"DOSSIÊ DELEUZE", v.2, ed. 15 Paralelo 31: revista Programa de Pós-graduação em Artes Visuais-UFPel

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edição 15 • dezembro de 2020 issn: 2358-2529 re v is ta d o p ro gr a m a de p ós - gr a duaç ão (m e s t r a d o) em a rt e s v isua is


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Editorial

[ 1 ] DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34: 1992, p. 14.

Certa vez, ao comentar o modo como se relacionava com a História

assalto para contaminá-los com o corpo latinoamericano dos convidados.

da Filosofia, Gilles Deleuze disse o seguinte: “Eu me imaginava chegando

Cada convidado oferece, portanto, um modo de usar Deleuze. Cada

pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no

modo de usar é uma contaminação entre vários corpos - corpo/língua;

entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante, porque

corpo/território; corpo/tempo; corpo/afecto e percepto; corpo/conceito;

o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer.

etc - cada contaminação traz uma problemática. A Cartografia, por exemplo,

Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade,

popularizada em nosso país como um método, aparece aqui como uma

porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes,

Ética e uma Política, um lugar de partida e não mais de chegada, um modo

quebras, emissões secretas que me deram muito prazer.” 1

de alçar voo. A relação de Deleuze com a Arte, mediada pela obra de

O Dossiê “Deleuze - Modos de Usar: sobre destruições e invenções

Anne Sauvagnargues, nos coloca diante do problema da criação e seus

de mundos”, toma esta proposição para investir na criação de filhos feitos

agenciamentos com a subjetivação e a individuação. Afinal, o que seria um

pelas costas de Deleuze. Para isso, o Dossiê convidou pesquisadores que

ato de criação? Como ele se processa? Como acontece? Em que medida ele

são isso e aquilo: professores artistas, artistas filósofos, pesquisadores

depende de um sujeito criador? Em que medida o ato de criação subjetiva

fotógrafos, pesquisadores batuqueiros, professores poetas, cineastas

o sujeito que o executa? E o mais importante: haveria mesmo um ato de

professores, entre tantos, para que compartilhassem seus modos de

criação agenciado pela subjetividade ou todos os processos relacionados

“enrabar” este pensador da diferença. Nestes filhos monstruosos, o apreço

à subjetivação, bem como à criação seriam disparados por uma espécie

que temos por Gilles Deleuze é acompanhado por questões que seriam -

de passividade constituinte? A pintura emerge como conceito e campo

ao menos essa é nossa intuição - bem acolhidas pelo autor.

de consistência para uma imagem do pensamento, em meio a vinte anos

A primeira delas, provocada pelas emergências que o tempo

de experimentações pictóricas do artista professor. Haveria pensamento

presente nos apresenta, é entender o ato de escrever como uma

sem um lugar para sua enunciação, para o seu engendramento, para

possibilidade de inventar modos de enfrentamento daquilo que tem sido

a soma de circunstâncias e afetos que perfazem suas imagens? Já a

uma das tônicas do mundo atual, ou seja, a intolerância e a violência contra

fotografia se aproveita da reversão do platonismo para habitar a noite e

a diversidade e a diferença. Trata-se de tomar a criação como munição

afirmar uma poética do simulacro. O “mundo-verdade”, nós o abolimos:

para o enfrentamento da violência e da imposição dos modos majoritários,

que mundo nos ficou? O mundo das aparências talvez?... Mas não! Com

aceitando o convite do Filósofo como principal elemento deste trabalho:

o mundo-verdade abolimos também o mundo das aparências! O cinema

inventar mundos para que possamos mudar o mundo em que vivemos.

se quer nacional, bem brasileiro mesmo e dirigido por mulheres. Afinal,

A segunda vem da necessidade que sentimos de ampliar os espaços de

como esse cinema brasileiro feito por mulheres vaza o modelo narrativo

pesquisa no meio acadêmico, tantas vezes burocratizado e repleto de

clássico do cinema hegemônico? Como suas histórias e temáticas estão

tristezas. Nosso desejo de inventar mundos passa pela necessidade de

ligadas, de certo modo, a alguma necessidade que as faz criar? Mas e

intervir no mundo em que vivemos, e por isso somos levados a criar para

a imagem: Como enunciar a conflagração que dá lugar a uma imagem?

entender ao invés de entender para criar.

Entre Clarice Lispector e Gilles Deleuze parece haver um diagrama que

Nesse sentido, os modos de usar Deleuze aqui compartilhados

nos ajuda a percorrer a obra visual da conhecida escritora. Não se pode

oferecem ao leitor um conjunto de invenções e/ou de experimentações

definir a pintura de Clarice desde os conceitos de figuração ou abstração.

realizadas com a filosofia da diferença. Estes filhos, ao modo de Deleuze,

Pois o sentido visado por esse registro de semelhanças é, antes, aquele

mais do que apresentar conceitos elaborados pelo autor, os tomam de

da sensação: como apresentar a sensação? Como tornar presente a


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sensação através das formas, cores, linhas? Extrair do clichê uma imagem

som que inventa conceitos rítmicos, e cria sonoridades que são conceitos

é proceder justamente no plano da experiência oferecida pela sensação,

dedicados a tratar do viver. Um Deleuze batuqueiro que pensa dançando,

plano em que real e irreal se confundem, em que real e imaginário se

que dança pensando e que escolhe o coletivo como principal possibilidade

interpenetram. Em meio a tais complexidades uma introdução ao dito

de criação para e com o mundo.

pensamento pós-estruturalista pode ajudar bastante, visto que muitas

Assim, o dossiê reúne onze ensaios inicialmente apresentados

vezes uma das tarefas mais complicadas para quem inicia uma aventura

como palestras e oficinas. Tais apresentações ocorreram em seminário

nessa longa jornada é a de encontrar textos introdutórios que auxiliem os

organizado pelo Laboratório de Arte e Psicologia Social - LAPSO - do curso

primeiros passos. Ao mesmo tempo, a música se pergunta pelos processos

de psicologia da Universidade Federal de Pelotas. O evento aconteceu

de criação no curso de bacharelado em música popular da Universidade

entre junho e setembro de 2020 e continua disponível na página do

Federal de Pelotas, RS. Criar transforma o desconhecido em conhecido.

projeto2. Ao lado destes trabalhos contamos com uma resenha do livro,

Dá visibilidade. O que o bacharelado em música popular inventa? Talvez

recentemente publicado, ‘Por que esperamos: notas sobre docência,

formas de torcer a tradição, apropriar-se das molaridades do repertório e

obsolescência e o vírus’. E com muita alegria apresentamos ao público

tentar produzir variações. Tornar seu. Não ao estilo autoral, mas por campos

brasileiro uma tradução de ‘Cartographies de l’art: de la littérature à l’image’

intensivos, por experimentações. Criar é dar visibilidade. Contudo, diante

primeiro capítulo da obra Deleuze et l’art de Anne Sauvagnargues3. Para

da pandemia do coronavírus, o que pode a ficção? Talvez nos desgarrar

fechar com chave de ouro, esta artista filósofa nos presenteia com um

do razoável. Narrar uma vez mais. Trata-se de um método. A metodologia

belíssimo ensaio visual: ‘Carnet Japon avril 2015’.

da ficção se vê, assim, como parte do mundo e aliançada aos eventosobjetos com os quais se articula em uma trama de variações: aliançada

Boa leitura!

sim, mas jamais filiadas no sentido de um saber representacional em uma etiologia determinista causal. Ao lado da ficção, o maquinatório. Porque quem pesquisa com referenciais da diferença, principalmente na relação com Deleuze, Guattari, Nietzsche e outros malditos; torna-se necessário,

Édio Raniere e Eduardo Pacheco Organizadores do dossiê

para não dizer inevitável tensionar o território metodológico da academia, afinal é a metodologia que se impõe como a síntese de verdade da pesquisa, das pesquisas, de todas as pesquisas – a generalização do que é e do que não é pesquisa. Pesquisas quase sempre esbranquiçadas, deleuzes quase sempre carregados com problemas europeus, tidos como universais. É importante dizer: este dossiê está agenciado com uma diferença preta, latinoamericana, brasileira. Estamos em busca de um devir negro em Deleuze, ou mesmo de um Deleuze Preto. Um Deleuze batuqueiro, que toma a pele do tambor em contato com a pele da mão de quem toca como um plano de criação. Lugar que se presta a produzir outras dúvidas que não aquelas que insistem em ocupar os espaços acadêmicos. Deleuze batuqueiro, que faz Filosofia com o corpo, com o

Centro de Artes, Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pelotas, julho de 2020

[ 2 ] https://www. facebook.com/ Deleuze-Modos-deUsar101019808325084.

[ 3 ] O seminário ‘Deleuze: modos de usar. Sobre destruições e invenções de mundos’, bem como a tradução de ‘Cartographies de l’art: de la littérature à l’image’, são desdobramentos do estágio pósdoutoral que professor Édio Raniere realizou, entre 2018 e 2019, na Université Paris Nanterre, sob supervisão de Anne Sauvagnargues.


edição 15 • dezembro de 2020

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Sumário Editorial 2 Expediente 6

Expediente Edição 15

artigos

dezembro de 2020 Editoras

A cartografia parece ser mais uma ética (e uma política) do que uma metodologia de pesquisa Luciano Bedin da Costa

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Deleuze e a arte: uma leitura da obra de Anne Sauvagnargues Édio Raniere da Silva

36

Provocações para fazer/pensar a pintura: notas de ateliê Clóvis Vergara de A. Martins Costa

58

O corpo transfigurado: porque a noite é sempre outra Lizângela Torres

80

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Alice Jean Monsell, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, Brasil Rosângela Fachel de Medeiros, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, Brasil Conselho editorial

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Adriane Hernandez, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre, Brasil Analice Dutra Pillar, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre, Brasil Angela Raffin Pohlmann, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, Brasil

Capa: Anne Sauvagnargue, obra que integra o ensaio visual: Carnet Japon avril 2015, 2020.

Daniel Enrique Monje Abril, Universidad Manuela Beltrán/UMB, Bogotá, Colômbia Fernanda Pereira da Cunha, Universidade Federal de Goiás/UFG, Goiânia, Brasil Gonzalo Vicci Gianotti, Universidad de La República/UdelaR, Montevidéu, Uruguai Helena Galán Fajardo, Universidad Carlos III de Madrid/UC3M, Madrid, Espanha Laura Inés Catelli, Universidad Nacional de Rosario/UNR, Rosario, Argentina Leonardo Charréu, Universidade Federal de Santa Maria/UFSM, Santa Maria, Brasil Leonardo José Sebiane Serrano, Universidade Federal da Bahia/UFBA, Salvador, Brasil

Ter uma ideia em cinema: Sobre o ato de criação no cinema brasileiro feito por mulheres Cíntia Langie

104

O diagrama da gruta: imagem e pintura em Clarice Lispector e Gilles Deleuze Lilian Hack

128

Uma (breve) introdução ao pensamento pós-estruturalista Daniel de Mendonça

150

Deleuze e a Música: modos de criar no curso de Bacharelado em Música Popular da UFPel Marcelo Barros de Borba

164

Narrar-se para se desgarrar do razoável: a ficção como dispositivo clínico-político ético-estético Luis Artur Costa

180

Maquinações poéticas: uma aula, uma pesquisa, uma vida Róger Albernaz de Araujo

208

Diferença Preta Eduardo Guedes Pacheco

228

Marcos Villela Pereira, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS, Brasil Mirian Nogueira Tavares, Universidade de Algarve/UALG, Faro, Portugal Nádia da Cruz Senna, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, Brasil Otto Rosales Cárdenas, Táchira-Universidad dos Andes/ULA, Mérida, Venezuela Paulo Silveira, Universidade Federal de Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre, Brasil Paz Lopez, Universidad Diego Portales/UDP, Santiago, Chile Raimundo Martins, Universidade Federal de Goiás/UFG, Goiânia, Brasil Ricardo Cristofaro, Universidade Federal de Juiz de Fora/UFJF, São Pedro, Brasil Ursula Rosa da Silva, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, Brasil Organização do Dossiê Deleuze - Modos de Usar: sobre destruições e invenções de mundos Édio Raniere, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, Brasil Eduardo Pacheco, Universidade Estadual do Rio Grande do Sul/Uergs, Montenegro, Brasil Comitê Avaliador Ad Hoc do Dossiê Alexandre Fabiano Mendes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, Rio de Janeiro, Brasil Andrea Fricke Duarte, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões/ URI - Campus Santo Ângelo,

