These questions will be discussed with the idea of identity; exploring the cultural implications of cultural bandeirantismo, the relationship with Iny Karajá art and with popular and religious art, and their relations with Brazilian modernism. KEYWORDS: Modernism in Goiás; art exhibitions; Sociedade Pró-Arte de Goiaz; Escola Goiana de Belas Artes; Congresso Nacional de Intelectuais.

1 Artista visual, pesquisador e curador independente, de formação autodidata. Atua no circuito de arte desde 1990. Recebeu as premiações de curadoria do Salão Anapolino de Arte (2017) e do Prêmio Marcantonio Vilaça CNI SESI SENAI (2015); prêmio Crítica de Arte do Situações Brasília Prêmio de Artes Visuais do DF (2014); como artista recebeu o Prêmio Marcantonio Vilaça, MinC Funarte (2009), e o Prêmio Festival de Inverno de Bonito/MS (2005). Entre 2011 e 2013 foi Diretor do Museu de Arte Contemporânea de Goiás. Como ensaísta integra a Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos - Artes Visuais, publicado pela Funarte em 2017.

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Figura 1 - Exposição da Sociedade Pró-Arte de Goiaz. Sem data. Anos 1940. Coleção Guilherme Siqueira.

É significativa a importância das exposições para a escritura da História da Arte, não somente porque elas formam marcadores de épocas e de tendências, mas porque são fontes de transmissão de conhecimento, e por meio delas se tornam públicos processos criativos que ficariam na esfera privada dos ateliês dos artistas ou dos gabinetes de colecionadores, atingindo somente seus restritos frequentadores. Ao introduzirem as obras no espaço social, as exposições ampliam o alcance da obra de arte, que passa a ser compartilhada como um bem coletivo por um número maior de pessoas, compondo o discurso cultural da sociedade e revelando o espírito de seu tempo. A prática de realizar exposições na nascente cidade de Goiânia principiou com a mostra Exposição de Goiânia, que integrou as festividades de inauguração da cidade, em 1942, durante o evento chamado de Batismo Cultural. Montada nas dependências da também inaugurada Escola Técnica Federal de Goiás, a Exposição de Goiânia era um enorme painel propagandístico contendo informações sobre Goiás, além de conteúdo enviado pelos ministérios do Estado Novo (1937-1946) comandado por Getúlio Vargas (1882-1954). A expografia da exposição ficou nas mãos de José Amaral Neddermeyer (18941951), e uma única obra de arte foi apresentada: uma pintura de autoria do goiano Antônio Henrique Péclat (1913-1988), que assinava artisticamente Péclat de Chavannes, representando uma alegoria de caráter histórico que incluía o criador de Goiânia e o Palácio das Esmeraldas, nova sede do poder executivo estadual. O elogio à Pedro Ludovico (1891-1979) era uma das marcas da cultura produzida naquela época por aquele segmento social. Posteriormente, o quadro desapareceu nas dependências do Museu do Estado. Mas, enfim, a Exposição de Goiânia não foi uma exposição de arte, e a primeira com tal finalidade ocorreu três anos depois. Refletir sobre as primeiras exposições de arte realizadas em Goiânia significa refletir sobre as primeiras exposições institucionais realizadas em toda a Região Centro-Oeste, a segunda maior do território brasileiro. Aqui ocorreu um movimento peculiar da história da arte brasileira que ainda aguarda o trabalho de investigação histórica e crítica. Analisar o conjunto de cinco exposições realizadas no período de nove anos entre 1945 e 1954, 84


formado pelas três edições da Exposição de pintura, escultura e arquitetura da Sociedade Pró-Arte de Goiaz, pela Exposição Inaugural da Escola Goiana de Belas Artes e pela Exposição Comemorativa do I Congresso Nacional de Intelectuais, permite compreender os movimentos artísticos pioneiros que marcaram o pré-modernismo e o modernismo das artes plásticas em Goiás; também possibilita abordar a gênese do circuito local de arte que ocorreu concomitantemente ao processo de instauração do ensino superior de artes plásticas, compreender os primeiros processos de institucionalização da arte, as relações entre artistas, os modos de exibição das obras, o surgimento da crítica de arte e até do interesse do público pelas manifestações da arte. Esmiuçar essas exposições em suas afinidades e divergências nos permite indagar sobre os primórdios dos procedimentos técnicos e teóricos que estruturaram os primeiros trabalhos de curadoria, envolvendo critérios de escolha e padrões de classificação relacionados com a opção de narrativa estética, regimes de visibilidade e sistemas de poder implicados na institucionalização da arte, e mais, nos permite compreender o papel fundamental que elas tiveram para a estruturação do pensamento artístico modernista criado em Goiânia entre os anos 1940 e 1950. As exposições aqui analisadas foram experiências de fundação da primeira face do modernismo que aqui começava a se desenvolver.

As três edições da Exposição de pintura, escultura e arquitetura da Sociedade Pró-Arte de Goiás Três anos após o Batismo Cultural de Goiânia (1942), ocorreu o surgimento da Sociedade Pró-Arte de Goiaz (SPAG), capitaneada por José Neddermeyer, arquiteto, engenheiro, escritor, artista plástico e músico, paulista que chegara a Goiânia ainda nos anos 1930 para trabalhar nas obras da construção, sendo de sua autoria, por exemplo, o prédio do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Neddermeyer foi o Diretor Artístico da Sociedade Pró-Arte de Goiaz, entidade cultural que congregou personalidades como a escritora Regina Lacerda (1919-1992), a pianista Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005), artistas como o pintor Péclat de Chavannes, o pintor, desenhista e fotógrafo José Edilberto da Veiga (1906-1975), o arquiteto e escultor Jorge Félix de Souza (1908-?), entre outros nomes de diferentes áreas artísticas. Fundada em 1945 esteve ativa até 1949 realizando diversas atividades, das artes plásticas ao balé, tendo sempre a música erudita como carro chefe, apresentada pela Orquestra da Sociedade PróArte de Goiaz. As três exposições da Sociedade Pró-Arte de Goiáz ocorreram anualmente e antecederam as apresentações da orquestra, que atraía o público interessado por música e ainda desinteressado por artes plásticas, pois não havia produção volumosa para atrair os olhares e consequentemente não havia o gosto por fruição. Em sua primeira apresentação ao público goianiense, em 22 de outubro de 1945, a Sociedade Pró-Arte de Goiaz exibiu a I Exposição de pintura, escultura e arquitetura, montada nas dependências do Jóquei Clube, ponto de encontro da elite local. A mostra se repetiu nos dois anos seguintes durante os encontros da Sociedade, em 1946 e em 1947. As três edições da exposição registraram o crescente movimento em torno das artes plásticas: a primeira foi bastante modesta e contou com apenas dez trabalhos; na segunda subiu para dezessete o número de artistas participantes e para sessenta e sete o número de obras; mais expressiva, a terceira edição contou com vinte e cinco artistas e conseguiu exibir cento e quarenta e cinco obras. Além de ter guardado essa estatística, Aline Figueiredo destaca que nesta terceira edição mais da metade das obras eram de autoria de sete artistas residentes na antiga capital, a Cidade de Goiás2. A propósito da relação da Sociedade Pró-Arte de Goiaz com a produção de artistas provenientes do interior goiano, Amaury Menezes relata a presença de autores residentes na Cidade de Goiás, Pirenópolis, Catalão, Anápolis e Ipameri, sem, no entanto, identificar seus nomes ou suas obras3.

2 FIGUEIREDO, Aline. Artes Plásticas no Centro-Oeste. Cuiabá: Edições UFMT/MACP, 1979. P. 93 3 MENEZES, Amaury. Da Caverna ao Museu: Dicionário das Artes Plásticas em Goiás. Goiânia: Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira, 1998. P. 39.

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Figura 2 - Folder da Exposição Inaugural da Escola Goiana de Belas Artes. Goiânia, 1953. Coleção Divino Sobral.

A forte presença – seja pelo volume seja pela qualidade – dos artistas de cidades do interior na segunda e na terceira edições da exposição da SPAG aponta para o fato de que apesar de nascer em uma cidade novíssima criada sob a bandeira da modernização, o movimento pré-modernista da Sociedade Pró-Arte de Goiás não desfez os vínculos com o repertório interiorano e rural, que foi aos poucos sendo costurado no tecido da arte modernista que veio a surgir em Goiânia a partir da década seguinte. É difícil fazer o arrolamento dos artistas que exibiram obras nas exposições da SPAG. Mas é certo que tomaram parte de pelo menos uma das edições os nomes de José Neddermeyer, Antônio Henrique Péclat, Jorge Félix de Souza, José Edilberto da Veiga, Brasil Grassini (1889-1965), Regina Lacerda, Ariel Veiga (1933-1987), Ipiranga Curado (?-?), Goiandira do Couto (1915-2011), João do Couto (1923-?), Octo Marques (1915-1988), Paulo Rocha Neddermeyer (1926-1996) e também do fotógrafo italiano Silvio Berto (1908-2002). Outros nomes foram esquecidos nos arquivos mortos da memória. Fica claro pelo pouco volume de obras apresentadas na primeira edição que os primeiros artistas residentes em Goiânia não possuíam uma produção frequente, tendo antes realizado obras esporádicas ou de ocasião. Isto deve-se ao fato de que estavam empenhados em outras atividades, como a própria construção das edificações da cidade (Neddermeyer, Brasil Grassini), ou docência (José Edilberto da Veiga, Antônio Péclat), e deve-se também à ausência completa de qualquer tipo de apreço público ou de equipamento cultural dedicado às artes plásticas. No núcleo de artistas da antiga capital que ganhou destaque a partir da segunda edição da exposição, constavam os nomes de Goiandira do Couto, João do Couto e Octo Marques. Os irmãos Couto pertenciam à elite da antiga capital goiana, de família tradicional aprenderam a desenhar 86


com a mãe, que era pintora. A produção de Goiandira do Couto começou em 1933 e nos anos 1940 ela executava pinturas a óleo sobre tela com características acadêmicas, notadamente domésticas e bastante tradicionais e conservadoras, como as naturezas-mortas representando motivos de vasos de flores, pintadas em 1947. Goiandira, a partir de 1967, substituiu o óleo pelas areias coloridas da Serra Dourada e voltou-se para a poética regionalista, representando a paisagem iluminada da Cidade de Goiás que a fizeram conhecida. Também muito acadêmico e ao mesmo tempo regionalista, João do Couto era formado pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo e produziu desenhos a bico-de-pena caracterizados pelo pitoresco e pelo convencionalismo da forma realista, pela linguagem gráfica dada aos assuntos relacionados com a paisagem e a vida cotidiana da Cidade de Goiás. Por sua delicadeza cromática e pela honestidade de seu traço, o desenhista e pintor Octo Marques foi o mais singular entre eles; aprendeu a desenhar com um velho preso na cadeia da Cidade de Goiás, pintou ex-votos para romeiros do Divino Pai Eterno e registrou de maneira delicada a vida pacata da velha Cidade de Goiás ou dos arraiais em seu entorno, a tranquilidade das margens do Rio Araguaia, a vida dos tropeiros e boiadeiros vindos do sertão.

Figura 3 - Goiandira do Couto e Regina Lacerda pintando ao ar livre na Cidade de Goiás. Década de 1940. Foto de autoria desconhecida. Coleção Guilherme Siqueira.

A presença dos artistas da família Couto reforçava a linha acadêmica envelhecida, e junto com a presença de Octo Marques anunciava a aceitação da estética naturalista comprometida com o regionalismo da antiga capital, com as representações do ambiente interiorano e rural e da lida humana com ele, sendo o trabalho sertanejo bastante valorizado pela produção modernista de décadas posteriores que irá expressar nostalgia do passado diante da modernização do sertão. Por meio dos comentários sobre as exposições organizadas pela Sociedade Pró-Arte de Goiaz ocorreu o surgimento da crítica de arte em Goiânia, que se pronunciou anonimamente nas páginas do jornal Folha de Goiaz. Sobre a primeira edição da exposição, em 1945, composta por apenas dez trabalhos, apesar de saldar a coragem e o empenho dos organizadores, o comentarista disse que “não foi grande coisa”. Ao discorrer sobre a exposição analisou a falta de originalidade, a repetição de temas, apontou “os motivos simples, já bem explorados” e os “exercícios bem feitos de plástica”. Segundo a crítica da Folha de Goiaz “os autores expostos não se filiam, de modo algum, ao sadio esforço modernista de nossa pintura e demais artes plásticas”, contudo, não esclareceu qual era o esforço modernista das artes 87


plásticas empreendido em Goiás até o ano de 1945. Como não houve uma tradição artística anterior a Goiânia, não podia haver naquele momento um esforço modernizador que buscasse “o original, a visão nova, a fuga desesperada do balofo dos eternos velhos temas”. E se o novo estava ausente da exposição o que aparecia era a falta de originalidade, a repetição da visão antiga, os velhos assuntos exaustos. Prosseguindo a crítica dizia não haver na exposição “qualquer traço de revolução artística, um indício sequer que trouxesse o conhecimento das novas correntes”4. É necessário ressaltar que o desejo de modernização do comentarista era tamanho que ele olhou a exposição como se houvesse uma velha tradição artística com a qual fosse necessário romper. Aqui não havia a nova corrente porque não teve a velha corrente. Em Goiânia, a ideia de ruptura com o velho teve origem no imaginário político da construção da cidade, fundamentada no corte com o coronelismo da Velha República. A narrativa de modernização opunha-se também à narrativa do século XIX de decadência econômica, paralisia política e atraso cultural. A ruptura com o antigo regime aqui foi um imperativo político, social, urbanístico, arquitetônico. Tal ideal de ruptura atravessou a mentalidade do comentarista e gerou a falsa ideia de que anteriormente à construção de Goiânia existiu um movimento de artes plásticas em Goiás, ao qual o modernismo goianiense iria se opor, o que é um engano, pois não havia qualquer tipo de formação ou institucionalização do artista ou qualquer mercado ou meio de difusão para a obra de arte; haviam apenas raros artistas trabalhando aqui, ali ou acolá. A reunião de pouquíssimos trabalhos na primeira exposição da Sociedade pró-Arte de Goiaz – ainda que todos seguissem o modelo acadêmico ou tivessem influência neoclássica – não constitui uma tradição à qual se opor. Tudo era muito incipiente e desenraizado para se falar em uma tradição. Por outro lado, cabe colocar que o discurso de negação da tradição constitui uma importante face dos modelos herdados do modernismo europeu e do modernismo paulista de 1922, que podem ter contaminado a visão do comentarista da Folha de Goiaz. Sua visão modernista, seu aparente conhecimento das tendências europeias ou brasileiras, seu domínio do vocabulário artístico, sua capacidade de perceber, analisar e realizar julgamento de valor da obra de arte, demonstravam que se tratava de uma pessoa “mais consciente do sentido da arte”, portanto capaz de emitir tais críticas. Ao final, comentou trabalhos de Neddermeyer, Brasil Grassini e Péclat de Chavannes, e destacou como “Bem concebida e realizada” a mostra de cinco fotografias do ítalo-brasileiro Silvio Berto5. No ano seguinte, 1946, a Folha de Goiaz mudou o tom e publicou uma crítica elogiosa à II Exposição de pintura, escultura e arquitetura da SPAG. O jornal se posicionou como parceiro e apoiador da iniciativa, reconheceu que a segunda edição da exposição foi “um grande sucesso nos meios artísticos de Goiânia” e “o centro das atenções de nossa sociedade”, e também se comprometeu a publicar “diariamente notas sobre a exposição, mencionar de cada vez as obras de determinado autor”6. A crítica publicada em 1º de novembro de 1946 comentava as oito obras de Octo Marques, sendo seis pinturas a óleo e duas aquarelas, que representavam temas regionalistas extraídos do vale do Rio Araguaia, cenas tanto da natureza como Praia e Remanso, quanto das relações humanas de trabalho como Pescadores e Lavanderia, e mesmo os indígenas Chavantes. A crítica ressaltava as sensíveis qualidades cromáticas do trabalho de Octo Marques e destacava o interesse do artista pela “paisagem melancólica” e pelos “aspectos sociais do nosso sertão”7. Parece que foram dois autores diferentes que escreveram as duas críticas publicadas pela Folha de Goiaz e imortalizadas pela pesquisa de Aline Figueiredo. Se na primeira crítica, o comentarista puxava o tom para a ausência de inovação formal e temática da exposição, repercutindo a falta de tendências modernistas, na segunda crítica, o olhar voltado para a obra de Octo Marques foi generoso com a tradição, não reclamava da ausência de modernismo e da presença marcante do naturalismo e do regionalismo que caracterizavam a produção de Octo Marques, um artista que foi posto de lado pelos

4 Iniciação à arte em Goiás. Folha de Goiaz, 4-11-1945. In: FIGUEIREDO, Aline. Op. cit. P. 102. 5 Idem, ibdem. 6 Pró-Arte: exposição de pintura. Folha de Goiaz, Goiânia, 1º-11-1946. In: FIGUEIREDO, Aline. Op. Cit. P. 102. 7 Idem. Ibdem. P. 103.

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Figura 4 - Luiz Curado. Autorretrato. 1956. Xilogravura. Acervo do Centro Cultural UFG.

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grupos dominantes do modernismo goiano entre os anos 1950 e 1970. Ao analisar a composição das exposições de pintura, escultura e arquitetura organizadas pela Sociedade Pró-Arte de Goiaz, percebe-se no fermento inicial do circuito de arte em Goiânia, ainda que timidamente, algumas questões que serão aprofundadas e ampliadas com o desenvolvimento do modernismo local, como por exemplo: o encontro do conhecimento erudito com o saber popular; a união da linguagem urbana com o sotaque regionalista e com o assunto rural; o olhar da capital voltado à paisagem social e física do interior; o reconhecimento da artista mulher; a contribuição do imigrante e a participação da fotografia.

Exposição Inaugural da Escola Goiana de Belas Artes - 1953 O surgimento da Escola Goiana de Belas Artes é um dos grandes marcos do modernismo em Goiás. Foi fundada em 1952 pelos artistas Luiz Curado (1919-1996), Nazareno Confaloni (1917-1977), Gustav Ritter (191401979), Antônio Henrique Péclat, José Edilberto da Veiga, Jorge Félix de Sousa, pelo poeta José Lopes Rodrigues (1908-?) e pelo médico Luiz da Glória Mendes (?-?), além de Dom Abel Ribeiro Camelo (1902-1966), à época Bispo-Auxiliar de Goiânia – uma vez que a escola estava de certa forma ligada à Cúria Metropolitana. O início das atividades da EGBA, em 1953, foi marcado pela Exposição Inaugural da Escola Goiana de Belas Artes, uma grandiosa mostra que teve sua abertura no dia 28 de março, com cerimônia oficial realizada dois dias após, e que recebeu o público diariamente até 20 de abril, em sua primeira sede provisória localizada na rua 9, nº 35, Centro, em propriedade que pertencia à viúva de José Amaral Neddermeyer, falecido em 1951. O primeiro Diretor da EGBA foi Luiz Curado, principal responsável pela sua fundação, artista de pequena, mas coesa, produção, pessoa de grande conhecimento sobre a cultura goiana e com grande trânsito social que conseguiu juntar o empenho dos artistas ao interesse da Igreja Católica em torno do objetivo comum. A exposição aconteceu quando ainda tramitavam os processos legais para a institucionalização da EGBA, ou seja, antes mesmo da autorização de funcionamento que só ocorreu cerca de dois meses depois da abertura da mostra, o que pode apontar a intenção de Luiz Curado de pressionar os andamentos burocráticos. A Escola Goiana de Belas Artes iniciou suas atividades pedagógicas em 1953 ministrando o curso preparatório para o vestibular, que seria realizado no início do ano seguinte. Começou seus três cursos oficiais em 1954, sendo de Pintura e de Escultura destinados aos artistas, e de Desenho Aplicado destinado aos profissionais relacionados com a produção aplicada às necessidades da indústria e do comércio, sendo o primeiro curso deste gênero a funcionar no Brasil. Em 1968 fora criado o curso de arquitetura na EGBA. Em 1972 nasceu a Faculdade de Arquitetura da UCG e a EGBA foi extinta. A Exposição Inaugural da EGBA em 1953 foi um grande projeto que também inaugurou a atividade de curadoria em Goiânia. Idealizada e montada por Nazareno Confaloni, Gustav Ritter, Luiz Curado e José Edilberto da Veiga, reuniu um conjunto de duzentas e oitenta obras distribuídas em dois setores dispostos em quatro salas distintas. A amplitude da exposição expressava o desejo de seus mentores de inventariar as principais referências estéticas da identidade de Goiás, e de colocá-las em conversação com a produção moderna nascente, que não se opunha à tradição. Eis a peculiaridade do modernismo goiano: nasceu justamente dentro de uma academia que também nascia, em um parto que se voltava para o popular e o autóctone para pensar a condição moderna. O primeiro setor da exposição, montado em três salas distintas, foi concebido como um conjunto de homenagens a algumas personalidades históricas acrescido da cultura karajá. A Sala 1 intitulada Homenagem ao Dr. José Neddermeyer, “grande batalhador pelas artes, em

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Goiânia”8, reuniu quatorze obras pertencentes à coleção da família de Neddermeyer, eram pinturas a óleo, aquarelas, desenhos a bico de pena e a carvão, ilustrações para poemas de sua autoria e peças tridimensionais em gesso. O paulista Neddermeyer era arquiteto formado pela Universidade Mackenzie e também havia estudado escultura no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Não produziu grande quantidade de obras plásticas e as poucas existentes revelavam seu apreço aos valores acadêmicos da pintura e da escultura, com a predominância de gêneros como retrato e paisagem, executados com desenvoltura em observância aos cânones. A Sala 2 intitulada Nossos índios carajás prestou homenagem à arte autóctone do povo Karajá sob a legenda de “primitivos artistas de Goiás”9. Estavam reunidas trinta e cinco peças coletadas no acervo do Museu do Estado e nas coleções de Dom Candido Penso (1895-1959), o Bispo da Cidade de Goiás, e de Nazareno Confaloni. É necessário destacar que metade do conjunto exibido pertencia a uma instituição e a outra metade aos membros da Ordem Dominicana de origem italiana, os goianos até então não conceituavam o trabalho da cerâmica karajá como estético, artístico. A importância que o trabalho Karajá tinha nesse contexto para os artistas do movimento modernista em Goiás pode ser avaliada pela capa do folder da exposição que ostentava a apropriação da arte Karajá por meio da ilustração de duas ritxoko, bonecas criadas pelas mulheres Karajá com modelagem em argila que representavam figuras humanas bastante abstraídas e cobertas com adornos corporais de natureza geométrica, pintadas após a queima com o preto da tinta produzida pela mistura do extrato de jenipapo verde misturado ao pó de carvão, e com o vermelho obtido do urucum; as bonecas são caracterizadas por simplicidade e economia formal, e desempenham um papel pedagógico na cultura Karajá, nascida às margens e dentro das águas do rio Araguaia. A imagem da ritxoko tornou-se a marca da Escola Goiana de Belas Artes e foi também reproduzida nas capas dos folders de apresentação dos cursos da EGBA e da grandiosa Exposição Nacional de Artes Plásticas, realizada em 1954. A Escola Goiana de Belas Artes, principalmente por influência de Nazareno Confaloni e Luiz Curado, considerava a arte Karajá como a primeira produção artística do solo goiano, concedia às ritxoko alto valor artístico e cultural e homenageava os Karajá como seus patronos10. A Sala 3 foi intitulada Esculturas do goiano Veiga Valle, concentrou a imaginária sacra do artista nascido em Pirenópolis e que trabalhou grande parte de sua vida na Cidade de Goiás. Fora a segunda vez que a obra de Veiga Valle (1808-1874) era apresentada em exposição11, e foram exibidas vinte obras, sendo duas coletadas na Igreja da Abadia e uma no Cemitério da Cidade de Goiás, as outras dezessete procediam de coleções privadas e de descendentes do artista. A obra de Veiga Valle é a maior referência artística de Goiás no século XIX, considerada exemplo do rococó, tanto por ser graciosa e desprovida da dramaticidade barroca quanto por estar posicionada em tempo posterior àquele estilo; é caracterizada pela expressão do sublime e construída por meio de talha segura, que demonstra conhecimento de anatomia sob os panejamentos complexos e movimentados, possui carnação refinada, douração esmerada e pintura sofisticada com vasto repertório de florões e filigranas, ornamentos esgrafiados por onde vaza o brilho da douração. A referência constante à obra de Veiga Valle e a preocupação com o patrimônio de arte sacra das antigas igrejas de Goiás, manifestadas pela Escola Goiana de Belas Artes, junto com a influência do sacerdote dominicano Nazareno Confaloni, alimentou o apreço de muitos modernistas locais por temas religiosos. O segundo setor da exposição foi instalado no Salão Central e intitulado Trabalhos dos professores da EGBA. Pelo que indica o folder editado para a mostra, as duzentas e vinte e uma obras deste setor foram montadas seguindo o ordenamento por categorias e autores: pinturas a óleo de Confaloni, Péclat de Chavannes, José Edilberto da Veiga, Jorge Félix de Sousa; afrescos de Confaloni; aquarelas de Confaloni, Ritter e Luiz Curado; desenhos de Confaloni, Ritter, Péclat, Veiga e Félix de

8 Folder da Exposição Inaugural da Escola Goiana de Belas Artes. Goiânia, 1953. 9 Idem, ibdem. 10 LACERDA, Regina. O que foi a Exposição Nacional de Intelectuais. In: FIGUEIREDO, Aline. Op cit. P. 103. 11 Quando em pesquisa para documentar o patrimônio da Cidade de Goiás, no ano de 1940, o pintor e restaurador João Rescala (1910-1986) realizou a primeira exposição de Veiga Valle, que reuniu vinte e cinco obras apresentadas no Liceu de Goiás.

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Sousa; xilogravuras de Luiz Curado; estudos para escultura de Ritter e Curado; fotografias de Veiga e Curado; esculturas de Ritter, Curado e Péclat, além de uma escultura de tema indianista de autoria desconhecida pertencente à coleção do Dr. W. Sonnenberg (?-?). O documento informa ainda a presença na exposição de reproduções de obras celebres da história da arte, colocadas a título pedagógico para contribuir com a formação do olhar do público de arte que começava a surgir em Goiânia. A análise do folder, enquanto documento histórico, permite chegar a algumas conclusões a respeito do que veio significar esta exposição para o ambiente germinal da arte dez anos após a inauguração da cidade. Afinada com o paradigma acadêmico e com a hierarquia da história da arte, na EGBA a pintura a óleo era considerada a principal categoria artística pelo volume de obras, pelo número de artistas a operar com o meio e pelo cuidado com a catalogação dos trabalhos desta categoria, incluindo a identificação dos títulos. Quatro dos seis professores-artistas se dedicavam à pintura. Também a presença expressiva de pinturas de Nazareno Confaloni, um pintor compulsivo, demonstrava que sua influência sobre o ensino da EGBA foi maior do que a dos demais artistas, o que também colaborou para que a pintura fosse a categoria artística mais valorizada na formação oferecida pela EGBA. A produção de Nazareno Confaloni, já naquele momento, estava comprometida tanto com os códigos do modernismo de retorno à ordem quanto com a temática regionalista que procurava identificar o espírito da goianidade. Ao lado de assuntos convencionais como natureza-morta ou retrato, estavam paisagens goianas do “Rio Araguaia” ou do “Rio Vermelho”, representações de cenas e personagens como “Canoa carajá”, “Tropa”, “Cancioneiro”, “Ranchos” e “Rede no mato” (títulos de alguns trabalhos do artista apresentados na exposição). Os assuntos regionais também predominaram nas pinturas dos outros artistas: José Edilberto da Veiga apresentou cenas de “Quintal na roça”, “Tapera”, “Caminho da taipa”; Jorge Félix de Sousa exibiu cenas de “Fundo de quintal”, “Rancho” ou “Beira d´água”; Péclat de Chavannes mostrou “Ipê amarelo”, “Vila Bôa” e “Preparando a roça”. Os títulos aqui destacados demonstram que os artistas estavam interessados em recuperar o sentimento de identidade cultural conectado com as experiências da memória rural, e que Goiânia, uma cidade criada para modernizar o Estado, desde cedo teve as raízes de sua produção artística fincadas no terreno sertanejo. A tímida presença das nove obras de escultura presentes na exposição deve-se ao fato de que Gustav Ritter ainda não estava na plenitude de seu ofício logo após chegar a Goiânia em 1949, depois de sucessivas mudanças de países, de cidades e de ocupações profissionais. As cinco esculturas exibidas por ele já revelavam a linha econômica, o esmero com a matéria e a busca pela síntese, que firmaram posteriormente sua obra como referência da escultura em Goiás. Na escultura de Ritter dessa época não há alusões ao regionalismo goiano. Os demais trabalhos tridimensionais eram mais ensaios avulsos de Luiz Curado e de Péclat do que obras elaboradas pela complexidade do raciocínio escultórico. Surpreendente foi a inserção de quarenta trabalhos fotográficos assinados por José Edilberto da Veiga e por Luiz Curado no conjunto mostrado na exposição, convivendo com obras das categorias artísticas tradicionais e sacralizadas. Era bastante incomum esse tipo de convivência nas exposições de arte do período, quando a fotografia ainda aguardava pelo pleno reconhecimento de sua condição artística. Cada um dos autores apresentou vinte imagens dando a ver o desenrolar de suas pesquisas e as estruturas de suas linguagens. José Edilberto da Veiga era reconhecido por seu talento para realizar pinturas inundadas pela luminosidade, para fazer paisagens ou retratos, dono de desenho fluído também trabalhou bastante com fotografia; Luiz Curado era grande apreciador da fotografia, paixão que herdou de seu sogro Joaquim Craveiro, um dos mais antigos fotógrafos de Goiás. Não houve ruptura e sim integração, não houve negação do passado na exposição inaugural da Escola Goiana de Belas Artes. Ela instaurou um modernismo sem desencadear o apagamento das artes religiosa, popular e indígena existentes anteriormente. Também não silenciou quanto à importante contribuição de José Neddermeyer e, consequentemente, da Sociedade Pró-Arte de Goiaz. A exposição inaugural da EGBA foi um marco inaugural do nosso modernismo nas artes plásticas e trouxe o passado para o centro do debate moderno, para problematizar o conceito de identidade cultural a partir do repertório trazido do interior e das bordas de Goiás. 92


Além disto, outro fato que sinaliza a construção de um modernismo sem ruptura, é que três artistas com formações bastante acadêmicas e bastante atuantes na Sociedade Pró-Arte de Goiaz, tornaram-se professores fundadores da Escola Goiana de Artes, onde compunham metade do quadro de professores de disciplinas artísticas: Péclat de Chavannes ministrava pintura e composição decorativa, José Edilberto da Veiga lecionava desenho de modelo vivo e fotografia; Jorge Félix de Souza por sua vez cuidava de geometria descritiva, perspectiva, ornamentos e elementos de arquitetura. O que estabeleceu uma continuidade de ideologia artística da SPAG dentro da EGBA. Também integrante da antiga SPAG, a folclorista Regina Lacerda foi agregada pela EGBA como secretária.

Exposição Comemorativa do Primeiro Congresso Nacional de Intelectuais - 1954 O I Congresso Nacional de intelectuais em Goiânia, organizado pela Academia Goiana de Letras e pela União Brasileira de Escritores Secção de Goiás reuniu em Goiânia, em fevereiro de 1954, grande número de artistas, escritores, arquitetos, sociólogos, músicos, jornalistas e intelectuais brasileiros e internacionais. A Escola Goiana de Belas Artes iniciava seu primeiro ano letivo quando foi convidada a colaborar com o congresso com uma exposição de artes plásticas. Secretária da EGBA, Regina Lacerda relatou no artigo O que foi a Exposição do Congresso Nacional de Intelectuais todo processo da exposição. Segundo ela, o convite foi compreendido pelos professores da EGBA como “oportunidade para a escola dar a conhecer ao público do Brasil a expressão artística de que é dotada a gente de nosso Estado, e trazer à esta gente os valores reais do resto do Brasil”12. Os professores da EGBA responsáveis pela exposição estavam afinados com as diretrizes principais do evento, anunciadas na convocatória elaborada pelos organizadores do congresso, quais sejam: defesa da cultura brasileira e estímulo ao seu desenvolvimento, preservando-se as suas características nacionais; intercâmbio cultural com todos os povos; problemas éticos e profissionais dos intelectuais13. Esta pauta direcionou a concepção curatorial da Exposição Comemorativa do I Congresso Nacional de Intelectuais, ao ponto que a Comissão Organizadora da exposição, composta por Luiz Curado, Nazareno Confaloni e Gustav Ritter, anotou que “Para a preservação da arte nacional é indispensável o conhecimento da expressão artística popular”14. O mergulho na cultura goiana feito pelos organizadores/curadores em direção às raízes profundas, permitiu a criação de uma exposição que deu visibilidade às origens arcaicas da arte goiana, reunindo peças da cultura indígena, da arte sacra popular, dos ex-votos, do artesanato do povo, e mais o patrimônio do artista Veiga Valle. A mostra promoveu um amplo levantamento de referências artísticas ligadas à formação da identidade do povo goiano e a isto acrescentou a linguagem dos artistas modernistas goianos e brasileiros. A exposição proporcionou ao público o encontro com muitos tempos da história, muitos pensamentos estéticos, muitas linguagens e tendências, muitos sotaques e procedências. O que era passado foi potencializado ao lado do modernismo que acabara de chegar. Em seu artigo, Regina Lacerda comentou muitos aspectos da organização, do conteúdo, da apresentação e da recepção da exposição. Ao começar, fez a listagem dos problemas enfrentados à época para realizar uma exposição daquela grandeza: falta de verbas, obstáculos burocráticos, dificuldades para obter empréstimos de obras, transporte dificultado pelas estradas enlameadas pelas chuvas de verão, grande volume de documentos – ao que eu acrescento também a dificuldade de conseguir espaço para abrigar a mostra. Enfim, complicações específicas das atividades de curadoria e produção de exposições, que naquele momento eram inauguradas em Goiânia.

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LACERDA. Regina. Op. cit. P. 103. MOTA, Ático Vilas-Boas da. O Congresso Nacional de Intelectuais. In: MENEZES, Amaury. Op Cit. P. 45. LACERDA, Regina. Op. Cit. P. 103.

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Regina Lacerda também esclareceu a divisão dos trabalhos entre os professores da EGBA envolvidos diretamente com a exposição: Luiz Curado e Nazareno Confaloni viajavam pelas cidades do interior para negociar com artistas e proprietários de obras a fim de coletar material a ser trazido para a capital, além de conceber e desenhar o programa da exposição; Gustav Ritter foi incumbido de criar o cartaz e de tomar as medidas necessárias em Goiânia. É possível aventar que o percurso trilhado em 1953 por Curado, Confaloni e Ritter para realizar a Exposição Inaugural da Escola Goiana de Belas Artes, de certa forma pode ter facilitado os processos para a realização da exposição do congresso, em 1954, pelo menos no que tange à exibição das obras de Veiga Valle e da arte Karajá. A Exposição Comemorativa do Primeiro Congresso Nacional de Intelectuais aconteceu entre 18 e 27 de fevereiro de 1954 e reuniu 127 artistas, num conjunto de 720 peças de diferentes naturezas e procedências, e transformou-se no ápice do congresso, foco do interesse e dos elogios de muitos comentaristas do evento. Em sua grandiosidade material, sua abrangência de tempos e estilos, sua complexa riqueza simbólica, a exposição reuniu diferenças que de certa maneira conversavam entre si. Apesar das poucas fotografias da exposição publicadas pela EGBA mostrarem que a montagem era bastante saturada e sem respiros intervalares entre obras de distintas origens e naturezas, no relato de Regina Lacerda se encontra a ideia de divisão de setores. O setor dedicado à Arte Popular reuniu trabalhos de treze artistas goianos que, segundo as palavras de Nazareno Confaloni, “cantaram com sinceridade e grandeza a própria fé e a melancolia do sertão”15. Regina Lacerda transcreve em seu artigo o comentário de Ivonne Jean publicado no jornal paulista Folha da Manhã, segundo o qual o setor de arte popular ocupou o grande salão central e “foi uma revelação para todos os intelectuais presentes em Goiânia”. A comentarista exaltou a alta qualidade dos trabalhos exibidos e elogiou a apresentação dada a eles, considerando o setor exitoso pela qualidade e beleza das obras e pela demonstração de “que os goianos não desprezam suas riquezas artísticas populares”16. Eram artistas residentes em cidades do interior, alguns conhecidos como santeiros, que trabalhavam o entalhe em madeira e a cerâmica para construírem seus trabalhos. Foram apresentadas obras de Antônio Cassiano (?-?), Antônio de Sá (1879-1905), Celso José Nascimento (?-?), Fiinho Cardoso (?-?), Hilda Andrade (?-?), João da Glória (?-?), José do Nascimento (?-?), Ladislau Siqueira (?-?), Maria Bruno (?-?), Maria Luiza Nascimento Santos (?-?), Maria de Beni (1919-1984), Sebastião da Silva Jesus (?-?) e Sebastião Epifânio (1869-1937). Dos doze artistas, somente encontrei registros sobre cinco, os demais ainda aguardam uma investigação mais minuciosa. Na lista de nomes de artistas populares, Regina Lacerda repete o nome Sebastião. Segundo Amphilóphio de Alencar Filho, Sebastião da Silva de Jesus é o nome civil de Sebastião Epifânio. Portanto, eram onze artistas populares na exposição. Nascido na Cidade de Goiás, Epifânio absorveu o imaginário da escultura sacra dos altares das igrejas, e além de artista plástico foi músico. Realizava trabalhos que eram produzidos em cerâmica ou esculpidos na madeira macia do buriti usando um canivete. Em uma técnica ou noutra, suas peças eram bastante coloridas pintadas com tinta a óleo. Famoso foi o seu presépio com centenas de personagens: figuras sagradas, animais, cenas rurais, banda de música, tipos de rua, reprodução de personagens polêmicos e de “fatos interessantes ocorridos durante o ano”17. Segundo Amphilóphio de Alencar Filho, a obra de Epifânio possuía características maneiristas18. Maria Fleury, conhecida artisticamente como Maria de Beni, tem duas datas de nascimento: uma anotada por Amphilóphio de Alencar Filho19 (que emprego acima), e outra, 1919, anotada por Amaury

15 CONFALONI, Nazareno. Encontro de épocas artísticas. In: Renovação. Goiânia: Fundação Pio XVII. P. 24. 16 JEAN, Ivonne. Apud LACERDA. Op cit. P. 104. 17 LACERDA, Regina. Vila Boa. Apud CURADO, Luiz A. do Carmo. Goyaz e Serradourada por J. Craveiro. Goiânia: Edição do autor, 1994. P. 79. 18 FILHO, Amphilóphio de Alencar. Cinco santeiros goianos: uma apreciação. Revista Goiana de Artes, Vol.5, nº1, Jan/Jun, 1984. P. 10. 19 Idem, ibdem. P. 12.

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Menezes20. Viveu na zona rural e depois em Pirenópolis onde criou obras ligadas ao imaginário religioso e ao folclore local. Segundo Aline Figueiredo, trabalhou primeiramente com pinturas sobre casca de mandioca e entalhes em casca de madeira21, e depois de 1950 passou a empregar a cerâmica para modelar peças singulares de rara delicadeza, que tirava partido da forma das figuras de santos e santas sobre peanhas volumosas e fantasiosas. Maria de Beni foi a criadora dos cavaleiros de cavalhadas executados em cerâmica, com adereços de tecidos, lantejoulas e plumas, hoje tornados suvenir pirenopolino. Antônio de Sá viveu apenas 26 anos de idade, nasceu em Pirenópolis onde atuou intensamente como artista plástico, compositor, poeta, marceneiro e editor de um jornal próprio. Por causa da vida curta e das muitas atividades que empreendia, sua produção foi bem pequena. O pesquisador Amphilóphio de Alencar Filho identificou cinco imagens em madeira policromada de sua autoria, nas quais levantou as inesperadas características da produção de Antônio Sá: a ambiguidade e androgenia dos meninos Jesus com rostos e corpos femininos e com genitais masculinos, com corpos ao mesmo tempo infantis e adultos22. Na revista Renovação, Nazareno Confaloni, em artigo intitulado Encontro de épocas artísticas, fez referência à importância dos trabalhos de dois artistas populares apresentados pela exposição. Sobre Celso José Nascimento escreveu: “no seu Cristo da Cana é verdadeiramente grande pela escultura sólida e plástica que soube imprimir nesta obra”. Chamado afetivamente de Antônio Cassianinho na legenda da fotografia de seu trabalho na revista Renovação, o ceramista Antônio Cassiano era natural de Jaraguá e com apenas 12 anos de idade integrou a mostra da EGBA; sobre ele, Nazareno Confaloni fez referência à grandeza contida “nos seus bichinhos estilizados e expressivos de estrutura quase anti-diluviana”23. Complementando o setor de arte popular, estava o setor de ex-votos composto por peças provenientes da Sala dos Milagres do Santuário Velho de Trindade, surgida nas primeiras décadas do século XX para receber e expor os objetos de ex-votos, produtos do imaginário goiano que ligam a arte à devoção popular ao Divino Pai Eterno. É importante observar que a influência do imaginário dos ex-votos foi marcante para duas artistas formadas na Escola Goiana de Belas Artes, refletiu tanto na pintura de Miriam Inez da Silva (1937-1996), que era nascida em Trindade e formada na primeira turma da EGBA, quanto na escultura de Ana Maria Pacheco (1943-). O setor dedicado à Arte Karajá mostrou os Patronos da EGBA. Segundo o registro feito por Regina Lacerda, o comentarista argentino Bernardo Kordon, impactado pelo que viu, escreveu: “Fué el arte carajá la sensacion de esta notable exposición de arte”24. A cultura plástica do povo nascido do Rio Araguaia foi muito valorizada pela EGBA, que pela segunda vez a apresentava ao público por meio do conjunto que incluía peças em cerâmica, armamentos, ornamentos e utensílios domésticos. Apesar da apropriação cultural feita pela EGBA, naquela época era grande ousadia trazer a cultura Karajá ao centro do debate cultural e exaltar a beleza e a potência de sua expressão plástica, pois os povos indígenas ainda eram vistos como hostis, violentos, incapacitados. Mostrar o trabalho Karajá foi um modo de contribuir para o polimento do tratamento dado pela sociedade aos povos indígenas. O setor de obras do escultor Veiga Valle foi menos volumoso devido às muitas negativas de empréstimos dos proprietários de obras, e apresentou um conjunto formado por dezessete esculturas, três a menos que na exposição de inauguração da EGBA, realizada no ano anterior. Segundo o relato de Regina Lacerda, o setor das Representações dos Estados reuniu trezentas e dezessete obras, entre pinturas a óleo, gravuras, desenhos e esculturas, de cento e doze artistas de diferentes tendências e gerações, provenientes de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Sul e Goiás. Para formar a composição das representações foram expedidas pela EGBA centenas de cartas a instituições, escolas e grupos de artistas, e o resultado foi bastante positivo com

20 MENEZES. Amaury. Op. cit. P. 179. 21 FIGUEIREDO. Aline. Op. cit. P. 304. 22 FILHO. Amphilóphio de Alencar. Op. cit. P. 8. 23 CONFALONI, Nazareno. Op. Cit. P. 24. 24 KORDON, Bernardo. Apud LACERDA, Regina. O que foi a exposição do Congresso nacional de Intelectuais. In: FIGUEIREDO. P. 104.

