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DIVULGAÇÃO

DRUMMOND COMO UM

REPÓRTER E POETA VENCEU A RESISTÊNCIA DELE A ENTREVISTAS

Recebido com carinho, o jornalista Edmilson Caminha recolheu opiniões e confissões do autor de Sentimento do Mundo PÁGINAS 44 E 45

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

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Jornal da ABI

Páginas 36, 37, 38, 39, 40, 41 e 42

Páginas 20, 21, 22 e 23

A TRISTEZA MARCA FIM DO JB IMPRESSO

MERCADO EM CRISE? O IVC DIZ QUE NÃO

BETINHO E MÁRIO ALVES

AUMENTAM AS VIOLÊNCIAS

FINALMENTE ANISTIADOS

CONTRA OS JORNALISTAS

O TEMOR É QUE A EDIÇÃO DIGITAL DO JORNAL

A CIRCULAÇÃO CRESCE, EMBORA POUCO, JORNAIS SÃO LANÇADOS, OUTROS REFORMADOS. E DAÍ? PÁGINAS 15, 16, 17, 18 E 19

COMO EM OUTROS CASOS, O ESTADO PEDE DESCULPAS A AMBOS PELO SOFRIMENTO QUE A DITADURA MILITAR LHES IMPÔS. P ÁGINA 35

EM ALAGOAS, UM JUIZ ELEITORAL FEZ O QUE A CONSTITUIÇÃO VEDA: IMPÔS CENSURA E MANDOU APREENDER JORNAL. PÁGINAS 28, 29, 30 E 31

SEJA O PRENÚNCIO OU A ANTEVÉSPERA DE SEU FINAL. PÁGINAS 3, 4, 5, 6, 7, 8 E 9

FRANCISCO UCHA

FRANCISCO UCHA

AGOSTO 2010

TCU É CONTRA A ANISTIA Atribuindo-se poder que não tem, o Tribunal quer rever atos praticados com absoluto respeito à lei. Páginas 32 e 33 e Editorial na página 2


Editorial

DESTAQUES DESTA EDIÇÃO 03

Veículos - O JB sai das bancas. Ou de cena?

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História - Nossos demônios, por Rodolfo Konder

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L e ggislação islação - O STJ contra 800 da TV Manchete

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Ambiente - A Pátria das Águas, por Paulo Ramos Derengoski

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L e ggislação islação - A Pec do Diploma fora da pauta

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Mercado - Crise? Que crise?

OS FILHOTES DA DITADURA AINDA QUE DISFARÇADA pelo suposto embasamento jurídico com que é apresentada à opinião pública, a decisão do Tribunal de Contas da União de se atribuir o poder de revisão dos atos da Comissão de Anistia que concederam anistia a milhares de vítimas da ditadura militar tem o vinco de clara manifestação política, como resposta de segmentos ultramontanos enquistados no aparelho de Estado aos avanços registrados no País na direção de uma sociedade efetivamente democrática. NA ANÁLISE DO CASO, é oportuna e adequada a lembrança da imagem plasmada pelo Governador Leonel Brizola na campanha política de sua vitoriosa candidatura ao Governo do Estado em 1982: há filhotes da ditadura, nela formados e por ela cevados, que não se conformam diante da reparação que o Estado Nacional foi e está sendo compelido a proceder após o fim do regime militar. Esse é o núcleo central, real, da questão que o TCU acolheu por maioria de votos do seu plenário, por proposta do Procurador Marinus Marsico. O resto são lantejoulas, forma de dourar a pílula do retrocesso que se pretende. NO AFÃ DE REVERTER o processo de avanço democrático, esses setores não vacilam em recorrer à desfiguração e deturpação de fatos concretos, como ao atribuir à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça a autoria de decisões que favoreceram anistiados de renome. Foi o caso do Capitão Car-

Jornal da ABI Número 357 - Agosto de 2010

Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Ivan Vinheris, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas. Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br Representação de São Paulo Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 Osasco, SP

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Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

los Lamarca, que ganhou promoções póstumas por determinação do Poder Judiciário, assim como o do jornalista e escritor Ziraldo Alves Pinto, favorecido por decisão da Justiça Federal no Estado do Rio de Janeiro, a qual, aliás, carece de implantação, como revelou esse notável artista, após seu nome ser mais uma vez objeto de tentativa de achincalhamento, como suposto pleiteante de benefícios indevidos. A menção a tais episódios na postulação de revisão dos atos da Comissão de Anistia teve caráter de puro marketing, destinado a justificar para a sociedade os cortes de indenizações que constituem tardia reparação pelos malefícios que a ditadura impôs a dezenas de milhares de adversários de suas idéias e de suas práticas. O PREOCUPANTE NESSE episódio é que ele integra uma série de manifestações e comportamentos que indicam a existência de forte enraizamento de concepções e procedimentos contrários à implantação de uma sociedade verdadeiramente democrática entre nós, de que é exemplo a resistência à abertura dos arquivos da ditadura, sobretudo dos organismos militares, como os sinistros Doi-Codi do Rio de Janeiro e São Paulo, responsáveis por crimes que envergonham a consciência moral do País. É igualmente preocupante registrar que sob esse aspecto a ditadura fez escola, deixou filhotes, como sentenciou o Governador Leonel Brizola. Como perguntar não ofende, cabe indagar: onde estava e o que fazia o Procurador Marinus Marsico quando tanta ignomínia governava o País?

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer. CONSELHO FISCAL 2010-2011 Jarbas Domingos Vaz, Presidente; Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos de Oliveira Chesther e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2010-2011 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Arcírio Gouvêa Neto Conselheiros efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico, Marcelo Tiognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral. Conselheiros efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho. Conselheiros efetivos 2008-2011 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregesylo de Athayde, Arthur José Poerner, Carlos Arthur Pitombeira, Dácio Malta, Ely Moreira, Fernando Barbosa Lima (in memoriam), Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Mílton Coelho da Graça, Pinheiro Júnior, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

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Mercado - Um diário em SP para se repensar o jornal

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Mercado - A Folha Dirigida comemora 25 anos

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Mercado - Nova ordem do Dia em São Paulo

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Mercado - Nas bancas, para ser o maior

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Especial - Ferreira Gullar

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Depoimento - Dossiê Geneton Moraes Neto

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Memória - A paixão segundo Saramago

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Memória - “Saramago traz consigo o sentimento do mundo”

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Lembranças - “Como conheci Drummond graças a um doce de caju”, por Edmilson Caminha

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SEÇÕES A C O N T EEC CEU NA AB BII Um prêmio Acerj e ABI para o jornalismo esportivo ○

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M E N S AAG G E NS Simon quer um Senado eficaz e menos oneroso ○

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L I B E RDA D E D E IM P R E NS A Tribunal derruba sentença contra Boechat

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“Uma ofensa à memória de Tim Lopes”

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Juiz Eleitoral de Alagoas manda apreender jornal

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MPF denuncia crimes contra jornalistas

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Agressões e ameaças a jornalistas pelo Brasil

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D I R E I TTO O S HU M A N O S TCU quer mandar na anistia

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A tímida caminhada dos direitos humanos, por Fábio Lucas

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Mário Alves e Betinho anistiados

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LIVROS O traço selvagem de Joe Kubert

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O Padim Ciço que a batina escondeu

Conselheiros suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. Conselheiros suplentes 2008-2011 Alcyr Cavalcânti, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira Filho (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Ruy Bello (in memoriam), Salete Lisboa, Sidney Rezende,Sylvia Moretzsohn, Sílvio Paixão e Wilson S. J. de Magalhães. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA José Pereira Filho, Pereirinha, Presidente; Carlos Di Paola, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Toni Marins. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Lênin Novaes de Araújo, Presidente; Wilson de Carvalho, Secretário; Alcyr Cavalcanti, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Jorge Nunes de Freitas, Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


VEÍCULOS

O JB sai das bancas. Ou de cena? A decisão de acabar com a edição impressa do centenário Jornal do Brasil mexeu demais com os jornalistas. Entre lamentações e lembranças repassadas de saudosismo, uma questão fica no ar. Será a alardeada migração para o meio digital a pedra que faltava no túmulo de um dos mais importantes jornais do País? POR PAULO CHICO Poucas vezes a morte de um órgão de imprensa foi tão anunciada. Um desfecho trágico, resultado de uma agonia lenta e explícita, em praça pública. Talvez, isso ajude a entender por que o anúncio de que, em setembro, a edição impressa do Jornal do Brasil deixaria de circular tenha causado certa comoção, mas não surpresa. Nas palavras de antigos colaboradores, que ajudaram a construir o prestígio da centená-

ria publicação, notas de pesar. E, por mais contraditório que possa parecer, para alguns o que sobrou foi um indisfarçável sentimento de alívio. Para estes jornalistas, lamentavelmente, o JB morreu, sim. E faz tempo. Já há alguns anos, o jornal que resistia nas bancas não era digno do nome que estampava no alto de sua primeira página. “O JB era um cadáver insepulto. Digo isso com meu coração na

mão. O que se anuncia agora é apenas um enterro de segunda – e, o pior, com o uso de uma mentira: a migração do jornal para a internet como uma antecipação de tendência de mercado. Balela. É difícil dizer quando exatamente o JB acabou, mas, certamente, não foi agora. Respeito o trabalho dos coleguinhas que fizeram o jornal nos últimos anos. Eles lutaram com todas as suas energias para manter a chama acesa. Mas o jor-

nal que estava sendo feito era outro. A crise financeira fez o jornal perder o seu caráter. O Jornal do Brasil foi, durante muito tempo, o melhor jornal brasileiro, e não apenas pela presença de alguns dos melhores jornalistas. Era plural, polêmico, inquieto, vanguardista... Era o JB”, diz Ancelmo Góis, colunista de O Globo e um dos antigos editores do Informe JB, na época em que esta era a coluna mais lida do jornal. Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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FRANCISCO UCHA

VEÍCULOS O JB SAI DAS BANCAS. OU DE CENA?

ançado em 9 de abril de 1891, de papel. Essa é a opinião de um dinoso Jornal do Brasil, anunciou sauro que mantém uma relação de em suas próprias páginas, no amor com o papel. O jornal impresso dia 13 de julho de 2010, o fim não vai acabar porque eu não quero... da edição impressa, com a mi(risos) Agora, falando sério: a migração gração de todo o conteúdo editorial para a internet é, a meu ver, inevitável para o formato online. O anúncio foi para, acho, sei lá, 70% do que sai hoje feito pelo empresário Nélson Tanure, em papel. Mas, sonho, o impresso pode atual dono do jornal. Menos que uma ocupar os 30% restantes”, resume. inovação, como destacou Ancelmo, o A tristeza de Danusa lance revela o triste capítulo final de Assim como o próprio JB, ela tem a uma história de glórias. O JB teve, cercara do Rio. Começou a escrever crôtamente, papel pioneiro quando se firnicas no jornal em 1992. Já no ano semou, em 1995, como o primeiro jornal guinte tornou-se titular de uma colubrasileiro a consolidar-se na internet. na social, que teve grande repercussão A situação atual, no entanto, é compleaté a sua saída do grupo, em 2001. Com tamente outra. Afinal, como um jornal a palavra, Danuza Leão. do tamanho e com o status do JB, dei“Vejo esse anúncio com alívio. O xou-se naufragar? Jornal do Brasil não merecia ter se tor“É claro que o problema maior foi de nado o que se tornou nestes últimos gestão empresarial. A construção de anos, depois que saiu das mãos da fauma nova sede na Avenida Brasil foi mília Nascimento Brito. Na verdade, uma decisão desastrada. Mas é precifoi aí que ele morreu. E é claro que não so não esquecer que várias empresas vai funcionar na internet. Melhor asgigantes e bem geridas também sucumsim”, pondera. biram por causa do caos econômico que A ex-modelo e jornalista lamenta o o Brasil viveu, com juros e inflação alquadro sombrio que se desenha no Rio tos, além do dólar desembestado. O de Janeiro. “O JB jornal sentiu o essair de cena é uma vaziamento econôgrande perda, além mico do Rio, com a do fato de, hoje, o fuga em massa de Rio só ter um granempresas para São de jornal, o que não Paulo. Houve ainda é bom em nenhum perseguição polítisentido. Fica um ca, como bem provácuo, que dificilvou o jornalista Elio mente será preenGaspari, ao revelar chido. Trabalhar no documentos que JB foi uma experimostravam o Geneência maravilhosa, ral Hugo Abreu, apesar de dificílientão Ministro do ma. Quando apareGoverno Geisel, cia uma supernotídetalhando como seriam pressionaAncelmo Góis: A migração do jornal cia que dizia respeidos os anunciantes, para a internet como uma antecipação to a um amigo ou e de que maneira a de tendência de mercado é pura balela. amiga, ficava sempre na dúvida entre máquina do Estado a profissão e a amiseria usada para fazade. Ganhou sempre a amizade, o zer devassas fiscais no grupo”, descreve que prova que não sou jornalista”, Ancelmo, que ainda traduz, num relato brinca Danusa, que, tendo sido casaemocionado, o sentimento que o velho da com Samuel Wainer, recorda-se de JB despertava nos jornalistas. outro importante veículo que já dei“Eu aprendi a gostar de jornal lenxou a cena. do o Jornal do Brasil. Quando era ado“Passei por coisas parecidas com a lescente, em Aracaju, toda tarde eu me Última Hora, e revivo a mesma tristeza juntava ao grupo que ia esperar o JB com o JB, um jornal que eu adorava.” chegar no aeroporto. Foi o jornal da minha vida. Em 1985, a convite de “Uma espécie de necrofilia” Marcos Sá Corrêa, fui trabalhar lá, Alberto Dines, que comanda o Obonde, por seis anos, fui titular da coluna servatório da Imprensa, na TV Brasil, é Informe JB. Aliás, no primeiro dia de outro que chora o fim da edição imprestrabalho, tive uma crise de choro. Para sa do JB. mim, trabalhar naquele jornal repre“Isso já era esperado. O empresário sentava tudo o que eu tinha sonhado Nélson Tanure tem uma estranha espena minha vida e na minha profissão. No cialidade: compra veículos agonizantes jornal, mesmo sem deixar a coluna, fui e logo acaba com eles. É uma espécie de editor do Caderno Cidade e coordenei necrofilia. Esse fim é desastroso para as editorias de Política e Economia”, retodos, para o Rio especialmente, mas corda ele, que, mídias digitais à parte, também para o leitor qualificado dos ainda aposta nas edições impressas. demais Estados. O JB era nosso único “O caso do JB é grave, pois o Rio título efetivamente nacional. Os dois perde mais um jornal, com conseqüênjornalões paulistanos jamais conseguicias que agravam o mercado de trabarão fazer um jornalismo nacional. E O lho para os jornalistas. Mas, eu, pessoGlobo tem uma formidável vocação loalmente, não acredito no fim do jornal

sel e preferiu o Chefe da Casa Civil de Médici, o jurista Leitão de Abreu. Numa democracia, é legítimo que um jornal declare apoio. Mas numa ditadura um jornal sério não se mete com os generais. A guinada para contentar o Geisel teve um preço. Depois, o jornal apoiou Maluf, o Collor e, no fim, entregou-se ao casal Garotinho. O JB aderiu ao golpe para derrubar o Presidente João Goulart, assim como o resto da imprensa, exceto a Última Hora. Mas, quando foi decretado o AI-5, em 1968, mesmo que autocensurado, o JB conseguiu manter um alto padrão de excelência”.

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RAFAEL ANDRADE/FOLHAPRESS

ROGÉRIO REIS

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Para Alberto Dines, Nélson Tanure tem uma estranha especialidade: compra veículos agonizantes e logo acaba com eles numa espécie de necrofilia.

Danusa Leão: O JB não merecia ter se tornado o que se tornou nos últimos anos. É claro que não vai funcionar na internet.

cal que não deveria ser descartada. Este desaparecimento representa duro golpe no cerne do processo jornalístico brasileiro, pois praticamente extingue a competição. Sem competição não há diversidade. E sem diversidade a imprensa não consegue cumprir plenamente seu papel”, sentencia. Dines chegou ao JB numa segundafeira, 8 de janeiro de 1962. Foi demitido “por indisciplina”, como ele próprio afirma, no dia 6 de dezembro de 1973. Foram, então, 11 anos e 11 meses, sempre na mesma função – a de EditorChefe. Tanto tempo à frente da publicação, onde foi responsável por reformas e modernizações que ditaram rumos para a imprensa brasileira, capacita-o a listar erros e acertos do grupo. “Eu diria que a causa mortis foram as más companhias. O jornal levou um tranco em 1973, quando tentou enfrentar a candidatura do General Gei-

No lugar de Grossi, Ângela Se não pegou de surpresa o mercado, a decisão de tirar de circulação a versão impressa provocou rachas internos no JB. A opção por encerrar a carreira do jornal nas bancas estaria ligada a dívidas acumuladas pelo diário, estimadas em R$ 100 milhões, aliadas à contínua queda na circulação. Como não houve compradores interessados em adquirir a marca – uma vez que o grupo praticamente não possui mais bens físicos – Tanure optou pela edição digital, para minimizar custos. A nova estratégia empresarial contrariou o Presidente do JB, Pedro Grossi, que deixou o cargo. Grossi ocupava o cargo de Presidente da empresa Docasnet, holding que administra o JB. Ao tomar conhecimento de sua demissão, enviou um email aos editores e diretores do jornal, explicando que deixava a função por discordar da decisão de o Jornal do Brasil só poder ser lido pela internet. “Considerando que isto contraria a razão pela qual fui contratado, solicito, sem perda de meus direitos, que no expediente do jornal e de todas as revistas não conste mais meu nome”, escreveu. O anúncio do fim do impresso gerou um clima de preocupação entre os pro-

CPDOC JB


LEO PINHEIRO/VALOR/FOLHAPRESS

Brito era “dono de jornal” Em seu site Conversa Afiada, Paulo Henrique Amorim republicou texto originalmente escrito em fevereiro de 2003 – quando da morte de Nascimento Brito, dono e Diretor do JB. “O Dr. Brito tinha atributos que os outros, como Chateaubriand e Roberto Marinho, não tinham. A começar pela altura. E, especialmente, o garbo. Ele não era um empresário, no sentido de

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fissionais da Redação do JB. Funcionários que não querem se identificar criticam a forma como a Direção da casa vem conduzindo o assunto. E reclamam que somente ficam sabendo sobre as novas diretrizes do jornal por meio de informações divulgadas em outros veículos. Eles temem que tal política termine por resultar em mais cortes de pessoal – hoje, restariam pouco mais de 100 profissionais no JB, boa parte deles no esquema de pessoas jurídicas. Ainda segundo essas fontes, descrentes do processo de transição do papel para o digital, pelo menos seis editores já teriam deixado os quadros da empresa, recentemente. Em comunicado oficial, datado de 26 de julho, Nélson Tanure anunciou Ângela Moreira, diretora da Docas e da Companhia Brasileira de MultimídiaCBM, como responsável pelos assuntos relacionados à gestão das empresas da área de mídia. “Ela tem poderes e nosso apoio para tomar quaisquer decisões, especialmente as relacionadas ao Jornal do Brasil. Pedimos a todos a habitual colaboração para as mudanças necessárias, neste momento, da migração da edição impressa para a digital”, escreveu ele. Procurada, Angela prontamente atendeu ao pedido de entrevista feito pelo Jornal da ABI. Com foco nos esclarecimentos sobre a situação atual e o futuro do JB, suas declarações podem ser lidas nesta edição

Zuenir Ventura: O JB não morreu de morte natural, mas de suicídio – lento e aguardado, melancólico, deixando órfãs várias gerações.

empreendedor. Nem um administrador. Era ‘dono de jornal’, atividade que dispensa as outras. Aliás, Chateaubriand e Roberto Marinho também foram mais ‘donos de jornal’ do que empresários. Esse cargo precede a profissionalização do negócio da comunicação. E tinha muito a ver com controle político e glamour”, escreveu o atual apresentador do Domingo Espetacular, da TV Record, que prosseguiu. “Com o Dr. Nascimento Brito vivi algumas das experiências mais ricas do meu trabalho como jornalista. Trabalhei com ele no período que começou em Geisel e quase chegou a Tancredo. Fui Editor de Economia, Redator-Chefe e Editor-Geral. Trabalhei no Jornal do Brasil quando ele era o melhor jornal do Brasil. Fiz muita coisa que não queria. E fiz muita coisa que só seria possível no Jornal do Brasil”, afirmou Paulo Henrique Amorim, para quem o declínio do JB tem boa parte de suas causas numa disputa desleal. “Roberto Marinho matou Nascimento Brito a contagotas. Vendeu anúncios em O Globo a preço de dumping, com os quais o JB não podia competir”, apontou. Nas páginas de O Globo, por sua vez, Zuenir Ventura escreveu, em sua colu-

na de 20 de julho de 2010. “Foi dito que o Jornal do Brasil deixará de circular em papel para ‘entrar na modernidade’. Acho que o melhor epitáfio não é esse, mas outro: ‘Deixou a vida para entrar na História’, como Getúlio Vargas. Sim, porque o JB não morreu de morte natural, mas de suicídio – lento e aguardado, melancólico, deixando órfãs várias gerações. Não há jornalista com mais de 40 anos que não tenha passado pelo JB, ou não tenha querido passar. Ele foi uma escola, um laboratório

“O JB é outro jornal cuja morte não foi provocada pela internet, mas ele vai se refugiar nela para tentar manter a sobrevivência.”

Nélson Tanure: Dívidas acumuladas e queda nas vendas pesaram na decisão de interromper a circulação em bancas do JB.

de experimentação técnica e um espaço de resistência cívica. A bravura com que enfrentou o AI-5 em 1968, na ditadura militar, é lendária. Por isso, ele não tinha leitores, mas torcedores”. “Jogaram dinheiro fora” Dois experientes jornalistas têm visões distintas sobre o fim do JB impresso. “O jornal foi realmente importante. No mundo inteiro, nenhum teve ao mesmo tempo, como Redator-Chefe, Rui Barbosa, o maior brasileiro vivo na época, e ainda Joaquim Nabuco, o estadista da República. E eles não emprestavam apenas seus nomes, davam expediente diário. O que aconteceu é uma lástima, mas o JB já não existia há muito tempo. E a morte não veio embrulhada quando, recentemente, ele mudou para o formato tablóide”, afirma Hélio Fernandes, que concorda com

Circulando desde 9 de abril de 1891 (primeiro à esquerda), o Jornal do Brasil acompanhou as tendências gráficas ao longo dos anos e produziu capas especiais como a da comemoração do centenário da Independência do Brasil, totalmente ilustrada. Em 1928, os desenhos continuavam tendo destaque na primeira página, onde aparecia também uma tira em quadrinhos sobre Edison e seus “geniaes” inventos.

Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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VEÍCULOS O JB SAI DAS BANCAS. OU DE CENA?

Marina Colasanti: É uma perda múltipla. Não é apenas um elemento cotidiano que desaparece, é um espaço para a discussão de idéias; um olhar vigilante a serviço da sociedade. O JB foi um jornal combativo, corajoso.

mais as discussões de pauta do passado, aquelas conversas no cafezinho que rendiam matéria. Faltam contato e convívio humano, que são fundamentais para a ‘feitura’ de um bom jornal. Você vê as pessoas sentadas, acompanhando o noticiário na tv. Nós sabemos que a transição para a internet já vinha sendo realizada, e culminou agora com a pausa no impresso. Espero que o jornal possa voltar a ser publicado, pois manter apenas o portal na internet, na minha opinião, é suicídio. De qualquer maneira, a história nos conta que grandes jornais, aliás os melhores e mais vendidos de suas épocas, também acabaram. Os exemplos do Correio da Manhã e do Diário de Notícias estão aí. Certo mesmo é que, com essa decisão, passamos a ter só O Globo como jornal de classe média no Rio, o que é muito ruim para o mercado e, principalmente, para o leitor”, pondera Villas-Bôas. Má gestão e conduta de oposição Tendo iniciado sua trajetória como estagiário na Rádio JB, em 1974, Dante Gastaldoni teve várias passagens e cargos no Jornal do Brasil. “Vejo esse anúncio do fim da circulação com me-

lancolia, mas sem ilusões. A conjunção de forças no poder e as crises financeiras já decretaram o fim de muitos jornais. Acho que com o JB não vai ser diferente. De mais a mais, manter esse JB que está aí ‘vivo’ acaba alimentando a nossa nostalgia sobre o grande jornal que um dia ele foi. Lembro-me de andar pelos corredores daquele caixotão da Avenida Brasil e topar com Drummond, João Saldanha e Carlos Castelo Branco, entre tantos outros figurões. Dá para imaginar a injeção de idealismo que isso significava na alma de um jovem jornalista?”, desafia ele, que hoje é professor de Fotojornalismo na Uff e na UFRJ, além de coordenador acadêmico da Escola de Fotógrafos Populares, no Complexo da Maré, também no Rio de Janeiro. “Em primeiro lugar, acho que ocorreram problemas de gestão no jornal. Lembro-me que a Direção comprou um sistema caríssimo de rotativas que não era o mais adequado ao processo de informatização que se anunciava. Daí passamos a atuar em um sistema híbrido, com máquinas de fotocomposição e arte-finalistas montando o jornal no sexto andar, a uma temperatura de 21

FRANCISCO UCHA

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Ancelmo Gois quanto às causas que instalaram a crise no jornal. “Riquíssimos, seus donos esbanjavam dinheiro. No início dos anos 1980, construíram o edifício da Avenida Brasil, que passou a ser conhecido como ‘elefante- branco’. E era mesmo! O Jornal do Brasil foi enterrado ali. Jogaram fora o dinheiro que tinham e levaram a idéia até o fim. O espaço era tão grande que vai funcionar ali um Centro de Traumatologia, o maior da América Latina. Abusando do prestígio antigo, foi ‘tomando’ dinheiro de bancos e outros órgãos, e ninguém resiste a isso. O JB é outro jornal cuja morte não foi provocada pela internet, mas ele vai se refugiar nela para tentar manter a sobrevivência”, avalia o jornalista, diretor da extinta Tribuna da Imprensa. Há mais de cinco décadas no JB, Villas-Bôas Corrêa avalia as recentes mudanças de estratégia empresarial. “Eu confesso que tenho muita dificuldade de fazer uma análise crítica desta situação porque, em 55 anos, nunca tive do que reclamar em relação à conduta do jornal. Assim que o Nélson Tanure assumiu o comando, chamou a mim e a meu filho, Marcos Sá Corrêa, para conversar sobre os rumos da publicação. Na época, o Marcos era o Editor e fez um projeto completo que, posteriormente, entregou a ele. Nesse projeto já constava a proposta de valorizar a internet. Aliás, o Marcos deu um conselho, na hora, ao Tanure. ‘Publica este jornal na internet. Ela é o futuro’, disse. E, no final das contas, estava certo. Eu não deixo de ler os jornais impressos, sei que muita gente também não, mas a realidade hoje é completamente diferente daquela dos tempos áureos do JB”, conta Villas, que aprofunda sua avaliação. “Desde que o Tanure assumiu o jornal, se eu fui à Redação cinco vezes, foi muito. Aquilo parecia um sanatório, um hospital – uma coisa morta. Não há

Dante Gastaldoni: O JB também pagou o preço por ter sido, por muito tempo, um jornal de oposição.

graus centígrados enquanto no térreo as caldeiras derretiam chumbo para montar as páginas que seriam impressas. Acho também que o JB pagou o preço por ter sido, por muito tempo, um jornal de oposição. Com o desenho político que sucedeu aos governos militares ele ficou meio perdido, sem saber que lugar ocupar no cenário nacional”, sugere Dante, sem esperanças de ver o JB recuperar seu prestígio. “Uma perda múltipla” A escritora Marina Colasanti teve três passagens pela Redação do Jornal do Brasil. Onze anos da primeira vez, como funcionária. Depois, mais dois rounds de alguns poucos anos, como cronista. “A primeira etapa foi de 1962 a 1973. Ao longo desses anos fui repórter, re-

CPDOC JB

O Jornal do Brasil em 2 de junho de 1959 apresentou a sua revolucionária reforma gráfica e editorial. Pouco mais de um ano depois, em 15 de setembro, o Caderno B estreava abrindo fotos e explorando espaços em branco. Durante a ditadura militar o jornal enfrentou a censura e a repressão.

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MARCELO CARNAVAL/CPDOC JB

DIVULGAÇÃO

datora, cronista, chefe de reportagem, colunista, ilustradora, secretária de texto, subeditora, sempre no Caderno B. E fui editora do Caderno I, destinado ao público infantil. Depois, voltei de maio de 1991 até abril de 1993. E, para uma última rodada, de maio 2005 até abril 2006”, recorda. Com seu olhar crítico, ela dá nova dimensão ao caso JB. “É uma perda múltipla. Não é apenas um elemento cotidiano que desaparece, um noticiário. É uma tradição; um espaço para a discussão de idéias; uma fonte de trabalho para jornalistas; um olhar vigilante a serviço da sociedade. O Jornal do Brasil foi um jornal combativo, corajoso, tantas vezes na oposição. O Rio fica entregue a um único grande jornal, o que não é bom nem mesmo para esse veículo. Desaparecem a possibilidade de confronto que havia entre os dois ‘jornalões’, numa espécie de Fla-Flu da imprensa carioca, e a possibilidade de o leitor acompanhar o duplo desdobramento dos fatos, as análises feitas de um e de outro ponto de vista. Um duplo olhar é necessário. Por isso, o próprio Roberto Marinho dizia que “jamais deixaria morrer o JB”, afirma Marina, numa linha de raciocínio que entra em choque direto com o relato feito por Paulo Henrique Amorim. Apesar de estampar o nome do País na capa, o Jornal do Brasil, decididamente, foi, durante muito tempo, a cara do Rio, como destaca Marina Colasanti. “O JB dos bons tempos representava plenamente o espírito carioca. Era inventivo, vívido, inovador, alegre, embora sério. O Caderno B era a plena voz carioca. Atento, antenadíssimo, captava tudo o que estava por vir ou começando a nascer, e o relançava para o Brasil inteiro. As coisas só aconteciam, de fato, se passassem pelo B. Da Redação daquele caderno fizeram parte escritores estupendos, cineastas, dra-

Dora Kramer: Qualquer coisa sobrevive na internet.

Villas-Bôas Corrêa: Dificuldade de fazer uma análise crítica da situação porque, em 55 anos, nunca teve do que reclamar em relação à conduta do jornal.

maturgos. Era uma Redação efervescente, um viveiro de idéias. Criávamos páginas novas, comemorávamos o verão, abríamos espaço para a poesia, tratávamos dos astros e do cotidiano, tínhamos os melhores críticos e cronistas. Era uma festa da cultura e da inteligência.” Descrente do ressurgimento do JB nos velhos moldes,Marina Colasanti vê raízes bem antigas no processo de deterioração do jornal que, com o fim do impresso, parece chegar ao seu momento crítico. “O processo que levaria o JB à morte começou quando ele ainda palpitava de vida. Um jornal não morre como um dinossauro, de chofre. Vai armando o cenário do seu fim aos poucos, através de escolhas erradas, erros empresariais, falta de visão. Um jornal morre de falência múltipla dos órgãos, e os órgãos do JB estavam doentes, há muito. A partir de certo ponto, todos sabíamos que morreria. Jornais podem ser salvos, e muitos o foram. Mas para salvar um jornal é necessária uma determinação feita de amor ao jornal em si, e não apenas ao negócio”, diz Marina. “Na internet qualquer coisa sobrevive” “O Jornal do Brasil morreu, em definitivo, quando Tanure o comprou. Mas pode, sim, sobreviver, pois qualquer coisa vive na internet”. A declaração radical é feita por outra jornalista de destaque, Dora Kramer, que trabalhou no JB durante 20 anos – de 1984 a 2004. “Fui copy, repórter e colunista. É uma pena este final, mas o JB, tal como era nos bons tempos, acabou há muitos anos. Já na década de 1990, não era o indutor político e cultu-

ral que havia sido até então. De fato, o Rio de Janeiro precisa é de mais jornais com credibilidade nacional. Hoje só há O Globo”, diz a comentarista da Bandnews FM e colunista de O Estado de S. Paulo, cujo texto é distribuído e publicado em diversos veículos. Respeito aos profissionais Israel Tabak começou no JB, como estagiário, em abril de 1966. Ficou até abril de 1997. Depois, voltou em 2000

“Lembro-me de andar pelos corredores daquele caixotão da Avenida Brasil e topar com Drummond, João Saldanha e Carlos Castelo Branco, entre tantos outros figurões. Dá para imaginar a injeção de idealismo que isso significava na alma de um jovem jornalista?”

e lá permaneceu até 2007. Nestes 37 anos, atuou como repórter, repórter especial, pauteiro, chefe de reportagem e esteve à frente de diversas editorias. “Tive a sorte e a honra, quando jovem, de integrar o JB nos seus melhores tempos, quando revolucionou a imprensa brasileira, modernizando formato e conteúdo. Em 1975, eu e o meu mestre, o repórter José Gonçalves Fontes, ganhamos menção honrosa do Prêmio Esso, e o Troféu Imprensa de reportagem do ano, com uma série de reportagens sobre a calamidade da educação brasileira. Isso foi há 35 anos, portanto. Como a situação nestes últimos anos piorou, podemos avaliar a catástrofe que é hoje a formação de profissionais em todas as áreas, e também no jornalismo. Na maioria das Redações os equívocos editoriais, que na realidade são de concepção jornalística, se somaram a essa formação deficiente”, provoca. Tabak considera que a importância do antigo Jornal do Brasil deve ser registrada não apenas na esfera do jornalismo que praticava, mas também no zelo e respeito a seus profissionais. “No JB, o repórter, pela primeira vez na imprensa diária brasileira, foi valorizado e profissionalizado. O jornalismo deixou de ser um ‘bico’. O jornal investiu em qualidade, nas grandes matérias, e buscava contratar os melhores jornalistas do mercado. O salário de um bom repórter do JB era, em média, seis vezes maior do que o de um companheiro de O Globo. Correspondentes bem pagos e capacitados trabalhavam nas principais cidades do mundo. Os repórteres, entusiasmados, competiam amigavelmente, buscando sempre a melhor matéria. Havia campeonatos de lide. Era uma glória para qualquer repórter ter o seu lide reconhecido pelos colegas. O importante não era apenas dar o furo. Era caprichar na apuração e redação”. Diz Israel Tabak que o fim da edição impressa do JB deve ser compreendido num contexto mais amplo, que reflete uma crise conceitual do jornalismo. “Pela mão dos burocratas, que aumentaram o seu poder nas Redações, os repórteres, que sempre foram a razão de ser e o fundamento do bom jornalismo, se transformaram em meros ‘provedores de conteúdo’. Mal remunerados, são obrigados a ‘convergir ’ para todas as mídias, ganhando apenas por uma. Por isso, o que mais me preocupa não é a discussão sobre a sobrevivência do jornal impresso em razão da emergência do jornalismo eletrônico. O mais sério é o arrasador declínio de qualidade e criatividade em todas as mídias. O fundamental é que o bom jornalismo, a reportagem de qualidade, equilibrada e responsável, reúna condições para sobreviver em qualquer tipo de veículo”, afirma. É nesse contexto que Israel prefere avaliar o fim do JB: “É bom notar que, como referência, como símbolo único de uma era, o Jornal do Brasil morreu Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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VEÍCULOS O JB SAI DAS BANCAS. OU DE CENA?

há muito tempo. Historicamente, seu longo fim não traz novidades. Em vários países há exemplos semelhantes de jornais famosos que sofreram uma agonia de décadas. O que mais dói naqueles felizardos, como eu, que vivenciaram os tempos de glória, é que não vemos indícios de que tempos como aqueles possam voltar tão cedo. A primazia do investimento na qualidade parece um sonho distante, em papel ou no online. Apuração e redação deficientes, equívocos editoriais decorrentes da falta de perspicácia e sensibilidade, matérias tendenciosas apresentadas como jornalismo ‘crítico’ ou ‘investigativo’. Esta é uma situação recorrente, com algumas louváveis exceções.” Neste caso, pela avaliação de Tabak, a perda de um veículo do porte do Jornal do Brasil pode ser vista como sintoma de uma crise mais ampla que, se por um lado, representa o empobrecimento do cenário jornalístico do País, de outro fere, sobretudo, o Rio. “Jornal de referência nacional, o JB tinha também a cara do Rio, no tempo em que a cidade ainda era a capital cultural do País, ditando tendências e infuenciando comportamentos. A longa agonia do JB foi uma grande perda para a cidade, tão esvaziada, em todos os sentidos, desde a ida da capital para Brasília.”

Tabak, que hoje trabalha na assessoria de imprensa da Transpetro, conta que ser repórter no JB era, sobretudo, uma aventura e uma emoção que se renovavam a cada dia. “Trabalhava-se com prazer, com vontade. Com espírito vanguardista, o JB criou o primeiro departamento de pesquisa, a primeira Editoria de Cidade. Foi inovador, também, ao criar, ainda na década de 1960, a primeira publicação periódica especializada em discutir grandes temas. Carlos Lemos, um dos líderes da Redação desses tempos inesquecíveis, dizia e repetia que ‘a boa notícia não tem preço’. O jornal estava sempre disposto a investir em busca da informação de qualidade. A enxurrada de prêmios de reportagem que ganhamos foi apenas uma conseqüência da revolução comandada por Alberto Dines no Jornal do Brasil.” Dines acredita em milagres Após tantas lembranças saudosistas e visões pessimistas sobre o futuro do Jornal do Brasil, ninguém melhor do que Dines para encerrar esta matéria, também uma homenagem ao bom e velho JB. Questionado se ainda acredita na possibilidade de o jornal manter-se em circulação, recuperando a qualidade e o prestígio de outrora, ele responde, de forma desconcertante: “Tenho esperanças. E acredito em milagres.”

A POSIÇÃO OFICIAL DA DIREÇÃO DO JORNAL DO BRASIL

“A cada dia em que um jornal como o JB não é impresso em papel, 72 árvores deixam de ser cortadas” ogo que teve acesso ao comunicado, assinado por Nélson Tanure, que dava conta de que Ângela Moreira se tornara a responsável pelas decisões a respeito do Jornal do Brasil, o Jornal da ABI partiu em sua procura. Prontamente, ela topou conceder-nos a entrevista, que demorou uma semana para ser respondida por e-mail. Foram enviadas cerca de 12 perguntas, algumas indispensáveis e delicadas, mas que buscavam justamente esclarecer junto ao mercado, aos leitores e aos próprios colaboradores do JB para qual direção a publicação caminha. O formato das respostas enviadas, infelizmente, impede a publicação de uma entrevista em seu formato tradicional, isto é, com perguntas diretas seguidas de respostas objetivas.

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“Rio de Janeiro, 18 de agosto de 2010. À Associação Brasileira de Imprensa. Em atenção ao pedido de informações da ABI, sobre a nova fase digital do JB, antecipamos uma série de argumentos a respeito do assunto”, começa a mensagem oficial da direção. O que se segue é uma longa lista, formada por exatos 50 tópicos, que procuram justificar as recentes decisões do grupo. Por isso, certamente, algumas das perguntas enviadas ficaram sem resposta. Com base no texto original, optamos por organizar as declarações de Ângela Moreira agrupando-as em temas, até para torná-las mais claras e inteligíveis aos leitores. Mais jornalísticas, e menos relatoriais. E também por 8

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não vermos razão em publicar o extenso e-mail de resposta na íntegra. Acreditamos que este material, que confirma o fim da edição impressa do JB, ajuda a compreender a atual situação do jornal, bem como o que o aguarda no futuro. A seguir, as respostas.

