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O traço despojado de Canini (acima) deu ao Zé Carioca um jeito mais brasileiro. À direita, o personagem em sua primeira história em quadrinhos.

A revolução de Canini

imaginário coletivo. E Zé Carioca pega carona nesse ufanismo, ganhando o seu próprio gibi em 10 de janeiro de 1961, ainda que, de certa forma, pegando a carona do amigo de sempre: não existe efetivamente “uma edição número 1” da revista Zé Carioca, que começa a circular como edição especial do Pato Donald número 479. Pato Donald e Zé Carioca passam então a se alternar semanalmente (o que acontecerá até 1985), seguindo a numeração original do gibi do pato americano. Como é duro se desvencilhar da matriz! A Abril, porém, subdimensionou a necessidade de novos roteiros e novos artistas para manter a produção de um gibi quinzenal. Sem conseguir suprir a demanda, as primeiras edições vinham recheadas de imprecisões geográficas, com o Zé, que é carioca, circulando pelos paulistaníssimos Estádio do Pacaembu ou Parque do Ibirapuera. Além disso, roteiros norte-americanos criados para Mickey ou Donald começaram a ser adaptados para o personagem brasileiro, o que proporcionou estranhas historietas de conteúdo híbrido, como Zé Carioca e Pateta perseguindo João Bafode-Onça. Foi assim que nasceram, por exemplo, os sobrinhos-papagaios Zico e Zeca, que entram nas tramas adaptadas EDITORA ABRIL

Victor Civita segura uma folha de impressão com um dos primeiros números da revista O Pato Donald, de 1950, com o Zé Carioca novamente na capa da publicação: presença constante nas revistas Disney da editora.

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A ascensão do papagaio

A ascensão de Zé Carioca como personagem representativo da cultura brasileira coincide com o início da queda daquilo que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira-latas”. Campeão mundial de futebol em 1958, berço da Bossa Nova e do Cinema Novo e palco da construção de uma novíssima capital desenvolvimentista, o Brasil conhecia um inédito momento de autoestima em seu

para substituir Chiquinho e Francisquinho e/ou Huguinho, Zezinho e Luisinho. Zé perde totalmente sua personalidade. O universo zecarioquense se transforma num balaio de gatos. Ou de patos. Aos poucos, contudo, a situação se normaliza, e Zé vai reassumindo seus contornos verde-amarelos. Na história Um Festival Embananado, de Waldyr Igayara de Souza e Izomar Camargo Guilherme (1968), a ação acontece num brasileiríssimo festival de música popular, semelhante aos que, na época, faziam muito sucesso na TV Record.

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Elísio, Zé Carioca e Panchito são retratados neste gibi como “estrangeiros arruaceiros não acostumados com a civilização”. Percebe-se então um início de “esvaziamento” da Política da Boa Vizinhança, nesta história publicada em 1944 nos Estados Unidos e 10 anos depois no Brasil. Com o tempo, a popularidade de Zé Carioca ultrapassou fronteiras. Em 1949, o papagaio participou do gibi de produção italiana O Inferno de Mickey, de Guido Martina e Ângelo Bioletto, que só viria a ser publicado no Brasil em 2010, no volume 13 da coleção Clássicos da Literatura. Na Espanha, Zé Carioca era uma das figurinhas dos chocolates Lloveras, populares naquele país no final dos anos 1940. A trajetória do simpático louro mudaria radicalmente de rumos a partir da fundação da Editora Abril, em 1950. Mas mesmo em seu País, teoricamente, “natal”, Zé Carioca só estrearia na nova editora pegando carona nos gibis do Pato Donald, onde aparece desde a primeira edição. E logo consegue seu espaço. Entre 1950 e 1956, o papagaio marca presença em 57 capas do Pato Donald, grande parte delas assinada pelo argentino Luis Destuet, artista egresso da subsidiária portenha da Abril. Em 1952, protagonizou nos gibis do seu colega pato oito historietas chamadas Zé Carioca Mostra o Brasil, onde passeava pelo País em companhia de Mickey, Pluto & cia. Em janeiro de 1955, também desenhada por Destuet, A Volta de Zé Carioca retrata o personagem contracenando com personalidades da boemia carioca. A história saiu na edição 165 de Pato Donald.