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muitas e significativas participações. No panorama das representações estaduais estavam presentes alguns dos artistas mais relevantes do modernismo brasileiro, e assim estavam também reunidos alguns dos problemas de linguagem e de poética produzidos a partir de 1922 até o ano de 1954, quando foi realizada a Exposição Comemorativa do I Congresso Nacional de Intelectuais. É interessante observar o que foi apresentado ao público goiano como arte moderna brasileira, e como os organizadores conseguiram reunir participações de artistas tão diferentes. Exatamente por não saber quais foram os trabalhos apresentados pelos artistas na exposição, creio que comentar brevemente alguns dos nomes mais destacados, agrupados pelo raciocínio das representações estaduais (mencionado por Regina Lacerda, embora sua listagem não tenha seguido ordem geográfica), possa ajudar a compreender o que foi oferecido enquanto conceito ou conceitos da arte moderna nacional. De São Paulo estavam: Sérgio Milliet (1898-1966), artista e crítico de arte, havia participado da Semana de Arte Moderna de 1922 e na época era diretor artístico do Museu de Arte Moderna de São Paulo e da Bienal Internacional de São Paulo; Alfredo Volpi (1896-1988), Francisco Rebolo (19021980), Mario Zanini (1907-1971) e Clóvis Graciano (1907-1988), originalmente ligados ao Grupo Santa Helena, sendo que Volpi já começara sua pesquisa construtivista baseado na arte popular; Antônio Gomide (1895-1967) vinha da segunda geração de modernistas paulistas que integrava o movimento de retorno à ordem; Geraldo de Barros (1923-1998) naquela altura havia tomado parte do Grupo Ruptura, marco do concretismo paulista, e se aproximava do design; Mario Gruber (1927-2011) fazia gravuras representando temas sociais; Marcelo Grassmann (1925-2013) aprofundava seu imaginário fantástico; o escultor Bruno Giorgi (1905-1993) chegava à depuração de seu trabalho com a figura humana; José Antônio da Silva (1909-1996), tido como primitivista e crítico, trazia a memória da paisagem e do trabalho rural. Do Rio de Janeiro participaram: Georgina de Albuquerque (1885-1962), artista que inseriu o olhar feminino na pintura histórica e que na época da exposição era Diretora da Escola Nacional de Belas Artes; Carlos Oswald (1882-1971), o autor do desenho do Cristo Redentor e um importante formador de gerações de gravadores; Oswaldo Goeldi (1895-1961) havia ganho o prêmio de gravura da I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, e exposto na Bienal de Veneza; Djanira (1914-1979) naquele momento viajava pelo interior do país para compreender a complexa, miscigenada e sincrética visualidade brasileira; Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), artista portuguesa ligada à abstração, residiu por um período no Rio de Janeiro, onde contribuiu para a formação de artistas de linhagem abstrata; Renina Katz (1925-) aprofundava o realismo social trabalhando temas como as favelas em suas gravuras. De Pernambuco estavam: Cícero Dias (1907-2003) que com sólida carreira internacional e após longa obra figurativa chegava na abstração geométrica; Abelardo da Hora (1924-2014), um gravador e escultor dedicado aos temas sociais, um dos criadores e diretores da Sociedade de Arte Moderna de Recife (1948), e responsável pelas atividades do Ateliê Coletivo (1952), que na época da exposição era dirigido por ele. As figuras populares povoavam as obras de Abelardo e dos membros do ateliê de gravura comprometidos com a formulação de uma arte brasileira, estruturada pelos saberes de base da cultura regional nordestina. Wellingnton Virgolino (1929-1988) assumiu a pintura como meio e os trabalhadores como assunto para pinturas; Gilvan Samico (1928-2013), xilogravador inteiramente influenciado pelo regionalismo; Vitalino (1909-1963) e Zé Caboclo (1921-1973), grandes mestres da cerâmica popular nordestina, exemplos da originalidade do sertanejo brasileiro A representação do Rio Grande do Sul foi composta pelos gravadores que agitavam a cena gaúcha: Carlos Scliar (1920-2001) divulgava as ideias de arte com comprometimento social e da gravura como instrumento de formação política em defesa da paz (o período é posterior II Guerra) e de difusão e popularização da arte. O tratamento de temas regionais e a crítica social marcaram Glauco Rodrigues (1929-2004), Glênio Bianchetti (1928-2014) e Danúbio Gonçalves (1925-2019). O realismo caracterizou o trabalho de Vasco Prado (1914-1998) tanto na escultura quanto na gravura. Ailema Bianchetti (1926), Carlos Mancuso (1930-), Carlos Petrucci (1919-2012), Edgar Koetz (1914-1969), e Gastão Hofstetter (1917-1986) também compareceram na exposição. O comprometimento com temas políticos e causas sociais caracterizou os trabalhos dos clubes de gravuras de Porto Alegre, que surgiu em 1950, e de Bajé, 96


que foi criado em 1951. Os gaúchos constituíram a maior representação de um grupo organizado de artistas na exposição, que deixava claro o programa artístico moderno em processo no Rio Grande do Sul. Na pequena representação do Paraná: Guido Viaro (1897-1971) realizava trabalhos de nuance expressionista, interessado em representar as angústias seja das pessoas comuns seja das santificadas. Gunther Schierz (?-?), alemão, gravador e pintor que havia estudado com Käthe Kollwitz (1867-1945), artista mestre do expressionismo. Embora não listado por Regina Lacerda, segundo Amaury Menezes, o gravador Loio Pérsio (1927-2004) também esteve presente25. Do Ceará consta o nome de Floriano. Acredito tratar-se de Floriano Teixeira (1923-2000) artista que foi um dos fundadores da Sociedade Pró-Arte de Fortaleza em 1950 e do Grupo dos Independentes em 1951. De Goiás estava presente o trio de artistas mais atuantes da EGBA: Antônio Henrique Péclat, Gustav Ritter, Nazareno Confaloni. O primeiro era o único goiano de nascimento, os outros dois eram imigrantes recém radicados em Goiânia, em 1949 e 1953 respectivamente. O conjunto teve ainda a participação do fotógrafo Joaquim Craveiro de Sá (1885-1973), um dos primeiros fotógrafos que registrou intensamente a vida e a paisagem da Cidade de Goiás e de seus entornos, entre 1911 e 1915, tendo pertencido a Luiz Curado o acervo fotográfico herdado de seu sogro.

Modernismo bandeirantista Importante frisar que Regina Lacerda registrou que os artistas da Escola Goiana de Belas Artes, professores e alunos, foram “catalogados juntamente à representação de São Paulo”26. Ela mencionou que alunos da EGBA integraram a exposição. Porém, a escola naquele momento iniciava as atividades letivas da primeira turma, concursada pelo vestibular a pouco realizado, e me parece que era atitude bastante corajosa colocar jovens iniciantes ao lado de nomes bastante experientes, como aqueles paulistas que atenderam ao convite para participar da exposição. Contudo não foram identificados pela autora os nomes dos estudantes que tomaram parte no evento. Sabe-se que Miriam Inês da Silva e Maria Guilhermina foram da primeira turma, mas não constam seus nomes no arrolamento de Regina Lacerda, e a participação na mostra não é confirmada nos currículos das artistas. Como Regina Lacerda não especificou quais ou quantos eram os estudantes da EGBA que tomaram parte na exposição, não é possível mensurar a dimensão dessa representação, e nem perceber se depois dessa conversação entre obras na exposição, os estudantes da EGBA, que construiriam a segunda geração do modernismo goiano, passaram a ser influenciados pelo paulista. O laço de natureza histórica-política-econômica-afetiva pode ser o motivo que levou a representação goiana a se colocar junto à paulista. Na verdade, sou levado a crer que se tratava de sintoma da influência do pensamento bandeirantista paulista que imperava no imaginário goiano, sobretudo, naquele criado em Goiânia após sua inauguração. E aqui, uma digressão sobre o bandeirantismo na cultura se faz necessária. A memória do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, passou a ser cultuada com maior intensidade no começo do século XX, período da construção histórica e literária dos heróis e dos valores da identidade goiana. A cruz do Anhanguera instalada como monumento em 1918 na antiga capital, Cidade de Goiás, criou um primeiro marcador espaço-temporal para celebrar a narrativa bandeirantista. Ao desenvolver o planejamento de Goiânia, no ponto de confluência das avenidas centrais do plano urbanístico da cidade, no centro da Praça Cívica, Attilio Corrêa Lima (1901-1943) projetou a instalação de “um monumento comemorativo das bandeiras, (...) figurando como homenagem principal a figura do

25 26

MENEZES, Amaury. Op. cit. P. 44. LACERDA, Regina. O que foi a exposição do Congresso nacional de Intelectuais. In: FIGUEIREDO. Op. cit. P. 103.

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Anhanguera”27. O plano do projetista da cidade não se consumou. Porém a Estátua do Bandeirante, de autoria de Luiz Morrone (1906-1998)28, foi instalada em Goiânia um ano antes de sua inauguração, em 1941, como presente do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito de São Paulo. A estátua veio com a dedicatória afixada ao seu pedestal: “Aos GOYANOS, nobre estirpe dos BANDEIRANTES”, e foi posicionada em direção ao oeste; foi instalada na cidade moderna como marcador da história oficial colonizadora, e dominou sozinha o Centro de Goiânia no cruzamento do epicentro da cidade: justamente a Avenida Pedro Ludovico (atual Avenida Goiás) com Avenida Anhanguera. Antes da narrativa heroica construída pelo Museu Paulista, os bandeirantes eram chamados de paulistas, nesse sentido, portanto, a placa afirma que o povo goiano é filho do povo paulista. Diretor da revista Informação Goyana, primeiro veículo moderno da imprensa goiana, Henrique Silva em artigo sobre a população de Goiás, publicado em setembro de 1931, endossou a árvore genealógica paulista do povo goiano, retomando a nobiliarquia bandeirante de Pedro Taques, para afirmar que “numerosas foram as famílias paulistas que se passaram para Goyaz e lá deixaram grande descendência”29, e argumentou que após o ciclo do ouro, os bandeirantes se fixaram definitivamente e se tornaram a origem dos agricultores goianos. Lançado no Batismo Cultural de Goiânia, em 5 de julho de 1942, o número 1 da revista Oeste publicou o artigo de Castro Costa, intitulado O sentido ideológico de Goiânia. No texto o autor reafirmava a narrativa paulista da importância dos bandeirantes para a expansão e demarcação do território brasileiro: “Devemos a eles, ninguém o ignora, a penetração de nosso território, tão árdua e heroica”, e argumentava que a entrada bandeirante para o oeste culminou no século XX com a Marcha para o Oeste do Estado Novo, e, sobretudo, com o surgimento de Goiânia30. A revista Oeste foi definida por seus editores como um veículo dos jovens escritores que representavam a vanguarda goiana31. Principal meio de difusão de ideias culturais na década de 1940, era conduzida pela literatura, primeira disciplina artística a se organizar e se manifestar em Goiânia, desde a sua inauguração. Foi um instrumento que muito colaborou para o assentamento da mitologia bandeirantista no modernismo goiano. Na edição de julho de 1944 a Oeste publicou em página inteira (raro na revista) fotografia de autoria de Silvio Berto da Estátua do Bandeirante impondo-se no horizonte da cidade ainda em construção32. A escala da fotografia era rara na revista, e quando usada era para as fotografias de Pedro Ludovico, de Gercina Borges, sua esposa, e do Presidente Getúlio Vargas, além de reproduções de pinturas históricas sobre bandeirantes ou inconfidentes mineiros. Na página ao lado da fotografia de Silvio Berto publicou o poema Goiânia, de autoria de Xavier Júnior, considerado o escritor goiano mais importante entre 1932 e 194233, no qual se acha o verso: “Renova-se o valor audaz dos bandeirantes”34. Materializado na escultura em praça pública, o mito bandeirantista foi vívido em Goiânia nos anos 1940. O criador de Goiânia, Pedro Ludovico Teixeira, foi celebrado como um novo bandeirante, capaz de erguer, em pouco tempo, uma cidade no ermo sertão do Brasil central. “Faz a gente pensar no vulto

27 UNES, Wolney. Identidade art déco de Goiânia. Goiânia: Instituto Casa Brasil de Cultura, 2008. P. 87. 28 GODINHO, Iuri. A construção: cimento, ciúme e caos nos primeiros anos de Goiânia. Goiânia: Contato Comunicação, 2013. P. 170. Outro escultor, Armando Zago, é apontado como autor da escultura. Cf GUEDES, Valterli. A praça e o Bandeirante. In: Goiânia: Almanaque Instituto Cultural Bariani Ortêncio, Ano 1, nº2, Setembro, 2021. P.23 29 SILVA, Henrique. A população actual do Estado de Goiaz. In Informação Goyana, Ano XV, Vol. XVI, nº2, Rio de Janeiro, setembro, 1931. P. 12-13. 30 COSTA, Castro. O sentido ideológico de Goiânia. In Revista Oeste, Ano I, nº1, Goiânia, 1942. P. 35. 31 Principal veículo cultural da década de 1940, a revista Oeste foi publicada mensalmente, entre 1942 e 1944, com patrocínio do Governo de Goiás; como uma publicação literária reuniu alguns dos principais intelectuais da época; o primeiro corpo de redatores contou com Bernardo Élis, José Décio Filho, Hélio Lobo, sob a direção de Zecchi Abrahão. No editorial de estreia da Oeste foi publicado “Vamos aqui dignificar o elemento intelectualmente produtivo” a “vanguarda pensante e empreendedora”. Oeste. Oeste, Ano I, nº 1, Goiânia, 1942. P 34. 32 Idem. Ano II, nº 6, Goiânia, 1943. P. 257. 33 ÉLIS, Bernardo. Xavier Júnior e a chama da literatura goiana. In: Coleção Alma de Goiás, VOL.4: Obra reunida de Bernardo Élis. Rio de janeiro: José Olympio, 1987. P. 171. 34 JÚNIOR, Xavier. Goiânia. In Oeste, Ano II, nº 6, Goiânia, 1943. P. 256.

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varonil do bandeirante paulista que primeiro desbravou nossos sertões”, escreveu Rosarita Fleuri35. Na comemoração de um ano do Batismo Cultural e da revista Oeste, foi publicado o soneto Goiânia, de José Lopes Rodrigues, poeta e futuro professor de História da Arte da EGBA, onde lê-se que o surgimento de Goiânia se deu “Por um novo bandeirante temerário”36, em referência ao criador da cidade. Os primeiros poetas e intelectuais de Goiânia empregaram a imagem do bandeirante tanto para referendar a criação da cidade e mitificar seu criador, quanto para ilustrar a política da Marcha para o Oeste, processo moderno de desbravamento, penetração, colonização e exploração, acobertado pelas noções de integração nacional, ocupação de áreas vazias, desenvolvimento econômico e progresso civilizatório. “Fazedores de pátria, os bandeirantes”37 escreveu o poeta Guilherme Xavier de Almeida. “Um gênio audaz, da estirpe do Anhanguera, aqui plantou o marco de outra era38, lê-se no poema de Francisco de Brito. “Pedro Ludovico com sua obra de bandeirante do século XX” escreveu Vasco de Castro Lima39. Por fim, em Ely Brasiliense lê-se “E o passo triunfal da ‘Marcha Para Oeste”40. Assim, a partir da legitimação do pensamento bandeirantista trabalhado pela literatura e difundido pela revista Oeste, Goiânia na década de 1940 foi definida por J. Lupus como “Terra anhanguerina”41. Goiânia, o território de uma modernidade presa ao mito colonialista. Não foi só a política e a poesia que se apropriaram do bandeirantismo, também o debate sobre economia agregou ao seu discurso o mito paulista O artigo O exemplo de Goiânia, publicado por um jornal do Rio de Janeiro, aborda a situação da capital de Goiás como local de “irradiação de novas ‘bandeiras’ que se destinam a transformação de regiões inexploradas em zonas de produção e de riqueza”42. O novo bandeirantismo da modernidade estava ligado ao conceito de produção de riquezas e tinha a ver com o pacto econômico feito entre os produtores rurais do sul e sudeste goiano e os compradores paulistas, pacto que a ferrovia possibilitou estreitar entre o final do século XIX e começo do século XX. Volto à Exposição Nacional de Artes Plásticas do I Congresso de Intelectuais, retomando a reflexão sobre o tipo de afinidade que uniu os artistas da Escola Goiana de Belas Artes com a representação modernista de São Paulo. Acredito que seja possível pensar no estabelecimento de um pacto cultural feito naquele momento pelos organizadores da mostra, sobretudo por Luiz Curado, mais próximo do hábito goiano de fazer referência aos bandeirantes para referir-se a um pioneiro ou engrandecer algum fato ou pessoa, ou de realmente entender o povo goiano como descendente do paulista. Um pacto que foi naquele momento uma estratégia de visibilidade do processo artístico inicial que Goiás mostrava a si mesmo e ao Brasil. Um pacto de ordem simbólica que reafirmava aquele outro de ordem políticoeconômico, e que resultou em 1966 na exposição de goianos no Museu de Arte de São Paulo (MASP), como processo de reconhecimento e legitimação.

A influência dos clubes de gravura na herança da exposição de 1954 Em 1955, a revista Renovação publicou uma nota intitulada Pinacoteca EGBA, na qual informava sobre as ofertas de doações de obras (telas, desenhos e xilogravuras) à escola após a realização da exposição do Congresso Nacional de intelectuais, em 195443. De fato, da apresentação de artistas brasileiros, pouco mais de uma dezena de obras ficaram na cidade. Uma pintura e oito gravuras ficaram

35 FLEURI, Rosarita. Poema a Goiânia. In: Oeste, Ano III, nº 20, Goiânia, 1944. P. 835. 36 RODRIGUES, José Lopes. Goiânia. In: Oeste, Ano II, nº 6, Goiânia, 1943. P. 238. 37 ALMEIDA, Guilherme Xavier de. Os Bandeirantes. In Oeste, Ano III, nº19, Goiânia, 1944. P. 770. 38 BRITO, Francisco de. Exaltação. In Oeste, Ano I, nº1, Goiânia, 1942. P. 43. 39 LIMA, Vasco de Castro. Um bandeirante do século XX. In Oeste, Ano III, nº18, 1944. P. 739. 40 BRASILIENSE, Ely. Goiânia. In Oeste, Ano II, nº4, Goiânia, 1943. P. 172. 41 LÚPUS, J. Patriotas. In Oeste, Ano II, nº5, Goiânia, 1943. P. 213. 42 O exemplo de Goiânia. O Jornal. Rio de Janeiro, edição de 11 de agosto de 1944. In Oeste, Ano III, nº20, Goiânia, 1944. P. 822. 43 Renovação. P.30.

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no acervo da Universidade Católica de Goiás (atual Pontifícia Universidade Católica de Goiás). Com a fundação do Museu de Arte de Goiânia, em 1970, dez obras foram doadas para o acervo44. Estando no museu as obras passaram a ser referência constante como primeiro acervo público de obras de arte da cidade. Os temas regionalistas apareceram nas gravuras de Carlos Scliar que representa uma menina zangada, e de Glauco Rodrigues que fixa um típico gaúcho tomando chimarrão; os entretenimentos populares representados na cena de um grupo musical na gravura de Glênio Biachetti e na cena teatral fixada por Carlos Werneck (1907-1987); o tipo social aparece na gravura de Ionaldo Cavalcanti (19332002); os efeitos gráficos de luz e sombra no retrato de um homem negro morador de periferia na obra de Paulo Werneck; a introspecção do conhecimento da moça lendo um livro em Glênio Bianchetti; a expressão de fé do São Francisco em Guido Viaro; a violência e os confrontos sociais no espaço urbano na visão de Mario Gruber; por fim a expressividade da cor e da pincelada na paisagem pintada a óleo sobre madeira por Inimá de Paula (1918-1999). O conjunto acima é pequeno, mas representativo de algumas das questões que atravessavam os debates sobre a arte moderna brasileira, produzida no começo dos anos 1950 nas regiões Sudeste, Nordeste, Sul, Centro-Oeste: preocupação com os temas relacionados com a injustiça social; foco no trabalhador rural e no proletariado industrial; defesa da cultura popular brasileira; utilização de repertórios e saberes regionalistas; representação do brasileiro comum. A maior parte dos temas se encaixa na reflexão proposta pelo tema geral de defesa da cultura nacional, trabalhado pelo I Congresso Nacional de Intelectuais. Destaca-se o fato de a maioria das obras serem gravuras e de que seus autores estiveram, de alguma forma, envolvidos com os agrupamentos de gravadores que se organizaram no Brasil a partir de meados do século XX: Carlos Scliar, Glauco Rodrigues e Glênio Bianchetti integraram os clubes de gravura de Porto Alegre e de Bajé; Ionaldo Cavalcanti pertenceu ao Ateliê Coletivo de Recife; Mario Gruber atuava no Clube de Gravura de Santos. Guido Viaro usava a gravura como modalidade expressiva e como instrumento didático em suas aulas. O grupo gaúcho era associado à intelectualidade de esquerda; o grupo recifense estava focado na valorização da cultura popular nordestina; o grupo santista tinha interesse na pesquisa formal aliada aos temas sociais. Em comum todos eram figurativos e tendiam aos assuntos sociais e regionais. A forte presença da gravura e da representação rio-grandense na exposição pode ser confirmada no relato do artista Amaury Menezes: “oitenta por cento da exposição montada no Congresso eram xilogravuras do Clube da Gravura de Porto Alegre, cujos membros pertenciam ao partidão”. Menezes também salientou que o trabalho do clube de gravadores gaúchos influenciou na concepção da revista Arte Nossa, editada manualmente sob a batuta de Luiz Curado na sala de Desenho Aplicado da Escola Goiana de Belas Artes, em 195945. Os membros do Clube de Gravura de Porto Alegre, estavam ligados ao Partido Comunista do Brasil, legalizado em 1945 e cassado em 1947. O clube porto-alegrense esteve integralmente representado na exposição do Congresso Nacional de Intelectuais. E seu líder, Carlos Scliar, ao usar a rede de contatos com artistas nacionais para produzir a revista Horizonte, segundo Walter Zanini “foi o responsável pelo crescente intercâmbio de arte entre o estado sulino e outras partes do Brasil”46. Scliar incentivou a outros grupos de artistas a enviarem trabalhos para a exposição em Goiânia, como informa Aracy Amaral, por meio do depoimento do pernambucano Abelardo da Hora que disse: “Em 1954, ao ocorrer o I Congresso Nacional de Intelectuais, em Goiânia, realiza-se uma exposição de gravura e Scliar

44 Foram doadas ao Museu de Arte de Goiânia pela Universidade Católica de Goiás: uma pintura de Inimá de Paula; uma gravura de cada artista a seguir: Carlos Scliar, Carlos Werneck, Guido Viaro, Glauco Rodrigues, Ionaldo, Paulo Werneck; duas gravuras de Glênio Bianchetti. A gravura de Mario Gruber foi doada ao museu por Aloysio de Sá Peixoto. 45 VIGÁRIO, Jacqueline Siqueira. Diante da sacralidade humana: produção e apropriações do moderno em Nazareno Confaloni (1950-1977). Goiânia, 2017. Tese de Doutorado em História – Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. P. 204. 46 ZANINI, Walter. A arte no Brasil nas décadas de 1930-40: o grupo Santa Helena. São Paulo: Edusp/Nobel, 1991. P. 75.

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convida-nos a participar”47. Estimulado pelo gravador gaúcho, Abelardo da Hora enviou à exposição a obra chamada Enterro de camponês e também obras de Gilvan Samico, Wellington Virgulino e Corbiano (1924-2018)48. E assim, vê-se que a grandiosidade da exposição organizada em pouco tempo pelos professores da EGBA – a convocatória falava em dois meses e meio – foi possível pela rede que se formou entre os artistas de diferentes lugares. Além do mais, é plausível pensar que os intelectuais declaradamente de esquerda ligados ao Partido Comunista do Brasil, e que aqui estiveram durante o I Congresso Nacional de Intelectuais, tenham influenciado de alguma maneira a primeira geração de modernistas goianos, ou tenham endossado suas vocações voltadas ao pensamento marxista, como por exemplo o poeta e crítico de arte José Godoy Garcia (1918-2001), grande incentivador da produção de arte compromissada com a crítica social, e que teve a obra de Nazareno Confaloni como seu objeto de análise49. Os aspectos de crítica social, de instrumentalização da arte como ferramenta de educação política da sociedade, bastante presentes no trabalho feito pelos clubes de gravura, o realismo compromissado com a representação da vida do trabalhador rural ou do operário urbano, a visão das periferias das cidades em processo de inchaço, a necessidade de compreender o lado negativo da modernidade que se instalava no país, eram temas e problemas que ocupavam o debate cultural da época. Penso que pode ter sido mais produtivo para os artistas goianos estabelecer o diálogo com os artistas pernambucanos e gaúchos pelo conjunto de questões que compartilhavam: a consciência das implicações impostas pelo distanciamento geográfico em relação aos centros culturais do sudeste; a experiência de estar à margem da grande visibilidade, da institucionalização e do mercado; o trânsito entre o que vem de dentro e o que vem de fora; os assuntos regionalistas e os enfoques sociais. A revista Horizonte, editada por intelectuais de esquerda e associada ao Clube de Gravura de Porto Alegre, publicou uma avaliação bastante empolgada com os resultados do Congresso Nacional de Intelectuais e da Exposição Comemorativa. Ressaltou que a diversidade dos congressistas reunidos conseguiu produzir “uma unidade sem precedente” em torno do “dever de organizar a defesa de nossa cultura nacional”, que o conjunto de trabalhos reunidos pela exposição condensava o passado e o presente da arte brasileira, e revelava a grandeza e a riqueza da arte popular, apontando a sua desproteção e risco de desaparecimento. Na opinião da Horizonte um dos grandes méritos da exposição foi proporcionar uma visão do trabalho dos artistas preocupados em “fazer uma arte de hoje utilizando valores de nossa herança cultural, principalmente popular”50.

Impactos e consequências das exposições de 1953 e 1954 São consideráveis a força do impacto e a extensão das consequências causadas pela Exposição Inaugural da Escola Goiana de Belas Artes e pela Exposição Comemorativa do Primeiro Congresso Nacional de Intelectuais sobre o ralo meio artístico goianiense no início de sua formação. De início, a primeira exposição apontou para a existência da segunda. O movimento de afirmação do pensamento plástico modernista em Goiânia aconteceu na sequência dos movimentos ocorridos durante a década de 1940 em cidades como Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Recife. Aracy Amaral comenta a respeito da introdução do modernismo em Goiás que “O empreendedor Frei Confaloni somente começaria a colher frutos nos anos 50, a partir do I Congresso Nacional de Intelectuais”51.

47 AMARAL, Aracy. Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira 1930-1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 2003. P. 189. 48 O nome de Corbiano (Corbiano Lins) não consta na listagem elaborada por Regina Lacerda. 49 VIGÁRIO, Jacqueline. Op. Cit. P. 244-249. 50 Apud LACERDA, Regina. O que foi a exposição do Congresso Nacional de Intelectuais. In FIGUEIREDO. Op. Cit. P. 104. 51 AMARAL, Aracy. Op. Cit. P. 110.

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Os impactos do congresso perduraram pela década seguinte, conforme se observa no relato de Pietro Maria Bardi sobre o meio cultural goianiense durante a segunda metade dos anos 1960. Ele disse que ao buscar saber como teria nascido o movimento artístico realizado em Goiânia, foi informado que “a flama surgiu com a realização do Congresso Nacional de Intelectuais, de 54”52. As consequências se desenrolaram tanto sobre o âmbito institucional da Escola Goiana de Belas Artes, envolvendo professores, alunos e servidores, quanto sobre as concepções artísticas individuais dos seus principais agentes – Nazareno Confaloni, Gustav Ritter e Luiz Curado. Não se pode esquecer que também influenciaram os olhares de interessados em arte e em cultura. A exposição de 1954 informou aos goianos sobre o que acontecia na arte brasileira em termos de vários modernismos, e como relatou Nazareno Confaloni, proporcionou uma visão quase completa do que se fez e do que fazia no Brasil até aquele momento53. Foi por meio dela que a vertente de crítica social influenciou a pauta dos artistas goianos e que ocorreu a valorização da arte popular como matriz para a criação moderna. A valorização e a preservação da cultura nacional, a atenção às vertentes do realismo direcionadas à crítica social, o apreço à arte popular, e a interpretação do regional pela gramática modernista são algumas das questões que vieram à tona com as duas exposições montadas pela Escola Goiana de Belas Artes, em 1953 e 1954, e que muito dialogavam com as preocupações manifestas nas obras dos artistas da Escola Goiana de Belas Artes. Nazareno Confaloni se impôs no cenário da década de 1950 com a produção mais extensa, diversificada e diretamente relacionada com a realidade vivida pelo povo goiano. Gustav Ritter de uma maneira mais formalista e com linguagem conectada com a abstração soube recolher informações para seu projeto de interpretação da paisagem, que chegou ao ápice a partir do final dos anos 1960; Luiz Curado confirmou a importância de voltar seu olhar para a vida do sertanejo e para a cultura Karajá. A grande quantidade de obras ligadas aos pensamentos políticos de esquerda e articuladas em torno da crítica social, mostrada na exposição do Congresso de Intelectuais sobretudo pelos membros dos clubes de gravura, pode também ter incentivado a formação da vertente de crítica social praticada na arte goiana e que teve em Nazareno Confaloni um representante na pintura, em José Godoy Garcia um representante na poesia e na crítica de arte, e em Bernardo Élis (1915-1997) um representante na prosa. É inegável que as realizações da Exposição Inaugural da EGBA e da Exposição do Congresso Nacional de intelectuais colaboraram muito para o fortalecimento institucional da Escola Goiana de Belas Artes, que demonstrou grande capacidade de organização e de produção, de relacionamento e articulação com artistas e instituições do Brasil e de Goiás, além de exibir sua grande potencialidade para assumir o ensino e o debate da arte em Goiânia. A primeira exposição marcou a inauguração e oficialização da instituição, a segunda marcou o início de seu funcionamento, já com alunos matriculados em cursos regulares. Ainda é digno de nota que os estudantes da EGBA também participaram da montagem da exposição de 1954, o que verteu o processo de montagem em ação pedagógica incluída na formação daquela turma. O sucesso obtido pela exposição de 1954, animou seus organizadores a criarem um programa de exposições para aquele ano, tendo a EGBA realizado um concurso de arte infantil e uma mostra de alunos da casa. Assim fez-se pela primeira vez na cidade uma agenda de exposições, um programa de intervenção no meio cultural visando estabelecer espaços de difusão da obra de arte, de promoção do trabalho realizado pela EGBA e de formação de público para as artes plásticas. Reverberação positiva da Exposição do Encontro Nacional de Intelectuais ressoou ainda na gestão pública do Estado de Goiás, levando à criação do Museu de Arte Moderna em 1959. O museu com características modernistas tinha assinatura do prestigiado arquiteto goiano Eurico Godoy, e deveria cumprir o papel de guardião da História da Arte que era produzida naquele momento no novo espaço

52 BARDI, Pietro Maria. Goiânia comemora 33 anos. Corrida de motocicleta, Roberto Carlos e uma revista. In: FIGUEIREDO, Aline. Op. cit. P.107. 53 CONFALONI. Encontro de épocas artísticas. In Renovação. Goiânia: Fundação Pio XII, 1955. P. 24.

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moderno, a cidade de Goiânia, mas infelizmente foi desmontado em 1961 e completamente esquecido. Com suas complexidades simbólicas e temporais, as duas exposições realizadas pela EGBA contribuíram para que não se estabelecesse, em Goiás, um modernismo de ruptura com o passado e de negação do antigo, mas sim um modernismo que operava a assimilação da tradição e do arcaico, que promovia o convívio no mesmo espaço e tempo de manifestações culturais de aspectos rural e urbano. No meio da linha de ligação do moderno com o tradicional instaurava-se o desmonte das hierarquias entre arte erudita e arte popular, nivelavam-se as necessidades de inovação da forma e de pertencimento a uma tradição secular, reinventada pelo imaginário de cada artista isoladamente. A partir dos panoramas da arte goiana e da arte brasileira mostrados nas exposições, delineou-se um perfil compromissado com a implantação da linguagem moderna associada ao mergulho nos aspectos da identidade cultural – questão central que atravessará gerações do modernismo goiano.

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Referências: ALMEIDA, Guilherme Xavier de. ‘Os Bandeirantes’ in Oeste, Ano III, nº19, Goiânia, 1944. AMARAL, Aracy. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 2003. BRASILIENSE, Ely. ‘Goiânia’ in Oeste, Ano II, nº4, Goiânia, 1943. BRITO, Francisco de. ‘Exaltação’ in Oeste, Ano I, nº1, Goiânia, 1942. CONFALONI. ‘Encontro de épocas artísticas’ in Renovação. Goiânia: Fundação Pio XII, 1955. COSTA, Castro. ‘O sentido ideológico de Goiânia’ in Revista Oeste, Ano I, nº1, Goiânia, 1942. ÉLIS, Bernardo. Obra reunida de Bernardo Élis. Coleção Alma de Goiás, Vol.4. Rio de janeiro: José Olympio, 1987. FIGUEIREDO, Aline. Artes Plásticas no Centro-Oeste. Cuiabá: Edições UFMT/MACP, 1979. FILHO, Amphilóphio de Alencar. ‘Cinco santeiros goianos: uma apreciação’ in Revista Goiana de Artes, Vol.5, nº1, Jan/Jun, 1984. FLEURI, Rosarita. ‘Poema a Goiânia’ in Oeste, Ano III, nº 20, Goiânia, 1944. GODINHO, Iuri. A construção: cimento, ciúme e caos nos primeiros anos de Goiânia. Goiânia: Contato Comunicação, 2013. JÚNIOR, Xavier. ‘Goiânia’ in Oeste, Ano II, nº 6, Goiânia, 1943. LIMA, Vasco de Castro. ‘Um bandeirante do século XX’ in Oeste, Ano III, nº18, 1944. LÚPUS, J. ‘Patriotas’ in Oeste, Ano II, nº5, Goiânia, 1943. MENEZES, Amaury. Da Caverna ao Museu: Dicionário das Artes Plásticas em Goiás. Goiânia: Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira, 1998. RODRIGUES, José Lopes. ‘Goiânia’ in Oeste, Ano II, nº 6, Goiânia, 1943. SILVA, Henrique. ‘A população actual do Estado de Goiaz’ in Informação Goyana, Ano XV, Vol. XVI, nº2, Rio de Janeiro, setembro, 1931. UNES, Wolney. Identidade art déco de Goiânia. Goiânia: Instituto Casa Brasil de Cultura, 2008. VIGÁRIO, Jacqueline Siqueira. Diante da sacralidade humana: produção e apropriações do moderno em Nazareno Confaloni (1950-1977). Goiânia, 2017. Tese de Doutorado em História – Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. ZANINI, Walter. A arte no Brasil nas décadas de 1930-40: o grupo Santa Helena. São Paulo: Edusp/Nobel, 1991.

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Margens, disputas e conquistas: conceitos e neologismos na crítica de arte Margin, disputes and achievements: concepts and neologisms in art criticism Elisa de Souza Martínez1 UnB, ABCA, AICA

RESUMO: O repertório de termos e conceitos da crítica de arte acompanha, de perto, as transformações que caracterizam, em linhas gerais, a produção contemporânea de arte. Entretanto, essa produção caracteriza um cenário que se expande e engloba um pensamento transdisciplinar. Uma das consequências desse movimento expansivo tem sido o deslocamento das fronteiras que, no passado, separavam o território da arte de outros, garantindo autonomia e auto-suficiência. Nesse processo, nomenclaturas e conceitos tornam-se obsoletos, e expõem seus vínculos a contextos que parecem arcaicos. Neste trabalho, apresentamos a relação entre termos e crises da crítica em confronto com novos modos de pensar a arte na contemporaneidade. Destacamos, sobretudo, o papel das nomenclaturas na conservação, ainda que polêmica, de contribuições históricas para a constituição de uma terminologia da crítica de arte inclusiva e abrangente. PALAVRAS-CHAVE: crise de conceitos; escrita da crítica de arte; neologismos; tradição crítica ABSTRACT: The repertoire of terms and concepts of art criticism closely follows the transformations that generally characterize contemporary art production. However, this production characterizes a scenario that expands and encompasses transdisciplinary thinking. One of the consequences of this expansive movement has been the displacement of borders that, in the past, separated the territory of art from others, guaranteeing autonomy and self-sufficiency. In this process, nomenclatures and concepts become obsolete, and expose their links to contexts that seem archaic. n this work, we present the relationship between terms and critical crises in confrontation with new ways of thinking about contemporary art. We highlight, above all, the role of nomenclatures in the conservation, albeit polemical, of historical contributions to the constitution of an inclusive and comprehensive art criticism terminology. KEY WORDS: crisis of concepts; art criticism writing; neologisms; critical tradition

1 Professora Associada e Pesquisadora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas (ELA/ICS/UnB). Doutora em Intersemiose na Literatura e nas Artes pela PUC-SP e Master in Fine Arts (M.F.A.) pelo Pratt Institute (NY-USA). Pesquisadora Convidada para realizar Pós-Doutorado como bolsista da Capes na Amsterdam School for Cultural Analysis, da Universiteit van Amsterdam (Netherlands). Vice-Presidente da Regional Centro-Oeste da ABCA. Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ-2) do CNPq.)

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I. Crítica como atribuição Entre a obra de arte, ou o que se qualifica como tal, e seu público encontra-se a crítica. Atribuise um papel mediador aos discursos que orientam a “percepção social dos objetos”. Essa expressão é utilizada por José Jiménez para definir um tipo de acolhimento que reflete, em princípio, a intenção de proporcionar apreciação consensual, convergente, para os objetos artísticos, um resultado do trabalho profissional que não se confunde com o de produzir arte. Inicialmente, acompanharmos esse princípio distintivo da atividade crítica linha de pensamento, acrescentando que uma obra de arte é objeto excepcional, que se destaca em um oceano de trivialidades. Sua excepcionalidade é o gatilho que dispara a curiosidade e, consequentemente, as especulações sobre os motivos de sua criação, de seu valor singular. Observa-se, contudo, que esses mesmos critérios de valoração do objeto de arte não parecem corresponder aos que guiam a apreciação de textos críticos. Enquanto objetos de arte são apreciados pela ruptura que possam provocar, os desvios que possam proporcionar, os afastamentos do que é meramente convencional, o texto crítico produz conexões e continuidades, ainda que estas não sejam aparentes, e almejam um papel institucional. Ao utilizar a expressão “percepção social dos objetos”, enfatiza-se o papel de uma coletividade receptora, a ser conduzida no caminho da correta apreciação de obras de arte. Por mais polêmica que esta expressão possa parecer, porque a existência de um consenso social é sempre questionável, é importante destacar que a apreciação tem, em termos gerais, duas possibilidades de juízo: favorável ou desfavorável. Em uma breve descrição do contexto em que o termo “crítica” é sinônimo de “julgamento”, atribuído originalmente a discursos que analisam obras literárias, Jiménez associa o papel da atividade crítica a processos de interpretação. Desse modo, ao afirmar o caráter processual da interpretação, abrem-se outras possibilidades de entendimento para o papel da crítica com algo que não se sobrepõe, de maneira unilateral e autoritária, a qualquer objeto. No processo interpretativo há interação entre objeto artístico e apreciador2, mediada pela crítica. Por meio da crítica a percepção social do objeto se torna inteligível. O texto de José Jiménez sobre “A crítica de arte” é um trecho do livro de sua autoria, Teoría del Arte, em que aborda os componentes da Teoria. Cita René Wellek para introduzir uma ressalva: a amplitude com que o termo crítica passou a ser utilizado permite localizá-lo “nos mais variados contextos”, para realizar “a crítica de qualquer coisa”, e não apenas de obras literárias ou artísticas. Essa ressalva parece alertar o leitor quanto a certo desvirtuamento da tarefa crítica, afastando-a de um compromisso com a formação do “gosto” do público ou com a necessidade de classificar e hierarquizar produtos culturais3. Se a relevância de um juízo crítico está sempre condicionada ao tempo presente de sua escrita, e ao que neste se consideram atributos de um objeto de arte, o discurso crítico é lido em perspectiva mais ampla, que abarca tanto o passado quanto o porvir, fazendo deste último um prolongamento, ainda que divergente, de uma trajetória. Passado e futuro, unidos pela noção de valor que se atribui a um objeto, compõem a visão contextual de eventos artísticos e atenuam a força eventualmente destrutiva de sua aparição. Por outro lado, incontáveis exemplos na história da arte europeia mostram o quanto a crítica demolidora, aquela que parece querer impedir uma interpretação do objeto artístico integrada ao processo cultural em sentido amplo, parece ter, com o tempo, favorecido a renovação de valores estéticos. Abundam exemplos de críticas às denominadas vanguardas históricas europeias que em vez de desacreditar suas realizações agregaram-lhe ainda mais valor. No Brasil, o célebre exemplo da crítica de Monteiro Lobato que condena a exposição de Anita Malfatti pode exemplificar a transformação de crítica demolidora em apenas mais uma prova dos efeitos avassaladores do modernismo nacional

2 Ainda que se utilize comumente o termo “fruidor”, considera-se aqui que, sem hipocrisia, o objetivo da crítica é, de fato, conduzir aquele que aprecia um objeto artístico a reconhecer neste um conjunto de valores. Parece-nos, portanto, que defender a neutralidade do discurso da crítica, como se esta não se interpusesse ao processo de apreciação, um louvável e talvez desnecessário exercício de falsa modéstia. 3 O texto de José Jiménez não apresenta obras literárias e artísticas como “produtos culturais”, sendo esta uma afirmação nossa. Suas observações definem um campo específico, em que a fundamentação filosófica do discurso crítico é essencial para que este seja considerado parte do panorama teórico no campo da arte.

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em uma fictícia fase heroica. O discurso hegemônico nacional transformou a crítica em anedota, em exemplo máximo de provincianismo e conservadorismo intelectual. Nos dias atuais, defender continuidade e imutabilidade de valores na atividade crítica parece tarefa obsoleta e, em muitos sentidos, redutora do papel da crítica a mero instrumento de apreciação. O reducionismo está também na visão segundo a qual a crítica é atividade consolidada em uma longa trajetória, linear, com origem em uma palavra grega, e significa simplesmente “julgar”4. Aparentemente, a atividade crítica é neutra. Ou, como queria Machado de Assis (1959, p. 812-813) em “O ideal do crítico”: A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure reproduzir unicamente os juízos de sua consciência. Ela deve ser sincera, sob pena de ser nula. Não lhe é dado defender nem os seus interesses pessoais, nem os alheios, mas somente a sua convicção e a sua convicção, deve formar-se tão pura e tão alta, que não sofra a ação das circunstâncias externas. Pouco lhe deve importar as simpatias ou antipatias dos outros; um sorriso complacente, se pode ser recebido e retribuído com outro, não deve determinar [...] o peso da balança; acima de tudo, dos sorrisos e das desatenções, está o dever de dizer a verdade, e em caso de dúvida, antes calá-la, que negá-la.

Ainda que os valores que orientam a tarefa do crítico possam pairar acima de suas preferências pessoais, sendo esta possibilidade pouco crível, dificilmente o texto da crítica sancionaria positivamente expressões artísticas que contradissessem esses mesmos valores, ou que se lhe oponham. Os argumentos intelectuais do crítico estão fundamentados em sua visão de mundo, em suas preferências. Jiménez (2002, p. 127) situa o problema do gosto, cujos antecedentes históricos mais marcantes se situariam na obra de Diderot, sobretudo nos Ensaios sobre a pintura em que descreve a crítica artística como reflexão estética aplicada, uma tentativa de especificação de princípios filosóficos e estéticos gerais por meio da valorização e da hierarquização de obras artísticas singulares. O juízo de valor pode estar em sintonia com um repertório social e, ao mesmo tempo, defender a originalidade e a liberdade individual. Se por um lado o juízo é manifestado por meio de um vocabulário e de uma sintaxe de que o crítico lança mão para se fazer entender, sua disposição para ver o novo, ou o imprevisto, exige-lhe também a adequação de suas ferramentas conceituais e a invenção de neologismos. Nesse sentido, a “equiparação do crítico com o artista” (Jiménez, p. 129), anunciada desde os Ensaios sobre a Pintura de Diderot, parece um problema sempre atual. Referenciado em um conjunto de ideias do século dezoito, sobretudo nos argumentos de Diderot a favor de um caminhar de mãos dadas da experiência com o estudo, tanto para o artista quanto para o crítico, o confronto com o novo, o inédito e o único, que ainda não pode ser traduzido, é alimento para a sensibilidade e, consequentemente, para o intelecto. Do quadro das reflexões de Diderot (1993, p. 146) extrai-se outra ressalva5: “A sensibilidade, quando extrema, não mais discerne; tudo a comove indistintamente”. Em sua visão, a crítica consiste em “encontrar expressões que traduzam o estado de sua alma” quando confrontada com uma “obra de gênio”: A razão ratifica, por vezes, o julgamento rápido da sensibilidade; ela recorre de sua sentença. Consequentemente, tantas obras esquecidas quase imediatamente depois de aplaudidas; tantas outras, quer despercebidas, quer desdenhadas, que recebem ao mesmo tempo, do progresso do espírito e da arte, de uma atenção mais serena, o tributo que mereciam.

Não cabe aqui comentar o óbvio, que as noções de “progresso” e “tributo” se associam a um sistema de valores que nos parece superado. No entanto, o destaque ao texto do século dezoito visa trazer uma referência para resgatar o papel da crítica como atribuição de relevância histórica, que no

4 José Jiménez atribui a origem etimológica da palavra “crítica” a krineín, do grego. Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha (4 ed. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010), a origem grega é kritiké. Neste dicionário, a palavra significa tanto “apreciação” quanto “julgamento”. 5 Do capítulo intitulado “Um pequeno corolário do que acabo de dizer”.