MIGRAÇÃO PARA O FORMATO DIGITAL

“Destacamos que, a partir do dia 1º de setembro de 2010, o JB continuará existindo – ágil, moderno e influente. A decisão, fruto de análise responsável dos rumos da imprensa escrita em todo o mundo, resultou também de pesquisa diária que o jornal promoveu mediante anúncios em suas páginas e no site www.jb.com.br. Nela, convidou leitores e internautas a opinarem sobre preferências e hábitos de consumo de mídia – incluindo-se as inovadoras plataformas digitais. À semelhança de tantos veículos de comunicação de elevado prestígio no mundo todo, o JB quer atualizar seus modos de interação com o público leitor, privilegiar práticas ecologicamente sustentáveis e aperfeiçoar-se em tecnologias de última geração.”

RAZÕES ECOLÓGICAS

“A cada dia em que um jornal como o JB não é impresso em papel, 72 árvores deixam de ser cortadas. Dado o maior ou menor número de cadernos durante a semana, ao longo de um ano são mais de 30 mil árvores poupadas. Para se fazer uma edição em papel consomem-


DIVULGAÇÃO

Ângela Moreira: Não está distante o momento em que um país com jornais de grande circulação impressos em papel será sinônimo de subdesenvolvimento, desrespeito ao meio ambiente e anacronismo digital.

MUDANÇAS NA REDAÇÃO

“Na transição da antiga fase do papel para a fase digital, promove-se também uma mudança de perfis, atitudes e rotinas de trabalho no próprio ambiente do jornal. A Redação não é mais apenas uma sala delimitada fisicamente. É uma rede em que cérebros e talentos estão conectados em tempo real – às vezes a milhares de quilômetros de distância. Nessa dinâmica, houve o desligamento de alguns profissionais do JB. Outros chegam, estão contratados. Trabalham a pleno vapor. Este é um processo orgânico e característico da evolução empresarial e tecnológica que marca nossos dias. Tal mudança, como é de se esperar em qualquer câmbio de rumos, traz incertezas. Ainda mais porque as mudanças no jornal não se produzem numa atmosfera concorrencialmente idílica.”

O PRODUTO DIGITAL

se, aproximadamente, 10 mil litros d’água e 40 Mw/hora de energia por dia. Não está distante o momento em que um país com jornais de grande circulação em papel será sinônimo de subdesenvolvimento, desrespeito ao meio ambiente e anacronismo digital. O JB estará compatível com todos os leitores digitais (iPad, Kindle, Alfa, Nook, Mix, Libre). Sua diagramação moderna e amigável, em papel eletrônico, será automaticamente adaptada à tela de qualquer computador. Ainda assim, qualquer leitor poderá imprimir, seletivamente e sem desperdício de papel, a parte do jornal que deseja em sua casa ou escritório.”

NOVAS MÍDIAS

“No tempo em que vivemos, é um erro achar que o jornal é um objeto físico. Na mesma medida, a música não é o disco de vinil, a fita-cassete ou o compact-disc. Tampouco a música é a vitrola, o toca-fitas, o disc-player ou o iPod. Julgar que jornal e papel são sinônimos equivale a achar que um canal de televisão é o próprio aparelho de tv. Ou que a emissora de rádio não terá êxito se não for também produtora de rádios portáteis ou de mesa. Ou então que sites deveriam fabricar seus próprios computadores. Será que ainda é possível a alguém, com mínimos poderes de observação, lucidez e honestidade intelectual, achar que o jornal em papel continua a ser um ‘veículo’ de comunicação?”

EM VEZ DE PERDAS, EXPANSÃO

“Ao dar efetividade a esse processo, o JB trabalha para que sua centenária marca e conteúdo de qualidade se façam presentes, de maneira cada vez mais influente, para as atuais e futuras gerações de leitores. Nessas últimas semanas, alguns leitores do JB – e, sobretudo, muitos nãoleitores – manifestaram-se legítima e democraticamente favoráveis à manutenção da versão em papel do jornal. Em suas argumentações, fizeram-se referências à sua história, seus grandes personagens; à gloriosa trajetória como espaço de liberdades. O fato é que esses ativos não são perdidos, mas expandidos, no meio eletrônico. Não se pode optar por fechar os olhos – não ao futuro -, mas ao próprio presente da mídia em todo o mundo: o rumo, inexorável e crescente, à era digital. Assim, ao contrário do que vêm propagando alguns poucos mal-informados, irresponsáveis e mal-intencionados, o Jornal do Brasil está caminhando para uma nova e melhor fase.”

NÚMERO DE COLABORADORES

Informamos que nessa nova fase, 100% digital, o JB conta com uma equipe de mais de 120 colaboradores dentre pessoal de conteúdo, marketing e gestão. É um número adequado à dimensão dos desafios do jornal, que tem sua Redação comandada hoje pelos jornalistas Marcelo Migliaccio (Editor-Chefe) e Débora Lannes, Fernando Santana e Ricardo Gonzalez (Editores-Executivos).”

“Nessa nova fase, o conteúdo digital do JB se dividirá em 3 áreas de concentração. Tempo Real – Alimentado e produzido por fontes próprias e as melhores agências de notícias brasileiras e internacionais, também trará ‘aperitivos’, como pequenas notas ou, no caso de matérias mais extensas, parágrafos que agucem o apetite para que o leitor venha a aderir à versão de conteúdo reservado do JB Digital. Essa área contará com recursos de foto, vídeo e som. JB Digital – O tradicional Jornal do Brasil que concentra os grandes diferenciais de conteúdo que sempre categorizaram o jornal. Inicialmente, será, como hoje, um produto diário desenhado para plataformas de software amistosas ao leitor em computadores e aparelhos móveis de qualquer tipo. Bastará ao leitor acessar o site www.jb.com.br e clicar no ícone do JB Digital para que as páginas eletrônicas se adaptem imediatamente ao formato da tela de seu computador. Com o mouse, ou onde disponível, por telas interativas, será possível aumentar ou diminuir a fonte e as imagens de cada matéria. Este produto estará disponível mediante assinatura mensal de R$ 9,90, o equivalente a 20% do preço da antiga assinatura em papel. Ícones da imprensa brasileira que hoje honram e distinguem o JB estão conosco nessa nova e alvissareira etapa. Além do conteúdo de qualidade do New York Times, Le Monde Diplomatique e outros clássicos do jornalismo mundial. Não haverá, nesse contexto, qualquer alteração na linha editorial de independência e qualidade que há 119 anos distingue o Jornal do Brasil. Blogosfera – Haverá muitos blogs

interativos com os principais colunistas e articulistas do JB. Além da mídia colaborativa mediante a editoria ‘Sociedade Aberta’, marco da democracia digital no Brasil, em que o leitor é repórter e articulista. Assim é nas marcas de mídia das democracias mais avançadas do mundo. O Blogosfera também trará o inovador JBWiki, jornal produzido e alimentado 100% pelos leitores.”

INCENTIVO AO DEBATE

“O Jornal do Brasil também continuará cada vez mais a promover sua área de conferências e eventos. Debater o Rio de Janeiro e o Brasil em várias partes do Brasil e do mundo tem sido um traço marcante do JB. Nos últimos cinco anos, o jornal realizou mais de 100 eventos em temas como educação, telecomunicações, saúde, desenvolvimento sustentável, moda, infra-estrutura em 15 Estados brasileiros e em 3 continentes.”

O ACERVO PRESERVADO

“O JB está preservando física e digitalmente a memória de seus 119 anos em seu Centro de Pesquisa e Documentação (CPDoc). Ele conta com estrutura adequada, organizada em torno de padrões de biblioteconomia, umidade e temperatura controladas. Além disso, a maior parte do acervo do JB já se encontra digitalizada graças à parceria com o Google Archives, pioneira no Brasil e disponível à consulta em qualquer lugar do planeta.”

QUESTÕES JUDICIAIS

“Desconhecemos um suposto processo judicial pela manutenção do formato impresso do Jornal do Brasil – especulação que nos foi apresentada pelo Jornal da ABI. Enfatizamos, ainda, que o JB trabalha para dar a solução mais adequada às questões trabalhistas, presentes em todas as empresas privadas do País.”

MODERNO, COMO SEMPRE

“A partir de 1º de setembro seguramente haverá muitas falhas. Elas serão corrigidas e o ambiente aperfeiçoado. O grande número de assinaturas que o JB Digital vem recebendo nas últimas semanas, contudo, tem excedido as mais otimistas expectativas. Em breve, o JB também relançará, com novas ferramentas tecnológicas, suas tradicionais marcas Programa e Domingo. Todos os colaboradores do JB estão se esforçando muito para construir esse novo jornal. Há grande orgulho em transformá-lo no primeiro jornal 100% digital do País. O JB sempre foi moderno e o continuará sendo. Agora em plataformas utilizadas por atuais e futuras gerações.” Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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BRAZ BEZERRA/AJB

HISTÓRIA

Nossos demônios

JANGO HOMENAGEADO PELOS SARGENTOS NO AUTOMÓVEL CLUB NO RIO DE JANEIRO, EM MARÇO DE 1964.

Dois encontros com o Presidente João Goulart, um no poder, outro no exílio, em Montevidéu, após o golpe militar de 1964.

V

i o Presidente João Goulart pela terceira e última vez ao me despedir dele, em Montevidéu. Logo, eu iria atravessar clandestinamente a fronteira com o Brasil, em Rivera e Santana do Livramento, orientado pelo ex-Deputado Demistóclides Batista. O ex-Deputado e eu fomos encontrar o Presidente numa praça central da capital uruguaia, onde o abracei. Ele me desejou sorte. “Estaremos esperando a sua volta”, eu disse sem muita convicção. Estivera com ele meses antes, em Brasília. Éramos três dirigentes sindicais – Fernando Autran, Cid Salgado e eu – que o procurávamos em nome de todos os sindicatos de petroleiros do País. Lembro-me de que o Presidente entrou na sala furioso, mancando e esbravejando: “vocês só vêm aqui para me ameaçar. Isso é intolerável. Sou o Presidente dos trabalhadores, sempre dei força aos sindicatos, mas vocês estão me pressionando, isso eu não admito mais”. “Presidente”, respondeu Autran, “não viemos aqui para pressioná-lo, nem para polemizar ”. Na verdade, os sindicatos queriam negociar com ele a substituição do Presidente da Petrobrás, Francisco Mangabeira. “Entendemos perfeitamente”, prosseguiu Autran, “que o senhor queira colocar alguém da sua confiança na presidência da empresa...”. Jango se acalmou. Sorriu. “Vamos nos sentar aqui”. Sentamo-nos num sofá de couro, ele se acomodou numa poltrona, uma perna esticada. 10 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

POR RODOLFO KONDER “Manda vir um café”, gritou para o assessor parado junto à porta. Autran retomou a palavra: “Mas gostaríamos que os diretores fossem quadros de comprovada capacitação técnica, saídos das fileiras da Petrobrás – e indicados pelos sindicatos”. O Presidente puxou um bloco de papel que estava sobre a pesada mesa de centro, tirou uma caneta de bolso e perguntou: “Quais são os nomes?”. Naquele momento, nascia um sistema de cogestão na maior empresa da América Latina – uma experiência de vida curta. E eu tinha meu primeiro encontro com o Presidente João Belchior Marques Goulart, o Jango, então com 46 anos, herdeiro político de Getúlio Vargas. Estive com ele uma segunda vez, depois do golpe militar que o destituiu, numa reunião de exilados, em Montevidéu. Era um derradeiro esforço que empreendíamos – os dirigentes bancários Osmildo Stafford e Huberto Pinheiro, e eu – para tentar unir os brasileiros que ali viviam. Participaram do encontro: o Presidente Jango, o ex-Governador Leonel Brizola, Darci Ribeiro, Valdir Pires, Demistóclides Batista, Moniz Bandeira, Stafford, Huberto e outros políticos, cujos nomes agora me fogem. Nossa iniciativa resultou num fiasco total. As posições moderadas de Jango, um homem habitualmente conciliador, esbarravam nas propostas radicais de Brizola, que pretendia provocar um levante da Brigada Militar gaúcha, para

retomar o Rio Grande do Sul e enfrentar Brasília. A divisão entre os exilados se manteve. Pior: aprofundou-se. Jango nunca retornou. Morreu no exílio, em 1976. Filho de fazendeiro, formado em Direito, herdeiro de Getúlio, fez carreira política no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Era um homem profundamente dividido entre sua condição de grande proprietário de terras e sua posição como líder do populismo reformista de Getúlio, entre a permanência e a mudança, entre o conservadorismo e a modernização. O Presidente tinha um sorriso de menino e dormia de luz acesa. Depois de sua morte, fiquei sabendo que ele não gostava de ficar no escuro, à noite. Já separado da mulher, Maria Teresa, dormia sozinho. Mas frequentemente chamava o amigo Raul Ryff, para que ele se sentasse numa poltrona junto à cama. Os dois conversavam, Ryff lia até tarde – e só ia embora quando Jango estivesse finalmente adormecido. Ao conhecer esse detalhe significativo da intimidade presidencial, tentei imaginar as angústias que o acossavam, os fantasmas que povoavam as noites de João Goulart. Nem no Palácio ele conseguia escapar de seus pesadelos. E você? O que você vê, quando está no escuro e os demônios chegam?

Rodolfo Konder, jornalista e escritor, é Diretor da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo e Conselho Deliberativo da ABI.


Aconteceu na ABI

Um prêmio Acerj e ABI para o jornalismo esportivo O primeiro deles seria entregue em março de 2011, após escolha por um júri de alto nível indicado por ambas. A Associação dos Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro-Acerj vai instituir em colaboração com a ABI um concurso destinado a premiar os melhores trabalhos de cobertura esportiva tanto na imprensa como em rádio, televisão e sites jornalísticos, a serem escolhidos por um júri de alto nível a ser constituído pelas duas entidades. A entrega dos primeiros prêmios, abrangendo os trabalhos realizados neste ano de 2010, será realizada em março de 2011, em data a ser fixada pela Acerj. A criação do prêmio, cuja denominação será anunciada proximamente pela Acerj após pesquisa junto ao seu corpo social, foi o tema da reunião realizada na ABI em 29 de julho, com a participação do Presidente da Casa, Maurício Azêdo; do Presidente da Acerj, Eraldo Leite, e do Presidente do Conselho Superior da Associação dos Cronistas, Ló-

lizar no Auditório Oscar Guanabarino da ABI, incluirá uma exposição de fotografias e de caricaturas e charges esportivas de autoria dos jornalistas premiados e de outros profissionais que oferecerem colaboração ao evento. Lóris Baena saudou a adesão da Casa à proposta da Acerj, entidade nascida praticamente na ABI na gestão de Herbert Moses, que manteve um setor especializado para os jornalistas esportivos, o conhecido Departamento de Imprensa Esportiva-Die, dirigido pelo jornalista Canor Simões Coelho e que foi o embrião da Associação dos Cronistas que este fundaria. Sugestões sobre o prêmio e sua denominação poderão ser encaminhadas à Acerj e à ABI através do email premio jornalismoesportivo@abi.org.br.

ris Baena Cunha, que é também membro do Conselho Fiscal da ABI. Pela proposta preliminar da Acerj, os prêmios serão concedidos ao melhor repórter de jornal e revista, ao melhor fotógrafo de veículos impressos e ao melhor cinegrafista de veículos eletrônicos, aos melhores narradores, comentaristas e repórteres de campo de emissoras de rádio e televisão do Estado do Rio, ao melhor colunista, ao melhor chargista e ao melhor comentarista de rádio e televisão, bem como aos autores dos melhores livros esportivos. Eraldo Leite sublinhou que a premiação de livros dará dinamismo a um processo atualmente em curso, que é o aumento da edição de livros sobre esporte, abrangendo vários campos, desde o futebol ao ciclismo e à relação do esporte com a vida política e social. A cerimônia de premiação, a se rea-

Saudades de Galhardo, o Rei da Valsa Sua biógrafa, escritora Norma Hauer, organizou um sarau para assinalar o 25º aniversário da morte de um dos nossos maiores cantores. entrevistado por personalidades da música e da imprensa, como Lúcio Alves, Luís Cláudio, Nássara e Mister Eco. Conhecido como o Rei da Valsa, Carlos Galhardo foi um dos principais cantores da Era do Rádio, ao lado de Francisco Alves, Orlando Silva, Vicente Celestino e Sílvio Caldas. “Ele foi intitulado o Rei da Valsa pelo apresentador de tv Blota

REPRODUÇÃO

O Auditório Oscar Guanabarino, da ABI, foi palco de uma homenagem em memória aos 25 anos de morte do cantor Carlos Galhardo organizada por Norma Hauer, autora do livro Carlos Galhardo – Uma Voz Que é um Poema, de 1988, e grande pesquisadora da música popular brasileira. “Galhardo partiu em 25 de julho de 1985, há 25 anos. Estamos aqui hoje para reverenciar sua memória relembrando um pouco de seu imenso repertório, constituído de valsas, canções e todos os ritmos que fazem parte de nosso cancioneiro”, disse Norma na abertura do evento. Foram convidados para a homenagem os cantores Jairo Aguiar, Therezinha Senna, Léo Vaz, Milton Dantas, Osvaldo Souza, Sílvio Roberto, Célia de Souza, Edson Grey, Vera Lúcia, Castiliano e D’Lourdes. No repertório, dezenas de canções, entre as quais Eu Sonhei Que Tu Estavas tão Linda, de José Maria de Abreu e Francisco Matoso; Maringá, de Joubert de Carvalho; Bodas de Prata, de Roberto Martins e Mário Rossi, e Fascinação, de Marchetti e Armando Louzada. A homenagem teve início com a exibição do programa Memórias dedicado a Carlos Galhardo e que foi veiculado na década de 1970 pela TV Educativa, no qual o cantor foi

Homenageado na ABI, Galhardo foi um dos cantores mais populares de sua época e capa da Revista do Rádio diversas vezes.

Júnior, mas a sua primeira gravação foram os frevos Você Não Gosta de Mim, e O Teu Cabelo Não Nega, dos Irmãos Valença, em 1933. Ao longo da carreira ele cantou muitos frevos e sambas”, ressaltou Norma. O primeiro grande sucesso da trajetória de Carlos Galhardo foi Boas Festas, gravada em 1933. Um ano depois, o cantor conquistou o primeiro sucesso com a música de carnaval Carolina. Em 1935, estreou como cantor romântico com a valsa Cortina de Veludo, de Paulo Barbosa e Osvaldo Santiago. A primeira valsa de sucesso de Carlos Galhardo foi Apenas Tu, de Roberto Martins, gravada em 1936. A valsa carnavalesca Nós Queremos Uma Valsa também ficou muito famosa, assim como a música de carnaval Alá-lá-ô, de Nássara. Diz Norma Hauer que o grande legado do artista foi sua dedicação ao cancioneiro nacional. “Ele fez muito pela música brasileira, especialmente entre os anos 1930 e 1960, no rádio e também na tv, onde, além de cantar, foi apresentador de um programa só dele na Continental”. Um lutador Norma sublinha ainda a contribuição de Galhardo para a defesa da classe:

“Ele lutou pelos direitos dos artistas. Naquela época, apenas os compositores tinham alguma garantia. Foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos Intelectuais-Socinpro, em 1962, cujo objetivo é administrar e proteger obras artísticas de músicos, intérpretes, compositores, autores, editores e produtores. A partir daí, o artista passou a receber o direito pela execução, antes era só na venda. Com o trabalho nesta entidade, Galhardo acabou se afastando um pouco da música. Por tudo o que representou permanecerá na lembrança de todos nós que podemos ouvi-lo através dos discos que ainda estão aí.” Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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LEGISLAÇÃO

O STJ contra 800 da TV Manchete Através de sua Segunda Seção, o Tribunal toma o partido da TV Omega, nome real da Rede TV, em prejuízo dos empregados da emissora que lutam por seus direitos na Justiça do Trabalho. A decisão subtrai da Justiça do Trabalho competência que lhe cabe desde 1943. POR SÉRGIO BATALHA A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça-STJ proferiu, recentemente, acórdão em conflito de competência que provocou verdadeira crise na Justiça do Trabalho. O caso envolve cerca de 800 trabalhadores da antiga TV Manchete e do Grupo Bloch, que possuem ações na Justiça do Trabalho contra a chamada RedeTV (denominada formalmente de TV Omega Ltda.). Os trabalhadores alegaram que a TV Omega Ltda. seria responsável pelas dívidas trabalhistas da antiga TV Manchete Ltda. por ter assumido a exploração econômica do canal de televisão. Foi provado, nos respectivos processos trabalhistas, que a concessão do canal de televisão foi transferida em transação particular e onerosa entre os antigos donos da TV Manchete Ltda. e TV Omega Ltda. As disputas judiciais transcorreram por mais de dez anos na Jus-

tiça do Trabalho, e os trabalhadores foram vitoriosos com a tese de sucessão trabalhista na esmagadora maioria das ações, cristalizando jurisprudência neste sentido no próprio Tribunal Superior do Trabalho-TST. No entanto, quando a maior parte das ações já havia transitado em julgado, a TV Omega Ltda. engendrou uma manobra jurídica tão absurda quanto inusitada. Simplesmente, invocou um “conflito de competência” entre quase 800 processos trabalhistas e uma única ação existente no Tribunal de Justiça do Rio, na qual os antigos proprietários da TV Manchete Ltda. discutiam com a TV Omega Ltda. a responsabilidade sobre as dívidas fiscais e trabalhistas sob o ponto de vista do contrato entre eles firmado. A alegação da TV Omega Ltda. seria a de que haveria conflito entre a discussão dos limites da sucessão sob os pontos de vista empresarial e trabalhista. Surpreendentemente,

a empresa obteve uma liminar sobrestando os processos trabalhistas e, ao final, em uma apertada decisão com a maioria de um voto, a Segunda Seção declarou que a Justiça comum deveria decidir sobre a ocorrência de sucessão nos processos dos trabalhadores. Na prática, a decisão significaria a desconsideração das sentenças e dos acórdãos trabalhistas proferidos em quase 800 processos, a maioria com trânsito em julgado, e a supressão de competência da Justiça do Trabalho para apreciar a responsabilidade sobre dívidas trabalhistas nos casos de transferência da atividade econômica. O acórdão da Segunda Seção do STJ ainda não transitou em julgado, e foram opostos dezenas de embargos de declaração. Entre as falhas do acórdão, aponta-se a existência de coisa julgada na maioria dos processos, o que afastaria a incidência do conflito nos termos da Súmula nº 59 do próprio STJ para diri-

mir conflito com processos sob a jurisdição do TST (por força do artigo 102 da Constituição) e, por fim, a impossibilidade de conflito entre os conceitos de sucessão trabalhista e empresarial. De fato, o alegado “conflito de competência” não existe. Os juízes da Justiça do Trabalho analisaram a ocorrência de sucessão sob o ponto de vista do Direito do Trabalho, sendo que tal declaração produz efeitos apenas em relação ao pagamento dos créditos dos trabalhadores. Já o juiz da Justiça comum analisou a sucessão entre empresas do ponto de vista cível, com efeitos limitados à relação entre os contratantes. Assim, o fato de as dívidas trabalhistas e fiscais da TV Manchete Ltda. serem pagas pela TV Omega Ltda. na Justiça do Trabalho e na Justiça Federal não impede que esta última cobre tais dívidas dos antigos donos da TV Manchete na Justiça comum, sob a alegação de que não estava prevista no con-

ainda insuperada em luxo de um Teatro de Manaus, até à aventura na floresta virgem. Não por acaso, espanhóis, franceses, ingleses e americanos já tentaram “internacionalizar” a Amazônia. O último foi um milionário excêntrico que enterrou seus sonhos nas barrancas do Jarí. Mas o Amazonas lá está! Com suas grandes águas que correm sempre. Cor-

rem de dia e de noite, correm em nossos sonhos. Correm nas democracias e correm nas ditaduras. E sepultarão sempre, em enchentes arrasadoras, em turbilhões, os sonhos loucos de quem tentar dominá-las. Com o mundo apavorado diante do fenômeno do aquecimento global, as queimadas na Amazônia têm que acabar. Nem que seja na marra! Os gigan-

AMBIENTE

A Pátria das Águas Se as queimadas não cessarem na Amazônia, o milagre verde poderá transformar-se em deserto da morte. POR PAULO RAMOS DERENGOSKI Não se fala sobre Estado do Amazonas sem antes descrever o rio. Rolando desde o Urubamba, lá da Cordilheira peruana dos Andes, ele é a linha central da maior bacia hidrográfica da terra. O homem branco avistou-o há apenas 500 anos. O primeiro a descer por ele foi Francisco de Orellana, lugar-tenente de Pizarro. O primeiro a subi-lo foi o português Pedro Teixeira. Mas os índios lá estavam: waimiris, atroaris, caraíbas. Primeiramente chamaram-no Santa Maria do Mar Doce. Os índios aruaques chamavam-no Guieni e os tupis, Paraguaçu. De Manaus até à fronteira do Pará alguns o chamam Solimões e Maranõn. É a maior malha de afluentes, canais, igarapés, ilhas fluviais, lagos e várzeas do mundo. Se fosse explorado racionalmente para criação de peixes, como a piraíba por exemplo (que chega a pegar mais de 200 quilos) poderia alimentar a população da Terra. 12 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

Ao invés disso queima-se a floresta para plantar... capim... O Amazonas é o maior Estado do Brasil. Poderia ser mais rico. Tem ouro, manganês, petróleo... Mas, à exceção da Zona Franca, ainda se concentra no extrativismo. Durante muitos anos foi uma comarca do Grão-Pará e só em 1850, depois da revolta paraense da Cabanagem, outorgou-se-lhe a independência. De Oeste para Leste, de Benjamim Constant a Parintins, ou do Norte para o Sul, da Serra do Curupi, onde está situado o pico da neblina, o mais alto do Brasil, com 3.014 metros de altura até à Boca do Acre, nos cerrados finais da divisa com Mato Grosso. Ele é a Pátria das Águas, o milagre verde em busca da vocação regional, da preservação da natureza. A arca do tesouro da futura Biotecnologia, o maior banco ambiental do planeta, com as hidrovias de maior porte, com possibilidades infinitas de um turismo que vai desde a riqueza


Aconteceu Mensagens na ABI GERALDOMAGELA/AGÊNCIA SENADO

trato a assunção de tais dívidas. O que pretende a TV Omega Ltda. é que o negócio jurídico firmado com os antigos donos da TV Manchete prevaleça sobre as normas de ordem pública que protegem os créditos trabalhistas. Preocupa efetivamente todos os juristas que militam no Direito do Trabalho esta tentativa de subtrair da Justiça do Trabalho a competência para declarar a existência de sucessão trabalhista, prevista nos artigos 10 e 440 da CLT desde 1943. Há, evidentemente, fortes interesses empresariais por trás desta manobra e há um temor de que, caso seja bem sucedida, a sucessão trabalhista deixe de existir na prática, já que os juízes cíveis analisariam contratos semelhantes somente sob a ótica do Direito Empresarial. Na verdade, toda a sociedade espera que o STJ faça jus à alcunha que ele próprio se atribuiu, “Tribunal da Cidadania”, repondo a competência da Justiça do Trabalho em seu leito histórico, antes que este conflito de competência se transforme em um conflito institucional.

Simon quer um Senado eficaz e menos oneroso

Sérgio Batalha é Presidente do Sindicato dos Advogados do Estado do Rio de Janeiro e Conselheiro da OAB/RJ. Este texto foi publicado originalmente na edição nº 491, maio de 2010, da Tribuna do Advogado, órgão oficial da Ordem dos Advogados do Brasil–Seção do Estado do Rio de Janeiro/OAB-RJ, sob o título Justiça do Trabalho sofre ataque do STJ.

AGECOM

tescos incêndios começam em junho, na estação seca. Para derrotar os incendiários, só o Exército batendo mato por terra, a Marinha levantando ferros e adentrando pelos rios e a Força Aérea controlando tudo das alturas... Ou a Pátria das Águas se transformará em deserto da morte... Paulo Ramos Derengoski, jornalista e escritor, sócio da ABI, é radicado em Lages, SC, sua terra.

Em mensagem com que enviou à ABI seu livro O Senado nos Trilhos da História, o Senador Pedro Simon (PMDB-RS) defendeu a adoção de medidas “para tornar o Senado Federal mais efetivo, menos oneroso, mais transparente e mais ajustado às expectativas do Brasil, a quem todos nós Senadores devemos atender”. Simon, que representa o Rio Grande do Sul no Senado há 32 anos, presta homenagem à imprensa e aos jornalistas brasileiros, graças aos quais “ficamos sabendo, ao longo de 2009, que havia um outro Senado, ignorado pelo País e até mesmo por nós, Senadores da República”. No volume, de 122 páginas, Simon reproduz a íntegra do projeto de reforma administrativa elaborado pela Fundação Getúlio Vargas por contrato com o Senado e um resumo do discurso que proferiu na tribuna, analisando o Projeto de Reforma Administrativa do Senado. Diz o Senador que repassa o livro aos seus amigos jornalistas, “origem e base dessa saudável reflexão que se faz sobre as fragilidades e as necessidades do Senado Federal”. Foi esta a mensagem de Simon à ABI: “Graças à Imprensa e aos jornalistas brasileiros, ficamos sabendo, ao longo de 2009, que havia um outro Senado Federal, ignorado pelo País e até mesmo por nós, Senadores da República. A fachada oculta do Senado se regia por atos secretos, por decisões de gaveta, por nomeações quase clandestinas, por desatinos administrativos, por favores injustificados e por violações normativas justamente na Casa do Parlamento que, por definição constitucional, tem a nobre missão de revisar as leis que devem ser respeitadas por todos os brasileiros. Esta amarga revelação sobre nossas próprias deficiências obrigou o Senado a uma funda reflexão para corrigir seus erros e procurar os acertos que nos devolvessem, de novo, a admiração e o respeito do povo brasileiro, a quem devemos o voto e toda nossa dedicação. A conclusão de todos, dentro e fora do Senado, coincidiu na necessidade de uma profunda reformulação

de atos, métodos e procedimentos na ação, na formatação e na gestão administrativa e estrutural da Casa, que não poderão nunca ser mais importantes do que a dimensão política do Parlamento e a estrutura ética de todos os seus Senadores. Contratou-se a Fundação Getúlio Vargas-FGV para fazer um diagnóstico interno da Casa e para sugerir mudanças e aperfeiçoamentos em sua estrutura. No âmbito da Comissão de Constituição e JustiçaCCJ, criou-se uma Subcomissão Temporária da Reforma Administrativa, que eu tenho a honra de integrar, com a dupla finalidade de analisar a proposta da FGV e de recolher a contribuição do corpo funcional do Senado. A Subcomissão já realizou 15 reuniões, incluindo uma audiência pública com especialistas da FGV, e abriu espaço para ouvir os diferentes setores administrativos da Casa. O trabalho da FGV me deu a oportunidade de elaborar uma análise crítica da proposta, onde apresento outras alternativas para tornar o Senado Federal mais efetivo, menos oneroso, mais transparente e mais ajustado às expectativas do Brasil, a quem todos nós, Senadores, devemos atender. Meu trabalho mereceu uma bela síntese da lavra do próprio presidente da Subcomissão da Reforma Administrativa, Senador Jarbas Vasconcelos. Anexei a estes documentos a íntegra do projeto da FGV e um resumo de meu discurso da tribuna do Senado onde apresentei minha analise, para conhecimento do País e de todos os Senadores. Todo este conjunto está reunido, agora, neste livro, que repasso aos meus amigos jornalistas, origem e base dessa saudável reflexão que se faz sobre as fragilidades e as necessidades do Senado Federal. Ali, com certeza, poderão ser encontrados elementos de reflexão para ampliar e aprofundar esse saudável debate que nos une em torno de um mesmo, de um só objetivo: um Senado produtivo, transparente, eficaz e respeitado. (a) Senador Pedro Simon”

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LEGISLAÇÃO FRANCISCO UCHA

A Pec do Diploma fora da pauta Por causa de uma manifestação, que colocou em risco a segurança de servidores e parlamentares, foi suspensa a sessão plenária de 18 de agosto da Câmara dos Deputados. Com isso, projeto de autoria de Paulo Pimenta (PT-RS) ainda não tem nova data prevista para entrar na pauta de votações. POR PAULO CHICO

Konder lidera protesto na Educação

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Comissão Especial Durante as audiências realizadas na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, várias instituições manifestaram apoio ao texto. “Cito como exemplo, em especial, a Ordem dos Advogados do Brasil, já que a decisão do fim do diploma se deu, em última instância, no campo jurídico, pelo Supremo Tribunal Federal. Portanto, ter a OAB ao nosso lado nesse processo de restabelecimento do diploma tem sido fundamental, já que essa entidade tem autoridade para contrapor o entendimento dos ministros”, ressalta Paulo Pimenta, único Deputado a acompanhar o julgamento no STF. “Após a decisão, fui à tribuna da Câmara e denunciei o equívoco que havia sido cometido. Imediatamente, decidi que apresentaria alguma proposta legislativa para tentar invalidar a posição do STF”. Nem todos os setores, contudo, têmse manifestado favoravelmente à Pec 386/09, como avalia Paulo Pimenta: “A

grande mídia, de modo geral, tem-se manifestado contrariamente à proposta. Sinceramente, não entendo os motivos dessa posição, pois, com a decisão do STF, a sociedade ficou mais frágil e menos crítica. E ao longo do tempo será cada vez mais manipulada pelos grandes grupos de comunicação do País. A falta de exigência do diploma representa ainda um retrocesso na área da pesquisa científica no campo da comunicação, com a diminuição do número de mestres e doutores na área, em virtude da queda na procura pelos cursos. Dessa forma, o setor acadêmico do Jornalismo ficará sem avaliação e sem autocrítica, fatores que são fundamentais para sua evolução”. Se for aprovada em dois turnos na Câmara, ou seja, recebendo 3/5 dos votos favoráveis ao texto, a Pec seguirá para apreciação no Senado. Se aprovada nas duas Casas, a proposta não necessita de sanção presidencial para entrar em vigor. “Estou muito otimista em relação à aprovação. A Pec já foi aprovada em todas as Comissões pelas quais tramitou aqui no Congresso, e vamos reverter o equívoco que o STF cometeu ao confundir os conceitos de liberdade de expressão e informação jornalística. Afinal, se a alegação era de que o diploma impedia a liberdade de expressão, eu pergunto aqui se, por acaso, a população brasileira passou a se exprimir mais livremente agora? Aumentou a liberdade de expressão nos meios de notícias? A decisão do STF contra a profissão dos jornalistas foi equivocada. Provocou um retrocesso em toda a educação brasileira. Mas certamente vamos reparar esse mal que os ministros fizeram à nossa sociedade”, conclui Paulo Pimenta. SAULO CRUZ/AGÊNCIA CÂMARA

Por proposta do jornalista Rodolfo Konder, membro do Conselho Deliberativo da ABI, o Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo condenou o corte no Orçamento do Ministério da Educação. Konder, que é membro titular do Conselho Municipal de Educação, destacou na proposta que “o País exige mais apoio, porque a educação é a morada do nosso futuro”. Aprovada por unanimidade pelo Plenário do Conselho Municipal de Educação e intitulada “A educação em alerta”, a moção tem o seguinte teor: “O Governo Federal anuncia um corte dramático e prioritário no orçamento do Ministério da Educação. Um corte nesta área jamais deveria ser prioritário, muito menos dramático. Ao contrário, a Pasta precisaria receber recursos bem mais volumosos do que já recebe. O País exige mais apoio, a educação é a morada do nosso futuro. O Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo sabe perfeitamente que educar não significa somente instruir, transmitir conhecimentos, ensinar a calcular e raciocinar. Significa também promover o pleno desenvolvimento da pessoa, o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Um povo educado terá necessariamente sua autonomia e sua liberdade, sempre dentro dos princípios da ética e da tolerância. O Conselho Municipal de Educação está preocupado – e temeroso. Sabe que a educação precisa perseguir um sonho. O País precisa perseguir um sonho, mas só poderá fazê-lo por meio da educação. Não deve e não pode empobrecê-la. Se o fizer, estará empobrecendo o seu próprio futuro.”

Terminou frustrada a expectativa de votação da Proposta de Emenda Constitucional nº 386/09 na Câmara dos Deputados, em Brasília. De autoria do Deputado Federal Paulo Pimenta (PTRS), a proposta busca restabelecer a exigência do diploma de curso superior em Jornalismo para o exercício da profissão. Além da falta de mobilização dos políticos nas atividades legislativas, fruto do período de campanha eleitoral, a votação fracassou por uma questão de segurança. Por determinação do Presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), a pauta de votação foi suspensa por causa de uma manifestação ocorrida em 17 de agosto que culminou na invasão do salão verde da Casa. A expectativa, agora, é de que a agenda de votações somente seja retomada após as eleições. A manifestação foi realizada por policiais, bombeiros e agentes penitenciários, que cobram a aprovação de projetos de interesse de suas categorias, tais como piso salarial. No dia seguinte ao ato, parte dos manifestantes ainda continuava no local, o que provocou o cancelamento das atividades da tarde de 18 de agosto – data prevista para os debates a respeito da Pec do Diploma. A assessoria da Câmara informou que, durante a invasão, servidores da Casa teriam sido agredidos – ações que terminaram por gerar um clima de insegurança que impediu a realização da sessão no plenário. Contribuiu também para o cancelamento a falta de acordo entre os líderes sobre a pauta. Com isso, o chamado “esforço concentrado”, prometido pela Casa para agilizar a apreciação de projetos, mais uma vez, não obteve êxito. “Na realidade, apesar deste atraso, cabe ressaltar que nós estamos confiantes em relação à aprovação do texto. A mobilização da sociedade, em especial na internet, foi fundamental para garantir agilidade ao processo. Agora, temos que trabalhar no sentido de garantir a aprovação do texto em plenário. É importante salientar que, por se tratar de Proposta de Emenda à Constituição, regimentalmente é exigido um quórum qualificado e expressivo de parlamentares. Queremos fazer a votação o mais rápido possível. Porém, é necessário ter a margem de segurança em relação aos parlamentares que apóiam a iniciativa. Caso contrário, seria um risco, e até uma irresponsabilidade, colocar o texto em votação. Neste momento, qualquer atitude precipitada pode prejudicar todo o trabalho que está sendo realizado desde a queda do diploma”, disse o Deputado Paulo Pimenta.

Manifestações de categorias profissionais e período eleitoral à parte, qual será, de fato, o sentimento geral dos parlamentares em relação à proposta? “A volta do diploma é um clamor da sociedade. Segundo pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas, 77% da população são favoráveis à volta da exigência do diploma. E, acredito, nossos colegas serão sensíveis à opinião pública. A Pec transmite garantias à sociedade de um trabalho profissional, sério e comprometido com o interesse social. Maus profissionais existem em diferentes áreas. E não é por isso que vão acabar com o diploma de outras carreiras, como Medicina, Engenharia ou Direito”, disse Pimenta.

Deputado Paulo Pimenta: Equívoco do STF denunciado na tribuna da Câmara.


DIVULGAÇÃO

MERCADO

Pedro Martins Silva: A circulação dos jornais refletiu a recuperação econômica. Isso fica mais evidente com os novos títulos que são lançados.