Traduções

Santo Ângelo, Brasil Angélica Vier Munhoz, Universidade do Vale do Taquari/Univates, Lajeado, Brasil Cláudia Madruga Cunha, Universidade Federal do Paraná/UFPR, Paraná, Brasil Fabiane Olegário, Universidade do Vale do Taquari/Univate, Lajeado, Brasil Geruza Tavares D’Avila, Universidade Federal do Rio Grande/FURG, Rio Grande, Brasil Janaina Bechler, Universidade Federal da Bahia/UFBa, Bahia, Brasil Laís Vargas Ramm, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre, Brasil

Cartografias da Arte: da Literatura à Imagem Anne Sauvagnargues Tradução Édio Raniere e Lilian Hack Revisão Roger Xavier

246

Marcos da Rocha Oliveira, Zona de Investigações Poéticas/ZIP, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS e Universidade Estadual do Rio Grande do Sul/Uergs Rita de Cássia Maciazeki Gomes, Universidade Federal do Rio Grande/FURG, Rio Grande, Brasil Rodrigo Lages e Silva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre, Brasil Editoria de arte e diagramação Renan Silva do Espirito Santo Design gráfico

ensaios visuais Carnet Japon avril 2015 284 Anne Sauvagnargues Apresentação Lilian Hack

Projeto Gráfico: Lucas Pessoa Pereira Projeto Web: Adriana Silva da Silva

resenhas Porque esperamos [notas sobre a docência, a obsolescência e o vírus] Cristiano Bedin da Costa

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artigos 8

edição 01 • dezembro de 2013 Adriane Hernandez; Roger Coutinho

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A cartografia parece ser mais uma ética (e uma política) do que uma metodologia de pesquisa Luciano Bedin da Costa Psicólogo, Doutor em Educação e Docente da Faculdade de Educação e do Programa de PósGraduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É coordenador do Grupo Políticas do Texto e pesquisador de temáticas relacionadas à cartografia, escrita e infâncias. bedin.costa@gmail.com

Cartography seems to be more of an ethics than a research methodology

Keywords: Cartography; Methodology; Ethics.

Resumo: Redigido a partir de uma fala para o evento Deleuze: modos de usar (2020), este ensaio se sustenta a partir da intuição de que a cartografia, tal qual é verificada na obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, mostra-se mais como uma ética e uma política do que uma metodologia de pesquisa propriamente dita. Para isso, toma como campo de análise fragmentos de livros publicados no final dos anos 1970 e início de 1980, em especial Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia e Diálogos, período em que a cartografia aparece pela primeira vez nas obras dos respectivos autores. Embora pesquisadoras e pesquisadores, especialmente no Brasil, tenham assumido a cartografia como um método de investigação, o que se lê em Deleuze e Guattari é uma série de apontamentos em prol do que poderíamos chamar de uma ética cartográfica, aqui sustentada como um lugar de partida, e não de chegada. O ensaio encerra com um poema coletivo produzido pela(o)s participantes do referido evento, finalizando com uma assertiva que sintetiza o que parece ser o movimento de tal ética: “cartografar é alçar voo”. Palavras-chave: Cartografia; Metodologia; Ética.

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Abstract: Written from a speech for the event Deleuze: ways to use (2020), this essay is based on the intuition that cartography, as ascertained in the works of Gilles Deleuze and Félix Guattari, shows itself more as an ethics and a policy than a research methodology itself. To this end it takes, as an analytical field, some fragments of books published in the late 1970s and early 1980s, especially A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia and Dialogues, the period when cartography first appears in the works of these respective authors. Although researchers, mainly in Brazil, have taken cartography as a method of investigation, what is really read in the works of Deleuze and Guattari are various notes defending what we could call a cartographical ethics, here in this article supported as a starting place instead of a finishing line. The essay ends with a collective poem, produced by the participants of that event, ending with an assertion that synthesizes what seems to be the movement of such ethics: “cartography is a taking flight”.

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Em memória de Sandra Corazza e Tania Galli, que tanto me falaram de cartografia. A primeira, com desconfiança, a segunda, com amor.

Para iniciar uma conversa Em 26 de agosto de 2020, em meio ao ano que seguramente estará inscrito como um dos mais inacreditáveis de nossa história, tive a oportunidade de ministrar uma aula remota no curso Deleuze: Modos de Usar, promovido pelo Laboratório de Arte e Psicologia Social LAPSO, vinculado ao Curso de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. Esta aula, intitulada Deleuze e a Cartografia, teve mediação do amigo e professor Édio Raniere e a participação de pessoas dos mais distintos lugares e com diferentes áreas de interesse1. O convite para a escrita deste ensaio surgiu como uma tentativa de organizar alguns pontos apresentados em minha fala, contribuindo em uma discussão que me parece fundamental em se tratando da cartografia. Em um primeiro momento trarei minha relação com a cartografia, apresentando algumas condições do seu surgimento na obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, assim como sua receptividade

edição 15 • dezembro de 2020 Luciano Bedin da Costa Artigo recebido em 01 out. 2020 e aprovado em 05 nov. 2020

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[ 1 ] O vídeo para esta aula está disponível em: https://www. facebook.com/ Deleuze-Modosde-Usar101019808325084/ videos/deleuze-ea-cartografia-profdr-luciano-bedin/ 1213882688967107/


no contexto brasileiro. Posteriormente farei uma problematização em torno da provocação “A cartografia parece ser mais uma ética (e uma política) do que uma metodologia de pesquisa”, a qual dá título a este ensaio. Quando digo provocação, trata-se mesmo disto, uma vez que esta é uma questão que me acompanha há anos, e que só através do evento e do convite para escrita neste dossiê é que se tornou formalmente estruturada. Este ensaio finaliza com a apresentação de um poema coletivo produzido ao longo de minha aula, organizado por Vitória Oliveira Bastos e Renata Azevedo Peres, graduandas e integrantes do LAPSO. Há uns anos atrás tive a oportunidade de publicar o ensaio Cartografia: uma outra forma de pesquisar (COSTA, 2014), numa tentativa de oferecer às pesquisadoras e pesquisadores iniciantes um material introdutório que pudesse servir como uma porta de entrada cartográfica. Embora publicado em 2014, boa parte do seu conteúdo fora produzido em 2010, quando trabalhava em um curso de psicologia vinculado a uma instituição privada de ensino superior, ministrando uma disciplina voltada a metodologias inventivas de pesquisa. A proposta da disciplina era ampliar o repertório metodológico da(o)s estudantes, de modo que pudessem se sentir mais amparada(o)s em suas práticas, estágios e monografias. Percebíamos, enquanto docentes, que as disciplinas básicas de metodologia de pesquisa, oferecidas a estudantes de vários cursos da instituição, não subsidiavam de modo satisfatório a(o)s estudantes de psicologia, pois pareciam estar quase que totalmente voltadas ao domínio das formas - do como fazer -, relegando a um segundo ou terceiro plano o regime das sensibilidades e das forças. As habituais distinções contidas nos capítulos iniciais de qualquer manual de metodologia, tais como pesquisa qualitativa versus quantitativa, pesquisa de exploração

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teórica versus experimental, pesquisa-ação versus pesquisaparticipante, pareciam não fazer muito sentido quando a(o)s discentes eram confrontada(o)s à experiência viva e movente do campo. Quando, por exemplo, precisavam produzir um projeto de intervenção para alguma outra disciplina, perguntas do tipo “que metodologia devo escolher?” eram constantemente enunciadas. A sensação que tinha, e que compartilhava com as turmas, era a de que parecíamos estar diante de um restaurante a quilo, perguntando ao atendente (professor) qual a comida (método) que se encontrava à frente, cuidando para que não ficasse muito pesada e onerosa. Esta imagem gastronômica me parece ainda muito útil quando nos referimos às metodologias de pesquisa, como se estivessem dispostas em um balcão ou cardápio, prontamente acessíveis a quem queira delas desfrutar. O problema que esta imagem de pensamento traz está relacionado aos critérios para utilização de uma ou outra metodologia, uma vez que não se trata - e esta é a tese deste ensaio - de uma simples escolha e tampouco de um uso. Determinadas práticas investigativas, como a cartografia, colocamnos enquanto pesquisadora(e)s diante de algumas condições que extravasam o campo dos protocolos e procedimentos, uma vez que nos convocam não só a pensar ou agir sobre determinado campo, mas a vivenciá-lo em suas múltiplas dimensões, num movimento ético de porosidade e composição. É este o argumento que sustentarei ao longo desta escrita, amparado nas ideias apresentadas pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari ao longo dos livros Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (1980) e Diálogos (1977), publicações que trouxeram pela primeira vez a temática da cartografia em suas obras conjuntas e individuais.

edição 15 • dezembro de 2020 Luciano Bedin da Costa Artigo recebido em 01 out. 2020 e aprovado em 05 nov. 2020

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Uma ética deleuzeguattariana? Há uns anos atrás, quando ainda era estudante de psicologia, lembro de ter assistido a uma entrevista de Georges Lapassade, onde era questionado sobre os pressupostos para um sujeito ser um analista institucional, ao que respondia dizendo que, antes de buscar a ferramentas instrumentais, era necessário que o aspirante a analista compreendesse como ele mesmo vê e percebe o mundo e as instituições, uma reflexão de cunho ético, e não necessariamente técnico. Trata-se de uma posição ética porque coloca em questão o próprio sujeito operador de uma intervenção, na medida em que ele também se assume enquanto uma instituição a ser analisada. “Façamos a análise de nossas próprias instituições!”, costumava dizer Lapassade (apud HESS, 2008, p. 250) em seus múltiplos espaços de formação, espécie de ritornelo que me parece muito adequado em se tratando de uma investigação cartográfica. Parafraseando Lapassade, diria que, ao traçarmos uma cartografia - não importando o território onde esteja inserida - tratemos de cartografar também nossas próprias instituições, lançando questões a nós mesma(o)s e aos espaços com os quais compomos nossos desejos e anseios investigativos. Quando Deleuze e Guattari escrevem que cartografamos em prol das linhas de fuga, é necessário pensarmos no quanto estamos eticamente dispostos a experimentar e a suportar o mundo em sua imprevisibilidade e variação. A ética a que me refiro não diz respeito aos códigos de ética que norteiam determinadas práticas profissionais, uma vez que estes, embora importantes, situam-se no domínio dos deveres, e não necessariamente dos devires, que é onde as linhas de fuga se fazem potencialmente mais presentes. Embora não haja consenso sobre o que seria uma ética no pensamento deleuzeguattariano, podemos fazer alusões à mesma a partir da leitura que ele faz de Nietzsche e Spinoza. Neste sentido, se faz necessária a distinção entre a ética e

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moral; a primeira dizendo respeito a práticas de liberdade, a segunda ligada a relações de obediência. A ética distancia-se, pois, da ideia de um ethos enquanto “morada do ser”, lugar a priori a ser ocupado pelos sujeitos ditos “éticos”. Neste sentido, parto das ideias apresentadas por Barbosa (2018, p.879), quando aproxima a ética à política, situandoas a movimentos de experimentação, conhecimento e avaliação das forças que se fazem na relação que estabelecemos com e no mundo. Em O ritornelo em Deleuze e Guattari e as três éticas possíveis, artigo que escrevi em 2006, trago algumas características acerca do que poderia ser uma ética deleuzeguattariana, especulações que me parecem interessantes de serem compartilhadas para que possamos avançar no tema. Dentro desta perspectiva, a ética passa a ser a própria experimentação criativa, o uso, a prática, a pragmática propriamente dita. O ethos não é mais a morada segura e imutável - talvez haja mesmo a morada, uma ética como casa, mas são os próprios filósofos que nos advertem, em O que é a Filosofia? (1992), que a casa só existe mesmo para ser abandonada. A ética, portanto, comporta a própria experimentação do abandono, daquilo que tensiona a fuga, fazendo da filosofia uma pragmática de dispersão contínua. (COSTA, 2006, p.1).

Encerro esta seção grifando alguns pontos sobre a dimensão ético-política, uma vez que retornará na seção final para sustentar a tese de que a cartografia parece ser mais uma ética do que uma metodologia. Em síntese, podemos dizer que ética: 1) não é algo dado a priori, e não deve ser confundido com valores, normas, códigos ou moral; 2) envolve-se com práticas de liberdade, das possibilidades de relação com e no mundo; 3) não é um lugar de chegada a ser ocupado (ethos enquanto morada do ser), mas uma disposição ao abandono (ethos enquanto movimento de partida).

edição 15 • dezembro de 2020 Luciano Bedin da Costa Artigo recebido em 01 out. 2020 e aprovado em 05 nov. 2020

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[ 2 ] A versão brasileira de Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia foi publicada pela Editora 34 em cinco volumes, o que não aconteceu na edição francesa original, publicada em um único volume.