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decorrer do século vinte se tornou indissociável do mercado internacional de objetos de arte e das redes de coleções, tanto públicas quanto privadas. Agregar valor a obras de arte não resulta apenas em uma possível inclusão a posteriori na escrita da história da arte. Diante de um novo panorama de valorização da sensibilidade para expandir horizontes da apreciação artística ao final do século vinte, algo semelhante à ressalva de Diderot foi dito por Hal Foster (1985, p. 15) no ensaio Against Pluralism: As a term, pluralism signifies no art specifically. Rather, it is a situation that grants a kind of equivalence; art of many sorts is made to seem more or less equal – equally (un) important. Art becomes an arena not of dialectical dialogue but of vested interests, of licensed sects: in lieu of culture we have cults. The result is an eccentricity that leads, in art as in politics, to a new conformity: pluralism as an institution.

Desprovido do papel de orientar e julgar, o crítico busca uma linguagem nova, novos termos para traduzir o que parece intraduzível, e para atualizar as fronteiras do gosto. A tarefa não é puramente intelectual para Diderot (1993, p. 145), que compara a atividade do crítico à do artista, e o prazer de um “abalo violento” que produz emoção, algo indizível, aumenta na mesma proporção que a imaginação, a sensibilidade e o conhecimento também crescem. Retornando ao texto de Jiménez, um salto em seu pensamento é dado ao citar Baudelaire, quando este afirma que o estudo das particularidades do objeto artístico é ponto de partida para a elaboração do pensamento crítico. A experiência, cuja centralidade é renovada6, é origem de um pensamento que não se restringe a uma aplicação de conceitos “fria e algébrica”. Nas palavras de Baudelaire (2006, p. 24): Creio sinceramente que a melhor crítica é a crítica divertida e poética; não esta, fria e algébrica que, a pretexto de explicar tudo, não tem ódio nem amor, e que voluntariamente se despoja de qualquer espécie de temperamento; mas sim – uma vez que um belo quadro é a natureza refletida por um espírito inteligente e sensível.

Para colocar em primeiro plano sua subjetividade, e o enquadramento parcial do objeto da visão, o crítico produz um discurso em primeira pessoa. Desse modo, projeta a singularidade de sua visão que, antes do encontro com o objeto, define circunstancialmente a interpretação. Não busca reproduzir a objetividade exterior do objeto, não o descreve em sua completude. Destaca o que lhe parece circunstancialmente significativo. Outros críticos o sucederão. Um século mais tarde, John Berger (1977, p. 7) afirma: “ver antecede a fala”7. A sensibilidade, que moderadamente participa na crítica precedente, é substituída no discurso de Baudelaire pela paixão “moduladora” da razão, para que esta não retorne ao modelo frio e algébrico na emissão de juízos de valor. Entretanto, o modelo baudelairiano não parece suficiente para acompanhar obras de arte conceitual que se popularizaram no século vinte, e estabelecer novas dimensões valorativas e axiológicas para sua compreensão8. Para resumir o processo de deslocamento da crítica a um papel secundário, José Jiménez (2002, p. 133) afirma que o protagonismo crítico dos artistas, quando estes definem suas próprias linhas de conduta e valoração, reduziu a atividade crítica a “um pouco mais do que dar fé” à insubordinação do artista. Afastando-se da hierarquização que lhe havia sido imposta por uma perspectiva externa, a obra de arte deixa de ser inerte, resignada ao julgamento do crítico. E, como alternativas para salvar o papel do crítico de sua falência contemporânea apresenta três alternativas: ser mera testemunha institucionalizada de um porvir artístico “autorregulado”; reconstruir arqueologicamente ou a posteriori seu desenvolvimento; ou, ainda, dissolver-se, como prática, no vasto campo das manifestações artísticas.

6 Podemos lembrar aqui que desde o século quinze, nos textos de Michel de Montaigne, vê-se a ênfase que é atribuída à experiência na aquisição de conhecimento. 7 “Seeing comes before words. The child looks and recognizes before it can speak” (BERGER, 1977, p. 7). 8 Jiménez ( p. 133) comenta esta mudança, ou confusão de papeis entre o crítico e o artista, para destacar a obsolescência de antigos “fundamentos e avanços metodológicos”.

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II. Crítica como prática artística Em continuidade ao panorama histórico, apresentam-se os “aspectos criativos da crítica” e as qualidades estéticas do discurso crítico que permitem considerá-lo, também, uma obra de arte (JIMÉNEZ, 2002, p. 133-134). Para situar argumentos em favor de uma crítica “mais criativa que a criação”, Jiménez cita Oscar Wilde, com destaque para o texto “The Critic as Artist – With Some Remarks Upon the Importance of Doing Nothing”9. Seu comentário sobre a função poética do texto crítico engloba não apenas o que Wilde qualifica como instância intelectual10, mas também a diversidade de opiniões abertas aos “novos sentidos estéticos” de propostas artísticas que se descolam do passado. Em suas palavras “a pluralidade metodológica da crítica não pode deixar de se relacionar com a heterogeneidade cultural que caracteriza hoje a nossa civilização” (JIMÉNEZ, 2002, p. 136). Chega-se, na visão desse autor, à constatação de que o ato interpretativo e valorativo da crítica é também autorreflexivo, uma crítica da crítica, uma “consideração conceitual das condições de possibilidade de todo juízo crítico”. A questão mais inquietante, e atual, é o paralelo traçado, ainda que em termos muito gerais e reduzido a uma oposição de fundo simples entre o papel do artista e o do crítico, entre tarefas compartilhadas de atribuir valor e interpretar as práticas artísticas. Ou, conforme a citação de Lyotard: “Pressupõe que a teoria seja uma arte” (apud JIMÉNEZ, 2002, p. 137)11. Quando descreve, é um poeta”. Acrescenta-se, ainda um terceiro elemento nesse intercâmbio de funções entre artistas e críticos: o curador. Nesse ponto do texto de Jiménez, há uma espécie de clamor nostálgico pelo “intervalo crítico”, que se perde quando o juízo passa a ser transmitido pelos meios de comunicação de massas. Como resultado da “fragmentação quase total dos critérios objetivos do gosto” e da proclamação da “subjetividade absoluta no confronto com a obra”, obtém-se um novo cenário, no qual a superficialidade e a inconstância de qualquer critério valorativo favorecem uma escrita crítica “formulada com termos vazios e hiperbólicos”, segundo Jiménez. Ou, poderíamos dizer, frases de efeito e palavras de ordem que banalizam a crítica a serviço de instituições de legitimação política ou comercial. Algo como o anything goes, analisado por Hal Foster em um contexto de expansão do pluralismo.

III. Crítica como crise Partindo de outras referências, é introduzido aqui outro conjunto de reflexões e um exercício didático para pensar a atividade crítica. O que se pretende aqui, resumidamente, é compartilhar algumas reflexões sobre a escrita da crítica de arte. Partimos de duas referências segundo as quais a “crise” é um problema desejável no campo da arte, ainda que sua compreensão possa abrir portas indesejáveis. Em uma perspectiva positiva, construtiva, a crise desestabiliza e abre novas possibilidades para o pensamento e para a ação artística. Entretanto, a crise também instaura uma espera, um momento de hesitação, podendo justificar o retorno a velhos hábitos, e a necessidade de classificar, e de desenhar novas barreiras. Para inserir uma perspectiva de crise, apresento um exercício para o debate, que se inicia com um texto publicado em 193612, no qual o autor propõe um tipo de “método” para a crítica de arte

9 Nesse texto de Oscar Wilde, com divertida ironia, afasta-se a crítica de qualquer pretensão pedagógica: “Education is an admirable thing, but it is well to remember from time to time that nothing that is worth knowing can be taught”. Outro aspecto irônico é o descaso que o autor manifesta pela narrativa que historiciza o pensamento crítico, buscando antecedentes como fez José Jiménez eu seu texto. Em vez disso, em um trecho do diálogo entre Gilbert e Ernst, o primeiro argumenta sobre a existência de um pensamento crítico (critical spirit) como condição para qualquer atividade crítica, ainda que os resultados dessa atividade, desde a antiguidade clássica, nos sejam desconhecidos. Conclui seus argumentos afirmando que “the Greeks were a nation of art-critics”. Citaremos aqui o texto de Wilde sem numeração de páginas pois o arquivo consultado está disponível em formato ebook, The Project Gutenberg. 10 Segundo Wilde “criticism demands infinitely more cultivation than creation does”. 11 Por sua vez, Wilde diz: “When man acts he is a puppet. When he describes he is a poet”. Essa afirmação nos auxilia a contextualizar a precedência que Wilde atribui à escrita em termos absolutos, e não apenas à qualidade estilística dos textos de alguns autores. Essa discussão foge o escopo do texto de José Jiménez, apesar de pertinente para refletir sobre a maneira como Wilde considera a escrita, em si, uma atividade artística superior. 12 A referência completa será introduzida adiante, conforme a nota XXX.

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com a finalidade de substituir a repetição de discursos “falaciosos” pela aceitação da “crise” instaurada anteriormente, no século dezenove, quando alguns artistas decidiram abandonar a “representação”. A rejeição de um pensamento artístico rígido, que repete modelos, é acompanhada da recusa do crítico de arte, que passa a considerar falacioso o discurso que define o caráter paradigmático, ou “clássico”, de uma produção artística. Evita-se, portanto a mera exaltação ou a sacralização de qualquer modo de fazer ou de perceber. A primeira questão é: qual é o vocabulário da crítica de arte para analisar, e não apenas descrever, o que lhe é contemporâneo? Seria possível diferenciar a descrição, que inscreve o objeto artístico em uma paisagem familiar, da análise que busca propor novas metodologias, novos campos conceituais e novas possibilidades interpretativas? Como propor abordagens transculturais se cada vocábulo é impregnado tanto do campo semântico em que foi criado quanto daquele em que seu leitor constrói novos significados? Existiria um leitor transdisciplinar? Avançar e retroceder são movimentos excludentes na crítica de arte? Para ilustrar estas observações, destacamos a árdua e inútil tarefa de elaborar glossários e dicionários, bem como as tentativas de definir novas nomenclaturas para chegar, talvez, a um consenso na descrição de fenômenos artísticos. Frequentemente mencionam-se obviedades: que no campo da arte a insularidade é indesejável e o fenômeno artístico é apreendido em um campo multissensorial e polissêmico. Estes são apenas dois aspectos que reiteram a necessidade de considerar que para ver arte hoje é imprescindível pensar de maneira transdisciplinar. Ou, ter uma vontade de multiculturalidade, parafraseando Darcy Ribeiro, parece atravessar a tendência que se configura na pós-modernidade. Esta perspectiva traz consigo o desafio de pensar na escrita, e não na arte, como campo de batalha. A língua é dinâmica, como já foi constatado muitas vezes. Andrea Semprini, em seu livro Multiculturalismo (1990, p. 8), nos instiga a pensar no conceito propulsor de “problemáticas teóricas complexas e contraditórias, relativas ao papel da linguagem, à construção do sujeito, à teoria da identidade, à concepção da realidade e do conhecimento”. Expõe, a partir de seu contato com o multiculturalismo como campo de disputas no contexto estadunidense, as diferenças entre “epistemologias monocultural e multicultural”. A crise, que conduziria ao multiculturalismo, se inicia no “espaço público político tradicional”, em uma abertura, ou rachadura, no projeto da modernidade, forçando-o a contemplar também o conceito de “diferença” e, consequentemente, compreender o multiculturalismo em sua extensão planetária. Retomando o problema da linguagem, destacado por Semprini, citamos uma expressão utilizada por Roman Jakobson no livro Linguística e Comunicação (2010, p. 29): “significação diferencial”. Segundo Jakobson, toda significação linguística é diferencial, sendo o processo em que esta emerge diferente do resgate de um significado originado em um momento anterior ao de sua apreensão. Afinal, o tempo da significação é o tempo presente. Acrescenta também que nesse nível semântico, encontram-se tanto significações contextuais quanto significações situacionais, ainda que a significação seja, em termos gerais, produto da experiência interpretativa de um indivíduo que, ao ler o texto crítico, lança mão de seu repertório de referências culturais e estabelece relações entre diferentes campos conceituais, diferentes contextos de apreensão do sentido. Essa inquietação do leitor é uma pressuposição que nos estimula a pensar, e propor, novos termos ou conceitos que possam ser pertinentes em uma tarefa crítica que se afaste de “esquemas e classificações feitas por comodidade”. Remetemo-nos novamente ao texto de 1936 para citar o trecho em que o autor descreve o artista como indivíduo que rejeita a “representação ideológica da natureza” e se “despoja de tudo aquilo que traz em si de convenção, de hábitos sentimentais ou emotivos”13. A tarefa não é simples. Jakobson (2010, p. 19) apresenta uma restrição para o uso de neologismos que, em sua avaliação, são “doença terminológica”. Essa doença, em sua visão, transforma o texto em uma espécie de sujeito estranho, em objeto indigesto, limitando sua interpretação. Atribuímos essa limitação a uma constatação simples, de que palavras não são neutras, e aceitar sua relevância significa aderir, ainda que involuntariamente, a algum tipo de constelação de valores e, em última instância, a algum tipo 13

Citações extraídas das páginas 276 e 277.

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de crença. Dificilmente um crítico de arte aceitaria ser confundido com um tipo de doutrinador e, no entanto, crer é simplesmente aderir a um sistema de valores, o que parece também ser um dos objetivos da crítica de arte, independentemente da perspectiva que seja adotada. No texto de Jakobson, a polêmica da rejeição do uso aleatório de neologismos parte do princípio de que termos tradicionais podem ser satisfatórios, ainda que pareçam fora de moda14. Sem medo de ser cringe, Jakobson (2010, p. 20) cita o conselho de um de seus mestres, A.M. Pechkovsky: “Não nos atormentemos com a terminologia [...] se você tem um fraco pelos neologismos, empregue-os. Você pode até chamar a isto ‘Ivan Ivanovich’. Desde que todos saibamos o que você quer dizer”. Para pensar o contemporâneo e tentar superar lacunas, apagamentos e esquecimentos, indesejáveis, em qualquer tempo histórico, compartilhamos aqui um exercício em duas partes. Na primeira parte, a referência são trechos do livro História da Crítica de Arte, de Lionello Venturi publicado em 1936, cuja referência foi omitida até aqui15. No Prefácio, Nello Ponente (2002, p. 8) define a tarefa do autor como busca de “uma nova perspectiva de interpretação de feitos artísticos”. Usa, de modo mais abrangente, a palavra “feitos” para se referir aos “objetos” da escrita de Venturi. No décimo primeiro capítulo, Venturi (2002, p. 271) qualifica duas “revoluções” ocorridas entre 1905 e 1910. Inicialmente, representaram a crise de um modo de pensar consolidado e, em seguida, paradoxalmente, transformaram-se em novos modelos. Ambas compartilhavam “uma revolta contra a razão”, e representavam “um desejo de verdade a todo custo, contra todas as convenções, sem, no entanto, dar origem a novos princípios”. Essa busca da “realidade mais profunda e mais verdadeira” (VENTURI, 2002, p. 272) o autor se afasta do que denomina genericamente como “civilização”, e “bom gosto”, e, ao mesmo tempo, alimenta uma simpatia entusiasta, ingênua, e, também superficial, pelo “primitivismo” da arte negra que atraiu tanto fauves quanto cubistas, há mais de cem anos. Em seu texto, tudo parece convergir para a imagem de um pêndulo anti-histórico, até alcançarmos a passagem na qual ressurge o tema mais abrangente, que poderia ser a civilização mecânica ou os “impulsos religiosos”, que abre caminho para o expressionismo. Se por um lado a realidade extrapola as aparências, sejam estas percebidas na natureza ou ordenadas pela História, ao mesmo tempo, essas mesmas aparências compõem a experiência no mundo e configuram um único caminho por meio do qual pode-se alcançar a “intuição da realidade que a transcende” (VENTURI, 2002, p. 273), esta transpassada por uma percepção livre de preconceitos. Assim, o que interessa não é identificar “valores absolutos” para pensar as formas, sobretudo aquelas que haviam sido denominadas “clássicas”. Para exemplificar esse aspecto, Venturi destaca o valor da “sensação” nas artes e seu papel na mediação de experiências reais, substituindo o contato com representações de fatos naturais. Esse movimento, de abandono da ilusão de presença levaria à materialização de um valor “conceitual” que, desprezando “parábolas e metáforas”, daria lugar a “fatos” percebidos instantaneamente, sem filtro. Em exercício crítico, Venturi questiona a radicalização deste princípio que, quando levado às últimas consequências, poderia apenas produzir efeitos retóricos. O que dizer de “feitos” artísticos que obsessivamente buscam ser anti-tradicionais e, ao mesmo tempo, são reedições de antigas fórmulas ou modelos para novos tempos? Como reconhecer um revival? O que caracteriza a “arte contemporânea” de Venturi é a valorização do “puro ato de expressão”, ou “a mensagem de um mundo oculto e mais verdadeiro, mas incompreensível à inteligência”. Essa arte que se recusa à representação é para ele “um puro ato de existência” (VENTURI, 2002, p. 279).

14 É necessário lembrar também que nem todos os neologismos são apenas o resultado de um conhecimento limitado do vocabulário de que cada língua dispõe para nomear coisas e pessoas, ou um exercício frívolo e autoritário de (re) batizar algo. 15 Apostamos inicialmente na atemporalidade do texto de Venturi. Entre 2015 e 2017, em orientações de projetos de pesquisa de iniciação científica, foi possível constatar que o texto de Venturi, sem considerar o peso de sua historicidade, é referência instigante e atual para os estudantes. Na apresentação que deu origem a este texto, durante a Jornada Abca 2021, foi inicialmente omitido o nome do autor para que predisposições contrárias à “antiguidade” da referência fossem minimizadas. Ainda que não se veja no debate contemporâneo brasileiro menção às contribuições de Venturi, seu trabalho nos oferece oportunidade de construir um debate atual para conceitos e “métodos” da crítica de arte. Para manter aqui o registro da estratégia didática utilizada na apresentação oral, durante a Jornada, mantivemos aqui a “revelação” da referência em momento posterior à sua exibição inicial.

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Suas palavras, assim como as de Marcel Proust e Andre Breton citadas no texto, marcam a definição de uma “crise final da objetividade, do modelo” (VENTURI, 2002, p. 280). A negação das convenções formais se desdobra em “protesto revolucionário geral” e um fato artístico é valido “na medida em que participa naquela revisão total de valores e a apressa”. A crítica dirige-se a “fatos” artísticos, pois a representação se torna coisa do passado, presa a convenções de inteligibilidade, ou, segundo Walter Benjamin (1993, p. 123), de função meramente informativa, e não operativa. Entretanto, nem só de evolucionismos vive a arte e vimos como no decorrer do século vinte as linhas se apagam para ser, em uma etapa seguinte, reforçadas. Venturi (2002, p. 287) não se deixa levar pelo entusiasmo que marca cada quebra de barreira entre arte e vida, e refere-se com ironia à tarefa do crítico que substitui os antigos juízos de valor pelo que denomina “agnosticismo estético”. Em consequência dessa postura passa-se a “desconhecer a diferença entre uma obra perfeitamente realizada como arte e uma outra que tem um interesse puramente pragmático”. Mais uma vez, a “extrema sensibilidade”, de Diderot, ou a equivalência generalizada, de Hal Foster, parecem criar desafios para a crítica. Venturi (2002, p. 295) conclui o livro com uma exaltação da “sensibilidade artística”, sendo esta uma fonte segura para o desenvolvimento da “intuição” do crítico. Ao mesmo tempo, denuncia uma inclinação pela arte do passado que pode estar na base de “simpatias culturais” e afirma que “[é] a experiência da arte atual que ensina a ver a arte do passado e não vice-versa; é ela que resume e justifica a experiência da arte passada” (VENTURI, 2002, p. 296). E acrescenta que “[q]uem se coloca perante uma obra de arte contemporânea não pode recorrer a juízos formados, precisos e tradicionalmente autorizados”.

IV. Crítica como experiência e vida Algumas décadas mais tarde, um livro é publicado no Brasil, por um eminente crítico de arte16. O tema central é, também, a crise na arte contemporânea. Na Introdução, o autor descreve um cenário, em que o sistema das artes teria “explodido” e o crítico “fez-se artista ao penetrar fundo na intimidade da obra, agravando ainda mais as contradições da arte” (1975, p. 9). Por outro lado, o autor vê que as galerias “vão rapidamente se transformando em antiquários”. Seu texto abre com uma afirmação que nos sugere que estamos diante de uma escrita rebelde: “[c]omo crítico, confesso que estou muito pouco interessado em julgar obras de arte, ou por outra, não quero exercer uma crítica judicativa e autoritária” (1975, p. 9-10); à qual acrescenta: “[n]ão julgar para fechar, mas participar para abrir novas possibilidades”. Para esse crítico, a “sensibilidade artística” se expande tanto quanto as fronteiras do fenômeno artístico. Em sua visão, para falar de arte no presente é necessário notar que “[a] arte deixou de ser uma mensagem de indivíduo para indivíduo, ela não reflete mais as minudências ou miasmas do universo subjetivo do artista, ela trata de temas mais gerais e úteis” (1975, p. 10). Perguntamos, então: o que poderia ser mais geral e útil para a arte contemporânea? Veremos. No primeiro capítulo, sobre a “Obra” de arte, desenha-se uma linha evolutiva para a arte contemporânea, considerando a experiência artística contemporânea é um evento multissensorial, cujo pensamento originário deve ser revelado pela crítica. Recupera-se uma maneira de inserir a arte contemporânea, sobretudo a brasileira, em uma linha evolutiva que culmina na “arte espaço-temporal” (1975, p. 14) de Lygia Clark e no “desaparecimento da arte na vida” (1975, p. 15) de Helio Oiticica. Quando a obra se esvai pelas mãos de uma pessoa que executa as instruções do Caminhando, ou quando o corpo se perde no espaço da experiência lúdica de “núcleos” e “penetráveis” de Helio Oiticica, o crítico anuncia: “a fase visual foi vencida” (1975, p. 16). Assim como Venturi, o crítico brasileiro vê certo passadismo no apego a “alusões metafóricas ou efeitos de sinestesia” (p. 16). Em seu lugar, defende o rompimento com os meios expressivos e o avanço

16 Utilizaremos aqui a mesma estratégia empregada na referência ao livro de Lionello Venturi. Talvez seja possível adotar na leitura de um texto crítico um comportamento próximo ao “what you se is what you see”, de Frank Stella. De qualquer modo, é um exercício de leitura.

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“em caminhos mais complexos de uma etimologia sensorial”. Destaca o papel de adjetivos que, ao serem transportados de um campo sensorial a outro, podem ter significações diversas. Podemos qualificar a obra Roda dos Prazeres (1967), de Lygia Pape, com um vocabulário culinário? Seria suficiente? Vejamos: Saborosa, Indigesta, Saudável, Salgada, Doce, Espessa, Rala, Orgânica, Azêda, Quente, Fria, Fusion, Caipira, Tradicional, Talhada,… Além da antiga analogia entre o atelier de gravura e uma cozinha... Ou das pinturas que retratam cozinhas, na arte flamenga do século dezessete. Ou das tímidas experiências de arte gustativa no Brasil. O autor cita uma “guerra de ovos” em uma galeria em Belo Horizonte, em 1966, quando os ovos de um dos bólides de Helio Oiticica foram arremessados entre os presentes. Entretanto, adverte que o tom didático da escrita da crítica, em que recorre de expressões retiradas do cotidiano, serve apenas para “facilitar a exposição” (1975, p. 22) ou, como nos parece mais adequado, mediar. Ademais, do que parece ser uma superação ou evolução, esclarece que “[s]equer pode-se concluir que uma obra unicamente visual não tenha mais sentido. Seria uma conclusão ingênua. A arte vai e vem, como um pêndulo. O visual poderá vir depois do olfativo e este antes do sonoro”. Nesse movimento pendular, retorna a escrita para o problema planar. De certa maneira, ainda que em um contexto mais próximo da contracultura dos anos 1960 do que das incertezas do entreguerras, centra sua análise na obra de Lygia Clark para sinalizar “a morte do plano”(p.22), a precariedade no Caminhando e o “conteúdo filosófico-religioso” dos Bichos. Ao final do Caminhando, o que há “é “o vazio pleno”, espectador, ele mesmo” (1975, p. 22), sem o “tempo-folhinha”. No elogio ao “trágico isolamento” do corpo, que vive intensamente o instante da experiência transformadora do mundo, externo e interno, surge o que se denomina “arte gerundial”. O crítico se contradiz? Onde estão os temas “gerais e úteis”? Para ele, o trabalho de Lygia Clark busca uma “ordem universal das coisas”. Não seria esta também a busca do projeto moderno? Se for assim, onde estaria a superação de “alusões metafóricas”? Por fim, o crítico ameniza suas próprias palavras quando afirma que é “impossível deixar de ser contraditório nesta época de perspectivas cruzadas” (1975, p. 30). Quando vê na obra de Oiticica as qualidades de uma arte “fortemente tropical, pobre, verdadeira restauração de nova cultura brasileira” (1975, p. 28), e a possibilidade de pensar na precariedade de tudo, do objeto à paisagem que nos cerca e no “estado singular de arte sem arte”, retoma as palavras de Mario Pedrosa. A proximidade entre arte e vida é obtida pelo abandono de artificialismos, até mesmo negando as especificidades do que se considera um fenômeno artístico. Assim, em 1975, a arte “pode igualmente confundir-se com os movimentos de contestação, seja uma passeata estudantil ou uma rebelião (...) seja um assalto a um banco” (p. 31). Cita, como Venturi, Andre Breton, destacando o ensaio Crise de l’objet, de 1936, em defesa de uma desarrumação do cotidiano a partir da arte, tendo como meta a quebra da “lógica do “sistema dos objetos”” (1975, p.31) Mais uma vez, o duelo entre real e imaginário seria resolvido pelo abandono da racionalidade, tal como Venturi havia descrito cinquenta anos mais cedo. Finalmente, revelamos o segundo livro Artes Plásticas – a crise da hora atual, de Frederico Morais, publicado em 1975.

V. Crítica como retorno Encerra-se este texto com duas citações extraídas do livro de Frederico Morais (1975, p 24,26) que podem nos auxiliar em uma reflexão acrônica: O caminho seguido pela arte – da fase moderna à atual, pós-moderna – foi o de reduzir a arte à vida, negando gradativamente tudo o que se relacionava ao conceito de obra (permanente, durável): o específico pictórico ou escultórico, a moldura o pedestal, o suporte da representação, a elaboração artesanal, o painel ou chão, e, como consequência, o museu e a galeria.” (...) Não há mais obra. Não é mais possível qualquer julgamento. O crítico é hoje um profissional inútil.

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Referências MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O ideal do crítico. In:__________. Obra Completa, vol. 3. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1959, p. 811-814. BAUDELAIRE, Charles. Salão de 1846 (excertos). In: __________. A Invenção da Modernidade (Sobre Arte, Literatura e Música). Tradução: Pedro Tamen. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006. BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In:__________. Magia e Técnica, Arte e Política. 5 ed. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 120-136. BERGER, John. Ways of seeing. London: BBC/Penguin Books, 1977. DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a pintura. Tradução: Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus/ Editora da Universidade de Campinas, 1993. FOSTER, Hal. Against Pluralism. In:__________. Recodings – Art, Spectacle, Cultural Politics. Seattle, Washington: Bay Press, 1985, p. 13-32. JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 22 ed. Tradução: Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Editora Cultrix, 2010. JIMÉNEZ, José. Teoría del arte. Madrid: Editorial Tecnos, 2002. SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Tradução: Laureano Pelegrin. Bauru, SP: Universidade do Sagrado Coração – EDUSC, 1999. VENTURI, Lionello. História da Crítica de Arte. Tradução: Rui Eduardo Santana Brito. Lisboa: Edições 70, 2002.

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Cartografia, abstração e histórias: Hadassa Ngamba (R.D. Congo) e Mark Bradford (EUA) Cartographies, abstraction and histories: Ngamba (D.R. Congo) and Mark Bradford (USA) Emi Koide1 UFRB - koide.emi@gmail.com

RESUMO: No contexto contemporâneo de debates acerca da necessária descolonização do campo da arte, teoria e crítica, da inserção crescente de artistas africanos e afrodiaspóricos nas exposições e narrativas de uma história da arte e crítica em revisão, propomos analisar a produção contemporânea de dois artistas - Hadassa Ngamba e Mark Bradford - a partir da ideia da abstração como linguagem política e social. Para isso, realizamos aproximações de percursos, bem como de estratégias de produção de visualidade e materialidade a partir de práticas cartográficas e abstração nestes dois artistas. PALAVRAS-CHAVE: abstração; arte contemporânea; arte afrodiaspórica, arte africana ABSTRACT: In the contemporary context of debates about the necessary decolonization of art theory and criticism field, the increasing insertion of African and Afro-diasporic artists in exhibitions and narratives of an art history and criticism in revision, we propose to analyze the contemporary production of two artists - Hadassa Ngamba and Mark Bradford, considering the idea of abstraction as a political and social language. We propose in this presentation to approach their paths, as well as strategies of production of visuality and materiality based on cartographic practices and abstraction in these two artists. KEYWORDS: abstraction; contemporary art; Afrodiasporic art; African art

1 Professora dos cursos de artes visuais e do Mestrado Profissional em História da África, Diáspora e Povos Indígenas da UFRB. É pesquisadora associada do programa Arts of Africa and Global Souths, Rhodes University (África do Sul). Coordena o grupo de pesquisa “História(s) e narrativa(s) das artes do sul em perspectivas transculturais - circularidades e fluxos” (CNPq) e projeto de extensão Áfricas nas Artes.

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Introdução O presente trabalho visa iniciar uma reflexão sobre o complexo trabalho de abstração realizado por artistas afrodiaspóricos e africanos, examinando a obra de dois artistas: Mark Bradford e Hadassa Ngamba. Durante muito tempo, deparamo-nos com uma ausência de textos, no campo da crítica da arte, que analisem e reflitam com vagar e atenção sobre a abstração realizada por artistas negros. Contudo, isto não se deve à falta de artistas africanos ou afrodescendentes produzindo arte abstrata as mais diversas desde os tempos das vanguardas do século XX. Podemos mencionar como exemplo o pioneiro sul-africano Ernest Mancoba, que migra para Paris no final dos anos 1930, onde passa a se interessa gradativamente pela pintura e pela abstração, integrando o célebre grupo Cobra. Porém, como observa Araeen (2005), há um apagamento e esquecimento da produção deste artista, de modo que nas narrativas e livros de história da arte sobre o modernismo ou nas retrospectivas do grupo Cobra, Mancoba não era sequer mencionado. Somente a partir dos anos 2000, parte de sua obra e sua história vem sendo recuperada, ganhando visibilidade. Para além de Mancoba, poderíamos mencionar aqui outros inúmeros exemplos de diferentes contextos do modernismo. Outro problema que encontramos com frequência, como observado por Araeen, é a redução rápida do artista a uma certa imagem ou representação de “africanidade” entremeadas com explicações de âmbito social, não observando ou atentando para as experimentações e inovações formais de sua obra. Isto que ocorreu com Mancoba atinge frequentemente artistas contemporâneos africanos, afrodiaspóricos ou afrodescendentes. Assim, propomos observar, no contexto contemporâneo, a intricada operação de Bradford e Nagmba – que ao mesmo tempo que trabalham com elementos provenientes do contexto histórico e social, efetuam uma operação para transformá-los em abstração. Ambos os artistas têm sido relacionados com a produção de cartografias abstratas fictícias. Por um lado, negam a ideia de um formalismo puro que se afirmou como o modo de produção do alto modernismo, por outro, ao plasmarem informações e materiais que contêm rastros da vida social e histórica, as transformam em formas, linhas e abstração. Parece haver uma dupla negação: do purismo do formalismo e ao mesmo tempo da redução de suas obras aos contextos histórico sociais, empreendendo uma resistência às análises redutoras que incidem sobre as obras destes artistas.

Bradford: apropriação de materiais e dissolução Bradford tem trabalhado com abstração criando a partir da acumulação de materiais e colagens em obras de grande escala, nas quais, por um lado, o artista diz mapear histórias da violência racial, e, por outro, inventa e cria composições. Em seu atelier, localizado em um bairro negro e latino de Los Angeles, o artista reúne os papéis diversos que recolhe nas ruas – registros, jornais, cartazes – com os quais constrói suas intricadas camadas e mapas abstratos. Estes papéis carregam inúmeros significados que são plasmados no processo compositivo do artista, que alia ainda pigmentos provenientes de lojas de materiais de construção. Vale-se ainda de papéis para permanente afro, em inúmeras sobreposições e camadas, criando grades com variações tonais de cores, transparências e rastros. Imagens que lembram cartografias, vistas aéreas, redes. O próprio artista denomina sua produção como “social abstraction” (abstração social). Se o material utilizado, de fato, frequentemente carrega histórias, na pintura, estas histórias somem e se transformam em cores, texturas, palavras que se tornam grafias e desenho. Há um grande processo de construção de camadas, depois de rasgos, cortes, filetes e dutos que o artista cria. Linhas se sobrepõem, cores ocupam áreas, luminosidades e tons saltam organizando sua cartografia plenamente abstrata. Contudo, inúmeros textos críticos insistem na dimensão representativa do trabalho com temas como raça e de sua relação com a cidade e a vida no bairro negro e latino. Exemplo disso é um trecho de um texto de autoria de Adriano Pedrosa (2016, online): Although seemingly abstract, to the careful viewer these works will reveal their true subject: the city and its streets. More specifically, they represent the neighborhood where Bradford grew up and still lives, where his home and studio […] are located—the predominantly black and Latino neighborhood of Leimert Park in South Los Angeles.

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Mais adiante no texto, Pedrosa (2016, online) afirma: “the resulting pictures are deceptively abstract”, dizendo que as obras estariam abertas à interpretação, mas não seriam completamente abstratas, pois haveria algo relacionando-as à vida social. Pedrosa aproxima a pintura de Bradford da obra de Oiticica, por levar a experiência da vida e das favelas para suas obras. Mas, como o próprio crítico afirma, os diversos papéis e suas histórias se tornam uma obra abstrata para quem as vê. Podem parecer cartografias, mas são inventadas, são imagens. Mesmo em obras nas quais o artista parte de um mapa existente, ao final não há mapa reconhecível ali. Há uma espécie de dissolução, de transformar-se em outra coisa, em outra composição, em que a imagem original não deixa de ser um rastro invisível ou uma camada não mais reconhecível. Como propõe Stephen Best, é como se a obra de Bradford negasse seu próprio aspecto representacional. Podemos saber que há cartazes de propaganda diversos, notícias do jornal etc - exemplos mencionados no texto de Pedrosa. Mas, ao olharmos para o quadro, nada disso é visível, nem imaginável; tudo isso, sua carga de informação, suas narrativas e histórias se foram, plasmadas em outra coisa. O que vemos é a intensidade, as cores e a composição. Segundo Best (2018, p. 52), haveria uma dialética no modo de trabalhar com fragmentos que nos lembram as narrativas dos restos utilizados, entretanto “it defines and resist this desired historical recovery”. Seria um trabalho de construção e desconstrução simultâneos, no qual os fragmentos são sempre disruptivos, e não permitem a totalidade e a completude. Trabalha-se com aparecimento, desaparição e articulação de uma outra imagem. Interessante lembrar que Pedrosa menciona esta frustração com o resultado excessivamente abstrato da pintura final, mas não se furta em tecer, em sua interpretações, relações com a vida social. Trata-se, no entanto, de abraçar a frustração da impossibilidade da totalização dos fragmentos. Ao trabalhar com uma amálgama de materiais textuais, a tela “attempts to forestall any further textualization of its surface, inhibiting its appropriation by those projects that would add an explanation” (BEST, 2016, p. 52). Onde Pedrosa vê um quadro que se relaciona fortemente com a cidade, na obra A truly rich man is one whose children run into his arms when his hands are empty (2008) [figura 1], Best vê uma operação de emparedamento, de imobilização de todos estes fragmentos, uma espécie de tumba ou paredes feitas de arquivos, confinando materiais, escritos, memórias e histórias. As várias camadas de pintura-papel, ao se tornarem cor, fazem com que palavras antes impressas percam todo seu sentido. Não se trata de recuperar ou reparar uma história, mas de inscrever e transformar em pintura. Alguns fragmentos de palavras e letras, por vezes, ainda são legíveis, oferecendo-nos a ilusão da possibilidade de um deciframento, de relacioná-los a um contexto, mas nos levam ao fracasso repetidas vezes. Para Best, trata-se de uma obra que nos ajuda a poder falhar, a repensar a relação com as imagens, as palavras, as perdas e apagamentos, abrindo uma outra dimensão para o inesperado e a não totalidade. Nesse sentido, trata-se de um intricado trabalho de abstração contínua e de resistência à totalização e à tentativa de explicação.

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Figura 1 - Mark Bradford - A Truly Rich Man is One Whose Children Run Into His Arms When His Hands are Empty (2008) técnica mista sobre tela, 259 x 366 cm. Foto: Tom Little. © Mark Bradford. Cortesia do artista e da Hauser & Wirth

Ngamba: criação de motivos e composição Hadassa Ngamba, uma jovem artista congolesa, atualmente em residência no HISK (Bélgica), tem trabalhado com pinturas, colagens e abstração, valendo-se de cartografias, como modo de elaborar e refletir sobre a violência e contínua extração de recursos. Ngamba cria mapas e signos a partir da história colonial e neocolonial, produzindo, muitas vezes, seu próprio pigmento extraído da malaquita – presente na região de Katanga, cuja história é marcada pela exploração de minérios. Tendo se aproximado do trabalho de composição por meio da moda e do design de vestimentas, utilizando os típicos padrões e motivos do African Wax, ela passou a experimentar com a pintura no contexto de workshops da Bienal de Lubumbashi (2017), participando posteriormente da edição de 2019. Seus quadros, com freqüência, apresentam grelhas e cartografias imaginadas, embora integre materiais relacionados com a história da colonização. Narrativa esta relacionada com a própria história dos célebres tecidos African wax2. Em seus primeiros trabalhos, a artista compunha a partir dos motivos

2 Os tecidos African wax surgiram no contexto colonial indonésio, em que holandeses e tentaram produzir tecidos com a técnica batik de forma industrializada - com o intuito inicial de ter um mercado de tecidos neste país. Batik sendo a técnica tradicional artesanal de tingimento e desenho de motivos dos tecidos sarang que utiliza a cera para isolar áreas de cor, daí a denominação wax em inglês. No entanto, a versão industrializada - a primeira em 1850 produzida pelos holandeses - não encontrou sucesso no mercado indonésio, seja pelas falhas e craquelados que apareciam no tecido, seja por taxas que encareciam o produto. Segundo Zinsou, os African wax foram inicialmente levados da Indonésia para a África ocidental por soldados ganenses, tornando-se extremamente populares. Seus motivos repetidos e desenhos coloridos passaram a ser pensados localmente, cada região ou país africano criavam temas inspirando se em provérbios e ditos populares, carregando diferentes significados segundo cada contexto. Os motivos do design passam a ser nomeados pelas comerciantes de tecido nos mercados africanos, inventando narrativas relacionadas aos desenhos que mudam de acordo com o

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e temas dos tecidos, ressignificando, por exemplo, o motivo Mosapi – que significa dedos, em lingala3. Trata-se de um tecido African wax cujos desenhos repetidos de mãos perfuradas e dedos com grafismos sobrepostos criam o arranjo da estampa. Tecido bastante popular na África ocidental e central, sua denominação e narrativa mudam de acordo com o contexto. Nesse primeiro momento, ainda em um trabalho que guarda relações com a figuração, a artista associa o tema das mãos e dedos com as “mãos cortadas” – prática de tortura e mutilação sistemáticas na extração da borracha no período do Estado Independente do Congo sob o rei Leopoldo II4. Embora o motivo figurativo das mãos com sua história seja integrado à pintura, progressivamente Ngamba utiliza-o como uma forma, como um elemento compositivo entre outros, os quais vão se tornando gradativamente mais abstratos. Signos tornamse também quase motivos abstratos, formas. Posteriormente, a artista passa a trabalhar com retalhos abstratos do African Wax, integrando grafismos em composições mais complexas e elaboradas. Assim, se primeiramente a artista explora a capacidade gráfica e compositiva dos motivos dos tecidos, mais adiante ela passa a criar seus próprios motivos, compondo intricadas abstrações com cores, linhas e texturas. Ainda que traga com frequência a malaquita na preparação de seus próprios pigmentos, bem como o tingimento de tecido com café5, ou o uso de fragmentos de motivos dos tecidos já mencionados, em sua elaboração Ngamba compõe um vocabulário no qual estes elementos, que se conectam à história da exploração colonial e contemporânea, se tornam formas, motivos gráficos ou áreas de cores e linhas para a organização de seus arranjos. Ao criar suas pinturas abstratas, nota-se em Ngamba também esta espécie de negociação de fragmentos que desafiam tentativas de totalização e sobretudo uma resistência à leitura de um trabalho simplesmente como “arte africana”, ainda que negocie com rastros da história dos materiais empregados e ambiguidades. Suas pinturas propõem outra articulação, na qual emergem imagens de mapas inventados e relações imprevistas. Há uma lógica de composição fina e rigorosa em suas pinturas, propondo outros espaços, mas trazendo em si um horizonte que aponta para além da história da exploração e o contínuo tornar ruína das estruturas coloniais. Em suas últimas composições da série Cerveau, o uso da rede ou grelha se torna mais constante. Na história da arte modernista ocidental, o uso da rede ou grelha se tornou signo da modernidade mesma (KRAUSS, 1979), enfatizando a autorreferencialidade, a planaridade, seu caráter antimimético e sua resistência à narrativa, geralmente considerada como organização regular e geométrica do espaço. Suas linhas criam ritmos ora perpendiculares, ora desviantes, como podemos ver em Cerveau 2 [figura 2]. Ou não são rigorosamente retilíneas de um ponto a outro da tela. Sobre o fundo em tom terroso, tingido com café, vemos emergir uma espécie de grelha de trechos de linhas retilíneas brancas que sobem ou descem em diagonais atravessando toda a extensão da pintura. Diferentemente das grelhas dos mapas com linhas paralelas que marcam a longitude e latitude, as de Ngamba integram irregularidades rítmicas numa cartografia inventada. O contraste de formas retilíneas e orgânicas, bem como as relações das cores e dos traçados, nos colocam diante desta abstração que amalgama diferentes materiais (e suas histórias, visíveis ou não), rompendo com a geometria rigorosa das grelhas da arte moderna ocidental. Desloca-se a grelha, que ganha ritmo através de seu contraste com linhas orgânicas e interrompidas. Tudo isso nos leva à não decifração deste mapa fabulado. Como em Cerveau 3 [figura 3], podemos percorrer os olhos pelas diversas linhas e bifurcações, pelas vastas áreas do vermelho com suas variações ou pelas zonas de azul e amarelo, para abrir outros sentidos. É interessante observar que as grelhas em Ngamba, mesmo quando seu uso se dá por linhas perpendiculares, se perdem em outras diagonais. Ao mesmo tempo que se integra à abstração e dialoga com a resistência à narrativa e ao discurso das grelhas das pinturas modernistas ocidentais, abre uma brecha integrando histórias nos materiais utilizados, mas que

contexto. 3 Língua bantu que se tornou língua vernacular a partir de seu uso pelo exército ainda em contexto colonial na República Democrática do Congo, uma das línguas mais faladas no país e sobretudo em sua capital, Kinshasa. 4 A célebre fotografia “Nsala de Wala com as mãos e pés de sua filha” (1904) da inglesa Alice Seles Harris – que participava da iniciativa de missionários protestantes no Congo – se torna uma imagem emblemática de denúncia das atrocidades cometidas pelo regime de Leopoldo II. A foto integra o dossier e campanha de Morel e Casement contra a exploração e escravidão no Estado Livre do Congo. 5 O café também foi um dos produtos de exportação do Congo no período colonial e logo após a independência.

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ao se tornarem cores na pintura quase se apagam. Assim, o trabalho de Ngamba parece criar distúrbios diversos: da opacidade e resistência em criar rápidas explicações para suas pinturas, de falhar na correspondência a um certo lugar do estereótipo de artistas africanos, mesmo contemporâneos. Suas pinturas, cartografias imaginadas, criam, desse modo, uma zona de desafio ao sistema de funcionamento neocolonial das artes, ainda que produzindo atualmente no território da ex-metrópole.

Figura 2 - Hadassa Ngamba - Cerveau 2 (2019) - 110 x 240 cm, acrílica, malaquita, alcatrão, lápis, carvão e café sobre tecido de algodão - Foto: Gosette Lubundo. Cortesia da artista.