Crise? Que crise? Pesquisa do Instituto Verificador de Circulação-IVC revela movimento e tendência de crescimento do mercado brasileiro de jornais, em contraposição à tese que dá como certa a redução do alcance da mídia impressa. POR PAULO CHICO

J

á faz algum tempo que especialistas em mídia vaticinam o fim dos jornais. Também é uma constante o clima de desânimo na direção de algumas Redações, sobretudo diante da suposta perda da força da palavra impressa em papel. Os números, contudo, contradizem esses sentimentos negativos que, por vezes, parecem dominar a mídia no Brasil. É o que mostra, por exemplo, pesquisa realizada pelo Instituto Verificador de Circulação-IVC. Segundo o levantamento feito com base em 94 títulos de publicações filiadas à entidade e divulgado no final de julho, a circulação de jornais cresceu 2% no primeiro semestre de 2010 no País. Entre janeiro e junho deste ano, a média de circulação dos jornais no Brasil foi de 4.255.893 exemplares por dia. Quer dizer, então, que os jornais brasileiros vivem um período fértil? E o que explicaria isso? Com a palavra o Presidente Executivo do IVC, Pedro Martins Silva: “Desde 2004 os jornais iniciaram uma retomada na circulação média, com aumentos consecutivos até 2008. No ano passado, tivemos queda por conta de um acontecimento de proporções extremas e em escala mundial, que foi a crise econômica. No entanto, assim que houve o primeiro sinal de arrefecimento a circulação dos jornais refletiu com recuperação e volta a ter números positivos. Esse cenário indica que os jornais vivem bom momento e isso fica ainda mais evidente com o movimento de editoras lançando diversos novos títulos”, resume ele, que faz previsões ainda mais otimistas: “Nós consideramos uma projeção de crescimento na circulação para o ano de 2010 que pode ultrapassar 5%”.

Aqui, cabe uma explicação técnica, que diferencia tiragem e circulação. O IVC audita apenas a circulação das publicações que considera efetivamente o número de exemplares comercializados, ou seja, que realmente chegam às mãos dos leitores. É um dado mais concreto e de mais importância para o mercado do que a tiragem bruta. “Creio que o aumento na circulação baseia-se na retomada dos investimentos. Com a diminuição da crise econômica, as empresas de diversos segmentos voltaram a investir, inclusive as editoras de jornais. Os investimentos não apenas colocam novos títulos no mercado, mas também geram ações para tornar os títulos já existentes mais atraentes. Paralelamente, a melhora da economia cria um ambiente mais favorável para que as pessoas comprem jornais. Creio que todo esse ciclo positivo é a principal explicação para o aumento na circulação das publicações”, diz Pedro Silva. Há campo para crescer Esse fenômeno será mesmo sustentável, ou em parte é explicado também por ações de marketing, como as centenas de promoções que tentam, muitas vezes a qualquer custo, agregar valores e produtos aos jornais? “Com a retomada dos investimentos, os veículos se movimentam para implementar ações de promoção. Considero que este é, sim, um dos fatores que contribuem fortemente para o aumento da circulação. O crescimento existe. E há indícios de que ele pode ser sustentável, como foi entre 2004 e 2008. Evidentemente, considero essa hipótese em uma situação comum, como a nossa atual, tendo o mínimo de

estabilidade econômica. Fora deste contexto é difícil ter perspectivas em qualquer setor de atividade”, pondera. Pedro Silva faz uma breve análise comparativa entre o potencial do mercado brasileiro e o de outros países: “É importante ter a compreensão de que no Brasil nós temos um cenário para os jornais diferente do que encontramos em países desenvolvidos, como Estados Unidos e Europa. Neles, o mercado tem a relação entre população e número de exemplares circulando com uma proporção de saturação mais elevada. Por outro lado, no Brasil esse índice é bem menor. Há muito mais novos leitores possíveis. Isso abre espaço para que os jornais possam crescer em penetração. Temos um potencial diferenciado de evolução na circulação”. O JB: crise longa O momento, no entanto, não é positivo para todos. Algumas publicações, como o Jornal da Brasil, enfrentam dificuldades. Para o Presidente Executivo do IVC, casos como esse são específicos.

O IVC: COMO É, O QUE FAZ, QUEM PAGA O Instituto Verificador de Circulação é uma entidade sem fins lucrativos tripartite formada e dirigida pelo mercado publicitário brasileiro, com o objetivo de assegurar a transparência e confiança dos números de circulação de veículos impressos e digitais. Os recursos que mantêm a operação da

“O quadro do JB se delineou ao longo de um período longo, e não de maneira súbita. O que acontece com ele não é reflexo de uma situação que pode ser transferida para todo o meio jornal. Entendo que se trata de um caso isolado. Além disso, se considerarmos os últimos cinco anos, por exemplo, temos um volume muito superior de títulos que foram lançados em relação aos que foram descontinuados”, afirma, colocando por terra outra crença dada como certa: poderia a internet decretar o fim dos veículos impressos? “Obviamente, o avanço da internet tem impacto não somente sobre os jornais, mas sobre todas as mídias. Contudo, esse é um impacto que neste momento está bem absorvido. Prova disso são os aumentos na circulação média do meio jornal. De uma forma geral, as empresas editoras de jornais estão se adaptando bem à nova realidade. E importante é o movimento delas no sentido de buscar novos modelos de negócios que incluam o digital. Vivemos um momento de dinamismo tão grande por conta dos avanços tecnológicos que é difícil imaginar como serão os jornais do futuro. Isso vai depender essencialmente do modelo de negócios que for adotado. Novas tecnologias como iPad reduzem a distância entre a experiência de ler um impresso ou digital. E novas tecnologias vão melhorar ainda mais esta percepção do leitor. Os editores estão atentos e ativos neste caminho e saberão aproveitar a convergência que resultará dessas tecnologias”, acredita Pedro Silva. Indicador positivo A circulação segue mesmo com tendência de alta. E a imagem dos jornais? Como anda a credibilidade deles junto aos leitores? E a sua captação no mercado publicitário? Têm perdido espaço para outros formatos de mídia? Os números, sabemos, fazem retratos instantâneos, captam apenas imagens frias. Quase nunca revelam além do primeiro olhar. “O IVC não verifica os dados de investimentos publicitários, nem o grau de credibilidade ou pesquisas de opinião a respeito dos veículos. Mas, nesses aspectos, acreditamos que o crescimento da circulação como um todo é um indicador positivo”, explica Pedro Silva. Pode ser. Alguém aí se arrisca a fazer uma nova pesquisa?

entidade são provenientes da receita gerada pela auditoria de cada veículo filiado e, ainda, pelas contribuições de agências e anunciantes filiados, além de assinantes que se filiam ao Instituto para ter acesso aos dados levantados. Com unidades no Rio de Janeiro e São Paulo, o IVC é filiado à International Federation of Audit Bureaux of Circulations-IFABC, entidade que congrega os principais institutos de

auditoria de circulação do mundo. Para isso, atende a diversos requisitos, tais como ter um Conselho eleito com os representantes dos três segmentos do mercado publicitário (anunciantes, agências de propaganda e veículos) e um presidente que seja representante do segmento de agências ou anunciantes. E precisa atuar tendo como base procedimentos normatizados de auditoria de circulação.

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MERCADO

Um diário em SP para se repensar o jornal Com cara de revista, o Diário de S. Paulo lança seu novo projeto editorial e gráfico falando em revolucionar o jornalismo impresso no Brasil. POR MARCOS STEFANO Qual será o futuro dos jornais? Diante das transformações pelas quais a imprensa passou nas últimas décadas e com a crise dos impressos e seus ingredientes, que incluem quedas freqüentes nas tiragens, redução das verbas de publicidade e fragmentação da audiência, cada vez mais disputada pela televisão e pela internet, responder a essa pergunta deixou de ser exercício dos teóricos da comunicação para se tornar necessidade para a sobrevivência de muitos veículos. Enquanto uns fecham as portas, outros passam por mudanças e remodelações na busca dos leitores perdidos. Mas também há aqueles que, em suas transformações, vão mais longe, a ponto de buscar novas alternativas e repensar o modo tradicional como se faz um jornal diário. Esse parece ser o caso do Diário de S. Paulo, que passou no último mês de julho por uma das mais radicais reformas gráficas e editoriais em mais de um século de circulação. “As mudanças são conceituais. Não queremos um jornal apenas informativo ou reflexivo, mas pós-noticioso, com cara de revista mesmo”, explica o jornalista Leão Serva, Diretor de Redação do Diário. Com experiência tanto em impresso quanto na internet e passagens pela Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde e portal IG, Serva foi contratado para comandar o processo. Em termos mais práticos, como ele mesmo explica, o jornal pretende deixar a vocação de dar a informação a cargo da internet, do rádio e da televisão, para se concentrar nos bastidores, no desdobramento da notícia. “Não anunciamos um novo plano ou uma mudança na economia. Trabalhamos as consequências”, diz. O discurso não é propriamente uma novidade, já que a maioria dos jornais busca esse caminho. Mas basta pegar a nova edição do Diário para comprovar as diferenças. A começar pelo formato. Antes em tamanho standard, a publicação decidiu investir na tendência de formatos mais compactos e adotou o berliner, um tablóide um pouco mais alongado, o mesmo utilizado pelo Jornal da ABI. Nesse novo tamanho, o veículo passou a ter 64 páginas inteiramente coloridas 16 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

na maioria das edições e sem divisões de cadernos, características que já faziam parte dos jornais da Rede Bom Dia, da qual a folha paulistana agora faz parte. De acordo com nota divulgada pelo Grupo Traffic, dono da Rede, para que essas alterações fossem possíveis foram investidos US$ 1,5 milhão no parque gráfico. No logotipo, a tradicional cor preta cedeu lugar à azul da Rede Bom Dia. Mas o destaque maior ficou para a marca “diário” – assim mesmo, toda em caixa baixa – que aparece no retângulo vermelho. Uma outra mudança atingiu diretamente a Redação, que ganhou nova planta interna, bastante diferente da convencional. Isso porque as várias editorias foram abolidas e diluídas em três macroeditorias. A Dia a Dia, de cor azul, concentra a cobertura de economia, Brasil, internacional, policial, cotidiano e cidades. Viva, de verde, traz cultura, lazer, entretenimento, saúde e educação. A Esportes ficou com a laranja. Além delas, há os suplementos S!, com o guia cultural da semana, e R!, com indicação de bares, restaurantes e baladas. Com dobraduras e parecendo mapas, eles circulam às quintas e sextas-feiras, respectivamente. A revista dominical Diário Dez! e os classificados, às quartas, sábados e domingos, continuam circulando. Ruptura A repaginação gráfica e de conteúdo contou com o apoio dos consultores da espanhola Innovation. Antes do lançamento, foram produzidos cinco números zero para fazer todos os ajustes necessários. Entre as principais apostas desse novo formato está a capa da publicação, que traz menos chamadas. E não será surpresa quando a principal chamada ocupar quase metade da primeira página. Se não houver anúncio publicitário, a quarta capa do Diário também receberá tratamento de

Fotos abertas, capas arejadas e infográficos são as armas do Diário de S.Paulo para atrair novos leitores. Para Leão Serva, o jornal de hoje não deve ser apenas informativo ou reflexivo, mas pós-noticioso, com cara de revista.

FRANCISCO UCHA

capa, destacando a cobertura esportiva. O mesmo vale para a página dupla central. Quando não for comercializada, terá uma reportagem fotográfica. “Esse projeto representa uma ruptura de modelo. Hoje, exploramos bem mais as fotos. Como numa revista, os espaços em branco e o tamanho maior valorizam as imagens. A combinação desses recursos com letras maiores, gráficos e textos curtos dará agilidade para quem lê seu jornal no ônibus, no metrô ou no carro”, diz Renata Maneschy, Editora de Arte. “As mudanças não se restringem ao impresso. Podem ser vistas no site do Diário, que está em ampliação para concentrar o conteúdo informativo. “Antes, tínhamos um texto principal e três retrancas no jornal impresso. Agora, haverá matérias independentes e relacionadas ao site. Quando o repórter sai da reunião de pauta para apurar uma matéria, já vai pensando em que conteúdo produzirá no pós-noticiário”, completa Maneschy. Apesar de falar em pós-noticiário, a direção do Diário não acredita que a publicação se torne mais fria. Pelo contrário, o notícia diária continua, mas com um tratamento diferente. Exemplo claro disso se deu logo na estréia do novo formato, no domingo 25 de julho. A capa do veículo destacava a disputa eleitoral entre os presidenciáveis José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT). Além de uma matéria sobre como andava o embate e como foram as trocas de farpas durante a semana, outra reportagem trazia o curioso perfil de outro José e outra Dilma, estes casados há 34 anos.

Promoções Para valorizar o novo formato, a direção da empresa prepara promoções e campanhas publicitárias. Em agosto, por exemplo, teve início uma promoção que premiará os leitores com dois carros zero quilômetro, 60 motos e milhares de outros pequenos prêmios. O objetivo é criar um elo com o leitor e o slogan já foi escolhido: “Meu querido Diário”. O alvo é aumentar a tiragem média, passando dos 42.435 exemplares dos primeiros meses, de acordo com o Instituto Verificador de Circulação-IVC, para 100 mil exemplares por dia até o fim do ano e aumentar a base de assinantes, atualmente na casa dos 12 mil. O desafio não é simples. Centenário, o Diário já foi considerado um dos mais importantes jornais do Brasil. Fundado em 1884 por José Maria Lisboa e Américo de Campos com o título de Diário Popular, era uma publicação de breves anúncios, voltada para pequenos negócios. Com uma tiragem razoável, não demorou para conquistar uma situação financeira sólida. Entre 1950 e 1970, o Dipo, como se tornou conhecido, viveu seu apogeu, destacando-se como o jornal que “falava a língua do povo”. Entre os importantes profissionais que passaram por sua Redação há nomes de peso, como Joaquim Alessi e José Roberto Alencar. O sucesso atraiu a atenção de Assis Chateaubriand e de seus Diários Associados, que compraram o veículo. Os anos 1980 trouxeram tempos de declínio para o jornal, principalmente por causa do crescimento de seus con-


FOLHA DIRIGIDA

A Folha Dirigida comemora 25 anos correntes. Ainda assim, ao ser adquirido pela Infoglobo em 2001, o Dipo era a quarta força entre os jornais paulistas. Na época, a aquisição foi muito badalada, pois era vista como a grande oportunidade do grupo comandado por Roberto Marinho de entrar no concorrido mercado de jornais diários da maior praça brasileira. Para tanto, nesse mesmo ano, o veículo sofreu uma grande reformulação. Teve o título mudado para Diário de S. Paulo e, mesmo mantendo a linha popular, deixou um pouco de lado as matérias sobre polícia, diminuindo o tom sensacionalista. Quando o empresário J. Hawilla, dono

A maior rede de jornais do Brasil Textos curtos, informação ágil de fácil compreensão e muitos elementos gráficos. Essa receita que fez o sucesso da internet também foi a responsável pela popularização da maior rede de jornais do Brasil. Criada no final de 2005 pelo Grupo Traffic, mais conhecido por ser líder de marketing esportivo e dono dos direitos de comercialização dos principais campeonatos de futebol da América Latina, entre eles a Copa Libertadores, a Rede Bom Dia cresceu no interior paulista. Em cidades como Bauru, Jundiaí, Sorocaba, Marília e Catanduva, a empresa montou jornais com o mesmo nome, o mesmo padrão gráfico e os mesmos princípios editoriais. Enquanto uma central de produção fornece as matérias e colunas comuns a todos os veículos, pequenas Redações, em cada praça, são responsáveis pelo conteúdo local. Comercialmente, a fórmula tem sido um sucesso. Atualmente, são sete jornais diários próprios, além de vários outros licenciados e do Diário de S. Paulo, que foi comprado em outubro de 2009 e garantiu a entrada do Grupo na capital paulista. Sem falar nos planos de expansão dessa rede, que pode contar até o fim de 2010 com 23 jornais. Mesmo com tanta força e apetite, o impresso é apenas uma das facetas da Traffic. A outra é a televisão. Afiliada da Rede Globo, a TV TEM é formada por uma rede de quatro emissoras, com sedes e filiais em alguns dos mais importantes centros do interior paulista. No total, essa rede atinge uma população de quase 8 milhões de pessoas, em 318 Municípios, o que corresponde a quase metade do Estado de São Paulo.

da Traffic, anunciou a compra do diário e de seu parque gráfico, em outubro do ano passado, a notícia causou certa estranheza. “A decisão de vender foi tomada a partir de uma proposta do Grupo Traffic. Porém, está em linha com a estratégia da Infoglobo de focar seus esforços nas áreas e segmentos em que a empresa é líder, como a televisão, e ampliar o investimento em novos negócios analógicos e digitais”, disse na ocasião Paulo Novais, Diretor-Geral da Infoglobo. Claro que o mau momento pelo qual o jornal atravessava pesou na venda, mas o negócio foi muito comemorado por Hawilla, que vislumbrou a possibilidade de entrar forte num mercado há muito desejado. “Esta é nossa grande oportunidade de entrar na capital do Estado, onde temos jornais tradicionais e de qualidade. Será um estímulo a mais para implantarmos nosso modelo de um jornalismo da era da internet, que caracteriza a Rede Bom Dia no interior de São Paulo”, declarou Hawilla. Rotina de trabalho Se vai dar certo ou não, só o tempo e as respostas dos leitores dirão. Por enquanto, tem provocado profundas mudanças na rotina de trabalho. Literalmente, o jornal acorda mais cedo, já que as reuniões de pauta e a diagramação foram antecipadas. Por outro lado, a intensa atividade tem aberto novas vagas e oportunidades para jornalistas. “Mesmo com a redução do consumo de jornais dos últimos anos, avaliamos que existe um potencial muito grande. É um investimento a longo prazo”, diz Leão Serva. Mas se os jornais tiverem o perfil de revistas, como ficam as próprias revistas de informação semanais? “O mercado dá a elas espaço semelhante a outras publicações mensais. Não é de hoje que temos uma redução do hard news nesses veículos. A não ser que se tenha um furo ou um texto mais analítico sobre um acontecimento, as capas são de temas mais frios, comportamentais. Mais ligados ao indivíduo do que ao mundo ao redor”, analisa o Diretor de Redação. Quer se goste, quer se critique a maneira como está sendo feita a reforma do Diário de S. Paulo, discutir o jornalismo impresso do dia-a-dia é oportuno e necessário. Ainda mais se isso é feito na prática.

Solenidade especial foi realizada nos salões do Copacabana Palace, seguida por jantar de confraternização para os cerca de 800 convidados. Em uma festa marcada pela emoção e pela presença de figuras de destaque em vários segmentos, a Folha Dirigida comemorou seus 25 anos com um jantar no Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. O evento ocorreu no dia 12 de agosto e reuniu cerca de 800 convidados. Personalidades das áreas da educação, do turismo e do trabalho que fizeram questão de prestigiar o jornal puderam, assim, se confraternizar durante coquetel servido nos salões do hotel. No início da solenidade, os convidados assistiram a um vídeo sobre a trajetória do jornal, fundado em 1985. O vídeo também mostrou a ampliação do foco editorial. Inicialmente criado como um jornal de concursos, a Folha Dirigida passou a fazer parte de um grupo editorial que coloca no mercado periodicamente publicações com uma cobertura permanente nas áreas de educação, turismo e trabalho, sempre com o viés de fortalecimento da cidadania. Diversas autoridades, entre elas o Ministro do Turismo, Luiz Barretto, participaram do evento. Ele destacou a contribuição que o Grupo Folha Dirigida, através das publicações Folha do Turismo e Mercado & Eventos, traz ao debate das políticas públicas e questões primordiais para o setor. “É fundamental ter uma imprensa segmentada, especializada, que nos ajuda não só a divulgar questões importantes do turismo brasileiro mas, também, que coloca questões relevantes em debate”, salientou o Ministro. O Ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi, enviou mensagem em vídeo, destacando a linha editorial que, ao divulgar sistematicamente as informações sobre concursos públicos, tem possibilitado maior qualificação dos quadros de pessoal de órgãos públicos oficiais. “A Folha Dirigida é um jornal independente, que mostra cada vez mais a importância do serviço público, do servidor público e do Estado”, frisou. A festa reuniu diversas autoridades da área de educação, à qual a Folha Dirigida também se dedica. Entre elas, o Professor Cícero Rodrigues, que representou o Ministro da Educação, Fernando Haddad; o Presidente da Academia Brasileira de Educação, Carlos Alberto Serpa de Oliveira; o Presidente da Aca-

Adolfo: O fundamental em nossa empresa não são as vitórias, mas a forma como conseguimos estas vitórias.

demia Brasileira de Medicina, Pietro Novellino; além de reitores, dirigentes educacionais, pesquisadores, políticos e outras figuras de destaque no setor. Como Arinos Presente ao ato, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, destacou em discurso a perseverança, o talento e a capacidade de trabalho de Adolfo Martins, criador do jornal, como aspectos fundamentais para o Grupo Folha Dirigida transformar-se em poderoso instrumento de comunicação, que hoje atinge 2 milhões de leitores por mês. Lembrou o Presidente da ABI que o poeta Carlos Drummond de Andrade definiu Afonso Arinos de Melo Franco como “um trabalhador muscular da cultura”, quando este lançou o livro O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, tal o vulto da pesquisa que realizara e o fôlego da produção intelectual que o conjunto de sua obra então alcançara. “Tal como Drummond disse de Arinos, podemos dizer que Adolfo Martins é um trabalhador muscular do jornalismo”, disse Maurício, acrescentando que “a ABI se sente muito gratificada em poder participar desta solenidade que marca os 25 anos da Folha Dirigida e do idealismo do companheiro Adolfo Martins”. Tudo com ética Adolfo Martins, Presidente do Grupo, em seu discurso de saudação e agradecimento, lembrou um dos pilares do jornal para alcançar a evolução que teve nos últimos 25 anos. “O mais importante em nossa organização, desde o primeiro dia, não tem sido conquistar vitórias. O fundamental tem sido a forma como conseguimos estas vitórias”, salientou Adolfo ao falar sobre o compromisso ético que tem pautado a atuação dos veículos da casa. No encerramento de sua fala, Adolfo Martins chamou ao palco os diretores do Grupo, numa homenagem simbólica a todos o funcionários e colaboradores do jornal. Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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MERCADO

Nova ordem do Dia em São Paulo Grupo O Dia retoma investimentos e aposta no mercado de São Paulo, onde lança suas publicações Meia Hora e Marca Campeão! POR PAULO CHICO Ao mesmo tempo em que lamenta o fato de um de seus maiores títulos – o Jornal do Brasil – despedir-se das bancas e migrar para o online, o Rio de Janeiro assiste a uma operação de mercado em sentido contrário, isto é, de aposta na expansão da circulação de veículos impressos. A Empresa Jornalística Econômico-Ejesa, que controla o Grupo O Dia, ampliou no dia 19 de julho a sua atuação no mercado editorial, ao lançar a versão paulista do jornal carioca Meia Hora. Conhecido por suas capas quase sempre irreverentes e pela proposta de leitura rápida, o tablóide, voltado para as classes C e D, chega a São Paulo mantendo seu formato, sua periodicidade diária e o preço de capa de R$ 0,50. As novidades não param por aí. “Depois da compra da Editora O Dia pela Ejesa, empresa brasileira que publica desde outubro o Brasil Econômico, trouxemos o Meia Hora para São Paulo e fizemos uma grande reformulação no Campeão!. O esportivo passou de 24 para 32 páginas e cresceu também em tamanho, adotando o formato berliner nos moldes de O Dia e do Brasil Econômico. Entre repórteres, redatores, editores, fotógrafos, diagramadores e equipe da Arte, foram em torno de 40 contratações nesse processo de chegada dos dois títulos a São Paulo. Num momento em que são noticiados o fechamento de jornais, o fim de edições impressas ou o enxugamento de Redações, estamos falando aqui da criação de pos-

Com acesso à pauta diária do jornal espanhol Marca, a edição brasileira publicou entrevista exclusiva com Kaká.

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Dinâmicas e bem ilustradas, o Marca Campeão! mostra suas duas caras: a paulista e a carioca.

O ilustrador Nei Lima, cuja caricatura de Zico foi publicada na edição de estréia da nova fase do Marca Campeão!, foi um dos reforços contratados da nova equipe.

tos de trabalho com as iniciativas da Ejesa”, comenta Alexandre Freeland, Diretor de Redação de O Dia. A publicação esportiva foi também rebatizada. “Desde que criamos o Campeão!, há pouco menos de um ano, o jornal Marca tem sido uma referência, pela importância que tem no jornalismo esportivo mundial e pela alta qualidade de seus produtos, que vão muito além do veículo impresso. Eles têm o melhor site – e também o mais acessado. Fazem uma bela operação na rádio. No processo de reformulação do Campeão!, mandamos uma equipe para Madri para estagiar e conhecer o método de trabalho do maior jornal esportivo do mundo. Estiveram lá o Marcelo Torres, que é Editor-Assistente, o Léo Corrêa, Editor de Fotografia, e o Saulo Santana, Editor de Arte. Os espanhóis também tiveram a oportunidade de conhecer o nosso projeto em detalhes. E assim se consolidou a parce-

ria. Vale lembrar que estamos tratando dos pólos do futebol internacional: a Espanha, atual campeã do mundo que vai querer defender o título em 2014, e o Brasil, sede da próxima Copa e com a obrigação de conquistar o hexa. Marca, na Espanha, e Marca Campeão!, no Brasil, são os jornais que vão tratar de forma mais profunda essa conexão entre os países mais importantes do futebol na atualidade”, aposta Freeland. A equipe do Marca Campeão! tem acesso à pauta diária em Madri e pode selecionar o que considera de maior interesse para o leitor brasileiro: reportagens, infográficos, fotos. Foi assim, por exemplo, com a entrevista exclusiva de Kaká, em que ele revelou ter feito infiltrações para jogar na Copa. Foi publicada a íntegra da entrevista, com fotos exclusivas. Um furo mundial, que demarcou as vantagens dessa parceria para o público brasileiro já na primeira semana do Marca Campeão!. E o Marca também publica histórias brasileiras, como a do Ganso, do Santos, admitindo seu sonho de jogar no Real Madrid ao lado do próprio Kaká e de Cristiano Ronaldo. O Marca Campeão! concentrou boa parte dos recentes investimentos feitos pela Ejesa no grupo. Mais empregos “O jornal aumentou sua equipe no Rio, montou uma Redação em São Paulo e aprofundou a cobertura dos clubes. A arte é um dos pontos altos no Marca Campeão!. Não existe no Brasil jornal mais bem desenhado, com design mais arrojado e no qual informação e recursos gráficos sejam usados de forma tão criativa em benefício do leitor. Tudo isso graças ao projeto desenvolvido pelo André Hippertt e pelo Saulo

Santana. O site também foi reformulado e ganhou em interatividade. Ampliamos a cobertura de esportes olímpicos e de modalidades como automobilismo, uma das preferidas do público em São Paulo. Nos próximos dias, vamos começar a apresentar os novos colunistas. E, é claro, a equipe é artilheira naquilo que simboliza o gol do jornalismo: o furo, a informação exclusiva”, explica o Diretor de Redação de O Dia. Na prática, neste momento, as operações de O Dia nas praças do Rio e de São Paulo funcionam assim. Há duas capas diariamente para o Meia Hora e o Marca Campeão!. O Meia Hora dá mais destaque às notícias locais de acordo com a sua praça. Ou seja, no Rio, enfatiza isso na primeira página e abre usualmente as páginas internas com o noticiário do Estado do Rio. Em São Paulo, o jornal conta antes as histórias de lá. No caso do esporte, do futebol em especial, prioriza também os clubes locais. Plano: investir “Os dois jornais vão muito bem, dentro do nosso plano de crescimento. Montamos uma operação própria para distribuição dos jornais em São Paulo, banca a banca”, conta Freeland, que fala de outros lances nessa política de revitalização do grupo. “A Ejesa tem planos de investir ainda mais no jornal O Dia. A marca será fortalecida. Inovações estão previstas para breve, mas ainda não posso dar detalhes. Só uma coisa não mudou, nem vai mudar forma alguma: a firmeza no compromisso com as bandeiras históricas de O Dia, um jornal que defende os interesses de seus leitores, daquilo que é melhor para o Rio e para o Brasil. Essa, aliás, é a marca da Reda-


ção de O Dia, uma equipe combativa e de alta qualidade, que reúne alguns dos melhores profissionais do Brasil em reportagem investigativa e outros que trabalham focados em áreas de grande importância para o desenvolvimento. Temos, por exemplo, uma cobertura sistemática e em profundidade de educação pública. Isso se reflete na quantidade de prêmios jornalísticos conquistados pelos nossos profissionais. O mais recente foi o Prêmio Sip na categoria Crônica, com uma série especial sobre a participação dos militares brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Os vencedores foram Marco Aurélio Reis, Aline Salgado e Élcio Braga, os únicos de um veículo brasileiro a ganhar este ano um Prêmio de Excelência com reportagem na Sociedade Interamericana de Imprensa”. Freeland explica ainda a polêmica decisão da Eseja que, no dia 26 de julho, enviou mensagem à Associação Nacional de Jornais-ANJ, pedindo a sua desfiliação da entidade. A Ejesa vinha sendo acusada pela própria ANJ e pela Abert de suposto descumprimento do artigo 222 da Constituição, que prevê um mínimo de 70% de capital nacional para empresas jornalísticas e de rádio e TV, e alega que se sentiu prejudicada com as notícias que têm sido divulgadas, com suspeitas de que o controle da empresa pertença ao grupo português Ongoing. “A Ejesa é uma empresa brasileira, opera rigorosamente dentro do que prevê a lei brasileira, cria empregos e oportunidades para brasileiros, aquece o mercado de comunicação, acredita no potencial do País e vê enorme perspectiva de crescimento e prosperidade para todos. Está fazendo a sua parte para movimentar a economia brasileira e a melhor prova disso já está diariamente nas ruas, nas bancas do Rio e de São Paulo. Por meio do Instituto Ary Carvalho, aprofundou sua preocupação social, seu trabalho com comunidades do Rio do Janeiro. A ANJ negou injustificadamente a filiação do Brasil Econômico e lançou denúncias inverídicas sobre a Ejesa, que sempre atuou de forma transparente. Essa decisão pela desfiliação do jornal O Dia e dos outros títulos é uma resposta à postura antiética e moralmente indefensável da ANJ”, rebate Freeland. O futuro: jornal popular Diretor-Executivo Comercial de O Dia, Paulo Fraga destaca a importância estratégica dos lançamentos das publicações do Grupo em São Paulo. “Vale lembrar que este é o maior mercado do Brasil, com importância nacional e grande peso econômico. Nossa decisão, por exemplo, de lançar o Meia Hora paulista teve como fundamento, sobretudo, a nossa percepção de que faltava, naquela praça, uma proposta mais clara e ampla de jornal popular. Por isso, optamos por buscar nosso espaço nesse segmento. E, neste primeiro momento, nosso principal desafio foi

Nas bancas, para ser o maior A Editora Abril lança nova estratégia na cobertura esportiva e Jornal Placar deixa de ser gratuito para aumentar sua presença na Grande São Paulo. POR M ARCOS STEFANO

Com manchetes criativas, o Meia Hora desembarcou em São Paulo disposto a garantir seu espaço nas bancas.

adequar o formato tradicional, já consagrado no Rio, ao perfil do consumidor paulista. É preciso respeitar o perfil local do leitor – seus hábitos, cultura e até mesmo linguagem. Pelos resultados iniciais, podemos afirmar que estamos obtendo êxito neste trabalho”, afirma Fraga, que, assim como Freeland, tem passado quase todos os dias da semana na capital paulista. Paulo Fraga aposta alto no papel dos chamados jornais populares, bem como nos veículos esportivos, para a sustentação da mídia impressa no Brasil. Se conseguem somar expressivas tiragens, não faltariam, ainda, a títulos como o Meia Hora prestígio e peso comercial? Fraga diz que não. “Isso não é verdade. O Meia Hora é um sucesso de vendas no Rio, e também um vitorioso na área comercial. Essas publicações têm conquistado espaços crescentes no mercado, inclusive pelo fato de as classes C e D, às quais são destinadas, apresentarem um poder cada vez maior de compra. Elas agora são comsumidoras. E esses jornais aumentam o vigor do mercado e a audiência no target que muitos anunciantes querem atingir”, avalia o Diretor-Executivo Comercial, que, no caso do Marca Campeão!, aposta na força do calendário de eventos esportivos no Brasil como promessa de crescimento do número de leitores: “Com a Copa do Mundo e as Olimpíadas, o esporte está cada vez mais presente na cabeça das pessoas. E representa um business importante, que atrai um grande número de expressivos anunciantes.”

O fim da Copa do Mundo da África não trouxe novidades apenas ao mundo do futebol. Já no clima da próxima competição, que acontecerá justamente no Brasil, em 2014, a imprensa esportiva começa a se preparar para aproveitar o bom momento do esporte nacional. Um dos primeiros passos foi da Editora Abril e envolveu uma das marcas mais prestigiadas da mídia esportiva brasileira. Desde o mês de julho o Jornal Placar, que antes era distribuído gratuitamente nos principais cruzamentos das ruas da cidade de São Paulo, ganhou as bancas e passou a ser vendido. Outra mudança acontece na periodicidade. Normalmente, a publicação saía todas as segundas e sextasfeiras; durante a Copa, tornou-se diária. Agora, virou semanal, lançado todas as segundas. Com o preço de capa a R$ 1,00, o periódico passa a ter uma tiragem de 100 mil exemplares por edição, que o transforma no jornal esportivo de maior tiragem na região e o faz presente nas bancas de toda a Grande São Paulo, incluindo o ABCD. O número de páginas também aumentou. A princípio, de 12 para 24, mas há planos para chegar a 36. Nota divulgada pelos editores informa que as mudanças do modelo gratuito para o pago e de duas edições por semana para uma estavam nos planos da Abril desde o lançamento da publicação, em 2008. “Amadurecemos a idéia e estabelecemos o fim da Copa do Mundo como o momento para essas mudanças”, explica Marcos Emílio Gomes, Diretor do Núcleo. A opção por mudar a periodicidade e migrar para as bancas foi finalmente implementada após dois fatores principais que giraram em torno da competição mundial. O primeiro é a natural diminuição dos anúncios, que durante a Copa permitiram à publicação ser diária. O segundo foi a resposta do público. Muita gente queria o jornal, mas como ele estava restrito a algumas re-

giões, acabava sem. O problema era ainda maior nos fins de semana, quando outros gratuitos não costumam circular e toda a dinâmica do fluxo de pessoas em São Paulo é alterada. Plataformas O novo Jornal Placar faz parte de uma estratégia mais ampla, que engloba todas as plataformas da marca Placar. A cobertura diária e gratuita de eventos esportivos, principalmente do futebol, será centrada no site da publicação. O objetivo é alcançar a marca de três milhões de page views mensais ainda em agosto. Já a revista Placar se manterá mensal, voltada para reportagens especiais, entrevistas e matérias mais analíticas. Marcas que fizeram a publicação se consolidar como uma das principais do País nas últimas décadas. “O jornal não deverá simplesmente competir com os diários, pois não se limita a cobrir a rodada do fim de semana dos campeonatos de futebol. Também analisa as equipes e projeta o restante da semana. Funciona como uma espécie de revista semanal. O hard news está por conta do site, com um perfil mais noticioso. Já a revista continua mais analítica. São mídias complementares, que falam com o público mensalmente, semanalmente e a cada momento do dia também. Vamos esperar para conferir os resultados, mas não acredito que uma vá canibalizar a outra”, afirma Sérgio Xavier, Diretor de Redação dos veículos Placar. Segundo ele, as matérias do jornal só começarão a entrar na internet a partir da quarta-feira, enquanto o jornal já poderá ser encontrado nas bancas na segunda. Com 40 anos completados em 2010, Placar não é apenas uma das principais revistas brasileiras. Transformou-se numa marca de negócios, uma verdadeira grife, quando o assunto é futebol, que realiza anualmente diversos eventos, incluindo o Bola de Ouro, um dos principais prêmios do futebol brasileiro. Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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ESPECIAL

ELIANE SOARES

FERREIRA

Gullar “Tudo o que a gente faz só tem sentido por causa do outro”

Da infância rebelde em São Luís do Maranhão aos círculos literários do Brasil e do exterior, o poeta completa 80 anos, ainda se emociona com a recepção à sua obra e diz que o leitor é que vai carregar no colo os seus poemas. POR F RANCISCO UCHA E BRUNO VAZ

Poeta, revolucionário, jornalista. O maranhense José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar, já teve muitas experiências revolucionárias em seus 80 anos de vida, que ele completa agora em 10 de setembro. Poeta consagrado da literatura mundial, Gullar tinha boas chances de criar pavor à literatura ao queimar seus livros escolares após uma grande decepção no colégio. A paixão pelas letras, porém, tornou-o um dos autores mais admirados do País. Suas opiniões e seu caráter idealista fizeram dele um exilado político perseguido pelo regime militar. Ao contrário de se abater, contudo, a angústia e o desespero alimentaram o poeta com o que ele tinha de melhor: o poder de se expressar e contar para o mundo suas convicções. Longe do país que ama, em Buenos Aires, escreveu Poema Sujo, considerado pelo 20 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

poetinha Vinícius de Moraes o mais importante da literatura nacional. No campo jornalístico, além de trabalhar em importantes publicações, como O Cruzeiro, Manchete e O Estado de S. Paulo, e atualmente colaborar com a Folha de S. Paulo, participou da marcante reforma gráfica e editorial do Jornal do Brasil, que deu nova dimensão ao jornalismo brasileiro. Neste 2010 Gullar lança Em Alguma Parte Alguma, novo livro de poesias após dez anos de hiato, e recebe a mais alta distinção da literatura em língua portuguesa, o Prêmio Camões. Um período dos mais agitados, mas nada demais para este maranhense de fala mansa, físico franzino, mas que através das palavras se tornou um dos grandes e ferozes contestadores das injustiças sociais no País. Com vocês, Ferreira Gullar.

JORNAL DA ABI - COMO FOI A SUA INFÂNDESDE AQUELA ÉPOCA VOCÊ JÁ TINHA CONTATO COM OS LIVROS? Ferreira Gullar - Eu nasci em São Luís em 10 de setembro de 1930. Meu pai era jogador de futebol, da seleção maranhense. Era center-forward, como se chamavam os centro-avantes na época. Ele jogava no Luso-Brasileiro. Já a minha mãe era muito mais voltada para as coisas intelectuais. Não era intelectual, porque não tinha grandes estudos, mas gostava muito de ler. Na verdade deve ter sido dela que herdei o meu interesse pela arte. Meu pai era mais futebol, comércio. De modo que a minha infância foi em São Luís. Eu vivia na rua com dois colegas, vivíamos descalços jogando bola, roubando coisas no bar, fazendo estripulias de moleque. Pedíamos três copos de água e devolvíamos dois. Quando tínhamos dez copos juntados vendíamos para o quitandeiro e íamos ao cinema. Coisas desse tipo. Eu estudei primeiro em casa, depois em um bom colégio, o São Luís de Gonzaga, famoso no Maranhão pela sua qualidade. No ginásio eu fui para o Ateneu Teixeira Mendes, que era pago. Quando meu pai teve problemas financeiros, fui estudar na Escola Técnica de São Luís, que era gratuita. Lá aprendi várias profissões, como

CIA?


FOTOS: ACERVO PESSOAL

serralheria, marcenaria, sapataria; sempre fui muito artesão, fazia tudo com muito prazer. Essas escolas, na época, eram muito boas, tinham bons professores. Lá, eu escrevi uma redação sobre o Dia do Trabalho em que ironizava o fato de que nesse dia ninguém trabalhava. A professora gostou muito do texto e disse: “Eu só não vou te dar dez porque o texto tem dois erros de português”. A partir daí, pensei que podia virar escritor e, por causa desses erros, me dediquei muito à gramática. Mas antes de concluir o curso tive um problema nessa escola. O professor de Educação Física, fortão, mas meio burro, colocava os alunos em fila para que um carregasse o outro nas costas. E eu, um esqueleto, franzino, tinha que carregar um outro aluno muito maior. Falei com o professor que não tinha condições de carregar alguém muito maior do que eu e pedi que colocasse sempre um do meu tamanho para que eu fizesse o exercício. Mas o professor não aceitava o argumento. Assim parei de ir à aula de Educação Física. No final do ano tirei dez em Português, oito, sete em outras matérias, e tirei zero em Educação Física. Acabei reprovado! Aí eu levei os livros para o fundo do meu quintal e queimei todos. Nunca mais estudei em escola alguma! JORNAL DA ABI – VOCÊ PAROU DE ESTUDAR? E COMO FOI SEU INÍCIO NO MUNDO DAS LETRAS?