[ 3 ] Para este ensaio resolvi não mencionar as aparições e o uso que Guattari faz da cartografia em suas obras individuais e coletivas. Em O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise (1979/1988), Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo (1981/1987), Micropolíticas: cartografias do desejo (com Suely Rolnik, 1986), Cartografias Esquizoanalíticas (1989), As três ecologias (1989/2011) e Caosmose: um novo paradigma estético (1992), Guattari faz

A cartografia na obra de Deleuze e Guattari A cartografia aparece explicitamente na obra de Deleuze e Guattari em 1977, quando publicam Rizoma, que acabou se tornando o texto inaugural do livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, publicado em 1980 na França e em 1995 no Brasil 2. Neste mesmo ano, Deleuze publica Diálogos, em parceria com Claire Parnet, livro em que a cartografia se mostra bastante presente, ampliando algumas ideias contidas em Rizoma. O interessante é que o termo aparece em suas obras justamente em 1977, ano para o qual, na biografia de Deleuze e Guattari assinada por François Dosse, é dedicado um capítulo inteiro, intitulado 1977: o ano de todos os combates (2010; p. 299-309). Este foi um ano de muitos ataques aos dois filósofos, muito em função das repercussões de O anti-édipo, publicado em 1972, pela leitura singular feita à psicanálise e ao marxismo vigentes em quase todo o pensamento francês da época. Em Diálogos o termo cartografia aparece oito vezes: uma no capítulo Da superioridade da literatura anglo-americana (DELEUZE & PARNET, 1998, p. 49); cinco no capítulo Psicanálise morta-análise (DELEUZE & PARNET, 1998, p. 97; 125; 29; 133; 136); duas no capítulo Políticas (DELEUZE & PARNET, 1998, p. 146; 149). Em Mil Platôs a palavra cartografia aparece seis vezes: cinco aparições no platô 1. Introdução: Rizoma (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p.12; p. 21; p.22; p.23; p.30), e uma aparição no platô 8. 1874 - Três novelas ou “o que se passou?” (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p.76-77). De acordo com Dosse (2010, p. 218), embora tenha sido Guattari a apresentar a ideia de cartografia, com a parceria de Deleuze é que ganhou um corpo filosófico mais consistente, ressoando em suas obras individuais e coletivas. A experiência de Guattari em La Borde 4 e o respectivo contato com o trabalho de Fernand Deligny 5 foram decisivos na forma como a cartografia foi posicionada no pensamento dos filósofos em um paradigma ético, estético e político. Sobre a presença de Deligny

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na obra de Deleuze e Guattari, gosto muito do que o companheiro Marlon Miguel (2015, p. 58) escreve, quando diz que, Deleuze e Guattari dedicaram diversos textos à Deligny. Deligny trabalhou com Guattari e Jean Oury em La Borde entre 1965 e 1967, onde organizou ateliês de desenho, artesanato e cinema, e fez a edição de três números dos Cahiers de Fgeri. Em 1967, Deligny deixa La Borde e parte para Cévennes. Ele se instala inicialmente em Gourgas, onde Guattari tinha uma propriedade, e em seguida em Graniers, próximo do vilarejo de Monoblet no departamento do Gard, onde ficaria até sua morte em 1996. Assim, Deligny desde os anos 1960 mantém um contato constante com Guattari. Guattari cita Deligny em Revolução molecular; Deleuze em Crítica e clínica e em Diálogos (com Claire Parnet). Enfim, Deligny intervém de maneira decisiva em Mil Platôs (Rizoma, platôs 8 e 9). Deligny por sua vez dedica alguns textos a Guattari, cita ambos algumas vezes (p.ex. em uma das diversas versões do texto Camérer), mas de maneira geral de modo evasivo e ambíguo. Entretanto, na quarta edição do Cahiers de l’immuable, que não chegou a ser finalizado e nunca foi editado, Deligny cita Rizoma de maneira elogiosa, dizendo que poucos textos haviam explicado de maneira tão precisa sua prática.

Os mapas produzidos por Deligny e sua equipe junto às crianças e jovens autistas foram inspiradores para a elaboração do que chamei de “teoria das linhas” na obra de Deleuze e Guattari (COSTA & AMORIM, 2019), algo que fica bastante explícito em várias passagens de Mil Platôs e no capítulo Políticas, de Diálogos (DELEUZE & PARNET, 1998). Aliás, considero este capítulo fundamental para compreensão do projeto cartográfico deleuzeguattariano, uma vez que somos apresentados às três linhas - linhas duras, flexíveis e de fuga 6 -, assim como os perigos de cada uma delas. Se em Rizoma, a cartografia é apresentada como prática de construção de mapas, é em Diálogos que esta operação se mostra mais evidente através de uma apresentação mais elaborada das linhas em suas potências e também perigos. Considero fundamental acompanharmos com

edição 15 • dezembro de 2020 Luciano Bedin da Costa Artigo recebido em 01 out. 2020 e aprovado em 05 nov. 2020

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referências diretas e indiretas à cartografia na aproximação com a esquizoanálise e com os processos de subjetivação/ produção de desejo.

[ 4 ] Durante 10 anos (1955-1965) Guattari trabalhou como Jean Oury na clínica La Borde, situada em um castelo francês em ruínas, e dedicada ao acolhimento de pacientes psicóticos em um trabalho de tempo integral. As experiências de La Borde subsidiaram uma série de ações em prol da antipsiquiatria e da análise institucional. (DOSSE, 2010, p. 56-71).

[ 5 ] Fernand Deligny foi um educador francês, que se notabilizou pelo trabalho desenvolvido junto a sujeitos autistas em Cévennes, no sul da França, onde permaneceu por trinta anos (antes


havia trabalhado com Guattari em La Borde). Mais do que um “acompanhamento” aos autistas, sua proposta envolvia uma convivência em tempo integral com os mesmos, no que chamou de “modos de vida autísticos”. Guattari, e posteriormente Deleuze, se encantaram com Deligny pelo trabalho de cartografia realizado com as crianças e jovens do local, assim como pelas narrativas produzidas pelo mesmo e sua equipe, muitas destas assumidas pelos filósofos. De modo intuitivo podemos afirmar que, sem o contato com Deligny, suas ideias de cartografia, mapas e linhas não seriam efetivamente possíveis.

atenção a leitura do fragmento abaixo, pela forma límpida como Deleuze sintetiza a questão. Temos tantas linhas emaranhadas quanto a mão. Somos complicados de modo diferente da mão. O que chamamos por nomes diversos – esquizo-análise, micro-política, pragmática, diagramatismo, rizomática, cartografia – não tem outro objeto do que o estudo dessas linhas, em grupos ou indivíduos. (DELEUZE & PARNET, 1998, p.148).

Há dois pontos a serem considerados nesta citação; o primeiro nos diz que somos também constituídos por linhas (assim como os espaços a que nos propusemos a cartografar). As primeiras duas frases do Platô 9. 1933 - Micropolítica e Segmentaridade - são bastante assertivas neste sentido: “Somos segmentarizados por todos os lados e direções. A segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem” (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 83). O segundo ponto a ser considerado nos alerta que a cartografia (colocada ao lado da esquizoanálise, micropolítica, rizomática) é uma leitura dos indivíduos e/ou coletivos a partir das linhas que o compõem, reforçando a necessidade de que, enquanto cartógrafos, estejamos atentos a tais segmentaridades. Estes dois pontos confirmam a hipótese deste ensaio, de que há, sim, um trabalho ético exigido na constituição de uma cartografia, uma vez que cartografar as linhas e estratos envolve também um trabalho de si, uma vez que segmentamos e somos também segmentados por estes mesmos espaços. Em Diálogos, este trabalho ético (que não deve ser de modo algum compreendido como um fechamento do sujeito em si mesmo) é também apresentado em seu aspecto político, uma política entendida como o conjunto de relações entre as linhas, algo que se mantém aberto e sujeito às mais diferentes movimentações. Esta diferenciação entre ética e política

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se dá mais a título didático do que operacional, uma vez que os dois termos andam juntos em qualquer experimentação cartográfica. Em uma cartografia nada está assegurado a priori, uma vez que as linhas se compõem de modo rizomático, levando-nos a regiões imprevisíveis. De acordo com Deleuze & Parnet (1998, p. 159), “a política é uma experimentação ativa, porque não se sabe de antemão o que vai acontecer com uma linha”. No volume 1 de Mil Platôs (DELEUZE & GUATTARI, 1995) o termo cartografia aparece quatro vezes, todas referentes ao platô 1. Introdução: Rizoma. Aliás, é à figura do rizoma que a cartografia é aproximada, fazendo sentido o termo “rizomática” atribuído por Deleuze & Parnet (1998, p. 148) na citação recuada que antecede este parágrafo. Ao longo deste platô somos apresentados a seis princípios que compõem o movimento do Rizoma, sendo o 5º e o 6º relacionados diretamente à cartografia. 5º e 6º do Rizoma: Princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é estranho a qualquer ideia de eixo genético ou de estrutura profunda. (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 21)..

O que Deleuze e Guattari parecem afirmar neste fragmento é que, ao modo do rizoma, a cartografia não opera a partir das noções de centralidade e profundidade, uma vez que sua preocupação não está em localizar causas, finalidades ou motivos primeiros, mas em “agrimensá-los, mesmo que sejam regiões ainda por vir” (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 21). Podemos notar que estes dois princípios não dizem respeito a um método propriamente dito, mas a condições para que uma investigação rizomática-cartográfica se dê. Ao abdicarmos de um centro, resta a nós, cartógrafa(o)s, o exercício de certa lateralidade. Ao modo caranguejo, precisamos conquistar a habilidade de caminhar e olhar para os lados, e não somente “sobrevoar” ou

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[ 6 ] No referido artigo Introdução à teoria das linhas para a cartografia (COSTA & AMORIM, 2020) sustentamos a ideia de que há uma “teoria das linhas” em Deleuze e Guattari, na maneira como apresentam – em livros e passagens diversas – as três modalidades de linhas e seus movimentos no traçado de uma cartografia. Para o estudo das linhas diretamente na obra de Deleuze e Guattari sugiro a leitura do capítulo Políticas, presente em Diálogos, assim como do platô 9. 1933. Micropolítica e Segmentaridade, presente no volume 3 de Mil Platôs.


“mergulhar” (imagens que correspondem a modos hegemônicos de investigação, que costumam exigir distância e profundidade diante dos seus objetos de pesquisa). Gosto de pensar na cartografia enquanto uma prospecção inventiva em que a(o) própria(o) cartógrafa(o) se vê convocada(o) a enfrentar as linhas que a(o) constituem e a compor algo (de si) com o território a ser cartografado. Esta composição envolve uma espécie de dentro-fora, onde cartógrafa(o) e território se engendram num mesmo agenciamento de pesquisa, estando o movimento de um diretamente envolvido ao movimento do outro. “Ao cartografar as linhas, ou entre-as-linhas, o pesquisador-cartógrafo acaba inevitavelmente emprestando suas próprias linhas a sua pesquisa-composição, ambos comprometidos à dispersão” (COSTA & AMORIM, 2020, p. 916). A escrita da cartografia como ética É de comum acordo o lugar que a escrita e a literatura assumem na obra de Deleuze e Guattari, e isto não é diferente nas duas obras de 1977 assumidas neste ensaio. O interessante é que dois anos antes, em 1975, Deleuze e Guattari publicam Kafka: por uma literatura menor, livro dedicado à temática da literatura em sua dimensão ético-política. Já em Diálogos há um capítulo inteiro dedicado ao tema, intitulado Da superioridade da literatura anglo-americana. Ainda que o título possa parecer estranho (principalmente pela crítica que fazemos aos modos de vida da sociedade estadunidense), ele faz muito sentido quando compreendemos o combate a que se propõe a traçar, algo que fica evidente já no primeiro parágrafo:

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Os franceses não sabem bem o que é isso. É claro que eles fogem como todo mundo, mas eles pensam que fugir é sair do mundo, místico ou arte, ou então alguma coisa covarde, porque se escapa dos engajamentos e das responsabilidades. Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano (...) A literatura anglo-americana apresenta continuamente rupturas, personagens que criam sua linha de fuga, que criam por linha de fuga. (DELEUZE & PARNET, 1998, p. 49).