Figura 3 - Hadassa Ngamba - Cerveau 3 (2020) - 110 x 217 cm, pintura a óleo e terminais de marcadores de cartografia (164 x 10 cm) - Foto: Philip Aguirre y Otegui. Cortesia da artista.

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Coda Tanto as pinturas de Ngamba quanto as de Bradford requerem um olhar com vagar, uma atenção, e também uma afirmação da opacidade. Como afirma Edouard Glissant (2008, p.53), Opacidades podem coexistir, confluir, tramando os tecidos cuja verdadeira compreensão levaria à textura de certa trama e não à natureza dos componentes. Renunciar, por um tempo talvez, a essa velha assombração de surpreender o fundo das naturezas.

Estas composições, que retrabalham materiais com histórias e narrativas transformando-as em cores, texturas e elementos compositivos, parecem criar uma complexa dialética ao invocar suas histórias ao mesmo tempo que as fazem desaparecer para fazer ver outra coisa. Tais pinturas resistem à transparência, à compreensão plena, às reduções e julgamentos, ao deciframento completo. Embaralhar referências à história da arte moderna – como as grelhas – de modo deliberado, no caso de Mark Bradford, torna seus mapas criações que plasmam seus materiais em abstração. Em Ngamba, suas pinturas são composições feitas de diversos pigmentos que ultrapassam narrativas já conhecidas e os possíveis significados em sua história. Os materiais se tornam linhas, áreas de cor que se organizam ritmicamente. Habitam entre mundos, errantes, como a arte sempre em partida para outro percurso. Valendo-se de meios e materiais singulares e diversos, ambos os artistas trabalham com a abstração inventando mapas de opacidades que resistem às narrativas, seja apagando-as, seja multiplicando-as. Ao fazê-lo, desafiam o próprio trabalho da abstração, e ao mesmo tempo explicitam as complexas operações de composição e transformação.

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Referências ARAEEN, R. (2005) Modernity, Modernism, and Africa’s Place in the History of Art of Our Age, Third Text, 19:4, 411-417, DOI: 10.1080/09528820500123943 BEST, Stephen, None like us - blackness, belonging, aesthetic life. Durham, London: Duke University Press, 2018. GLISSANT, Édouard, Costa, K. P., & Groke, H. de T. (2008). Pela opacidade. Revista Criação & Crítica, (1), 53-55. https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i1p53-55. GRANT, K., “Christian Critics of Empire: Missionaries, Lantern Lectures and the Congo Reform Campaign in Britain” in Journal of Imperial and Commonweal History, 29, n.2 (May 2001): pp25 -78. KRAUSS, R. “Grids.” October, vol. 9, The MIT Press, 1979, pp. 51–64, https://doi.org/10.2307/778321. PEDROSA, Adriano. “The Phaidon Folio: How to understand the paintings of Mark Bradford, the United States Representative to the Venice Biennale” in Artspace, April 19, 2016. Disponível em: https://www. artspace.com/magazine/art_101/book_report/mark-bradford-excerpt-53732 ZINSOU, Marie Cécile (coord.), Archives du présent: Wax Stories, Cotonou (Bénin): Fondation Zinsou, 2019.

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A escritura em liame com a contemporaneidade da arte: rumores de críticas de arte por vir Writing in connection with the contemporaneity od art: whispers of art criticism to come Lindomberto Ferreira Alves1 UFPA, lindombertofa@gmail.com

RESUMO: O ensaio expõe os pontos de partida de uma pesquisa que se debruça sobre a dimensão poético-política de perspectivas contra-hegemônicas de escritas em/sobre arte. Tratam-se, aqui, de apontamentos introdutórios, atentos ao território insurgente de escritas críticas da arte, cuja contestação do monologismo crítico ocidental, chamam atenção para modos minoritários de pensarescrever as práticas, as teorias, as críticas e as histórias nesse campo. Nossa hipótese é que as táticas escriturais dissidentes engendradas nesse território tanto seria urdida quanto coloca em funcionamento o que proponho chamar de exercícios de críticas de arte menores. Exercícios que requisitam práxis críticas mais complexas e heterogêneas junto ao trabalho de arte na contemporaneidade e suas inextricáveis críticas da condição histórica do presente. PALAVRAS-CHAVE: Crítica de arte; Arte contemporânea; Escritura; Crítica de arte menor. ABSTRACT: This paper exposes the starting points of a research that leans over the poeticpolitical dimension of counter-hegemonic perspectives in writings in/about art. Aiming, with it, to address introductory considerations attentive to the insurgent territory of writing in art criticism, whose contestation of the critical occidental monologism, brings attention to minority ways of thinking-writing the practices, theories, critiques and histories of this field. Our hypothesis is that dissident writing tactics brought about in this territory so much would be weaved as it would work as what I suggest be named exercises of minor art criticism. Exercises that require more complex and heterogeneous critical praxises along with the function of art in contemporaneity and its inextricable commentary on present history condition. KEYWORDS: Art criticism; Contemporary Art; Writing; Minor art criticism.

1 Artista-educador, pesquisador, crítico e curador independente. Doutorando em Artes (PPGArtes/UFPA), Mestre em Artes (PPGA/UFES), Licenciado em Artes Visuais (UNAR/SP) e Bacharel em Arquitetura e Urbanismo (UFBA). Possui textos publicados em eventos, catálogos e periódicos especializados nos campos da história, teoria e crítica de arte. Desde 2018 integra o duo FURTACOR, em parceria com Amanda Amaral. Autor do livro Rubiane Maia: corpo em estado de performance (2021). Site: <https:// lindomberto-ferreira-alves.webnode.com/>.

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Ante narrativas de mão única e histórias universalizantes da arte, uma das questões em disputa, hoje, nesse campo, seria a reivindicação de outras configurações éticas e políticas acerca do exercício da crítica de arte. Configurações orientadas pela legitimação de outras formas de experiência e expressão estéticas, outros sistemas de valores, oriundos de manifestações artístico-culturais antes ocultadas, de modo que estas não sejam invisibilizadas, tampouco “esvaziadas de seu sentido histórico, perdendo o viés descolonial que tiveram e o potencial decolonial que têm, suas idiossincrasias, devires e possibilidades de futuro” (AMARAL, 2017, s/p). Arranjos que flexionam e instituem campos de visibilidade, dizibilidade e compreensão de saberes que trazem, juntos, mundos complexos que não cabem nas decodificações e recoginições da razão monológica instituída pela colonialidade ocidental. Arranjos cujos agenciamentos poético-políticas possibilitam a “reconstrução de histórias silenciadas, subjetividades reprimidas, linguagens e conhecimentos subalternizados pela ideia de totalidade definida pela racionalidade moderna” (Idem). Quer sejam históricas, sociológicas, teóricas, críticas, curatoriais ou propriamente artísticas, os territórios insurgente de escrituras2 críticas em/sobre artes que esses arranjos contra-hegemônicas engendram, convocam, por um lado, à reflexão dos códigos, técnicas e saberes implicados às desobediências estéticas e epistêmicas (MIGNOLO, 2008; 2010) das urgências poéticas contemporâneas – sobretudo, aquelas “comprometida[s] com a justiça cognitiva/social e com a vida em sua diversidade e imanência” (RUFINO, 2018, p. 71). Por outro lado, põem em evidência e em circulação, problemas e questões historicamente obliteradas pela retórica monológica ocidental, ao incluírem, acolherem e tensionarem um conjunto de contranarrativas que instauram novas perspectivas de leituras teóricas, críticas e históricas no campo da arte – requisitando nossa atenção, portanto, a outros sensos éticosestéticos-políticos, isto é, a modalidades outras de partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005a; 2014). Confrontamos-nos, assim, com configurações que, atentas e implicadas nos debates travados em torno da categoria colonialidade (QUIJANO, 2005), bem como sobre as distintas propostas de descolonização epistêmica, vêm explorando a formulação de experimentos críticos nos quais são inoculadas a afirmação de novos e potentes processos, práticas, iconografias, historiografias e teorias para além do imaginário de poder hegemônico da arte. A medida em que evocam a práxis crítica como via de expansão dos campos subjetivo e social, esses experimentos dão a ver outros equivalentes sensíveis da realidade, distintos dos escamoteados pela pretensa ambição homogeneizadora do real (RANCIÈRE, 2014). Experimentos cujos vetores nos alertam à irrestrita complexidade do labor crítico no que concerne a discussão de práticas artísticas que, desde esse campo de problematização, refletem a escuta de modalidades de existência mais insubmissas, ao excederem o paradigma cultural dominante e suas formas hegemônicas de representação na arte e no âmbito mais amplo da política. Chama atenção, portanto, que o labor da crítica de arte implique em horizontes de abertura, e não em escritas que reifiquem um futuro de clausuras, no qual os discursos aí coabunados seriam apenas anexos portadores de forças alimentadoras de automatismos e recognições. Labor que efetivamente coteje as forças desejantes que percorrem tais práticas artísticas, naquilo que nelas alimentaria e impulsionaria esses horizontes de abertura, os ganhos de complexidade, frente ao qual o território insurgente de escrituras críticas da arte seria uma das instâncias que evidenciaria uma marginalidade central das propostas de descolonização epistêmica no campo da arte contemporânea. Ponderação justificada na urgência em problematizarmos a disseminação recorrente de modos hegemônicos de pensar-escrever a teoria, a crítica e a história da arte na contemporaneidade; bem como a incapacidade dos procedimentos usuais de escritas mobilizadas por esses modos – não por acaso, afeitos “às obsessões positivistas do modelo de racionalidade ocidental” (RUFINO, 2019, p. 31) – em incorporarem as heterogeneidades e as dissidências agenciadas pela crítica da condição histórica do presente, gestadas nos trânsitos das práticas artísticas contemporâneas. Em outras palavras, urgência que aponta à necessidade de se inventariar, reunir, analisar e discutir,

2 No texto “Escritores e escreventes”, publicado originalmente em 1960, Roland Barthes (2013) cria o neologismo “escrevência” que, para ele, seria oposto ao termo “escritura”. Com essa investida, Barthes procura distinguir aqueles que escrevem alguma coisa (os escreventes) daqueles que escrevem, ponto-final (os escritores). A escrita dos primeiros seria transitiva, comunicativa, portadora de mensagem, enquanto que a dos segundos é intransitiva, autorreferencial e produtora de sentidos: é escritura.

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referências, gramáticas e epistemologias que, atentas à premissa de que a “compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo” (SANTOS, 2007, p. 20) – e, justamente por isso, “buscam, de formas variadas, apreender a dinâmica multicultural da produção contemporânea em artes visuais” (ANJOS, 2005, p. 30) – tornam-se aliadas no revide à “chamada língua internacional da arte” (ANJOS, 2017, p. 156) – protagonizado pela perspectiva ocidentalcêntrica (SANTOS, 2020), a qual “reproduz seus valores particulares e contingentes como se fossem consensuais e permanentes” (ANJOS, 2017, p. 157). E esta certamente não se trata de uma posição isolada. Seja no epicentro de onde irradiaram/ irradiam modos dominantes e homogêneos de leitura crítica, teórica e histórica no campo da arte; seja nas suas margens, nas quais nunca cessaram de poliferar racionalidades alternativas (RIBEIRO, 2005) – e nelas formas dissensuais de experiência, expressão, recepção, ativação e conhecimento das artes – esta posição reverbera e ganha cada vez mais tônus. Especialmente em face aos processos de contestação da ordem do ser/saber/poder de uma lógica de funcionamento eurocêntrica e colonial dos métodos de elaborações teóricas, críticas e historiográficas da arte, veiculados, sobretudo, às reflexões em torno de suas condições de politização (RANCIÈRE, 2005b; 2010; DIDI-HUBERMAN, 2020), bem como de suas inter-relações com o campo teórico-político da descolonidadade (BHABHA, 2019; HALL, 2020; SPIVAK, 2010; MIGNOLO, 2020). Nesses termos, diante dos desafios colocados à crítica pelo multifacetado campo de urgências poéticas que irrompem perturbações nos cânones dos campos da arte e da cultura na contemporaneidade – especialmente no que nelas dizem respeito às relações de convergências com o giro decolonial (MALDONADO-TORRES, 2007) – não pareceria nenhum absurdo afirmar que “é preciso aceitar o doloroso fato de que [neste campo] certas questões não são mais pertinentes” (BOURRIAUD, 2009, p. 9). Ressalva-se da rubrica bourriaudiana apenas o termo ‘doloroso’, pois o que se nota é que esse tipo de sensação, frente à assertiva que suscita, manifestar-se-á, não por acaso, nos que historicamente se arvoraram a ocupar o lugar de exclusivos porta-vozes de uma pretensa epistemologia universal. Feita esta ressalva, e uma vez que o que se vê, hoje, é um “[r]etorno progressivo às cosmologias antigas e às suas inquietudes” (LATOUR, 2012, p. 452), importa pensar, aqui: qual seria o canal de escoamento de produção de uma escritica crítica, dadas as questões são colocadas para o campo da arte, neste contexto de descolonização epistêmica? Entre tantas, atenho-me a uma de modo especial: a discussão das obras de arte contemporâneas derivadas desse processo, no que diria respeito à tarefa do historiador e do crítico, não poderia mais ser a mesma, calcada na dominação epistemológica que clivou, silenciou e, em última instância, obliterou a alteridade, contribuindo “fortemente para remeter para o domínio do irracional toda a razão não formada pela ciência [moderna]” (SERRES, 1996, p. 74). No primeiro âmbito, chama atenção para esta questão, por exemplo, a provocação de que a tarefa do historiador, face o pluralismo da produção contemporânea da arte, haver-se-ia com a interpretação das “novas regras do jogo, teorizando esse pluralismo sem lhe aplicar as normas do passado” (CAUQUELIN, 2005, p. 132). Isso porque, a ideia de um relato unificador, gestado na autoreferência modernista (CANCLINI, 2012), além de contestado – por refletir apenas uma perspectiva europeia e ocidental (BELTING, 2006) – teria se tornado, também, inócuo diante dos saberes-fazeres tensionados pela contemporaneidade da arte – tal qual procuraram destacar, por exemplo, os debates em torno da crítica institucional (FRASER, 2014) e da virada social da arte contemporânea (BISHOP, 2008). Ainda neste âmbito, chama igualmente atenção outra provocação, a de que uma das tarefas do crítico seria “reconstituir o complexo jogo dos problemas levantados numa determinada época e em examinar as diversas respostas que lhe são dadas” (BOURRIAUD, 2009, p. 9). O que implica dizer que, qualquer elaboração crítica que não busca inseri-la na atividade de seu autor (MORAIS, 2004), isto é, que desconsidere que “o produto do trabalho (artístico) não pode ser considerado fora das condições de sua produção” (BOURRIAUD, 2011, p. 67), permanecerá desencadeando enunciados discursivos dominantes, bem como locuções críticas cujos processos de escritas só corroboram com a vontade de universalidade, ou seja, com a reificação da “ficção de uma história da arte comum, que vive, porém, da falsificação ou do nivelamento dos processos históricos reais” (BELTING, 2006, p. 43). Já no segundo âmbito, chama atenção o ultimato de que “urge ampliar o sentido da crítica” (BASBAUM, 2001, p. 25). Isso porque, a crítica arte ainda carrega toda uma “tradição de duplo sentido 125


positivista-paternalista, em que transparece o exercício de uma autoridade supostamente isenta e objetiva” (Ibidem, p. 19). Contudo, tanto a complacente noção de isenção – objetivada na palavra como via de perpetuação dos léxicos entoados pelo ideal coletivo de modernidade – quanto o quimérico exercício de autoridade da crítica – o qual supostamente existiria exclusivamente a serviço de si mesmo, ou melhor, a serviço do estabelecimento das condições para o exercício de normatividade do “liquidificador modernizante do Ocidente” (CASTRO, 2015, p. 15) – encobrem o fato de que a crítica seria “uma expressão de seu presente, de uma discussão específica que acontece no momento em que ela está sendo escrita” (CARDOSO, 2019, p. 221). Isso porque, a crítica se realiza a partir de performatividades específicas que se articulam transversalmente entre saberes e fazeres, salvaguardando a imagem de um diálogo estabelecido em um determinado tempo, em um contexto, em um lugar, e a partir de uma gramática própria, com a qual anuncia sua interlocução com o mundo e suas intenções para com ele. É de natureza da crítica a mediação, ser plataforma de comunicação – gestos que demandam decodificações próprias e constrói, para isso, uma gramática particular, acessível por e para aqueles que compartilham de seus códigos e mundos. Nesse sentido, no que concernem, por exemplo, modos experimentais de escrituras críticas da/de arte exercitados na esteira do leitmotiv decolonial, o que percebemos é que essa tradição de duplo sentido positivista-paternalista não só viria sendo contestada como modelo único, como não teria mais nenhuma prerrogativa neste momento de atualidade – embora ainda possamos nos deparar com casos que nos levam a crer no contrário. Não quero dizer com isso, evidentemente, que a sua deposição é o que estaria em questão. Ou, por outro lado, que na sua manutenção ela tenha que adaptar-se às narrativas que, no afã de abarcarem a diversidade, complexidade e dinamicidade das práticas artísticas dissidentes agenciadas na contemporaneidade, ora acabam escamoteando-as, ora geram excessivas simplificações a seu respeito (ANJOS, 2005). O que estaria em jogo, nesse domínio ampliado da crítica, seria a possibilidade real de problematização do pensamento unívoco sobre a estética e sobre a arte, por meio da escuta às injunções e desdobramentos, assimilações e ressignificações dos “problemas que a própria crítica encontra em seus percursos na história mais recente” (ZIELINSKY, 2009a, p. 16) – problemas que, de forma vigorosa, contestam as normatividades, expectativas e pressupostos judicatórios modernos, em favor da partilha de outros protagonismos, outras intenções, outros desejos, outras urgências. O que estaria em jogo é o seu compromisso ético-estético-político no acolhimento de saberes contra-hegemônicos que não se opõem à “celebração da multiplicidade de enunciados artísticos oriundos de pontos mais variados e distantes [...], articulando referências diversas e reinventando, em termos simbólicos, esses espaços no mundo contemporâneo” (ANJOS, 2005, p. 33-34). É junto a esse compromisso que as diferenças podem ser reinventadas e que outros mundos podem ser imaginados, com o fito de que os discursos potencialmente alternativos e contestatórios, aí suscitados, fomentem a emergência de outras práticas escriturais críticas no campo da arte. Mais além e mais aquém, as escrituras urdidas em liame com esse compromisso ressoariam em modos menoritários de conhecimentos e de narrativas, forjados, por sua vez, a partir de “loci geopolíticos e corpos-políticos de enunciação” (BERNARDINO-COSTA & GROSFOGUEL, 2016, p. 15). Loci esses que, não por acaso, reclamam “a condição de parte para aquilo que é considerado sobra; que reclamam a condição de alguém para quem é ninguém” (ANJOS, 2014, s/p). É do contexto dessas reflexões, ainda provisórias, que advém minha aposta na potência contida na possibilidade de se exercitar uma crítica de arte menor. A hipótese que venho perseguindo é que esse território insurgente de escrituras críticas da arte, em seus múltiplos desdobramentos recentes, tanto seria urdido quanto coloca em funcionamento o que proponho chamar, aqui, de exercícios de críticas de arte menores. Isto é, de modos minoritários de se exercitar o pensar-escrever a crítica que, por operarem na contramão dos léxicos entoados pelo imaginário de poder hegemônico do monologismo crítico ocidental, dão a ver distintas e singulares perspectivas de leituras teóricas, críticas e históricas no campo da arte. Modos prenhes na estimulação de elaborações críticas mais complexas e heterogêneas junto as práticas dissedentes na arte contemporânea e às obras de arte derivadas delas – especialmente no que nelas dizem respeito os agenciamentos éticos, estéticos e políticos, frutos das convergências com a cultura, na atualidade. Modos esses que permitem, inclusive, situar em perspectiva princípios táticos textuais que colocam escritura e sujeito em liame com a própria contemporaneidade da arte e do mundo – não por acaso, uma entre tantas características das urgências poéticas na condição histórica 126


do presente. Se o conceito de menor (DELEUZE & GUATTARI, 2014), em si, já nos traz pistas da força e das potenciais contribuições que orbitam a aposta de se investigar exercícios de críticas de arte menores; as considerações a respeito de uma arte e de uma curadoria menor (ANJOS, 2017), impulsionaram tal aposta, permitindo explorá-la. Aposta fundamentada em duas premissas. Uma primeira ligada à ideia de que a crítica que emergiria das dobras dos processos histórico-sociais de descolonização e reparação histórica dentro do mundo da arte, coloca em perspectiva, seu caráter “simultaneamente subordinado e resistente à vontade de dominação de quem deseja anular ou apaziguar as diferenças, impondo-se como força ativa de um embate em marcha pela afirmação de narrativas simbólicas distintas” (ANJOS, 2017, p. 155). O que equivaleria a conjecturar que essas dobras inoculariam o ‘menor’ também no âmbito da crítica, por darem a ver uma região “onde frequentemente se confronta aquela subordinação e se reforçam ou se recriam modos de vida diferentes” (Ibidem, p. 155). A outra premissa, ligada a ideia de que, frente a esse cenário de “economia hegemônica da arte” (BASBAUM, 2017, p. 240), a crítica de arte que desejar haver-se com processos ético-políticos de decolonização dos modos vigentes de ser, sentir, pensar e fazer – instituídos no interior destas dobras – precisariam igualmente “achar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio dialeto, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto” (DELEUZE & GUATTARI, 2014, p. 39), de modo a assumir-se como uma prática menor, e assim poder “exercer o direito de narrar a vida que talvez seja própria de quem é, mas não o deseja ser, subalterno de mais alguém” (ANJOS, 2017, p. 166). Ou seja, exercitar modos minoritários de pensar-escrever críticas de arte nos trânsitos artísticos dissidentes contemporâneos envolve valer-se do reconhecimento de sua posição de subordinação diante de uma crítica de arte maior, “para criar, em meio e a partir dessa circunstância, a potência transformadora de sua formulação” (Ibidem, p. 156). Entretanto, essa potência transformadora não passa pela representação, para as tidas como nações centrais, àquilo que seria considerado, por elas, indiossincráticas manifestações derivativas de sua “linguagem internacional”. Afinal de contas, é justamente aí que residiria o labor hegemônico da crítica de arte – da crítica de arte maior – pautado na rasa assimilação moderna de exposição das diferenças; calcada, por sua vez, na outridade, e não na alteridade (KILOMBA, 2019). Labor esse que se abstém “de enfrentar, com a acuidade devida, questões essenciais à apreensão efetiva do que caracterizaria na contemporaneidade” (ANJOS, 2005, p. 32), por exemplo, as seguintes questões: A que projeto de mundo a crítica de arte responde? Quais projetos outros de mundo a crítica de arte pode potencialmente criar com suas intenções e ficções? Nesses termos, considerando que a crítica de arte maior se estrutura na “indevida homogeneização e compartimentação do que é distinto” (Ibidem, p. 33), os modos minoritários de se exercitar o pensar-escrever críticas de arte caminharia no sentido oposto: o da construção de imagens fragmentárias da alteridade que, ao nível epistemológico, evoca uma ecologia de saberes (SANTOS, 2020). Modos que põem em funcionamento uma espécie de performance da escritura, no que ela traz de instante-já, buscando sintonizar um sentir e um pensar que afirma e valoriza as diferenças via contestação das hierarquias de poder vigentes que as regulam. Tudo isso agenciado por ideiaspalavras que não são quaisquer; mas, sim, palavras que demandam e estejam em consonância com o “reconhecimento da copresença de diferentes saberes e a necessidade de estudar as afinidades, as divergências, as complementaridades e as contradições que existem entre eles” (SANTOS, 2020, p. 28) – algo que, em geral, é desconsiderado e/ou eliminado pela critica de arte maior, precisamente por não atuarem em favor da construção de uma pretensa verdade discursiva totalitária. Modos que demandam uma aproximação inacabada com signos parciais dessa ecologia de saberes, em sua diversidade e imanência, a fim de “fazer vibrar sequências, abrir a palavra sobre intensidades interiores inauditas, em suma, um uso intensivo assignificante da língua” (DELEUZE & GUATTARI, 2014, p. 45). Aposta-se, assim, na operação de “um modo distinto e crítico – menor, portanto – de posicionarse em relação ao outro no espaço e no tempo que tocam a cada um viver; um modo no qual não cabem exatidões ou plenas certezas” (ANJOS, 2017, p. 166). Esforço esse que, ao se comprometer em não fixar narrativas supostamente plenas de significações, tensionaria “o máximo de diferença como diferença de intensidade” (DELEUZE & GUATTARI, 2014, p. 45), acendendo o nosso interesse – ou, mesmo, nos 127


convocando – a compor, com esses fragmentos, tanto o desejo de novas práticas de escritas críticas da arte, quanto a instauração de nossas próprias práticas de escrituras minoritárias neste campo. Implicados com as alteridades e opacidades (GLISSANT, 2008) engendradas pelos artistas contemporâneos, seus processos e subjetividades, esses modos arrastariam para o cerne de suas escrituras minoritárias pressupostos teórico-metodológicos que tanto reflitam quanto estejam atrelados as muitas formas dissidentes de presença da arte na atualidade, a multiplicidade de centralidades que agenciam, bem como as táticas heterogêneas com que a crítica do presente é operada, por essas presenças, em seus saberes-fazeres artísticos. Modos que inquirem, portanto, como as linhas de força e de fuga tensionadas por esses saberes-fazeres reivindicam da escritura sua função política (HEIMONET, 1989; RANCIÈRE, 1995; DIDI-HUBERMAN, 2020) de luta por justiça epistêmica – via problematização dos procedimentos de leitura e crítica da arte, herdados da vontade de verdade da ciência moderna (FOUCAULT, 2012) e da “clareza autodefinida dos ismos modernistas” (COCCHIARALE, 2001, p. 377). Modos que, sublinando a responsabilidade da crítica diante da negociação espaço-temporal que assegura a construção discursiva da história do presente, a releitura do passado e a inscrição de narrativas outras para o futuro no campo das artes, explicitam, como contraparte propositiva, uma ênfase em perspectivas contra-hegemônicas de leituras teóricas, críticas e históricas em torno dos processos artísticos e das obras de arte contemporâneas. Modos que convocam, igualmente, a função ethopoética da escritura (DOMINGUES, 2004), isto é, a função ética, estética e política de criação de si, na medida em que exploram e operam a crítica como instância capaz de evocar a criação de uma escrita ética, a criação de uma escrita de si (FOUCAULT, 2004). Escrita que convida a afirmação de possibilidades distintas e singulares de pensar-escrever em liame com a contemporaneidade da arte e do mundo. Mas, também, a transformarmo-nos em meio à própria escritura – desarticulando-nos do que acostumamos a ser, saber e poder, a fim de se “experimenta[r] uma surpreendente consistência: ‘variar-se de vários’” (PRECIOSA, 2010, p. 69). Ou, em outras palavras, “aparecer diante de si mesmo estranho, áspero, alquebrado, ambulante, um balaio de muitos” (Ibidem, p. 52). Sob esse prisma, a escrita assumiria “o vivo ativamento da potência das forças de criação” (ZIELINSKY, 2009b, p. 96), ao colocar-se comprometida “contra toda forma discriminatória do poder e do autoritarismo, inclusive o autoritarismo das correntes hegemônicas” (MORAIS, 2004, s/p). Postas em relação, essas funções colocam um espécie de lente de aumento sobre processos de criação desses modos minoritários de se exercitar o pensar-escrever críticas na contemporaneidade. Elas parecem agenciar, entre si, espaços-tempos de descompressão imaginativa e de mutações epistemológicas sobre a tarefa critica inscrita na pluriversidade do mundo. Espaços-tempos nos quais são produzidos experimentos de pensamentos e ações micropolíticas capazes de “partilhar o sensível, embaralhar os códigos e afrouxar certas lógicas entre a ética, a política e a estética” (SILVA, 2011, p. 71). Juntas, essas funções, amplificam aquilo que poderia não emergir por contra própria, a saber: que, além de se comprometerem com a diversidade de conhecimentos e com o combate às injustiças praticadas pelos epistemicídios cognitivos/sociais (CARNEIRO, 2005), esses modos minoritários de exercícios da crítica viriam contribuindo teórica e metodologicamente para a emergência do território insurgente de onde pululam práticas contra-hegemônicas de escritas críticas da arte. Se, por um lado, essas funções enfocam a crítica de arte como um objeto político, uma vez que a ordem de mundo com o qual a ela interage é também a que a constitui, que a alimenta e para onde direciona suas intencionalidades. Por outro, enfoca igualmente o fato de que “uma crítica não é uma tarefa nada fácil de ser concebida” (CASSUNDÉ; DINIZ; CAMPOS, 2019, s/p). Constatação que parece endoçar a asserção de que os exercícios de críticas de arte menores instituem uma intrincada rede de possibilidades de comunicação e mediação dos processos artísticos que vislumbra não a anulação de uma perspectiva crítica em detrimento de outra, tampouco o “esgotamento lógico de possibilidades dadas, mas da inesgotável abertura aos possíveis ainda não dados” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 13). Exercícios cujos princípios táticos textuais minoritários evocam “agenciamentos de relações de regimes heterogêneos do sensível” (RANCIÈRE, 2010, p. 53), à medida que operam possibilidades de reinterpretação, desmontagem, decomposição e reconstrução de sentidos que colocam, em disputa, a enunciação dos discursos e a locução crítica das formas de narração da historicidade da arte e do mundo. 128


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Encruzilhada: como representar o que ainda não sabemos como descrever Encruzilhada: how to represent what we don’t know how to describe yet Lorraine Pinheiro Mendes1 UFRJ - lorraine.artes@gmail.com

RESUMO: Essa proposta trata-se de uma análise das pinturas de Mulambo, com destaque para a obra “Todos os caminhos eu levo comigo” (2021), considerando a agência poética negra como uma saída dos modelos de representação de negritude da história da arte branco-cêntrica. Ao romper com tais modos de representar negritudes, artistas podem criar, coletivamente, soluções ou métodos de autodefinição. Para isso, partimos da memória como ferramenta que contradiz o discurso histórico hegemônico, e vemos a ação desses artistas como evocação de princípios valiosos da Afrocentricidade, dando a rasteira que fará colapsar a visão colonial de mundo e do sistema de arte branco-cêntrico. PALAVRAS-CHAVE: Mulambo; Afrocentricidade; Encruzilhada; Colonialidade. ABSTRACT: This proposal is an analysis of Mulambo’s paintings, most notably the work Todos os caminhos eu levo comigo (2021), considering the black poetic’s agency as a way out of representation models of blackness in the white-centric art history. By breaking with such ways of representing blackness, artists can collectively create solutions or methods of self-definition. Having memory as a tool that contradicts the hegemonic historical discourse, the action of these artists evokes valuable principles to Afrocentricity, striking the blow that will collapse the colonial view of the world and the white-centric art system. KEYWORDS: Mulambo; Afrocentricity; Encruzilhada; Coloniality.

1 Doutoranda em História e Crítica da Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolve pesquisa sobre a representação do negro na história da arte branco-brasileira e a agência poética negra contemporânea. Crítica de arte e curadora independente. É mestra em História pela UFJF e bacharela em Artes e Design pela mesma instituição.

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Trabalhando para transformar a imagem Este texto tem por motivação as inquietações de um olhar para a agência poética negra contemporânea. Inquietações que geram modos de ver que enxergam nessa produção, potencialidades para se observar e resgatar o passado. Este passado que aqui me interessa é o arquivo que compõe a história da arte branco-brasileira2 e os modos de analisá-la. Tal arquivo constrói um imaginário racista e supremacista branco e colabora, segundo Edimilson de Almeida Pereira (2018, p.36), para a manutenção de uma ordem projetada por grupos hegemônicos, a partir não da exclusão, mas de uma inclusão parcial de grupos minorizados na sociedade através da imagem. Ao tratar da representação de sujeitos negros, essa inclusão está alicerçada em um regime racializado de representação (HALL. 2016, p.150). Ainda partindo de Hall (2016, p. 167) posso entender o discurso racializado que é alicerce para a projeção visual que se estrutura por um conjunto de oposições binárias - marca da colonialidade. Nesse conjunto de opostos estão Civilização x selvageria, por exemplo. Ou ainda, já que estou a falar de raça, o Branco x Negro. Quando discutimos modelos de representação na história da arte branco-brasileira, estamos falando sobre uma representação da diferença, esta que pode ser considerada como uma estratégia utilizada pela elite supremacista branca para a manutenção de seu poder através da ideia colonial de nação. Naquilo que chamamos de Brasil (logo, nação), a brancura é pintada, retratada e representada como a imagem do poder, bondade, beleza e virtude. No lado oposto dessa maravilhosa maneira de ver a si mesmo como pessoa branca em nossa sociedade, encaramos a negritude e a narrativa do que é ser herdeiro da violência, crueldade, escravidão e pecado. É importante olhar atentamente para artistas negros que desafiam essa maneira de representar. O caminho proposto para enxergar para além da lente racial e testemunhar o que verdadeiramente significa existir como negro no Brasil passa por estudar a obra “Todos os caminhos eu levo comigo” de Mulambo. Na obra recentemente exibida, o artista produz uma encruzilhada entre a forma colonial e a afrocêntrica de retratar negritude.

Figura 1 - Mulambo. Todos os caminhos eu levo comigo, 2021. Acrílica sobre papelão. Fonte: https://joaodamotta.wixsite. com/mulambo/todos-os-caminhos

2 Trabalho com o termo branco-brasileiro conectado à história da arte branco-brasileira, ou ainda à arte branco-brasileira com o objetivo de racializar o branco e movê-lo da pretensa universalidade e neutralidade.

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Quando penso na agência poética negra contemporânea penso nesses Artistas negros e negras que constroem suas imagens em diálogo ou confronto com esse arquivo, refazendo representações do negro em representações de negritude. Com essa ação, com esse movimento coletivo, abre-se a possibilidade de elaborar uma nação possível a partir do simbólico A obra e o artista escolhidos para esse texto, oferecem a oportunidade de aplicação de uma metodologia de análise e crítica que considere os trânsitos culturais entre Brasil e as diásporas africanas.

Alguém me ensinou a pisar nesse chão devagarinho Quando trabalho com imagens do que é ser negro em Brasil, é importante citar, saber e reverenciar aqueles que se empenharam nessa tarefa antes. Perdemos Januário Garcia no dia 30/06/2021 não para o Covid-19, mas para uma política de morte, genocida que atinge, com particular brutalidade, os corpos pretos. Uma política que foi acelerada pela pandemia e potencializada pela ação do governo federal. O projeto do genocídio do negro brasileiro, como nos diz Abdias Nascimento (2016), quando não mata na carne, apaga símbolos, identidades, histórias, culturas e memórias. Seu Janu falava que a geração dele teria memória, porque ele, a partir de sua fotografia, iria construi-la. Acreditava que a fotografia deveria ser resultado de tudo o que formava aquele artista: as músicas ouvidas, a memória do corpo, o repertório cultural vasto, compreendendo o aprendizado de culturas que não se encontram em espaços de educação formal. Seria, portanto, uma produção artística que se implica e, assim, não se separa do sujeito que a realiza. Quando penso na agência poética negra contemporânea, atentando-me à obra Todos os caminhos eu levo comigo (2021) do Mulambo, falo de uma arte produzida por sujeitos negros, que mesmo sem a obrigatoriedade de retratarem a negritude ou discutirem em suas obras as questões raciais que formam a sociedade brasileira, sempre tensionam o tecido social simplesmente pela sua negra presença.

Encruzilhada: como representar o que ainda não sabemos como descrever Pensar em memória, representação e construções da nação brasileira, é pensar nos trânsitos, atravessamentos e caminhos que nos trouxeram até aqui. No momento em que o primeiro tumbeiro cruzou o atlântico, ele o transformou em uma grande encruzilhada (RUFINO, 2019), e a produção de artistas negres nesse entorno pode ser compreendida a partir disso. Não somente pela marca da violência colonial, que é algo que lidamos cotidianamente enquanto pessoas negras, mas também como uma agência que ginga com essa realidade violenta, projetando vida pelo menos desde a formação dos primeiros quilombos em 1559. Todos os caminhos levo comigo é uma pintura em tinta acrílica em papelão produzida em 2021 e apresentada na exposição individual do artista, Out of many, muchos más, no espaço Das Schaufenster em Seattle - EUA, no primeiro semestre do mesmo ano. Mulambo, nascido em Saquarema- RJ em 1995, usa o papelão como material recorrentemente em suas produções. Refaz, em suas obras, imagens do subúrbio carioca com suas encantarias, saberes, festividades e realidades que são, de maneira frequente, retratadas nas cores branco, preto vermelho e amarelo. O papelão, material pobre, descartável, mas que se recicla a partir da ação daqueles que são excluídos do projeto de modernidade, versa também sobre a precariedade e sobre uma estética daquilo que não tem saída a não ser falar/agir/viver. Ou como nos provoca Lélia Gonzalez (1984), o lixo que fala, e fala numa boa. A representação do criminoso, o fugido, que aparece nos anúncios em preto e branco, tanto no Brasil quanto nos EUA, é reciclada. Transformada em uma imagem que se comunica com saberes e presenças espalhados pelos caminhos traçados a partir do sequestro colonial por todo o Atlântico. Algo que andou e anda por toda a terra banhada pelo oceano-encruzilhada-boca do mundo. 134


Figuras 02 e 03 - Anúncios de escravizados fugidos utilizados como material de pesquisa do artista Mulambo. Brasil, 1854. EUA, 1838. Fonte: https://www.instagram.com/p/CP8hTkapOnA/

É importante relacionar a obra do Mulambo com a própria ideia de quilombo. Quilombo, do quimbundo, língua bantu de Angola, quer dizer capital, povoação, união. Percebe a diferença da maneira como a palavra é traduzida para o português do Brasil? Concebemos, em Brasil, quilombo como um lugar para onde iriam os escravizados fugidos. A tradução que aprendemos oficialmente nos leva a assumir quilombo enquanto espaço e lugar que existe apenas em relação à sociedade escravocrata, em constante resistência. Resistir é estar permanentemente na fronteira em oposição a uma força opressora. Só que quilombo também era lugar de viver, muito mais do que resistir.

É preciso romper com a história oficial Essa frase é um chamado constante no pensamento de Beatriz Nascimento. Chamado que nos conduz à compreensão tanto a ideia de quilombo como lugar de existência e organização política e social, como a importância da coletividade organizada e da linguagem -portanto dos símbolos, em uma iniciativa de fazer o caminho de volta para buscar o que o discurso hegemônico soterrou. Ao investigar o Quilombo do Jabaquara, em texto publicado na Revista de Cultura Vozes, em 1979, Beatriz Nascimento discorre sobre a importância do quilombo enquanto memória social e identidade para a extensa população negra escravizada em Brasil. Ao associar o Quilombo do Jabaquara a uma terra prometida, a historiadora escreve que o conhecimento e a busca por esse local revelam uma familiaridade, que por sua vez, indica uma organização. Mostra a familiaridade que os escravos possuíam com a história dos seus semelhantes no Brasil e o papel histórico e cultural que esta desempenhava no conjunto da comunidade negra. O sucesso da fuga em massa dos locais de trabalho para um local não conhecido da maioria dos integrantes de tal empresa só pode ser compreendido na medida em que o quilombo impunha um significado de profundas raízes históricas na memória social desse grupo, ao mesmo tempo que funcionava como fator de identidade étnica e social. (NASCIMENTO, 2021, p.104).

Se a exemplo do Quilombo do Jabaquara, outros quilombos também guardavam memória, identidade, organização social e história, há uma diferença simbólica, mas não somente, entre sermos representados, vistos e descritos como herdeiros de Palmares ou Jabaquara e sermos parcialmente inseridos no projeto hegemônico de sociedade brasileira como herdeiros da escravidão. 135


O discurso hegemônico soterra a memória e dele nada brota, a não ser a barbárie. A colonialidade, enquanto manifestação de um poder supremacista branco, é responsável pelo controle do imaginário, através das construções simbólicos do que somos, da história, das identidades e da Nação, organiza os lugares à mesa, e determina quem fica de fora desse banquete. Quando, nós pesquisadores e críticos de arte negres, optamos por romper com a história oficial a partir das artes nos encontramos com uma produção de artistas negres que buscam, nas representações de negritudes, descrever e elaborar o que pouco conhecemos: o que é existir e não resistir. Em outras palavras, o trabalho e a existência desses artistas no sistema de arte nos fazem olhar para as imagens coloniais e ver através delas. Olhar para os anúncios de escravizados fugidos de onde Mulambo parte para a realização de sua obra, e ver a agência da população negra e perceber ali, uma parte de sua história que não serve para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos (EVARISTO, 2007, p. 21). é definir o que é ser negro pelos nossos próprios termos, sair do lugar de objeto e de outridade, como comenta Grada Kilomba. É também de Grada Kilomba a obra de nome WHILE I WRITE, que compôs a 32 Bienal de São Paulo, Brasil- 2016, onde conseguimos ler no vídeo disponível no youtube3 o seguinte texto: Enquanto eu escrevo, eu não sou o Outro, mas o eu, não o objeto, mas o sujeito, me torno a relatora e não a relatada. Eu me torno a autora e a autoridade da minha própria história. Eu me torno a absoluta oposição do que o projeto colonial havia predeterminado. Eu me torno eu. (KILOMBA, 2016).

A visão pelas lentes branco-cêntricas, que não reconhece esse EU, geraria uma dificuldade de teorizar a experiência de ser negro, pois tais existências não seriam complexas o suficiente para serem dignas de reflexões sofisticadas, como nos diz bell hooks em Olhares Negros (hooks, 2019, p.32). A simplificação da existência do que é definido como o outro habita a política de construção de imagens, ou o já mencionado regime racializado de representação, e, como consequência, a produção artística de um território marcado pela colonialidade como é o Brasil. Conseguimos perceber isso claramente através das imagens que contam a nossa história como Nação sendo protagonizadas por personalidades brancas. E do outro lado, em oposição, a representação do negro, do outro. O conceito de outridade a partir da Grada Kilomba seria a “personificação de aspectos repressores do “eu” do sujeito branco” (KILOMBA,2019, p.38). A representação de pessoas negras na história da arte branco-brasileira é atravessada pela representação mental daquilo que o sujeito branco não quer parecer, por reconhecer em si mesmo o ideal de civilidade. O que faz com que tenhamos, historicamente, uma representação do negro de forma a reduzir e enquadrar a negritude em imagens idealizadas de escravidão, passividade na condução de seu próprio destino e lutas, o branqueamento como ideal ou como sistema de integração à sociedade, o lugar do trabalho incessante, violência, precariedade, religiosidade exótica única e criminosa e outras visões de subalternidade que fazem parte da construção dessa outridade.

Todos os caminhos eu levo comigo Olhar para a obra Todos os Caminhos eu levo comigo é ver a realização de uma saída dos modelos de representação do ser negro que compõem a história da arte brancocêntrica e o discurso hegemônico em torno de nossas vidas. Analisar a forma como o artista escolhe para lidar com esse arquivo e representar a figura, é perceber a imagem não somente de fuga, mas como a imagem daquele que guarda e conhece os

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Disponível em: https://youtu.be/UKUaOwfmA9w

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caminhos. É entender o meio de lidar com a ancestralidade que carregamos, não somente enxergando a obra como um homem que teve sua imagem reconfigurada, mas também como pensamos que ele pode ser sim a representação de um orixá ou do axé, de uma força vital, que habita corpos negros. A ginga que sabemos, me implicando nessa crítica à obra, que abre caminhos e possibilidades de vida. E abrir caminhos é tarefa de Exu. Exu é, nas tradições Yorubá, o dono das encruzilhadas, é o responsável pelas trocas, pela comunicação e dinamicidade. Ele é o que opta e oferece a terceira via, minando o engessamento binário e hierarquizante do pensamento colonial. É pensando a partir de Exu que há a possibilidade de promover o cruzo entre epistemologias subalternizadas e hegemônicas, estabelecendo diálogos e trocas simétricas entre referenciais historicamente dominantes e fontes culturais outras, como por exemplo, a experiência corporal e os saberes tradicionais, para efetivamente driblar a neurose cultural brasileira no campo da disputa pelas narrativas. Dessa forma, quando encaro a produção do Mulambo, percebo o próprio campo de história e crítica da arte em uma encruzilhada: ainda que essa obra esteja no sistema de arte, tenha sido feita por um artista legitimado e reconhecido internacionalmente, o acesso à obra acontece a partir de um deslocamento epistêmico, buscando e partindo de uma afrocentricidade. Romper com a história oficial, é também romper com as maneiras de se olhar imagens produzidas por artistas negres. Quando esses artistas acessam as imagens que formam o arquivo da história da arte branco-brasileira e produzem seus próprios trabalhos, estão lidando com uma gramática racializada de representação, e tomar o meio de ser representado para se auto representar, como faz o Mulambo, é gingar com isso. Essa proposição nos faz entender também que essas reflexões e possibilidades de leitura não são somente sobre essa obra específica, é sobre uma metodologia que propõe uma maneira de fazer crítica à produção de artistas negres brasileires, em conexão com todas as diásporas africanas. Essa proposição que acontece em um território controlado por uma supremacia branca de fato, quando vista coletivamente, também funciona como quilombo. Em Todos os caminhos eu levo comigo, Mulambo promove um cruzo, faz uma encruzilhada com sua própria obra. Para acessá-la é necessário conhecer ou reconhecer o conjunto de códigos que compõem esse cruzo, senão, olharemos apenas em comparação com o que reconhecemos oficialmente. Ele promove, portanto, um cruzo entre a imagem colonial e a memória a ser encontrada nos escombros da colonialidade. Nos faz perceber o mistério e o que ainda não sabemos, muitas vezes, organizar em linguagem. Todos esses trânsitos começam no primeiro tumbeiro que cruza o Atlântico. Não pretendo aqui construir a crítica dessa obra e de outros artistas negres brasileires a partir de uma produção eurocêntrica, isso seria mantê-los na fronteira, na resistência. Mulambo não pinta um andarilho. A forma de lidar com essas imagens é um método, uma proposição auto implicada, uma vez que parte da minha pesquisa e que também é atravessada pela pessoa que sou e, principalmente, como minha imagem é vista e representada. Uma vez que nossas produções como críticos e pesquisadores não são neutras, estas também partem da forma como nos colocamos no mundo e nos relacionamos com ele.