Ferreira Gullar - A partir daí estudei por minha conta. Passei a me envolver com poesia, arte, isso aos 15 anos de idade. Desta maneira comecei a me envolver com o meio literário. Eu lia em bibliotecas públicas, passei a estudar as coisas que me interessavam. Aos dezoito anos comecei a trabalhar na Rádio Timbira, aos dezenove escrevi meu primeiro livro de poesias. E, com isso, passei lidar com o pessoal do meio literário. Uns trabalhavam em jornais e me convidaram para escrever para o Diário de São Luís. Às vezes eu colaborava para o suplemento do jornal, escrevia artigos sobre temas que me interessavam, literatura. Lá em São Luís, porém, minha profissão era locutor de rádio, eu não exercia o jornalismo profissionalmente. Mais tarde passei a colaborar no Jornal Pequeno, escrevendo artigos sobre política, porque houve um fato na campanha presidencial de 1950 que me tornou conhecido na esfera política local. JORNAL DA ABI - QUE FATO FOI ESSE? Ferreira Gullar - O Getúlio Vargas fazia campanha e o Ademar de Barros o apoiava. O Ademar, então, foi a São Luís fazer comício e o Governo maranhense era liderado pelo pessoal da UDN, que fazia oposição ao Getúlio. Para atrapalhar o comício, a Polícia cercou a principal praça da cidade, a João Lisboa, fechando o local, e o comício teve que ser feito na Praça Deodoro, distante do Centro. À noite, meu pai e eu fomos em direção à Praça João Lisboa, ele para ir ao cinema e eu para trabalhar. Quando chegamos lá, o comício já tinha acabado e o pessoal levou o Ademar até o hotel, perto da Praça. Deixaram-no no hotel e

voltaram e invadiram a Praça. A Polícia estava escondida em uma esquina e começou a atirar nos caras. A Kombi onde estávamos tinha acabado de chegar ao local. Quando vimos a confusão, os tiros, nos jogamos no chão. Chegou outra Kombi que nos ajudou. Meu pai me puxou para dentro dela e conseguimos sair da praça. Mas eu queria voltar para ver o que ia acontecer. Me desvencilhei dele e voltei. Vi o pessoal carregando um corpo e avançar contra a Polícia. A Polícia recuou, foi embora e a coisa se acalmou. No dia seguinte, quando fui trabalhar na Rádio, tinha uma nota do Governo dizendo que os comunistas tinham matado um operário. Eu peguei a nota e não li. Aí veio um funcionário da Rádio e pediu para eu ler a nota. Eu falei: “Tá bom”. E continuei com o programa. Ele veio novamente e eu disse que não ia ler porque aquilo era mentira. Ele falou: “Mas você não tem nada a ver com isso”. E eu retruquei: “Você não sabe, mas eu tenho muito a ver com isso”. Eu, então, falei que ele mesmo poderia ler aquela nota. Foi uma confusão na Rádio e acabei demitido. Essa notícia correu e quando saí da rádio encontrei um jornalista me esperando e no dia seguinte o jornal estampou: “A juventude se rebela contra o governo”, onde eu era a juventude. Aquilo criou uma encrenca e a oposição ao Governo me chamou para trabalhar com eles. Eu não entendia nada de política, mas fui, porque estava desempregado. Aí eles me enviaram para o interior do Maranhão fazer campanha. JORNAL DA ABI - NESSA ÉPOCA VOCÊ JÁ TINHA LANÇADO UM LIVRO...

Ferreira Gullar - Sim, o meu primeiro livro Um Pouco Acima do Chão. Mas este eu acabei deixando de lado, nem incluí em minhas obras completas, porque considero uma publicação imatura. Eu paguei a impressão com meu salário,

minha mãe me ajudou a bancar. Nós colocamos nas livrarias, consegui uma lista com endereços de livrarias no Sudeste para mandar mas eu nem sei se os caras colocaram na vitrine. Este livro me deixou um pouco em evidência com o pessoal mais velho e do meio acadêmico no Maranhão. Com o pessoal mais jovem não, porque o livro era um pouco careta. Ele serviu para me lançar em São Luís. JORNAL DA ABI - JÁ QUE O SENHOR CONSIDERA A OBRA IMATURA, QUANDO, REALMENTE, PASSOU A SE CONSIDERAR UM ESCRITOR DE VERDADE?

Ferreira Gullar - Eu, na realidade, já me achava um escritor nessa época. Quando escrevi o livro eu o achava muito bom. A partir daí, porém, passei a ler mais, poetas de várias correntes, não apenas da minha geração, o que me fez ter uma outra visão sobre a publicação. JORNAL DA ABI - O QUE O FEZ SAIR DO MARANHÃO? Ferreira Gullar - Meu interesse pela poesia e pela arte. São Luís era muito pequena na época. Era muito difícil conseguir livros. Dessa maneira, após trabalhar para a oposição na campanha, resolvi investir na literatura. Inclusive briguei com o cara que me convidou para esse trabalho logo após o final das eleições. Isso porque eles inauguraram uma escola no interior e, ao final da campanha, essa pessoa disse que não precisava contratar professores para a escola. “Fecha aquilo lá”. Era só fachada para ganhar as eleições. Aí eu me revoltei com aquela situação, chamei o cara de escroto, tive que sair da casa onde eu estava morando durante a

Uma vida em 3x4: Gullar retratado em vários momentos, inclusive de bigode na época da clandestinidade quando teve que usar documentos falsos.

campanha. Eu era meio maluco na época, mas estava fazendo o que era direito. JORNAL DA ABI - CHEGANDO AO RIO, SENHOR FEZ PARA SE MANTER? Ferreira Gullar - No final de 1950, eu ganhei o prêmio do Jornal de Letras com o poema O Galo, que não é o poema que foi publicado. E isso me deu ânimo para vir ao Rio. O meu interesse era participar do mundo. E São Luís era uma cidade à margem do mundo. Eu via os aviões passando pela minha cabeça, indo para Paris, Nova York, e decidi ir para o centro do mundo, o Rio, onde eu podia viver a vida contemporânea. Isso foi em 1951. Uma escritora maranhense, Lui Teixeira, que tinha estudado em Belo Horizonte e se dava com pessoas como Oto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Carlos Castelo Branco, conversou comigo e me deu força para ir. Ela falou com o também maranhense Odilo Costa, filho, que tinha contato com o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos ComerciáriosIAPC. Daí, vendi o que tinha e vim para o Rio morar numa vaga em um quarto com mais três, e fui trabalhar na revista dos funcionários do IAPC. Era uma revista de circulação interna e um cabide de empregos, ou seja, ninguém trabalhava. Estavam lá o Oto, o Hélio, Lúcio Cardoso, todos colaboravam com a revista, COMO O

Após deixar São Luís, sua terra, Gullar enturmou-se no Rio com o pessoal de arte e do jornalismo. Aqui estão ele (primeiro à esquerda), Lígia Pape, Theon Spanudis, Lígia Clark e Reinaldo Jardim, com o filho Joaquim. Na visão dele, o Rio era o centro do mundo.

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FOTOS: ACERVO PESSOAL

ESPECIAL FERREIRA GULLAR

Num passeio pela Avenida Atlântica, Antônio Luís Guimarães, Lago Burnett (de óculos escuros) e Gullar, num flagrante quando acendia um cigarro. Abaixo, o encontro de três poetas: ele, Correa de Araújo e Lago Burnett, amigo da vida inteira.

mas não apareciam; só assinavam o ponto e de vez em quando escreviam alguma coisa. Eu, que não tinha onde morar, fiz da revista o meu escritório. Para mim era ótimo, tinha telefone, máquina de escrever, cafezinho. Então, me instalei lá, na Rua Alcindo Guanabara, era o único cara que trabalhava na revista porque estava sempre lá. Não havia grande coisa para fazer porque a revista era pequena. Lá eu me tornei amigo do Lúcio Cardoso e vivíamos rodando pela cidade sem rumo. E às seis da tarde íamos para o Vermelhinho, em frente ao prédio da ABI. Naquela época, a Escola de Belas-Artes funcionava no Museu Nacional de Belas-Artes, próximo dali. Então, o pessoal que ensinava arte na Escola ia para lá e todos se encontravam no local. Eu ficava por lá com o Mário Pedrosa, crítico de arte, conversava com os artistas. Depois cada um ia para sua casa e eu ficava por ali porque eu não tinha casa. JORNAL DA ABI - A PARTIR DAÍ O SENHOR PASSOU A TER UM MAIOR CONTATO COM A ARTE CONTEMPORÂNEA?

Ferreira Gullar - Sim, muito através do Mário, que era uma pessoa espetacular. Ele era o precursor da arte concreta no País e eu passei a ter contato com este estilo de arte. Era uma coisa muito revolucionária. A arte moderna exaltava a brasilidade. Já a arte concreta não tinha nada a ver com isso, eram formas. O surgimento da arte concreta no País foi uma coisa muito importante para o meio artístico, porque nos permitiu conviver com outra realidade que não apenas a arte moderna. A partir deste contato com a arte concreta e com estes artistas no Rio de Janeiro, comecei a desenvolver o meu trabalho poético, que culminou com a publicação da minha primeira obra, A Luta Corporal, que demorou dois anos para ser escrita. 22 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

JORNAL DA ABI - E COMO PASSOU A SER, TAMBÉM, A SUA RELAÇÃO COM A IMPRENSA?

Ferreira Gullar - A partir desse contato que eu tive com escritores e com a intelectualidade brasileira da época, comecei a escrever sobre arte e ingressei na imprensa na famosa revista O Cruzeiro, como revisor de textos. Foi uma época muito boa, já que a revista era o que de melhor havia na época em termos de imprensa. A partir daí, trabalhei na Manchete e no Diário Carioca, como redator, antes de ser convidado para elaborar o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e também para realizar a reforma gráfica do jornal, em 1955. Esse foi um marco na minha carreira jornalística, porque passou a nortear a imprensa da época. Antes dessa reforma, os jornais eram uma bagunça gráfica. Não tinham padrão de fontes, a notícia da manchete continuava no interior, algumas vezes chamando para a página errada. Ou seja, essa reforma serviu para padronizar o jornal, e ficou bem legal. O sujeito folheava o jornal e tinha uma lógica; os setores foram definidos, foi um trabalho muito interessante. Depois disso, trabalhei, também, em O Estado de S. Paulo e colaborei com O Pasquim e Opinião. Atualmente, escrevo uma coluna semanal na Folha de S. Paulo.

Quando ele virou tablóide eu cancelei a minha assinatura imediatamente. Não quis acompanhar o fim do jornal. Eu pensei comigo mesmo: “Não foi isso que eu ajudei a criar”. De qualquer maneira, é melancólico saber que uma coisa que você ajudou a criar acaba dessa maneira. Eu acredito que o JB começou a ruir quando da construção daquele prédio na Avenida Brasil. Além de ser um prédio enorme, onde deve ter sido gasto muito dinheiro, ele é muito mal localizado, de difícil acesso. Numa época em que o dinheiro circulava com mais facilidade, o JB começou a se encrencar ao construir aquela sede e o resultado foi anunciado agora. JORNAL DA ABI - COMO ERA A SUA RELAO PASQUIM? Ferreira Gullar - Trabalhar no Pasquim era fantástico, porque os profissionais que trabalhavam lá, pelo caráter humorístico da publicação, podiam tratar das mazelas do País na época. E isso dava uma certa liberdade que era muito bem aproveitada por pessoas das mais talentosas. Uma vez, fizemos um mutirão porque quase toda a Redação havia sido presa. Nos reunimos e conseguimos colocar o jornal na rua. Esse era o espírito do Pasquim, um lugar muito leve e prazeroso de se trabalhar.

ÇÃO COM

JORNAL DA ABI - APÓS ESSA EXPERIÊNCIA ENRIQUECEDORA NO JB, COMO O SENHOR VÊ O

JORNAL DA ABI - NESSA ÉPOCA O SENHOR

FIM DO JORNAL, ANUNCIADO RECENTEMENTE?

PASSOU A VIVER NA CLANDESTINIDADE E POS-

Ferreira Gullar - Com muita tristeza.

TERIORMENTE TEVE QUE SE EXILAR EM ALGUNS

PAÍSES. PARA UM JOVEM QUE NÃO GOSTAVA DE POLÍTICA, COMO O SENHOR ACABOU NESTA SITUAÇÃO?

Ferreira Gullar - Na realidade, eu era filiado ao Partido Comunista e em determinado momento ocupei a diretoria estadual. Acontece que meu nome foi lembrado para compor uma chapa mais moderada. O fato é que havia dois grupos dentro do Partido disputando o poder: um queria pegar em armas e o outro discordava dessa opção. Assim, o grupo moderado me chamou para compor a chapa porque meu nome dava relevo, era aglutinador. Nossa chapa foi vitoriosa mas eu não participava das reuniões do Partido e não sabia das decisões e do que estava acontecendo. Num momento de maior repressão, a direção achou melhor eu desaparecer por uns tempos. Falaram: “Gullar, você não tá sabendo de nada do que acontece aqui. Se te prendem, vão te torturar e você não vai ter o que contar. Eles vão acabar te matando porque não vão acreditar em você!” Assim, por um tempo, passei a viver na clandestinidade, ou seja, escondido em lugares diferentes para despistar os militares. Só que, em determinado momento já não havia mais para onde ir e comuniquei isso ao Partido. Se eu continuasse no País, em breve seria preso. Eles então conseguiram me tirar do Brasil. Primeiro fui para Moscou, onde fiz um curso de arte muito bom com um professor espanhol. Posteriormente, me mudei para o Chile e assim que cheguei houve o golpe militar local. Os militares chegaram a entrar em meu apartamento, mas como eu tinha acabado de chegar não encontraram nada que pudesse me incriminar. Dali eu fui para Lima e, por fim, Buenos Aires. JORNAL DA ABI - NA CAPITAL ARGENTINA POEMA SUJO, SUA OBRA MAIS FAMOSA. FALE UM POUCO DA SUA CONCEPÇÃO. Ferreira Gullar - Na realidade, houve um momento em Buenos Aires em que eu achava que não tinha mais saída. A situação estava se apertando, eu não tinha mais para onde ir. Sentindo que o final podia chegar a qualquer momento, resolvi escrever exatamente aquilo que estava sentindo, aquilo que havia em meu coração naquela época de extrema repressão. Daí saiu o Poema Sujo. É por isso que eu sempre digo que um poema não é comandado pelo poeta, mas por ele mesmo. Recentemente, com a proximidade de terminar o meu último livro Em Alguma Parte Alguma, minha editora me cobrava: “Gullar, quando vamos terminar?”. E eu dizia para ela: “Quando os poemas quiserem”. O poema é uma coisa que vem de dentro do autor, que não pode ser cobrado porque tem vida própria. Ele nasce quando quer e termina quando quer. E foi assim com Poema Sujo. Naquela situação, eu tirei do meu interior as palavras que me consumiam e escrevia descontroladamente, sempre guiado pelo poema. Porém, no final eu sabia que não havia terminado mas também não tinha mais inspiração para escrever. Estava cansaNASCEU O


do. Fiquei um bom tempo esperando o final chegar. Esperei pelo final certo. Foi quando lembrei de uma frase do Hegel citada por Lênin. “No ramo da árvore estão o universal e o particular ”. Parei para pensar: “O que ele quis dizer com isso?” Então achei a inspiração que faltava para escrever o final do poema. Quando ele diz que a árvore é o universal, é o todo, e o ramo é parte dela, o particular. Quer dizer que eu posso arrancar o ramo da árvore, mas a árvore continua nele. Como São Luís está em mim mesmo quando eu estava em Buenos Aires. Aí eu terminei o poema, aliás, ele se completou através de uma frase do Hegel citada pelo Lênin. JORNAL DA ABI - POEMA SUJO É SUA OBRA-PRIMA?

Ferreira Gullar - É a publicação mais conhecida, muito em parte pela divulgação que teve através do Vinícius de Moraes. Sob esse prisma sim, mas os poemas, como eu mesmo disse, têm personalidade própria, são todos diferentes, e é complicado julgar ou eleger um melhor. JORNAL DA ABI - COMO O SENHOR VÊ A CULTURA NO PAÍS ATUALMENTE? Ferreira Gullar - Acho que vivemos um momento muito delicado, porque estamos correndo o risco de passarmos por um período de sérias restrições às liberdades individuais. O Governo atual, sob a premissa de um forte apoio popular, se acha no direito de intervir, de impor o que deve ser feito. E isso é muito perigoso. Como também é sempre ruim uma continuidade no poder por muito tempo. Na área cultural nós estamos vivendo esse fenômeno, com uma intervenção estatal cada vez maior. Isso é perigoso porque o Poder Público se acha no direito de dizer que tipo de arte deve ser feita, quando a arte vem do povo e não do Governo. O que precisa ser feito é financiar as manifestações artísticas do povo, a função do Governo é essa. E isso, infelizmente, não vem acontecendo. E como estamos próximos de uma eleição, devemos refletir sobre a importância deste momento para os próximos anos no País. Um país sem cultura não é nada. A cultura é fundamental para o bem-estar, para o desenvolvimento, porque faz pensar. E qual o melhor remédio para se desenvolver do que pensar, do que estudar? Infelizmente, o quadro que vem sendo traçado em nosso País é desanimador sob esse ponto de vista. JORNAL DA ABI - O SENHOR FOI O CURADOR, AO LADO DE JÚLIA PEREGRINO, DA EXPOSIÇÃO SOBRE CLARICE LISPECTOR QUE ACONTE-

2007 NO MUSEU DA LÍNGUA PORTUQUAL FOI A ORIENTAÇÃO PARA SINTETIZAR A COMPLEXIDADE DA OBRA DA ESCRITORA NESSA EXPOSIÇÃO? NA SUA AVALIAÇÃO, O QUE SE CONSEGUIU RESSALTAR PARA O PÚBLICO? Ferreira Gullar - Tomei, de saída, a decisão de que não devíamos facilitar as coisas para os visitantes da exposição, nada de mostrar uma outra Clarice, mais fácil de entender. Isto posto, comecei a reler as suas obras e destacar as frases que me pareciam reveladoras da beleza de sua literatura, de sua riqueza e também de CEU EM GUESA.

sua inconformação com os limites da expressão. Ela deixa claro que o mistério da existência é intraduzível em palavras e, se traduzido fosse, deixaria de ser mistério. O resto se deve à dedicação de Júlia Peregrino, à criativa de Daniela Thomas e Felipe Tassara e à equipe inteira, de alta competência. JORNAL DA ABI - NA SUA OPINIÃO, O JOVEM QUE QUER SE TORNAR ESCRITOR TEM MAIS OPORTUNIDADES ATUALMENTE DO QUE NA ÉPOCA EM QUE O SENHOR COMEÇOU SUA CAR-

vulgar a cultura nacional, eu não tenho muitas restrições a fazer neste campo. JORNAL DA ABI - E QUAL É O PAPEL DA ABI NESTE CONTEXTO?

Ferreira Gullar - O papel da ABI é muito importante na medida em que valoriza o trabalho da imprensa no País, divulgando as suas atividades e lutando por uma cobertura jornalística melhor e mais ética. Este papel vem sendo desenvolvido há algum tempo e posso dizer que vem sendo bem executado.

REIRA DE ESCRITOR?

Ferreira Gullar - Hoje existem mais editoras, isso é um fato, mas dizer que o jovem tem mais oportunidade não é uma coisa verdadeira. Principalmente no campo poético, onde faltam atenção e divulgação aos jovens autores. Estes escritores precisam ser incentivados e eu volto a dizer que falta uma política neste sentido, e para a cultura em geral no País. Essa molecada tem que escrever, ter a sua publicação divulgada. Se vai ser bom ou ruim só saberemos lendo. Mas falta incentivo a esses jovens escritores. JORNAL DA ABI - NESTE SENTIDO, COMO O SENHOR VÊ A COBERTURA DA MÍDIA? Ferreira Gullar - Eu considero uma boa cobertura. Durante um tempo os suplementos literários ficaram esquecidos, mas atualmente nós temos visto estas publicações voltarem, o que é muito importante para a literatura nacional. A mídia tem feito bem a sua parte de di-

so, para mim, é que pessoas que estão distantes de mim, pessoas que muitas delas nem me conhecem, resolveram me dar este prêmio, reconhecer a qualidade do meu trabalho, significa que estou cumprindo o meu papel. Que o outro, seja ele Antônio, Maria, Francisco, seja quem for, recebe o que eu fiz e isso o gratifica, o ajuda, dá sentido à sua vida. E isso eu acho que é a coisa fundamental. JORNAL DA ABI - E COMO O SENHOR SE SENTE ESCREVENDO UM NOVO LIVRO DEZ ANOS APÓS A PUBLICAÇÃO DO ÚLTIMO?

JORNAL DA ABI - QUAL FOI A SENSAÇÃO DE RECEBER ESTE ANO O PRÊMIO LITERÁRIO MAIS IMPORTANTE DA LÍNGUA PORTUGUESA, O

CA-

MÕES E, RECENTEMENTE, SER APLAUDIDO DE PÉ NA FEIRA LITERÁRIA DE

PARATI, A FLIP? Ferreira Gullar - Essa identificação das pessoas comigo, que eu constatei na Flip, é uma coisa que me deixa feliz. Essa é uma prova de que as coisas que eu falo atingem as pessoas. E tenho a impressão de que elas ajudam as pessoas. As pessoas vêm tão agradecidas falar comigo. E algumas delas dizem coisas que deixam claro que a minha obra as deixa mais felizes. E isso me gratifica muito. Eu acho que o sentido da vida é o outro, eu não tenho dúvida nenhuma disso. Tudo o que a gente faz só tem sentido por causa do outro. Inclusive é o outro que vai lembrar daquilo que fizermos, é o seu filho, o seu neto, o seu leitor, que vai carregar no colo os seus poemas. Então, quando um cara me dá o Prêmio Camões, o sentido dis-

Ferreira Gullar - A minha trajetória literária tem sido assim, um bom espaço de tempo entre um livro e outro. Isso para mim não é novidade. Quanto ao livro, acredito que este seja diferente dos outros, tenha vida própria, nada que fuja às minhas características como autor. Quando percebi que era hora de lançar uma nova publicação, que os poemas estavam prontos, resolvi lançar este. JORNAL DA ABI - É MAIS FÁCIL ESCREVER UM LIVRO NUMA IDADE MAIS MADURA?

Ferreira Gullar - É indiferente. Como eu mesmo disse, o poema vem até você. É claro que com 80 anos o autor tem mais experiência de vida, passou por mais coisas que lhe garantem mais subsídios para contar uma história ou escrever poesia. Porém a idade não é garantia de boa obra, como mostram autores que escreveram grandes obras mais novos e outros que escrevem mal depois de velhos.

Os resmungos do poeta na imprensa POR M ARCOS STEFANO Diante da necessidade de se refletir sobre algumas situações do cotidiano, a melhor rima de um poeta pode ser mesmo a da prosa trivial, bem-humorada e sem meias-palavras. Esse é um dos segredos de Resmungos, livro lançado em 2006 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e que foi o Livro do Ano de Ficção do Prêmio Jabuti de 2007. O outro segredo é a exuberância gráfica do livro, fruto de uma parceria entre o escritor Ferreira Gullar e o ilustrador Antônio Henrique Amaral. O título Resmungos é bem típico de Gullar, conhecido por seu gênio e palavras fortes. O termo foi usado para batizar sua seção no site Portal Literal e, depois, a coluna dominical que passou a escrever na Folha de S. Paulo. É dessa coluna que o livro tira suas 44 crônicas, todas publicadas originalmente em 2005. Mas a reedição dos textos não segue a ordem cronológica nem tem qualquer preocupação de datação. Foram organizadas em quatro seções temáticas: Idéias, Evocações, Temas Sociais e Política, justamente com o objetivo de que tenham uma nova leitura. Contando experiências pessoais ou analisando questões nacionais Ferreira Gullar consegue entreter, envolver o leitor, quase criar o clima de uma conversa de bar. E é mordaz em algumas de suas tiradas. Ao falar sobre a febre dos programas de televisão e publicações que fazem previsões pessimistas sobre

o futuro da Humanidade por causa do descaso com o meio ambiente, ele escreve: “Abri a revista cheio de curiosidade, e eis que uma visão assustadora foi tomando conta de mim: a floresta amazônica estava prestes a ser destruída; os mananciais de água estavam em grande parte poluídos; as metrópoles, envenenadas pelo petróleo, aqueciam o planeta, o que provocaria o derretimento das calotas polares; sem falar no crescimento do buraco de ozônio que nos ameaça com câncer de pele... Pus a revista de lado e fiquei ali, sem ânimo para continuar vivendo.” Depois, completa: “Ao ver o Papa pedindo ajuda para os atingidos pelo tsunami, resmunguei: Devia era ter pedido a Deus que não fizesse isso. Mas logo me corrigi: foi exatamente por causa desse desamparo que o homem inventou Deus”. Mais adiante o escritor cria uma “ópera” para recontar os diálogos dos envolvidos no escândalo do mensalão: “Cena 5. Semanas depois. Descobre-se que Waldemar recebeu dinheiro do mensalão. Waldemar: ‘Dirijo-me ao presidente desta Casa e aos senhores deputados para informar que, neste momento, renuncio ao meu mandato’. Silêncio no Plenário. Waldemar: ‘Tomei esta decisão para mostrar que ainda existem homens dignos neste País!’. Risos. Enquanto isso, Lula chora num palanque em Garanhuns: ‘A mãe de todo mundo nasceu sabendo ler, só a minha nasceu

analfabeta!’. Suplicy: ‘Sempre disse que a solução era a renda mínima”. “Escrevo sobre qualquer coisa. Resmungo muito, mas também faço graça, critico o governo. Mas é um livro original, arte sobre crônicas efêmeras”, disse Gullar na entrega do Jabuti. Ainda que exagere ao qualificar suas efemérides, ele tem razão. O trabalho do artista plástico Antônio Amaral não dá apenas suporte ao texto. É parte importante da obra, a ponto de dar ritmo às palavras. Nisso, suas ilustrações também são originais. Uma vez que não estaria limitado ao espaço e à regularidade do jornal, Amaral usou técnicas como aquarelas, xilografias, óleos, acrílica, colagens e intervenções feitas com computador, para criar detalhes e dar novo foco para o leitor.

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Liberdade de imprensa REPRODUÇÃO

Tribunal derruba sentença contra Boechat Tenente da PM-RJ processara o âncora da TV Bandeirantes por noticiar violências praticadas contra uma jornalista que protestara contra uma blitz que engarrafou o trânsito. Ao anular a sentença de primeira instância, a 17ª Câmara Cível definiu o oficial como “arrogante, descortês e violento”. Acolhendo por unanimidade o voto do relator, Desembargador Raul Celso Lins e Silva, a 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio anulou a sentença de primeira instância que condenara os jornalistas Fernanda Job e Ricardo Boechat e a Rede Bandeirantes de Televisão e a Editora JB a pagar R$ 10 mil cada um ao Tenente da Polícia Militar André Luiz Oliveira de Albuquerque, que pleiteara indenização por dano moral no valor de R$ 90 mil pelo noticiário acerca de um episódio em que ele e a jornalista se viram envolvidos em 10 de novembro de 2005. Ao julgar os recursos formulados pelas partes, o Desembargador Raul Celso reproduziu decisões sobre o tema adotadas pelo Superior Tribunal de Justiça e por Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado, entre as quais a própria 17ª Vara Cível. Ele transcreve trechos da manifestação do Ministro Carlos Ayres Britto como relator do processo em que o Supremo Tribunal Federal revogou a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250m de 9 de fevereiro de 1967). Entre os trechos do voto de Ayres Britto destacados pelo Desembargador Raul Celso figuram estes: “...A liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos... “. “...Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de idéias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação... “ GRAVATA, ALGEMAS E GÁS DE PIMENTA CONTRA A JORNALISTA FRANZINA Após enunciar a finalidade dos recursos apresentados à 17ª Vara Cível, o Desembargador Raul Celso Lins e 26 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

Silva expôs o incidente que gerou a ação do Tenente Albuquerque: “Tudo que aconteceu durante e após o entrevero entre Fernanda Job e o policial, autor da ação, deveu-se ao relato da jornalista àqueles que deram publicidade ao fato lamentável, à sua indignação perfeitamente compreensível ante a gravidade do acontecido, mesmo que levada à internet. Vinha ela, no dia 10/11/2005, passageira de ônibus coletivo, após um dia de trabalho estafante, de volta ao lar, por volta das 21h25min, pela Rua Jardim Botânico, zona sul desta cidade, quando o trânsito caótico ficou interrompido, levando 25 minutos para percorrer cinco quarteirões, em razão de uma blitz promovida por policiais militares, entre os quais o demandante. O desespero tomou conta de suas reações. Colocou a cabeça para fora da janela e afirmou ser aquilo uma falta de respeito com o cidadão; sem a intenção de desacatar ninguém, reclamava contra a interrupção do trânsito sem motivo aparente. Logo que determinado pelo autor que ela saltasse do ônibus, porquanto o teria desacatado, tentou portar o telefone celular para se comunicar com seu marido, momento em que outros policiais adentraram no veículo pelas portas traseira e dianteira e o autor informou que ela estaria presa e sairia algemada, atirando-lhe spray de pimenta e lhe arrancando o telefone. Como prometera, o policial levantou a ré de seu banco, arrastou-a, algemando-a com a ajuda de um companheiro de violências, quase sufocando a então vítima que passou a gritar pedindo socorro.” A “ESTUPIDEZ DAS AGRESSÕES” CONTRA UMA MULHER FRANZINA Prossegue o Desembargador Raul Celso: “Palavras da jornalista às fls. 139: “... ao manifestar a sua indignação diante daquele transtorno, fosse agredida e achacada pelo Autor e seus colegas, dentro do ônibus em que viajava. Foi, de fato, o que ocorreu...”, “... o Autor preferiu achacá-la imediatamente, intervindo de forma violenta...”.

Além de considerar o jornalista destemido, o voto do Desembargador Raul Celso concluiu que Ricardo Boechat “foi mero porta-voz dos sofrimentos da vítima e prestou-se ao papel de divulgar a inacreditável violência”.

Induvidosamente, estão confirmados o emprego do gás de pimenta e o uso despropositado de algemas pelo próprio colega do policial autor, de nome Samuel, a confirmar a absoluta desproporção entre a reação da jornalista ao transtorno de que fora protagonista e a conduta policialesca dos supostamente mantenedores da ordem e respeito aos direitos individuais. Para corroborar a estupidez das agressões à primeira demandada, confira-se o Termo de Encaminhamento ao IML, lavrado pelo Delegado da 15ª Delegacia (fls. 158) e a confirmação pelo auto de exame de corpo de delito: “Observações : Tem escoriações nos pulsos, no braço direito, pescoço e olhos”; “equimose violácea irregular circundando (...) os punhos produzidas por algemas”. O certo é que o Tenente Albuquerque praticou alguns delitos penais contra a jornalista, quais sejam lesões corporais, abuso de poder ou violação de dever inerente ao cargo. Compreende-se sua inexperiência, eis que muito jovem, sem qualquer preparo para o exercício da profissão, prestigia a violência, o destempero e o desequilíbrio no trato com as pessoas. Em nenhuma oportunidade a jornalista pronunciou palavras ofensivas ao autor. Tão somente protestou contra a blitz da qual fora prejudicada no seu retorno ao lar. Jamais se dirigiu ao autor e, mesmo assim, transformou-se em vítima da violência do demandante e ré de ação onde se pede indenização por suposto dano moral. Os acontecimentos pelos quais a jornalista passou, foram transmitidos à mídia com a finalidade de desagravar

a vítima, depurar a Polícia Militar de elementos despreparados para o exercício da profissão e criar a consciência de que se deve protestar sempre que se vislumbrar atitudes inconvenientes por parte do agente público.” Quanto mais reclamava a demandada, mais o policial apertava-lhe a algema e o pescoço, jogando-a na mala do camburão saindo em disparada pela contramão em direção à Delegacia Policial. Destaque-se, como se viu, que o tratamento dispensado pelos policiais à franzina e frágil jornalista Fernanda Job não é comum àquele dedicado aos marginais e bandidos. A narrativa, extraída do Registro de Ocorrência (fls.39) é absolutamente confiável e autêntica, porquanto prestada pouco tempo depois dos lamentáveis acontecimentos.” O OFICIAL NÃO PODERIA SER “ARROGANTE, DESCORTÊS E VIOLENTO” O Desembargador Raul Celso continua a narração do episódio, agora com comentário sobre o oficial autor da ação: “Com toda a certeza, os fatos vivenciados pela ré (que pode ser também chamada de vítima) não poderiam ficar circunscritos à repartição policial, aos poucos passageiros do ônibus e aos curiosos que assistiram as cenas inacreditáveis, eis que protagonistas policiais que deveriam oferecer exemplos de equilíbrio e educação no tratamento aos cidadãos que pagam impostos, conseqüentemente, os seus salários. O que fez ela? Publicou os terríveis momentos vivenciados no tranqüilo bairro do Jardim Botânico, como se estivesse em guerra na Bósnia, Afeganistão ou Iraque.


Pela dinâmica dos fatos, verifica-se que o autor, no exercício de sua profissão de policial militar, não deveria ter sido tão arrogante, descortês e violento, importunando Fernanda, dentro de um ônibus, em “... operação, ainda sem resultados práticos (...) a combater os assaltos praticados por motociclistas na via... “ (segundo palavras do Comandante do 23. Batalhão da Polícia Militar - fls. 49), quando ela se manifesta contrária àquelas providências policiais a impedir o trânsito do coletivo, levando seu inconformismo à publicidade, daí porque delineada a sua legitimidade passiva, afastada a preliminar levantada, ante o julgamento do agravo de instrumento cujo Acórdão encontra-se às fls. 362/364. A outra preliminar argüida e também afastada diz respeito ao entendimento manifestado pela ré, de julgamento extra petita, vez que a sentença em sua fundamentação, mantém coerência ao atender o pedido inicial, muito embora ao desagrado da jornalista. Afastadas as prévias, observa-se quem relatou os fatos, dentro da triste realidade, aos demais réus, fora a própria jornalista indignada e revoltada com a truculência praticada, com lançamento de spray de pimenta em seus olhos, imobilizada e algemada, transportada à Delegacia Policial por camburão, sem motivos a justificar a violência. E estes últimos demandados, ante os relatos da primeira, tão somente, publicizaram os fatos chegados ao seu conhecimento, o que configura o direito de informar com os comentários que lhes pareceram convenientes e proporcionais ao tipo de comportamento adotado pelo autor. Entendo que a matéria jornalística se ateve a narrar fatos de interesse coletivo (animus narrandi) e a tecer críticas (animus criticandi), estando, assim, sob o pálio das “excludentes de ilicitude”, dispostas no artigo 27 da Lei nº 5.250/67, não se falando, assim, em responsabilização civil por ofensa à honra, mas em exercício regular do direito de informação.” VOTO APONTA BOECHAT COMO “CORAJOSO E INDEPENDENTE” No voto, o Desembargador Raul Celso faz referências lisonjeiras ao jornalista Ricardo Boechat, da Rede Bandeirantes de Televisão, descrevendo-o como “jornalista corajoso e independente” e, logo adiante, “intrépido e destemido”. “O réu, jornalista Ricardo Eugênio Boechat, transformou-se em mero porta-voz dos sofrimentos da vítima e prestou-se ao papel de divulgar a inacreditável violência. Repercutiu a notícia exatamente como ela ocorrera, absolutamente verdadeira, sob um título que até denigre a imagem da raça canina se comparados os comportamentos dos protagonistas. A solidariedade com a ré ou com qualquer outra pessoa vítima daquele tipo de violência, como sempre vem

acontecendo, teve a guarida do jornalista corajoso e independente. À Rádio e Televisão Bandeirantes do Rio de Janeiro Ltda., coube levar ao ar a defesa da jornalista Fernanda Job competentemente a cargo do intrépido e destemido Ricardo Boechat, repórter com programação diária com elevados índices de audiência em razão de suas lúcidas intervenções em comentários relacionados com os acontecimentos de cada dia. A empresa levou ao ar matéria de cunho informativo que se baseou em entrevista concedida pela assustada jornalista Fernanda Job, que ratificou comentários anteriormente veiculados por outras empresas jornalísticas. A indignação dos órgãos da imprensa e de seus articulistas resultou na veiculação da matéria dando conta da violência praticada pelo policial, autor da ação. Aliás, tornou-se rotina e a imprensa publica, diariamente, o envolvimento de policiais em atos ilícitos, daí porque, sem a vontade de ofender, ausente o animus injuriandi, não há o dever de indenizar. Não consta de qualquer dispositivo legal a punição pelo exercício de noticiar fatos, sobretudo aqueles que dizem respeito ao desempenho do agente público, do policial militar no exercício de sua atividade. Enfim, difundir informações inserese na atividade jornalística, principalmente quando a repercussão atinge o policial militar que exorbitou de suas funções, agiu como os autos noticiam na prática de violência contra uma indefesa senhora que manifestou-se contra uma blitz sem resultados práticos, como informado por Comandante de Batalhão. O que resulta do exame dos autos é que Fernanda teve a coragem de protestar contra a insensatez policial e os demais réus a independência de repercutir a sua indignação com um basta à truculência a pretender remuneração indenizatória. Como o autor/primeiro apelante pretendia a majoração da condenação a título de dano moral imposta aos segundos apelantes, constatada a ausência do nexo de causalidade a configurá-lo, conforme já tratado, está, portanto, prejudicado o exame do mérito de seu recurso. São estas as razões pelas quais reformo a sentença para julgar improcedente a demanda, invertidos os ônus sucumbênciais, respeitada a concessão dos benefícios da gratuidade de Justiça, daí porque, conheço dos recursos para não acolher as preliminares argüidas e prover os apelos formulados pelos segundo e terceiro apelantes*, quais sejam, primeiro, segundo e quarto réus, prejudicado o exame da primeira apelação.” Nota da Redação – Segundo e terceiro apelantes, TV Bandeirantes do Rio de Janeiro Ltda. e Ricardo Boechat; jornalista Fernanda Job.