Se, com Deligny, o conceito de linha de fuga ganha corpo, é na leitura de escritoras e escritores ingleses e americanos que Deleuze e Guattari encontram eco para pensá-lo na escrita e literatura. Ao longo do Diálogos, e também de Mil Platôs, várias são as referências a Melville, Virginia Woolf, Whitman, Lawrence, Fitzgerald, Miller, Kerouac, dentre outros. Quando Deleuze (1998, p. 49) escreve que “Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia”, ele está justamente fazendo menção à maneira como a literatura americana lida com as linhas de fuga - não tentando ressignificá-las, atribuindo-lhes um sentido, como entende ser o caso da literatura francesa até então -, mas compreendendo-as como necessárias para que a própria vida possa colocar-se em fuga em relação ao que a aprisiona e a limita. Escrever com estas linhas aproxima-se, então, de uma operação clínica, maneira pela qual podemos afirmar que a escrita de uma cartografia é também um exercício clínico. Em 1993 Deleuze escreve Crítica e Clínica, um livro precioso a quem porventura se interesse pelo lugar da escrita no traçado de uma cartografia. O primeiro capítulo A literatura e a vida (DELEUZE, 1997, p.11-16) é muito elucidador neste sentido, assim como o capítulo 8. Whitman (DELEUZE, 1997, p. 6772). Já o capítulo 9. O que as crianças dizem (DELEUZE, 1997, p. 7379) é dedicado a Deligny e aos mapas traçados com as crianças

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autistas. Trago aqui um fragmento do Platô 8. Três novelas ou “o que se passou?”, onde Deleuze e Guattari retomam a questão do sujeito como efeito destas linhas, e da importância da escrita na constituição de uma cartografia. Pois somos feitos de linhas. Não queremos apenas falar de linhas de escrita; estas se conjugam com outras linhas, linhas de vida, linhas de sorte ou de infortúnio; linhas que criam a variação da própria linha de escrita, linhas que estão entre as linhas escritas. (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p.66).

Esta citação nos dá uma pista grande acerca do lugar da escrita em nossas cartografias, de que traçar uma cartografia envolve necessariamente um traçado de escrita, um gesto de fuga diante de determinações impostas por manuais das ciências maiores. Assim como a(o)s escritora(e)s, precisamos, enquanto cartógrafa(o)s, não só assumir os riscos, como fazer destes riscos matéria para nossas escritas. No caso das cartografias acadêmicas, há sempre o temor de não sermos “científicos” ou suficientemente “claros”. Trago aqui a provocação que Deleuze e Guattari (1997) nos fazem no Platô 14. 1440 – O liso e o estriado, quando trazem as ideias de ciência maior e ciência menor, termos que não devem ser colocados como contraditórios, uma vez que trabalham em mútuo movimento, mesmo que assim não considerem. Enquanto a ciência maior estaria voltada a domar, sobrecodificar e metrificar o espaço (tornando-o identificável a partir de uma ideia de “clareza”), a ciência menor (também chamada pelos filósofos de ciência nômade) ocuparia o lugar da expansão, da propagação, da refração e renovação deste impulso. O que Deleuze e Guattari nos mostram é que, sem um meio de propagação – garantido pelo movimento da ciência maior -, não haveria nem como falarmos em propagação. De outra forma, sem a insistente fuga às metrificações e ao que não se deixa dominar, não haveria ciência maior, dado que, uma

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vez metrificado e domado, o espaço não responderia mais a qualquer variação ou mudança. O mesmo valeria para a ciência menor, que nada seria se não afrontasse às exigências de uma ciência maior, se não passasse de algum modo por esta. Em se tratando da cartografia, ao apostar no processo e na força do encontro com suas linhas, percebemos o quanto este movimento se mostra presente no ato de investigação, uma vez que apostar em um olhar e em intervenções nômades não implica a recusa de instrumentos provenientes das ciências maiores. No entanto, alguns dilemas às/aos pesquisadora(e) s cartógrafa(o)s se mostram comumente presentes, tendo em vista que “clareza” e “objetividade” costumam ser valores presentes em parte das práticas investigativas, regulando, inclusive, editais de fomento e normativas para publicação em periódicos científicos mais “qualificados” 7. Ainda que busquemos clareza e objetividade em nossas cartografias, costuma ficar a sensação de que não estamos sendo suficientemente claros, de que nossas cartografias costumam falar mais de nós do que do suposto objeto de pesquisa. Estas são preocupações que costumo escutar enquanto orientador e avaliador, questões que me levam agora a problematizar o aspecto metodológico da cartografia, a partir das contribuições brasileiras dos últimos trinta anos. A cartografia como metodologia de pesquisa Ainda que em nenhum momento de sua obra Deleuze e Guattari tenham se referido à cartografia enquanto metodologia de pesquisa, alguns pesquisadores, sobretudo brasileira(o)s, têm se dedicado a isto há mais de trinta anos. Temos como marco brasileiro e latinoamericano a publicação de Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo, escrito por Suely Rolnik 8, fruto de sua tese de doutorado defendida em 1987. Quando atribuo a palavra

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[ 7 ] Refiro-me ao Sistema Qualis, utilizado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, que vem se apresentando insuficiente para lidar com a diversidade de práticas investigativas presentes nas universidades de nosso país, criando verdadeiros obstáculos a pesquisadora(e)s e grupos de pesquisa que se enveredam a práticas menores de investigação.

[ 8 ] No que diz respeito à receptividade do pensamento deleuzeguattariano no Brasil, devemos muito à figura da filósofa, curadora e esquizoanalista Suely Rolnik que, após um período de exílio na França (onde conheceu Deleuze e Guattari), retorna ao país difundindo o pensamento dos


dois filósofos. Fez parte do primeiro grupo de tradutora(e)s de Deleuze e Guattari, responsável pela criação do Núcleo de Estudos da Subjetividade, vinculado à PUCSP, de onde faz parte ainda hoje como docente e pesquisadora.

“marco” a esta obra, não estou exagerando. Um ano após, em 1986, Suely havia publicado, com Guattari, Micropolíticas: cartografias do desejo, um livro que se propunha a cartografar os processos de subjetivação e de produção desejante emergentes na década de 80, a partir da teoria esquizoanalítica ainda muito recente e em construção. No entanto, é em Cartografia Sentimental que o conceito de cartografia se mostra mais evidente, assumido com clareza e a partir de uma escrita bastante sedutora. Logo na nota de abertura, intitulada Cartografia: uma definição provisória, há uma tentativa de esclarecimento do conceito:

A continuidade desta nota de abertura traz uma série de elementos que serviram e servem de pistas a uma tentativa de método cartográfico. Mesmo que o livro não faça abertamente menção a um método, há indicadores de alguns caminhos e preocupações a serem tomadas quando se pretende empreender uma cartografia. Para cartografar a produção do desejo na contemporaneidade dos anos 80, Suely cria a figura do cartógrafo, espécie de personagem conceitual que a ajuda na escrita de sua cartografia. O sétimo capítulo, O cartógrafo, é tão ou mais importante que a nota de abertura, uma vez que a ele são atribuídos uma série de preceitos em uma espécie de paisagem ético-metodológica. Neste capítulo,

várias são as frases postas em negrito, que funcionam como slogans cartográficos, instigando-nos e também encorajando-nos às nossas próprias cartografias. Trago alguns destes fragmentos para que possamos ter uma ideia do tom assertivo com o qual somos apresentados à figura do cartógrafo: “A prática de um cartógrafo diz respeito, fundamentalmente, às estratégias de formação do desejo no campo social” (ROLNIK, 1986, p. 65); “(...) para ele, teoria é sempre cartografia” (ROLNIK, 1986, p. 65); “O cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado” (ROLNIK, 1986, p. 65); “ele aceita a vida e se entrega. De corpo-e-língua” (ROLNIK, 1986, p. 66); “ele não segue nenhuma espécie de protocolo normalizado” (ROLNIK, 1986, p. 66); “o que define, portanto, o perfil de um cartógrafo é exclusivamente um tipo de sensibilidade” (ROLNIK, 1986, p. 66). O capítulo é dividido em três seções: I. Manual do Cartógrafo; II. O cartógrafo político; III. A ética do cartógrafo, circunscrevendo os contornos ético-políticos da figura do pesquisador em meio a sua cartografia. Aliás, é esta terceira seção que me inspirou à escrita deste ensaio, levando-me a pensar que, para além (ou aquém) de um trabalho metodológico, a cartografia aponta para uma experiência ética. Publicado nove anos após Diálogos e Rizoma, este livro de Suely Rolnik parece trazer, com sobriedade, as provocações cartográficas de Deleuze e Guattari, situando-as num contexto latino-americano, o que para nós, pesquisadora(e)s brasileira(o)s, foi fundamental. Retornando à seção 3, trago alguns apontamentos que me parecem preciosos para pensarmos o que seria uma “ética cartográfica”. Em primeiro lugar, Rolnik (1986, p. 70-72) dirá que, em uma cartografia, a análise do desejo (seja este social ou mesmo individual) é sempre de uma ordem ética. Ao invés de sustentar valores socialmente préconcebidos, cabe ao cartógrafo (também chamado de psicólogo

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Para os geógrafos, a cartografia - diferentemente do mapa, representação de um todo estático - é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. (ROLNIK, 1986, p. 23).

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social, esquizoanalista ou analista do desejo) sustentar a vida em seu processo de expansão, sendo ao mesmo tempo suporte para que isto aconteça. Trata-se de suportar as produções do desejo nos territórios por onde traça sua cartografia, ao mesmo tempo sendo superfície para que estas produções desejantes ocorram. É por isto que faz sentido o que havia colocado no início deste ensaio, de que cartografamos em prol das linhas de fuga e das forças ainda não conformadas às formas. O que desejam os sujeitos, os grupos e os espaços com os quais trabalhamos em nossas cartografias? E o que nós desejamos nesta rede de desejos? Como estes desejos são produzidos e por quais circuitos de poder eles são barrados? Estas perguntas, construídas na leitura que fiz desta seção, parecem ser questionamentos éticos com os quais teremos que inevitavelmente lidar e enfrentar. Suas respostas nos oferecerão, não retratos fiéis dos territórios, grupos ou sujeitos, mas mapas sempre provisórios e circunstanciais, sujeitos às paisagens sócio-econômicas-culturais e afetivas de cada tempo e espaço. De toda forma, apesar de todas estas preciosidades cartográficas apresentadas por Rolnik, ainda não tínhamos no Brasil alinhamento metodológico capaz de colocar nossas investigações cartográficas no escopo das metodologias reconhecidas pela comunidade científica que gerencia os editais e comitês de éticas. Foi preciso que, em 2003, Tania Galli (a quem faço uma dedicatória no início deste ensaio) organizasse, juntamente com Patrícia Kirst, o livro Cartografias e devires: a construção do presente (FONSECA & KIRST, 2003), com a presença de vária(o)s pesquisadora(e)s envolvida(o)s na problematização da cartografia enquanto produção de conhecimento e na relação entre diversas áreas do saber. No entanto, será em 2009, com a publicação de Pistas do Método da Cartografia: pesquisa intervenção e produção de subjetividade

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(PASSOS; KASTRUP e ESCÓSSIA, 2009), que a cartografia efetivamente ocupará um lugar no escopo das metodologias ligadas às ciências humanas e da saúde. O livro, que se tornou um verdadeiro manual cartográfico, é composto por oito pistas assinadas por pesquisadora(e)s diversos. Logo na pista 1, A cartografia como método de pesquisa intervenção, Passos & Barros (2009, p.17-31) propõem à cartografia uma espécie de inversão, colocando-a ao lado de um hódos-metá, ao invés de um metá-hódos. O que está em jogo nesta inversão metodológica é a necessidade da(o) cartógrafa(o) traçar/ caminhar (hódos) para que os objetivos (metá) possam ser evocados. “Das pistas do método cartográfico queremos, neste texto, discutir a inseparabilidade entre conhecer e fazer, entre pesquisar e intervir: toda pesquisa é invenção” (BARROS & PASSOS, 2009, p. 17). Uma das questões importantes apresentadas pelo livro, e por este texto em questão, é a colocação da cartografia no escopo da pesquisaintervenção, uma composição a meu ver bastante feliz, dado o lugar já constituído da pesquisa-intervenção no universo das práticas metodológicas. No entanto, o que a cartografia propõe é um outro tipo de intervenção, uma vez que [...] a intervenção sempre se realiza por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e prática, num mesmo plano de produção ou de co-emergência (...). A cartografia como método de pesquisa é o traçado deste plano de experiência, acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção de conhecimento) do próprio percurso de investigação. (PASSOS & BARROS, 2009, p. 17-18)..