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Referências EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento da minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, p. 16-21, 2007. GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, p. 223-244, 1984. HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed.PUC – Rio: Apicuri, 2016. HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução: Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019. KILOMBA, Grada. Memórias de plantação – episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. 1 ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. KILOMBA, Grada. WHILE I WRITE. “THE DESIRE PROJECT”, 32. Bienal de São Paulo, Brasil. 2016. Disponível em https://youtu.be/UKUaOwfmA9w NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3.ed.- São Paulo: Perspectivas, 2016. NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos. Organização Alex Ratts. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. RUFINO, Luiz. Pedagogias das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2019.

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Imagens da pandemia na Índia: fórmulas de páthos no “afresco” de nossa época Images of pandemic in India: pathosformeln in the “fresco” of our times Luana M. Wedekin1 UDESC - wedekinluana@gmail.com

RESUMO: Em abril de 2021 os meios de comunicação de massa divulgaram uma série de notícias sobre o descontrole da pandemia de covid-19 na Índia. As notícias vinham acompanhadas de imagens de morte e de luto. A inspiração warburguiana embasa o interesse pelas imagens contemporâneas em diálogo com imagens antigas e a sua compreensão através do conceito de pathosformeln. O argumento visual é apresentado por meio da sobreposição de imagens da pandemia na Índia e reproduções de relevos antigos e obras do Renascimento e do Barroco. Afirma-se a noção warburguiana de uma história da arte como esse processo dos movimentos da comoção humana, e, por fim, reflete-se, com Jean Galard, sobre a beleza e a tragédia dessas imagens do “afresco” de nossos tempos. PALAVRAS-CHAVE: Imagens da pandemia; Aby Warburg; pathosformeln; pandemia na Índia; Jean Galard. ABSTRACT: In April 2021 the mass media released many news about the uncontrolled covid-19 pandemic in India. These news were accompanied by images of death and mourning. The Warburgian inspiration of this article underlies the interest in contemporary images in dialogue with ancient images and its understanding through the concept of pathosformeln. The visual argument is presented through the overlaping images from the pandemic in India and reproductions of ancient reliefs and works from Renaissance and Baroque. With Jean Galard, we reflect on the beuaty and tragedy of theses images at the “fresco” of our times, and we affirm the Warburgian notion of art history as a process of the movements of human commotion. KEYWORDS: Images of pandemic; Aby Warburg; pathosformeln; pandemic in India; Jean Galard.

1 Professora adjunta do departamento de Design e do Programa de pós-Graduação em Artes Visuais (UDESC). Membro do CBHA, da ANPAP e da ABCA. Membro dos grupos de pesquisa História da arte: imagem-acontecimento e do Grupo Montagem no Discurso Historiográfico Artístico. Editora da Revista Palíndromo. Pesquisa desenvolvida atualmente: “Em busca das fontes iconográficas de Aby Warburg: peregrinações epistemológicas”.

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Pathosformeln da morte e o teatro do luto O tema da jornada da ABCA 2021 se alinha a praticamente todos os eventos acadêmicos da área de artes deste ano. Todos afirmam a premência de falar sobre a experiência da pandemia, ainda no calor do momento. Diz a chamada da Jornada: “buscamos localizar possíveis formas de relação, interação e sobrevida às crises das mais variadas naturezas que nos assolam tanto no campo social como no campo artístico”. Em resposta a esse convite à reflexão, no campo da arte, urge pensar sobre as inumeráveis imagens da pandemia pelo mundo. Neste artigo, o foco repousa nas imagens na pandemia na Índia. Duas chaves teóricas nos ajudam a refletir sobre essas imagens: o conceito de pathosformeln, de Aby Warburg e a noção de “beleza exorbitante”, de Jean Galard (2012). Em abril de 2021 os meios de comunicação foram tomados de notícias e imagens da pandemia de covid-19 na Índia. O mundo voltava os olhos para a explosão de casos no país que, até então, parecia estar administrando relativamente bem o problema sanitário. Os veículos de imprensa ao redor do mundo atribuíram a uma gestão equivocada do governo indiano o impactante aumento de casos e mortes no país. Medidas de distanciamento social haviam sido relativizadas, enquanto a vacinação – apesar da Índia ser um importante produtor de imunizantes – avançava em ritmo que não alcançava a velocidade das contaminações. Olhar as imagens do presente é uma das inspirações warburguianas para este artigo. Ainda que o historiador alemão tivesse seus olhos voltados para o passado, conservava profundo interesse sobre os eventos contemporâneos e não ficou insensível aos terríveis acontecimentos de sua época. Quando da eclosão da I Guerra Mundial, Warburg ficou obcecado com o tema, reunindo material de todo tipo: livros e recortes de jornais, envolvendo toda a família nessa coleta de dados; anotando ideias em fichas (parte de seu método de organização) e registrando um diário de guerra. Esse mergulho obsessivo nas notícias de guerra foi um dos fatores aos quais os biógrafos atribuíram o colapso nervoso que o afastou do trabalho por cinco anos. Outro aspecto que justifica a filiação warburguiana desse artigo é o fato de que ele estava interessado também em imagens advindas de outras fontes, não necessariamente artísticas, como as que apresentaremos aqui, que foram coletadas de meios de comunicação digitais de diversos lugares do mundo. Por que falar de imagens da pandemia na Índia, quando no Brasil também fomos inundados de imagens de morte por covid-19 desde o início da pandemia em março de 2020? Contemplando com pesar as imagens naquele país distante, essas se assemelhavam a imagens antigas, remetiam a fórmulas de páthos (pathosformeln) de morte e de luto. Pathosformel é um conceito cunhado por Warburg. Sua definição é extremamente complexa, e os estudiosos contemporâneos parecem enfatizar nuances diferentes: ora sua dimensão antropológica, ora seu aspecto biológico, ora sua correspondência psicanalítica... Para o escopo desse artigo, interessa pensar a noção de fórmula de páthos como a tentativa de compreender como e por que algumas imagens retornavam no tempo, muito especialmente o processo de renovação da antiguidade pagã na arte do Renascimento. O conceito apareceu pela primeira vez em seu estudo sobre Dürer, originalmente de 1905. Neste escrito, Warburg definiu pathosformeln como: “fórmulas genuinamente antigas para as expressões exacerbadas do corpo ou da alma” (WARBURG, 2015, p. 91). O Atlas Mnemosyne, sua obra inacabada, é um verdadeiro inventário de fórmulas de páthos, com mais de mil imagens reunidas em 63 pranchas. É o argumento visual de Warburg para responder principalmente à questão da sobrevivência das imagens pagãs na arte do Renascimento. A Prancha 42 do Atlas trata das pathosformeln do luto e da morte (Fig. 01).

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Figura 1 - Aby Warburg (1866-1929). Prancha 42 do Atlas Mnemosyne, 1929. Fonte: http://www.engramma.it/eOS/core/ frontend/eos_atlas_index.php?id_tavola=1042

Warburg e seus colaboradores reuniram nessa prancha reproduções de obras renascentistas nas quais é possível verificar que utilizaram fontes antigas para tratar dos temas da morte e do luto. O Seminario di Mnemosyne debruçou-se sobre a prancha 42 e observou que Waburg chamou a atenção para “a persistência de uma linguagem comum de estruturas simbólicas e formais traduzidas em gestos, que existe na memória de nossa tradição cultural” (2000, não paginado). O afresco A lamentação de Cristo, de Luca Signorelli, na Cappella di San Brizio, na Duomo de Orvieto, que aparece na prancha 42 do Atlas, é particularmente esclarecedor desse processo (Fig. 02). 141


Figura 2 - Luca Signorelli (1445-1523). Lamentação sobre o Cristo morto, com São Parenzo e Faustino, c. 1499-1502. Capela de São Brizio, Duomo di Orvieto. Fonte: https://it.wikipedia.org/wiki/File:Luca_signorelli,_cappella_di_san_brizio,_ compianto.jpg

O afresco de Signorelli explicita o mecanismo de renovação da Antiguidade pagã no Renascimento, tema central das pesquisas de Warburg. Vemos a cena da lamentação sobre o Cristo morto em primeiro plano, e, ao fundo, o artista pintou a imagem de um sarcófago em grisalha com motivo inspirado em fontes antigas. Salvatore Settis (2013), arqueólogo e historiador da arte italiano, explica o processo através do qual os artistas do Renascimento buscavam ampliar seu repertório por meio de fontes antigas. Os sarcófagos forneciam o repertório arqueológico do qual dispunham os artistas e intelectuais do período, apresentando-lhes “uma nova linguagem, mais livre e dinâmica, capturando nas figuras antigas as ideias para a expressão dos sentimentos patéticos e de atitude espiritual modernos” (GELUSSI, 2005, p. 405). Como exemplo, um fragmento de um sarcófago com a cena da morte de Meleagro (Fig. 03).

Figura 3 - Fragmento de sarcófago com transporte do corpo de Meleagro. Metade do século II a.C. Mármore, 96,8 x 22,2 x 119,1 cm. Metropolitan Museum de NY. Fonte: https://www.finestresullarte.info/opere-e-artisti/la-deposizione-baglionidi-raffaello-capolavoro-giovanile

Settis investigou a obra Deposição (1507) de Rafael Sanzio (Fig. 04), buscando suas fontes iconográficas antigas e identificando os sarcófagos disponíveis para Rafael: um fragmento no Vaticano, 142


outro atualmente perdido que estava no Palazzo Barberini e um terceiro pertencente à Villa Pamphilj. Esse exemplo revelador ilustra a afirmação de Gelussi “dos sarcófagos emergiram os fantasmas do antigo” (2005, p. 405).

Figura 4 - Rafael Sanzio (1483-1520). Deposição, 1507. Óleo sobre madeira, 184X176 cm. Galleria Borghese, Roma. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Deposition_(Raphael)

Settis também chamou a atenção para a disseminação desses valores antigos da pathosformel da morte, especialmente na obra De pictura, de Leon Battista Alberti, na qual ele faz uma referência direta à iconografia antiga da morte de Meleagro: Louva-se em Roma a história na qual Meleagro, morto e carregado, verga os que lhe carregam o peso e dá a impressão de bem morto em todos os seus membros: tudo pende, mãos, dedos e cabeça; tudo cai languidamente. Quem se põe a exprimir um corpo morto – coisa realmente muito difícil -, se souber figurar no corpo cada membro inerte, esse será um ótimo artífice. (ALBERTI, 2014, p. 110)

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Ao observarmos a pintura de Rafael, a relação com o texto de Alberti parece incontestável. O corpo do Cristo está completamente inerte, e seu peso se faz sentir pelo esforço demonstrado pelas posturas e músculos dos personagens que o carregam – José de Arimateia e Nicodemos. O transporte do corpo do herói morto e o teatro do luto ao seu redor forneceram toda uma gama de “modelos de uma gestualidade patética intensificada”, reusada no Renascimento para apresentar a iconografia da crucificação, descida da cruz e lamentação do Cristo morto. A Pala Baglione, como é também conhecida a pintura de Rafael, refere-se muito diretamente ao que o Seminario de Mnemosyne identificou como uma sintaxe das pathosformeln dos gestos da morte e do luto: Contrapõem-se: de um lado, a progressiva imobilidade do corpo em agonia, moribundo, abandonado e finalmente enrijecido na compostura do cadáver; por outro lado, o dinamismo progressivo da dor que passa da tristeza das posturas da figura dolorida, aflita, contrita, à raiva contida, até o explodir no desespero da figura impetuosa em cena com o gesto enfático dos braços abertos. De forma circular, o movimento da dor congela-se numa postura da contenção silenciosa representada pela figura velada à distância da cena da paixão, que por um insuportável excesso de dor escapa à visão da morte. (SEMINARIO DI MNEMOSYNE, 2000, não paginado)

A minuciosa atenção do Seminário para essa prancha (e tantas outras) sistematiza esse “teatro” da morte, apontando as fontes antigas e seus retornos no Renascimento. A descrição dessa progressão é fundamental para o argumento desse artigo, que constata a presença dessa sintaxe nas imagens da pandemia na Índia. Interessa-nos, agora, aproximar as obras do Renascimento com as imagens da pandemia da Índia. O argumento é visual, e, à maneira de Warburg, vamos fazer dialogar as imagens.

Pandemia na Índia e o retorno das pathosformeln Por que as imagens desaparecem? Por que retornam? Como retornam? Podemos traçar seus itinerários? Essas perguntas intrigaram Warburg e ele buscou respondê-las de forma transdisciplinar, mas, sobretudo, através da sobreposição de imagens apresentadas em suas conferências e das pranchas do Atlas Mnemosyne. Nas suas últimas pranchas, identificamos imagens que eram suas contemporâneas, o que revela que a pós-vida das imagens (nachleben) é um processo incessante. As imagens que doravante vamos aproximar advém das pranchas do Atlas e dos meios de comunicação (jornais, sites de notícias) digitais. O que vimos nos registros da pandemia na Índia, em parte nos eram tragicamente habituais: pacientes sendo transportados, ambulatórios hospitalares lotados, desespero das equipes médicas, sofrimento de familiares. Os ritos funerários, contudo, eram diferentes, pois o costume dominante na Índia é a cremação em piras funerárias. Os corpos não são sepultados em caixões, mas em mortalhas, o que amplifica a nossa sensação contraditória de estranhamento, por um lado, e, por outro, a reminiscência de tempos antigos. Na figura 05, aproximamos uma imagem do de um morto por covid transportado por trabalhadores e familiares aos espaços públicos de cremação e a imagem da Morte de Meleagro.

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Figura 5 - À esq.: Fragmento de sarcófago com transporte do corpo de Meleagro. Metade do século II a.C. Mármore, 96,8 x 22,2 x 119,1 cm. Metropolitan Museum de NY. Fonte: https://www.finestresullarte.info/opere-e-artisti/la-deposizionebaglioni-di-raffaello-capolavoro-giovanile À dir. : Adnan Abidi/Reuters, Trabalhadores e parentes carregam o corpo de um homem morto de covid-19 em crematório em Nova Delhi, em abril de 2021. Fonte: https://rr.sapo.pt/2021/04/27/mundo/ variante-indiana-chegou-a-belgica-e-mais-contagiosa-e-culpada-pelos-recordes-de-infecoes-na-india/noticia/235810/

Na imagem de Abidi, o corpo do morto não está visível, mas lacrado com uma nova “mortalha” em material tecnológico para impedir a contaminação. Os “companheiros” do herói morto, na imagem indiana, estão totalmente cobertos, e não conseguimos verificar a “retórica dos músculos” característica da fórmula antiga. Contudo, as aproximações são evidentes, ainda que não possamos ver as expressões faciais. A pathosformel da morte e do luto inclui o eloquente “braço da morte”. Trata-se da posição do braço inerte, “abandonado no vazio”. Na Índia, apareceu numa imagem de transporte de pacientes. (Fig. 06)

Figura 6 - À esq.: Adnan Abidi/Reuters, Profissional de saúde leva paciente com Covid-19 em hospital de Nova Delhi, na Índia. Fonte: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/05/09/revista-cientifica-critica-resposta-da-indiaao-enfrentamento-da-pandemia.ghtml À dir.: Rafael Sanzio, Sepultamento com mulher beijando a mão de Cristo, c. 1506. Desenho. British Museum, London. Fonte: https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1855-0214-1

O belo desenho de Rafael, Sepultamento com mulher beijando a mão de Cristo, que está no acervo do British Museum (Fig. 06, à dir.), é considerado um dos estudos preparatórios para a Pala Baglioni (Fig. 04). As semelhanças com a pintura de 1507 são visíveis, mas no desenho o artista explorou o gesto do beijo na mão de Cristo. A imobilidade do corpo do morto é marcante, pois essa imagem domina a parte inferior do desenho, e é notadamente enfatizada pelas pernas pesadas que ultrapassam a mortalha e o braço direito pendente. A fórmula do “braço da morte”, presente nos relevos de sarcófagos antigos, 145


retorna em Rafael, na grisalha de Signorelli, na Pietá de Michelangelo e de Cosimo di Tura, na Deposição de Caravaggio, na Morte de Marat, de Jacques-Louis David, para mencionar somente algumas obras. O historiador italiano Carlo Ginzburg (2014) debruçou-se longamente sobre a obra de David, referindo-se ao conceito de pathosformel para refletir como o artista francês utilizara na Morte de Marat uma “língua clássica” (a fórmula antiga da morte e do luto), apresentando um desenho de David sobre a Morte de Meleagro, e tecendo considerações acerca da transformação do herói da antiguidade que retorna no teatro da morte nas cenas da crucificação, descida da cruz, deposição e sepultamento de Cristo, num processo que ele chamou de “subversão do clássico para o cristianismo”, que incluía, muitas vezes o que Warburg chamou de “inversão energética”. O motivo da Descida da Cruz é certamente uma das “subversões do clássico” na qual é possível identificar claramente a filiação ao antigo, enfatizando a oposição entre a imobilidade do corpo morto e o esforço daqueles que transportam, resgatam, recebem esse corpo. Na figura 07, criamos uma sobreposição entre um registro da transposição de um paciente de covid-19 de uma ambulância para uma maca na Índia e obras que retornam ao teatro da morte.

Figura 7 - À esq.: Amit Dave/Reuters, Paciente com problemas respiratórios dá entrada num hospital de Ahmedabad. Fonte: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-04-28/o-mundo-se-mobiliza-perante-o-descontrole-do-coronavirus-naindia.html À dir. acima: Cosimo di Tura, Pietá (detalhe), 1474. Têmpera sobre madeira, 132X267 cm, Musée du Louvre, Paris. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/07/Cosm%C3%A8_Tura_031.jpg À dir. abaixo: Caravaggio, O sepultamento de Cristo (detalhe), c. 1602-1603. óleo sobre tela, 300X203 cm, Musei Vaticani. Fonte: https:// upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/ab/Caravaggio_-_La_Deposizione_di_Cristo.jpg

O corpo do doente inconsciente em Ahmedabad (Fig. 07, à esq.) ecoa o Cristo na Pietá de Cosimo di Tura e o Cristo de Caravaggio (Fig. 07, à dir. Acima e abaixo, respectivamente). Os joelhos dobrados são uma solução que aparece diversas vezes na fórmula e parece atender a várias funções: sublinha o afrouxamento das articulações, próprio do corpo inconsciente, no qual “tudo pende, [...] tudo cai languidamente” (ALBERTI, 2014, p. 110); dá verossimilhança aos esforços realizados pelos personagens que realizam o transporte; dinamiza a composição. Um aspecto fundamental da pathosformel da morte e do luto diz respeito às figuras enlutadas, os dolentes. Nelas também ressoam gestos antigos. (Fig. 08)

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Figura 8 - À esq.: Lamentação pela morte na Índia, abril de 2021. Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/ internacional-56905542 À dir.: Urna funerária no Salão Aldobrandini. Palazzo Doria Pamphilj, Roma. Fonte: a autora.

O pranto da mulher indiana na figura 08 (à esq.) se assemelha à fórmula dos dolentes numa antiga urna funerária do acervo do Palazzo Doria Pamphilj, em Roma (Fig. 08, à dir.). A pessoa reclinada na kliné na base central da urna é ladeada por duas figuras que assumem a postura do luto meditativo, também identificada como a pathosformel da melancolia: a mão que sustenta a cabeça reclinada. A figura encapuzada retorna no centro inferior do relevo de Andrea del Verrocchio sobre a morte de Francesca Tornabuoni. (Fig. 09, à dir.)

Figura 9 - À esq.: Lamentação pela morte na Índia, abril de 2021. https://www.repubblica.it/salute/2021/04/29/news/ covid_arunda_roy_sull_epidemia_in_india_stiamo_assistendo_a_un_crimine_contro_l_umanita_-298612075/ À dir.: Andrea del Verrocchio, Cena de lamentação pela morte de Francesca Tornabuoni (detalhe do lado direito), c. 1477. Baixo relevo em mármore. Museo Nazionale del Bargello, Firenze. Fonte: acervo da autora.

Verrocchio explora nessa obra todo o espectro do luto. A figura encapuzada, que, em geral está recuada, como se buscasse o distanciamento dos demais, dobrada em si, com as mãos na cabeça. As mulheres em desespero absoluto, nas extremidades laterais do relevo, que jogam a cabeça para trás, gritam e arrancam os cabelos. A terceira mulher da esquerda para a direita, que assume o luto meditativo. E a primeira mulher à esquerda, que leva as mãos ao peito, inclinando a cabeça à esquerda. É um sofrimento profundo, mas contido, análogo àquele da mulher fotografada durante o descontrole da pandemia na Índia em abril de 2021. (Fig. 09, à esq.) A crucificação é um motivo no qual os artistas do Renascimento reusaram (como escreveu Salvatore Settis) as fórmulas antigas. Em sua iconografia inicial, Cristo crucificado estava acompanhado da Virgem Maria e de São João. Mas a iconografia modificou-se, incorporando diversos personagens, muitas vezes por conveniência dos patronos, que desejavam ver ali seus santos padroeiros e até a si mesmos. O teatro do luto apareceu também nesses personagens. (Fig. 10, à dir.) 147


Figura 10 - À esq.: Equipe médica lamentando mortes por coronavírus em Kuwadawa, uma vila em Gujarat. Getty Images. Fonte: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/bbc/2021/04/27/interna_internacional,1260854/por-quetragedia-da-pandemia-na-india-ameaca-o-mundo-todo.shtml À dir.: Bertoldo di Giovanni, Crucificação, 1485-1490. Bronze, 75X67 cm. Museo Nazionale del Bargello, Firenze. Fonte: http://www.palazzomediciriccardi.it/mediateca/ crocifissione/

O Cristo crucificado aparece ao centro, ladeado à direita pelo bom ladrão e à esquerda pelo mau ladrão, que luta como um Laocoonte tentando se livrar das serpentes, para escapar de sua punição. Abaixo do Cristo, estão, da esquerda para a direita, São Jerônimo, São Francisco, a Virgem Maria (as mãos unidas e a cabeça inclinada sobre elas), e as santas mulheres, todas expressando o que Warburg chamou de “mímica intensificada”, neste caso, do luto desesperado. Os braços elevados, um tufo de cabelos nas mãos, na mulher à esquerda da cruz; Maria Madalena, que olha para cima e eleva as mãos para o céu; São João em trajes insuflados pelo vento como as mulheres exasperadas. As mulheres santas, parte da iconografia da crucificação, são o que Edgar Wind chamou de “mênades sob a cruz”, explicando o fenômeno observado por Warburg de inversão energética: a pathosformeln do luto desesperado na cruz renovava as imagens do thiasus nas crateras antigas, uma subversão cristã de um motivo pagão. As mãos para o alto de Maria Madalena diante do Cristo morto no bronze de Giovanni equivalem ao gesto de desespero de uma mulher de uma equipe médica em Kuwadawa, na Índia. Ela também olha para o alto, e, como podemos ver em muitas cenas de crucificação, é amparada por companheiros na dor.

Considerações finais As imagens da pandemia na Índia certamente nos causam inquietação. Identificamo-nos com o sofrimento indiano, com a nossa própria dor advinda de mais de 500.000 mortes por covid-19, nos solidarizamos com as famílias enlutadas daqui e de lá. Mas, as imagens nos inquietam também por serem belas. Jean Galard ajuda-nos a refletir sobre esse tipo de imagem quando se debruçou sobre fotografias de Sebastião Salgado na exposição Êxodos (2000). Alguns críticos levantaram questões éticas sobre as imagens e as consideraram “belas demais”, “‘ícones’ da desgraça” (GALARD, 2012, p. 9). Galard aponta para o fato de que “testemunhamos todos os dias através da imprensa e da televisão uma realidade brutal, sangrenta” (2012, p. 9). Os meios de comunicação e as imagens de fotojornalismo configurariam o “afresco de nossa época”. Galard ressalta a dimensão ética do espectador, que “assiste passivamente à angústia do outro” (2012, p.10). E questiona: 148


Pior ainda: algumas imagens que nos horrorizam, que nos aterrorizam, são muito bem realizadas. São admiráveis, perturbadoras, inesquecíveis. Belas? Esta é a questão. Não se trata, evidentemente, de imagens agradáveis; elas não encantam a vista. Será que, apesar disso, a ideia de beleza será totalmente estranha a essas paragens sinistras? [...] Será que a arte já não ampliou, há muito tempo, seu campo de ação e nossa capacidade de interesse para muito além da tradicional, harmoniosa, sorridente e ideal beleza?” (GALARD, 2012, p. 11)

Galard cita muitos exemplos, um deles muito conhecido, a Pietá de Bentalha, de Hocine de Zaourar, registrada em 1997 no contexto do massacre na Argélia que matou 250 pessoas. Ele afirma que nessa imagem o fotógrafo “criou um quadro vivo evocando a pintura de um mestre antigo” (2012, p. 21), um exemplo de “beleza exorbitante”, bela e terrível ao evocar o sofrimento de uma mulher enlutada. Contemplamos nessa imagem o retorno do antigo, uma “memória dos gestos” ressurgida no fotojornalismo. O que nos revelam as imagens da pandemia na Índia em diálogo com a arte dos relevos antigos, com as pinturas do Renascimento? Carlo Ginzburg afirma: “A noção de Pathosformeln ilumina as raízes antigas de imagens modernas e a maneira como tais raízes foram reelaboradas” (2014, sem paginação). Certamente atestam que os fotojornalistas absorveram modelos antigos que parecem servir de critério de escolha para os registros que vão estampar as páginas virtuais e físicas dos jornais contemporâneos. Tais imagens nos inquietam pela beleza, e, certamente por sua dimensão trágica. Não sentimos prazer ao contemplá-las, mas é Aby Warburg quem nos ajuda a explicar por que são tão pungentes. Seu retorno, em longo percurso que remonta à antiguidade, serve a dimensões humanas profundas – biológicas, psicológicas, culturais, espectros que o conceito de pathosformel engloba. Para nós, num evento contemporâneo sobre a crítica e a arte em tempos de crise, atestam a importância da história da arte para compreender as imagens que circulam no “afresco de nossa época”. Elas revelam a pertinência da perspectiva de Warburg, de uma história da arte viva, presente, que se refere “aos movimentos da comoção humana”. Assim sendo, são imagens que ultrapassam os limites do tempo, atravessam as fronteiras do espaço e unem o mundo por laços irremediáveis: a morte, o luto, a dor.

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Referências ALBERTI, L. B. Da pintura. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. GALARD, Jean. A beleza exorbitante. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2012. GELUSSI, M. La scultura dipinta: disegni e deduzioni dai sarcofagi nel Quattrocento. In: CENTANNI, M. (ed.) L’Originale assente: introduzione allo studio della tradizione classica. Milano: Bruno Mondadori, 2005. p. 405-422. GINZBURG, C. Medo, reverência, terror: quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. (Versão kindle) GIULIANI, L. Sarcofagi di Achille tra oriente e Occidente: genesi di um’iconografia. CATONI, M.L.; GINZBURG, C.; GIULIANI, L.; SETTIS, S. Tre figure: Achille, Meleagro, Cristo. Milano: Feltrinelli, 2013. p. 13-46. SEMINÁRIO di MNEMOSYNE. Il teatro della morte: saggio interpretativo di Mnemosyne Atlas, Tavola 42. Engramma, n. 2, ottobre 2000. Disponível em: http://www.engramma.it/eOS/index.php?id_ articolo=2637 Acesso em: 19/06/2021. SETTIS, Salvatore. Ars moriendi: Cristo e Meleagro. In: CATONI, M.L.; GINZBURG, C.; GIULIANI, L.; SETTIS, S. Tre figure: Achille, Meleagro, Cristo. Milano: Feltrinelli, 2013. p. 83-108. WARBURG, Aby. L’Atlas Mnémosyne. Paris: L’Ecarquillé, 2012. WARBURG, A. Dürer e a Antiguidade italiana (1905). In: WARBURG, A. A Renovação da Antiguidade Pagã. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. p. 435-445.

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Harriet Mena Hill, crise e pandemia: o silêncio e a desaparição na imagem Luciane Ruschel Nascimento Garcez UDESC

RESUMO: Em tempo de crises, cada artista encontrou, ou ainda procura, sua própria forma de lidar com o isolamento, o medo, a insegurança, as perdas. A Peste Negra chegou às costas europeias em 1348. Em 1350, ano em que recuou, havia derrubado quase metade da população da região. Em um afresco do século 14, na França, na antiga Abadia de Saint-André-de-Lavaudieu, vemos como a peste afetou a representação da imagem. A proposta deste estudo é pensar a arte no contemporâneo, a partir da artista britânica Harriet Mena Hill, justamente em relação às produções plásticas decorrentes da crise mundial gerada pela pandemia causada pelo Covid-19, fenômeno que atingiu o mundo em 2020, e vem se desenrolando ainda em 2021. Hill já trabalhava, propondo atividades artísticas, com um grupo de jovens de baixa renda, residentes do Aylesbury State, Londres, que por décadas foi o símbolo do fracasso do projeto social de habitação britânico. Durante a pandemia, mesmo estando tudo parado, em suspensão, o governo procedeu com a demolição de um enorme bloco de apartamentos na propriedade. Segundo Hill, “Tudo o mais havia parado e parecia intensificar a brutalidade do processo de demolição de todas as casas que estavam contidas no bloco (mais de 500 moradias). As ruas ao redor estavam extremamente silenciosas e os únicos sons eram os de se quebrar e se abrir quando o prédio foi destruído”. A série de pinturas de Hill que veremos, pinturas no concreto, série Aylesbury Fragments, vem como uma reação a esta crise, onde a artista coleta fragmentos dos prédios demolidos e pinta os próprios edifícios e arredores sobre eles, deixando “retratos”, “instantâneos”, rastros e vestígios desta paisagem vernacular em desaparecimento eternizadas na arte. São imagens silenciosas que mostram um imenso complexo de apartamentos, onde o vazio e o isolamento são a tônica presente. PALAVRAS-CHAVE: Harriet Mena Hill; crise; arte; silêncio; vestígio. ABSTRACT: In times of crisis, each artist found, or still seeks, his own way of dealing with isolation, fear, insecurity, losses. The Black Death reached the European coasts in 1348. In 1350, the year in which it retreated, it had toppled almost half of the region’s population. In a fresco from the 14th century, in France, in the former Abbey of Saint-André-de-Lavaudieu, we see how the plague affected the representation of the image. The purpose of this study is to think about art in the contemporary, from the British artist Harriet Mena Hill, precisely in relation to the plastic productions resulting from the world crisis generated by the pandemic caused by Covid-19, a phenomenon that hit the world in 2020, and has been still unfolding in 2021. Hill was already working, proposing artistic activities, with a group of low-income youths, residents of Aylesbury State, London, who for decades was the symbol of the failure of the British social housing project. During the pandemic, even though everything was stopped, in suspension, the government proceeded with the demolition of a huge block of apartments on the property. According to Hill, “Everything else had stopped and it seemed to intensify the brutality of the process of demolishing all of the homes that had been contained in the block (more than 500 dwellings). The surrounding streets were extremely quiet, and the only sounds were those of smashing and wrenching as the building was torn apart”. The series of Hill paintings that we will see, concrete paintings, Aylesbury Estate series, comes as a reaction to this crisis, where the artist collects fragments of the demolished buildings and paints the buildings and surroundings on them, leaving “portraits”, “snapshots”. Traces and traces of this vernacular disappearing landscape eternalized in art. They are silent images that show an immense apartment complex, where emptiness and isolation are the keynote. KEYWORDS: Harriet Mena Hill; crisis; art; silence; trace. 151


Em tempo de crises, especialmente uma crise de sanitária, cada um encontrou, ou ainda procura, sua própria forma viver com os desdobramentos causados pelas medidas determinadas, seja o isolamento social, sejam medidas de controle urbano em geral. Entretanto, o medo, a insegurança, as perdas, excedem os protocolos, e invadem nossas casas, nossas famílias. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a COVID19 como uma pandemia (SCHMIDT et al., 2020). Nossa geração, ou as imediatamente anteriores, está vivendo algo inédito e que aparentemente seria roteiro de filme de ficção, para não dizer de terror. O mundo inteiro foi afetado, Oriente e Ocidente. A morte é democrática, a pandemia chegou em cada lugar. Estamos ainda (2021) lidando com o problema, não temos distanciamento para entender exatamente o que, como e de que forma a pandemia pelo Corona vírus afetou nossas vidas, e as futuras gerações. Estamos testemunhando então os congressos, seminários e encontros os acadêmicos, periódicos, praticamente cada evento proposto em 2020 e 21, apresentando como temática a crise decorrente da pandemia pelo Covid 19, contribuindo para o adensamento das imagens, depoimentos e textos refletindo a situação e as maneiras como cada um vem sobrevivendo a ela nestes quase dois anos. O que decorre é um mergulho da arte no assunto, e consequentemente da crítica de arte também, mergulhando neste universo pandêmico. Neste estudo, buscamos analisar algumas relações que abordem a arte, e de que modo esta serve como um panorama nestes cenários. Sabemos que cada período da história se relacionou com a dor, a perda, o medo, as crises, à sua própria maneira. E reconhecemos que podemos encontrar na arte reflexos destas situações, serviu como cenário visual de um mundo em conflito. Um momento crítico da história foi a crise gerada pela Peste Negra, ou peste bubônica. Sabemos que chegou à Europa em 1347, trazida por embarcações que atracaram em um porto do Mediterrâneo, de onde saíram ratos infectados pelas pulgas portadoras pelo patógeno, um dos mais mortais da história. Entre 1350 e 1380, aproximadamente, ocorreram surtos em maior e menor intensidade. Alguns teóricos estimam que metade da população europeia tenha perecido pela peste, sendo que logo de início já foi devastadora (BARRY; GUALDE, 2007). Agnolo di Tura del Grasso, cronista italiano do século XIV escreveu sobre sua experiência com a doença (este perdeu sua esposa e seus cinco filhos). Grasso escreveu que a pessoa, uma vez contaminada, talvez durasse dois ou três dias, sendo que os sintomas iniciavam com o que parecia uma gripe forte, em seguida o aparecimento das ínguas, especialmente no pescoço, axilas e virilha (BARRY; GUALDE, 2007). O medo e a insegurança tomaram conta das populações, que se viram à mercê de um fantasma letal, que não compreendiam, não possuíam tratamento, nem conhecimento para lutar contra. A morte rondava a todos. Os avanços tecnológicos da época, como embarcações maiores, mais eficientes, mais rápidas; surgimento de rotas de comércio e mais vias de acesso e circulação; trocas comerciais entre Oriente e Ocidente, tudo isto acabou por estimular os deslocamentos. O fluxo entre os centros comerciais aumentou, especialmente pela Rota da Seda, e com isso a disseminação da peste foi acelerada. Os movimentos peregrinos também ajudaram neste quesito, tornando os locais ditos sagrados focos importantes da epidemia. E a peste não se limitou ao Ocidente. Sabemos que veio do Oriente, onde já estava matando há quase quinze anos (BENEDICTOW, 2011). A peste atingiu a todas as classes sociais, nobres e plebeus, jovens e idosos. Independente de situação social, econômica, religiosa, todos estavam fragilizados, todos temiam por si e pelos seus. Segundo ainda Grasso, os que sobreviviam, incluindo ele próprio, único a restar de uma família de 7 pessoas, se tornavam zumbis (BARRY; GUALDE, 2007). Desesperados, desesperançados, amedrontados. Entretanto, a peste negra não foi a primeira praga que assolou a Europa. No século VI, houve a praga de Justiniano, uma pandemia ocorrida no reino de Justiniano I, causada pelo mesmo patógeno da peste bubônica, atingindo o mundo mediterrâneo, com maior fúria no Império Bizantino entre os anos de 541 e 544 (BENEDICTOW, 2011). A Peste Negra do século XIV foi eternizada em crônicas da época, mas também nas manifestações visuais. Como neste afresco da Abadia de Saint-André-de-Lavaudieu (França, século XIV) que mostra a morte personificada pela figura de uma mulher aparentemente sem rosto, que carrega as flechas letais, letais pela Peste Negra, que atinge as pessoas que se encontram ao seu redor. As flechas miram os locais 152


no corpo das vítimas onde a doença aparecia e era identificada como sendo a peste bubônica. Os bubões começavam geralmente nas axilas, pescoço e virilhas. A mulher vem distribuindo a morte, assim como a Peste Negra.

Figura 01: A Peste Negra (século XIV). Abadia de Saint-André-de-Lavaudieu, França. Fonte: https://www.akg-images.fr/ archive/-2UMEBMBC3LFZ3.html

As imagens desenvolvidas na época e nos períodos subsequentes evocaram este terror, evidenciando a inevitabilidade da morte, e a insegurança do inesperado. As pessoas tentavam compreender o porquê de tanta tragédia, tantas mortes. Alguns se voltaram para Deus, buscando misericórdia, outros se voltaram contra Ele, atestando estar dirigindo Sua ira a todos indiscriminadamente, a fim de punir os pecadores. Nas igrejas, as orações eram dirigidas pedindo clemência. A morte se tornou pulverizada, e os bode expiatórios não faltaram, piorando ainda o cenário. Em fevereiro de 1349, 2.000 judeus foram queimados vivos, justificando-se serem eles os culpados pelo castigo infligido por Deus. Várias foram as teorias oferecidas para explanar aquilo tudo, a maioria sob o véu religioso, místico, supersticioso. O que fica para nós são os relatos, escritos e em imagens, que nos dão um vislumbre da situação miserável em que as pessoas se viram durante a Peste negra. A Dança Macabra foi um gênero artístico que se desenvolveu no período (figura 2), uma alegoria do final da Idade Média acerca da universalidade da morte: não importa qual a posição de cada um na vida, a Dança Macabra une a todos (BENEDICTOW, 2004). A imagem evocando esta dança consiste na representação da morte - zumbis, esqueletos - convidando pessoas em todas as esferas da vida para dançar até seus túmulos, um memento mori, lembrando as pessoas da fragilidade da vida e como a vida terrena era vã. O primeiro afresco registrado com este esquema visual, agora perdido, foi no cemitério dos Santos Inocentes em Paris, datado de 1425. Neste afresco, o artista evocou a não só a inevitabilidade da morte, mas também o quanto esta nos iguala. O afresco retrata os esqueletos conduzindo, de mãos dadas, as pessoas aos seus túmulos, e vemos um sujeito que nos parece um nobre, ou ao menos alguém de posição privilegiada na sociedade, um homem de cartola e vestido na última moda, que parece olhar o espectador - talvez nos convidando a participar da dança da morte – enquanto dança com movimentos ensaiados. No centro vemos um homem mais humilde, talvez representando um dos muitos sobreviventes das guerras, perdeu parte de sua perna direita e agora anda de muletas, apresenta uma expressão abatida, cansado. A figura na extrema esquerda do afresco é uma representação de um bebê saindo de seu berço, apesar de o artista o figurar mais uma criança, e não um bebê propriamente, mas o berço e o pano que parece uma fralda ao redor da cintura do menino, indicam sugerir um bebê. Ou seja, a morte busca suas vítimas, independente da situação econômica, social ou mesmo da idade de 153


cada um. Vemos que as imagens refletiram o que as pessoas estavam vivendo, o terror, a insegurança, a presença constante do medo da morte.

Figura 02: Detalhe do afresco Dança Macabra (1490) na Igreja da Santíssima Trindade em Hrastovlje, Eslovênia. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Danse_Macabre#/media/File:Hrastovlje_Dans3.jpg

Mas como os artistas se resolveram plasticamente, visualmente, em tempos de pandemia pelo Corona Vírus? Iremos olhar uma série de pinturas sobre fragmentos da artista britânica contemporânea Harriet Mena Hill (1966). A série que veremos parte de uma reflexão sobre a paisagem vernacular londrina e o habitar no coletivo. Hill vem há um tempo trabalhando como voluntária em um conjunto habitacional do sul de Londres, Aylesbury State, onde ela coordena uma escola de artes para crianças e adolescentes de baixa renda, moradores do condomínio. O condomínio residencial Aylesbury State foi projetado pelo arquiteto Peter Fenton em 1963, mesmo ano em que começou sua construção. Fazia parte de um programa maior de renovação da cidade nas áreas mais pobres, provendo habitação para as pessoas menos favorecidas. Documentos atestam que 2.700 moradias forneceram casas para aproximadamente 10.000 residentes em um projeto considerado por muitos como utópico, baseado nos princípios modernistas de planejamento urbano, de padronização arquitetônica, melhoria nas áreas de circulação livre de pedestres, e grandes áreas ao ar livre, para lazer dos condôminos. O conjunto habitacional tinha creche, centro de saúde e mercado, onde se encontra hoje a Escola de Artes Turps, onde Hill trabalha como voluntária. Nos anos 80, o Conjunto Habitacional Aylesbury estava em estado de ruínas. Os moradores originais começaram a se mudar para outros locais, por falta de condições em continuar habitando o local, que passou a ser conhecido como um espaço em vias de naufragar, de afundar. Em 2005, o departamento habitacional desta área de Londres iniciou o desenvolvimento de um programa de regeneração da área, o que ainda está em processo. Hill vem trabalhando com residentes há cerca de 4 anos, desenvolvendo projetos que promovam a memória do lugar a partir de imagens e testemunhos dos residentes. Em conjunto com o Clube de Jovens 2 Inspire, a artista promoveu wokshops com os jovens, desenvolvendo esculturas, murais e instalações. O projeto começou em resposta ao retrato muito negativo da mídia de Aylesbury Estate na imprensa britânica. A artista trabalha na propriedade com jovens residentes, oferecendo uma variedade de atividades artísticas gratuitas, incluindo oficinas participativas / colaborativas de escultura, promovendo o fazer e criar no coletivo. Em parceria com o projeto “Lar é onde mora o coração”, de Notting Hill, Harriet Mena Hill vem acolhendo pessoas mais velhas, jovens e adultos, onde a parceria com as crianças segue desenvolvendo os projetos artísticos. Os mais velhos alimentam os saberes dos mais jovens, contando histórias e anedotas do lugar, fornecendo 154


uma narrativa que promova um vislumbre de como era a vida ali no início da proposta do projeto residencial, nos anos 60 e 70, em face dos ideais urbanos modernistas postos em prática. Ao engajar neste projeto cultural, antes do evento da pandemia, com os jovens que estavam enfrentando uma crise habitacional junto de suas famílias, Hill iniciou uma série que chamou de “Soft Concrete” (“Concreto Macio”). A artista diz que precisava trabalhar poeticamente a sensação pública do lugar, um lugar sem esperança e de abandono.1 O trabalho consiste em montagens com feltros onde a artista vai recriando sua percepção do conjunto habitacional, imagens dos prédios, arredores, latas de lixo, o mato que cresceu ao invés dos jardins. O trabalho é feito com um material de descarte, pois que o feltro é isso, fibras agrupadas, para falar de um espaço descartado pela sociedade. Na figura 3 temos um exemplo desta série, onde a artista nos oferece um vislumbre de um dos prédios pertencentes ao conjunto habitacional, feito com pintura, costura e bordado sobre o feltro.