“UMA OFENSA À MEMÓRIA DE TIM LOPES” A Repórteres Sem Fronteiras estranha a liberdade de Zeu, um dos matadores do jornalista da Rede Globo, o qual cumpriu apenas parte da pena de 23 anos, ganhou regime semi-aberto e voltou a traficar no Morro do Alemão. Dois dias depois que o programa Fantástico, da Rede Globo, exibiu imagens do traficante Elizeu Ferreira de Souza, o Zeu, armado e vendendo drogas no Morro do Alemão, a Organização Repórteres Sem Fronteiras divulgou um comunicado em seu site protestando contra a impunidade no Rio de Janeiro. Na nota, publicada no dia 10 de agosto, a RSF afirma que “é incompreensível que as autoridades do Rio permitam que perdure uma situação que constitui uma ofensa à memória de Tim Lopes” e destaca também ser “igualmente chocante que tenha sido concedido com tanta rapidez um regime de semiliberdade ao autor de um crime desta violência”. No mesmo dia o Disque-Denúncia do Rio de Janeiro aumentou de R$ 2 mil para R$ 10 mil, o valor da recompensa oferecida por informações sobre o criminoso, que foi condenado a 23 anos e meio de prisão pelo assassinato do jornalista Tim Lopes em 2002, na Vila Cruzeiro. O jornalista estava no local investigando denúncias de prostituição de menores e tráfico de drogas nos bailes funk. Em 2007, após cumprir cinco anos da sentença, Elizeu Ferreira de Souza foi beneficiado pelo regime semi-aberto e fugiu. Antes da veiculação da matéria, o Disque-Denúncia recebeu 109 ligações alertando sobre a presença do traficante no local. Incrível passividade A notícia publicada no site da RSF tem o seguinte teor: Declarado culpado do assassinato, em 2002, de Tim Lopes, jornalista da TV Globo, Eliseu Felício de Souza, conhecido como Zeu, foragido há cerca de três anos, dedica-se sem entraves ao tráfico de droga na zona norte do Rio de Janeiro. Uma reportagem transmitida pela TV Globo mostra-o circulando pela favela do Morro do Alemão, armado e vendendo crack em plena luz do dia. Embora as autoridades do Estado do Rio tenham oferecido uma recompensa

por qualquer informação que possa levar à sua captura, já foram recebidas mais de uma centena de chamadas de moradores alertando a Polícia das atividades de Zeu. É incompreensível que as autoridades do Rio permitam que perdure uma situação que constitui uma ofensa à memória de Tim Lopes. A reportagem sobre a “nova vida” de Eliseu Felício de Souza deverá colocar um ponto final à sua incrível passividade perante um tal escândalo. Por outro lado, é igualmente chocante que tenha sido concedido com tanta rapidez um regime de semiliberdade ao autor de um crime desta violência. Os critérios para os ajustes de pena devem, em nossa opinião, ser revistos. Condenado a vinte e três anos e meio de prisão pela sua participação no assassinato de Tim Lopes, “Zeu” aproveitara a sua primeira autorização de saída, no âmbito do regime semi-aberto obtido após cinco anos de detenção, para pôr-se em fuga. Tim Lopes desapareceu na noite de 2 a 3 de junho de 2002, quando levava a cabo uma investigação com câmara escondida sobre a exploração sexual de menores na favela de Vila Cruzeiro. O seu cadáver calcinado foi achado dias depois. Zeu comprou a gasolina com que foi queimado o corpo do jornalista, vítima de torturas antes de ser executado. No total, sete pessoas envolvidas no seu assassinato foram condenadas a penas compreendidas entre vinte e três e vinte e oito anos de prisão. Outro dos condenados, Ângelo Ferreira da Silva, à semelhança de Zeu beneficiário de um regime semiaberto, também aproveitara para fugir no passado mês de maio, antes de se entregar às autoridades. Considerando a crueldade com que o jornalista foi torturado e executado, expressamos a nossa surpresa perante o fato de que vários dos seus assassinos tenham podido desfrutar de um regime de semi-liberdade menos de cinco anos após terem sido julgados.”

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Liberdade de imprensa

Juiz Eleitoral de Alagoas manda apreender jornal Por decisão dele, foi retirada das bancas edição do jornal semanal Extra, atendendo a pedido do candidato do PDT ao Governo do Estado, Ronaldo Lessa. A medida preserva a lisura do pleito ou faz o que a Constituição não admite? POR PAULO CHICO

A causa seria outra A verdadeira razão da interpelação judicial, acredita Fernando, teria sido outra: “O que motivou a ira de Lessa foi uma série de matérias publicadas sobre os desmandos administrativos em seus dois governos, sua condenação por improbidade e os processos que enfrenta na Justiça. E não se trata aqui de requentar fatos para prejudicá-lo. Desde que assumiu o Governo, em janeiro de 1999, o Extra vem denunciando a farsa política em que se transformou a sua desastrosa administração. Depois de meio século combatendo a oligarquia do açúcar, as esquerdas chegaram ao poder com Lessa vendendo a esperança de um governo socialista, que nunca aconteceu. Traindo o que pregou, ele terminou como aliado dos usineiros, a quem classificava de ‘forças do atraso’. No apagar das luzes de seu segundo mandato, perdoou a dívida fiscal de R$ 1 bilhão devida pelo setor açucareiro”, aponta. Ainda segundo o jornalista, Lessa teria sido reeleito condenando o chamado ‘Acordo dos Usineiros’, assinado

no Governo Collor, e feito do calote dos títulos públicos de Alagoas, emitidos no Governo Suruagy, sua principal bandeira de campanha. No entanto, uma vez eleito, teria logo se aliado aos usineiros, renegociando os títulos podres e impondo aos credores um deságio de 37% do calote, o que rendeu ao Estado um reforço de caixa de R$ 485 milhões. Recursos que teriam sido utilizados para garantir sua reeleição. “Essa negociata dobrou a dívida pública de Alagoas, que hoje passa dos R$ 7 bilhões. E custa uma sangria mensal de R$ 45 milhões, somente para amortecer os juros. À custa de milionária propaganda enganosa, Ronaldo Lessa passou oito anos no Governo vendendo ao País a imagem de moderno administrador, sem mudar a situação de atraso do Estado, que continua na rabeira de todos os indicadores sociais. Hoje, temos mais da metade de nossa população de três milhões de habitantes vivendo na miséria. E depois de toda essa patifaria o Sr. Ronaldo Lessa ainda tem a cara-de-pau de

pleitear um terceiro mandato. É contra isso que o jornal se insurgiu.”

Uma decisão judicial legítima ou Um cerco judicial? arbitrário ato de censura política que Pela decisão do Juiz Pedro Ivens, a a Constituição veda expressamente? Justiça Eleitoral determina que toda Essa é a questão que envolve o jornal pesquisa deve ser registrada junto ao semanal Extra, de Alagoas, proibido de TRE, além de ser citada a fonte, “sob pena circular por determinação do Juiz Eleide induzir o eleitorado a uma realidade toral Pedro Ivens. falsa”. Além de mandar recolher os jorA medida extrema ocorreu em resnais do dia 16 de julho das bancas, a Jusposta ao pedido de Ronaldo Lessa, cantiça Eleitoral aplicou a multa de R$ 56 didato do PDT às eleições para o Govermil, prejuízo do qual o jornal dificilmenno do Estado, que, segundo pesquisa te terá como se recuperar. que teria sido publicada na edição reco“Novas denúncias foram feitas e lhida, estaria perdendo em intenções de enfrentamos ameaças de censura, além voto para Teotonio Vilela Filho (PSDB), de multas e publicação de direito de resum de seus adversários na corrida eleiposta. Vale lembrar que o semanário há toral. O Extra teria, assim, descumprimuito vem enfrentando um verdadeiro do a legislação ao publicar os dados sem ‘cerco judicial’, com apoio de um Poder citar o instituto de pesquisa responsáJudiciário apodrecido. Por isso, o Extra vel, o período e o local em que foi realiestá com todo o seu patrimônio físico zada a análise, bem como o número de e equipamentos penhorados para gaeleitores ouvidos. Essa acusação, no rantir o pagamento de tais ‘danos entanto, é prontamente rechaçada por morais’, na maioria envolvendo juízes Fernando Araújo Filho, Editor do Extra: corruptos e políticos inescrupulosos”, “O jornal não publicou nenhuma acusa Fernando Araújo Filho. pesquisa eleitoral. Divulgou uma nota de coluna informando a seus leitores sobre a posição dos três principais candidatos ao Governo de Alagoas, sem citar índices. A nota diz que as últimas pesquisas revelam que Teotonio Vilela, que estava em terceiro lugar, ultrapassou Ronaldo Lessa. E que Collor mantêm-se na liderança. Notas idênticas, com o mesmo teor, também foram divulgadas na Gazeta de Alagoas, de propriedade de Collor. E No alto da página a capa do jornal Extra de Alagoas, número 35, de 16 a 22 de julho, que foi censurado, e as capas das edições 36, 37 e 39: denúncias de corrupção estariam incomodando o Governo de Alagoas. Acima, as páginas 6, 8, 9 e 10 da edição censurada: matérias não dão trégua aos políticos. Lessa não as contestou”. 28 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010


MPF denuncia crimes contra jornalistas Três anos depois, bando de empresários, políticos e policiais é denunciado criminalmente por terem mantido em cárcere privado jornalistas e ambientalistas que pretendiam fazer um documentário sobre a invasão e apropriação de terras de índios de Mato Grosso. POR CLAUDIA S OUZA O Ministério Público Federal em Mato Grosso ofereceu denúncia contra um grupo de empresários, políticos e policiais militares do Município de JuínaMT, por manterem jornalistas e ambientalistas do Greenpeace em cárcere privado, nos dias 20 e 21 de agosto de 2007. Relata a denúncia (ação penal) que ambientalistas e jornalistas brasileiros e estrangeiros estiveram na cidade de Juína para produzir um documentário na terra indígena Enawene Nawe, mas foram impedidos de realizar os trabalhos por um grupo composto por dezenas de fazendeiros, empresários e autoridades da cidade, entre eles o então Prefeito Hilton Campos, o Presidente do Conselho de Segurança Municipal Natalino Lopes dos Santos e o Presidente da Câmara Municipal de Juína, Francisco de Assis Pedroso. Os fazendeiros e autoridades de Juína ocupavam áreas reivindicadas pelos povos indígenas e temiam que os jornalistas e ambientalistas estivessem ali para tratar da demarcação dessas terras. Para evitar que a suposta demarcação se concretizasse, na manhã do dia 20 de agosto de 2007 os fazendeiros, empresários

e autoridades da cidade cercaram o hotel onde estavam hospedados os repórteres e ambientalistas e exigiram que eles se retirassem do Município. Como se recusaram a cumprir as exigências, jornalistas, ambientalistas do Greenpeace, índios e representantes da Operação Amazônia Nativa-Opan foram levados à Câmara Municipal da cidade, onde foram coagidos a permanecer por seis horas, sob ameaças de que haveria guerra se eles resolvessem continuar a viagem. Após a passagem pela Câmara Municipal de Juína, os ambientalistas e jornalistas ficaram sitiados no hotel e durante todo o tempo que estiveram na cidade foram acompanhados e ameaçados pelas autoridades, e até agredidos pelos fazendeiros que buscavam se certificar de que eles não tratariam da demarcação das terras. Mas as restrições aos direitos do grupo não pararam por aí. Há informações no processo de que o piloto do avião que transportou os jornalistas foi obrigado a voltar à cidade de Vilhena, Rondônia, para garantir a segurança pessoal dele e a integridade do avião; e de que, depois de passar a noite cercado no hotel, o grupo de jornalistas e ambientalistas foi levado por

dezenas de fazendeiros e policiais militares até o aeroporto para deixar a cidade de Juína, o que foi considerado pelos procuradores um verdadeiro processo de expulsão. Ainda conforme a ação penal, Paulo Perfeito e o empresário Aderbal Bento, na companhia de dezenas de pessoas não identificadas, também invadiram o escritório da Fundação Nacional do ÍndioFunai, dizendo que Juína não era lugar para índios e desacataram e ameaçaram de morte dois servidores públicos federais, para que dessem fim à demarcação de terras indígenas na região. De acordo com os Procuradores da República responsáveis pelo caso, Douglas Santos Araújo e Mário Lúcio de Avelar, lamentavelmente esses episódios não são raros. “A violência praticada contra os povos indígenas vem se tornando cada vez mais recorrente e tem como pano de fundo sempre a mesma problemática, que é a disputa de terras”, explicam. Para o Procurador da República Douglas Santos Araújo, “não obstante existam esforços empreendidos por determinados setores públicos e privados de combate à violência física e moral, com grandes doses de racismo e discrimina-

ção, verifica-se que a situação dos indígenas no Brasil está longe de ser considerada razoável”: “É preciso que haja uma política pública séria, que proporcione assistência aos povos indígenas, principalmente no que diz respeito à educação, à saúde, e à aceleração do processo de demarcação de terras para combater a grilagem”. O MPF concluiu que autoridades e empresários da cidade de Juína ameaçaram e cercearam a liberdade de locomoção de jornalistas brasileiros e estrangeiros e ambientalistas que estiveram em Juína nos dias 20 e 21 de agosto de 2007. Por isso, pede a condenação de Aderbal Bento, Geraldo Bento, Natalino Lopes dos Santos, Hilton Campos, Paulo Perfeito e Francisco de Assis Pedroso por constrangimento ilegal, seqüestro e cárcere privado. O MPF quer ainda que Paulo Perfeito e Aderbal Bento também sejam condenados por desacatarem os funcionários públicos da Funai. Os outros denunciados são o dono do Imperial Palace Hotel, João Marques Cardoso, pelo crime de falso testemunho, e o coronel da Polícia Militar Ricardo Almeida Gil, por ter se omitido diante dos crimes, quando seu dever era reprimi-los.

Jornalistas do México sob violência constante Assassinatos, seqüestros e atentados a órgãos de imprensa são comuns no cotidiano desses profissionais. POR PAULO CHICO O clima anda quente no México. Dezenas de repórteres, fotógrafos, editores e cinegrafistas de diferentes veículos de comunicação reuniram-se no dia 18 de agosto com o relator especial para a Liberdade de Expressão da Organizacao das Nações Unidas, Frank La Rue, na Ciudad Juárez, considerada a localidade mais violenta do México. No encontro, que durou cerca de duas horas, os profissionais de imprensa pediram que o jornalismo seja considerado um trabalho de alto risco e solicitaram apoio para tirar do país os colegas que se encontram em situação de perigo. Tamanho temor não parece exagero, sobretudo quando confrontado com dados. Desde 2008, Ciudad Juárez é considerada a localidade mais violenta do México pelo número de assassinatos. Neste ano, mais de 1.700 pessoas morreram em incidentes atribuídos à guerra entre grupos rivais do narcotráfico, uma média de oito mortes por dia. Na mesma cidade, desde o ano 2000, 27 jornalistas foram assassinados em represália por suas informações, segundo relatou o Comitê de Proteção aos Jornalis-

tas, com sede em Nova York. Oito deles teriam sido executados somente este ano. Por isso, os profissionais do setor pediram ao relator que pressione o Governo mexicano com a finalidade de criar, juridicamente, medidas que permitam a investigação de abusos contra representantes da imprensa. O ponto mais crítico

La Rue considerou Ciudad Juárez “o lugar mais crítico de todo o país” para exercer o jornalismo e reconheceu o risco para os jornalistas. Após a reunião, o relator especial da Onu disse ter percebido “muita frustração e ceticismo” e afirmou sentir-se “mais convencido de que este é um momento crítico”. Diante das reivindicações feitas, de acordo com a agência de notícias Efe, o Governo mexicano teria garantido empenho para reforçar a segurança dos jornalistas contra as ações do crime organizado e para investigar os assassinatos de profissionais da imprensa. Algumas dessas ações são de grande porte, como o atentado à sede da TV Televisa, a maior emissora de tv, alvo de uma explosão no dia 15 de julho, na cidade de Monterrey. De acordo com a

imprensa local, o artefato teria sido arremessado de uma caminhonete contra a entrada do prédio da emissora, que teve os vidros estilhaçados. Não houve feridos. Nos últimos três meses, este foi o terceiro ataque contra instalações da Televisa no Norte do México. No dia 12 de julho, um carro-bomba explodiu em frente ao edifício que abriga a Rádio Caracol e a sede em Bogotá da agência Efe, em mais uma ação de intimidação a jornalistas que investigam e denunciam o crime organizado no país. Seqüestro por atacado

O rol de violências contra os profissionais de imprensa inclui seqüestros. A Comissão Nacional dos Direitos Humanos do México-CNDH denunciou em 27 de julho o desaparecimento de quatro jornalistas na cidade Gómez Palácio, em Durango, quando cobriam manifestação em um presídio local, cujo diretor foi acusado de libertar presos para que cometessem assassinatos para um cartel de drogas. As vítimas foram Jaime Canales, repórter da TV Milênio; Alejandro Hernández, cinegrafista da Televisa; Héctor Gordoa, repórter da Televisa, e Oscar Solís, do jornal El Ves-

pertino. Os reféns foram libertados no final do mês, após confronto entre agentes do crime organizado e policiais. Os seqüestradores exigiam a transmissão de vídeos que denunciavam a ligação entre o Governo de Durango com o cartel de Los Zetas, inimigo do grupo El Chapo Guzmán. Mais um seqüestro foi realizado em agosto. A organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras-RSF anunciou no dia 11 deste mês que o jornalista mexicano Ulisses González García, editor do jornal La Opinión, desaparecido desde o dia 29 de julho, foi libertado no dia 9 de agosto. Ainda de acordo com a RSP, o jornalista apresentava sinais de tortura e foi encaminhado a um hospital. García foi seqüestrado em sua residência, na cidade de Jerez, por homens armados. No dia 4 de agosto, a Comissão Estatal de Direitos Humanos-CEDH de Chihuahua, na fronteira com os Estados Unidos, anunciou medidas para proteger os jornalistas na região, entre elas a sugestão para que em coberturas de fatos vinculados ao narcotráfico repórteres utilizem coletes à prova de bala e capacetes. Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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Liberdade de imprensa BAHIA FELIPE OLIVEIRA/AGIF/FOLHAPRESS

Diretor do Goiás acusa repórter pela agressão que este sofreu

AG R E S SÕE S

Superior Tribunal da CBF puniu o técnico Leão e o jogador Rafael Moura, autores da agressão. Embora o Goiás Esporte Clube tenha divulgado uma nota em seu site oficial inocentando o técnico Emerson Leão e alguns jogadores do clube, entre eles Rafael Moura, pelas agressões contra o repórter Roque Santos, da Rádio Metrópole de Salvador, logo após a partida entre Goiás e Vitória, na noite do dia 21 de julho no Estádio Manoel Barradas, na capital baiana, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva-STJD considerou os dois culpados pelos incidentes. Em sessão realizada no dia 3 de agosto, Leão e Rafael Moura foram punidos pela Segunda Comissão Disciplinar do STJD com suspensão de três e seis jogos respectivamente. Romerito, que também foi julgado, foi absolvido de todas as acusações, pois foi comprovado que não participou das agressões. Em sua acusação, o procurador William Figueiredo disse que, mesmo sendo inconveniente a atitude do repórter Roque Santos, a agressão não se justifica e pediu aos treinadores e jogadores que não se

PARAÍBA

Violências em série Mais um caso de violência contra jornalistas foi denunciado pela Associação de Imprensa do Sertão Paraibano-AISP, que divulgou nota de protesto contra a agressão cometida contra o jornalista Cícero Araújo, colunista do Correio da Paraíba, pelo Vereador Sales Júnior, do Município de Patos. O incidente aconteceu no dia 23 de julho, na sede da Superintendência de Transporte e Trânsito-STTrans. Contou Cícero Araújo que ele e Sales Júnior aguardavam para falar com o superintendente do órgão, Alexandre Nóbrega. A briga teria começado quando o parlamentar e o pai dele, Francisco Sales, impediram 30 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

dirijam ao trio de arbitragem ao fim das partidas. Microfone agressor Apesar de as imagens comprovarem o contrário, o Presidente do Goiás, Syd de Oliveira, disse que a culpa foi do jornalista, pois a delegação do Goiás foi provocada pela imprensa local. “Todo mundo viu que o repórter agrediu o Leão com o microfone, quando o treinador se dirigia para falar com o árbitro. Tem hora que não dá para agüentar. A reação deles é totalmente compreensível. Vamos apurar o caso, mas não pretendo punir ninguém, por entender que eles foram provocados. Inclusive, espero que esse caso sirva de exemplo para mostrar a forma como alguns repórteres trabalham”. A confusão teve início após o empate de 2 a 2 entre Vitória e Goiás pela 10ª rodada do Campeonato Brasileiro. O técnico Leão entrou em campo para reclamar com o árbitro da partida. Nesse momento, alguns jornalistas foram na direção do treinador para ouvi-lo. Irritado, Leão discutiu com o radialista Roque Santos,

empurrando-o. Logo em seguida o repórter foi derrubado com um soco pelo atacante Rafael Moura. O técnico e os jogadores envolvidos prestaram depoimento na 10ª Delegacia de Polícia da capital baiana e fizeram exame de corpo de delito no Instituto Médico LegalIML. Após apresentar queixa contra os agressores, o radialista também foi encaminhado ao IML. Em entrevista à Rádio Metrópole, o repórter Roque Santos disse que

teve quatro dentes deslocados pelo soco de Rafael Moura, que um funcionário do clube o teria procurado para tentar encerrar o caso e que pretende processar os agressores. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TelevisãoAbert divulgou comunicado em repúdio ao fato. “A reação violenta que impediu o trabalho do comunicador é extremamente grave e merece plena apuração das autoridades”, diz a nota.

Cícero de entrar no gabinete, e, sem motivo, começaram a agredi-lo com socos. O portal de notícias PB Agora informou que este foi o terceiro caso de agressão a profissionais de imprensa registrado recentemente no Estado, todos praticados por políticos ou seus apadrinhados. A primeira vítima foi uma jornalista do próprio portal, Simone Duarte, que em 11 de maio denunciou ter sido hostilizada por um assessor da Vereadora Ivonete Ludgério (PSB), de Campina Grande, por ter assinado matéria sobre as constantes faltas da parlamentar. Informou Simone que em tom alto e grosseiro o assessor a coagiu na frente de outros colegas de imprensa exigindo retratação, mesmo após o portal ter reconhecido e concedido o direito de resposta. O segundo caso envolveu o radialista Luiz Cláudio de Souza, apresentador do programa Show da Manhã na Rádio Caaporã FM, que teria sido ameaçado pelo Vereador

Elcias Azevedo, em 19 de julho. Elcias teria dito que só não tirava a vida do radialista porque ele estava acompanhado de um amigo comum. No momento da ameaça, Luiz Cláudio estava trabalhando na Coordenação da caravana da Coligação Paraíba Unida. Outra denúncia foi publicada no site PB Agora. Desta vez a vítima foi o jornalista paraibano Bruno de Lima, do Combate à Pedofilia em Municípios-CPM, que disse ter sido vítima de uma tentativa de assassinato por um sargento do 6º Batalhão da Polícia Militar da Paraíba conhecido como André. O crime teria sido encomendado por Jucinério Felix, Secretário de Ação Social do Município de Cajazeiras, citado em uma reportagem de Bruno sobre um caso de pedofilia, na qual inclusive ele aparece em uma fotografia seminu acompanhado de dois homens. O noticiário do site afirma que

Bruno Lima sofreu a ameaça de morte no dia 8 de agosto dentro de um shopping da cidade. Ele contou que o policial militar o agrediu no rosto antes de se dirigir para o carro para apanhar a arma que usaria para matá-lo. Foi nesse intervalo que ele aproveitou para fugir. Esta não é a primeira vez que Bruno Lima sofre ameaça de um personagem citado em suas matérias sobre casos de pedofilia. Recentemente, ele disse ter sido espancado por sete homens no Município de Baía da Traição. Em nota divulgada pela Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Cajazeiras, o Secretário Jucinério Felix negou as acusações de Bruno Lima e informou que vai processá-lo por difamação. O CPM, onde Bruno trabalha, informou que encaminhará ofício e solicitação ao Ministério Público, à Polícia Militar, à Corregedoria e à Polícia Federal, para que o caso seja solucionado.

Segundo relato da diretoria do Goiás, o técnico Emerson Leão foi agredido com o microfone do radialista durante a confusão que aconteceu ao final da partida.


L I S A R B O L E P S A T S I L A N R O J A S A Ç A E E AM ACRE

MATO GROSSO

Denúncia de ameaças O Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso-Sindijor-MT divulgou nota no dia 23 de julho em repúdio às ameaças contra a jornalista Vânia Costa, do jornal O Mato Grosso. Ela denunciou ao Ministério Público Federal que está sendo perseguida por causa das investigações que faz sobre possível desvio de verba federal na cidade de Sinop, em Mato Grosso. De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, Vânia afirmou ter sido abordada por pessoas que se identificaram como policiais civis, que teriam exigido acesso a

documentos e informações sobre as apurações feitas por ela. Três homens a seguiram depois que ela saiu do trabalho; um deles sacou uma arma tentando obrigá-la a parar, porém ela se assustou e acabou batendo o veículo. Vânia registrou queixa na Polícia Civil. Até o momento em que aconteceram as ameaças, o caso de suposto desvio de verbas não havia sido publicado pelo jornal por falta de provas. Segundo Vânia, documentos que comprovam a denúncia não haviam sido encontrados.

O protesto do Sindicato A nota do Sindicato dos jornalistas de Mato Grosso tem o seguinte teor: “O Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso (Sindjor-MT) vem a público repudiar os atentados pelos quais a jornalista Vânia Costa, funcionária do jornal O Mato Grosso, de Várzea Grande, afirma ter sofrido, após ir a Sinop (500 quilômetros de Cuiabá ao Norte), para apurar indícios de desvio de verba na Prefeitura do Município. Segundo Vânia, não é somente ela que tem sofrido perseguição por conta dessa matéria. Apesar de ela não ter encontrado, em sua apuração, informações seguras que justifiquem uma publicação, no retorno o carro de Vânia foi interceptado por homens que se diziam policiais civis, cobrando

documentos que ela teria ido buscar em Sinop. Vânia avisou que não tinha nada e, depois de muita pressão, o carro foi liberado, mas se instalaram na vida dela o medo e o terrorismo. No segundo atentado, motoqueiros fecharam o carro de Vânia, que, desgovernado, bateu em um muro. A vítima registrou boletim de ocorrência policial. A jornalista Maritza também teria sido perseguida conforme o boletim. Toda a categoria dos jornalistas de MT está chocada com esta história de violência e coerção. O Sindjor-MT se coloca à disposição para levar o caso às autoridades e à sociedade e pede a investigação urgente dos fatos, para que os responsáveis sejam enquadrados criminalmente e punidos e para garantir a integridade física e psicológica da jornalista.”

No ar, agressão a jornalista Candidato a senador pelo PMDB reage com violência a perguntas que o entrevistador lhe fazia. O Sindicato dos Jornalistas do Acre-Sinjac divulgou comunicado no dia 11 de agosto em repúdio à agressão cometida pelo ex-Deputado João Correia – candidato ao Senado pelo PMDB do Acre – ao jornalista Demóstenes Nascimento durante gravação de entrevista na TV 5, filiada da TV Bandeirantes, ocorrida no dia anterior. Correia é um dos envolvidos no esquema de desvio de verba para a compra de ambulâncias, que originou a CPI das Sanguessugas. O ex-Deputado participava de um quadro de entrevistas da TV 5 com candidatos às eleições deste ano, mediado pelo jornalista Demóstenes Nascimento. Durante o programa, João Correia fez acusações ao Governo do Estado e à emissora de tv e agrediu fisicamente o jornalista, que prestou queixa no 8º Distrito Policial de Rio Branco. A participação do candidato foi acordada entre a TV 5 e a coligação Produzir para Empregar, através do PMDB. O entrevistado responderia às perguntas escolhidas pelos dirigentes do partido que também participaram do sorteio das entrevistas.

“A atitude do candidato ao Senado, João Correia, surpreendeu a todos e demonstrou a falta de preparo para ocupar um cargo tão importante. O Sindicato e a Federação Nacional dos JornalistasFenaj repudiam esta e qualquer outra ação repressora à classe. Vivemos um novo momento, a era da ditadura já acabou, estamos solidários e à disposição do colega Demóstenes no que couber ao Sinjac”, afirmou o Presidente da entidade, Marcos Vicentti. Já a relatora do processo que foi instaurado para apurar o caso, Juíza Denise Bomfim, do Tribunal Regional Eleitoral do Acre-TRE-AC, solicitou à TV 5, afiliada da TV Bandeirantes, a íntegra das imagens do programa em que ocorreu a briga entre João Correia e Demóstenes Nascimento. “Solicitei imagens sem edição porque estas a que todos nós tivemos acesso foram editadas e podem comprometer as investigações”, explicou a magistrada. Tanto o jornalista quanto o candidato registraram boletim de ocorrência na Polícia Civil. João Correia levou o caso também para Polícia Federal.

A defesa do PMDB Em nota assinada pelo Presidente do Diretório Estadual, Flaviano Melo, o PMDB, no entanto, acusou a TV 5 de manipular as imagens que mostram a agressão de João Correia ao jornalista. O texto tem o seguinte teor: “O Partido do Movimento Democrático Brasileiro no Acre (PMDB-AC) vem a público externar seu mais amplo e profundo repúdio à agressão covarde, antidemocrática, retrógrada e criminosa sofrida por nosso candidato a senador, João Correia, na tarde de terça-feira (10 de agosto). Convidado para a gravação de uma entrevista na TV 5, repetidora da Rede Bandeirantes de Televisão, João Correia compareceu desarmado de espírito, crente na garantia de seu direito de liberdade de expressão. Porém, como uma vítima atraída a uma armadilha, foi covardemente espancado pelo apresentador, entrevistador e diretor de jornalismo da emissora, Demóstenes Nascimento, dentro do estúdio de uma empresa que detém uma concessão pública.

A agressão não atingiu somente o candidato ao Senado e professor João Correia, mas feriu profundamente o Estado Democrático de Direito e a garantia constitucional da liberdade de expressão, que há anos vêm sendo vilipendiados no Acre. Repudiamos a forma como a emissora manipulou imagens e informações para repassar uma versão inverídica ao público, na qual o agressor aparece como vítima. Nos solidarizamos com o Professor João Correia, peemedebista que há décadas peleja na luta pela democracia, por seu fortalecimento e por um Acre com mais liberdade, mais desenvolvimento e mais justiça social para seu povo. E exigimos as providências necessárias pelos órgãos responsáveis pela manutenção da democracia, pela ética no jornalismo e pelo cumprimento das regras que regem as concessões públicas na comunicação em nosso País”.

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Direitos humanos

TCU QUER MANDAR NA ANISTIA Com base em proposta do Procurador Marinus Marsico, a Corte de Contas da União decidiu atribuir-se o poder de rever os atos da Comissão de Anistia, que considera a medida como “um equívoco jurídico, político e um retrocesso histórico”.

“A Comissão de Anistia tomou conhecimento, por meio da imprensa, de decisão do TCU que acolheu solicitação do Procurador Marinus Marsico para que todas as indenizações concedidas como prestações continuadas sejam reapreciadas pelo Tribunal, com fulcro em suposto caráter previdenciário das mesmas e em possíveis ilegalidades. Como contribuição ao debate democrático junto à sociedade e às instituições públicas brasileiras, a Comissão de Anistia manifesta preocupação no sentido de que a decisão do TCU incorra em um equívoco jurídico, político e um retrocesso histórico.

1. Do ponto de vista jurídico importam dois registros. O primeiro o de que, para tentar comprovar a possível existência de “ilegalidades” nas indenizações utilizaram-se de 3 casos emblemáticos: Carlos Lamarca, Ziraldo Alves Pinto e Sérgio Jaguaribe. Ocorre que a decisão não abrangeu informações fundamentais. No caso do Coronel Carlos Lamarca, assassinado na Bahia, faltou a informação de que o direito devido à sua viúva é objeto de decisão da Justiça Federal meramente atualizada pelo Ministério da Justiça. Faltou registrar também que recentemente a Justiça Federal do Rio de Janeiro confirmou a correição da decisão da Comissão de Anistia no caso do jornalista perseguido Ziraldo e que possui situação idêntica à de Jaguar. Estaria a Justiça Federal cometendo ilegalidades? Nos três casos, os critérios indenizatórios estão previstos na Constituição e na Lei n° 10.559/2002. Vale ressaltar que o artigo 8º do ADCT prevê que a anistia é concedida “asseguradas 32 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo”. A segunda impropriedade reside em possível exorbitância das competências do TCU, que abrangem a apreciação da: “III - legalidade dos atos de admissão de pessoal e de concessão de aposentadorias rias, reformas e pensões civis e militares” nos termos do art. 71 da Constituição. Ocorre que a Lei nº 10.559/2002, criada por proposição do Governo Fernando Henrique e aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, em seu art. 1º criou o específico “regime jurídico do anistiado político”, compreendendo como direito: “II – reparação econômica, de caráter indenizatório indenizatório, em prestação única ou em prestação mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições estabelecidas no caput e nos §§ 1o e 5o do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;”. Ainda, o artigo 9º caracteriza de forma inequívoca a reparação como parcela indenizatória indenizatória, destacando que “Os valores pagos por anistia não po po-derão ser objeto de contribuição ao INSS, a caixas de assistência ou fundos de pensão ou previdência, nem objeto de ressarcimento por estes de suas responsabilidades estatutárias”. Avançando ainda mais, a Lei prevê, em seu parágrafo único, que “os valores pagos a título de indenização a anistiados políticos são isentos do Imposto de Renda”. Se a equiparação entre a indenização reparatória e a previdência social fosse o objetivo da Lei n.º 10.559, não teria ela em seu artigo 1º estabelecido de forma expressa o referido “regime do anistiado político” em oposição aos regimes especiais da previdência já existentes à época. Justamente o oposto: o 9º artigo da Lei determina que to-

JOSE CRUZ/ABR

Assim que tomou conhecimento da decisão do Tribunal de Contas da União, em sessão no dia 12 de agosto, de revisão das decisões adotadas em processos de anistia, o Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão Pires Júnior, apontou a manifestação do TCU como “um equívoco jurídico, político e um retrocesso histórico”. Em longa e minuciosa declaração, Abrão e a Vice-Presidente da Comissão, Sueli Bellato, contestaram os argumentos do Procurador Marinus Marsico, que suscitou a manifestação, acentuando que a decisão do TCU “não abrangeu informações fundamentais”, como nos casos dos anistiados Carlos Lamarca e Ziraldo Alves Pinto. É esta a integra da “Nota de Opinião” da Comissão de Anistia:

Paulo Abrão: O TCU não pode abandonar seu papel de fiscal de contas arvorando-se verdadeiramente em nova instância decisória para a concessão dos direitos reparatórios.

dos os benefícios decorrentes de anistia sob tutela previdenciária do INSS sejam convertidos para a modalidade indenizatória e pagos pelos Ministérios do Planejamento e da Defesa: “O pagamento de aposentadoria ou pensão excepcional relativa aos já anistiados políticos, que vem sendo efetuado pelo INSS e demais entidades públicas, bem como por empresas, mediante convênio com o referido Instituto, será mantido, sem solução de continuidade, até a sua substituição pelo rregime egime de pr estação mensal, prestação permanente e continuada, instituído por esta L ei Lei ei”. Assim, questão basilar no direito brasileiro, os direitos indenizatórios não se confundem com os direitos previdenciários. A tentativa de igualar as prestações mensais a um benefício de natureza previdenciária é um exercício imaginativo forçado, cujo resultado inadequado seria uma assimetria entre as reparações de prestação única e as reparações de prestação mensal. Conforme a decisão, os perseguidos políticos que recebem reparação em prestação única seriam “indenizados” e os que recebem prestação mensal seriam titulares de “beneficio previdenciário”. A lei brasileira não estabelece esta distinção, ao contrário, dispõe que ambas repa-

rações são resultantes do mesmo fato gerador, são reguladas pelos mesmos requisitos, com regime jurídico próprio e, óbvio, sob o teto de uma mesma lei. Neste sentido, estabelecer uma analogia entre a indenização em prestação mensal e a previdência social seria francamente exorbitante e ilegal, pois que procura, por meio do controle de contas, redefinir a natureza jurídica do regime do anistiado político, previsto na Constituição e regulamentado na Lei n.º 10.559/2002.

2. Do ponto de vista político, o temerário gesto do TCU ao se “autoconceder ” uma competência explicitamente inexistente na Constituição pode enfraquecer a própria democracia. Incorre em erro a idéia difundida de que “[...] quem paga não foi quem oprimiu. É o contribuinte. Não é o Estado quem paga essas indenizações. É a sociedade.”, expressa recentemente pelo patrocinador da causa. Todo o direito internacional e as diretivas da Onu são basilares em afirmar que é dever de Estado, e não de governos, a reparação a danos produzidos por ditaduras. O dever de reparação é obrigação jurídica irrenunciável em um Estado de Direito. Mais ainda: o sistema jurídico


nacional reconheceu esta responsabilidade nas Leis n.º 9.140/1995 e n.º 10.559/2002 e o Supremo Tribunal Federal definiu de forma claríssima que tais reparações fundamentam-se na “responsabilidade extraordinária do Estado” absorvida dos agentes públicos que agiram em seu nome (ADI 2.639/ 2006, Relator Min. Nélson Jobim). Deste modo, os critérios de indenização foram fixados pela Constituição de 1988 e pela Lei nº 10.559/2002 e qualquer alteração nestes critérios cabe somente ao poder Legislativo ou ao poder constituinte reformador, e não a órgãos de fiscalização e controle.

3. Do ponto de vista histórico temse que a anistia é um ato político onde reparação, verdade e justiça são indissociáveis. O dado objetivo é que no Brasil o processo de reparação tem sido o eixo estruturante da agenda ainda pendente da transição política. O processo de reparação tem possibilitado a revelação da verdade histórica, o acesso aos documentos e testemunhos dos perseguidos políticos e a realização dos debates públicos sobre o tema. O Estado brasileiro demorou em promover o dever de reparação. Os valores retroativos devidos aos perseguidos políticos somente são altos em razão da mora do próprio Estado em regulamentar as indenizações devidas desde 1988. O somatório da inafastável dívida regressa é proporcionalmente igual à demora no processo de reparação. Questionar as “altas indenizações” tomando por base os valores dos retroativos, e não das prestações mensais em si importa em distorção dos fatos e do Direito. Como a Constituição determina, os efeitos financeiros iniciam-se em outubro de 1988, o cálculo de retroativos que conduz aos altos valores é simplesmente aritmético, aplicada a prescrição qüinqüenal das dívidas do Estado. Não há, neste sentido, qualquer juízo administrativo sobre esse valor que possa ser corrigido sem flagrante desrespeito à Constituição. Nas agendas das transições políticas, as Comissões de Reparação cumprem um duplo papel: juridicamente sanam um dano e, politicamente, fortalecem a democracia, restabelecendo o Estado de Direito e recuperando a confiança cívica das vítimas no Estado que antes as violou. É por esta razão que legislações especiais, como a Lei n.º 10.559, criam processos diferenciados para a concessão de reparações, com simplificação das provas (muitas vezes, como no caso brasileiro, parcialmente destruídas pelo próprio Estado) e critérios diferenciados de indenização (que não a verificação do dano moral e material). São órgãos públicos específicos para promover um amplo processo de oitiva das vítimas, registrar seus depoimentos, processar as suas dores e traumas, em um ambiente de resgate da confiança pública da cidadania violada com o Estado perpetrador das violações aos direitos humanos.

DO PONTO DE VISTA POLÍTICO, O TEMERÁRIO GESTO DO TCU AO SE “AUTOCONCEDER” UMA COMPETÊNCIA EXPLICITAMENTE INEXISTENTE NA CONSTITUIÇÃO PODE ENFRAQUECER A PRÓPRIA DEMOCRACIA.