A premissa de um hódos-metá não somente impõe desafios metodológicos à cartografia (na condição de uma pesquisa-intervenção), como também redireciona o próprio sentido de intervenção. É neste sentido que Passos & Barros (2009, p. 18), amparados na leitura que

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[ 9 ] Os artigos que compõem o livro foram publicados um ano antes na Fractal, periódico científico ligado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense - UFF, vol. 25, n. 2, 2013. Disponível em: https:// periodicos.uff.br/ fractal/issue/view/ v25n2. Acesso: 5 fev; 2021.

fazem do institucionalista René Lourau, irão propor a ideia de uma “intervenção como método”, indicada em um trabalho de análise das implicações de todos os sujeitos e coletivos que integram o campo das intervenções, implicações capazes de movimentar os mais diferentes desejos, neste trânsito entre o individual e o coletivo. Em 2014 foi publicado Pistas do método da cartografia II: a experiência da pesquisa e o plano comum (PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2014), dando continuidade às proposições contidas no livro anterior 9. Se, no volume 1, as oito pistas apresentadas diziam mais da tentativa de circunscrição de um campo epistemológico, é no volume 2 que encontramos pistas relativas à experiência de intervenção propriamente dita. Ao longo do livro nos deparamos com pistas ligadas à formação, à confiança, à entrevista, ao trabalho quanti-quali, à validação dos dados, à análise, dentre outras. Na apresentação de Passos, Kastrup e Tedesco (2014, p. 9), somos alertados de que “o método cartográfico não se define pelos procedimentos que adota, mas é uma atividade orientada por uma diretriz de natureza não propriamente epistemológica, mas ético-estético-política”. Esta afirmativa vai ao encontro da provocação lançada neste ensaio, de que “a cartografia parece ser mais uma ética do que uma metodologia propriamente dita”, uma posição ética que não se reduz a um nome ou categoria “cartográfica”. O que tento sustentar aqui é a necessidade de um vínculo mais estreito entre o que entendo por “ética cartográfica” e essa forma metodológica chamada “cartografia”. Em outras palavras, penso ser fundamental a uma pesquisa que se diz cartográfica, a análise de como se relaciona ou não com os pressupostos de uma ética cartográfica ligada à produção e obstrução do desejo, do acolhimento às linhas de fuga, do respeito ao processo de constituição e assim por diante. Penso, inclusive, que uma ética cartográfica pode levar, inclusive, a modalidades de pesquisa não necessariamente cartográficas,

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mas que acolham em seus movimentos os preceitos acima citados. Este é o caso apresentado por Passos, Kastrup & Tedesco (2014, p. 9), quando dizem que “o método da cartografia é compatível e compõe com diferentes técnicas, estratégias e dispositivos de pesquisas existentes” (PASSOS, KASTRUP & TEDESCO, 2014, p. 9). Além das obras citadas nesta seção, muitas outras têm se dedicado ao tema da cartografia, seja problematizando-a conceitualmente, seja mostrando suas possibilidades em termos de investigações e em diferentes áreas do saber. De toda forma, pela leitura que tenho feito das mesmas, a questão de ser ou não um método continua em suspenso. Talvez esta não seja uma boa pergunta, uma vez que, em uma ética cartográfica, interessa-nos menos o domínio do ser, do estado das coisas, e mais a do vir-a-ser, suas potencialidades em termos de afetação e transformação. Por uma ética cartográfica em nossas pesquisas Retomo um pouco da discussão sobre ética apresentada no início deste ensaio, na tentativa de pensar o que poderia ser uma ética cartográfica no contexto de nossas pesquisas. Quando trouxe os três pontos que me parecem fundamentais na compreensão de uma ética deleuzeguattariana 10, assim o fiz na tentativa de tornar mais evidente o lugar ocupado pela criação neste processo de habitação e abandono de mundos. Se, conforme Deleuze e Guattari, traçamos nossas cartografias em prol das linhas de fuga, é importante que estejamos atenta(o)s aos movimentos de todas as linhas, com um pouco de coragem diante do que vem (na sua intensidade, tempo e forma), um pouco de prudência (para que as linhas de fuga não se tornem linhas de destruição) e um tanto de sensibilidade (para que consigamos acessar um pouco das múltiplas coisas que nos atravessam ao longo de todo percurso de uma pesquisa). Finalizo

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[ 10 ] 1) não é algo dado a priori, e não deve ser confundido com valores, normas, códigos ou moral; 2) envolve-se com práticas de liberdade, das possibilidades de relação com e no mundo; 3) não é um lugar de chegada a ser ocupado (morada do ser), mas uma fev. disposição ao abandono (lugar de onde se parte).


este ensaio com um dos meus slogans preferidos de Mil Platôs, em que Deleuze e Guattari (1996, p. 76) nos convocam a agir em prol de uma ética cartográfica, não importando ao certo se o que estamos fazendo é ou não é uma cartografia. “Devemos inventar nossas linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçandoas efetivamente, na vida”. Um apêndice: Finalizo este ensaio trazendo uma produção coletiva gerada na conversa que fiz sobre cartografia no evento Deleuze: Modos de Usar. Durante minha apresentação, realizada de modo virtual, fui convocando a(o)s participantes a pensarem em palavras e imagens evocadas a partir da ideia de cartografia. A proposta era a de que enviassem estas palavras e imagens para um e-mail, de modo que pudéssemos compor um poema às cegas com as mesmas. Durante o encontro recebemos 36 e-mails, sendo o resultado lido por mim, Vitória Oliveira Bastos e Renata Azevedo, às quais agradeço novamente. Agradeço também a toda(o)s participantes-autora(e)s que embarcaram nesta produção coletiva, oferecendo uma paisagem estética ao plano epistemológico-conceitual que, em minha fala, tentava apresentar. [ 11 ] A leitura deste poema pode ser conferida ao final do vídeo, após transcorrida 1h30min. https://www. facebook.com/ 101019808325084/ videos/ 121388268896710 7/s/121388268896 7107/

A cartografia tal como nós a vemos Poema coletivo11 Mapa dos afetos, fluxos, caminhos, percursos que nos fazem trilhar e ocupar diferentes territórios Cartografia remete-me Mapas Astrais Mapeamento

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Cartografia é um grande quebra-cabeças onde não sabemos a imagem que pode vir a ser. Terra e corpo Afeto, escrita e loucura Quando penso em cartografia me vem à mente um território fluido; composições. Quando escuto a palavra "cartografia", já me vem na memória duas palavras: Caminho....Mapa Topologia de planos e linhas compostos, sobrepostos e atravessados. Traços Trajetórias Sem começo nem fim Meio de pesquisa (meio = jeito = entre) Afetos Cartografia do corpo humano que Viagem! Rio Grande - Pelotas - Rio Grande INACABADO, possibilidade de sempre surgir/ressurgir/multiplicar tornar possível. Será POSSÍVEL? Encontros, a cartografia como um meio de criar territórios, enxergar esses territórios Mapas, desejos, afectos e perceptos. Penso em forças, potências, movimentos que agenciam os processos de vida. Penso em se colocar neste movimento: o cartógrafo só cartografa ao estar de corpo inteiro imerso no que se pesquisa. Narrativa. Fluidez. Andanças. Liberdade de pesquisa e escrita. Escape, Rizoma!

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[ 11 ] A leitura deste poema pode ser conferida ao final do vídeo, após transcorrida 1h30min. https://www. facebook.com/ 101019808325084/ videos/ 121388268896710 7/s/121388268896 7107/


Imagino um mapa, como no tempo das grandes navegações, um navio com desbravadores, com um caderno, varrendo os territórios e registrando o que vai experimentando. O que faz de uma cartografia uma cartografia é o caminhar na corda bamba daquilo que nos toca e nos fere

Tornada palavra, tenta dar conta de apresentar, exibir, fazer ver um território percorrido em suas forças, e não em suas estases. Percorrido com o corpo, com os pés no chão, palmilhado, revirando o solo percorrido. Percorrido com os olhos desfeitos do registro ótico. Percorrido com os dedos, as mãos no papel.

A gente treme treme feito vara verde Uns de fome, uns de sede, outros de mal-estar Inconstância Território A terra treme Organograma Mapas e redes Mapa Mapas Memória e mapa Mapa, de novo! Um gengibre

Um mapa vivo, feito a muitas mãos. tropicália Coletivo Imagens/rastros do deslocamento é através das palavras, entre as palavras que se vê e se ouve a imagem que me vem é de um gengibre, acho que pelos rizomas.

Narrativas.... Fluidez... Mapa com vários roteiros Rizoma Mapas, rede, narrativas, fluidez… Me vem a imagem de um gengibre, porque é um tipo de rizoma que vejo seguido. E um mapa também. Literalmente, medusas brancas no mar azul. um mapa móvel, que varia rizomaticamente…

mas afinal o que isso faz funcionar? o que isso faz dizer e falar? Deligny mora na floresta; os educadores que acompanham o projeto não sabem bem o que fazer (como trabalhar) com os autistas. Deligny sugere cartografar, fazer mapas dos trajetos realizados pelos autistas na floresta Os educadores começam, então, a desenhar mapas. As crianças autistas caminham nas florestas e os educadores desenham mapas desses passeios. Cartografar é alçar voo.

Vejo um ponto que percorre um plano e segue desenhando o mapa… A cartografia é um desenho, um mapa, uma imagem.

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Deleuze e a arte: uma leitura da obra de Anne Sauvagnargues Édio Raniere da Silva Doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Realizou pósdoutorado na Université Paris-Nanterre, França, sob orientação de Anne Sauvagnargues. Professor Adjunto do Curso de Psicologia da UFPel onde coordena o Laboratório de Arte e Psicologia Social – LAPSO. edioraniere@gmail.com ORCID: orcid.org/00000002-0216-678X.

Deleuze et l’art: une lecture de l'œuvre de Anne Sauvagnargues

Resumo: O presente trabalho oferece uma leitura sobre o tratamento dado por Anne Sauvagnargues aos processos de criação em Deleuze et l’art. Ao tomar o conceito de bloqueio e a noção de subtração como formuladores de tais processos o ensaio é levado à crítica que a filosofia da diferença realiza ao primado do sujeito. Na tentativa de compreender a relação entre esta crítica e os processos de criação prepara uma composição de três imagens: desejo, individuação, linha de fuga. Por fim, a partir de uma conhecida análise de Franz Kafka busca aproximar tais imagens do agenciamento inicialmente proposto entre bloqueio, subtração e criação. Palavras-chave: Deleuze; Arte; Anne Sauvagnargues; Processos de Criação.

Résumé: Le présent ouvrage propose une lecture sur le traitement donné par Anne Sauvagnargues aux processus de création dans Deleuze et l'art. En prenant le concept de blocage et la notion de soustraction comme formulateurs de tels processus, l'essai est porté à la critique que la philosophie de la différence fait a le primat du sujet. En vue de comprendre la relation entre cette critique et les processus de création, il prépare une composition de trois images: le désir, l'individuation, la ligne de fuite. Enfin, à partir d'une analyse bien connue de Franz Kafka, il cherche à rapprocher ces images de l'agencement initialement proposée entre blocage, soustraction et création. Mots-clés: Deleuze; Art; Anne Sauvagnargues; Processus de création.

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Introdução Deleuze et l’art é um livro de Anne Sauvagnargues publicado em 2005 pela Presses Universitaires de France – PUF – ainda sem tradução para a língua portuguesa. Partindo da problemática da criação, o presente ensaio busca oferecer uma introdução à esta obra. Não se pretende visitar todos os debates nela enunciados, nem tão pouco sintetizar o que se poderia nominar como uma teoria da criação em Anne Sauvagnargues. Nossa pretensão é bastante modesta: Trata-se de uma leitura sobre o uso que esta filósofa artista faz de Deleuze para pensar os processos de criação. Afinal, o que seria um ato de criação? Como ele se processa? Como acontece? Em que medida ele depende de um sujeito criador? Em que medida o ato de criação subjetiva o sujeito que o executa? E o mais importante: haveria mesmo um ato de criação agenciado pela subjetividade ou todos os processos relacionados à subjetivação, bem como à criação seriam disparados por uma espécie de passividade constituinte? Nos interessa, portanto, o uso que Anne Sauvagnargues faz em Deleuze et l’art da filosofia da diferença, diante o problema da criação e seus agenciamentos com a subjetivação. O ensaio está dividido em três etapas. Vamos iniciar apresentando a formulação enunciada em Deleuze et l’art sobre criação, tentaremos recuperar parte do contexto em que a fórmula aparece na obra em questão apresentando uma breve exposição do que Anne Sauvagnargues nomina as três filosofias da arte em Deleuze. Teremos como apoio, nesse primeiro movimento, trechos da entrevista concedida por Anne Sauvagnargues por ocasião de uma exposição das suas pinturas. Nessa introdução veremos que a filosofia da diferença desloca o sujeito do centro da ação criativa. Assim, para avançar sobre a problemática dos processos de criação faremos uma visita à crítica que este pensamento faz às psicologias identitárias. Esse segundo movimento se dará em torno da composição de três imagens: uma imagem do desejo – onde nos apoiaremos em Deleuze e Guattari

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(2011) e Deleuze (1976) – uma imagem da individuação a partir de Simondon (2020) e uma imagem da Linha de Fuga, onde nos utilizaremos da ficção como método para exposição da problemática (Raniere 2007, Raniere 2011, Costa 2014, Silva e Rodrigues 2018). Por fim, retomaremos o exemplo utilizado em Deleuze et l’art – Franz Kafka – na tentativa de nos aproximarmos da leitura de um Deleuze (1992) que sugere: “É preciso falar da criação como traçando seu caminho entre impossibilidades...É Kafka quem explicava: a impossibilidade para um escritor judeu de falar alemão, a impossibilidade de falar theco, a impossibilidade de não falar” (...) Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria um possível” (p.166-167).