Figura 03: Harriet Mena Hill. Soft Concrete, 2020. Fonte: https://www.instagram.com/harrietmena_hill/

Hill enfatiza o abandono do lugar pelo recurso de mostrar só a construção arquitetônica, que se encontra “abandonada” pelos humanos, tanto física quanto conceitualmente, apesar de vermos seus rastros das pessoas que habitam este espaço: roupas nas janelas, cortinas, janelas entreabertas. A artista nos passa a sensação de abandono do local, que pode ser uma leitura mais profunda no abandono de cada família, cada indivíduo. O que reverbera questões muito prementes hoje, em tempos pandêmicos, especialmente no primeiro ano de isolamento social, 2020, a falta de pessoas nas ruas, o sintoma de cada família, ou indivíduo, sozinho em sua própria habitação. O isolamento aqui aparece como uma fachada de um prédio com muitos apartamentos, uma imagem vazia de moradores. Quando em 2020 tem início a quarentena que antecede a pandemia causada pelo Covid 19, os trabalhos com os jovens param por um tempo, assim como o mundo inteiro acabou parando. Harriet Mena Hill segue trabalhando no ateliê, dentro da escola que montou no conjunto habitacional. Aí chegamos na série Fragmentos de Aylesbury, aproximadamente 30 fragmentos de concreto coletados e pintados pela artista (figura 4).

1

Em entrevista por e-mail com a autora, em março de 2021.

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Figura 04: Harriet Mena Hill - Aylesbury Fragments (2020-2021). Acrílico sobre concreto recuperado. Fonte: https://www. instagram.com/p/COk-4kQli2e/

Segundo a artista, as pinturas de concreto surgiram da sua reação à demolição de um enorme bloco de apartamentos na propriedade durante a pandemia. Tudo o mais havia parado, as pessoas não saíam de suas casas, o silêncio imperava na região, já desolada pelo descaso de anos e de abandono, tanto pelo governo quanto pelos moradores que evadiram o lugar, as ruas estavam ainda mais silenciosas e vazias. Mas ainda assim foi dado seguimento à demolição de um dos enormes prédios deste conjunto habitacional. Mais de 500 moradias foram abaixo por máquinas e equipamentos de engenharia civil feitos para demolir grandes construções. Diz Hill que o silêncio e isolamento reinantes pareciam intensificar a brutalidade do processo de demolição de todas as casas que estavam contidas no bloco, as mais de 500 moradias2. A artista conta que as ruas ao redor estavam extremamente silenciosas, e os únicos sons eram os das máquinas que quebravam e partiam os enormes blocos de concreto enquanto o prédio era destruído. Neste projeto, “The Aylesbury Fragments” (Os Fragmentos de Aylesbury), Hill ressignifica os fragmentos das construções demolidas, pedaços de concreto recolhidos antes de os entulhos terem novo destino, testemunhos visuais do projeto original lá década de 60, agora demolido. A artista trabalha estas pedras como que burilando uma gema para deixar ver a preciosidade, a melhor imagem do conjunto, suas pinturas. O contraste entre o orgânico dos fragmentos de concreto, e as linhas geométricas da antiga estrutura dos prédios formam uma espécie de poesia visual. Até agora pintou cerca de 30 fragmentos. Ainda tem alguns fragmentos coletados, mas será uma quantidade finita, pois todo o restante do concreto daquele local foi britado. De acordo com Hill, ela sentiu uma forte necessidade de expressar a perda, o isolamento e a melancolia da cidade e o rápido declínio das condições sociais na propriedade durante o isolamento da pandemia3. Pintando a paisagem vernacular abandonada, com tinta óleo, os fragmentos de concreto recuperados dos blocos recém demolidos do conjunto habitacional da década de 1960 no sul de Londres, a artista reorganiza os fragmentos aleatórios para formar um registro visual dos edifícios originais. Contudo podemos buscar uma reflexão mais ampla, onde estes fragmentos de Aylesbury poderiam estar se referindo a quaisquer condomínios residenciais ao redor do globo, onde as janelas entreabertas não mostram pessoas se comunicando, mostram o vazio, a desolação provocada pelo isolamento, tanto social quanto entre famílias. As roupas penduradas nas sacadas são comprovações imagéticas de que esses espaços são sim habitados, mas cada um lidando no seu espaço interno. O Fragmentos de Aylesbury são trabalhos que funcionam como uma pedra burilada, como se abrissem uma pedra para expor uma joia em seu interior, as imagens revelam uma beleza formal nas linhas geométricas, nas grades, e falam com pungência das vidas individuais em que fomos todos obrigados a nos adaptarmos. O isolamento e o abandono são as sensações mandatórias neste trabalho de Harriet

2 3

Em entrevista à autora por e-mail em março de 2021. Idem.

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Mena Hill, e completam as percepções de grande parte das pessoas nos mais diversos locais e culturas, posto que a pandemia foi democrática, atingiu a todos, assim como a Peste Negra: não importando a classe social, idade, religião ou hierarquia, a morte se fez presente sem aviso prévio. O trabalho de Hill nos iguala a todos no silêncio e no isolamento. As paisagens vazias falam das vidas ali vividas, mostram o rastro, o vestígio. O vestígio do conjunto habitacional – e do projeto de reordenação urbana – pelos fragmentos, o vestígio humano pelas cenas desabitadas, o vestígio da matéria pelo concreto coletado e ressignificado em arte. Não vemos pessoas, só os seus rastros. São imagens plenas de nostalgia, melancolia, algo entre tempos. Nem aqui, nem lá. Vemos cortinas entreabertas, roupas recém lavadas nas sacadas, o lixo colocado na rua (figura 5). A porta entreaberta, alguém acabou de entrar ou de sair? Vemos os rastros da vida vivida, mas não os que ali vivem ou viveram. A presença humana vem pela sombra.

Figura 05: Harriet Mena Hill. Aylesbury Fragments (2020). Fonte: https://www.instagram.com/harrietmena_hill/

Hill reconhece uma tendência humana fundamental. Ao estabelecer potenciais espaços e redes de pensamento em nossas mentes, nos permitimos antecipar lugares que iremos visitar e imaginar territórios onde é menos fácil para o corpo efetivamente se deslocar, mas sonhamos. Harriet cria paisagens interiores, isoladas, vazias, que geram diferentes significados a cada espectador. Pessoas mapeiam inconscientemente aspectos de suas vidas e este conhecimento espacial dá forma a ideias abstratas e permite que essas ideias sejam comunicadas em termos relativos. As pinturas de Hill parecem seguir esse tipo de raciocínio. Ao retratar ambientes genericamente familiares, mas inomináveis, vestígios do corriqueiro, eles convidam a imaginação do espectador a viajar para territórios além da experiência direta. Os fragmentos de Aylesbury fazem parte da prática de Hill de usar objetos encontrados como 157


o ponto de partida para pinturas de paisagens arquitetônicas não povoadas, para falar das paisagens internas da mente. Reflexões sobre a desaparição e o vestígio na imagem, que refletem momentos de crise vividas por estas famílias. Sejam as crises habitacionais, sejam as crises pandêmicas. Imbuídos de nostalgia, detalhes de janelas iluminadas à noite, roupas esvoaçantes em varandas ou um, carro estacionado são evidências da presença humana, que a artista apenas sugere, nos deixando espaço para a imaginação. Terminamos esta reflexão com um poema de T. S Eliot, (Nº 2 de ‘Quatro Quartetos’), poeta falecido em 1965, logo após o início do projeto reurbanização. Este poema é citado por Harriet Mena Hill em relação à sua experiência pandêmica artística.

EAST COKER (PARTE II DOS QUATRO QUARTETOS) I Em meu princípio está meu fim. Umas após outras As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas, Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar Irrompe um campo aberto, uma usina ou um atalho. Velhas pedras para novas construções, velhos lenhos para novas chamas, Velhas chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas, Terra agora feita carne, pele e fezes, Ossos de homens e bestas, trigais e folhas. As casas vivem e morrem: há um tempo para construir E um tempo para viver e conceber E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre E sacudir as tapeçarias em farrapos tecidas com a silente legenda. Em meu princípio está meu fim. Agora a luz declina Sobre o campo aberto, abandonado, a recôndita vereda Cerrada pelos ramos, sombra na tarde, Ali, onde te encolhes junto ao barranco enquanto passa um caminhão, E a recôndita vereda insiste Rumo à aldeia, ao aquecimento elétrico Hipnotizada. Na tépida neblina, a luz abafada É absorvida, irrefratada, pela rocha grisalha. As dálias dormem no silêncio vazio. Aguarda a coruja prematura.

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Referências BARRY, Stéphane; GUALDE, Nobert. La Peste noire dans l’Occident chrétien et musulman 1346/1347 – 1352/1353. In: CASTEX, Dominique; CARTRON, Isabelle. Épidémies et crises de mortalité du passé. Pessac: Ausonius Éditions; Collection: Études | 15, 2007. p. 193-227 BENEDICTOW, J. La Peste Negra, 1346-1353. La historia completa. Madrid: Akal, 2011, 592 p. ELIOT, T. S. Quatro Quartetos. SP: Civilização Brasileira, 1967. SCHMIDT, B., CREPALDI, M. A., BOLZE, S. D. A., NEIVA-SILVA, L., & DEMENECH, L. M. Impactos na Saúde Mental e Intervenções Psicológicas Diante da Pandemia do Novo Coronavírus (COVID-19). SciELO Preprints, 1(1), 1–26, 2020. doi: https://doi.org/10.1590/SCIELOPREPRINTS.58

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Transparências nas obras de Carlos Fajardo, Marcius Galan e Roberto Wagner Transparencies in the oeuvres of Carlos Fajardo, Marcius Galan, and Roberto Wagner Luis F. S. Sandes1,2 FAUUSP - luis.sandes@gmail.com

RESUMO: Carlos Fajardo, Marcius Galan e Roberto Wagner são nomes representativos da arte contemporânea brasileira e atuam em diversas linguagens. Neste estudo, estuda-se o recurso que os três artistas fazem às transparências. O objetivo é estudar as transparências nesses artistas com o intuito de realizar panorama dos usos e problematizações desse recurso. O método empregado é o da comparação entre conjuntos de obras de cada um dos artistas. As fontes primárias são conjuntos de obras de cada um dos três artistas. As fontes secundárias são textos de história e crítica de arte. Apresentam-se as poéticas de cada um dos artistas. Analisam-se os conjuntos de obras. Conclui-se que a análise auxilia a comparação da operação das diferentes poéticas. Apontam-se novos rumos de pesquisa. PALAVRAS-CHAVE: Arte contemporânea; arte brasileira; fotografia contemporânea; artes visuais; instalação. ABSTRACT: Carlos Fajardo, Marcius Galan e Roberto Wagner are representative names of Brazilian contemporary art and they develop their oeuvres in various languages. In this paper, the resource the three artists make to transparencies is studied. The objective is to study the transparencies in these artists in order to make an overview of the usages and problematizations of such resources. The deployed method is the comparison between sets of works of each artist. The primary sources are works sets of each of the three artists. The secondary sources are art history and critic texts. The poetics of each artist is presented. The sets of works are analyzed. The conclusion is that the analysis is auxiliary in comparing how the different poetics operate. New research paths are shown. KEYWORDS: Contemporary art; Brazilian art; contemporary photography; visual arts; installation.

1 Doutorando na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Pesquisa arte brasileira contemporânea, com foco em quatro artistas relacionados à abstração geométrica: Carlos Fajardo, Artur Lescher, Marcius Galan e Roberto Wagner. É orientado pelo prof. dr. Agnaldo Farias. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, com pesquisa sobre o concretismo paulista. É redator freelancer do “Art Market Dictionary” da editora De Gruyter. É autor de entrevistas, artigos, resumos, etc., que estão reunidos em: <https://usp-br.academia.edu/LuisFSSandes>. 2 O autor agradece à autorização de uso das imagens da Galeria Marcelo Guarnieri, que representa Carlos Fajardo, da Pinacoteca do Estado de São Paulo, que cedeu imagem de obra de Marcius Galan, e dos artistas Marcius Galan e Roberto Wagner.

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Introdução Carlos Fajardo, Marcius Galan e Roberto Wagner são nomes significativos nas artes visuais do Brasil atualmente. Enquanto Fajardo e Galan, nas últimas décadas, têm se dedicado mais à instalação e à escultura, Wagner se dedica à fotografia. Argumenta-se que as transparências são recursos importantes nas obras desses três artistas visuais contemporâneos e são importante caminho para um estudo comparativo entre tais artistas. As transparências são aqui tratadas como elemento constitutivo das obras e poéticas desses artistas e são entendidas de modo amplo e envolvem materiais transparentes, translúcidos ou até mesmo vazados. Este artigo é decorrente da pesquisa de doutorado intitulada “A abstração geométrica em quatro artistas contemporâneos brasileiros: Carlos Fajardo, Artur Lescher, Marcius Galan e Roberto Wagner”, em andamento no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, sob orientação do professor doutor Agnaldo Farias. A investigação busca compreender as relações que os quatro artistas estabelecem com abstração geométrica, que é entendida como fenômeno da história da arte que tem múltiplas correntes (VALLIER, 1986). A pesquisa de doutorado não opera com monografias de cada um dos artistas. Ao contrário, toma temas ou tópicos que articulam a obra de dois ou mais artistas a fim de estabelecer diálogos entre elas, criando, assim, acredita-se, uma discussão mais rica e proveitosa. Outros tópicos que estão sendo desenvolvidos são a relação das obras dos quatro artistas com a arquitetura e a de Galan e Wagner com a precariedade brasileira. O objetivo deste artigo é estudar as transparências nos três artistas citados de modo comparativo, para efetuar panorama dos usos e problematizações desse recurso estético. O método empregado é a comparação de conjuntos de obras dos três artistas. Cada artista tem seu próprio conjunto de fontes primárias. De Fajardo toma-se uma exposição em sua totalidade: De soslaio (curador Henrique Xavier, Galeria Marcelo Guarnieri, 2020-2021). De Galan escolheu-se uma instalação da série Seção intitulada Seção (prisma fumê) (2010, refeita em 2019). Finalmente, de Wagner pinçaram-se três fotografias (uma de 2020 e duas de 2021). As fontes secundárias são textos de história e crítica de arte. Entre os autores, incluem-se Lorenzo Mammì, Rafael Voigt Maia Rosa, Agnaldo Farias, Sônia Salzstein, Rodrigo Moura e Kiki Mazzucchelli. O artigo está estruturado da seguinte forma. Primeiramente, se apresentam brevemente as poéticas dos três artistas estudados. Na sequência, são analisadas obras e exposição nas quais se vislumbram com clareza as transparências. Por fim, apontam-se as considerações finais, em que se intenciona realizar uma leitura geral do tema e se apontam novas possibilidades de pesquisa.

Apresentação das poéticas dos três artistas Os três artistas aqui investigados são bastante diferentes entre si, ainda que haja traços e relações entre eles, sendo que uma dessas relações, as transparências, configurarem o próprio tema deste artigo. Carlos Fajardo (1941) é, entre os três artistas visuais, o de carreira mais longeva e é o nome mais estabelecido na arte contemporânea brasileira. Participa de exposições e ministra aulas desde a década de 1960. Sua poética migrou, nos anos iniciais, da pintura, da colagem, da gravura e do desenho para, mais recentemente, a instalação e a escultura. Entre os tópicos discutidos por Fajardo estão a imagem, a virtualidade e os materiais da obra de arte, além de outros. O artista se vale de diversos materiais, sejam eles industriais ou rústicos: por exemplo, tijolo, cipó, tecido, vidro, ferro, aço, tecido e cimento. Para ele, os materiais utilizados são uma decorrência da sua reflexão sobre o discurso da pintura (CANTON, 2001, p. 154). Fajardo não trabalha com narrativa em sua produção, tampouco com proposições simbólicas ou com significante e significado, mas sim com a presença física atual das obras (SALZSTEIN, 2003; ROSA, 2007; FAJARDO, 2007). 161


As superfícies dos objetos de arte têm importância para Fajardo e estão sempre no alvo de sua obra, além de garantirem a possibilidade de os objetos serem exibidos e vistos (GOLDBERG, 1987; SALZSTEIN, [1992]; SALZSTEIN, 1997). As superfícies das esculturas de Fajardo “não são o produto resultante da fusão de materiais distintos, mas o encontro, a junção ou o travamento entre eles obtido através de uma ação construtiva simples” e captam o olhar do espectador (FARIAS, 1993, s.p.). Para Mammì (2012, p. 313), “é no ato da visão que as obras de Fajardo falam […]”. O trabalho de Fajardo assumiu, desde os anos 1980, um caráter de relação, isto é, “[…] das partes entre si, delas com a parede, de todo o conjunto com o espaço circundante”, principalmente rumo a desarticular relações (SALZSTEIN, 1997, s.p.). Todos esses aspectos são notados nas obras de sua exposição a ser analisada posteriormente. Marcius Galan (1972) é artista visual que expõe desde a década de 1990. Sua poética recorre a utensílios domésticos, objetos cotidianos e elementos geométricos, além de outros, e os trabalha subvertendo-os, isto é, atribuindo-lhes usos e sentidos incomuns. Diversas de suas obras criam e quebram expectativas no expectador, levando-o a se questionar sobre o que de fato vê. De acordo com Tolotti (2019, p. 301-2), a obra do artista “[...] nos acomete com suas questões de maneira mais indireta, provocando reticências dubitosas, impelindo-nos a experienciar suas arestas, seus poros, suas cores”. Sua obra não se impõe como uma verdade, e sim faz propostas sobre as quais o público possa perscrutar e refletir. Ela levanta dúvida no público sobre os materiais utilizados, convidando-o, assim, a interagir ativamente (SARTUZI, 2019). O trabalho de Galan se embebe em diversas disciplinas: por exemplo, Economia, Matemática e Física. Para Mazzuccheli (2013), o artista leva as lógicas das disciplinas a entrarem em curto-circuito. De acordo com Scovino (2017), Galan trabalha com as influências tanto do neoconcretismo como do minimalismo. Na opinião de Pinto (2020), a imaginação está enraizada na linguagem dos trabalhos do artista. A importância do vazio na poética de Galan se destaca e nisso o artista trilha o caminho aberto por Franz Weissmann em Cubo vazado (MOURA, 2015, p. 80). O ilusionismo em Galan é um tópico envolto em alguma disputa. Se, para Tolotti (2019), não há ilusionismo em Galan, pois haveria certas incongruências nas obras que excedem o enganar, para outros autores, certos gestos em Galan são de ilusionismo, ao passo que afetam a percepção do espectador (VALENÇA, 2020; MOURA, 2015). De todo modo, o ilusionismo é importante caminho para se interpretar a obra de Galan. Roberto Wagner (1958) é o único fotógrafo entre os três artistas visuais. Atua com fotografia autoral desde os anos 1980. Trabalha com fotografia editorial e publicitária desde aproximadamente 2000. Participa de exposições desde os anos 1990. Sua primeira individual foi na Fauna Galeria, na capital paulista, em 2012. Nos cerca de últimos doze anos, sua poética tem enfocado abstrações geométricas em meio a cenários urbanos. São, por exemplo, calçadas, vias, muros, portões, tapumes, edifícios em decadência, etc. Para Sandes (2020), a obra do artista está situada entre dois polos: a história da arte e a precariedade brasileira. Enquanto a relação com a história da arte se dá por meio da tendência da abstração geométrica, a com a precariedade brasileira se dá pela presença de detalhes arquitetônicos desgastados, empobrecidos, incompletos ou sem acabamento (SANDES, 2020). As fotos de Wagner são usualmente tiradas na cidade de São Paulo, mas, devido às características do que retrata, poderiam ter sido tiradas em qualquer outra megalópole subdesenvolvida.

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Análise das obras As obras da exposição De soslaio de Carlos Fajardo não têm título, como é frequente na poética desse artista (cf. vistas da exposição nas Figuras 01 e 02 e detalhe na 03). Em sua poética, prevalece o caráter de relação entre as obras sobre a individualidade de cada uma delas. As obras foram produzidas entre 2017 e 2020, tendo sido feitas especialmente para essa exposição. Tratou-se da primeira exposição individual do artista na Galeria Marcelo Guarnieri. As obras trazem não só as relações entre si como também convocam relações entre os corpos dos espectadores e a arquitetura circundante. Aqui, não só os materiais transparentes como também os reflexivos colaboram para tanto. Os materiais reflexivos, espelhos, permitem que o observador seja também o observado (XAVIER, 2020). O título dessa exposição “[...] alude ao desvio do olhar. Potenciais desvios acompanham o espectador em seu percurso pela mostra, rodeado por um material como o vidro, tão frágil e ao mesmo tempo tão forte em sua constituição [...]” (XAVIER, 2020,s.p.).

Figura 1 - Carlos Fajardo. Vista da exposição De soslaio na Galeria Marcelo Guarnieri. 2020. Fonte: Galeria Marcelo Guarnieri.

Figura 2 - Carlos Fajardo. Vista da exposição De soslaio na Galeria Marcelo Guarnieri. 2020. Fonte: Galeria Marcelo Guarnieri.

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Figura 3 - Carlos Fajardo. Detalhe da exposição De soslaio na Galeria Marcelo Guarnieri. 2020. Fonte: Galeria Marcelo Guarnieri.

Nesse mencionado sentido das relações entre as obras, o caráter das transparências, que é predominante nessa exposição, tem grande relevância, haja vista que elas facilitam que o olhar do espectador alcance um número maior de obras presentes na galeria, ainda que estejam mais distantes dele. Além disso, devido a suas colorações, também alteram a percepção do público. Três das obras são vidros de cores distintas afixados em bases e estão espalhados por uma das salas da galeria, a maior das três (cf. Figuras 01 e 02). Uma dessas obras é amarela e as outras duas são de tons distintos de fumê. O postar-se diante de uma delas altera a percepção do visitante, que passa a ver o restante da mostra com a cor que está diante de si, já que, ainda que coloridas, essas obras são transparentes. 164


Ao fundo da maior sala (cf. Figuras 01 e 02), encontra-se uma obra de tom azul que tem por trás de vidro uma fotografia de uma cama com dossel em um quarto. São duas placas que vidro, “o que acaba fazendo com que a imagem mais nítida ali seja a do próprio reflexo daquele que observa a obra” (XAVIER, 2020). Esse dossel, translúcido, pode ser comparada a uma velatura em uma pintura na medida em que ambos são transparentes e alteram a visão do que cobrem. As duas outras obras nas paredes da esquerda e da direita da maior sala (cf. Figuras 01 e 02) são compostas de vidros de diferentes colorações que estão recostados em diferentes ângulos nas paredes por suas partes superiores e que estão desalinhados entre si. Essas obras criam cores, opacidades e transparências diferentes e, dadas suas dimensões, convidam o visitante a olhar e a caminhar ao longo delas. A obra vista na Figura 03 tem dimensões menores e está suspensa na parede, apoiada em uma base de madeira. Trata-se de uma fotografia de cores vermelha e azul com um vidro antes e uma chapa azul depois. As placas contam com diferenças de angulação. Cria-se, assim, um desvão que cria alterações de cor e de translucidez. Deve-se ter em mente que a poética de Fajardo não trabalha com narrativa, então, essas obras não tentam contar alguma história; são proposições ao olhar que se detêm nas superfícies. Além disso, a poética institui relações entre as obras, os espectadores e a arquitetura. Todos esses aspectos são visíveis nessa exposição. A instalação de Marcius Galan se intitula Seção (prisma fumê), faz parte da série Seção, foi montada originalmente em 2010 e teve nova montagem em 2019, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, quando de sua aquisição por essa instituição (cf. Figuras 04, 05 e 06).

Figura 4 - Marcius Galan. Seção (prisma fumê). Pinacoteca do Estado de São Paulo. 2019. Fonte: http://marciusgalan.com/ pt-br/exhibitions/secao-prisma-pinacoteca/

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Figura 5 - Marcius Galan. Seção (prisma fumê). Pinacoteca do Estado de São Paulo. 2019. Fonte: http://marciusgalan.com/ pt-br/exhibitions/secao-prisma-pinacoteca/

Figura 6 - Marcius Galan. Seção (prisma fumê). Pinacoteca do Estado de São Paulo. 2019. Fonte: https://www.facebook. com/PinacotecaSP/photos/-apresentada-no-segundo-andar-da-pinacotecasp-a-obra-se%C3%A7%C3%A3o-prismafum%C3%AA-de-autori/2322711117750123/

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Na série Seção, Galan secciona ambientes de galerias ou museus. Isto é, a obra consiste em instalar um vidro de algum formato geométrico improvável para o material em um canto ou seção de uma sala expositiva. Para sustentar o vidro (que não está ali e é apenas sugerido), instalam-se como canaletas de madeira. O vidro, por seu turno, inexiste ali e sua presença é sugerida pela pintura com tinta e cera do interior da obra. A primeira versão foi realizada na Galeria Luisa Strina nos anos 2000. Nessa ocasião, o artista pensava que a obra funcionaria apenas naquele local e que não seria possível instalar a obra em outros ambientes, o que, mais tarde, descobriu não ser verdade. A obra site-especific Seção (prisma fumê) foi executada na Pinacoteca do Estado em 2019. Seu vidro inexistente tinha forma de um triângulo equilátero de cerca de 3 metros de lado e seccionava um canto da sala expositiva. Não havia nada mais, fosse em seu interior, fosse no restante do ambiente. Ribeiro (2019) pontua que a obra oscila entre a linguagem da pintura, de um lado, e da escultura e da instalação, de outro. A transparência aqui é imaginária, ou sugerida, e construída. Em outras palavras, ela foi calculadamente construída, planejada pelo artista, que, com poucos recursos, instituiu uma transparência que não existe de fato, sendo apenas sugerida pelo conjunto desses recursos. Não obstante, a transparência existe para o espectador, que lê a obra como se houvesse um vidro nela — até talvez depois de constatar que ele não está presente. Neste caso, a coloração do vidro é fumê. O espectador necessita perscrutar a obra para que possa definir se existe um vidro físico ali ou não. E, só então, pode concluir ser possível avançar passos dentro da obra, o que não é proibido, mas demanda alguma coragem do visitante, dado que a dúvida nele ficou incrustrada. As fotografias de Roberto Wagner foram escolhidas a partir de sua conta no Instagram, que é importante canal de divulgação de sua obra. O critério de seleção das três imagens foi a presença de algum tipo de transparência. A primeira imagem de Wagner (Figura 07) apresenta translucidez. Mostra, aparentemente, vidro fantasia martelado, que é um tipo de vidro translúcido, que permite a passagem da luz, mas impossibilita a completa identificação do que ou de quem está do outro lado. Trata-se de vidro popular entre as classes médias. Essa obra retrata uma janela de esquadria metálica e vidros quadrados. Existe uma linha curva, possivelmente um corrimão, que contrasta com a perpendicularidade da esquadria e empresta ritmo à obra. A despeito dessa linha curva, há grande simetria na imagem: no lado esquerdo, encontra-se um fundo branco após o vidro; no lado direito, o fundo é azul. A translucidez do vidro dá à foto tom de suspense, incerteza, já que praticamente apenas se consegue distinguir a cor por trás do vidro, nada além. Os materiais empregados na janela, que são antigos e populares, registram o passar o tempo e mostram serem démodés.

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Figura 7 - Roberto Wagner. Sem título. 2020. Fotografia digital. Fonte: https://www.instagram.com/p/B6_WnO7HnB_/

A segunda fotografia desse artista (Figura 08) registra portão branco vazado e, a despeito disso, tal como a imagem anterior, também possibilita que se desvende pouco do que está por trás dessa barreira visual. Trata-se, uma vez mais, de foto bastante simétrica: os eixos perpendiculares do portão se cruzam no seu centro. Linhas diagonais unem cada metade dos eixos. Atrás do portão, há uma tela de proteção para animais e/ou crianças. Essas telas são geralmente feitas de poliéster e o que as caracteriza é que elas protegem sem fechar o ambiente. O portão é entrada para uma garagem residencial, onde se encontra automóvel sedã típico de uma certa classe média alta paulistana. O veículo de fato é marcador de classe social: numa megalópole como São Paulo, a circulação por transporte pública é malvista por setores das classes altas. Além disso, o automóvel também é símbolo de independência e conforto. A baixa luminosidade do ambiente torna impossível ver ou distinguir muito além da traseira do carro, criando clima de ocultamento.

Figura 8 - Roberto Wagner. Sem título. 2021. Fotografia digital. Fonte: https://www.instagram.com/p/CKaHK5znnWx/

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A terceira fotografia de Roberto Wagner (Figura 09) tem estrutura básica semelhante à da anterior: portão vazado permite que se entreveja pouco além dele. Aqui, contudo, conseguimos apreender ainda menos do que antes. Especialmente porque não há um veículo estacionado, não conseguimos nos assegurar de que se realmente se trata de garagem de residência — trata-se apenas de impressão, devido à aparência do portão e à sensação de profundidade existente.

Figura 9 - Roberto Wagner. Sem título. 2021. Fotografia digital. Fonte: https://www.instagram.com/p/CMLWSAXnzLy/

O portão é branco e aparentemente feito de alumínio. Exceção feita às suas partes estruturais, ele é vazado por pequenos círculos. O portão é que, na foto, empresta simetria ao todo, já que ele está perfeitamente centralizado. Atrás do portão se vê um lugar que remete a uma garagem ou a uma entrada de garagem. As paredes laterais são brancas, enquanto o teto e o chão são escuros; criam-se, assim, formas geométricas imperfeitas nos lados esquerdo e direito. A atmosfera criada pelo fotógrafo é de incerteza, confusão, indefinição, pois não se consegue definir ou estimar o que se tem diante do olhar. Essas três fotografias de Roberto Wagner fazem, segundo seu relato, parte de um conjunto de suas obras que tratam do see-through, ou seja, registram aspectos visuais que, nas imagens, funcionam como barreiras permeáveis ao olhar do espectador. Ao mesmo tempo, esse see-through, ou transparência, aponta para o fato de a cena registrada estar intermediada pela fotografia. Muitas vezes, essas imagens do see-through se articulam com outro tópico frequente na poética desse artista, qual seja, as fronteiras, que são barreiras entre duas áreas distintas, as quais são notadas nas Figuras 08 e 09. (Informação pessoal, 2021).

Considerações finais A análise dos conjuntos de obras dos três artistas, em suas variadas linguagens, demonstrouse útil caminho para a comparação de como operam as três diferentes poéticas. Ao olhar-se para a trajetória de cada um dos artistas, pode se notar que o recurso das transparências surgiu há mais tempo na de Carlos Fajardo. Em Marcius Galan, as transparências são mais restritas à série Seção. Em Roberto Wagner, há uma grande gama de possibilidades para as transparências serem trabalhadas. Este trabalho dá ensejo a novas pesquisas. Um possível caminho é a investigação de embasamento teórico de filósofos, historiadores e críticos de arte no sentido de dar lastro teórico a essas práticas 169


artísticas. Outro caminho é explorar o tópico das transparências em outros artistas contemporâneos, sejam eles brasileiros ou estrangeiros, para que o panorama acerca desse tema seja mais amplo. Por último, caminho adicional seria um que compare as transparências em alguns artistas contemporâneos com aquelas em alguns artistas modernos.

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As resistências análise cultural, interhistoricidade

críticas da arte: interdisciplinaridade,

Art’s critical resistances: cultural analysis, interdisciplinarity, interhistoricity Marco Antônio Vieira1 Unileya, Espaço f, 508 - marcoantoniorvieira@gmail.com

RESUMO: É de Jacques Derrida que se retira a ambiguidade, constitutiva para a abordagem teórica aqui proposta, do significante “resistência”. O campo de saber nomeado “crítica de arte” é, a um só tempo, alvo de resistências exógenas, que buscam invalidar sua pertinência investigativa para lidar com objetos, fenômenos e manifestações que não cessam de irromper na cena contemporânea e desafiam afrontosos a genealogia epistêmica da qual a crítica de arte é devedora, como é atravessado pelas resistências endógenas de seus praticantes, uma vez que as especificidades filosófico-teóricas que circunscreveram historicamente o alcance analítico da crítica de arte inevitavelmente esbarrarão na insuficiência das ferramentas teóricas e pressupostos filosóficos que sustentaram a “arte ocidental” e sua historiografia, as quais são atravessadas pelo viés da herança eurocêntrica que, prescritiva e proscritiva, define o campo ontológico da “arte”. PALAVRAS-CHAVE: Crítica de Arte; Análise Cultural; Interhistoricidade; Interdisciplinaridade; Teoria e História da Arte ABSTRACT: The constitutive ambiguity of the signifier “resistance”, which theoretically inspires our approach herein, stems from Jacques Derrida. The field of knowledge named “art criticism” is the targeted by both exogenous resistances which seek to invalidate its investigative efficacy to deal with objects, phenomena and manifestations which incessantly erupt in the contemporary landscape and challenge the epistemic genealogy with which art criticism is affiliated, and by endogenous resistances on the part of its practitioners, for the theoretical specificities which historically circumscribe the analytical reach of the field will inevitably stumble on the theoretical inefficacy of its tools as well as on the philosophical tenets which sustain “western art” and its historiography, which are infused with the Eurocentric legacy which defines the ontological field of “art” via its prescriptions and proscriptions. KEYWORDS: Art Criticism; Cultural Analysis; Interhistoricity; Interdisciplinarity; Art Theory and History

1 Marco Antônio Vieira é Professor em nível de graduação e pós-graduação. Doutor em Arte, na linha de Teoria e História da Arte, pela UnB. Atua como curador independente desde 2007. Investiga as relações interdisciplinares e interartísticas que tornam a História e a Crítica de Arte terrenos de férteis indeterminações e incessante reavaliação crítica.

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Antecâmara Teórica O desenho conceitual deste texto é amplamente dependente de contribuições teóricas que desestabilizam as certezas epistêmicas calcadas na lógica diacrônica que marcou ampla e longamente os campos da História e da Teoria da Arte e igualmente aquele da Crítica de Arte, uma vez que suas especificidades disciplinares são incessantemente sujeitas a novos entrelaçamentos relacionais, o que, como nos adverte exemplarmente Mieke Bal (2018), para não conduzir a nenhuma forma de leviandade anacrônica, deve ter em conta o que a autora nomeia “relacionalidade”, um princípio norteador que deve evitar a mera projeção de uma perspectiva contemporânea sobre o passado, o que fragilizaria a maneira como os anacronismos fundamentam notadamente a abordagem de Aby Warburg, como nos demonstram os textos de Georges Didi-Huberman (2002), em que se atualiza o legado warburguiano em cruzamentos com a teoria lacaniana e a concepção de história em Walter Benjamin. É igualmente de Bal (1999) que este texto extrai a compreensão de que a interdisciplinaridade se mostra irrecusável para quem deseja exercitar-se criticamente em torno da arte e de seus desafios ontológicos (a própria definição do que é arte) que não cessam de perturbar as certezas ancoradas no discurso tramado no interior dos campos da história, teoria e crítica de arte. Bal propõe então que possamos pensar as complexidades epistêmicas daí resultantes como fundantes do campo de estudos nomeado Análise Cultural. Além de toda uma paisagem teórica que se ancora naquilo que Bal nomeará “interhistoricidade” e do recurso crítico à interdisciplinaridade, o título e a justificativa mesmo deste texto inspiram-se na desestabilizadora leitura derrideana do conceito de “resistência” no saber e prática psicanalíticos (DERRIDA, 1996). Em Les résistances de la psychanalyse, Jacques Derrida vira o conceito de resistência do avesso e propõe que se o possa pensar como uma espécie de princípio estruturante do saber psicanalítico que resistiria àquilo que o legitimaria como conceito, a saber, a possibilidade mesma de que o que resiste e alimenta todo uma razão de ser da psicanálise enquanto um saber que se propõe a revelar uma verdade inconsciente, sobre a qual Sigmund Freud fundará a psicanálise, possa igualmente constituir-se como um substrato que, ao resistir teimosamente à interpretação, permita paradoxalmente a insistência e continuidade da psicanálise. Derrida batiza tal forma de resistir de “autoimune” e apropriamo-nos neste texto da leitura derrideana deste conceito no campo da psicanálise para pensarmos em que medida o campo da crítica da arte e seus praticantes não seriam eles também a um só tempo movidos e em certa medida paralisados ou colonizados pelo germe da “criticabilidade”, a qualidade e potência que possibilitam o pensamento crítico, lida aqui a partir daquilo que a paisagem epistêmica setecentista entrega ao exercício crítico da arte. As resistências, portanto, a seguirmos Derrida, são aqueles tramadas de “dentro” da crítica de arte, que tanto a sustentam como campo de saber, ao mesmo tempo que se convertem em pequenos núcleos duros, verdadeiros obstáculos à força originalmente criadora e criativa que historicamente concedeu ao exercício crítico sua legitimação, ou melhor, suas razão e justificativa como espaço em que a criticalidade emerge como possibilidade judicativa com todas as implicações que a singularidade do juízo estético adquire a partir do texto kantiano. Em outras palavras, o que se sugere neste artigo é que os críticos de arte também podem e mesmo tendem frequentemente a resistir à criticalidade, aqui vista como este elemento que emerge da abertura às potências que se desprendem de como Kant irá tecer nos limites de seu texto a significação e o impacto determinante que o juízo estético terá sobre a crítica de arte, sobre aquilo que permite o exercício reflexivo demandado pelo embate com a “obra de arte”, sem que se perca de vista que a própria definição do que é uma “obra de arte”, no que concerne ao Ocidente, tem sido posta em xeque desde a primeira década do século XX, notadamente como efeito discursivo das provocações do Dadaísmo e de Marcel Duchamp. A dimensão ontológica da arte (DANTO, 2021) como um significante que evoca uma real miscelânea heteróclita, heterogênea e heterocrônica de “objetos” que não mais se limitam a meros “artefatos”, mas englobam igualmente toda a gama de manifestações “desmaterializadas” que a arte contemporânea acomoda, acaba por reclamar, de todos os envolvidos na trama sistêmica da arte, 173


que pronunciem juízos sobre aquilo que se apresenta diante de nós e se, por um lado, tais juízos são obstaculizados ou emperrados pela insistência em adotar critérios que se mostram ineficazes e falhos diante daquilo que escapa aos moldes que viabilizaram a crítica de arte no passado, os próprios críticos se veem sequestrados por uma ordem epistêmica incapaz de lidar com a nova “arte” e seus desafios. Os críticos confrontam-se com impasses que tanto podem conduzir ao muitas vezes arrogante descrédito destes novos fenômenos como podem, por outro lado, levar a uma verdadeira reavaliação crítica de seu ofício e daquilo que o sustenta sob forma de fundamentos que, a depender da inclinação ética do crítico, serão objeto de reformulação e revisão. Em nosso texto, além dessas resistências endógenas, inspiradas pelo texto derrideano, não se podem negligenciar as resistências exógenas, aquelas que constituem obstáculos distintos para a práxis crítica em torno da arte na contemporaneidade.Além de uma hostilidade flagrante ao pensamento crítico em nossos dias, o que se materializa, por exemplo, na exiguidade ou inexistência de espaços dedicados à crítica de arte especializada nos veículos midiáticos brasileiros, há ainda uma resistência por parte de uma parcela considerável de agentes do Sistema das Artes, notadamente artistas e curadores que adotam uma perspectiva anticolonial, em que se problematiza a supremacia hegemônica da branquitude branca eurocêntrica e patriarcal heteronormativa e cisgênera, que desconfiam da viabilidade de se acessar manifestações, fenômenos e objetos que irrompem na cena artística contemporânea e questionam veementemente as ferramentas analíticas legadas pela História e Teoria da Arte ocidentais, cujo vocabulário e repertório analítico repousam sobre a hierarquização separatista e acadêmica que caracteriza historicamente a arte e o saber em torno da produção artística no Ocidente.

A paisagem epistêmica setecentista e a Crítica de Arte Ainda que possamos acompanhar os esforços arqueológicos de Lionello Venturi em História da Crítica de Arte (2013) no sentido de estabelecer uma genealogia que possa situar um conjunto de princípios constitutivos e norteadores do que aqui se nomearia uma “criticalidade sintomal” a anteceder o estabelecimento mais “explícito” do campo de saber nomeado “Crítica de Arte Ocidental”, para o que se entende como um “para além” da modernidade que se explicita no horizonte do pensamento ocidental no século XVIII, é forçosa a compreensão de que a ordem epistêmica que se impõe a partir de toda a ambiência que as contribuições de Alexander Baugmarten em Estética: a lógica da arte e do poema (1993), texto originalmente publicado em 1750 e da Crítica da faculdade de juízo de Immanuel Kant (1952), texto datado de 1790, para citar dois marcos textuais determinantes para a emergência da Estética como campo distinto de investigação filosófica, revelou-se fulcral para o surgimento da crítica de arte como uma espécie de “figura” que se destaca contra o “fundo” filosófico não apenas proposto mas igualmente desvelado, sobretudo, pela Terceira Crítica kantiana. Em relação ao desenho genealógico proposto pelo texto de Venturi, o “espectro kantiano” talvez nos deva servir como uma espécie de bússola ou motivo a convulsionar aquilo que a linearidade diacrônica estipula como causalidade temporal, entendendo as particulares condições a presidir ao juízo estético, como se delineiam no texto kantiano, como princípios críticos que embora se tivessem ali manifestado com a nitidez com que se apresentam, possam ser pensados a partir de um lógica “sintomal” que, em vez de determinismos causais necessariamente desencadeados pelo encadeamento sucessivo, caracterizase pelas perturbações e irrupções que se revezam entre retração e eclosão e assim redefinem o modo como a episteme ocidental serviu-se da figura da temporalidade – atravessada pela causalidade e pela sucessão - para produzir saber. O espectro kantiano, como se o lê aqui, aparenta de fato não apenas articular-se como um motivo que desafia a linearidade diacrônica e seu indelével impacto sobre a filosofia ocidental mas fornece razões que não apenas amparam a maneira como lemos o empreendimento intelectual de Venturi em sua arqueologia genealógica mas concedem ao texto de Luiz Camillo Osorio, Razões da Crítica (2005), sua raison d’être.