Após 10 anos de lenta e gradual indenização às vítimas, o anúncio público por parte do Estado brasileiro de revisar as impagáveis compensações decorrentes do “custo ditadura”, ou seja, dos desmandos cometidos pelo Estado nos períodos ditatoriais como torturas, prisões, clandestinidades, exílios, banimentos, demissões arbitrárias, expurgos escolares, cassações de mandatos políticos, monitoramentos ilegais, aposentadorias compulsórias, cassações de remunerações, punições administrativas, indiciamentos em processos administrativos ou judiciais – pode implicar em quebra do processo gradativo de reconciliação nacional e de resgate da confiança pública daqueles que viram o seu próprio Estado agir para destruir seus projetos de vida. Tantos anos depois, torna-se inoportuno e injustificável para as vítimas o Estado valer-se da criação de procedimentos de revisão diferentes daqueles inicialmente estipulados, estabelecendo uma instância revisora com um controle diferenciado, impondo ao perseguido político mais uma etapa para a obtenção de direito devido desde 1988, ampliando a flagrante violação ínsita na morosidade do Estado em cumprir com seu dever de reparar. É importante destacar que a Comissão de Anistia não se opõe que o TCU promova fiscalização de legalidade concreta. A propósito, o Ministério da Justiça já observou algumas destas recomendações em outras oportunidades. O que não se pode concordar, neste momento, é com o fato de que a Corte de Contas abandone seu papel de fiscal de contas arvorando-se verdadeiramente em nova instância decisória para a concessão dos direitos reparatórios. O sentido das Comissões de Reparação é o de estabelecer um procedimento mais simples, célere e homogêneo que o procedimento judicial, como forma de garantir a restituição dos direitos às vítimas ainda em vida ou aos seus familiares. Não guarda qualquer relação com este objetivo remeter ao TCU o trabalho arduamente realizado por 7 diferentes Ministros da Justiça ao longo de 10 anos.

A inclusão de um procedimento revisor nos dias de hoje pode abalar a confiança cívica que as vítimas depositaram no Estado democrático e a própria reparação moral consubstanciada no pedido oficial de desculpas a ele ofertado pelo Estado, prejudicando o processo de reconciliação nacional. Trata-se de um grave retrocesso na agenda da transição política e da consolidação dos direitos humanos no Brasil. Em outros países que enfrentaram regimes de exceção a agenda nacional move-se no sentido de avançar, com o Chile abrindo a integralidade dos arquivos disponíveis, a Espanha retirando estátuas e denominações de espaços públicos alusivas à ditadura de Franco, a Argentina condenando torturadores, e todos os países (desde o fatídico episódio nazista na Alemanha) estabelecendo programas de reparação às vítimas e depurando dos serviços públicos aqueles que promoveram violações graves aos direitos humanos. Esta decisão no Brasil orienta-se no sentido oposto: recoloca sob o plano da incerteza e da insegurança as reparações destinadas às vítimas ao invés de lançar-se sobre a investigação dos perpetradores. É imperativo avançar com a localização e abertura dos arquivos das Forças Armadas; com a proteção judicial das vítimas, com uma reforma ampla dos órgãos de segurança; com a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos entre outras tantas medidas já dadas pelo exemplo dos países que viveram experiências similares à nossa e pelo que está disposto nos tratados internacionais sobre a matéria. Caberia agora ao Brasil debruçar-se sobre os arquivos das vítimas, não para querer rever os critérios criados pelo legislador democrático diante do incomensurável custo ditadura,

mas sim para encontrar-se com os milhares de relatos das atrocidades impostas aos anônimos que os meios de comunicação ainda não se interessaram em propalar. Por fim, a Comissão de Anistia reconhece a legitimidade do TCU para o controle de contas pontual e concreto, mas opõe-se ao extrapolamento ora em curso que pretende identificar o regime indenizatório com o regime previdenciário e proclamar uma nova instância revisora de todas as indenizações mensais. A Comissão de Anistia ainda reconhece todas as demais formas de controle da Administração Pública a que está submetida, como as esferas de controle interno e o próprio Ministério Público Federal. Se há algum ponto positivo a ser extraído da decisão de ontem no caso de esta ser mantida por instâncias recursais superiores, trata-se da possibilidade reaberta para que o Estado, uma vez mais, possa através de um órgão público dar publicidade às histórias de violações praticadas durante os anos de exceção no Brasil. Numa eventual reapreciação de todo o conjunto de processos julgados espera-se que o Tribunal de Contas não transforme um processo de reparação política em processo meramente contábil e saiba ouvir e divulgar os relatos das vítimas, verificando com a devida sensibilidade histórica a legalidade de todas as concessões empreendidas pelo Ministério da Justiça. Somente deste modo a atual medida poderá contribuir para o fortalecimento da democracia e dos direitos humanos. Brasília, 12 de agosto de 2010. (a) Paulo Abrão Pires Júnior, Presidente da Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Sueli Aparecida Bellato, VicePresidente da Comissão de Anistia.”

Apoio da ABI à Comissão Diante da vigorosa reação da Comissão, a ABI enviou-lhe o seguinte e-mail: “Caro Dr. Paulo Abrão Pires Júnior, estimada Conselheira Dra. Suely Bellato, Parabéns pelo vigor da manifestação da Comissão de Anistia em repúdio à decisão do Tribunal de Contas da União de se arvorar em árbitro de atos praticados por esse órgão do Ministério da Justiça com absoluto respeito à legalidade. Essa decisão demonstra que o fascismo disseminado pela ditadura militar fez escola junto a membros do Plenário do TCU e de seu Ministério Público, que disfarça sua verdadeira face liberticida com argumentos que a nota da Comissão de Anistia

mostra como são inconsistentes e baseados em pressupostos falsos, como no caso do Capitão Carlos Lamarca e do caricaturista, jornalista e escritor Ziraldo Alves Pinto, beneficiados por límpidas decisões do Poder Judiciário. Para utilizar imagem do saudoso Governador Leonel Brizola, estamos diante de um espasmo ditatorial temporão e saudosista dos filhotes da ditadura encastelados no TCU. A ABI vai divulgar o pronunciamento da Comissão de Anistia em seu Site, para alargar a repercussão de manifestação tão oportuna que Vossas Excelências firmaram. (a) Cordialmente, Maurício Azêdo, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa.”

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Direitos humanos

A tímida caminhada dos direitos humanos A tortura, todos sabem, constitui resquício da escravidão, do programa de terror que os latifundiários organizaram para intimidar os servos da terra e a população em geral. POR FÁBIO LUCAS Perante solicitação amiga, dirigimonos ao jornalista Maurício Azêdo, a fim de abordar a tímida caminhada dos direitos humanos no quadro cultural brasileiro. A herança latifundiária, paternalista e escravocrata pesa muito. É tão profunda que as oligarquias sobrevivem graças à aliança com a classe burguesa e as organizações financeiras. Não é fácil falar em liberdade política e de expressão numa sociedade dominada por oligopólios. A própria imprensa brasileira tem pudor de nomear nossos ditadores. Estes são denominados, até hoje, “Presidentes”. Gozaram de distinções, altas pensões e segurança, tudo à custa do povo que os ditadores humilharam. Violência dos direitos humanos? Nenhum foi processado. Reproduzo adiante o conteúdo de minha carta, que tinha objetivo público. Caro Maurício Azêdo: em mãos o exemplar do Jornal da ABI nº 351 de

fevereiro de 2010, cuja leitura me reaproxima do jornalismo opinativo de memorável história em nosso País. Devo essa conquista aos préstimos de Rodolfo Konder. Pluralista e francamente aberto, o Jornal da ABI se alinhava ao lado dos escassos órgãos de análise e informação que se dignam de fugir do servilismo reinante nos jornais e revistas de grande circulação, todos atados às agências que lhes fornecem, a preço camarada, imagens e palavras subservientes, adequadas aos interesses das corporações internacionais. Retóricos defensores da imprensa livre, os jornalões e periódicos oferecem ao leitor o grau zero de alternativa, como se estivéssemos numa colônia alienada pelo monopólio das fontes e dos valores. Nem na última ditadura se teve tamanho controle do informe de modo tão unidimensional. Pois o Jornal da ABI surpreende pela abertura de avaliações da conduta pública, dando a jornalistas livres o espaço da opinião, do deleite e da contradita. Quanto ao Programa Nacional dos Direitos Humanos, objeto do Editorial, pouco se fala sobre o fato de que a Anistia foi gestada no ventre da dita-

RJ paga a reparação moral a 150 vítimas da ditadura A justiça chegou tarde demais para 32 delas, que faleceram antes da decisão de seus processos. A Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio começou a pagar em 12 de agosto a reparação moral instituída pela Lei nº 3.744/2001 às vítimas de prisões e torturas durante a ditadura militar. A indenização, no valor de R$ 20 mil, foi depositada no Banco Itaú e pôde ser

procurada em qualquer agência deste. Entre essas vítimas estão os associados da ABI Antonieta Vieira dos Santos, Arthur José Poerner, Jorge Saldanha de Araújo, Ronaldo David Aguinaga, Solange Albernaz de Melo Bastos e Umberto Trigueiros Lima. A lista inclui 32 vítimas da ditadura que já faleceram.

Os 32 injustiçados Estas são as vítimas da ditadura que não viveram o suficiente para terem seus direitos reparados. Acymar Fernandes Arydio Xavier da Cunha Carlos Monteiro Valente Carmela Pezzutti Claudionor Soares de Sena Demisthóclides Baptista Edson Antonio Eduardo L. de Sá Roriz Ejay Dias Gerardo Galisa Rodrigues Herval Arueira

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Horalto Alves da Silva Jayme Azevedo Rodrigues João Barbosa Fuly João Lucas Alves José Custódio de Sousa José Mendes de Sá Roriz José Pio (Michel) de Godoy José Roman José Salles José Tomines Josias Nunes de A. Santos

Maria Auxiliadora Lara Barcellos Nielse Fernandes Pedro Ricardo da C. Coimbra Quinidio Eugênio Alves Rita de Cássia Benchimol Sebastião Bastos Batista Setembrino Dias Lacerda Tanus Jorge Bastiani Uberahy Francisco Gonçalves Ubirajara Muniz Walter Machado

dura e enfiada goela abaixo na boca dos democratas, a fim de conceder imunidade aos que, a partir do golpe de Estado, se acostumaram na prática de delitos. Ao sucesso do primeiro delito (golpe de Estado) seguiu-se a rotina dos demais (seqüestro de cidadãos, tortura, assassinatos e corrupção). Refeito o quadro democrático, não há que “ouvir o outro lado”, senão para fins de punir os culpados e reparar as vítimas, mesmo aquelas que tentaram reagir pela força, em legítima defesa das instituições democráticas. O “outro lado” é o próprio povo brasileiro, alvo do golpe desfechado com inspiração e apoio externos. Toda essa matéria dispôs de alta manifestação jurídica e política por parte dos autores do nível de Paulo Sérgio Pinheiro (Folha de S. Paulo, 15-1-2010), Mino Carta (CartaCapital, Editorial 1, 20-1-2010) e Alberto Dines (“Observatório da Imprensa”, programa da Rádio Cultura da Fundação Padre Anchieta). Todo o material constante do nº 351 do Jornal da ABI é digno da mais acurada leitura. Assim como o anterior, nº 350, pois o conteúdo de ambos merece ser conhecido e arquivado para futuras

É esta a lista dos demais destinatários do pagamento: Abelardo Rosa dos Santos Adson de Souza Leite Affonso Henriques G. Correa Airton de Albuquerque Queiroz Alípio Cristiano de Freitas Álvaro Machado Caldas Antonieta Vieira dos Santos Antonio Clímaco Filho Antonio de Oliveira Aquiles Ferrari Ariceu Vieira Armanildo da Silva Nunes Arnaldo Alberto Werlang Arnaldo Alexandre de Lima Arthur José Poerner Artur Silva Áurea C. de M. Chlebnicek Benedito Rosa de Almeida Carlos Augusto de Carvalho Carlos Augusto Dias Ribeiro Carmem Wille Ribeiro Mota Chricio Ciryllo Oliveira Dario de Souza Geraldeli Delso Gomes de Azevedo Delzir Antonio Mathias Dirceu da Fontoura Trilha Diva Borges Noronha Dorma Tereza de O. Barbosa Edemundo Paulino Pinto Eduardo Rodrigues Elliston Silva Emir Mamoud Amed Fábio Henninger de Araújo Flávio Carvalho Molina Francisco Flávio A. Costa Francisco P. da S. Medeiros

consultas. Assim se constrói o saber pulsante da sociedade brasileira, acoimada de omissa e propensa ao esquecimento. O Professor Lênio Streck trabalhou bem o aspecto jurídico da Anistia, na entrevista publicada sob o título Tortura não é crime político. Está fora, portanto, da Lei da Anistia. A tortura, todos sabem, constitui resquício da escravidão, do programa de terror que os latifundiários organizaram para intimidar os servos da terra e a população de modo geral. Até hoje o Brasil não se libertou do autoritarismo despótico e violento. Não se pode ir mais longe neste breve recado. Fica o meu agradecimento e a esperança de que o Jornal da ABI continue a alistar-se ao lado de nossa rara e escassa imprensa livre. Antes, porém, pequeno lembrete: Mauro Santayana, em crônica no JB deste ano, aponta, comparativamente, os Presidentes que sustentaram, nos EUA, o poder civil e o civilismo no poder. E define o momento histórico de capitulação de D. Pedro I perante o poder militar, no caso da operação que levou ao assassinato do Frei Caneca. Enquanto isso, a Folha de S. Paulo em reportagem de Fernando Gallo, noticia Brasil começa a ser julgado por desaparecidos no Araguaia. E O Estado de S. Paulo de 15 de junho de 2010 reproduz matéria sobre a rejeição dos Estados Unidos ao atual trabalho escravo no Brasil, em artigo da jornalista Denise Chrispim Marin. Fábio Lucas é escritor, crítico literário e membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Mineira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente no periódico Linguagem Viva, de São Paulo, SP, ano XX, nº 251, julho de 2010, sob o título Onde estão os direitos humanos?

Gerço Carvalho de S. Roda Gilson Ribeiro da Silva Henri Acselrad Honório Gil Rego Horácio Carlos dos S. Mello Iedson Lopes Bastos Ismar Teixeira Barbosa Jair Kelly Mariz Jamil José Miguel Jamilton Mendonça de Barros Januário José P. A. Oliveira João Batista Moreira João Carlos Reis Horta João Figueiro João Luiz de S. D. B. Quental João Vicente de Lima Jorge Saldanha de Araújo Jorge Santos Gomes José Arimathea C. Lima José Carlos de Oliveira José de Oliveira José Gomes Teixeira José Gonçalves Alves José Lazarini José Luiz Homem da Costa José Nascimento de França José Oto de Oliveira Juarez Cícero P. Coqueiro Jussara Ribeiro de Oliveira Laerte Ribeiro Lúcia Maria M. Vasconcelos Luiz Gonzaga de Macedo Manoel da Silva Martingil Manoel de Oliveira Candeco Manoel José de P. Duque Manoel Martins Maria de Fátima M. Pereira Maria de Lourdes Freitas Pacheco Maria Helena do Nascimento Barbosa

Maria Lúcia W. C. Leite Maria Lucy R. M. Carneiro Mário Coutinho Marly Dionizia Santos Werlang Menandro Sandes Lima Milton Lopes da Costa Miriam Gomes Burger Ney Freitas de Quadros Nicodemos Alves Machado Nilson Venâncio Oberland Pacheco Barreto Olavo Alves Pereira Osmar de Jesus M. Barbosa Oswaldo Carminatti Paulo Cezar de Azevedo Paulo Roberto Jabur Pedro Alves Filho Pedro França Viegas Priscila Melillo Magalhães Raimundo Conceição da Silva Raimundo José B. T. Mendes Romeu Bertol Ronald Santos Barata Ronaldo David Aguinaga, Samuel Henrique Dibe Maleval Selma Martins de O. Silva Sidney Lianza Solange Albernaz de Melo Bastos Tereza Cristina D. Martins Ulysses Silva do Amaral Umberto Trigueiros Lima Valdeci Aleixo de Souza Vitória Lúcia M. P. Monteiro Wagner Joaquim M. Mendonça Walter Batista dos Santos Walter Quaresma Costa Wanda Cozetti Marinho Wilson do N. Barbosa Yoshio Ide Zamir Silva


Mário Alves e Betinho anistiados Em sessão em Brasília, a Caravana da Anistia aprova a anistia aos dois e a mais cinco perseguidos pelo regime, entre os quais o bancário Raul de Carvalho, filho de Apolônio de Carvalho, e o Major Jefferson Cardim de Alencar Osório, preso, torturado e condenado por pegar em armas contra a ditadura militar. POR CLAUDIA S OUZA PATRICIASANTOS/FOLHAPRESS

O jornalista Mário Alves de Souza Vieira, o sociólogo, escritor e ativista dos direitos humanos Herbert José de Souza, o Betinho, e mais cinco participantes da resistência à ditadura militar foram anistiados pela 41ª Caravana da Anistia, organizada pelo Ministério da Justiça, em sessão especial realizada no dia 18 de agosto em Brasília. Foram também anistiados nessa sessão o bancário Raul de Carvalho, filho de Apolônio de Carvalho, que lutou no lado republicano na Guerra Civil da Espanha e na Resistência francesa contra a ocupação da França pelos nazistas, o Major do Exército Jefferson Cardim de Alencar Osório, que pegou em armas contra a ditadura militar, o líder camponês José Moraes Silva, perseguido entre 1972 e 1975 como suspeito de participar da Guerrilha do Araguaia, o diplomata Jom Tob de Azulay e a militante do PCBR Maria do Socorro, líder estudantil quando fazia o curso de Letras no Ceará, seu Estado. Tiveram assento à mesa da sessão de julgamento o Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, e, como convidados especiais, o exPresidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do BrasilOAB, Cezar Britto, que deu ênfase em sua gestão à defesa dos direitos humanos, e a advogada Deisy Ventura, doutora em Direito. A sessão integrou a programação do 4º Seminário Latino-Americano de Direitos Humanos e Anistia Política, promovido desde o dia 16 pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Em funcionamento desde 2001, a Comissão de Anistia analisa processos de quem foi perseguido politicamente no Brasil entre 1946 e 1988. Desde então, a Comissão julgou cerca de 57 mil processos – 33 mil foram deferidos e em 12 mil houve algum tipo de reparação econômica. A Caravana da Anistia já percorreu 18 Estados e apreciou publicamente mais de 800 processos. Entre os anistiados durante as Caravanas, a primeira das quais realizada na ABI em 3 de abril de 2008, estão personalidades que marcaram a História do País, como o educador Paulo Freire, o líder seringueiro Chico Mendes, o Governador Leonel Brizola e o Presidente João Goulart, entre outros.

OS PROCESSOS JULGADOS Os processos julgados e deferidos pela 41ª Caravana da Anistia foram os destas vítimas da ditadura:

Betinho (Herbert José de Souza) num momento de poesia, sempre presente em sua vida, dedicada à prática do bem. Sua campanha Natal sem Fome gerou o Bolsa Família.

HERBERT JOSÉ DE SOUZA, BETINHO Foi um dos fundadores da organização marxista Ação Popular-AP e um dos símbolos da campanha pela anistia, que o mencionava na canção O Bêbado e a Equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, pelo sonho da “volta do irmão do Henfil”, o cartunista. Mineiro, Betinho era o terceiro homem dos oito filhos de Dona Maria, celebrizada em cartas de Henfil. Ele se formou em 1962 em Sociologia e Política e em Administração Pública na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Com o golpe de 1964, passou a atuar na resistência clandestina à ditadura militar, dirigindo organizações de cunho democrático no combate ao regime. No começo da década de 1970, foi para o exílio no Chile, Panamá, Canadá e México. Em 1979, com a anistia, retornou ao Brasil e criou o Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas-Ibase em defesa das populações pobres e o direito à vida e à dignidade dos portadores do HIV/ aids. Idealizou a campanha Natal sem fome, que deu origem aos programas de cestas-básicas do Governo Federal. Hemofílico, contraiu numa transfusão de sangue o vírus da aids, que o mataria.

Memorial Mário Alves, instalado em 8 de julho no hall do Auditório Oscar Guanabarino, nono andar do Edifício Herbert Moses, sede da ABI.

MÁRIO ALVES DE SOUZA VIEIRA

JOSÉ MORAES SILVA

remoção para o Consulado-Geral em Los Angeles, Estados Unidos, onde permaneceu até 1974. Persistindo a perseguição, afastou-se do trabalho no Itamarati em 1976 e passou a se dedicar ao cinema.

Jornalista, diretor do jornal Momento, de Salvador, órgão do Partido Comunista Brasileiro-PCB, do qual dirigiu também os jornais Voz Operária e Novos Rumos. Membro do Comitê Central do PCB, dissentiu da linha política do Partido e fundou com outros companheiros, entre os quais o jornalista e escritor Jacob Gorender, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário-PCBR, que defendia o enfrentamento da ditadura até no campo militar. Seqüestrado e torturado no Doi-Codi do Rio de Janeiro, nunca mais foi visto. É considerado desaparecido político, de acordo com a Lei nº 9.140/95, e foi o primeiro preso político a ter a responsabilidade pelo seu desaparecimento imputada ao Estado, em ação movida por sua mulher, Dilma Vieira, por decisão da Juíza Federal Tânia de Melo Bastos Heine, em 1970. Em sua memória a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República criou o

Camponês, foi perseguido durante a Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1975.

JEFFERSON CARDIM DE ALENCAR OSÓRIO

RAUL DE CARVALHO Escriturário do Banco Lar Brasileiro foi preso em 1969 e detido diversas vezes no Doi-Codi do I Exército, sediado no Rio. Condenado, teve os direitos políticos suspensos. Cumpriu pena na Ilha Grande, litoral do Estado do Rio, entre 1970 e 1972. É filho de Apolônio de Carvalho, participante da brigada internacional que lutou do lado republicano na Guerra Civil da Espanha e participante, com sua mulher, a francesa Reneé, da Resistência francesa à ocupação nazista. Preso, foi banido do País após o seqüestro do Embaixador norte-americano Charles Elbrick.

JOM TOB DE AZULAY Ingressou por concurso público no Instituto Rio Branco em 1965. Sofreu perseguição em seu ambiente de trabalho, o que o obrigou a solicitar

Major do Exército, foi líder da Operação Três Passos, articulada por um movimento guerrilheiro no Rio Grande do Sul. Considerado comunista, foi reformado pelo Ato Institucional nº 1 e condenado a oito anos de prisão em 1964. Seus direitos políticos foram cassados por dez anos pelo Conselho Especial de Justiça da 5ª Região Militar. Fugiu para o Paraná, onde foi preso. Cumpriu pena até 1977.

MARIA DO SOCORRO Participou do movimento estudantil em Fortaleza, onde cursava Letras na Faculdade de Filosofia do Ceará e fazia parte do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário-PCBR. Por causa das perseguições, abandonou a faculdade e o trabalho como professora. Mudou-se para o Recife e trocou de nome. Foi presa e processada. Retornou em 1972 ao Ceará, onde foi novamente presa.

Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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DEPOIMENTO

“Tenho mais de mil perguntas, e não quero ouvir as respostas”. A frase, por si só bastante curiosa, torna-se ainda mais intrigante quando identificado seu autor. Faz parte de um artigo assinado por um iniciante Geneton Moraes Neto. Foi publicada em setembro de 1974, no experimental O Outro, fanzine editado por um grupo de estudantes da capital pernambucana. Quase quatro décadas depois, o jornalista tornou-se referência na arte de entrevistar. De provocar. Sabe fazer as perguntas. E apurou um ouvido afiado para decifrar as respostas. O título desta entrevista, menos que uma brincadeira, é uma referência ao trabalho de Geneton. Muitos de seus livros trazem o termo ‘dossiê’ na capa. É justo. Suas obras costumam revelar em detalhes, e com altas doses de ineditismo, os pensamentos e perfis até então ocultos dos entrevistados. De Carlos Drummond de Andrade a Fernando Gabeira. Dos exPresidentes da República José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso – todos publicados no Dossiê Brasília. Além dos bastidores de episódios históricos, como a Copa de 1950. Como a entrevista feita por ele com Drummond, nosso papo, na sede da TV Globo, no Jardim Botânico, durou mais de duas horas. Ainda assim, exigiu breves contatos posteriores, para complementar a apu-

A trajetória e a técnica de um jornalista que se define como um “agente provocador”.

POR PAULO CHICO E FRANCISCO UCHA 36 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

FRANCISCO UCHA

ração. Como entrevistado, Geneton é menos objetivo do que como entrevistador. Por vezes, parece escapulir das perguntas. Sua narrativa é marcada por desvios de rota e interrupções. Nada intencional, que fica bem claro. E absolutamente natural para alguém que, ao longo de tanto tempo de ofício, colecionou boas histórias. E não perde o hábito de querer contá-las. Uma das polêmicas definições apresentadas pelo repórter, atualmente na Globo News, dá conta de que fazer Jornalismo é tornar, por meio de criteriosa edição do material bruto, as pessoas mais interessantes aos olhos do público. Para isso, o desafio é destacar o que nelas há de mais especial e marcante. Cá entre nós, no caso desta entrevista com Geneton, tal missão até que foi fácil. Torná-lo um personagem interessante é tarefa que não exige sacrifício. Aproveite você também. Boa leitura.


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DE TER OCORRIDO, OU NÃO, TORTURA NAS DEPENDÊNCIAS DO DOI-CODI DURANTE A ADMI-

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Geneton Moraes Neto – Sou suspeito pra falar disso. E fico um pouco constrangido, pois pode ficar parecendo que o jeito que faço, e defendo, é a única maneira correta. Jornalista que não morde não pode ser levado a sério. É como um pitbull desdentado! Não serve para rigorosamente nada! Fazer jornalismo é jo-

COMO, NA PRÁTICA

DA ENTREVISTA, DOSAR ESSA MEDIDA?

PROVOCAÇÃO, IMAGINO.

ESSES

TIFICA COMO ‘AGENTE PROVOCADOR’.

DOIS PERSONAGENS ERAM UM BELO CONVITE À

MENTO DE UMA FICHA DE HOTEL, VOCÊ SE IDEN-

JORNAL DA ABI – EM ARTIGO RECENTE VOCÊ AFIRMOU QUE, QUANDO DO PREENCHI-

Geneton Moraes Neto – Ele disse: “As coisas que eu digo, eu falo com a maior convicção. Eu estou com 86 anos, acha que eu vou ficar inventando coisas aqui? E outra coisa. Você conhece alguém que assuma que trabalhou no Doi-Codi? Pois eu digo que no ‘meu’ Doi-Codi não houve torturas”. Bom, logo após o programa ir ao ar apareceu um grupo de ex-presos políticos. Eles estão se mobilizando para comprovar que houve, sim, tortura nestes tempos no Doi-Codi do Rio de Janeiro. Li também o depoimento do próprio Maurício Azêdo, Presidente da ABI, sobre o tempo em que ficou preso lá. Aí, vai ficar complicado... Ninguém é louco de afirmar que não houve tortura no DoiCodi no Rio. O que o General Leônidas afirmou é que ele não tinha conhecimento de nada neste sentido. Agora, como ele mesmo fez a ressalva, vá saber ao certo o que acontecia ‘na calada da madrugada’...

gar pedra na vidraça! É o seguinte. Há uma praga no jornalismo brasileiro que é o ‘compadrismo’. Sobretudo, na área de cobertura de celebridades. Cerca de 98% do que se pergunta ou se responde é conversa de comadre. A chance de sair alguma coisa de útil dali é igual à probabilidade de a Nasa abrir uma base de lançamento de foguetes em Teresina, no Piauí... Veja só as entrevistas americanas, até mesmo as feitas na Casa Branca. Em alguns momentos, os repórteres chegam quase no limite da agressividade. O cara não hesita em dizer: “Presidente, me desculpe, mas o senhor mentiu. Disse tal coisa na entrevista, mas fez exatamente ao contrário”. Aqui, fica tudo no tapinha nas costas. Parece que prevalece a camaradagem ao interesse público, ou do público. Eu acho mesmo que o jornalista, especialmente nas entrevistas, tem que fazer um pouco esse papel de ‘agente provocador’. De extrair algo do entrevistado. Não é bancar o menino zangado, o que é fácil de se fazer, mas é tolo também... Essas entrevistas às quais temos assistido por aí, essas conversas, em televisão especialmente, mostram o reinado do compadrismo. É diferente de quando você assiste ao General Newton Cruz peitar o repórter, como fez comigo... “Você queria que eu fizesse o quê na noite do atentado no Riocentro?”, perguntou. “Que o sr. ligasse para o Presidente, para avisar a alguém sobre o que acontecia”, respondi. “Mas, avisar a quem? Não dava tempo de acionar o Presidente”, retrucou. “Então, a seu chefe”. “Sobre o quê?”. “O atentado, General!” (risos). Ficamos neste debate... Acho que essa postura é fundamental.

NISTRAÇÃO DO PRÓPRIO LEÔNIDAS...

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JORNAL DA ABI – UM DOS PONTOS MAIS POLÊMICOS DESTA ENTREVISTA FOI A QUESTÃO

Geneton Moraes Neto – Houve momentos nestas entrevistas em que eu fiquei numa situação difícil. Tratava-se de um prato-cheio para o jornalista ficar fazendo discurso político, não é? Era até tentador. Dava vontade de entrar numa de rebater as afirmações deles. Em dois ou três momentos, eu fiz uma coisa que o jornalista não deve fazer. Não deve, mas eu fiz (risos). Fiz afirmações, e não perguntas. Com o Leônidas, fiz isso, por exemplo, quando afirmei que os outros presos tinham, sim, visto o Vladimir Herzog ser maltratado. Eles podem até insistir na tese de que ele se matou. Mas não há discussão sobre esse ponto, de ele ter sido torturado. Isso é fato. Mas, sinceramente, os dois generais me deram a impressão de convicção. Eles estavam 100% certos daquilo que diziam. Rebati algumas coisas, que achei que deveriam ser rebatidas. Como quando o Leônidas disse que era uma autoridade acessível. E eu imediatamente retruquei: “Sinto muito, mas não era, não! A gente não conseguia chegar perto do senhor”.

FIAR SERIAMENTE QUE ELE ESTÁ MENTINDO?

NÃO ESTÁ FALANDO A VERDADE? OU DESCON-

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UM ENTREVISTADO E TER A CERTEZA DE QUE ELE

JORNAL DA ABI – COMO É ESTAR DIANTE DE

num quarto de estudante, com livros e máquina de escrever. Não é nem computador. É máquina de escrever mesmo!

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dos generais. Então, em primeiro lugar, fui movido mesmo pela curiosidade. Mas se fosse preciso o tal gancho até teria um. É a data redonda de 25 anos do fim do regime militar. Pensamos logo no Leônidas Pires Gonçalves, pois ele foi o general que viveu a transição do último governo militar para o primeiro civil. Já havia sido escolhido para ser Ministro, mas, com a morte do Tancredo, terminou por desempenhar papel vital na condução de Sarney ao Governo. E virou uma figura emblemática no imaginário da época, sendo um representante da linha dura, um militar que gritava com jornalistas... O outro foi o Newton Cruz. A primeira reação de ambos foi dizer não ao meu pedido. E, veja só, não havia combinação nisso. Não havia contato entre eles, a relação estava, inclusive, estremecida. Insisti quatro vezes, com cada um deles, até que na quinta investida os dois, por absoluta coincidência, toparam falar. O Newton Cruz até brincou comigo: “Olha, sou mal educado! Quando falo, eu grito. Então, não quero mais me meter em confusão”. Venci pela insistência. Dizia que desejava ouvir a versão deles. No fundo, acho que acabei tocando na vaidade pessoal deles. É um velho golpe... (risos). Com o Leônidas, eu queria saber em detalhes sua atuação no episódio da doença e morte do Tancredo, naquele contexto de definir quem assumiria a Presidência. O que ele havia conversado, como Ministro do Exército? O que havia dito exatamente a Ulisses Guimarães... Foi até engraçado, pois, marcada a entrevista, voltei a ligar para reconfirmar. E ele: “Você se esqueceu que eu sou um milico? Está marcado para sexta-feira, às duas da tarde, e ponto. Palavra de militar!”. O Newton Cruz falou comigo no apartamento da filha, na Barra da Tijuca, onde mora quase que

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JORNAL DA ABI – DE QUE FORMA, NA PRÁTICA, ISSO SE APLICA A ESSE PROGRAMA DA GLOBO NEWS, ESPECIFICAMENTE? Geneton Moraes Neto – Como assunto jornalístico, os chamados ‘Anos de Chumbo’ são fascinantes. O assunto não se esgotou, ainda. Tento me libertar da ‘ditadura do gancho’, que obriga o jornalista a ter sempre que justificar a escolha da pauta. O que justifica de verdade, acredito, é o interesse pelo assunto. Se eu tivesse essa atitude de achar que as coisas estavam contadas, me desse por satisfeito, eu não teria batido na porta

Geneton Moraes Neto – Convivi 20 anos com Joel Silveira, tido por muitos como o melhor repórter do Brasil. Foi uma relação engraçada, pois ele tinha idade para ser meu pai, mas a gente ficou amigo íntimo. Fui pra casa do Joel fazer uma entrevista com ele, acho que em 1987, e neste mesmo dia ele já me convidou para fazer um livro. Tivemos uma identificação imediata. Terminamos fazendo dois livros, o Nitroglicerina Pura, com documentos de governos estrangeiros sobre o Brasil, e o HitlerStalin: Pacto Maldito, no qual ele fez mais a parte histórica e eu fiquei com as entrevistas, tratando do acordo de nãoagressão entre esses dois líderes e os efeitos disso aqui, sobre a esquerda brasileira. Estou citando o Joel pois me lembro de ele perguntar: “Se você estivesse hoje numa chefia de grande jornal, quais assuntos pautaria?”. E ele próprio respondia, listando dezenas deles. “Zuzu Angel, por exemplo. Aquilo foi acidente ou assassinato? Cadê o corpo de Rubens Paiva? Quem matou Vladimir Herzog?”. Esse era um exemplo de fogo do repórter, que Joel sempre manteve aceso, mesmo depois de tanto tempo de estrada. O jornalista lida tanto com fatos tão inusitados que, depois de um certo tempo, cai na tentação terrível de achar que os fatos extraordinários são ordinários. Vira aquela figura triste, que é o ‘derrubador de matérias’, um cara meio blasé.... Isso é um risco grave. Uma coisa que eu tento evitar 24 horas por dia. Quando eu tiver essa atitude meio desinteressada, prefiro partir pra estudar medicina, ou criar galinhas em Rondônia... Fazer qualquer outra coisa. Eu concordo com o Joel quando ele dizia que se houvesse justiça no mundo no expediente dos jornais em primeiro lugar viriam os nomes dos repórteres, e só depois os dos donos do jornal. Estou citando Joel Silveira aqui para mostrar que, assim como ele, acredito que não há assunto esgotado. Historicamente, o jornalismo se divide entre os carrascos, que matam as matérias, e os ressuscitadores, que dão vida a elas. Os carrascos sempre foram maioria. A vida é assim. Neste minuto, uma criança nasce, um avião decola, o planeta gira. E em alguma Redação um editor joga no lixo uma história interessante.

COM ESSES MILITARES?

QUE O LEVOU, TANTO TEMPO DEPOIS, A FALAR

TAS COM GENERAIS DA ÉPOCA DA DITADURA. O

GRAMA GLOBO NEWS DOSSIÊ, COM ENTREVIS-

O PRO-

E QUE TEVE GRANDE REPERCUSSÃO.

JORNAL DA ABI – GOSTARIA DE COMEÇAR POR UM DE SEUS TRABALHOS MAIS RECENTES,

Fazer jornalismo é jogar pedra na vidraça! É o seguinte. Há uma praga no jornalismo brasileiro que é o ‘compadrismo’. Sobretudo, na área de cobertura de celebridades. Cerca de 98% do que se pergunta ou se responde é conversa de comadre.

JORNAL DA ABI – MAS, SE DESCAMBAR PARA O LADO AGRESSIVO, NÃO HÁ RISCO DE A ENTREVISTA SE PERDER?

Geneton Moraes Neto – Existe uma hostilidade inegável e compreensível entre esses dois lados. Dos militares em relação aos repórteres, e destes em relação aos militares. Eu diria que isso é natural, e até saudável. Mas, no final da entrevista, o Newton Cruz me levou ao elevador, cantarolando uma música antiga, que dizia: “Falam de mim, mas eu não ligo, falam de mim, que sempre fui amigo. Um rapaz como eu não merece essa ingratidão. Falam de mim, falam de mim. Mas quem fala não tem razão”. Na verdade, era ele querendo me dizer que, ao menos, parte da fama atribuída a ele não procedia. Na saída da casa dele, na porta do elevador, eu disse: “Vou ser sincero com o senhor, General. Não estou querendo dar uma de bom moço. Mas jornalisticamente o senhor me interessa tanto quanto o Luís Carlos Prestes, a quem também entrevistei”. E é isso mesmo! Enquanto jornalista, sou contra a patrulha ideológica. Só a admito na hora de dar meu voto na urna. Tem muito jornalista que, embalado pela herança ruim da ditadura, derruba pautas. “Ah, pelo amor de Deus! Falar com esse general...”, reclamam. Mas, ao adotar essa postura, o jornalista está cometendo uma falha gravíssima, que é a censura ideológica. ‘Imparcialidade’ total não existe. É ficção. Mas honestidade profissional existe, sim. É não deixar a simpatia política contamiJornal da ABI 357 Agosto de 2010

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NOVOS FATOS?

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RADO E ENCERRADO, O LEVOU A DESCOBRIR

JORNAL DA ABI – QUE OUTRA REPORTAGEM, TAMBÉM JÁ DADA COMO ASSUNTO EXPLO-

nar o jornalismo. Confesso aqui. Pertenço a um partido. O Partido dos Perguntadores do Brasil (PPB). É o único que não pode nem deve ter ideologia. Ponto.

DEPOIMENTO DOSSIÊ GENETON MORAES NETO

Geneton gravou para o Fantástico, da Rede Globo, uma série de entrevistas com quatro ex-Presidentes: Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique. O texto integral foi publicado no livro Dossiê Brasília: Os Segredos dos Presidentes.

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Geneton Moraes Neto – Eu sempre fui meio ET na televisão. Nasci em jornal, adoro o impresso até hoje, e caí na tele-

COMO E

QUANDO SE DÁ ESSA OPÇÃO?

DITO FINAL, IDENTIFICA A AUTORIA.

OFF, E SOMENTE A SUA ASSINATURA, NO CRÉ-

ÀS VEZES, VOCÊ SE-

COMO É FEITA A EDIÇÃO.

QUER APARECE. AS PERGUNTAS SÃO FEITAS EM

TRAR A PRÉ-ENTREVISTA OU DETALHES DE

O HÁBITO DE EXPLORAR OS BASTIDORES, MOS-

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38 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

JORNAL DA ABI – UMA CARACTERÍSTICA MARCANTE DE SEU TRABALHO NA TELEVISÃO É

visão por acidente. Digo isso tranqüilamente, e longe de querer considerar a televisão um coisa secundária ou menor, até porque no Brasil ela é extremamente importante. Mas, como venho de jornal, sempre tive um certo desconforto na televisão. Como não sou aquele repórter de vídeo, arrumadinho de paletó, gravata e cabelo penteado, prefiro nem aparecer. Aliás, uma receita infalível para o desastre televisivo é o repórter que quer aparecer mais do que o assunto. Não há exceção. O resultado é sempre constrangedor. Outro dia, brinquei, numa postagem no G1, dizendo que uma jaguatirica da serra – aliás, nem sei se existe este bicho – minimamente maquiada é dez vezes mais fotogênica do que eu... (risos). A verdade é que eu não me sinto à vontade diante de uma câmera. Na juventude, eu queria fazer cinema. Acho que tento dar vazão a isso na televisão. Sempre trabalhei junto com o câmera, tentando propor um enquadramento diferente, valorizando o que se chama de ‘olho da câmera’. Ou seja, buscando uma imagem que acrescente algo em relação àquilo que, naturalmente, captaria o olho humano. Filmamos o entrevistado numa perspectiva de baixo para cima, num close extremamente fechado... Enfim, focos que só a câmera pode fazer. JORNAL DA ABI – OUTRA FACETA DE SEU TRABALHO É A NÍTIDA PREOCUPAÇÃO COM O

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Geneton Moraes Neto – No caso dos generais, isso nem ocorreu, pois a gente usou 90% do que gravou. Um pouco menos, talvez. O programa teve muito tempo na grade. Nestes casos, eram entrevistas detalhadas, polêmicas, e ambos já estavam treinados, vacinados em relação a jornalistas. Pediram, então, que não fossem desconectadas no programa frases polêmicas, do tipo “não houve tortura no Doi-C odi’, fora de seus respectivos contextos. Tanto que, na edição, para esclarecer o telespectador, fiz questão de usar imagens do making off com o Newton Cruz pedindo isso, quando o câmera ainda montava o equipamento. “Olha, eu estou aqui falando tudo, mas vocês não utilizem minhas palavras sem uma ordem lógica”. Tanto que assumi, com ambos, o compromisso de que, quando fôssemos abordar determinado tema, o faríamos por inteiro, com todas as falas a respeito, e não com uma edição salpicada.