O contexto dessa proposição nos parece relacionado com um modo de usar a filosofia da diferença. Segundo Sauvagnargues (2005) é possível cartografar três filosofias da arte em Deleuze. A primeira delas privilegia a literatura, a segunda opera a partir de uma implicação política da arte e a última é dedicada à uma semiótica da criação. Das obras iniciais até Diferença e Repetição (1968) a literatura aparece como primeira área das artes teorizada por Deleuze. De O Anti-Édipo (1972) até Mil Platôs (1980), escritos em parceria com Félix Guattari teremos uma crítica radical à interpretação – “jamais interprete, experimente” (DELEUZE, 2021) –. Por fim, na última fase, Deleuze se dedica às artes não discursivas, onde o conceito de imagem tomará cada vez mais espaço: em Francis Bacon. Lógica

da Sensação (1981) por conta da pintura; em Cinema 1: ImagemMovimento (1983) e Cinema 2: Imagem-Tempo (1985) por conta do cinema. De modo que, a definição de arte encontrada em Lógica da Sensação como ‘captura de força’ nos livros sobre cinema será apresentada como ‘imagem’. Contudo, definir arte como imagem implica compreender que a imagem não representa nada. Ou seja, uma imagem não faz referência à outra realidade. Pois ela mesma é toda sua realidade. Dizendo de outro modo, a imagem não deve ser pensada como um duplo, uma representação, mas sim como uma composição de relações de força, a qual é dada por velocidades e lentidões imbricadas numa variação de potência, como um afecto. Em síntese, trata-se de pensar a imagem como algo não redutível a significação discursiva (SAUVAGNARGUES, 2005. tradução nossa). Contudo, qual seria a relação desse contexto com a tríade criação, bloqueio, subtração? Para colocar a questão vamos utilizar como entrada uma entrevista dada por Anne Sauvagnargues em meio a exposição Particules urbaines, realizada em 2016 no Espace Richterbuxtorf – Lausanne, Suíça – na qual ela comenta o processo de criação envolvido com a sua poética em pintura. 1 Nesta entrevista escutamos a filosofartista dizendo que as canetas fazem um tanto do trabalho. Anne parece afirmar que os pincéis de feltro utilizados – as canetas de feltro – criam, em certa medida, suas pinturas. Num outro momento ela sugere que ‘Japão não é mal de trabalho. O Japão trabalha muito bem. Bravo Japão!’ Em que medida, um país – Japão – pode ser pensado como agente de um processo criativo? Vemos que é bastante nítido o deslocamento realizado por ela para fazer falar seu processo de criação. O Ato de criação não aparece localizado exclusivamente no sujeito. Anne não convoca o ato de criação como um ato particular, próprio dela como artista. Pelo

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I – Criação, bloqueio e subtração Vamos iniciar apresentando uma espécie de fórmula da criação enunciada em Deleuze et l’art: a) O Bloqueio é quem Cria b) A Criação é sempre Subtrativa

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[ 1 ] Para assistir a entrevista com legendas em português, clicar neste endereço: https:// laboratoriode sensibilidades. wordpress. com/2019/05/09/ anne-s-trilhos-fiosdesenhos-tempoe-filosofia/ Maiores informações sobre a exposição podem ser encontradas nesta página: https:// richterbuxtorf. ch/particulesurbaines-dessins/


contrário, ela parabeniza ao Japão pelo resultado da pintura. O que está em jogo aqui é uma crítica à noção de sujeito como origem do ato de criação. Já que o Japão não é um sujeito, muito menos um artista. O Japão é um país e ainda assim ele cria. Mas em que sentido isso se dá? Nossa hipótese é de que Anne Sauvagnargues esteja trabalhando com uma teoria da criação onde a relação entre ação e sujeito agente está sendo problematizada. Trata-se de pensar a ação sem o sujeito, ou com o sujeito deslocado, retirado do centro do processo. Um processo de criação onde o sujeito vem a reboque. Onde o ato de criação não tem mais sua origem no gênio artístico e criativo, onde o ato de criação não habita mais o dentro de um grande artista, quase sempre branco, masculino, europeu. Esse modo de pensar a criação pode parecer um tanto hermético para quem está se aproximando da filosofia da diferença pela primeira vez. Talvez possamos melhorar um pouco as coisas visitando algumas paisagens bem conhecidas deste pensamento nessa relação de ausência ou deslocamento do sujeito. Nossa intenção, vale a pena lembrar, é chegar ao conceito de Bloqueio e a noção de Subtração propostos Por Anne Sauvagnargues em Deleuze et l’art. Como ambos operam deslocando o sujeito do centro da ação criativa uma visita a crítica colocada pela filosofia da diferença ao primado do sujeito pode nos ajudar bastante. Não pretendemos, aqui, uma análise rigorosa dos conceitos que envolvem toda essa crítica. O que propomos é algo mais simples. Vamos tentar compor três imagens: 1) Uma imagem do desejo, onde tentaremos colocar em questão nossa relação volitiva com o mundo. Essa imagem envolve o ato de querer, a ação de desejar algo. Quando desejamos algo, que ação é essa, como ela se dá? O desenho dessa primeira imagem vai nos apresentar um modo de pensar o desejo descentralizado

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do sujeito. 2) Uma imagem da individuação, a qual envolve o ato de se tornar isso que somos. Seremos embalados aqui pela grande questão que Nietzsche (1995) encontrou no poeta grego Píndaro: como alguém se torna aquilo que é? O desenho dessa segunda imagem vai nos apresentar uma individuação sem sujeito. 3) Uma imagem da linha de fuga, donde chegaremos, enfim, aos processos de criação. O desenho dessa terceira imagem vai nos apresentar a relação entre a impossibilidade e sua linha de fuga, ou melhor dizendo, entre o bloqueio e o ato de criação. II – Desejo, Individuação e Linha de Fuga Vamos começar tentando produzir uma “imagem do desejo”. Que seria isso de desejar algo? Como esse ato se faz, onde mora o desejo? De onde ele aparece para nos convocar, nos convidar a querer algo? Para a questão que estamos tentando colocar não é tão importante a diferença entre desejar e querer. Nem os debates entre as tantas psicanálises sobre a relação do querer com a consciência e do desejo com o inconsciente. Vamos, portanto, simplificar bastante as coisas aqui e pensar desejo e querer num único bloco. Pois o que nos interessa, nesse momento, é produzir uma imagem sobre o ato volitivo, essa ação banal e cotidiana. Sempre que dizemos eu quero, ou sempre que agimos movidos por um querer, está em jogo essa ação. A ação, ou o ato de desejar algo. A psicologia moderna nos convenceu de que somos nós que desejamos. Sempre que queremos algo, convencidos por essas narrativas, temos a tendência de imaginar que o desejo está em nós. Que ele nos habita. Para algumas dessas psicologias haveria inclusive uma relação do desejo com a verdade do sujeito. Sujeito cuja alma seria revelada e/ou diagnosticada à medida que se compreende seu

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verdadeiro desejo. Para essas psicologias, radicalmente criticadas por Michel Foucault (2007; 2016) como tecnologias de saber/poder, revelar o desejo seria revelar a verdade do sujeito. De modo geral, a concepção defendida por essas psicologias é de que o desejo seria algo próprio do sujeito. Ou seja, de que a ação de querer é algo que acontece num espaço interno/subjetivo do sujeito. Do mesmo modo como o ato de criação teria origem num dentro do artista, o ato de desejar teria origem num dentro de todos nós. As psicologias modernas se dividem, basicamente, em dois grandes blocos, quando tentam explicar o ato de querer. O primeiro bloco vai relacionar essa ação com algo inato. Haveria para essas psicologias uma pulsão, um instinto, uma potência orgânica que estaria em nós antes de nos relacionarmos com o mundo. O desejo seria, portanto, próprio do sujeito, porque de certa forma nasceria com ele. Para o segundo bloco o desejo seria sempre uma produção social. À medida que o sujeito se relaciona com o mundo, vai interiorizando esse ou aquele modo de desejar, esse ou aquele modo de querer as coisas. Para esse segundo bloco o desejo não nasceria com o sujeito, ele vai sendo adquirido aos poucos. Mas o desejo seria, da mesma forma, próprio do sujeito à medida que ele é interiorizado por sua subjetividade. Ambos os entendimentos chegam à mesma conclusão: quando queremos alguma coisa, somos nós que queremos. Ou seja, o desejo está dentro de nós. Ele parte de nós. Podemos discutir se ele nasce conosco ou se ele é interiorizado em nós. Contudo, ambas as posições concordam que exista uma relação entre propriedade e desejo. Resumindo: o desejo é sempre visto como algo próprio do sujeito. Percebam como esta imagem do desejo é parecida com a imagem que algumas leituras da história da arte apresentam sobre o artista como criador. Este artista genial que a partir de algo intrínseco,

de algo que lhe é próprio, privado, cria formas de expressão. Essa genialidade pode ser inata a la Mozart que compunha com cinco anos de idade ou pode ser adquirida, a la Basquiat, que se alimentava da cidade para produzir sua arte. Contudo, não é raro que o processo de criação dessas obras seja visto como próprio, privado, particular do grande artista criador. Vejamos agora o modo como a filosofia da diferença lida com a questão do desejo. Para isso, vamos aproveitar uma pequena citação de O Anti-Édipo. “Não é o desejo que está no sujeito, mas a máquina é que está no desejo - e o sujeito residual está do outro lado, ao lado da máquina, sobre todo contorno, parasita das máquinas, acessório do desejo vértebro-maquinado”. (DELEUZE e GUATTARI, 2011, p.377) Não é o Desejo que está no sujeito. O desejo não está Dentro do sujeito. Para Deleuze e Guattari (2011) o importante não é saber se o desejo tem uma dimensão inata ou adquirida. Já que o sujeito deixa de ser visto como centro da ação desejante. Ou seja, o desejo não está no sujeito, mas a máquina é que está no desejo. A máquina toma o lugar da ação desejante anteriormente pensada como ação interna do sujeito. Mas se o sujeito não existe a imagem e semelhança do deus criador que tudo quer e tudo pode, então o que ele é? O Sujeito é um parasita das máquinas. Um acessório do desejo vertebro-maquinado. Ele não existe sem as máquinas e ele não existe antes das máquinas. O sujeito é apenas um resíduo das máquinas. Mas e a máquina, o que é? A máquina, essa sim, é desejante. Não é o sujeito que deseja, mas sim as máquinas. O sujeito vai a reboque do desejo nas máquinas. Aquilo que as psicologias imaginaram dentro do sujeito – de modo inato ou internalizado – aquilo que a psicanálise substancializou como o inconsciente deixa de fazer sentido diante isto que Deleuze e Guattari chamam em O Anti-Édipo de máquinas desejantes, e que

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mais tarde, em Mil Platôs “(...) desaparece em benefício dos conceitos de agenciamento e máquina abstrata” (ZOURABICHVILI, 2004, p.68) Para ajudar na composição dessa primeira imagem vamos ver agora um segundo exemplo. Acredito que possamos aproveitar bem um trecho de Nietzsche e a Filosofía, no qual Deleuze está pensando o método de Nietzsche, o qual ele intitula método de dramatização: Desta forma de pergunta deriva um método. Sendo dados um conceito, um sentimento, uma crença, serão tratados como os sintomas de uma vontade que quer alguma coisa. O que quer aquele que diz isso, que pensa ou experimenta aquilo? Trata-se de mostrar que não poderia dizê-lo, pensá-lo ou senti-lo se não tivesse tal vontade, tal maneira de ser. O que quer aquele que fala, que ama ou que cria? (DELEUZE, 1976, p.38).

exposição. Trata-se de sacar, mapear, apresentar as linhas de força que dão condições de possibilidade ao conceito. Trata-se de apresentar os seus agenciamentos, suas conexões, suas alianças. Trata-se de construir um mapa sobre os quereres dos conceitos. O que quer o conceito de bloqueio, o que quer a noção de subtração? Este ensaio coleciona algumas pistas que podem ser utilizadas para cartografar esse querer. Individuação Para disparar nossa segunda imagem, vamos utilizar um trecho de A Individuação à luz das noções de forma e de informação O monismo do pensamento substancialista, centrado em si mesmo, opõe-se à bipolaridade do esquema hilemórfico. No entanto, há algo em comum nessas duas maneiras de abordar a realidade do indivíduo: ambas supõem que exista um princípio de individuação anterior à própria individuação, suscetível de explicá-la, de produzi-la, de conduzi-la. (SIMONDON, 2020, p.13).