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Desafios e Resistências da Crítica de Arte A figura da “transhistoricidade”, ou como prefere Mieke Bal (2018), “interhistoricidade”, uma abordagem das temporalidades que habitam os objetos, fenômenos e manifestações da arte protagonizam não apenas um número cada vez maior de exposições que desafiam as noções de cronologia, linearidade e suporte e, portanto, propõem relações de uma outra natureza intertemporal entre os objetos que, por exemplo, integram os acervos museais, tanto no Norte como no Sul globais, convulsionando, tanto quanto possível, o modus operandi, ao menos no que tange à mostração - termo que se toma emprestado de Louis Marin (2021) ao falar de Nicolas Poussin-, e do qual nos apropriamos para que se possa emprestar a devida “coloração” que os aspectos sensíveis e sensoriais do evento expositivo (MENEZES, 2013) materializam, do que entendemos como uma espacialização significante dos acervos pertencentes às instituições museológicas, tendo em conta que o museu encarna toda uma herança eurocêntrica e colonial e que a disposição dos objetos a integrar suas coleções concebe-se precisamente como um dos sintomas mais nítidos da consciência histórica que emerge no século XVIII, quando se criam os primeiros museus, e de como a visão da arte que o museu abriga e representa é justamente aquela da modernidade que concederá à arte a partir da paisagem epistêmica setecentista sua “especificidade” enquanto uma esfera a operar de maneira “autônoma” em relação às funções que precedem, o que ironicamente para Hegel representará a “morte da arte” (WERLE, 2011) como não mais servindo de suporte simbólico à religião, notadamente. É justamente esta destituição simbólica que o conceito de arte ao redor do qual o que aqui nomeamos “criticalidade” se desprende como efeito atrelado ao juízo estético kantiano. Compreender a problemática da “autonomia” da arte no século XVIII de sua consequente reverberação para as armadilhas conceituais da “arte” a partir de então e mesmo dos impasses envolvidos em sua institucionalização (DICKIE, 1997), teoria que, a despeito de articular-se a partir de uma outra visada conceitual, em que o “lugar” que abriga a arte enquanto instância de poder em uma cultura legitima e valida o objeto “como arte”, deve ser compreendida, assim o cremos, como “auxiliar” no processo de consagração de um objeto que se possa nomear “arte”, em que o lugar ocupado pelo objeto é nada senão um momento privilegiado de uma narrativa de cujo museu é emblema privilegiado. Assim, dentro do enquadramento teórico que aqui se persegue, a teoria institucional da arte representa tão apenas um “momento” dessa trajetória ontológica, que não apaga a contribuição kantiana, uma vez que o que se encena ali, diz respeito a uma “inflação” do sujeito que emite um juízo estético. As grandes turbulências a levarem-se em consideração para pensarmos que espécie de critérios, preceitos e fundamentos devem atravessar o pensamento crítico em torno da arte na contemporaneidade advém daquilo que Linda Nochlin define como “a posição do macho branco aceita como natural” (2021, p. 22), uma vez que o “sujeito” do juízo estético kantiano não é outro senão o sujeito cartesiano, cuja falaciosa “neutralidade” em verdade mascara sua múltipla marcação identitária de sexo, gênero, raça e classe social. O texto de Nochlin, assim como variadas contribuições anticoloniais e dos estudos de gênero, perturba a arquitetura simbólico-discursiva que garantia a todo o saber existente no Ocidente e às instituições a ele vinculadas sua soberania e superioridade. É a supremacia dessa ordem identitária que insiste em ignorar seus privilégios, que resulta na subalternidade e mesmo na total invisibilidade, silenciamento e apagamento de toda uma produção artística que tenha sido produzida por mulheres, pessoas racializadas e muitos dissidentes sexuais ou desobedientes de gênero. Não raros são aqueles teóricos ou agentes do Sistema das Artes que identificam na práxis curatorial o motivo da criticalidade que outrora se associava à crítica de arte. O contexto histórico atual tende a privilegiar sistemicamente o papel dos curadores e de suas relações com os campos da Teoria e da História da Arte, uma vez que muito daquilo que se apresenta, desde a década de 80 do século XX pelo menos, sob a alcunha de “ativismos curatoriais”, segundo Maura Reilly (2018), opera no sentido de emprestar visibilidade a esses corpos subalternizados por uma hierarquização identitária e é atravessado por uma abordagem crítico-analítica, cujos vínculos com a elaboração interpretativa, outrora associada à crítica de arte, é inegável. Além de todo o abalo às fundações dos campos da história, teoria e crítica da arte desencadeados pela ruptura com a ordem epistêmica assentada sobre a linearidade diacrônica e a circunscrição eucrônica 175


– rigorosamente atinente ao que se entende pelo contexto histórico determinado pelo período em que o objeto se produz-, das consequências que o que o desfazimento crítico da pretensa neutralidade do sujeito da filosofia ocidental terá sobre os campos da teoria e curadoria de arte em particular, o que se revela flagrante ao olhar crítico é a repercussão que as novas possibilidades ontológicas da arte terá sobre a necessidade do recurso à interdisciplinaridade. Caso se deseje uma crítica eficaz na atualidade, ou seja, capaz de lidar com as novas configurações de uma produção artística que se aparta radicalmente de tudo o que a tradição estabeleceu como modelo e paradigma, o crítico, ainda que não se desvencilhe por completo do legado teórico que marcou a história da arte ocidental, precisará, no intuito de tornar sua contribuição critica relevante, abrir-se para o caráter interdisciplinar de sua produção crítica. As demandas analítico-interpretativas apresentadas pelos objetos, fenômenos e manifestações artísticas contemporâneas reclamam a familiaridade com o que se poderia compreender como uma verdadeira “polilogia”, ou seja, uma capacidade para costurar e relacionar os mais diversos saberes ao conhecimento cultivado pelos campos da teoria e da história da arte e que historicamente forneceram o substrato analítico para o campo da crítica de arte. O enlace triádico entre obra, artista e intérprete (BAL, 1999) é, por excelência, varado pela indeterminação fértil que, em última instância, veda tanto a sentença conclusiva a encerrar a suposta “verdade” da “obra”, quanto supõe um posicionamento analítico que se deve pautar por uma “ética crítica”, no sentido de que, para fazer jus àquilo que a “obra” encerra morfológica e tematicamente, o falar com a obra (OSORIO, 2005) demanda do crítico que se a compreenda na sua pluralidade de vínculos de significação com o “mundo”. Pensamos então que, assim como na psicanálise há resistências constitutivas e estruturantes, propomos, em nossa aposta teórica, que a criticalidade possa ser pensada como o motivo capaz de atravessar os distintos momentos críticos da história da crítica de arte, mesmo aqueles que antecedem sua oficialização histórica no século XVIII e seu papel sistêmico determinante no período oitocentista. Adota-se então uma perspectiva transhistórica e interdisciplinar que, de resto, informa a integralidade desse texto, e que possamos apostar na criticalidade como um motivo a ser perseguido não apenas contra as resistências exógenas, encarnadas pela mobilização anticolonial e ativista, pela hostilidade ao pensamento crítico tout court, mas sobretudo que a criticalidade se a persiga -a despeito das-, e -por conta das- resistências endógenas da crítica de arte e de seus praticantes na complexa cena artística contemporânea, a saber, não apenas os críticos de arte stricto sensu mas todos aqueles que de alguma maneira integram a malha sistêmica da arte: curadores, artistas, professores, pois tanto a práxis curatorial, quanto a artística, assim como o ensino das artes visuais em todos os níveis da educação, devem ser marcados pelo exercício crítico, que compreenda o dissenso como elemento inalienável e necessário ao debate crítico desencadeado pelo juízo estético em Kant e toda a paisagem epistêmica do século XVIII, que, ao emitir o juízo sobre o “belo”, convoca o outro a pronunciar-se. Não nos parece ser outro o eixo estruturante de uma crítica ao campo de saber nomeado “Crítica de Arte”, senão este em que se imbricariam as razões que a legitimariam como exercício necessário às incessantes modulação e instabilidade semânticas, materiais e processuais impostas pela produção artística contemporânea e o enfrentamento do que este texto brevemente delineou como suas resistências, tanto à crítica de arte como, sobretudo, as resistências da crítica de arte- suas resistências autoimunes – a enfrentar os desafios analíticos e interpretativos apresentados pela práxis artística atual, em que a dimensão ontológica da arte (DANTO, 2021) reclama fragorosa que novas formulações críticas possam elaborar-se, sem que se confundam o prescritivo (como a arte deve ser), com a complexidade que a via aberta pelo juízo estético em Kant, em que o que se infla como questão é o ato mesmo de emitir juízos estéticos, em que a remissão nos conduz, como explicitamente se lê no texto kantiano, não ao objeto mas antes ao sujeito da linguagem (KANT, 1952, p. 476) e como ele se afeta por aquilo que reclama seu juízo.

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Referências BAL, Mieke. “Towards a relational inter-Temporality” In: WITTOCX, Eva (et al.). The transhistorical museum- mapping the field. Amsterdam, Leuven e Haarlem: Valiz, M-Museum e Frans Hals Museum, 2018. ______ (Editor) The practice of cultural analysis- exposing interdisciplinary interpretation. Stanford: Stanford University Press, 1999. DANTO, Arthur. O que é arte. Tradução e apresentação de Rachel Cecília de Oliveira e Debora Pazetto. Belo Horizonte: Relicário, 2021. DERRIDA, Jacques. Les résistances de la psychanalyse. Paris: Galilée, 1996. DICKIE, George. The art circle- a theory of art. Chicago: Chicago Spectrum Press,1997. DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante- histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002. KANT, Immanuel. The Critique of Judgement. Tradução para a língua inglesa de James Creed Meredith. Londres: Encyclopaedia Britannica, 1952. MARIN, Louis. Sublime Poussin. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Edusp, 2001. MENEZES, Ulpiano. “A exposição museológica e o conhecimento histórico” In: FIGUEIREDO, Bethânia Gonçalves & VIDAL, Diana Gonçalves (orgs.). Museus- dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. NOCHLIN, Linda. Why have there been no great women artists? Londres: Thames & Hudson, 2021. OSORIO, Luiz Camillo. Razões da Crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. REILLY, Maura. Curatorial activism – towards an ethics of curating. Londres: Thames & Hudson, 2018. VENTURI, Lionello. História da crítica de arte. Tradução de Rui Eduardo Santana Brito. Lisboa:70, 2013. WERLE, Marco Aurélio. A questão do fim da arte em Hegel. São Paulo: Hedra, 2011.

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O último retrato: recortes históricos e estéticos da fotografia mortuária The last portrait: historical and aesthetic fragments of mortuary photography Marina Muniz Mendes1 UFG - marinamunizmendes@gmail.com Samuel José Gilbert de Jesus2 UFG - samuel.dejesus@ufg.br

RESUMO: Apresenta como objeto central a fotografia mortuária a partir da intersecção entre morte, encenação e fotografia. Contextualiza historicamente e esteticamente circunstâncias que acompanham a iconografia de fotografias post mortem. Discorre sobre memórias, histórias e personagens - como chefes de estado, líderes religiosos, artistas e esportistas -, observando as representações convencionais de corpos cândidos ao passo que exibe o contraponto com a metamorfose. Identifica intimidade na tradição de retratos memoriais encenados, ampla aceitação social do gênero no decorrer do surgimento e desenvolvimento da fotografia. PALAVRAS-CHAVE: Encenar; Fotografia post mortem; Intimidade; Metamorfose; Morte. ABSTRACT: This article presents mortuary photography as the central object from the intersection between death, portrayal and photography. It historically and aesthetically contextualizes circumstances that accompany the iconography of post-mortem photographs. It examines memories, stories and characters - such as heads of state, religious leaders, artists and athletes -, observing the conventional representations of candid bodies while showing the counterpoint with metamorphosis. It identifies intimacy in the tradition of memorial portraits and wide social acceptance of the genre in the course of the emergence and development of photography. KEYWORDS: Portrayal; Post-mortem photography; Intimacy; Metamorphosis; Death.

1 Doutoranda em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e vinculada ao Núcleo de Investigação em História(s) da Arte. Mestra em Comunicação pela UFG. Especialista em Artes Visuais: Cultura e Criação pelo Senac. Graduada em Jornalismo pela UFG. 2 Professor na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. Coordenador do Núcleo de Investigação em História(s) da Arte. Pós-doutor em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Doutor em Études Cinématographiques et Audiovisuelles pela Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle com cotutela na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Artes Plásticas pela Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne.

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Adentra-se na interrelação de circunstâncias que acompanham o afloramento da iconografia de fotografias post mortem, no conjunto de situações que envolvem um olhar referenciado a um espaço cultural histórico. O contexto histórico e estético é consideração importante, avivando memórias, histórias, personagens, bem como o desenvolvimento temático e teórico referente às qualidades artísticas; características que permitem refletir sobre obras e eventos relacionados à fotografia mortuária. A tradição de retratos memoriais é anterior à invenção da fotografia/daguerreotipia. Famílias encomendavam pinturas post mortem de seus entes queridos, como objetos de memória. A popularização dos estúdios fotográficos tornou a prática mais acessível e, com isso, “as décadas de 1860 e 1870 representaram o auge do gênero da fotografia post-mortem” (MORD et al., 2018, p. 9). Em muitos casos, o retrato post mortem era a primeira, portanto, única também, fotografia de alguém; isso especialmente em relação a bebês, crianças ou até adultos que viviam em regiões rurais ou remotas. Além de, inevitavelmente, ser o último retrato. As fotografias eram mostradas a familiares que não podiam ir aos velórios, bem como uma recordação evocando lembranças de como o ente querido era. Não são fotografias para mero registro da morte de alguém. São fotos de despedida, uma ode à lembrança de quem está partindo, no seio familiar. Também diante disso, as tradicionais fotografias mortuárias assumem o aforismo cândido. Escondem o avesso, que é visualmente desconfortante. Rebobinando, mas ainda no recorte do século XIX, o retrato cresceu em frequência, na linha do tempo da fotografia, à medida em que os aparatos fotográficos foram se desenvolvendo. Retrato é utilizado popularmente também como sinônimo de fotografia, como nas expressões: bater um retrato ou tirar um retrato. Mas, antes mesmo da popularização dos retratos, o ante/post mortem já se fazia corrente na barra indicativa dos eventos na linha do tempo. Crianças, adultos – sozinhos ou acompanhados por outras pessoas em vida ou não – acidentes, guerras, tragédias, túmulos, luto e até animais foram e são temas recorrentes na fotografia mortuária. À época do surgimento do daguerreótipo também despontava a Era Vitoriana (1837-1901), que impulsionou a modernização da ciência e a marca do luto. Há uma intimidade, uma qualidade amorosa nessas fotos que não associamos às imagens de morte e, portanto, elas nos ‘chocam’. Os Vitorianos conheciam a morte muito mais profundamente e intimamente do que nós agora. A morte estava presente, uma realidade, não a abstração que é para nós hoje. Em vez de furtaremse disso, as pessoas daquela época reconheciam sua relação com a morte com beleza. Eles honraram seu amor pelo falecido por meio de pinturas, esculturas, joias, roupas e fotografia. (MORD et al., 2018, p. 6)

Há uma intimidade, nas fotografias post mortem desse período, sob três acepções denotativas: de vida doméstica, cotidiana; relação muito próxima, familiaridade; e ambiente onde se tem privacidade, tranquilidade, aconchego. Não sendo fotos da morte em si, mas de um cenário mais complexo, em que a morte é o elemento propulsor dessa manifestação das relações de intimidade; ou seja, tais fotos conotam, talvez com mais importância do que puramente a morte, sentimentos relativos à vida particular de uma pessoa falecida em um contexto, quase sempre, familiar e/ou de lar. Ainda assim, hoje, chocam, em decorrência de uma atualização do nosso olhar sobre a morte, a deslocando a um lugar em que tal intimidade passa a carregar, mais tipicamente, um sentido de atrevimento e provocação. É como se elas reivindicassem um novo tipo de intimidade, que agora não mais reside em uma aura amorosa, mas sim no domínio do Schockerlebnis e da fantasmagoria. São familiares e afrontosas. E quanto mais se revelam as marcas da metamorfose, menos familiares e mais afrontosas. Menos familiares por raramente a metamorfose circular tão veemente nos álbuns, ao mesmo tempo que adentra uma outra camada da vida particular de alguém, de seu corpo se transformando incontrolável e rapidamente. De qualquer forma, íntimo, o mais secreto, recôndito, afastado dos olhares. Já no primeiro sentido de familiar, trazem a êxtase do belo (da encenação) do descansar em paz. A beleza sob ponto de vista do termo grego helenístico, associada ao estar em sua hora, estar em seu momento; a palavra para bonito ou belo era ὡραῖος, hōraios, adjetivo oriundo de ὥρα, hōra, que significa hora. A beleza era associada a estar em sua hora, estar em seu momento. Assim, o corpo sem vida, quando respeita sua hora, pode ser considerado bonito, honra a completude do ciclo 179


da vida. Honra o momento da clara percepção da finitude. Dando nome à era, a própria rainha Victoria teve uma relação íntima com o luto. Com o falecimento de seu esposo, em 1861, ficou “mergulhada em um luto do qual ela nunca saiu (...) Ela ficou em reclusão, certificando-se de que o quarto de Albert fosse mantido como ele o havia deixado e dormindo com uma foto post-mortem dele acima de sua cabeça” (MORD et al., 2018, p. 143). Os trajes de luto que a acompanharam foram copiados por muitas viúvas. Período de desenvolvimento da classe média na Europa e em boa parte do globo, fundamental para a popularização dos retratos fotográficos, inclusive post mortem. E com isso, a prática foi ampliada para além dos fotógrafos profissionais, os equipamentos ficaram menores e de manuseio mais simples, a classe média tinha dinheiro para comprar câmeras e fotografar seus entes que estavam morrendo ou já falecidos. Como o Império Britânico se tornou a nação mais poderosa do mundo na época, a Era Vitoriana não ficou restrita ao país, mas teve reflexo em diversos outros cantos.

Contos do Brasil império Nascido no Rio de Janeiro, príncipe regente, coroado imperador aos 15 anos de idade e banido do Brasil em 1889, Dom Pedro II (1825-1891) faleceu no exílio. Recebeu funeral de chefe de Estado, contando ainda com vários chefes de Estado e notáveis artistas, cientistas, escritores e intelectuais. Logo, o corpo – falecido de pneumonia – do outrora imperador, vestindo trajes oficiais, seguiu para Lisboa para ser sepultado ao lado da esposa. Além de uma afamada biblioteca, deixou uma formidável coleção de fotografias com mais de 20 mil imagens de grandes mestres nacionais e estrangeiros, um supremo recorte da história da fotografia oitocentista brasileira; qualificado como o primeiro brasileiro a perceber, e desde muito jovem, que o advento da fotografia marcaria uma nova fase na história da humanidade (VASQUEZ, 2002, p. 37–38). Aquele que muito fez pelo desenvolvimento da fotografia no País também contou com fotografia póstuma. Félix Nadar (1820-1910), pseudônimo de Gaspard-Félix Tournachon, fotografou D. Pedro II, no leito de morte, em Paris (Fotografia 1)3.

Figura 1 - Felix Nadar (1820-1910). Reprodução da fotografia original por Pacheco & Filho. Pedro II, Imperador do Brasil: retrato. 1891. Cartão cabinet 11x17. Papel albuminado, p&b. oval 10x14. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional.

3 Disponível também em: < http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=34970>. Acesso em: 10 jul. 2021.

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A fotografia de Dom Pedro II é um cartão cabinet, uma variação do cartão-de-visita. Sobre o formato, Hannavy (2008, p. 1166) destaca que: “Na década de 1860, com o advento do papel albuminado e a invenção do popular carte-de-visite, múltiplas reproduções da fotografia post mortem tornaram-se possíveis. (...) e tendem a mostrar o sujeito ‘em paz’ com as mãos cruzadas sobre o corpo”. Devido aos avanços técnicos e barateamento na cópia do original, o retrato memorial de Pedro II circulou também no Brasil. Além disso, o cartão cabinet, de formato maior, eclipsou as estereografias – populares a partir de 1870 – por proporcionarem maior liberdade de poses, iluminação e plano de fundo para os retratos post mortem (HANNAVY, 2008, p. 1166). A imagem de Dom Pedro II em seu leito de morte, além de ser construída para não indicar dor, é repleta de simbolismos. O corpo jacente, trajando vestes imperiais, mantém a cabeça sustentada por um livro, símbolo de erudição, “Como que por acaso, por idéia do fotógrafo Nadar — que buscava um melhor ângulo —, um livro grosso foi colocado debaixo da cabeça do imperador, para mantê-la elevada: pela última vez, e dessa feita como uma feliz coincidência” (SCHWARCZ, 2020, p. 728). Apesar do acaso, na fotografia mortuária, “um livro fechado simbolizava uma vida fechada” (HANNAVY, 2008, p. 1166). O travesseiro está preenchido com terra de todas as províncias do Brasil, desejo grafado em um bilhete de próprio punho: “É terra de meu país; desejo que seja posta no meu caixão, se eu morrer fora de minha pátria” (SCHWARCZ, 2020, p. 729). À época, o correspondente do Jornal do Brasil, Joaquim Nabuco (1849-1910), escreveu: Elle preferiria ser enterrado entre nós e por certo que o tocante symbolismo de fazerem o seu corpo descansar no ataúde sobre uma camada de terra do Brasil interpreta o seu mais ardente desejo. Ao brilhante cortejo da Magdalena elle teria preferido o modesto acompanhamento dos mais obscuros de seus patrícios, e daria bem a presença de um dos primeiros exercitos do mundo em troca de alguns soldados e marinheiros que lhe recordassem as gloriosas campanhas nas quais o seu coração se enchera de todas as emoções nacionais. Mas foi sua sorte morrer longe da pátria, e é uma consolação para todos os Brazileiros que venerão o seu nome, vêr que elle, na sua posição de banido recebeu ainda da gloriosa Nação Franceza as supremas honras que ella pôde tributar. No dia de hoje o coração Brazileiro pulsa no peito da França4.

A predileção, ainda em vida, de um local para se pôr sob a terra perpassou as vontades do último monarca do Império do Brasil, como também rodeia a mente de muitos. Onde fixar as últimas raízes, repousar. É um terrar com prefixo que indica movimento para dentro, o enterrar. Dom Pedro II gostaria de ser colocar debaixo da terra, mas em solo brasileiro. Estando exilado no Velho Mundo não pôde ter sua vontade cumprida. De qualquer forma, os símbolos fizeram seu papel, a terra do Brasil o acompanhou no repouso eterno, no pós-vida. Foi posto a dormir e fotografado. Aqueles que morrem também já enterraram outros e carregam histórias sobre o momento do adeus. Pedro II foi informado sobre o falecimento de seu pai mais de dois meses após a parada das batidas do coração. O primeiro imperador do Brasil também foi representado em seu leito de morte5, pintado por José Joaquim Rodrigues Primavera. José Bonifácio (1763-1838) escreveu em carta: “Dom Pedro não morreu. Apenas homens ordinários morrem, heróis não”. E por falar em coração, o órgão foi colocado na Igreja de Nossa Senhora da Lapa em Porto, Portugal, conforme seu pedido. E coube ao próprio D. Pedro I (1798-1834), um dos mais célebres aforismos da história brasileira, proferido na tarde de 7 de setembro de 1822: “Viva a independência e a separação do Brasil. Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro promover a liberdade do Brasil. Independência ou Morte!”. A prática da representação memorial não é atrelada a temática cadavérica, mas de despedida e lembrança de pessoas queridas, como no relato de outra despedida, no episódio da morte da imperatriz Teresa Cristina:

4 Jornal do Brasil, 9 de dezembro de 1891. Disponível em: <http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_01&pagfis=1140>. Acesso em: 17 jul. 2021. 5 S.M.I. o Senhor D. Pedro, Duque de Bragança, em 24 de setembro de 1834. Gravura: litografia, p&b; 42x45 cm. Exemplar digitalizado, disponível no site da Biblioteca Nacional de Portugal em: <http://purl.pt/6854> Acesso em: 17 nov. 2020.

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Os joelhos envoltos num cobertor ordinário, trajando velho sobretudo, D. Pedro II lia sentado à mesa um grande livro, apoiando a cabeça na mão. Ao nos avistar, acenou para que nos aproximássemos. (...) Não aludiu uma única vez à Imperatriz. Só quando, ao cabo de meia hora, nos retirávamos, observou baixinho: - A câmara mortuária é aqui ao lado. Amanhã, às 8 horas, há missa de corpo presente. Saímos. No corredor verifiquei que o meu chapéu havia caído à entrada do aposento imperial. Voltei para apanhá-lo. Pela porta entreaberta depareou-se-me tocantíssima cena. Ocultando o rosto com as mãos magras e pálidas, o Imperador chorava. Por entre os dedos escorriam-lhe as lágrimas, deslizavam-lhe ao longo da barba nívea a caíam sobre as estrofes de Dante. Não me pude conter. Rompi também em choro convulsivo. Sua Majestade descobriu a fronte, envolveu-me num indizível olhar, a um tempo de desconforto e de reconhecimento, fazendo com a mão, molhada de pranto, sentido gesto de adeus. (CELSO, 2017, p. 307–309)

O trecho é uma revelação íntima de um esposo que perda a mulher e, que – em um primeiro momento para seu círculo próximo – tenta manter a feição forte, não tocar no assunto. Avisa pontualmente sobre a cerimônia fúnebre. Até, longe dos olhos de terceiros, sentir-se autorizado a extravasar a desolação e desabar em lágrimas. O desconforto de revelar os mais privados sentimentos com a perda de uma pessoa amada.

Personalidades saem de cena A prática de velórios públicos de chefes de estado, esportistas e artistas é recorrente na história mundial e brasileira. A última vez que se vê o corpo de personalidades ou o último adeus – mesmo sem conhecer pessoalmente quem falece ou conseguir chegar tão próximo do corpo – atraiu, e continua a levantar, uma multidão de pessoas e de flashes. “Vale notar que tamanha aceitação da morte como a imagem-notícia provavelmente não teria sido tão facilmente aceita pelo público se não fosse pela já ampla produção de fotografias post mortem para uso privado” (HANNAVY, 2008, p. 1166). No recorte de chefes de estado brasileiros, entre tantos exemplos, jacente, no caixão, também esteve o corpo do presidente que, com um tiro no coração, saiu “da vida para entrar para a história”. O Rio de Janeiro parou para acompanhar o velório de Getúlio Vargas (1882-1954), o presidente que por mais tempo governou o Brasil; ficando atrás apenas de Dom Pedro II. A fotografia post mortem mais conhecida de Vargas é da perícia criminal realizada em seu próprio quarto. Sobre esta fotografia, Mauricio Lissovsky confessa (2018): “o perito detalhou o buraco, queimado de pólvora, na camisa do pijama, bem ao lado do monograma bordado com as iniciais GV. Sempre me impressionou esse pequeno e último cuidado: não manchar, no ato de tirar a vida, o próprio nome”. Sobre o traje, o historiador compara: “pijama que já é em si mesmo uma fotografia, vestígio de um disparo instantâneo, e que por isso esteve muito tempo emoldurado junto ao leito de morte do presidente no Palácio do Catete, hoje Museu da República” (LISSOVSKY, 2018). De um tiro no coração a um na cabeça, no mesmo continente, mas no outro hemisfério, semelhante comoção pública ocorreu com o assassinado do presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (18091865). Em cortejo de trem, com uma imagem memorial à frente do veículo, o corpo foi de Washington até sua cidade natal. Perseguida por paparazzi não apenas em vida – uma revista publicou fotografias de Lady Di agonizando nas ferragens do automóvel – o enterro da princesa de Gales, Diana Spencer (1961-1997), foi acompanhado por milhares de pessoas nas ruas de Londres e por telespectadores do mundo inteiro, em tempo real, pela televisão. Mesmo sem eventos oficiais em Paris, a Praça d’Alma, que fica acima do túnel onde ocorreu o acidente, recebeu fotos, flores e mensagens e segue as recebendo nos aniversários de morte. Uma peregrinação à princesa filantropa. “Vere papa mortuus est”, após a confirmação que, de verdade, o papa morreu, milhões peregrinaram ao Vaticano e à Roma para despedir de um dos mais populares papas de todos os tempos, João Paulo (1920-2005). Houve um funeral de seis dias, seguido por nove de luto. Sua Missa do Réquiem, para o 182


repouso da alma, foi acompanhada por número recorde de chefes de estado em um funeral. Pela tradição, a permissão para as fotografias papais ocorre somente após o corpo estar vestido com os hábitos pontifícios. E assim foi visto e fotografado pela última vez, de posição estendida, com as mãos justapostas, como em oração, segurando um terço. Um corpo encenado na tradição da candura e entoado pelo “Libera me, Domine, de morte aeterna”, em coro pelo livramento da morte eterna. Com “la mano de Dios”, Diego Armando Maradona (1960-2020) marcou um dos gols mais memoráveis da história do futebol. O adeus do jogador também acumula relatos emblemáticos de contextos post mortem, que – por sua vez – reverberam em fotografias. Seu funeral gerou aglomerações e tumultuo em meio a um crítico período de disseminação da Covid-19. Conhecido como mito, El Diego, foi velado na Casa Rosada, sede do governo federal argentino, com honras de chefe de Estado. E um mito não pode ser tocado, ainda mais na vulnerabilidade do leito de morte. Assim, foram demitidos funcionários da funerária, que realizaram fotografia post mortem de Maradona, tocando a testa do herói nacional. A indignação com o ato foi geral. Dos campos para as pistas, outro herói nacional foi velado em caixão fechado e com honras de chefe de Estado. O cortejo do corpo de Ayrton Senna (1960-1994) foi acompanhado por milhões de pessoas pelas ruas de São Paulo, além de narrado ao vivo em tv aberta. O acidente, com o choque violento no muro de concreto, na pista italiana de Ímola também foi transmitido pela televisão, gerando uma ansiedade pela chegada da equipe médica e notícias. Horas depois, plantões telejornalísticos anunciaram o falecimento de Ayrton Senna do Brasil. Uma tragédia nacional. Dois anos depois, outra comoção nacional após um acidente com outro veículo. Pouco mais de um ano após o sucesso meteórico dos Mamonas Assassinas, todos os integrantes da banda e piloto faleceram em um acidente aéreo. O fotojornalista Fernando Cavalcanti fez suas fotografias mais famosas, dos corpos desmembrados, espalhados na mata e ao redor dos destroços do avião. Uma cobertura que mesclou jornalismo, entretenimento e morbidez (CAVALCANTI, 2018). O jornal para o qual o repórter trabalhava e no qual as fotos foram divulgadas bateu recorde de tiragem, aguçando a curiosidade dos leitores.

Considerações Os exemplos descritos não foram acompanhados de suas respectivas fotografias e, mesmo assim, o leitor reconhece as fotos referidas ou forma uma imagem/lembrança do momento ou dos fatos em sua memória. Momentos de despedidas atraem, muitas vezes, não só os familiares, mas geram uma comoção pública em que várias pessoas querem ver e estar presentes para prestar as últimas homenagens. Mesmo quem não pode estar fisicamente próximo anseia uma lembrança, uma lembrancinha de missa de sétimo dia, um pertence ou até um recorte de jornal. Além do luto de grande dimensão pública, outra aproximação com os exemplos anteriores é o peso das fotografias mortuárias no desenrolar dos fatos. A força da fotografia mortuária acompanha a sociedade brasileira desde o princípio da formação do País até os dias atuais. Mas, não só aqui, este fenômeno é visto em outros lugares também. Até porque algumas das mais importantes construções da humanidade são monumentos funerários, como a Grande Pirâmide de Gizé, abrigando o sarcófago do faraó Quéops, no Egito; o Taj Mahal, na Índia, construído em memória da esposa do imperador, sobre o túmulo; o mausoléu de Halicarnasso, a tumba construída, na atual Turquia, para Mausolo – este dando origem ao termo mausoléu, que passou a ser usado genericamente para tumbas suntuosas – por sua esposa Artemísia; a provável tumba de Ciro, O Grande, na primeira capital do Império Persa, Pasárgada. Cemitérios também não são locais apenas de repouso dos corpos, atraindo muito além dos amigos e familiares, convertendo-se em locais amplamente visitados e fotografados por milhões de turistas todos os anos, como o maior cemitério parisiense, Père-Lachaise; cemitério da Recoleta, em Buenos Aires; o Hollywood Forever, nos Estados Unidos; a londrina Abadia de Westminster, que apesar de não ser propriamente um cemitério, mas uma igreja, é visitada também por ter a tumba de cientistas, reis, rainhas, poetas; entre diversos outros mundo afora. 183


O corpo sem vida não provoca de todo estranhamento, exceto quando não há a encenação da candura e, consequentemente, a metamorfose se evidencia. Imbuída em contextos históricos e estéticos, a iconografia deste artigo é difusa, não estando centrada em um período específico, mas em diversos. O tríptico morte, metamorfose e fotografia está longe de ser característica exclusiva de um determinado período e contexto histórico. A contextualização estética da temática é abstrata do tempo, acrônica, não estando fadada unicamente a algum momento definido, mas sobrevivendo desde o nascer até, muito provavelmente, o morrer da fotografia; aliás, esta dá pistas de ser imortal. Portanto, o post mortem se manifesta desde o nascer da fotografia até a imortalidade fotográfica. É fora do tempo e permanece em todos os tempos.

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Referências CAVALCANTI, Fernando. Minha foto mais famosa é também a mais triste: os integrantes dos Mamonas mortos El País. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/02/ opinion/1520022044_686960.html>. Acesso em 14 jul. 2021. CELSO, Afonso. O Imperador no exílio. Patrimônio e memória, [s. l.], v. 13, n. 1, p. 307–309, 2017. HANNAVY, John. Encyclopedia of nineteenth-century photography. New York: Taylor & Francis Group, 2008. LISSOVSKY, Mauricio. A outra volta do obelisco: as fotografias em torno do suicídio de Getúlio Vargas. Revista Zum. 2018. Disponível em: <https://revistazum.com.br/radar/a-outra-volta-do-obelisco/>. Acesso em 14 jul. 2021. MORD, Jack et al. Beyond the Dark Veil: Post Mortem & Mourning Photography from the Thanatos Archive. 5th. ed. San Francisco: Last Gasp, 2018. NABUCO, Joaquim. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1891. Disponível em: <http://memoria.bn.br/ docreader/DocReader.aspx?bib=030015_01&pagfis=1140>. Acesso em: 10 jan. 2021. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 1a edição ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2020. VASQUEZ, Pedro Karp. A fotografia no Império. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

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Arte de rua e arte de ateliês em tempos da Covid-19: um estudo de caso no Rio de Janeiro Street art and atelier arte in times of Covid-19: a case study in Rio de Janeiro Mirian de Carvalho1 UFRJ - miriancarvalho323@gmail.com

RESUMO: A paisagem urbana transforma-se mediante determinações histórico-sociais. Em tempos de crise ocorrem mudanças na produção artística, imprimindo nova visão aos lugares da urbe. De junho de 2020 até julho de 2021, na vigência da COVID-19, analisei aspectos das artes de rua e de ateliê na ambiência do Largo do Machado e arredores, no Rio de Janeiro. No âmbito das referidas vertentes artísticas, enfoquei fatores relacionados à desigualdade social e a uma visão transformadora da paisagem, no plano conceitual e no plano da mimese. O cotejo dos dados conduziu-me a uma reflexão sobre os desafios que ora se posicionam diante da Crítica de Arte, numa sociedade de classes, segundo os princípios da crítica ontológica estudada por György Lukács. PALAVRAS-CHAVE: COVID-19; ontologia; arte de rua; arte de ateliê; mimese ABSTRACT: The urban landscape is transformed through historical-social determinations. In times of crisis, changes in artistic production occur, giving new vision to places in the city. From June 2020 to July 2021, under COVID-19, I analyzed aspects of street and studio arts in the environment of Largo do Machado and surroundings, in Rio de Janeiro. Within the scope of these artistic aspects, I focused related factors to the social inequality and to a transforming vision of the landscape, in the conceptual plane and in the mimesis plane. The collation of the data has led me to a reflection on the challenges that are now facing Art Criticism, in a class society, according to the principles of ontological criticism studied by György Lukács. KEYWORDS: COVID-19; ontology; street art; studio art; mimesis

1 Doutora em Filosofia pela UFRJ; professora aposentada da UFRJ; atualmente dedica-se à pesquisa nas áreas da Arte e da Literatura. Autora de 23 livros diversificados entre criação literária e pesquisas, nas seguintes áreas: poesia, crônica, dramaturgia, ensaio. Autora de artigos, releases, comunicações e prefácios publicados em mídias especializadas. Membro da ABCA, da AICA e do Pen Club. Em 2016 recebeu da ABCA o Prêmio Sérgio Milliet.

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Introdução Erguida a partir de um projeto urbanístico ou formatada pelo crescimento espontâneo, toda cidade circunscreve uma paisagem que se transforma em graus variados, de acordo com determinações histórico-sociais. Em tempos de crise, tais determinações interferem na ambiência de modo intenso e torna-se possível observar certas mudanças no trabalho artístico, imprimindo outra visão aos lugares da urbe, ou seja, aos bairros, às praças, às ruas e demais localidades. Assim, em minha pesquisa enfoquei a arte de rua e a arte de ateliê, na paisagem do Largo do Machado, Rio de Janeiro. O Largo do Machado localiza-se na confluência de três bairros da Zona Sul do Rio: Flamengo, Catete e Laranjeiras. É comum nesse largo ocorrerem manifestações políticas. Lá, de vez em quando, são encenados espetáculos infantis; no Carnaval desfilam blocos. É comum no local a presença de um violinista em frente a uma galeria, bem como a presença de alguma estátua viva, de um cantor e de algum artista performático, atuando nas redondezas. Aos sábados o movimento é mais intenso: uma feira livre ocupa uma das ruas laterais do largo e, com frequência, o espaço aloja feiras de roupas e bijuterias ou feiras de livros. Nas ruas que circundam o largo, encontram-se muitos camelôs vendendo vários tipos de objetos, e também livreiros instalando extensos mostruários, que transformam a paisagem, como se vê nas figuras 01 e 02:

Figuras 01 e 02: Alda Livros. Livros, 2021. Fonte: Mirian de Carvalho

Ao utilizar o termo “paisagem” não me refiro aos jardins do largo nem à vegetação das ruas. Neste escrito, a paisagem abrange a totalidade da ambiência, incluindo passantes indo às compras, junto ao vaivém de pessoas que ali trabalham, e ou residem, nos edifícios em frente ao largo ou nas redondezas. Fazem parte da paisagem moradores e trabalhadores de rua, tais como: sorveteiros, pipoqueiros, apontadores de jogo do bicho, camelôs, etc. Sob tal prisma, na paisagem incluem-se prédios, letreiros, cartazes, lixo, pássaros e outros animais; dela, fazem parte todas as espécies de sons próprios do lugar, cheiros de várias origens, texturas, cores, ruídos e o movimento dos veículos. Enfim, integra-se à paisagem tudo aquilo que se presentifica física e sensorialmente num dado espaço urbano. Após três messes de quarentena em virtude da COVID-19, tendo eu ido a uma farmácia, em junho de 2020, notei muitas transformações na paisagem habitual, o que me despertou de imediato para o início desta pesquisa. Então passei a visitar o Largo do Machado, três a quatro vezes por semana, até julho de 2021. Iniciada em 2020 a etapa de observação direta, de junho de 2020 a fevereiro de 2021, constatei diminuição do movimento de transeuntes, de veículos e de camelôs. A partir de março de 2021, esse movimento aumentou, e foi crescente o número de artistas de rua nas suas várias expressões musicais e visuais.

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Arte de rua Em minhas idas àquele largo, tirei fotos, gravei vídeos, realizei entrevistas, e constatei que alguns artistas tinham dia certo de trabalho no local. Aos sábados de manhã, o movimento é maior, o que se confirmou nos idos da primeira quinzena de setembro de 2021, quando este texto foi concluído. Nas manhãs de sábado, há também aumento do número de livreiros nos arredores, e uma bancada de antiquário instala-se em meio ao largo. Eis aqui dois momentos da arte de rua, registrados nas figuras 03 e 04:

Figuras 03 e 04: Matheus Artes. Azulejos, 2021. Cerâmica pintada, 15,0 x 15,0 cm. PUFF Tiradentes. Puffs, 2021. Courino, espuma e madeira, 34,0 x 34,0 x 34,0 cm. Figura 03, fonte: Instagram; figura 04, fonte: Mirian de Carvalho

Quanto à arte de rua, além do habitual quadro observado antes da crise, percebi − no campo das manifestações visuais − certa variedade de modos de expressão artística, a partir de março de 2021. Entrevistei vários artistas e adquiri alguns dos seus trabalhos. Na figura 03, numa calçada em frente ao Largo do Machado, podemos ver um conjunto de azulejos pintados com motivos diversos, entre eles mandalas, santos católicos, orixás e divindades orientais. A figura 04 reproduz uma foto tomada durante a montagem do conjunto de pufes coloridos, cujo empilhamento se modifica ao curso das vendas. Fotografei também dois artistas que expõem seriações de bambus de grande diâmetro − com desenhos vazados −, a serem usados como luminárias. Noutras fotos voltei-me para painéis de máscaras e bancadas de sacolas de pano pintado, algumas delas com inscrições de poesias. Tais montagens formam verdadeiras instalações incidentais e fortuitas, transformando a paisagem. E, no mesmo período, percebi aumento e diversificação das formas de expressão musical, com a presença de violonistas, flautistas e até conjuntos musicais não encontrados antes da pandemia. Da praça ao estúdio, analisei numerosos dados coletados, mas, pela brevidade deste texto, quanto à arte de ateliê, incluí somente o trabalho de Julie Brasil.

Arte de ateliê Filha de pai guatemalteco e mãe brasileira, Julie Brasil nasceu na Guatemala. Veio para o Brasil com dez anos. Na década de 1990 ela morou dois anos na Guatemala e, ao voltar, desde então, reside no Brasil. A artista graduou-se em Comunicação Social, estudou Pintura, é Doutora em Arte e Cultura e professora universitária. Em virtude da COVID-19, ela deixou o ateliê localizado no Largo do Machado e passou a trabalhar em casa, num bairro vizinho a esse largo. Eis aqui três imagens de trabalhos seus realizados durante a pandemia, conforme as figuras 05, 06 e 07:

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Figuras 05, 06 e 07: Julie Brasil (1965 - ). Atentado ao Pudor, 2021. Grafite sobre papel, 42,0 x 29,7 cm. Quitapenas, 2020. Bordados e boneca sobre lona, 20,0 x 12,0 cm. Fonte: Julie Brasil

Atentado ao pudor é um desenho em que Julie Brasil homenageia o artista Chico Fernandes, conhecido por suas intervenções urbanas e que, em março de 2021, despido, subiu numa estátua equestre na Praça XV, no Centro do Rio e, utilizando megafone, gritou palavras de ordem em favor da vacina para combater o Coronavírus. E foi detido pela polícia por atentado ao pudor. Em nossos tempos da COVID-19, o enfoque dado por Julie Brasil universaliza a intervenção de Chico Fernandes nesse ato performático que, apropriando-se de algum outro monumento, poderia ter ocorrido em qualquer outra praça, inclusive no Largo do Machado. A partir desse trabalho, evidencia-se que, hoje, o artista pode definir-se por qualquer técnica tradicional, redimensionando-a nos meandros das linguagens contemporâneas, como foi feito por Julie Brasil, incorporando à sua produção o desenho e o bordado. Diante de Atentado ao pudor, pode ser dito que, por meio de vários vieses, o desenho da artista mantém conexão com o trabalho de Chico Fernandes; de modo simbólico, ela igualmente realiza intervenção urbana e nos convida a participar e vivenciar aquele evento. Por ocasião de uma troca de trabalhos entre artistas durante a pandemia, Julie Brasil escolheu o bordado como trabalho caseiro, enfocando-o de modo artístico. Na série Quitapenas, a artista inseriu nos bordados as bonequinhas mágicas, de origem maia, a quem se pede proteção e amparo das divindades. Com uma flor na mão, essas duas Quitapenas – assim como as outras bonequinhas do conjunto – posicionam-se diante de uma arma e integram-se ao bordado em lona. No conjunto dos trabalhos, da catapulta à metralhadora, a artista enfoca diferentes armas usadas através dos tempos, numa alusão à violência urbana e ao armamento incentivado hoje pela legislação brasileira, que, a partir de 2019, vem facilitando a venda e a aquisição de armas de fogo. Vejamos, a seguir, dois desenhos de Julie Brasil, nas figuras 08 e 09:

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Figuras 08 e 09: Julie Brasil (1965 - ) Tapumes I e II, 2021. Carvão prensado e lápis branco sobre tapume, dimensões variáveis. Fonte: Julie Brasil.

Tapume I e Tapume II integram-se a uma série de desenhos agregados a suportes de madeira. Em virtude de uma obra de urgência na fachada do prédio onde reside, Julie Brasil teve as janelas do apartamento vedadas com tapumes de cor vermelha, durante três meses. Recolhida à casa por causa da pandemia, e isolada até do visual da rua, a artista desenhou sobre os referidos painéis e, dialogando com os veios, cortes e nós da madeira, estabeleceu diálogo com outras figurações, como, por exemplo, os cravos desenhados e os parafusos metálicos que sustentam as folhas de madeira. No Tapume I, o olho iluminado − próximo a outro sombrio − antropomorfiza a matéria. Na função simbólica, ambos sugerem modos de olhar e ser olhado. E o estar atento ao que nos ameaça nesses tempos de crise. Poeticamente, o olho iluminado vivencia o olhar-e-ver, animizando cada painel de madeira, antes utilizado como objeto utilitário, também causador de confinamento. No Tapume I, trazendo um ponto de luz nascente, o olho desperto e luminoso revela-se chamamento de alerta a todos os sentidos do visitante e o conduz entre o ver e o ser visto. De acordo com a poética bachelardiana, pode ser dito que as coisas que brilham veem; o olhar aceso enxerga o mundo. E o mundo o vê. E o mundo se faz espelho. E mais: esse olho tem valor de espelho; atrai o olhar do visitante à luz do dia e o posiciona diante do que ocorre ao redor de ambos, em alcance cósmico. Do mesmo modo, no Tapume II, no retrato que antropomorfiza a madeira, o olhar atravessa o limite do espaço geométrico, desconhece o tempo cronológico, e integra-se de corpo e alma à ambiência local e a outras paisagens. Ao entrevistar Julie Brasil, soube que, terminada a obra em seu apartamento, os trabalhadores pediram para levar para suas casas os Tapumes, a serem posicionados como objetos de arte, revelandose então uma transitividade da imagística da arte de ateliê ao gosto popular. Analisando a referida transitividade, acrescento intervenções urbanas e eventos performáticos realizados por Julie Brasil, antes da pandemia. Nesse viés estético, destaco o conjunto de trabalhos em apoio ao movimento LGBT e a outros similares. Trata-se de uma série de imagens − interligadas pela temática − espalhadas pela cidade, inclusive coladas em banheiros de bares e também em postes e paredes. Desse conjunto intitulado Amo quem eu quiser, segue-se a figura 10:

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Figura 10: Julie Brasil (1965 - ). Amo quem eu quiser, 2013-2021. Lambe-lambe, 100 x 160 cm. Fonte: Julie Brasil.