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POR VEZES, NÃO DÁ PENA DE

FUNDAMENTAL.

DEIXAR PARTE DO MATERIAL DE FORA?

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JORNAL DA ABI – NESTE ESFORÇO DE DESPERTAR O INTERESSE DO PÚBLICO, A EDIÇÃO É

no início, despertar e prender a atenção do leitor ou telespectador. A função do jornalista também é um pouco criar um outro tempo que não é o tempo real. Você vai entrevistar um camarada, num papo que leva duas horas. Se colocar essa fita bruta no ar, na televisão, fica chato mesmo. Agora, se você transforma esse material, enquadra-o no tempo televisivo, de cinco ou dez minutos, ou até trinta, como temos na Globo News, e significa uma eternidade em televisão, você enriquece o personagem. Pega apenas os melhores takes, as melhores imagens e declarações. No final das contas, fazer jornalismo é tornar a vida mais interessante do que ela é. O jornalismo é a grande, divertida e, freqüentemente, inútil tentativa de tornar os fatos mais interessantes do que eles na verdade são. É produzir informação e entretenimento inteligíveis. É uma lástima que inspire tanta empáfia em tantos que o praticam.

Geneton Moraes Neto – Fiz, recentemente, uma entrevista longa com o Fernando Gabeira, que virou um livro, Dossiê Gabeira. E um jornalista me perguntou, quando do lançamento. “Para que estava gravando. Foram mais de duas voltar a um assunto já tão esgotado, horas de entrevista, resultando em mais sobre o seqüestro do embaixador nortede mil linhas datilografadas. Depois de alamericano no Brasil?”. E eu respondi jusguns dias, já abusando, liguei de novo, só tamente com a tese de que não acredito para esclarecer alguns pontos, como daque exista assunto esgotado. tas e nomes. Foi curioso, pois Acho que até a crucificação de aí ele me disse uma coisa que, A CANTIGA Jesus Cristo deve ser revista, até hoje, eu não sei se foi uma DO GENERAL entendeu? (risos) Como aconcrítica ou um elogio. Na dúviteceu? Quem fez o quê? Com da, tirei como um diploma pra Falam de mim que intuito? O jornalista não mim. Ele disse: “Você é implaMas eu não ligo. Todo mundo sabe pode ter essa atitude de achar cável!”, quando eu estava Que eu sempre que tá tudo esclarecido. Há complementando a apuração. Fui amigo. sempre o que se apurar. Há Meio que sem querer, pois não Um rapaz como eu sempre fatos que não foram era essa a intenção, isso acaNão merece contados. Às vezes, coisas bou por virar um testamento Essa ingratidão. Falam de mim, importantes. Ou banais mesdo Drummond, que morreu Falam de mim, mo. Neste livro do Gabeira, poucos dias depois, coisa de Mas quem fala dissemos, pela primeira vez, duas semanas. A partir daí, Não tem razão. que o ator Carlos Vereza foi passei a usar esse termo ‘dosquem disfarçou os seqüestrasiê’. Acho que soa bem e dá Samba de Carnaval cantado dores do embaixador, após a uma idéia do que é o trabalho. pelo General ação de captura. Ele, por É sempre uma reunião de doNewton Cruz ao exemplo, pintou de louro os cumentos e depoimentos solevar Geneton até cabelos do Gabeira. bre alguém ou algum caso. E o elevador, após a entrevista à acho mais. O livro terminou Globo News. JORNAL DA ABI – É FREQÜENvirando o espaço nobre para TE, EM SUAS ENTREVISTAS E LIVROS, a reportagem no Brasil, já que O USO DO TERMO ‘DOSSIÊ’. O QUE ISSO REVELA os grandes jornais abriram mão disso, inSOBRE SEU TRABALHO? felizmente. Não existe mais uma revisGeneton Moraes Neto – A primeira vez ta de reportagem... Existem as revistas que usei o termo foi no Dossiê Drummond, semanais. Não temos mais publicações em 1994, fruto de uma entrevista loncomo a Realidade, da qual todo mundo ga feita por telefone. Esse caso foi outra sente falta. lição de como, às vezes, vale a pena você JORNAL DA ABI – O QUE FAZ DE UMA REser impertinente e até inconveniente. Eu PORTAGEM OU ENTREVISTA UM MATERIAL DE e todos os repórteres do Brasil sonhávaQUALIDADE? O QUE FAZER, POR EXEMPLO, DImos em entrevistar o Carlos Drummond ANTE DE UM ENTREVISTADO MONOSSILÁBICO? de Andrade. Até que, mais para o final da vida, ele começou a falar, mas em geral Geneton Moraes Neto – Primeiríssima fugia do contato pessoal. Era acessível regra para uma entrevista ruim: trate o no contato telefônico. O pretexto, o tal entrevistado como se ele fosse um papa do ‘gancho’ para eu tentar essa entrevista e você, um cardeal. Desastre certo. Sem eram os 60 anos daquele poema No Meio exceção. Li uma vez uma definição de do Caminho, que tinha saído em 1928 e uma jornalista inglesa, num livro. Ela faria aniversário em 1988. Sabia que a contou que tinha passado a manhã toda filha dele estava doente. Preparei um num hotel, entrevistando o Robert Redquestionário, com tudo aquilo que eu ford, e que ele não dissera uma frase gostaria de perguntar. Acho que mais de interessante. Ela voltou para a Redação, 60 perguntas... Telefonei, e ele próprio contou sua decepção para os colegas e atendeu. Ele atendia! Era outra época, refletiu sobre o trabalho do jornalista. pois hoje qualquer suposta celebridade Pensou: “O leitor não vai aceitar se eu do BBB tem assessor de imprensa... (ridisser que o Robert Redford, mito do sos). Drummond não tinha nem secrecinema, admirado por milhares de pestária eletrônica... Ele disse: “Minha filha soas, não tem nada de interessante para tá doente, eu tenho ido ao hospital todos contar. Não é aceitável”. A partir daí, os dias, só venho em casa para tomar concluo que o trabalho do jornalista, no banho, trocar de roupa... Quem sabe fundo, é tornar as pessoas um pouco depois?”. Eu sabia que aquele ‘depois’ não mais interessantes do que elas são. Não existiria... E disparei: “E se a gente fizesé inventar nada, nem fazer ficção. Às se agora, por telefone?”. “É, pode ser, vezes, o cara fala meia hora de ‘abobriagora eu estou disponível”, respondeu. nhas’, e bem no final dispara algo inteAquilo, pra mim, foi como fazer um gol ressante. Aí, entra a questão técnica, de no Maracanã! Já estava com a gravação perceber e trabalhar esse dado no lide. engatilhada. Quando ele disse ‘alô’ eu já Pronto, você, pelo menos, já consegue,

TEXTO, EXTREMAMENTE BEM ACABADO E ENXUTO, EXATO. VOCÊ TEM UMA OBSESSÃO EM RELAÇÃO ÀS PALAVRAS?

Geneton Moraes Neto – Tenho, sim, uma obsessão. Aliás, isso deveria ser comum a todo jornalista. É claro que na televisão você não pode comparar o nível de exigência com o texto em relação ao jornal ou à revista. O texto de televisão está justamente no meio do caminho entre o texto escrito e a linguagem falada. É difícil encontrar um ponto de equilíbrio. Mas, admito, algumas coisas em televisão me chocam. ‘Tem gente que’... Eu não escrevo isso. Isso se fala, mas na minha opinião não se escreve. Cuidado básico: jornalista precisa ser cão de guarda do idioma. É obrigação. Não pode, por exemplo, dizer ‘o óculos’. Ou ‘pra mim ver ’. Não pode! Uma das coisas boas de ter saído do Nordeste, cumprindo a sina de vir tombando, até chegar ao Rio, foi ter conhecido e convivido com grandes mestres do jornalismo. Há uma frase genial do Paulo Francis. Ele dizia uma coisa que acho brilhante. Ele lamentava que no Brasil a gente não tivesse, e, acredito, ainda hoje não tenha, criado “a tradição de uma prosa clara e instruída”. Aqui, criou-se o equívoco de que escre-


Eu sempre fui meio ET na televisão. Nasci em jornal, adoro o impresso até hoje, e caí na televisão por acidente.

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JORNAL DA ABI – O QUE EXPLICA ISSO? Geneton Moraes Neto – Essa postura, apesar de equivocada, é até compreensível, diante do perfil do próprio brasileiro, de fazer amizades facilmente, de ter uma vocação conciliatória. O problema é que, quando você se confunde com as fontes, acaba se anulando enquanto jornalista. Eu até evito isso. Já tive chances de conviver com celebridades com as quais falei, mas evito ao máximo. Imagina se eu vou jantar na casa do Caetano Veloso, ele fala coisas interessantes, e eu não gravei, nem anotei... Se eu estou falando com alguém conhecido, e não estou com o gravador ligado, acho um absurdo! Uma perda de tempo! Tenho a sensação de que estou na pele errada, de que estou perdendo alguma coisa. Eu tenho essa ‘deformação profissional’... (risos)

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JORNAL DA ABI – DIGAMOS QUE ELE TOO QUE, LOGO DE CARA, VOCÊ PERGUNTARIA? Geneton Moraes Neto – Faria perguntas diretas. Quem, dos que você levou, você cortaria, hoje, depois de encerrada a campanha? Você não acha que, na hora em que decidiu não levar o Paulo Henrique Ganso e o Neymar, agiu como aquele cara que tá na contramão, vê todos os carros vindo na direção contrária e mesmo assim acha que está certo e todo o resto do mundo errado? E, por PASSE FALAR.

JORNAL DA ABI – E A SÉRIE ESPECIAL EXGLOBO NEWS? COMO SURGIU? Geneton Moraes Neto – A idéia ali era falar do futebol sob o ponto de vista do que acontece fora do gramado, que às vezes é o mais interessante. Pois o jogo em si o torcedor vê. Por exemplo, pegamos o Ricardo Rocha para saber o que ele dizia no ouvido do atacante adversário, quando se trombavam em campo. Ou o Zico falando do Paolo Rossi, que foi o maior carrasco da Seleção Brasileira em 1982, fazendo os três gols da Itália contra a gente. Eles se encontraram tempos depois. E o Rossi revelou ao Zico que naquele dia os jogadores italianos tinham tanta certeza de que iriam perder para o Brasil que foram jogar com as malas já arrumadas no hotel. No final, quem voltou pra casa fomos nós, e eles acabaram campeões. A idéia era explorar essas histórias ocultas, falar de futebol para leigos. E também mudar um pouco o enfoque da cobertura nessa área, onde, em especial, há uma certa promiscuidade na relação da imprensa com os dirigentes e jogadores. TRACAMPO, TAMBÉM EXIBIDA NA

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JORNAL DA ABI – HÁ MOTIVOS PARA O DUNGA TER TANTA BRONCA DA IMPRENSA ASSIM? Geneton Moraes Neto – Com certeza, ele não gostou dessa história de ‘Era Dunga’, que virou sinônimo de mediocridade. Pode ver que a primeira atitude, quando ele recebeu a taça em 1994, foi falar um palavrão. Uma coisa louca! O sujeito está no auge da carreira, vivendo um momento que dificilmente iria se repetir, e, no lugar de dizer, ‘ganhamos!’, diz aqueles absurdos. Agora, tenho uma boa história pessoal com o Dunga. Estava em Londres, em 1995, quando a Seleção Brasileira foi jogar contra a Inglaterra. Fui com meu filho, que tinha quatro anos, e um colega. Na muvuca, na porta do hotel, o Dunga foi um dos poucos que atenderam aos torcedores. Meu filho tirou uma foto com ele, que subiu de volta para o quarto, e voltou com postais autografados. Uma atitude simpática. Olhando hoje, quase impensável. Inclusive, é interessante, vários colegas aqui da emissora vieram, nesses dias pós-eliminação, sugerir que eu entrevistasse o Dunga... TÉCNICO

fim, Você diria em voz alta o que apenas sussurrou para o Alex Escobar durante a coletiva de imprensa, na África do Sul? Poderia repetir aquelas palavras e explicar a razão de tê-las dito?

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Geneton Moraes Neto – Mas, aí, veja bem. Eu acho que, em alguns momentos, no passado, ocorreram certos exageros... Nem uma coisa, nem outra. Pode parecer um sacrilégio eu falar isso aqui, dentro da TV Globo, mas tenho sérias dúvidas sobre a propriedade de colocar um repórter da emissora dentro do ônibus da Seleção. Acho esse um procedimento perfeitamente discutível. Por que dar passagem a alguém da TV Globo, enquanto o cara da TV Bandeirantes tá lá na porta, no frio, tentando entrar? Por outro lado, não tem sentido algum dar uma bronca no Robinho por ele ter dado uma entrevista a um repórter num corredor. Pelo amor de Deus! Aí vira uma coisa de quartel.

JORNAL DA ABI – FECHADA DEMAIS EM RELAÇÃO À PRÓPRIA IMPRENSA...

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Brasil. Prevaleceu essa coisa do Dunga, fechada demais, meio militarista...

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JORNAL DA ABI – AINDA SOBRE FUTEBOL... COMO AVALIA A TRAGÉDIA DA SELEÇÃO BRASILEIRA NESTA COPA DE 2010? COMO A IMPRENSA SE COMPORTOU? Geneton Moraes Neto – Desde o início eu já estava me preparando para ouvir o Galvão Bueno falar a fatídica frase: “Fica dramática a situação do Brasil!” (risos). E ele realmente soltou essa aos 30 minutos do segundo tempo do jogo contra a Holanda. Me questionei seriamente. Se essa Seleção tivesse vencido, qual seria o efeito disso para o futebol brasileiro? Seria justo consagrar uma Seleção de jogadores medianos demais? Isso, claro, é uma opinião de torcedor, mas todos disseram a mesma coisa: Em qualquer lugar do mundo o Paulo Henrique Ganso teria sido convocado, menos no

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lá fui eu. Um amigo meu foi com uma máquina fotográfica, toquei a campainha, me identifiquei como repórter do Diário de Pernambuco. E a cena que vi foi inesquecível. O Nélson esparramado numa poltrona, de suspensório, sem sapatos, com meia, e com a perna apoiada num banquinho. Assim que abriram a porta, ele gritou: “Conterrâneo!”. Ficou gritando isso na sala, pois eu havia dito que era pernambucano. Perguntei: “O senhor quer que eu volte depois? Vai passar o jogo agora”. “Não, não”, disse ele, colocando a mão no peito, sempre muito dramático. “Tire o som desse aparelho”, pediu ele, deixando a televisão apenas com as imagens. “O Brasil me faz mal! O Fluminense me faz mal!”, reclamou. Tiramos o som e, então, começamos a entrevista. Era aquela Seleção de Reinaldo, Zico... Ele falou: “Esses meninos são gênios, são gênios!”. Quando deram o replay do gol, ele achou que já fosse o segundo, e vibrou de novo (risos). E eu só pensando: “Meu Deus do céu, como é que ele vai escrever a coluna de amanhã? Nem tá vendo o jogo!”. Lembro que na entrevista ele reclamou da frieza da imprensa brasileira, que havia abandonado o uso de pontos de exclamação. “Um absurdo: o cadáver do Kennedy ainda estava quente e o Jornal do Brasil não concedeu um ponto de exclamação na manchete. ‘Mataram o Kennedy’. Publicou-a friamente!” (risos). Ele reclamava que a imprensa brasileira estava dominada pelos ‘idiotas da objetividade’... Pois bem, terminou o jogo, ele continuou a entrevista. Não daria mais tempo, àquela hora, de escrever a coluna. Comprei o jornal no dia seguinte e lá estava ela, sem o placar, mas obviamente com todas as suas ponderações bombásticas, apaixonadas, do tipo ‘o escrete brasileiro honrou a camisa’...

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JORNAL DA ABI – COMO FOI ISSO? Geneton Moraes Neto – Foi em 1978. Agendei a entrevista, no apartamento dele, no Leme, para o dia 1º de maio. Ele marcou nosso encontro pra hora do jogo da Seleção Brasileira, às vésperas da Copa do Mundo. Então, pensei. Será que ele se enganou? Não é possível que ele vá falar comigo bem na hora do jogo... Mas

Geneton Moraes Neto – Eu não sou jornalista esportivo. Minha única experiência na área foi mesmo fazer esse livro, Dossiê 50 – Os Onze Jogadores Revelam os Segredos da Maior Tragédia do Futebol Brasileiro. E isso muito me orgulha. Sei que é uma gota no oceano, mas acho que dei minha contribuição para a memória nacional. Isso, aliás, é uma das poucas coisas úteis que o jornalista pode fazer. No final das contas, é o que fica. Acho que o jornalismo deve produzir informação, que vai ser consumida de imediato. E, além disso, memória, que será consumida a longo prazo. Fiz esse livro num esquema bem brasileiro. Não pedi dinheiro a ninguém, nem patrocínio da Brahma. Fiz por minha conta. Tirei grana do meu bolso, comprei uma passagem pra Salvador, procurei um por um os jogadores da Seleção que perderam a final para o Uruguai, no Maracanã. Estavam todos vivos em 2000. Eu consegui falar com todos, mais o técnico, e publiquei, sem cair na tentação de fazer subliteratura, o que é muito comum no futebol. Depois de Nélson Rodrigues, acho que deveria ser proibido escrever sobre futebol no Brasil, pois ele é insuperável... Genial... Tive até uma experiência inesquecível, que foi ver um jogo da Seleção Brasileira ao lado dele.

ENTREVISTAS COM ÍDOLOS DO ESPORTE...

JORNAL DA ABI – FALANDO EM FUTEBOL, VOCÊ JÁ ESCREVEU LIVRO SOBRE O TEMA E FEZ

ver difícil é escrever bem. Quando é exatamente o contrário. Aliás, as pessoas, quando lembram do Paulo Francis, ainda se prendem muito ao personagem. Mas ele deu essa grande contribuição ao jornalismo brasileiro. Passou adiante, de forma pioneira, para as gerações mais novas, um texto mais legível. Independentemente do que ele dizia, ou deixava de dizer, você lia a coluna inteira, que era uma página de jornal, duas vezes por semana. Eu tento humildemente seguir essa escola, que é marca de todos os grandes textos jornalísticos. Se você começa a ler os melhores jornalistas, vai perceber isso. É preciso ter elegância, não pode dar carrinho, pontapé, pisar no adversário, tirar a visão do goleiro... Não dá pra ser Felipe Melo... (risos)

FOTOS: DIVULGAÇÃO

JORNAL DA ABI – COMO FOI O INÍCIO DE SUA CARREIRA NO JORNALISMO?

Geneton Moraes Neto – Comecei cedo, aos 13 anos, no suplemento infantil do Diário de Pernambuco, que se chamava Júnior. Ali eram publicadas colaborações de leitores. Era só mandar textos para lá. Quem encaminhou meu texto foi uma prima distante do meu pai... Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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Geneton em sua mesa, na Redação do Fantástico; com Abdel Bari Atwan, o homem que entrevistou Bin Laden e, na página ao lado, bem jovem, acompanha Geisel num evento como repórter da Sucursal do Recife de O Estado de S.Paulo.

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projetada no telão. Era um texto para o Segundo Caderno, o que permite certa graça no texto. Você acredita que a matéria que saiu no O Globo no dia seguinte saiu com esse parágrafo cortado? Cortaram pelo pé! Para quem leu a matéria, fui o único repórter do mundo que viu os três ali, lado a lado, na coletiva!

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JORNAL DA ABI – COMO ASSIM? Geneton Moraes Neto – O editor era o sujeito que destroçava o texto, botava um título chato, palitava os dentes e ia pra casa dormir. A internet acabou com a raça. Ela acabou com essa ditadura do editor, em especial em relação ao espaço. Presenciei casos em que o editor deveria ter saído algemado da Redação! Já aconteceu comigo diversas vezes. Mandar um texto de Londres aqui pra Redação, e o cara, simplesmente, alterar tudo. Ele acrescenta uma informação errada no texto que você mandou, e aquilo sai com a sua assinatura. Já tive clássicos, como o Editor mudar a ‘exceção’ do meu texto por ‘excessão’, e sair assim, com meu nome. Eu pensava, não é possível que o cara tenha feito isso! Houve um lançamento de uma antologia dos Beatles, em 1995, na Inglaterra. Foi um acontecimento. Havia uma coletiva, um grande esquema, com 50 equipes de televisão do mundo todo. Na mesa estava o George Martin, produtor, mas nenhum dos Beatles vivos – George Harrison, Paul MacCartney e Ringo Star. Eles exibiram, num telão, um trecho do dvd com os três dando depoimentos, falando do lançamento. Aí, na matéria que mandei para O Globo, citei que o Paul estava com uma camisa vermelha, o Ringo de tal jeito... Fui descrevendo como eles se apresentaram no vídeo. E dizia, lá embaixo, no quarto parágrafo, que havia apenas um detalhe, algo a lamentar. Nenhum dos três esteve pessoalmente no local. Haviam participado através da gravação

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JORNAL DA ABI – VOCÊ PERMANECEU NO DIÁRIO DE PERNAMBUCO ATÉ QUANDO? Geneton Moraes Neto – Fiquei até 1975. Deste ano até 1980 fiquei na sucursal do Estado de S.Paulo no Recife. Foi uma época rica, pois peguei o início da abertura política, viajei com o Ulisses Guimarães, cobri uma visita de Lula a Dom Hélder. Desse episódio, me lembro do Lula afirmar, durante entrevista, que quando acabasse aquele mandato sindical, ele queria ajudar a Marisa a cuidar dos filhos. “Não tenho tido tempo para minha família. E só sei de uma coisa: Eu não tenho vocação para política”, me disse Lula naquela ocasião...(risos). A verdade é que não consigo passar muito tempo fazendo a mesma coisa, no mesmo lugar. Assim, todo mundo pensou que eu estivesse louco quando pedi demissão do jornal. Pensava em fazer cinema. Fui pra Paris, fiz um projeto de tese na Sorbonne. Era um negócio chamado Cinema e Subdesenvolvimento – O Caso Brasileiro. Primeiro, eu definia o termo, com base nos fundamentos de Celso Furtado e outros acadêmicos. E lançava a questão: Poderia o Brasil, um país subdesenvolvido, produzir um cinema esteticamente desenvolvido? Aí, citava as obras de Gláuber Rocha, como exemplo. Surpreendentemente, fui aceito. Fiquei por lá um ano e meio. Mas, na fase de início da abertura, antes de ir pra Paris, me lembro que fiz boas matérias. Para a IstoÉ, fiz um frila sobre a volta do Miguel Arraes. Fiz a cobertura, com todo mundo no aeroporto querendo abraçá-lo... Foi uma cena bonita. E a matéria saiu na íntegra, não mexeram uma vírgula, o que significava muito naquela Redação, que tinha como símbolo o Mino Carta. Eu já sofri muito na mão de editores. Tenho trauma com isso.

Geneton Moraes Neto – O Antônio Camelo me chamou e disse: “Você vai fazer uma reportagem no hospital psiquiátrico público lá da Tamarineira. Diga que você tem uma irmã lá dentro, pule o muro, se vire... Eu quero é uma matéria!”. E eu, com a petulância de quem tem 16 anos, disse: “Deixa comigo!”. Fui com o fotógrafo, que ficou do lado de fora, e entrei. Era aberta essa ala do hospital, com os doidos ‘mansos’, digamos assim. Consegui me misturar a eles. É uma coisa que me intriga até hoje. Ninguém notou que eu não era um interno, né? (risos). Ninguém notou a diferença, eu estava em casa... Lembro que os pacientes diziam: “A comida daqui é horrível, vem pedra dentro do feijão, a carne parece uma borracha”. Saí, e voltei já com o fotógrafo, me apresentei à direção como repórter. E tive aquela lição de jornalismo. A Diretora do hospital disse que lá havia uma equipe de nutricionistas que orientavam o cardápio, que segundafeira era servido peixe, carne na terça... Ou seja, exatamente o contrário do que tinham falado os pacientes. Ali recebi na prática um tratamento de choque. Percebi que existem dois lados bem distintos. A versão oficial dos fatos e a realidade, que é muito mais evidente.

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MARCANTE?

JORNAL DA ABI – DESSA FASE DE COMEÇO DE CARREIRA, HÁ ALGUMA OUTRA HISTÓRIA

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Geneton Moraes Neto – Lembro que era proibida qualquer referência, comentário ou entrevista sobre a peça Calabar, de Chico Buarque e Rui Guerra. “A peça foi proibida, o Diário de Pernambuco não pode falar nada”, me avisaram. Mas aí entrou em cartaz o Toda Nudez Será Castigada. Adorei o filme! Tinha a Darlene Glória... Passou apenas duas semanas em cartaz, e foi proibido. Escrevi uma nota na coluna cultural Ensaio Geral, com o título ‘Toda Nudez será censurada’. Escrevi que o filme era muito bom. No final, disse que era uma pena que tivesse sido tirado de cartaz. E fechei essa frase com três pontinhos... Por incrível que pareça, a Polícia do Recife se mobilizou por causa dessas reticências. A coluna saiu num domingo, e quando cheguei para trabalhar na segunda, me chamaram na sala do Dr. Antônio Camelo, Diretor do jornal e jornalista das antigas, um sujeito que fazia vibrar a Redação. Um tipo que hoje é difícil de ser encontrado. Entrei e notei o clima estranho. Estava também o Gladstone Vieira, que é Diretor de lá até hoje, além do cronista social, João Alberto, que também está lá, e me contou: “Hoje passei uma por sua causa”, começou. A PF havia visitado a Redação, me procurando. Como eu não estava, perguntaram quem era o Editor do suplemento cultural. Era ele. Pronto, levaram o João Alberto! E ele disse, tentou se explicar: “Esse Geneton é um menino que tá começando”. Ao que os policiais responderam: “É uma irresponsabilidade entregar uma coluna dessas a um estudante. E esses três pontinhos são uma ironia com a PF”. E eram mesmo... (risos). Sabe, eu sou até agradecido à atitude, à postura dessas pessoas do jornal na época, pois elas poderiam até ter me amedrontado, dito: “Poxa, tenha cuidado com o que você escreve. Você quer fechar o jornal?”. Mas, não. Eles disseram: “Olha, isso já aconteceu, e vai acontecer outras vezes. Pode ficar tranqüilo, não deixa isso te melindrar!”. Essa foi uma atitude legal para quem estava começando. Apesar de eu ter ficado assustado, pois pensei: “Meu Deus, por causa de uma nota boba dessas eu posso sair daqui direto pra Polícia Federal!”.

JORNAL DA ABI – CHEGOU A TER PROBLEMAS COM ELA?

Geneton Moraes Neto – Comecei a trabalhar de verdade aos 16 anos, quando me chamaram para a reportagem geral no mesmo Diário de Pernambuco. Comecei a trabalhar no auge da ditadura, em 1972.

JORNAL DA ABI – E QUANDO VOCÊ SE PROFISSIONALIZOU?

Geneton Moraes Neto – Não posso dizer que tive influência. O meu pai era agrônomo e fazendeiro. Se eu fosse seguir a vocação da minha família, por parte de pai, teria estudado Agronomia, Veterinária ou ido criar boi. Minha mãe tinha sido professora. Deixou tudo para criar os cinco filhos. Nenhum outro é jornalista. O meu irmão mais novo cumpriu a vocação familiar. Estudou Zootecnia, é fazendeiro... As três irmãs não têm qualquer ligação com jornalismo. Uma é dentista, as outras duas, nutricionistas.

JORNAL DA ABI – SEUS PAIS INFLUENCIARAM OU INCENTIVARAM SUA ESCOLHA PROFISSIONAL?

DEPOIMENTO DOSSIÊ GENETON MORAES NETO

JORNAL DA ABI – VOCÊ DISSE QUE QUERIA FAZER CINEMA, MAS NA REALIDADE DESCOBRIMOS QUE VOCÊ FEZ CINEMA. O FILME CONTEÚDO ZERO, COM CAETANO VELOSO, FOI UM DELES.

CONTE COMO FOI ESSA EXPERIÊNCIA. Geneton Moraes Neto – Fiz cerca de dez filmes Super-8, em curta-metragem, entre o início dos anos setenta e o início dos anos oitenta, no Recife. Conteúdo Zero foi realizado a partir de uma entrevista gravada em áudio com Caetano Veloso, no Recife. Trechos da entrevista são intercalados com imagens de um show que ele fez no Teatro do Parque,no Recife, também em 1973. Pela primeira vez na vida, empunhei uma câmera – que eu tinha comprado numa viagem a Manaus. A viagem – por sinal – foi um prêmio que recebi como segundo colocado do Festival Nacional de Poesia Secundarista, que era realizado na Bahia e reunia estudantes de todo o País. Neste caso, a poesia se misturou ao cinema. Ou seja: o prêmio que recebi num festival de poesia me deu a chance de comprar uma câmera. Uma coisa me levou a outra. Para alívio do Brasil, não levei adiante minha carreira de “poeta”. Mas, pelo menos, ganhei este prêmio e, com


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me chamou na TV Globo, e disse: “Aquela história da demissão foi superada. Quer voltar pra cá?”. Ele chegou a fazer apelos emocionais, me alertando que eu tinha duas filhas para criar. Dispensei, deixei uma mensagem na portaria da emissora, agradecendo, mas afirmando que não queria mesmo voltar a trabalhar com televisão. Ele me ligou e disse: “Já sei o que você quer? Você quer é ganhar dinheiro, não é isso?”. Ele estava precisando de alguém pra colocar no ar um programa que estava começando, e está na grade até hoje, chamado Pequenas Empresas & Grandes Negócios. Eu não tinha nada a ver com aquilo, mas ele queria alguém pra formatar o programa. E me indicou para fazer isso. Era um salário de editor-chefe, e acabei ficando lá. Me chamaram para o JB na mesma época. Acho que o convite veio pelo Artur Xexéo, que me ligou dizendo que havia pintado uma vaga. Na verdade, o salário da TV Globo era o triplo do oferecido pelo JB, mas se você me perguntasse o que eu gostaria de fazer, digo que ficaria no Jornal do Brasil. Mas terminei ficando nos dois, na TV Globo e fazendo apenas frilas para o JB. Fiz o Jornal Nacional. Fazia a escalada. Gostava de fazer, pois é ela quem dá a temperatura do jornal. Era plena Guerra do Golfo! Então, escrever aquelas chamadas para o Sérgio Chapelin e o Cid Moreira lerem era o máximo. Eu estava feliz como pinto no lixo! Era uma coisa eletrizante! E que se perdeu um pouco, né? Essa coisa de colocar jornalistas para apresentarem os telejornais, no lugar dos apresentadores, tem seu lado bom, mas fez com que algo do impacto da notícia fosse perdido... Eu, tendo a chance de chamar o Sérgio Chapelin, com quem eu cruzo aqui pelos corredores, para ler as minhas matérias, é claro que eu vou chamar! JORNAL DA ABI – VOCÊ ATUOU NO FANTÁSTICO TAMBÉM, NÃO FOI?

Geneton Moraes Neto – Em 1992 fui para o Fantástico, fazendo matérias. Em 1995 voltei pra Europa, oficialmente pela TV Globo, para o escritório de Londres. Saí da emissora em 1998, para ser correspondente de O Globo. E logo voltei, para ser Editor-Chefe do Fantástico, onde fiquei até 2006. O que é uma eterna briga particular para mim. Eu não quero ser chefe de nada, nem de ninguém! E essas coisas acabam acontecendo. Pedi para sair da chefia e fiquei só na reportagem – o que não deu muito certo, pois fazia as matérias e elas não iam para o ar, por mil motivos. Até que pedi para ir para a Globo News... Atenderam meu pedido, e está dando certo. Lá tenho mais espaço. Em função da disputa louca de audiência, o leque de assuntos da televisão aberta acabou se estreitando. A pauta ficou pobre, e o tipo de matéria que eu gosto de fazer acabou ficando sem espaço. Isso deveria até ser alvo de estudos: a dívida que a tv aberta brasileira está acumulando com a cultura do País.

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JORNAL DA ABI – COMO, ENTÃO, RETORTV GLOBO? Geneton Moraes Neto – Eu ia acabar ficando no JB... O Alberico Souza Cruz

NOU À

Geneton Moraes Neto – Pensei que aquela seria uma boa chance de parar com essa história de televisão. Foi uma certa comoção, colegas me ofereceram emprego na TV Manchete, na TVE. Resolvi dar um tempo. E, de novo, peguei o avião e fui pra Londres... (risos). Não fui para morar. Fui pra passar dois meses, na casa de um amigo, e pensei: “Quer saber de uma coisa? Vou fazer um monte de entrevistas e, na volta, tento publicá-las”. Em Paris, o Rubem Fonseca estava fazendo uma conferência. Ele estava no auge. E detesta jornalistas, não dá entrevistas. Tentou escapar do meu pedido, disse ser tímido. Mas permitiu que eu gravasse o que ele falasse na palestra. Não tinha idéia de que aquilo sairia num grande jornal. Gravei e, quando voltei, em 1987, liguei para o Jornal do Brasil, para falar com o Zuenir Ventura, a quem não conhecia pessoalmente. Ele havia lançado o caderno literário Idéias. Liguei e falei: “Sou jornalista, Geneton Moraes Neto, e tenho uma entrevista com o Rubem Fonseca”. A secretária deu este recado a ele, que reagiu. “Não é possível! Primeiro, porque o Rubem Fonseca não fala! E segundo, não é possível alguém se chamar Geneton e, ainda por cima, Neto! Três gerações com esse nome, não acredito!” (risos). O Zuenir conta essa história até hoje por aí... Deixei o artigo na porta do JB, e sou grato a ele até hoje, pela atitude extremamente profissional que teve. Quando peguei o Idéias, no sábado, estava lá, na primeira página: ‘Rubem Fonseca Fala’. Uma grande foto, a chamada e a matéria inteira. Não cortaram uma linha! Para mim, que já adorava jornal, aquilo foi o máximo. E pensei: quem será o próximo entrevistado impossível? Foi aí que fui atrás do Drummond. Fiz a entrevista pelo telefone, saíram as matérias no mesmo JB e, depois, o livro Dossiê Drummond.

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JORNAL DA ABI – E AÍ, QUAL FOI SEU EMPREGO SEGUINTE?

semana nesta agonia. Um belo dia, quando chego aqui, me lembro bem, estava aquela confusão na calçada. Nem desci do carro... As pessoas vieram até mim e disseram: “Saiu a lista, e você está nela”. Eu já esperava um pouco por aquilo.

A pauta ficou pobre, e o tipo de matéria que eu gosto de fazer acabou ficando sem espaço. A tv aberta brasileira está acumulando uma dívida com a cultura do País.

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Era plena Guerra do Golfo! Então, escrever aquelas chamadas para o Sérgio Chapelin e o Cid Moreira lerem era o máximo. Eu estava feliz como pinto no lixo! Era uma coisa eletrizante!

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de Madureira, vou para nem sei aonde... (risos). Mas era um trabalho quase técnico, de fechar o jornal. Meses depois me chamaram para o Jornal da Globo, depois fui Editor-Executivo do mesmo jornal. Tudo em questão de meses. Logo virei Editor do Jornal Nacional, cobrindo férias de um colega, e assumi a Chefia do Jornal da Globo. Foi uma coisa muito rápida. A ascensão e a queda também, pois fui demitido pouco depois, numa greve! (risos). Houve uma paralisação nacional, não especificamente da TV Globo, depois do Plano Cruzado, em dezembro de 1986. Era uma manifestação política em função de um pacote lançado após as eleições. Foi uma coisa inédita, histórica, que jamais se repetirá aqui na TV Globo, por exemplo. Parou todo mundo aqui dentro. Foi uma situação dramática. Os editores-chefes foram chamados pela Direção do Jornalismo na época, que afirmou que todos teriam que trabalhar no dia seguinte, marcado para a greve. Eu estava interinamente na Chefia, mas fiquei numa situação difícil. Todos estariam parados, desde o contínuo até os Repórteres e Editores... Eu não tinha como fazer o jornal sozinho, né? No dia da greve, não apareci para trabalhar... E os editores dos outros jornais também não. Naquele dia, os Diretores é que desceram das salas para fazer o Jornal Nacional. Colocaram até imagens do jornal O Globo, impresso, no ar, para ilustrar matérias. Foi uma loucura! Assim, depois, havia pelos corredores da emissora os boatos de três desfechos possíveis para esse episódio. Um deles dava conta de que o Dr. Roberto Marinho acabaria com todos os telejornais, pois teria ficado com raiva. A outra é de que haveria uma demissão generalizada da maioria dos funcionários – todos os que aderiram à greve. E, por fim, a versão de que somente os chefes seriam demitidos. Ficamos uma

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Geneton Moraes Neto – Quando voltei de Paris, estava em Recife, na praia, literalmente pensando o que fazer na vida. Cruzei com um cara que havia sido Chefe de Reportagem meu no Diário de Pernambuco e no Estadão e, por coincidência, ocupava agora o mesmo cargo na TV Globo de lá. Era o Ricardo Carvalho, que me chamou: “Quer ir pra televisão?”. Não tinha interesse, mas, como não tinha nada, comecei a fazer matérias, entrevistas pra eles. Mas pedi demissão, de novo, e fui pra Londres. Novamente, fiquei um ano e meio fora. Sempre senti simpatia maior por Londres do que por Paris. Dessa vez, fui até camareiro de hotel e motorista de madame, para sobreviver. O dinheiro foi acabando, e tive que me virar. Em Londres, fiz frilas no serviço brasileiro da BBC e no próprio escritório da TV Globo – que já me conhecia do Recife. Sempre fui meio do mundo. Pedia demissão, juntava dinheiro e seguia viagem. Nesta temporada londrina, fiz muitas entrevistas, que ofereci a diversos veículos quando voltei, no segundo semestre de 1985. Muitas saíram em jornais e até na Manchete. De volta, lá estava eu pensando de novo na vida, no Recife. Aí me chamaram para a TV Globo do Rio. Comecei na Editoria Rio, no RJ-TV. Era uma loucura, pois até hoje eu não tenho a menor noção geográfica da cidade. Se me perguntarem a direção

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ FOI PARAR NA TELEVISÃO?

ele, a chance de comprar uma câmera. O filme, inteiramente amador, como, aliás, a maior parte da produção do chamado Movimento Super-8, foi exibido em vários festivais – entre eles, a Jornada de Curta-Metragem de Salvador, em 1974. Quatro filmes que realizei em Super-8 foram premiados: Esses Onze Aí, em parceria com Paulo Cunha, venceu o Festival de Cinema do Recife de 1978; A Flor do Lácio é Vadia, Funeral para a Década das Brancas Nuvens e Fabulário Tropical.

FOTOS: ACERVO PESSOAL

JORNAL DA ABI – RECENTEMENTE, UMA BRINCADEIRA NO TWITTER, TENDO COMO PERSONAGEM O NARRADOR GALVÃO BUENO, ACABOU POR PAUTAR A CAPA DA REVISTA SEMANAL

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TUCA VIEIRA/FOLHA IMAGEM

DEPOIMENTO DOSSIÊ GENETON MORAES NETO

DE MAIOR CIRCULAÇÃO DO PAÍS. VOCÊ ACREDITA QUE A INTERNET SEJA UMA AMEAÇA À MÍDIA IMPRESSA E TELEVISIVA?