A matéria básica do método de dramatização é o querer. Contudo, é importante perceber que aqui não é o sujeito que quer. Já que no método de dramatização um conceito, um sentimento, uma crença podem ser colocados como disparadores do querer. A fórmula pode ser simplificada do seguinte modo: quando eu quero alguma coisa, o que é isso que quer em mim? Ou dizendo de outro modo: quem quer em mim quando quero isso ou aquilo? Quem aqui não é um sujeito, mas uma vetorização de forças. O método, portanto, nos ajuda a mapear as forças que nos fazem querer, as forças que nos fazem desejar dessa e não daquela forma. Se chamarmos esse conjunto de forças de máquinas desejantes talvez consigamos visualizar nossa primeira imagem: a imagem do desejo. Podemos utilizar o método de dramatização para mapear essas forças em nós, mas também para mapear as mesmas forças em um conceito, em um sentimento, em uma crença. Por exemplo, o que quer o conceito de bloqueio em Deleuze et l’art? Pergunta que nos colocamos e a partir da qual estamos tentando desenvolver essa

O que seria este algo em comum que Simondon afirma haver em teorias tão distantes como o hilemorfismo – que sabemos caro à tradição aristotélica – e o pensamento substancialista? Como podemos compreender a afirmação de que ambas supõem que exista um princípio de individuação anterior à própria individuação, suscetível de explicar, de produzir, de conduzir a individuação? Vamos recorrer a alguns exemplos do nosso contexto de trabalho, ou seja, da área da psicologia. Quando a psicologia moderna se coloca diante da questão que Nietzsche (1995) encontrou em Píndaro – como alguém se torna aquilo que é –, de que modo ela busca responder a essa questão? Embora haja uma diferença considerável de estilo, bem como de base conceitual, entre as três grandes matrizes da psicologia moderna a resposta será sempre

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a mesma. Ou seja, segundo tais psicologias compreender como alguém se tornou aquilo que é significa compreender um determinado princípio de individuação. Compreender como João se tornou isso que ele é significa compreender uma lei universal que antecede a relação do psicólogo com seu paciente. Mesmo antes de conhecer João, o psicanalista – que tem em Kant sua principal fundamentação conceitual – tem certeza de que João veio a ser quem ele é por conta de um determinado princípio de individuação. Este fundamento, esta lei universal, este princípio de individuação o psicanalista chama de Complexo de Édipo. E ele vai utilizar esse mesmo princípio de individuação para compreender como Maria, Tiago e mesmo Antônio vieram a ser como são. Se mudarmos a abordagem e por consequência a base conceitual a resposta se mantém a mesma. Por exemplo, se trocarmos a psicanálise pela fenomenologia, e por consequência pela fundamentação advinda de Husserl, a intencionalidade passa a ser nosso princípio de individuação; se fizermos o mesmo exercício com o behaviorismo, onde teremos o pensamento de Hume como base, chegaremos ao condicionamento. Ou seja, as três grandes escolas da psicologia moderna respondem à pergunta de Nietzsche do mesmo modo: Chico veio a ser isso que ele é por conta de uma lei que o precede – por conta um princípio de individuação que governa sua individuação. Por que isso acontece? Porque a psicologia moderna parece continuar agenciada à uma tradição do pensamento ocidental que faz do princípio de individuação a explicação da individuação que tenta conhecer. Desse modo, quando busca compreender um processo de subjetivação tal qual ele se apresenta à nós acaba aprisionada por leis e fundamentos que tal tradição postula como governo de nossos corpos. Esta tradição supõe que exista em todo e qualquer objeto que queiramos conhecer um princípio de individuação. Este

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princípio governa o modo como este objeto se apresenta ao mundo. Por isso, a psicologia moderna continua procurando a resposta da questão como alguém se torna aquilo que é no sujeito. Ou seja, tanto a psicanálise, como a fenomenologia, como o behaviorismo tentam conhecer a individuação a partir do indivíduo. A pergunta é colocada diante um sujeito que se apresenta à teoria. Mas o sujeito aparece pronto, individuado, já constituído. Dizendo de outro modo, o sujeito já individuado seria a base de toda psicologia moderna. Contudo, o que aconteceria se invertêssemos o trajeto. Se tentássemos conhecer o indivíduo a partir da individuação? Essa é a grande pergunta colocada por Simondon (2020). O foco do problema passa a ser a individuação e não mais o indivíduo constituído. O condicionamento, a intencionalidade, o complexo de édipo são princípios de individuação, eles não explicam a individuação. Pois ao invés de explicar como alguém se torna aquilo que é o princípio de individuação sempre esconde, tamponeia a individuação no sujeito constituído. Contudo, como já vimos, este sujeito já constituído, já individuado, que tanto interessa às psicologias modernas, para Deleuze e Guattari (2011) vem a reboque das máquinas desejantes. Ele nada mais é que um parasita das máquinas. A novidade trazida por Simondon e que tanto Deleuze como Anne Sauvagnargues vão investigar em profundidade é o campo pré-individual, a hecceidade, a qual podemos simplificar pensando numa espécie de individuação sem sujeito. Finalizamos o desenho dessa segunda imagem apresentando aqui uma hipótese: tanto o conceito de Bloqueio como a noção de Subtração em Anne Sauvagnargues estão agenciados com o pré-individual.

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Linha de Fuga Imagine um grande duto, um cano por onde corre, com muita pressão, certo volume de água. Este cano percorre uma distância considerável, vamos dizer de uns dois ou três quilômetros por dentro da floresta e sobre alguns campos, onde vivem animais, até chegar a sua casa. Este cano conecta uma cisterna que existe no meio da floresta, para captação d’água em um riacho com a caixa d’água em sua casa. Certo dia, ao final da tarde, você vai regar as plantas e descobre que não tem água. O que você faz? Você vai percorrer o caminho que leva da sua caixa d´água até a cisterna na floresta. Após alguns minutos caminhando você descobre o problema, o cano estourou, a água está jorrando no pasto. Talvez tenha sido uma vaca que pisou no cano, talvez você tenha passado a cavalo sem perceber, pouco importa. Você reconecta o cano e amarra uma borracha na emenda. Por segurança você continua o trajeto até a cisterna, pois pode haver outros vazamentos. Mais alguns minutos de caminhada e você descobre uma fissura no cano, por onde espirra um pequeno volume de água, talvez tenha sido o desgaste do tempo, o sol, a umidade, as intempéries. Você passa uma fita emborrachada em torno do vazamento e segue caminho. Mais alguns passos e novamente você encontra novos vazamentos. Alguns maiores, outros menores. Em todos eles você realiza o mesmo procedimento. Enfim, ao chegar na cisterna verifica a captação e a saída de água. Está tudo bem. Você retorna para casa e escuta o som d’água que abastece sua caixa. Um sorriso satisfeito percorre seu rosto. Você ceva o mate, busca a chaleira no fogão a lenha e contempla o resultado sinfônico do seu trabalho mateando. Mas ainda não é possível regar a plantação, a caixa precisa encher um pouco mais. Então, você apanha um bloco de anotações na biblioteca, senta-se na varanda e desenha a seguinte paisagem:

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1) A cisterna na floresta é o CAOS, o mesmo caos que Deleuze e Guattari te apresentaram em O que é a Filosofia?. 2) O sistema de abastecimento – conjunto de canos – que traz a água da floresta até sua casa é um território, o mesmo território que Deleuze e Guattari te apresentaram em O Anti-Édipo e que depois você encontrou também em Mil Platôs. 3) Os vazamentos ao longo do cano são desterritorializações, da mesma forma apresentados em o OAE e Mil Platôs. 4) Quando você consegue tamponar todos os vazamentos ao longo do cano, quando você consegue tamponar todos os vazamentos ao longo do território a água que jorra na sua caixa d’água é a opinião. A mesma opinião descrita por Deleuze e Guattari (1992B) em Do Caos ao Cérebro. Você sabe que um território – ou seja o conjunto de canos que transforma o caos em opinião – é constituído de três materiais diferentes: o reino absoluto do sim e do não + a alternativa como lei do possível + a escolha como pseudo liberdade do desejo sujeitado aos recortes preestabelecido. Nesse momento você se lembra de Zourabichvili, vai novamente até a biblioteca e apanha o Vocabulário de Deleuze. Sim, está lá, na página 61. Pois se não se trata de fugir para fora de, mas de fazer fugir, há de certo algo de que se foge e que se confunde com o fazer fugir: o reino absoluto do sim e do não, da alternativa como lei do possível, da escolha como pseudo-liberdade do desejo sujeitado aos recortes preestabelecido. (ZOURABICHVILI, 2004, p.61)

Numa tarde fria, na semana passada, cortando lenha com o machado você se questionava: afinal de contas a linha de fuga seria uma fuga do que? Do que se foge? Do que se busca escapar? Foi

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Zourabichvili que lhe explicou: 1) do reino absoluto do sim e do não, 2) da alternativa como lei do possível, 3) da escolha como pseudoliberdade do desejo sujeitado aos recortes preestabelecidos. Em síntese, busca-se escapar da opinião. O modo como a opinião lida com o caos, seja via jornais e formatos mais tradicionais de comunicação, seja via redes sociais contemporâneas, é sempre oferecendo o sujeito como saída para o insuportável do não sentido. Quando nos aproximamos do coração selvagem da vida, quando compreendemos intuitivamente que não há um sentido natural ao qual possamos recorrer, quando nossos pequenos barcos levantam âncora e se lançam ao mar, logo na primeira onda aparece a opinião nos oferecendo o sujeito como garantia de sentido. Você é um sujeito, nos diz a opinião. Você tem liberdade para escolher entre isso ou aquilo. É você quem decide. O que você quer? Qual o seu verdadeiro desejo? Se você conhecer o seu verdadeiro desejo você vai ser feliz. Você não precisa se esforçar para criar sentido diante o não sentido que o caos impõe. Eu, a opinião, vou lhe dar o meu sentido. Basta você aceitar que é um sujeito livre e que tem escolhas diante a liberdade ontológica que te constitui. Esqueça o caos, durma tranquilo em meus braços. Você é alguém especial. Você é quem está no comando de tudo. Você será um vencedor, basta você fazer as escolhas certas. Basta você ser você mesmo. Seja mais você! Depois de molhar a roça você toma um banho quente, janta e vai dormir tranquilo. Como de costume o galo canta às cinco e meia da manhã, você acorda e vai preparar o café, mas nada de água na torneira. Um tanto irritado com a situação você calça as botas, passa a mão no facão, coloca duas frutas e um livro na mochila e caminha, ainda no escuro, rumo a cisterna para verificar se houve

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algum entupimento. Ao chegar ao local, no meio da floresta, a grande surpresa. Todo processo de reterritorialização que você havia feito no dia anterior se rompeu. São dezenas de vazamentos ao longo do território. O cano está todo furado. O que fazer? Você não faz a menor ideia... O sol está nascendo, as cores do arrebol misturadas ao verde do campo compõem uma belíssima imagem. Nessa paisagem incrível sua percepção muda. É nesse instante, neste preciso instante, que você traça uma linha de fuga. Você percebe que o abastecimento de água bloqueado pelos vazamentos é um ótimo método de irrigação para sua plantação de melancia. Você compreende, então, que a solução não é reterritorializar o sistema, mas fazer vazar mais. Fugir é Fazer fugir. Foi isso que você aprendeu com Zourabichvili. Fugir é fazer fugir. Você apanha o facão e ao longo do território insere novos vazamentos no cano. Aos poucos vai constituindo o traçado da sua linha de fuga. Um sorriso exuberante se estende ao longo da sua face. Depois de algum tempo de trabalho você se senta num tronco caído, apanha uma fruta na mochila e abre o livro de Anne Sauvagnargues – Deleuze et l’art – na p.146. Enquanto saboreia a fruta escuta Anne lhe dizendo o seguinte: A postura criadora revela o bloqueio ao mesmo tempo que sua linha de fuga. O que é criador é a realização do bloqueio, cuja impossibilidade não constitui uma privação, ou uma lacuna, mas uma remoção (ablação; subtração) positiva que desencadeia modificações ativas, linguísticas e literárias. (SAUVAGNARGUES, 2005, p.146. tradução nossa).