Numa referência ao que foi mencionado no parágrafo anterior, afirma-se nesta pesquisa a transitividade dos referenciais da arte de ateliê à arte de rua. E vice-versa. Nesse cotejo, torna-se nítida a relevância da produção artística de Julie Brasil, realizada durante a pandemia, e antes da pandemia, por sua frequente atuação nas ruas, em muitos trabalhos de intervenção urbana: alguns deles realizados em Nova York. Por outro lado, numa aproximação entre ambas as vertentes artísticas, registrei − no campo da arte de rua − objetos portando reproduções de autorretratos e de outros quadros de Frida Khalo, Van Gogh, Rembrandt, etc. Complementando o rol dessas peças, há outras que trazem estampado o retrato de Che Guevara, ou de Mandela, ou de Gandhi, ou de Chico Mendes, e de outras personalidades conhecidas em âmbito mundial. Alguns artistas de rua demostram certa afinidade com a arte consagrada historicamente e, também, com diferentes líderes revolucionários. Tal afinidade os leva a homenagear personalidades históricas e artísticas, trazidas à memória através de objetos utilitários, tais como: bandejas, jogos americanos, bolsas de pano, camisetas. No Largo do Machado, diante do enfoque dado à paisagem urbana por Julie Brasil e pelos artistas de rua – estes, com seu trabalho e sua própria presença −, faz-se nítida a leitura estética da ambiência em tempos da COVID-19. E, no conjunto dos trabalhos, a arte de Julie Brasil – sob o ângulo estético − adere à vida diante da ineficiência das políticas públicas, quanto ao tratamento dessa doença e quanto a problemáticas atuais relacionadas a outras crises. Em meio a esse panorama urbano, torna-se possível participar da vida da paisagem e vê-la como arte: como trabalho coletivo. Ao modo de Raul Seixas, diante dessa produção artística, torna-se possível ao fruidor optar pela “metamorfose ambulante”, ao permitir-se transformar a si mesmo e ocupar-se de questões no plano social. Lembro, ainda, que a cisão entre arte e artesanato − ou arte do povo e arte erudita – revela-se ótica burguesa atrelada ao mercado. Lembremos que a divisão surge com a Revolução Industrial e intensifica-se no neoliberalismo, o que nos leva a ratificar: “O mercado não permite que nenhuma outra atividade sobreviva fora dele” (PEDROSA, 1977, p 332). Mas há algo que percorre a arte de modo fundante. Seja na rua e ou no ateliê, o poético tangencia o conceitual e a mimese. Passemos a essas duas categorias.

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O conceitual na arte Posto que em conformidade com princípios do Conceitual, não o reduzo nesta abordagem ao movimento datado historicamente, como todos o conhecemos. Utilizo esse termo em alusão ao estrato ideativo advindo de qualquer trabalho artístico. Nesse sentido, cabe situar o conceitual nas várias expressões da arte de rua, em meio à vertente precária da economia informal, assinalando várias crises que ocasionam desemprego, subemprego, uberização, etc., contextualizando-se na estratificação social. E, do ponto de vista ideativo, situar o conceitual no trabalho de Julie Brasil, por meio de outra linguagem, apontando para hierarquias espaciais inscritas na paisagem. Qualquer paisagem sofre transformações; às vezes, quase imperceptíveis. Cada lugar revela variáveis a serem consideradas em suas causas. No Largo do Machado, a identificação de incursões estéticas inseridas na ambiência, ou alusivas a ela, indica a possibilidade de apreensão das diferenças inscritas nos espaços geográfico e social em meio à crise. Nessa produção artística que emerge durante a pandemia, ambos os vieses enfocados neste texto − e certamente outros não estudados por mim − podem levar o fruidor a relacionar a COVID-19 a uma sindemia, que indica outras crises, nos planos da economia e da política, abrangendo outros lugares. E o Estado. Ao vivenciar a paisagem, o fruidor e o pesquisador podem perceber e ressignificar o espaço, no plano geográfico e no plano ético, ao abordar a pandemia contextualizando-a no campo das relações de produção, como determinantes da precarização do trabalho, e também da pobreza e da miséria: situações em que se encontram muitos artistas de rua, em meio à violência urbana. No Rio, como agravante, deve ser considerada a existência das milícias, que atuam em outros bairros onde moram muitos artistas de rua. E, a esse panorama sindêmico, acrescente-se a truculência policial, ao que se pode dizer quanto ao próprio Largo do Machado: o guarda da esquina não é uma instalação, e cumpre à risca qualquer ordem recebida ou não. Ao redor desse largo passam e estacionam o carro importado e também o chamado “carro popular”, o burrinho sem rabo, e o carro velho remendado nas oficinas precárias, mostrando outras diferenças que refletem a estratificação rígida de uma sociedade de classes. Na mesma ambiência, circunscrevem-se espaços hierarquizados, onde a presença da arte de rua e o alcance do trabalho de Julie Brasil tornam visível e audível a voz dos que não têm voz. A produção artística de rua e a de ateliê trazem, respectivamente, a sonorização in loco e a empatia em apoio à referida sonorização. Como ressonância dessa paisagem, o trabalho artístico explicita diferenças de várias ordens atinentes ao espaço. O espaço acolhe e deflagra sentidos diversos. Por isso, a importância do estudo dos espaços da paisagem, através da arte, em tempos de crise − e em qualquer período −, fora dos parâmetros da estética normativa, bem como se torna relevante um estudo comparado da arte de rua e da arte de ateliê, sobretudo em tempos de crise. Os enfoques que se inscrevem no campo da Crítica de Arte podem abranger novos critérios e parâmetros estéticos e elucidar questões éticas, visto que, em qualquer trabalho artístico, inscrevem-se fragmentos pertinentes aos espaços sociais. Sob o enfoque deste estudo de caso em tempos do Coronavírus, anunciam-se, pela arte, sintomas de uma necropolítica. Por isso a importância da caracterização da arte e da crítica como fulcros de enfrentamento da morte. Na paisagem observada, a arte surge como resistência à morte, lembrandome os versos de Cecília Meireles no poema Reinvenção: “A vida só é possível reinventada.” Assim, a produção artística surge como reinvenção, em esquiva da ferocidade da morte que nos cerca. No campo das artes plásticas e visuais, o conceitual e a mimese correspondem ao não dito e às entrelinhas na poesia. Passemos à noção de mimese.

A mimese Junto ao conceitual no plano ideativo repercutindo na linguagem, deve ser ressaltado o alcance da mimese, não como discurso político ou reprodução do real, mas do ponto de vista estético, tal como 192


essa categoria − a mimese − foi pensada por György Lukács. Relendo o filósofo, encontrei questões a serem estudadas e desenvolvidas na contemporaneidade, sobretudo articulando arte e crítica no plano ontológico. Sob esse ângulo, a arte pode ser pensada no curso do tempo histórico, num diálogo e num tangenciamento dos espaços poéticos e sociais. Em conformidade com os dados analisados, percebome diante de desafios e me pergunto: Como posso atuar no campo da Crítica de Arte? Em meu trabalho torna-se então relevante identificar na arte as modulações conceituais e miméticas, com vistas à práxis emancipatória. Ao enfocar a literatura e a arte, Lukács situa a mimese como fragmento simbólico do real referido na instância estética. Nas artes plásticas e visuais, a mimese abrange, entre outras, as circunscrições do espaço. Ao situar no trabalho artístico questões humanas pertinentes à coletividade, a instância mimética inscreve-se no particular vivenciado pelo fruidor. Em tempos da COVID-19, a mimese aponta para a simbologia do humano diante da morte e de suas metáforas atreladas a decisões do poder estatal e das políticas públicas. Entanto, acentue-se, a mimese tem dimensão estética, e não se posiciona como propaganda política nem discurso panfletário. Valorizando a tessitura do singular em relação ao real, inter-relacionam-se determinações intrínsecas e extrínsecas à arte. Ao entrecruzamento dessas duas instâncias, clarifica-se uma ontologia em que o trabalho artístico revela-se, sensorial e ideativamente, inscrito no mundo. Nessa linha de pensamento, pode ser dito que, sob o ângulo ontológico, a arte subsome desdobramentos da mimese entendida como meio de apreensão do real e fonte de sentidos abertos à alteridade, com alcance histórico. Ao considerar a relevância do diálogo entre os aspectos libertários da produção artística e os da Crítica de Arte, teci reflexões sobre a arte como tarefa do ser social, ou seja, como trabalho criativo, lúdico, livre e libertário, que pode gerar “novos fatos ontológicos” (LUKÁCS, 2018, p. 27), conforme interpretação de tópicos fundamentais tratados por esse filósofo. Nessa abordagem, o artista e o fruidor não se definem pelo nível biológico do existir, visto que o ser social, além de fazer escolhas, pode tomar decisões, identificar e superar contradições existentes na paisagem do mundo.

Desafios da Crítica de Arte em tempos de crise Diante do exposto, os desafios da Crítica em tempos de crise suscitam várias perguntas, algumas nem tão novas: Arte? Artesanato? Por que a separação hegemônica? Existirá um padrão único de excelência na arte? Será que os modelos de gosto são arianos e pertencem à classe social atuante na bolsa de valores? Será que só é arte aquele conjunto de peças e eventos consagrados pelo mercado e pelas chamadas “elites” consumidoras, sendo o mais artesanato ou breguice? Não haverá, na perspectiva contemporânea, uma arte coletiva desenhando a urbe, e sinalizando outras crises além da pandêmica? O que me impede de reconhecer e conhecer uma arte incidental e ou coletiva transformando a paisagem? O que me impede de ver a paisagem como arte? Ao visitar a paisagem do Largo do Machado em tempos da COVID-19, temos como desafio pensar o coletivo, o estranho, o incidental, no encalço da vida. Uma crítica ontológica − uma crítica que se volte para o real como totalidade a ser analisada − articula a produção artística à paisagem e, ambas, à instância ética, ao considerar os efeitos do modo de produção sobre os indivíduos e a coletividade. Sob esse ângulo, que se que faz método, tal crítica analisa determinações da estratificação social e seus efeitos na distribuição de renda. Sob esse ângulo, a crítica ontológica abrange a produção artística quanto às hierarquias advindas dos valores de troca e de uso, visto que o valor estético nada tem a ver com o valor de mercado. Por isso, volto à citação que se faz corolário da crítica ontológica: “O mercado não permite que nenhuma outra atividade sobreviva fora dele” (PEDROSA, 1977, p 332). Nessa pandemia a morte ronda a paisagem urbana. Mas a arte é persistente. Por vezes, desafiadora. E faz brotar o humano na paisagem. E sobrevive ao réquiem, tal nos falam os versos finais em Morte e Vida Severina: “[...] E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida: / [...] mesmo quando é uma explosão / como a de há pouco, franzina; / mesmo quando é a explosão / de uma vida severina.” 193


Neste momento, a arte se faz resistência à morte. Espetáculo de rua. Janela de ateliê. E explosão da vida. À maneira do não dito na poesia, o conceitual − na rua ou no ateliê − abrange a paisagem e, pés no chão, a mimese caminha para explodir viva. Explodir de si mesma, viva, e em cada um dos humanos. Livre. E assim a arte eclode para fundar, na paisagem do Largo do Machado, uma nova paisagem do mundo. Entre os seres viventes, em carne e símbolo, um Exu e um São Jorge de azulejo, os bambus pintados, a bonequinha maia, o megafone, o olho; todos − vivenciando uma antropomorfização − habitam essa paisagem e nos chamam pelo nome. Em nome da vida.

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Referências LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer, Nélio Schneider. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2018. PEDROSA, Mário. PEDROSA, Mário. Paulistas e cariocas. Projeto construtivo brasileiro na arte. Org. Ana Maria M. Belluzo e Aracy Amaral. 1 Ed. São Paulo: Funarte/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1977.

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Crítica de arte diante das crises atuais: muitas incertezas e uma certeza Art criticism in the face of current crises: many uncertainties and onde certainty Sandra Makowiecky1 UDESC - sandra.makowiecky@gmail.com

RESUMO: Em momentos de tantas guerras, confrontos, contestações e pandemia, creio que a arte pode exercer outro papel para além de insistir na arte da contestação. Conquanto hoje certas imagens possam ser válidas como protesto, é muito raro que também o sejam como arte. A obra teria que trazer, com sua forma, uma contribuição que ampliasse nossa consciência também em termos de sensibilidade. Deseja-se lembrar questões particulares às práxis crítica e artística, questões centrais que gostaríamos de colocar em debate, como uma certeza em meio às incertezas. Partindo do texto Paixões mitológicas, de Mario Vargas Llosa, sobre a exposição homônima no Museu do Prado, publicado em 2021, me veio a certeza de reafirmar o que há mais tempo me incita. PALAVRAS-CHAVE: Ticiano e as obras da série chamada poesias; Critica de arte – incertezas e uma certeza; Obra de arte e ampliação de consciência; temas clássicos. ABSTRACT: In moments of so many wars, confrontations, contests and pandemics, I believe that art can play another role in addition to insisting on the art of contestation. Although today certain images can be valid as protests, it is very rare that they are also valid as art. The work would have to bring, with its form, a contribution that would expand our awareness also in terms of sensitivity. It is intended to recall issues that are particular to critical and artistic praxis, central issues that we would like to discuss, as a certainty in the midst of uncertainties. Based on Mario Vargas Llosa’s text Mythological passions, about the homonymous exhibition at the Prado Museum, published in 2021, I was sure to reaffirm what had been urging me for the longest time. KEYWORDS: Titian and the works of the series called poetry; Art criticism – uncertainties and a certainty; Artwork and consciousness-raising; classic themes.

1 Professora de Estética e História da Arte do Centro de Artes da UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis – Santa Catarina – Brasil e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, na linha de Teoria e História da Arte. É membro da Associação Internacional de Críticos de Arte - Seção Brasil Aica UNESCO. Membro do Comitê Brasileiro de História da arte. Associada da ANPAP.

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Introdução Praticamente todos os eventos da área da arte nos anos de 2020 e 2021 sentem a necessidade de falar sobre a experiência da pandemia e das crises em que vivemos. Partindo do texto Paixões mitológicas, de Mario Vargas Llosa (1936), sobre a exposição homônima no Museu do Prado, publicado em 2021, me veio a certeza de reafirmar o que há mais tempo me incita. Uma frase do escritor foi o chamariz: “Não somos mais a mesma pessoa quando saímos de uma exposição como esta” (LLOSA, 2021, np). A mencionada exposição reuniu pela primeira vez desde o século XVI, as seis pinturas mitológicas conhecidas como “poesias”, inspiradas na poesia clássica grega, sobretudo no poema narrativo épico do século I, Metamorfoses, de Ovídio (início do primeiro século D.C.), realizadas por Ticiano entre 1551 e 1562, por encomenda do rei Felipe II (1527-1598). Ticiano realizou suas interpretações vívidas e profundamente emotivas da mitologia através da poesia de Ovídio, que abrange uma ampla gama de temas e estados emocionais. Qual a certeza que me assalta ao ler os trechos como os que Vargas Llosa extraordinariamente escreve sobre a exposição e as obras?

Sobre a exposição e sobre o artista De 2 de março a 4 de julho de 2021, o Museu do Prado acolheu uma exposição que reuniu, pela primeira vez desde o século XVI, as seis pinturas mitológicas inspiradas na poesia clássica grega, realizadas por Ticiano. Conhecidas como as “poesias”, estas obras incluem os quadros Dánae, Vénus e Adônis, Perseu e Andrómeda, Diana e Acteón, Diana e Calisto e O rapto de Europa. Ticiano chamava as pinturas de poesias porque se baseavam na poesia clássica, de onde emergiam seus temas e as imaginava como poemas visuais. Todas as obras têm como tema central a paixão e o amor, e estavam destinadas aos aposentos privados do monarca. O Renascimento foi uma época de descobertas que valorizava a racionalidade e a investigação intelectual além da doutrina religiosa tradicional. A atenção renovada que trouxe ao indivíduo também despertou interesse em vidas interiores. Ticiano (c. 1477 a 1576) estava particularmente sintonizado com isso, ligando nossa sensação corporal de estar vivo às paixões que nos impulsionam. Cheio de vitalidade e humor, mas também de violência e trauma, a série Poesias está entre suas realizações supremas. O acordo entre patrono e artista deu a Ticiano a liberdade de escolher e interpretar os assuntos das pinturas como quisesse. Esses trabalhos investidos no conhecimento e na experiência adquiridos durante sua vida, motivaram gerações de artistas e ajudaram a definir nossa compreensão moderna da pintura como autoexpressão. Poesias faziam parte de um arranjo notavelmente aberto entre pintor e patrono, abrangendo uma grande série de pinturas, tanto religiosas quanto seculares. Ticiano recebeu liberdade sem precedentes para escolher o que pintar e como, tal era a confiança de Felipe II nele. Ticiano as pintou com empatia, em busca de histórias convincentes e verdade emocional. Por meio de suas pinceladas variadas e dramáticas, Ticiano apelava diretamente aos nossos sentidos, permitindo comédia e tragédia, e levantando questões de amor, desejo e criatividade; poder, violência e morte (WIVEL, 2020). Também teve certa influência de Os Amores de Júpiter de Correggio (1489 – 1534). A encomenda tardou vários anos em completar-se, e pensa-se que o conjunto das obras decorou as paredes do palácio de Aranjuez. As seis obras que Ticiano pintou e chamou de “poesias” hoje se encontram em vários locais, na Wellington e a Wallace Coleções, de Londres, no Museu do Prado em Madri e nas Galerias Escocesas de Edimburgo, na National Gallery de Londres e no Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston, que em colaboração, tornaram a exposição possível. Nascido em Pieve di Cadore (Itália) em 1477, Ticiano foi um pintor italiano do Renascimento, considerado um dos maiores expoentes da escola veneziana. O seu estilo caracteriza-se pelo emprego de cores vivas e luminosas, e por uma pincelada enérgica e livre. O pintor dominou como ninguém as composições assimétricas e sem uma hierarquia definida, e destacou-se pela sua polivalência ao abordar diversos estilos, como o retrato, a paisagem, o retábulo, a pintura histórica, cenas bíblicas, alegorias, 197


cenas da mitologia e o naturalismo. A qualidade da sua obra levou-o a ser nomeado pintor oficial da República de Veneza, e mais tarde “pintor principal” da coroa espanhola. A igreja católica também contratou os seus serviços para expandir a sua ideologia através da iconografia, convertendo-se num dos maiores baluartes da Contrarreforma. Ticiano trabalhou até ao fim dos seus dias, e faleceu vítima da peste negra em Veneza, no ano 1576.

Paixões mitológicas Em 8 de abril 2021, Mario Vargas Llosa escreveu um artigo que foi publicado no jornal O Estadão , denominado “Paixões Mitológicas”. Vou reproduzir parte do texto. Conta que Ticiano, que nunca esteve na Espanha, conheceu Felipe II em Milão no final de 1548, quando este ainda era um príncipe. Ele tinha trabalhado para Carlos V, pais de Felipe, que o encarregou de pinturas religiosas, algo a que Ticiano era também adepto, mas seu enorme prestígio entre os nobres vinha sobretudo dos seus quadros eróticos, aos quais costumava dar um título mitológico para salvar as aparências. Isto porque a Igreja, muito suscetível neste aspecto, respeitava rigorosamente as imagens supostamente validadas pela mitologia e, especialmente, quando o pintor dizia ter se inspirado na Metamorfoses, de Ovídio, obra muito lida e reverenciada naquela época. Felipe II encomendou a Ticiano (ou foi ele quem propôs e o monarca aceitou) seis obras mitológicas, que ele chamou de “poesias”, exatamente porque baseadas na mitologia clássica, e que ele foi enviando para a Espanha ao longo de uma década, entre 1552 e 1562. De acordo com o crítico inglês Peter Humphrey, as telas que Ticiano chamou de “poesias” constituem “um dos conjuntos de quadros mais célebres e de maior influência na história da pintura ocidental” (LLOSA, 2021, np). Por diversas razões, esse grupo de pinturas concebidas como um todo orgânico, conforme explicação do pintor em uma das suas remessas, e que deviam ser vistas sempre juntas, foram se espalhando no decorrer dos anos, mudando de proprietários, residências e museus e não se tem certeza que o próprio Felipe II as tenha visto alguma vez reunidas. O que se sabe com certeza é que as damas da nobreza costumavam passar rapidamente diante delas, pois estavam cobertas para não as deixar ruborizadas.

Sobre as obras da série “Poesias” na sua presumida sequência cronológica, segundo Matthias Wiwel ( 2020).

Figura 1 - Ticiano. (c. 1477 a 1576). Danaë, c.1551–1553, oil on canvas, 1.2 x 1.9 m. Courtesy: © Stratfield Saye Preservation Trust. Fonte: https://www.frieze.com/article/gender-and-power-titians-greatest-paintings

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1. Danaë. Na figura 1, apresentamos Danaë que é a filha de Acrisius, rei de Argos. Quando um oráculo diz a Acrisius que Danaë dará à luz um filho que o matará, ele a aprisiona. Atraída por Danaë, Júpiter, rei dos deuses do Olimpo, entra em seu quarto disfarçado de chuva de ouro e a engravida. Danaë dá à luz um filho, Perseu, e Acrisius tranca mãe e filho em um baú, jogando-os no oceano. Depois de resgatados, são capturados por Polydectes, rei de Serifos, uma ilha no mar Egeu. Perseu cresce em sua corte e acaba cumprindo a profecia do oráculo durante uma competição esportiva quando, guiado pelos deuses, um disco sopra de suas mãos e mata Acrisius. Ticiano provavelmente conhecia a história de suas muitas interpretações. Na pintura, uma leve tensão percorre o corpo de Danaë enquanto ela recebe o banho de ouro. Ela olha para cima, os lábios entreabertos, segurando frouxamente um lenço em expectativa. Uma mecha de seu cabelo ruivo trançado acaricia seu ombro esquerdo. Este é o momento da concepção de Perseu. Enquanto apela ao desejo do espectador, Ticiano investe Danaë com autossuficiência despreocupada. A velhinha inclinada para pegar as gotas douradas fornece um contraste pungente – da idade, da intenção e da fertilidade. Ticiano pinta sua carne de maneira muito diferente da de Danaë. 2. Vênus e Adônis (Figura 2). Adônis nasceu da relação incestuosa de sua mãe Mirra e seu pai, rei Cinyras, de Chipre. Envergonhada com essa transgressão, Myrrha é transformada em uma árvore de madeira. Adônis nasceu da casca de seu tronco e foi criado por Prosérpina, rainha do submundo. Ele se torna um jovem de excepcional beleza e Vênus, deusa do amor, apaixona-se por ele. Vênus deixa sua casa no Monte Olimpo para caçar com Adônis. Preocupada com sua segurança, ela o adverte para nunca perseguir bestas perigosas, mas ele ignora esse conselho e é morto por um javali. Chegando em sua carruagem voadora, Vênus encontra Adônis sangrando até a morte e chora por ele, fazendo com que anêmonas vermelhas cresçam de seu sangue. Ticiano baseou sua interpretação em grande parte nas Metamorfoses de Ovídio. Ele pode ter trazido o motivo dos amantes que se separavam ao amanhecer, ausente do original de Ovídio, de uma tradução contemporânea para o italiano. A composição depende de um momento de hesitação, abrangendo passado, presente e futuro. O amanhecer está começando. A nudez de Vênus, a desordem de suas roupas e o jarro derrubado sugerem uma noite de amor. Cupido, filho de Vênus e símbolo do amor, agora está dormindo. Adônis está saindo para a caçada, seus cães de caça no chão. Adônis avança quando Vênus se vira. Suas costas são meticulosamente rendidas, transmitindo seus músculos flexionados. Ela implora ao seu amante mais jovem, ciente do perigo.

Figura 2 - Ticiano. (c. 1477 a 1576). Vênus e Adônis, 1553-1554. Óleo sobre tela. Dimensões; 186 x 207 cm. Fonte da imagem: Museo Nacional del Prado, Madrid. Fonte: https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-work/venusand-adonis/bc9c1e08-2dd7-44d5-b926-71cd3e5c3adb

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Ele devolve seu olhar sem entender, mas hesita. Ticiano evoca o abatimento da paixão na manhã seguinte, enquanto transmite, em um nível mais profundo, nossa impotência para proteger aqueles que amamos. No céu, vemos um ponto posterior na história: Vênus chega em sua carruagem puxada por pombas, brilhando uma luz no chão onde Adônis encontrará sua morte. 3. Perseu e Andrômeda. Em Perseu e Andrômeda (Figura 3), a mãe de Andrômeda, a rainha etíope Cassiopeia, se orgulha de que ela e sua filha são mais bonitas que as ninfas do mar, as Nereidas. Netuno, deus do mar, se ofende. Andrômeda é acorrentada a uma rocha como sacrifício para apaziguar Ceto, o monstro enviado por Netuno para punir Cassiopeia e seu povo por sua arrogância.

Figura 3 - Ticiano (c. 1477 a 1576). Perseu e Andrômeda. 1554-1556. Óleo sobre tela. Dimensões: 175 × 189.5 cm. The Wallace Collection, London. Fonte: The National Gallery, London.

Perseu, filho de Danaë e Júpiter, voa com suas sandálias aladas no caminho de volta, após matar a górgona Medusa, de cabelos de cobra. Ele se apaixona por Andrômeda e decide ajudar, mas não antes de garantir a mão dela em casamento com os pais. Perseu mata o monstro e, quando os espectadores aplaudem, ele abaixa o escudo para lavar as mãos ensanguentadas na água do mar. Montada em seu escudo está a cabeça de Medusa, que tem a capacidade de transformar coisas vivas em pedra. As algas marinhas na praia ficam duras, criando corais. Ticiano mostra o momento dramático em que Perseu mergulha no mar para matar o monstro Ceto. Suas pinceladas expressivas trazem à vida a água agitada e a fera, mas o foco está na figura acorrentada de Andrômeda, esticada contra a rocha escura. Sua pele pálida e pose de balé oferecem um contraste com a figura assertiva do herói. Seu olhar de angústia busca a empatia do espectador, temperando o erotismo manifesto da imagem. 4. Diana e Callisto – A composição denominada Diana e Calisto (Figura 4) retrata o momento em que a gravidez da ninfa Calisto é revelada à deusa Diana. A pintura mostra a ninfa Calisto sendo obrigada por suas companheiras, a tomar banho diante de Diana, para que essa tome conhecimento de sua gravidez.

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Figura 4 - Ticiano (c. 1477 a 1576). Diana e Calisto. Óleo sobre tela. c.1556-1559. Dimensões: 187 x 204,5 cm. Localização: National Gallery of Scotland, Escócia, Grã-Bretanha. Fonte: http://www.nationalgallery.org.uk/paintings/titian-dianaand-callisto

A deusa encontra-se inclinada para frente, sendo apoiada por uma participante de seu séquito. Traz uma coroa de pérolas na cabeça. Com a mão esquerda, recosta-se na mulher e com a direita acusa a ninfa por ter perdido sua virgindade. Ao voltar-se para o grupo, onde se encontra Calisto, seu rosto de perfil fica na sombra. Ela é maior do que as demais personagens, o que a identifica como principal. A composição divide-se em dois grupos separados por um chafariz, que traz um pequeno cupido segurando um vaso com água, de onde desce água. Calisto encontra-se no chão, segurada por três ninfas, sendo que uma delas, mais escondida, contém seu pé direito. Uma ninfa, de pé, à esquerda, levanta o manto da vítima, para mostrar a Diana a sua volumosa barriga, desmascarando-a. A ninfa, que segura a maior parte de seu corpo, vira-se para a deusa com certo prazer estampado no rosto, esperando o julgamento da companheira grávida. O séquito de Diana é composto por dez figuras e dois cães de caça. A mulher, vestida de azul, carrega uma aljava na cintura e um arco na mão direita. Outra aljava aparece na cintura da figura de rosa, que ampara Diana. A ninfa, que se encontra de costas para o observador, segura uma flecha com a mão 201


esquerda, enquanto ampara-se numa aljava e num arco no chão. Conta o mito que a ninfa Calisto havia jurado amor eterno à deusa Diana, mas Júpiter sentiuse seduzido por sua beleza. Para aproximar-se dela, o deus dos deuses tomou a forma da deusa que ela venerava, possuiu-a e engravidou-a. Mesmo tendo ela sido violentada por Júpiter, através de sua capacidade de metamorfosear-se, Diana não aceitou o acontecido, expulsando-a de seu séquito. Ela foi depois transformada por Juno (esposa de Júpiter) numa ursa, sendo quase morta por seu filho, e elevada até às estrelas por Júpiter, compadecido com seu sofrimento. 5. Diana e Actaeon - Na figura 5, descreve-se que após uma bem-sucedida caçada matinal, Actaeon decide deixar seus companheiros e explorar um vale isolado. Entrando em uma floresta densa, ele se depara com a deusa da caça, Diana, e suas ninfas tomando banho na primavera. Ele, inconscientemente, testemunha a nudez delas. Enfurecida, Diana o transforma em veado, tornando-o incapaz de falar para que ele não possa divulgar o que viu. Actaeon foge e só percebe sua transformação quando vê seu reflexo em uma fonte. Ticiano segue o relato de Ovídio sobre a história nas Metamorfoses, mas introduz uma gama mais ampla de reações entre as ninfas. Aqui, o artista expande seu escopo para incluir vários nus vistos de várias perspectivas. A maioria das ninfas é típica, mas a mulher de pele escura parece basear-se em uma pessoa real, provavelmente uma modelo.

Figura 5. Ticiano (c. 1477 a 1576). Diana e Actaeon. 1556- 1559. Óleo sobre tela. 1,85 m x 2,02 m. Fonte: The National Gallery, London.

A imagem nos lembra as implicações de ver e ser visto. Enquanto Diana o observa, Actaeon, jovem e inocente, percebe tarde demais que viu algo que não deveria. As ninfas respondem de várias maneiras – de choque e surpresa ao fascínio – enquanto um cãozinho late comicamente para os cães de Actaeon. O crânio de um veado prenuncia seu destino e, no fundo, uma figura, presumivelmente Diana, caça um cervo – talvez Actaeon em seu estado transformado. 6. O rapto de Europa. (Figura 6). Júpiter, rei dos deuses do Olimpo, fica impressionado com a paixão pela princesa fenícia Europa. Ele ordena que Mercúrio, o deus mensageiro, leve o gado do pai Agenor para a praia onde Europa e suas amigas estão relaxando. Ele se disfarça de um touro branco como a neve, que fascina tanto as garotas que elas se reúnem em volta, acariciam-no e o coroam com flores. Europa sobe nas costas do touro e de repente parte para o mar. Júpiter a leva para Creta, onde a estupra. Europa é retratada em toda a sua presença carnal. Ela se debate desajeitadamente, como se estivesse prestes a cair na parte de trás do touro, que olha para o espectador com uma inocência fingida 202


que, em última análise, sugere indiferença alienada. Cupidos brincam no ar. Um entusiasta monta um golfinho enquanto um peixe pontudo e sinistro nada sob os pés de Europa.

Figura 6 - Ticiano (c. 1477 a 1576). O rapto de Europa.c.1560–1562. Óleo sobre tela. Dimensões: 205 x 178 cm. Isabella Stewart Gardner Museum, Boston. Fonte: Isabella Stewart Gardner Museum, Boston.

O efeito é simultaneamente cômico e assustador. A agitação de olhos arregalados de Europa paira em algum lugar entre êxtase e horror, seu véu vermelho ondulado uma exclamação de paixão. Os limites e as repentinas mudanças de poder inerentes ao desejo e ao sexo são combinados pela dissolução atmosférica. As montanhas embaçam em uma névoa, a umidade quente paira no ar, uma roupa rasteja através das águas misteriosamente calmas. Ticiano enviou a pintura a Felipe em Madri, na primavera de 1562, concluindo sua série de Poesias.

O que essas obras nos dizem, na visão de Mario Vargas Llosa Mario Vargas Llosa ( 2021), nos diz que todas estas pinturas são extraordinárias, algo que não costuma se verificar nas melhores exposições. Elas expõem as limitações da realidade na qual nos locomovemos como num cárcere em que não podemos nunca expressar de maneira plena as nossas expectativas de viver mais e melhor, realizar todos os nossos desejos, e daquilo que chamamos de cultura, arte, civilização. Além da liberdade com que foram concebidos, esses quadros radiografam a comunidade da cultura europeia e ocidental, explicam a insignificância das fronteiras que separam seus homens e mulheres quando acreditam e fantasiam, mostram que constituímos uma única sociedade múltipla e versátil, unida por um denominador comum quando revelamos nossa intimidade (ou estamos contra todas elas) porque na hora de sonhar e desejar somos todos os mesmos. Quando caminhamos em meio a esses quadros, como parecem insignificantes o desespero com que certas minorias se empenham em exagerar suas diferenças, como se elas, que naturalmente existem, fossem o bastante fortes para destruir a solidez de uma cultura que tem suas raízes numa unidade mais profunda e visceral, da qual todos nós participamos, pois ela é muito generosa para incluir todos nós em seus sonhos. Talvez esta exposição seja um sinal de alarme no que se refere aos desvios e traições cada vez mais frequentes na pintura ocidental, no caso de tantos artistas sem escrúpulos – palhaços no fundo – que esqueceram, apesar do sucesso

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que têm junto às galerias, os críticos e colecionadores, algo que é o mais importante em seu empenho criativo: inventar formas que renovam e consolidam a tradição. Os quadros de Ticiano são excepcionais, mas não são menos extraordinários os que os acompanham, de Rubens, Allori, Poussin, Van Dyck, Roberta e o excepcional Velázquez ( LLOSA, 2021, np).

O texto do autor é tão pertinente que não há porque modificá-lo. Reescrever seria minimizar o impacto de sua prosa. Diz ele, na sequência, que a razão de ser da arte, está aparente na exposição onde parece que se vive de outra maneira, não apenas mais livre como também com mais prazer e mais saciado, mais consciente das coisas que importam e as que não são importantes para impulsionar a vida e enriquecê-la. Ao falar do tempo em que as obras foram produzidas, acrescenta que aqueles eram tempos de guerras religiosas e intolerâncias, mas, apesar disso, a violência e o sangue desapareciam nas obras dos mestres, como prova a exposição, em recintos de sonho e perfeição, que nos dignificam e elucidam e em que nos vemos retratados, vivendo outra vida, mais rica, mais intensa, mais livre, mais imaginativa, do que a que levamos todos os dias como uma corda no pescoço. Não somos mais a mesma pessoa quando saímos de uma exposição como esta. Algo mudou na nossa maneira de ser e de ver as coisas. O mundo parece mais feio e a feiura se sobressai confrontada com as formosuras e delicadezas que acabamos de ver. Mas não há pessimismo, porque o que vimos não é um milagre, mas um fato humano, obras construídas com as mãos e uma exigência intelectual que é possível alcançar com a pugnacidade com a qual esses artistas inspirados se entregaram à sua tarefa, algo acessível e sem mistério, ao alcance todo aquele que, como eles, trabalha seguindo a sua inspiração e que, não se contentando com ela, leva-a mais adiante, enriquece-a com detalhes e formas que a fortalecem e inovam (LLOSA, 2021, np).

O que essas obras nos dizem hoje segundo Metamorfoses, de Ovídio? A primeira linha de Metamorfoses de Ovídio, no Livro I, em tradução excelente de Carvalho (2010), diz que sua mente estava inclinada a falar de corpos transformados em novas formas. “Faz-me o estro (entusiasmo artístico, grifo meu) dizer formas em novos corpos mudadas. Deuses, já que as mudastes também, inspirai-me a empresa e, da origem do mundo ao meu tempo, guiai este canto perpétuo” (OVÍDIO, 2000 em tradução de CARVALHO, 2010, p. 39). É um eufemismo. Não apenas os corpos mudam, mas também as estações, séculos e estados de espírito; ideias e objetos. O mundo animado e emocionalmente complexo da ‘Poesia’ é um mundo de fluxo e tradução. Em Metamorfoses de Ovídio, vemos uma obra escrita numa época em que a narrativa se reportava a um tempo e espaço mágico, nos quais cada ser continha a possibilidade secreta da transmutação. Humanos poderiam tornar-se criaturas da natureza, ou mesmo seres fantásticos, como se a transformação permanecesse latente, aguardando o momento de tomar a frente e permitir a ação de sua essência mais oculta. Para Calvino, a contiguidade entre deuses e seres humanos, tema dominante nas Metamorfoses, é apenas um caso particular da contiguidade entre todas as figuras e formas existentes. O que o poeta opera, neste trecho, como de resto em todo o poema, é uma espécie de tradução das realidades celestes para a linguagem dos homens, os reais destinatários da mensagem poética. Ovídio é um mestre da recriação. De um ponto de vista macroestrutural, as Metamorfoses se constituem como um longo tecido de histórias e mitos aproveitados das mais variadas fontes e costurados com habilidade pelo poeta, a fim de terem a aparência de um fluxo continuo. A contiguidade é um efeito de linguagem criado a partir dos nexos que o poeta vai inventando para ligar uma história à outra (CALVINO, 1994, p. 31- 42). Isso torna essa leitura fundamental no campo das artes, assim como em Metamorfoses, o mundo animado e emocionalmente complexo da série ‘Poesias’ é um mundo de fluxo e tradução. 204


O que essas obras nos dizem hoje segundo Jennifer Higgie (2020) Jennifer Higgie (2020), em um texto chamado Amor, desejo, morte lança muitas pistas ao dizer que podemos perceber as complexas relações de gênero e poder nas pinturas de Ticiano presentes na série Poesia. Segundo a autora, existem coisas terríveis nas obras: estupro, assassinato, engano, abdução. Em Danaë (c.1554-56), a filha nua do Rei Acrísio de Argos, que foi trancada por seu pai, é engravidada por Júpiter, o rei dos deuses, manifestado como uma chuva de ouro. Em Vênus e Adônis (1554), a deusa implora a seu belo amante que não vá caçar, sabendo que ele morrerá. Ele se afasta impacientemente dela; mais tarde, ele será golpeado até a morte por um javali. Em Diana e Actaeon (1556-1559), outro jovem caçador involuntariamente tropeçou na deusa que, auxiliada por seis ninfas, está se banhando. Diana retorna seu olhar como um raio feito carne. Actéon ergue o braço, como que para afastar o terror do seu castigo: ela o transformará em veado e ele será dilacerado pelos seus próprios cães. Em Diana e Calisto (1556-1559), a ira de Diana está mais uma vez invocada: a ninfa Calisto foi estuprada por Júpiter, que assumiu a forma de deusa. Como resultado, ela está grávida, algo que Diana proibiu entre seus seguidores. Em Perseu e Andrômeda (c.1554–56), Andrômeda é acorrentada a um penhasco, prestes a ser devorada por um monstro marinho conjurado por Netuno, mas salvo por Perseu - o filho de Danaë. No rapto de Europa Europa (1560-1562), Júpiter muda de forma em um touro enganosamente gentil a fim de seduzir, abduzir e estuprar Europa. Assim, a série de Poesias mostra histórias de terror contadas por um artista genial e astuto: ele sabia que seu patrono amava nada mais do que mulheres e caça, então ele atendeu a seus gostos. Mas há muito mais aqui: mortais e divindades são revelados como seres falhos e contraditórios. Caçadores são caçados, deuses estão moralmente falidos, amantes não ouvem, pais prendem suas filhas e mulheres traem umas às outras. Rendido em pinceladas rápidas, às vezes quase violentas, céus elétricos, água prateada e paisagens oníricas formam um pano de fundo para mais de 30 personagens em uma miríade de poses - correndo, voando, estendendo-se, repousando, tomando banho - que mostram o brilho do mestre veneziano como retratista. As modelos provavelmente eram trabalhadoras sexuais locais: o erotismo aqui se mistura com uma espécie de exaustão consciente. Essas pinturas centenárias também suscitam uma série de questões muito contemporâneas: a saber, quem pode olhar para quem? Se nem sempre somos quem aparentamos ser, como a autenticidade pode ser avaliada? Se o que vemos não é toda a história, como podemos compreender alguma coisa? Em quem devemos confiar? Devem nossos líderes designados - neste caso, deuses e reis também ser nossos guias morais? (Indo pelo comportamento de Júpiter, eu diria que a resposta é um claro não.) E, no entanto, tudo isso - as grandes questões, as histórias arrebatadoras - é temperado pelo deleite ilimitado de Ticiano no mundo físico: a ternura com que ele pinta o brilho de um brinco, uma mecha de cabelo loiro apanhado pela brisa, uma coxa com covinhas de mulher ou cães inquietos, desejando a caça. Imagino o velho em seu leito de morte na Veneza devastada pela peste, enfrentando a eternidade, observando as partículas de poeira dançando na luz (HIGGIE, 2020, np).

Fechando a exposição e o que ela nos diz: Escreveu Llosa (2021), que poucas vezes ficou tão impressionado com uma exposição como com Paixões Mitológicas, no Museu do Prado. Com certeza porque, nestes tempos, não obstante o nosso otimismo com o que cremos ser a vitória da ciência sobre o mundo natural, percebemos como somos vulneráveis, como a vida continua sendo precária, e ao mesmo tempo vemos a imensidão da arte e da cultura, as luzes e sombras que as compõem. Afirma ter certeza de que não peca por ser otimista quando afirma que a melhor emulsão para nos protegermos do terror que sentimos quando vemos tantas mortes imprevistas no nosso entorno, e a luta das autoridades da saúde e médicos para salvar essas vidas, que melhor do que todos os remédios é caminhar por um museu como o Prado e descobrir 205


porque alguns quadros são um canto à imortalidade, à sobrevivência em meio ao horror. Na pandemia, compreendemos que tudo o que existia antes ficou distante e o futuro parece tão distante quanto. Estamos encurralados num presente perpétuo, em que obrigados a nos contentar com a convivência online, que não possui a mesma substância da presença. O movimento possível, agora, é para dentro. Leitura, reflexão, aprendizado. A busca incessante por conteúdo, única chance de trapacearmos as limitações. Inventar a própria vida requer uma disposição corajosa para a mudança e autonomia para agir, para lutar contra a banalização dos dias, para criar uma história que nos honre e orgulhe. Para Vargas Llosa, nas pinturas expostas reina uma liberdade ilimitada que expressa ao mesmo tempo a história quando era apenas mito e fantasia e as razões profundas que levaram os seres humanos a criarem uma arte que enriquece a vida e a eleva à altura dos nossos sonhos. E também expõe as limitações da realidade na qual nos locomovemos atualmente, em um mundo dominado por horrores. Creio que a arte pode exercer outro papel para além de insistir na arte da contestação. Conquanto hoje certas imagens possam ser válidas como protesto, é muito raro que também o sejam como arte. A obra teria que trazer, com sua forma, uma contribuição que ampliasse nossa consciência também em termos de sensibilidade, como fez Ticiano. Deseja-se lembrar questões particulares às práxis crítica e artística, questões centrais que gostaríamos de inserir no debate, como uma certeza em meio às incertezas. O mundo da arte, com seus discursos ideológicos e politicamente engajados é muito óbvio, nada deixa para a imaginação. Para isso nos bastam os jornais, a televisão e a massa opiniática sem leitura. Na contramão das novidades rasteiras de nosso mundo, que chegam com a mesma velocidade que vão e vem, estes trabalhos se diferenciam de muitos dos empobrecidos ativismos da agenda contemporânea. O papel da arte é ampliar nossa consciência também em termos de sensibilidade. Essa é a certeza.

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Referências CALVINO, Ítalo. Por que Ler os Clássicos. São Paulo, Cia das Letras, 1994. CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa de. Metamorfoses em Tradução. 2010.158 f. Relatório de pósdoutoramento. Programa de Pós- graduação em Letras Clássicas, USP, São Paulo, 2010. Disponível em< http://www.usp.br/verve/coordenadores/raimundocarvalho/rascunhos/metamorfosesovidioraimundocarvalho.pdf> Acesso em 28 jul.2021 HIGGIE, JENNIFER. Gender and Power in Titian’s Greatest Paintings. 06.08.2020. Disponível em <https:// www.frieze.com/article/gender-and-power-titians-greatest-paintings> Acesso em 28 jul.2021 LLOSA, Mario Vargas. Paixões Mitológicas - Não somos mais a mesma pessoa quando saímos de uma exposição como esta. 8 abr.2021. Disponível em < https://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,paixoesmitologicas,70003673869> Acesso em 28 abr.2021 OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Bocage e introdução e notas de Joao Ângelo Oliva Neto. São Paulo, Hedra, 2000. Disponível em < https://issuu.com/editoraconcreta/docs/metamorfoses_ovidio_ bocage_trecho_g>. Acesso em 23 ago. 2021 WIVEL, Matthias. Ticiano. Mostra na National Gallery de Londres. 27/05/2020. Disponível em <https:// dasartes.com.br/materias/ticiano/> Acesso em 28 abr.2021.

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