Geneton Moraes Neto – Minha taxa de hostilidade em relação à revolução digital é zero. Acho muito saudável, inclusive. Dessacralizou totalmente o jornalista, que antigamente era o único intermediário entre o fato e o público. Hoje, o profissional de mídia pode ser atropelado. Quebrou-se totalmente a hierarquia. No incêndio que ocorreu recentemente num morro na Lagoa, causado por um balão, em dez minutos já havia gente postando fotos no Twitter. Informação muito mais rápida do que a da televisão, dos jornais, e dos próprios sites, que, inclusive, pedem para que os leitores enviem material. Isso é bem saudável. Mas, é claro, há também a questão da qualidade. Ter um jornalista bem preparado, que saiba hierarquizar as informações, com um texto atraente, que saiba entrevistar e escrever direito, faz a diferença. Ele será sempre necessário. Se bem que as coisas mudam... Há algum tempo eu tinha certeza absoluta de que os jornais impressos não iriam acabar. Hoje, tenho dúvidas... Às vezes, tenho a impressão de que até os telejornais já começam velhos. O modelo de alguém falando pra muita gente, num determinado espaço de tempo, já era. Hoje, você tem muita gente falando com muita

gente, ao mesmo tempo. Esse modelo no qual as tvs foram criadas, acredito, só vai sobreviver em grandes eventos, como jogos de finais de Copa do Mundo. Naquele instante, vai estar todo mundo assistindo à televisão. Mas, um minuto depois, um vai pra o blog, outro pro Twitter, um terceiro estará navegando pelo celular... E os próprios jornais não ajudam, não se fazem competitivos, né? Há jornais que ainda insistem em publicar na manchete de amanhã o placar do jogo de ontem – informação de que àquela altura 99% da população já têm conhecimento. É a manchete do óbvio. O que eu acho inacreditável é que há pelo menos 20 anos, nos encontros e congressos de comunicação, as pessoas discutem isso. Todos afirmam que o jornal não pode ser um clone da televisão, repetir a mesma coisa, tem que trazer textos atraentes, matérias exclusivas, analíticas... Ou seja, todo mundo sabe o diagnóstico. Mas quando você pega os jornais impressos, vê que todo mundo faz tudo errado. JORNAL DA ABI – POR QUE ISSO OCORRE? Geneton Moraes Neto – Acho que falta coragem, falta ousadia. O nosso jornalismo, em geral, é muito burocrático. Vou citar de novo o meu guru Paulo Francis. “Nossa imprensa é previsível, empolada e chata. Meu Deus, como é chata!”, dizia ele.

A Zorra de Moraes Neto Um texto do jornalista quando jovem. Geneton – que assinava apenas “Moraes Neto” em sua coluna Zorra – escreveu o texto a seguir, publicado no número 4 de O Outro, fanzine que circulou nos dois últimos meses de 1974 no Recife. Repleto de referências musicais, o texto do jovem jornalista de apenas 18 anos mostra a inquietude e o desconsolo de quem vivia numa época de grande repressão política. Num curto espaço, ele aplaude a música de Ednardo, o cinema de Fernando Spencer e já exercita sua veia crítica ironizando quem se acha na moda. Quando você ouvir falar, veja, não corra, cante comigo. Eu sei que dois e dois são quatro. Mas esse tempo de mormaço não me deixa aprender a somar. E o resultado não é nada, além de um cansaço escondido sob o sol tropical e uma vontade quase estranha de sentar à beira do caminho e entregar as pontes ao destino. É lucidez/destino. E vou. Ouvindo aquela canção, dizendo “tudo legal”, quando tudo vai mal, vendo o tempo me consumir a mim e a tudo que eu quis. Pavão Mysterioso, pássaro formoso, no escuro dessa noite me ajuda a cantar. Derrama essas faíscas, despeja esse trovão. Desmancha isso tudo, que não é certo não. O disco O Romance do Pavão Mysterioso, de Ednardo, ex-Pessoal do Ceará, é ferro na boneca. Com os ouvidos abertos para tudo, Ednardo canta frevo, baião, música sem rótulo e um bolero (Doroty Lamour), lindo como esses olhos de mar azul onde só não naufraga quem sabe navegar. Eu tomo uma Coca-cola, deixo no ar. E uma canção consola, como sempre. Eu sou careta, ando fora da moda, a toda hora, porque afinal, não há nada a perder. O que eu possa ou deva fazer, além de me reconhecer apenas como consumidor de tudo que invade os ouvidos, enche os olhos de cores, através do som, da imagem ou de seja o que for? Eu, nós,

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somos como consumidores, nossa posição é a de ouvir, ver, gostar (ou não) de tudo que, na arte, chega até nós. A posição de quem consome é diferente da de quem cria. A verdade, contudo, é que há muitos naquela de copiar, pura e simplesmente, pontos de vista, atitudes, e até maneiras de pensar/vestir/falar dos que produzem a arte. E pensam estar “por dentro”, quando, na realidade, estão mais por fora que eu. Sou careta, graças a Deus, ando tão por fora da moda, que me comovo com um adeus. Moraes Neto já era, brothers. Eu tenho mais de mil perguntas. E não quero ouvir as respostas, porque elas apenas iriam aumentar a vontade de sentar à beira do caminho e entregar as pontas ao destino. Conteúdo Zero é somente um filme para desentendidos, colorido, baratinado, comportado, distanciado da perfeição, uma meta perseguida pelo goleiro que joga na seleção. E acontece que não sou Pelé. E nem sequer um tostão. O certo é dar prêmios para os filmes de Fernando Spencer, porque eles merecem. Não há a menor necessidade de negar que Fernando Spencer é uma das pessoas mais dedicadas e dispostas da cidade do Recife, no trabalho com super-8. Toda essa gente se engana ou então finge que não vê que esse cinema/super8 é superbacana.

Saramago é aplaudido no lançamento do livro A Viagem do Elefante no Sesc Pinheiros.

A paixão segundo Saramago POR RITA BRAGA

O

que resta dizer acerca da morte de José Saramago? A imprensa, mesmo com revistas e cadernos de finais de semana fechados, conseguiu se desdobrar em edições especiais recheadas de depoimentos de críticos e amigos do escritor. Em meio aos comentários sobre a Copa do Mundo em lotações, filas e bares, havia, sim, quem falasse “Você viu...? O Saramago morreu...” Sabe-se que a melhor homenagem é convidar o público a ler seus livros. Sejam eles obras polêmicas como O Evangelho Segundo Jesus Cristo, mostrando um menino Jesus humano, que “chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse único e mesmo motivo”, ou como seu O Conto da Ilha Desconhecida, com a corajosa viagem por caminhos que nenhum mapa pode registrar. No entanto, apenas indicar seus livros não parecerá suficiente para quem se lembra vê-lo e ouvi-lo pessoalmente, mesmo que em eventos como o lançamento do livro A Viagem do Elefante, em 2008, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Quem esteve lá deve se lembrar que tal experiência é mais do que estar diante de um autor renomado. Trata-se de uma oportunidade para abrir os olhos diante do que é óbvio, mas tantas vezes ignorado: há sempre um ser humano por trás de uma grande obra. Naquele evento, todos viram seu esforço para chegar ao palco com a saúde debilitada aos 86 anos. Ouviram suas considerações sobre as vantagens de envelhecer, quando se toma em conta qual seria a única alternativa possível; ouviram seus argumentos para destacar que foi um “milagre da ciência” ele ter escapado da morte em fevereiro daquele ano e que, é claro, Deus não tinha nada a ver com isso.

Esses detalhes, ainda que até certo ponto sentimentais, são importantes, porque naquela noite centenas de pessoas o fotografaram, o filmaram na telinha do celular, e, principalmente, compraram seu livro à espera de um desejado autógrafo. Deve haver quem se lembre também do olhar interrogativo de Saramago quando, após tecer seus comentários e conselhos aos jovens escritores, pronunciou a palavra “finalmente” para concluir a palestra. Nesse momento houve um alvoroço na platéia e em todas as fileiras pessoas se levantavam para correr até à fila no saguão à espera de um autógrafo. Mas, se todos sabiam de seu estado de saúde e do quanto essa tarefa seria desgastante (aliás, houve nos jornais comentários acerca de seu esforço para atender a tal demanda nessa noite e em outras ocasiões), fica ainda hoje a pergunta: será que aqueles admiradores viram mesmo o homem por trás do livro? O fato é que o público presente testemunhou a capacidade daquele homem de arrancar suspiros da platéia. Isso aconteceu quando, além de dizer que a esposa Pilar o havia segurado pelo colarinho para que ele não morresse – e que na verdade somente por isso ele não se foi –, acrescentou uma declaração de amor: “Tenho oitenta e seis anos, mas se eu tivesse morrido um dia antes de conhecer Pilar teria morrido muito mais velho do que sou hoje.” Enfim, recentemente comentaram também outra declaração à esposa: “Eu tenho pena de morrer... A vida é tão bonita.” ... Nós também temos, José. Então, deixaremos você vivo, conosco, sempre.


MEMÓRIA

“Saramago traz consigo o sentimento do mundo”

DIVULGAÇÃO/LEYA

mundo e os grandes ideais da nossa época. Fez o momento histórico, antes de se fazer a História. Moveu-se construindo utopias e deixou o mito, o retorno eterno em torno de ideais. Assim varou a existência José Saramago. Deixou a saudade de sua vida, relembrada sempre como um perpétuo encontro e reencontro de gerações. Foi um daqueles homens fadado a fazer História. Teve sempre uma fé profunO jornalista e escritor AGASSIZ ALMEIDA manda à jornalista Pilar Del Rio, viúva de José Saramago, da no saber, nos valores morais, na lealuma carta emocionada em que lamenta a perda do escritor português ganhador do Prêmio Nobel. dade, na justiça e respeito aos infortunaA mensagem define-o com uma imagem presente no poema de Carlos Drummond de Andrade. dos. Personagem orgulhosa de si, carregava um desprezo olímpi“Cara jornalista Pilar, co pelos poderosos e um caNo dia 18 do corrente mês, um eco rinho quase fraternal pelos “Lá, da ilha de melancólico se distendeu pelo mundo desvalidos. Frente a ambos, Lanzarote, ele ensombreando as inteligências livres. deixou as suas pegadas nas contemplava o De onde vinha? Das Ilhas Canárias. areias do tempo. Divisava céu infinito, e Abraçado à sua imensa obra, na qual a literatura como uma foralgo parecia desfilam geniais personagens dos conça autoconsciente subjetiva lhe despertar”. trastes da vida, tombava este gigante de uma sociedade em perda literatura mundial, José Saramago. manente revolução. Em torno do ser humano, com as Com sua indomável vosuas angústias, dores, injustiças, muicação de olhar o ser humatas das quais manipuladas pelos podeno numa grande dimensão rosos, Saramago ergueu a sua obra, e de liberdade, ele abraçou as dela emergiu o crítico mordaz contra grandes utopias, no pensaas mazelas sociais e o joguetear opresmento criativo de sua obra sivo da politicalha e do misticismo. e na sua visão ideológica. Nos meus passos iniciais pelo munPlasmou os seus livros oudo literário, recebi de Saramago palavindo o ruído dos povos e vras de incentivos que muito me encoas angústias e dores dos derajaram. Em certo dia de 2004, despersencontrados, desde as ceta-me mensagem vinda de Lanzarote gueiras que irrompem nas (Canárias), na qual ele expressava o seu noites dos tempos ao fanaestímulo ao livro A República das Elitismo místico embalado em SARAMAGO EM LANZAROTE EM 1996. FOTO DE SEBASTIÃO SALGADO. tes que eu acabara de lançar. parábolas e nas transfiguraNa sua passagem pela vida, ele deições dos profetas. xou o ruído dos fortes e jamais se versem e uma nova ordem social se imlisador dos sentimentos humanos na Lá, da ilha de Lanzarote, ele contemgou ante qualquer forma de opressão. plantasse. obra criadora que nos legou e na sua plava o céu infinito, e algo parecia lhe Saramago encheu o século XX com Que vulto carregou tão grande utopia?! despertar. Era o sentimento do munvisão de mundo. Assim, ele soube olhar grandeza, na mesma dimensão de um Perto dele, ao ouvi-lo, sentia-me um do que se manifestava naquele homem, o povo na sua marcha pelos tempos e Lévy-Strauss, um Ernesto Sábato, um forte. Nele, tudo era simples. Vi naquenas suas horas interrogativas. Sentiidealizou uma humanidade como a Darci Ribeiro, um Pablo Neruda, um le semblante a chama de uma constanmento que nos domina e nos conduz grande pátria dos homens livres. Che Guevara. te e enorme indignação contra certas a elucubrações. É o encontro com o Eu Tivemos até poucos dias diante de Transcendendo o seu enorme acerhordas que, em nome da democracia, profundo. Ali se albergam as imprevinós um homem que procurou consvo literário, ele projetou-se como um assaltam e saqueiam os povos. síveis manifestações do ser humano. truir um mundo em que a mentira e homem-histórico e aí se fez um cataCerta vez, olhando-o, pensei comiEle soube compreender os homens. Rea hipocrisia dos poderosos se calasgo mesmo: este homem traz consigo o levava as suas fraquezas, sem, no ensentimento do mundo e não se deixa tanto, tergiversar com os pusilânimes dirigir pelos fatos e nem pelo oportue os réprobos morais. nismo. Podemos assim perfilá-lo como Certa vez, lá em São Paulo, ele me discidadão urbis–orbi. se: “Como é difícil encontrar homens”. No seu silêncio em Lanzarote, ele De onde veio José Saramago? Veio de marcou um mistério entre a vida e a Azinhaga. Naquele meu pedaço de tereternidade, e dali pôde mergulhar na ra, dizia, cabem Portugal e o mundo. profundidade do Eu humano, no qual Veio de Portugal, nação que numa encontrou sedimentos, no fundo dos hora fulgaz do século XVI construiu o tempos, na construção de sua genial maior império da Terra. obra literária e de sua forte visão do Veio carregando os sonhos e quimemundo e dos homens, repelindo semras da eterna juventude, que se renova pre aqueles que na posse do poder esde geração a geração. Veio do chão da magam e usurpam os povos. História, no orgulho dos que almejam Veio Saramago para a vida não para e fitam novos mundos. Veio na coragem repetir esse entulho de mentiras e hie no desprendimento para a construção pocrisias que uma sociedade, em nome de uma obra revolucionária. Veio nos de uma falsa cultura e democracia, lancânticos de Fernando Pessoa, de Castro ça à face de todas as gerações. Renegou Alves e Pablo Neruda. Veio no sonho dos este nascer. Engrandeceu-se porque idealistas de todos os tempos. acreditou na condição humana. ErOh, guerreiro Saramago, que grangueu-se forte e conservou-se erecto de legado deixaste à humanidade! mesmo diante de graves acontecimenSentidas condolências (a) Agassiz tos. Captou a flama revolucionária do Almeida.” SARAMAGO NA CASA DE JORGE AMADO E ZÉLIA GATTAI, COM A FILHA DO CASAL, PALOMA AMADO EM PARIS. MAIO DE 1994. ARQUIVO DA FUNDAÇÃO SARAMAGO

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LEMBRANÇAS FOTOS: DIVULGAÇÃO EDITORA RECORD

“Como conheci Drummond graças a um doce de caju” O jornalista e escritor EDMILSON CAMINHA narra seu primeiro encontro com o poeta, que o recebeu em Casa para uma conversa-entrevista que se estendeu das 9 às 11 da manhã. Ao longo de quase toda a vida, Carlos Drummond de Andrade negou-se a atender admiradores e repórteres, alheio à badalação e às luzes com que tantos sonham. Em 1977, quando completou setenta e cinco anos, a revista Veja deu-lhe capa e nada menos do que nove páginas – mobilizou jornalistas, tentou chegar ao poeta por meio de amigos e nem assim conseguiu entrevistá-lo. Ele próprio contribuía para a imagem de recluso, na esperança de se ver livre das muitas pessoas que lhe batiam à porta. Aos poucos eleitos a quem recebia mostrava-se, porém, um homem da maior educação, espirituoso e de bom humor, que simplesmente não deixava carta sem resposta. Erguera o muro apenas para poder escrever, produzir a obra que lhe reclamava tempo, constância e trabalho. Ouvir perguntas cujas respostas estavam à mão nas enciclopédias e nos manuais de literatura era o que mais aborrecia Drummond. Certa vez, marcou hora para uma entrevista com meia dúzia de estudantes. “Em que ano o senhor nasceu? Qual o primeiro livro que publicou? O senhor se sente realizado?” – queriam saber os pequenos. Satisfeita a curiosidade, o cronista entrou em pânico ao saber que mais três grupos aguardavam na portaria do prédio: é que a professora havia dividido a turma em equipes, não sem antes dizer-lhes o que perguntar ao poeta Carlos Drummond de Andrade... Em outra ocasião, quando lançou uma das suas coletâneas, recebeu telefonema de um diretor de jornal: – Eu sei que você detesta ser entrevistado, mas gostaria de saber se uma repórter nossa poderia visitá-lo para conversar sobre o novo livro. Afinal, você é cronista da casa... Não havia como dizer não, e lá chegou a mocinha do Caderno B – a lembrar, talvez, a estagiária famosa de Nélson Rodrigues: – Qual é mesmo o livro que o senhor está lançando? 44 Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

Surpreso com a pergunta, Drummond logo percebeu que não se tratava de uma especialista: – Quer dizer que você não leu o exemplar que mandei para a Redação? – É que não deu tempo, o editor me passou agora pela manhã... – E aí, o que você quer saber? – Eu prefiro que o senhor fale, depois eu dou forma à entrevista... – Vamos combinar o seguinte, minha filha: eu faço as perguntas e vou dando as respostas, não é melhor? E assim foi feito, no dia em que o poeta se entrevistou a si próprio, na presença – dispensável – de uma repórter da chamada “grande imprensa”... Quando lhe mandei, em 1978, o livro de poemas que publicara – sem nenhum valor, reconheço hoje – Drummond acusou o recebimento da minha “boa carta” e do volume com “a poesia jovem que ele revela”. Como se vê, sentia-se obrigado à elegância do registro mas não ao fingimento do elogio: a carta era boa, mas a poesia... jovem, isto é, imatura, insignificante – ruim, em uma palavra. Mesmo com tão pouco, receber um cartão do poeta, escrito de próprio punho, encheu-me de alegria. Passamos a nos corresponder com frequência, e eu a lhe presentear, entre janeiro e fevereiro, com o saborosíssimo doce de caju fabricado por minha tia Zuleica em Aracati, no litoral cearense, só para o consumo familiar. A gentileza do escritor me deu ânimo para conhecê-lo pessoalmente, três anos depois. Chegado ao Rio na madrugada de uma segunda, planteime ao telefone já às nove da manhã. “Não, ele já saiu”, “ainda não voltou”, “ligue mais tarde, talvez o encontre”. Até que me veio a ideia: – Diga pra ele, por favor, que é aquele cearense que lhe manda o doce de caju... Foi tiro e queda. Às oito da noite, achei quem queria: – É Carlos Drummond de Andrade falando. Disse-lhe da minha admiração, do

desejo que tínhamos, Ana Maria e eu, de cumprimentá-lo, não tomaríamos mais do que cinco minutos do seu tempo: – Bobagem, vocês vêm aqui à minha casa e nós vamos conversar despreocupados. Que tal quarta-feira às nove da manhã, está bom? Se não tive poesia bastante para tocar o coração do poeta, agarrei-o pelo estômago. Daí por que estas lembranças bem se poderiam chamar “ De como conheci Drummond graças a um doce de caju”...

* * * Ipanema, Rua Conselheiro Lafaiete, Edifício Luiz Felipe, 7º andar. No pequeno hall, à saída do elevador, um desenho de Bianco. O apartamento é amplo, discreto e confortável. Dominando o ambiente, dois grandes quadros de Portinari: Maria Julieta, a filha adorada, aos onze anos, e um belo retrato de negro. Móveis antigos e antigas imagens de santos fazem Minas presente, a Minas de antigamente. Drummond vem chegando pelo

corredor: magrinho, esperto, ligeiro, meio gauche, como lhe ordenara o anjo no Poema de sete faces. Frustrou-me o abraço que lhe queria dar: Cyro dos Anjos já me dissera que ele estendia a mão ao mesmo tempo em que a puxava, mal consentindo o aperto. Logo depois aparece Dona Dolores, frágil, pequenina, simpática, casada com o poeta desde 1925. Sentamo-nos e de lá só saímos às onze. Foram duas horas de papo, em que, naturalmente, ouvi muito mais do que falei. Posso dizer que conheci outro Drummond, talvez o mais verdadeiro, ignorado pela maioria dos seus milhares de leitores: bem-humorado, afável, simples, surpreendentemente ativo para os 78 anos a que chegara. Não anotei nem gravei o que me disse, pois nos encontrávamos apenas para uma conversa – três anos depois, em 1984, me daria uma das melhores e mais longas entrevistas que já concedera. À noite, passei para o papel o que tive o privilégio de receber do poeta Carlos Drummond de Andrade, cuja obra faria maior e mais respeitável qualquer literatura:


Confissões e opiniões do poeta QUINTANA, BANDEIRA E OUTROS Escrever já é, para mim, um trabalho cacete. Afinal de contas, há cinqüenta anos venho fazendo isso. Não entendo aqueles que querem ser poetas sem nunca ter lido os verdadeiros e grandes poetas da língua, como Cláudio Manuel da Costa, Gonçalves Dias e Castro Alves. Mário Quintana é um grande poeta. Pena que lhe tenham posto na cabeça – ele que vivia tranqüilo em Porto Alegre – essa bobagem de Academia. Agora o Quintana acha que, se perder, será uma desfeita ao Rio Grande; pelo contrário, será uma glória. E ele vai perder. Acho que a dúvida, a inquietação, o questionamento contínuo são, para o artista, algo muito salutar. Desconfio de todo aquele que tem a certeza de estar construindo uma grande obra. Dificilmente meus poemas ficam como foram concebidos. Quase sempre os modifico, transformo, reescrevo, para então publicá-los.

Acho que todo poeta tem a obrigação de conhecer a obra dos músicos e dos pintores do seu tempo. Da minha geração, sou dos poucos que não tiveram formação musical. Concluí, por experiência própria, que o ideal é o livro de poemas não ter ilustrações. É muito difícil ilustrar poemas, mesmo para um bom desenhista.

NINGUÉM INVENTOU A POESIA Não sou modesto, apenas sei do meu verdadeiro valor. Sou tãosomente um entre milhares de poetas, que formam uma infinita procissão desde o começo dos tempos. Ninguém inventou a poesia. Não conheço Fortaleza – aliás, não conheço o Norte nem o Nordeste do Brasil. Não gosto de viajar. É um dos meus defeitos. Não sou rico. Não comprei nenhum dos quadros que você vê aqui. Os de Portinari me foram

Bandeira tem um poema que começa assim: “Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova”... Pois bem: Manuel levou trinta anos para encontrar a forma definitiva desse verso. Se ele, que foi um profundo conhecedor da língua, era tomado pela dúvida, acho que também temos direito a ela, não?

É interessante para o escritor fazer um curso em que possa aprofundarse na língua e na literatura do seu país – como o de Letras, por exemplo. Escolhi Farmácia porque era o mais rápido, já pensando em não exercê-la. Minha formação intelectual é deficiente. Não me considero bom cronista. Para tanto, teria de conhecer o mundo, procurar viver todas as suas experiências. Como viajo pouco, minhas crônicas são mais ou menos de gabinete. Acho o José Carlos de Oliveira um excelente cronista.

O ESTRUTURALISMO, UMA BOBAGEM Para mim, o estruturalismo que domina atualmente a crítica literária é uma grande bobagem. Um texto de Eça de Queirós, por exemplo, é transformado numa coisa chatíssima, reduzido a fórmulas, esquemas e gráficos. Ora, o bom em Eça é exatamente a fluidez, a espontaneidade, a naturalidade do estilo. Mas isso passa, já está passando. Por ocasião do modernismo, a maioria dos professores de Português estava despreparada para entendê-lo e explicá-lo aos alunos. Por isso éramos criticados e até ridicularizados nas salas de aula. Eu fui uma das maiores vítimas. O modernismo brasileiro foi apenas um movimento de renovação artística, que já havia ocorrido em outras partes do mundo.

O poeta, como todo artista, aperfeiçoa-se no seu trabalho. O verdadeiro artista raramente está satisfeito com o que faz. Bandeira dizia que seus primeiros poemas eram umas porcarias. Concordo com Paulo Mendes Campos, quando diz que todas as pessoas nascem poetas, mas algumas desaprendem a sê-lo. Um analfabeto, ao se sensibilizar com a beleza da lua, de uma flor ou de uma criança, está experimentando uma emoção poética. Uma minoria, é verdade, sabe expressar essa emoção com palavras.

universidade brasileira, é melhor fazer um mau curso superior do que não fazer nenhum.

dados por ele, que gostava de presentear aos amigos. Portinari dividia o mundo em duas partes: a dos que gostavam e a dos que não gostavam dele. Esta última simplesmente desprezava. Era um homem muito ciumento da sua obra. Apesar da crise por que passa a

O modernismo foi realmente necessário. A última grande escola na época, o parnasianismo, estava exaurida, até pela morte dos seus principais representantes: Raimundo Correia morrera em 1911; Bilac, em 1918. Na minha juventude, em Belo Horizonte, tive grande ascendência sobre Pedro Nava, que é apenas um ano mais novo do que eu. Se o convidasse para soltar uma bomba no palácio do governo, Nava toparia na hora.

Não me recuso a receber ninguém em minha casa. Não sou um bicho do mato, como se diz por aí. O problema é que hoje em dia, nos colégios do Rio, os professores de Português não dão a matéria, e cobram dos alunos entrevistas com escritores sem lhes dar a mínima orientação. Eles vêm e perguntam qual a minha idade, quantos livros já escrevi, se me sinto realizado, essas bobagens todas. Resolvi, então, só dar entrevistas por escrito. Prefiro a visita de uma criança, com quem possa divertir-me, a ter de aturar uma comissão de estudantes, que nada sabem da minha vida ou da minha obra.

OS ANDRADE, UM BOM, OUTRO MAU Houve um tempo em que pretendi determinar a genealogia da minha família – por brincadeira, é claro. Cheguei a dois antepassados portugueses: Andrade, o Bom, e Andrade, o Mau. Como o primeiro não se casou nem deixou descendentes, concluí que todos nos originamos de Andrade, o Mau. Pelo lado dos Drummonds, descobri um ancestral de nome Eduardo, o Bandido. Aí parei minhas pesquisas. Quando Gustavo Capanema era ministro da Educação, convidaramno para paraninfar uma formatura em Passa Quatro, no interior de Minas. À última hora houve um problema e ele me pediu que fosse representá-lo, como seu chefe de gabinete. Mas eu não sei falar de improviso, argumentei. “Pois então escreva”, disse. Me deu logo dor de barriga. Escrevi às pressas, na hora do almoço, entrei no carro, viajei oito horas, fiz o discurso e voltei. Eu, o maior poeta vivo do mundo?! Sou apenas o maior poeta vivo da Rua Conselheiro Lafaiete. Antigamente era o único: agora apareceu uma moça, aqui perto, escrevendo coisas muito boas. Tive de partilhar o título com ela.

Publicado originalmente no livro Inventário de Crônicas (Brasília: Thesaurus, 1997), sob o título Na toca do urso polar, e reproduzido com autorização do autor, com título e intertítulos da Redação do Jornal da ABI.

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Livros IMAGENS: DIVULGAÇÃO

QUADRINHOS

O traço selvagem de Joe Kubert Quase 38 anos depois de lançadas no Brasil, a Devir reedita as histórias de Tarzan produzidas por um dos mais respeitados autores de quadrinhos.

Resgate histórico: Devir lança álbum com as primeiras histórias de Tarzan desenhadas por Kubert.

POR F RANCISCO UCHA No final do século 19, mundos primitivos e selvagens levavam às populações da Europa e Estados Unidos certo ar de mistério e fascinação, fossem eles no fundo do mar, nas profundezas do centro da Terra, na imensidão do espaço ou mesmo em terras ainda desconhecidas pela civilização ocidental. Artistas buscavam inspiração em terras longínquas para suas obras. A literatura, a pintura, o teatro, o cinema apresentavam à população ávida pelo desconhecido os mundos que se descor-

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tinavam. E o continente africano era um desses lugares que permeavam o imaginário de americanos e europeus, sedentos por aventuras exóticas e pela descoberta de novas emoções. Nessa época, milionários se aventuravam em safáris dentro do chamado “Continente Negro”. Um bom exemplo disso aconteceu com Theodore Roosevelt, um dos mais populares Presidentes dos Estados Unidos. Em março de 1909, assim que deixou a Presidência dos Estados Unidos, Roosevelt embarcou com uma grande equipe para aquela que seria uma de suas maiores aventuras e chegou a Mombasa, onde partiu para diversos países africanos. A expedição era financiada pelo Smithsonian Institution e tinha oficialmente cunho científico, mas o objetivo da aventura também era a prática da caça. Em sua viagem, o grupo liderado pelo ex-Presidente matou e capturou mais de 11 mil animais. Desses, foram mortos mais de 500 espécimes de grande porte, incluindo seis exemplares de raríssimos rinocerontes brancos. O fato é que, antes de ser antiecológica, a jornada de Roosevelt foi um acontecimento que criou no imaginário popular a fantasia do homem civilizado desbravando terras desconhecidas. É nesse cenário que vive Edgar Rice Burroughs. Depois de fracassar em diversos

empregos e tentativas comerciais e sem dinheiro para se sustentar, Burroughs decide fazer o que sua vocação exigia há tanto tempo: escrever. Sua primeira história, uma aventura de ficção científica, lhe traz alguma esperança. Mas é com Tarzan, publicado em outubro de 1912 na revista All-Story Magazine, que o escritor alcança rapidamente o sucesso. A história de um menino, filho de nobres ingleses, criado por macacos nas misteriosas selvas africanas depois da morte dos pais, transformou-se num fenômeno e apenas seis anos depois era adaptada para os cinemas, ainda sem som, estrelado por Elmo Lincoln. Enquanto isso, os quadrinhos norte-americanos também se sedimentavam nos jornais, aumentando suas tiragens e trazendo novos leitores atraídos pela novidade. Essas narrativas desenhadas eram dominadas por tipos satíricos, humorísticos, cômicos ou, como se costumou a falar na época, comics. Na década de 1920 começam a surgir os primeiros personagens não caricatos e que viviam novas aventuras em tiras e pranchas dominicais. No final dessa década a aventura ganha um novo patamar com o surgimento de Buck Rogers e de Tarzan, em janeiro de 1929, às vésperas da grande depressão americana e no início da era dourada dos quadrinhos nos EUA. As aventuras de Tarzan saem da literatura pulp para ganhar as páginas dos jornais através do traço marcante de Harold Foster. A partir de então, o Homem-Macaco se torna sucesso absoluto nos quadrinhos. Depois de Foster, Burne Hogart assume o Rei das Selvas. Começou imitando o mestre, mas

depois consolidou seu estilo próprio, um traço nobre e sofisticado que, mesmo assim, consegue ressaltar toda a fúria selvagem do Rei dos Macacos. O Tarzan de Burroughs teve sorte em suas adaptações para os quadrinhos, pois foi desenhado por talentosos artistas, como Russ Manning, John Celardo, Bob Lubbers, Nick Cardy, só para citar alguns dos nomes que continuaram a desenvolver a mitológica figura do homem das selvas até à década de 1970. Mas foi somente em 1972, quando a DC Comics adquiriu os direitos para publicar as revistas com as aventuras do herói, que Tarzan voltaria ao patamar de excelência jamais alcançado depois de Foster e Hogart. Foi assim: Carmine Infantino, exímio desenhista e então diretor editorial da DC, chama Joe Kubert, outro lendário mestre dos pincéis, para uma reunião. Quando se encontram, Carmine, sorrindo, pergunta: “Joe, o que você acha de fazer Tarzan?”. Quem conta essa história é Kubert no texto de introdução do livro Tarzan - A Origem do HomemMacaco e Outras Histórias, recém lançado pela Devir. E ele explica: “Carmine e eu nos conhecíamos desde que entramos nesse negócio. Se havia alguém que sabia do meu amor por Tarzan de Burroughs, esse alguém era ele”. E isso fica absolutamente claro em todas as quase 200 páginas de histórias desenhadas e escritas pelo artista. Joe Ku-


DIVULGAÇÃO

Depois de uma década de pesquisas e acesso a documentos inéditos, o jornalista Lira Neto compôs a biografia de um dos mais importantes líderes religiosos da História do Brasil. POR M ARCOS STEFANO Santo ou herético? Charlatão ou visionário? Impostor ou verdadeiro? Quando se trata de Cícero Romão Batista, fazer essas distinções é sobremodo complicado. Não somente porque ele divide opiniões e provoca cisões inconciliáveis, mas por causa de uma história que mistura a toda hora fato e fantasia. Seja na infância pobre, na transformação em líder religioso, no banimento da igreja ou na reinvenção como político, a existência de Cícero, um dos mais importantes líderes religiosos brasileiros, é cercada por misticismo e lendas. Separar o joio do trigo, sem deixar de lado os elementos da fé popular que transformaram a personagem num fenômeno de massa nos tempos atuais, é o grande mérito da biografia Padre Cícero – Poder, Fé e Guerra no Sertão, escrita pelo jornalista Lira Neto e publicada pela Companhia das Letras. Em um monumental trabalho de investigação e apuração que lhe custou dez anos, Lira Neto remonta a trajetória de Cícero, começando pela infância pobre em Crato e passando pela ordenação como padre. Analisa os supostos milagres do religioso e, principalmente, como eles provocaram os primeiros conflitos com o Bispado cearense e depois chegaram ao Vaticano, culminando em seu afastamento da Igreja Católica. Na narrativa, produzida em tons jornalísticos, não faltam boas histórias. Padre Cícero pode ser um dos melhores exemplos daquilo que quis dizer Gay Talese quando afirmou que o “realismo é fantástico”. Elas começam pela reinvenção do religioso, que, depois de expulso da comunidade da fé, teve que se reinventar como político. Era nessas duas esferas que ele transitava. Certa vez, Cícero abençoou um exército de jagunços. Tratava-se de uma revolução armada que derrubaria

o governo local. Da mesma forma que provocava a guerra, como quando se aproximou de Lampião para combater a Coluna Prestes, também arquitetava a paz, ensejando um pacto histórico entre os coronéis sertanejos para apaziguar a região e fazer de Juazeiro o centro das aristocracias cearenses. “Como político, ele foi tão controvertido quanto como sacerdote. A imagem que sempre tive, e continuo a ter depois desse trabalho, é de um homem complexo, impossível de definir com uma só frase. Por isso, procuro fugir das interpretações maniqueístas e taxativas. Busco traçar contornos os mais precisos possíveis e mostrar fraquezas, talentos e motivações”, explica Lira Neto. Para tanto, pesquisas e entrevistas foram fundamentais. Mas não tanto quanto construir fontes seguras, fora e principalmente dentro do clero, que lhe garantissem acesso a documentos reservados, os chamados “arquivos secretos”. Conseguidos principalmente no Vatica-

RENATO PARADA

bert tinha uma verdadeira devoção pelo Homem-Macaco desde a época em que Foster era seu desenhista. “Naqueles desenhos belissimamente representados, mas enganosamente simples, Tarzan, o HomemMacaco, tornara-se uma entidade viva. As figuras eram reais e intensas. E a credibilidade dos personagens e cenários transportavam um garoto morando (...) em Nova York para o misterioso mundo verdejante e vibrante da selva africana”, escreve Kubert, concluindo que “a habilidade com que Hal Foster conseguia criar aquela sensação de total realismo e credibilidade era mágica”. Ao receber a incumbência de Infantino, Kubert não decepcionou. Autor de histórias repletas de emoções e traços fortes, como Sargento Rock, ou super-heróis diferentes do padrão, como Gavião Negro, Kubert devolveu a Tarzan a grandiosidade que o personagem de Burroughs ameaçava perder. Num trabalho de fôlego e de grande respeito, o desenhista releu todos os livros escritos e estudou o material produzido por Hal Foster e Burne Hogarth nas décadas de 1920-30. O resultado é um conjunto de histórias que recriam o mito do herói das selvas como jamais foi realizado nos quadrinhos. Desde a fidelidade de adaptação dos livros de Burroughs aos seus traços viscerais e modernos, Tarzan - A Origem do Homem-Macaco e Outras Histórias, é uma obra fundamental na história das histórias em quadrinhos. Com essa obra, a Devir resgata um material precioso que já havia sido publicado no Brasil a partir de 1972 pela Editora Brasil-América, de Adolfo Aizen. A Ebal publicou dois álbuns de luxo, num formato um pouco maior do que este recém-lançado, e uma série de revistas mensais em cores. A primeira delas trouxe a história Terra de Gigantes, também presente no livro da Devir, que mescla os desenhos de Hogart com os de Kubert resultando num trabalho interessante e atraente para estudiosos dos quadrinhos. A obra também traz as quatro histórias que compõem a adaptação do livro Tarzan dos Macacos realizada por Kubert, além de outras três aventuras curtas. O livro da Devir é o primeiro de uma série lançada pela Dark Horse, editora que detém os direitos do personagem atualmente nos Estados Unidos. Que venham os outros volumes. Eles fazem parte da grande homenagem que Joe Kubert, respeitosamente, fez ao criador e seu herói mais famoso.

O Padim Ciço que a batina escondeu

no, eles foram essenciais para desvendar o conflito entre o catolicismo eurocêntrico oficial e aquele popular praticado por Cícero. E também para conduzir a narrativa. Mesmo sem se aprofundar na construção mítica do “Padim Ciço”, feita pelos fiéis nos últimos 75 anos, desde sua morte, a obra visita a Juazeiro do Norte moderna, mostrando as proporções alcançadas pela devoção ao religioso. A gênese da construção do mito está no texto, mas as dimensões que sua adoração alcança são parcialmente percebidas pelo passeio que Lira Neto faz pelos locais históricos. Aliás, esse é outro ponto importante do livro: não se restringir ao biografado. Com isso, o jornalista consegue elaborar um panorama do Nordeste dos tempos dos coronéis e de uma boa parte da sociedade brasileira, fazendo uma rigorosa reconstituição de práticas e costumes de época. Várias das inquietações políticas e sociais apresentadas pela obra ajudaram a moldar o Brasil moderno. Falando em presente, Neto ainda mira seus holofotes para o futuro, percorrendo os bastidores da Santa Sé e apresentando o plano do clero para redimir Cícero, que até hoje é ignorado pelo culto oficial. Seja como arma para combater o avanço das igrejas evangélicas e neopentecostais no Brasil, seja pela necessidade de arrebatar a multidão de devotos que permanece à margem da religião institucional, Padre Cícero promete continuar polêmico por muito tempo. Importante é compreender que não se tornou tudo isso apenas porque era um apóstolo visionário capaz de converter multidões com sua singela pastoral sertaneja, nem somente por sua astúcia em amealhar fortuna e apoio, aproveitando-se da ignorância e miséria da população. Abençoado seja Lira Neto pela busca do equilíbrio e dos fatos.

Longe das interpretações maniqueístas, Lira Neto procurou mostrar fraquezas, talentos e motivações do Padre Cícero: “É um homem complexo, impossível de definir com uma só frase”.

Jornal da ABI 357 Agosto de 2010

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