Contudo, o personagem, malandro e totalmente avesso ao trabalho, começa a esbarrar nos preceitos do chamado “Código de Ética”, uma auto-regulamentação que as grandes editoras brasileiras de quadrinhos – Editora Gráfica O Cruzeiro, Ebal, RGE e Editora Abril – haviam criado, com inspiração do Comics Code norte-americano, para, digamos, “moralizar ” as tão combatidas hqs. O código dizia, por exemplo, que “as histórias em quadrinhos devem ser um instrumento de educação, formação moral, propaganda dos bons sentimentos e exaltação das virtudes sociais e individuais”. Onde encaixar um papagaio vagabundo neste contexto? A resposta passaria necessariamente pelo bom humor. E é onde se encaixa o trabalho de Renato Vinicius Canini. Explicando: em 1969, Waldir Igayara e Izomar Camargo Guilherme passam a se dedicar à recém-criada revista Recreio, dirigida pela escritora Ruth Rocha, e direcionada ao público infantil. Assim, as histórias de Zé Carioca começam a ser desenhadas primeiro por Carlos Edgard Herrero e mais tarde por Canini. O desenhista gaúcho, com seus traços abertamente pessoais e despojados, foi responsável por uma verdadeira revolução do personagem. Em parceria com o argumentista Ivan Saidenberg, Canini ampliou o universo de Zé Carioca, desenvolvendo a fictícia Vila Xurupita, a amizade com o urubu Nestor, e os temas marcadamente brasileiros. A primeira trama desenhada e escrita por Canini foi O Leão que Espirrava, onde surge o empreendedor e responsável Zé Paulista, como contraponto ao primo carioca. Em Os Heróis São Modestos, primeira história da dupla Saidenberg-Canini, surge o vilão João Ratazana. Também são desta fase O Grande Festivaia (que satiriza Roberto Carlos, Waldick Soriano e Chico Buarque, entre outros) e Fora do Sério (brincando com o então apresentador da TV Tupi Flávio Cavalcanti). Foi o auge do personagem. A partir dos anos 1980, novos artistas se somam à criação das histórias de Zé Carioca. Entre eles, Roberto Fukue, Euclides Miyaura (o Chin), Moacir Rodrigues, Luiz Podavin e Gérson Teixeira. A Vila Xurupita ganha ainda mais personagens, como Zé Galo, Átila, Pedrão, Afonsinho, e os vários primos do Zé Carioca, cada qual homenageando uma região do Brasil: Zé Queijinho, Zé Jandaia, Zé Baiano e Zé Pampeiro. Em junho de 1981 chega às bancas a primeira edição especial com o personagem: Zé Carioca Especial 20 Anos, trazen-

do uma seleção das melhores histórias destas duas décadas. Zé Carioca passa a ter histórias publicadas também na Itália, na Holanda e em vários outros países. Alternando a periodicidade de suas revistas entre semanal e quinzenal, ele se revela um personagem de grande popularidade, capacidade de se reinventar e, conseqüentemente, longevidade. Em 1996, aparece na tv apresentando o quadro Disney Club, dentro do programa TV Colosso, da Rede Globo, e no ano seguinte a consagração máxima para um herói eminentemente carioca: transforma-se em sambaenredo. A escola de samba Acadêmicos da Rocinha entra no Sambódromo do Rio de Janeiro cantando A Viagem Fantástica do Zé Carioca à Disney. A virada do milênio trouxe a globalização e, com ela, diversas crises econômicas igualmente globalizadas. Por questões financeiras, a Editora Abril opta por terceirizar o trabalho de seus artistas, que, por sua vez, organizam-se em estúdios e passam a vender suas obras também para outros licenciados da Disney, principalmente o dinamarquês Egmont Group. Artistas brasileiros e europeus trabalham cada vez mais em parceira. Por aqui, destacam-se os talentos de Fabrício Grellet, Carlos Motta e Dave Santana. As tramas do Zé Carioca acompanham o momento: em Gol Contra, por exemplo, a trama é a corrupção no futebol, que leva o time da Vila Xurupita para a oitava divisão, enquanto A Pegadinha remete ao programa de TV Domingão do Faustão. Em 2007, o parque temático Epcot, no Walt Disney World, relançou o passeio de barco no pavilhão do México trazendo de volta Zé Carioca, Donald e Panchito. Agora, comemorado seus 70 anos, Zé Carioca ganha uma nova e inédita história em quadrinhos, o que não acontecia há 12 anos: Um Crocodilo no Rio, com arte e roteiro de Fernando Ventura. O bom e velho papagaio está totalmente desvencilhado das políticas norte-americanas responsáveis pelo seu surgimento. Brasileiro, malandro, de bom coração e sempre divertido, ele pode, sim, continuar “trabalhando” (palavra que detesta) para a Disney, mas longe de significar qualquer “esforço” (outra palavra que odeia) de boa vizinhança naqueles distantes tempos de guerra. A guerra hoje é pelo mercado, um conflito em que as principais armas são a criatividade, o jogo de cintura e a capacidade de se reinventar a cada nova dificuldade. E isso o nosso herói verde e amarelo tem de sobra.

JORNAL DA ABI 387 • FEVEREIRO DE 2013

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