III – Deleuze: modos de usar Podemos agora retomar a fórmula da criação em Sauvagnargues (2005) apresentada no início dessa exposição.

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1) O ‘Bloqueio é quem Cria’ 2) ‘A Criação é sempre Subtrativa’. O bloqueio é quem cria, não o sujeito. Porque agora sabemos que o sujeito está sempre a reboque do desejo. Mas se o grande artista que em outros tempos chegamos a pensar como gênio criador está sempre a reboque do desejo, se este “grande homem” quase sempre branco e europeu é um parasita das máquinas desejantes, até mesmo o conceito de Bloqueio precisa ser pensado diante o campo pré-individual. Pois não é o sujeito quem escolhe bloquear. O bloqueio de certa forma, aparece aqui também como uma hecceidade. Uma individuação sem sujeito. Tal qual as cinco horas da tarde, tal qual o nascer do sol. A criação é sempre subtrativa, porque ela faz uma remoção. Ao subtrair algo constituído pela opinião o caos reaparece diante dos nossos corpos. Trata-se de remover, extirpar, cortar o que temos condições de cortar no guarda-chuva da opinião. Uma vez estilhaçado, uma vez rasgado, uma vez perfurado este guarda-chuva o caos volta a se apresentar. É diante o caos que se pode criar. A criação está relacionada ao mesmo tempo com o bloqueio e com a linha de fuga. O que fazemos ao criar é traçar uma linha de fuga diante um bloqueio. No sexto capítulo de Deleuze et l’art – L’art mineur – Anne Sauvagnargues apresenta Franz Kafka como exemplo dessa relação entre bloqueio e criação. Na obra que Deleuze e Guattari (2018) dedicam a Kafka, bem como na entrevista dada por Deleuze, em 1985, L’autre Journal – Os Intercessores – temos a noção de impossibilidade – impossibilité – como eixo da análise.

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É preciso falar da criação como traçando seu caminho entre impossibilidades... É Kafka quem explicava: a impossibilidade para um escritor judeu de falar alemão, a impossibilidade de falar tcheco, a impossibilidade de não falar. (...) A criação se faz em gargalos de estrangulamento. (...) Se um criador não é agarrado pelo pescoço por um conjunto de impossibilidades, não é um criador. Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempo cria um possível. É preciso lixar a parede, pois sem um conjunto de impossibilidades não se terá essa linha de fuga, essa saída que constitui a criação. (DELEUZE, 1992, p.166-167).

A relação entre bloqueio, subtração e criação é, portanto, uma elaboração do pensamento de Anne Sauvagnargues. Ao qual ela chega trabalhando sobre a filosofia da diferença. Este traçado que vai da impossibilidade ao bloqueio, ainda que sutilmente, aparece numa entrevista recentemente publicada, onde a filósofa e artista explica que chegou a esta composição encorajada pelo pensamento que pesquisa. Anne parece perseguir um modo de pensar a criação que nos permita abandonar fórmulas, tidas por ela como reacionárias, como as que aproximam resistência e criação. É justamente nesse sentido, de uma linha de fuga ao bloqueio e não de um modo de resistência que a filosofartista retoma as análises que Deleuze e Guattari dedicaram à Franz Kafka. Eu acho que é muito importante pensar a criação não como alguma coisa que escapa, mas como algo que se torna o sintoma da impossibilidade, ou do bloqueio de uma sociedade. Sou encorajada a pensar assim porque trabalhei muito sobre Guattari e Deleuze e é exatamente assim que eles explicam o caráter revolucionário de Kafka. (...) Kafka não pode escrever em alemão, ele não fala muito bem o alemão, e com todas essas condições: judeu, tcheco, falando o iídiche, (...) ele é obrigado a se colocar diante a grande literatura alemã, e por causa de todas estas impossibilidades, ele produz uma nova língua, que é ao mesmo tempo uma língua que dá o diagnóstico desse novo mundo burocrático. Ou seja, não há resistência direta, mas linha de fuga. Em outras palavras, disparidade, quer dizer, transdução da situação. (SAUVAGNARGUES, 2020, p.8)

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Arte e criação não estariam, portanto, relacionadas com processos de resistência. Kafka é tomado como exemplo nesse sentido pois traça uma linha de fuga diante o bloqueio que a língua lhe impõe. Nesse agenciamento entre a linha de fuga e o bloqueio é que estaria o seu processo de criação. Kafka não resiste à língua, ele a perfura, a faz fugir. Este trabalho de minoração, de uma literatura menor, é pensado por Deleuze e Guattari (2018) entre a impossibilidade e a criação de possíveis. Em 1975, ano de publicação de Kafka: por uma literatura menor, as questões enfrentadas forçaram a criação de conceitos que retomados em 2005 – ano da publicação de Deleuze et l’art – encontram novos problemas e sentidos. Deleuze et l’art realiza uma periodização partindo das exterioridades, onde define um sistema pelos seus pontos de força exteriores, e não por uma consistência interna intrínseca. Assim, para cartografar as linhas de força envolvidas no processo de criação deste filósofo Anne Sauvagnargues, ao mesmo tempo, torna sensíveis os devires do pensamento de Deleuze a propósito da arte e cria novos conceitos diante os problemas que enfrenta. Não se trata de comentar uma obra, no sentido de acrescentar uma nova leitura. Mas de fazer uso de um pensamento extraindo, amputando cirurgicamente. Este modo de usar Deleuze está atravessado pela composição que se faz com ele, pela transformação do pensamento, por aquilo que se pode criar com ele. A crítica não procede por adição de um comentário a mais, mas elimina um comentário a menos. Esta vizinhança clínica é aqui redobrada pelo fato de que a peça de Bene é ela mesma uma releitura de Ricardo III de Shakespeare, mas uma releitura desejada como extração, o que permite a literatura (Bene) como a filosofia (Deleuze) compor com as obras e as transformar. Criar é, portanto, realizar uma amputação cirúrgica. (...) A postura subtrativa desenvolve assim a definição da literatura menor. (SAUVAGNARGUES, 2005, p. 19. Tradução nossa)

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Deleuze et l’art nos parece, portanto, um modo de usar Deleuze. Modo subtrativo a partir do qual novos conceitos são criados. Ao invés de uma canonização passiva cuja tendência seria a de aprisionar a obra numa invariante cultural – regra maior deleuziana – afirmar o uso, no sentido de uma composição com o pensamento da diferença o mantém vivo. Além disso, maltratar Deleuze com elogiosas exposições, esforçando-se para conservá-lo intacto dentro de uma invariante ilusória acabaria por reificá-lo. Por conseguinte, Deleuze et l’art nos oferece, essa é a leitura que apresentamos aqui, um modo de criar com Deleuze. REFERÊNCIAS COSTA, Luis Artur. O corpo das nuvens: ouso da ficção na Psicologia Social. Fractal, Rev. Psicol. [online]. 2014, vol.26, n.spe, pp.551-576. ISSN 1984-0292. http://dx.doi. org/10.1590/1984- 0292/1317. _____. Nietzsche e a filosofia. Tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. _____. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B.L. Orlandi. São Paulo, Ed.34, 2011. _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia vol 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Celia P. Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. _____. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munhoz. São Paulo: Editora 34, 1992b. _____. Kafka: por uma literatura menor. Tradução Cíntia Vieira da Silva. São Paulo: Autêntica, 2018. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 2007. _____. Subjetividade de verdade. Trad. Rosemary C. Abilio. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

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NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: Como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. RANIERE, Édio. O Jardim das ilusões. Blumenau. Ed. Cultura em Movimento, 2007. _____. Nute: cartografia de um teatro. Blumenau: Ed. Liquidificador, 2011. SIMONDON, Gilbert. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução Luís Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Ed. 34, 2020. SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et l’art. Paris, Press Universitaires de France – PUF – 2005. SILVA, Édio Raniere da e RODRIGUES, Carla. Educação e produção de subjetividade: o ressentimento como máquina de produzir corpos. Reflexão e Ação: Rev. EDU. [online]. 2018, vol.26, n.2 pp.74-85. ISSN online : 0104-6578. Doi: 10.17058/rea. v26i2.11664 ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Tradução André Telles. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004.

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Provocações para fazer/pensar a pintura: notas de ateliê Clóvis Vergara de Almeida Martins Costa Artista plástico, Doutor em Artes Visuais/ concentração Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas. Em 2015, realizou o Programa de Doutorado-Sanduíche na Universidade de Lisboa - Portugal (Bolsista CAPES). Atualmente vive na cidade de Pelotas/ RS, onde mantém seu ateliê na Praia do Laranjal. Desenvolve pesquisa ligada à pintura e suas distensões por meio da experiência direta na paisagem. clovismartinscosta@ gmail.com

Provocations for making / thinking about painting: studio notes

Resumo: O texto tem como objetivo provocar o debate acerca do campo da pintura por meio da apresentação de trabalhos realizados pelo autor entre os anos de 2000 e 2020. Partindo da pintura enquanto conceito e campo de consistência para a imagem do pensamento, margem de enfrentamento e dobra, busca-se problematizar o seu campo operacional e ativar a criação de uma hipótese pictórica. Palavras-chave: Pintura; Margem; Distensão.

Abstract: The text aims to provoke a debate about the field of painting through the presentation of works executed between 2000 and 2020. Starting from the standpoint of painting as a concept and a field of consistency for the image of thought, a margin of confrontation and fold, we intend to problematize its operational field and activate the creation of a pictorial hypothesis. Keywords: Painting; Margin; Distension.

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A produção em Pintura que serve como motivo, pano de fundo ou plano de projeção para este escrito refere-se a uma investigação que venho realizando desde o início dos anos 2000. Tenciona-se aqui proporcionar acessos ao universo do ofício da Pintura, formado naturalmente pelo ateliê físico, com suas paredes, iluminação e materiais específicos do meio pictórico, mas fundamentalmente pelos espaços gerados pelo encontro, o atravessamento e o contado com as espessuras do tempo. Pintura é coisa mental, mas haveria pensamento sem um lugar para sua enunciação, para o seu engendramento, para a soma de circunstâncias e afetos que perfazem suas imagens? Estendamos então um plano, um tecido sobre a margem. Há 20 anos, realizo experiências com a paisagem através da elaboração de pinturas, textos, fotografias e vídeos para os quais o ponto de partida se constitui por paisagens litorâneas. Caminhadas, passeios de barco, campereadas e aventuras diversas impulsionaram minha atuação no campo da arte e deflagraram um processo contínuo de experiências que encontram meios variados de enunciação, como a fotografia, o vídeo e a produção textual. Entretanto, é através da pintura que encontro o elemento de ligação para as diferentes materialidades geradas no âmbito da experiência: espaço de embate, negociação e convívio para diferentes linguagens. Os primeiros trabalhos realizados no período da graduação em Artes Visuais no Instituto de Artes, I. A da UFRGS, entre 1994 e 1998, apontavam o interesse em investigar as possibilidades de convívio entre elementos distintos no campo visual através de colagens, sobreposições de materiais e de faturas pictóricas (assim como a mistura entre o desenho, pintura e fotografia). Elaboravam-se, portanto, procedimentos construtivos na elaboração dos trabalhos. Esta vontade de agregar materiais perpassou diversos experimentos na pintura, desde trabalhos relacionados com o universo da abstração

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geométrica até a criação de assemblages e pinturas-objeto. As pinturas combinadas realizadas naquele período tensionaram os limites da pintura e deflagraram a experimentação da superfície enquanto espaço de contato com o mundo. Por ter nascido e crescido numa casa à beira do Guaíba, em Porto Alegre, acredito que sempre estive atento ao que aquela configuração litorânea poderia trazer. Literalmente, muitas coisas chegaram pela margem: embarcações, despojos do rio e toda a sorte de objetos e sensações. A partir do ano 2000 comecei a investigar a margem do rio como forma de ateliê aberto, onde coletava objetos, observava a paisagem e encontrava um espaço-tempo para a reflexão escrita. A pintura, portanto, constituiu-se na minha produção como campo catalisador de experimentos; espaço que abriga os indícios do contato entre a superfície (a tela) e a margem do rio, território escolhido para prospecções que deflagram os processos aqui analisados. Cabe sublinhar aqui os procedimentos de contato que engendram o campo pictórico, desde os deslocamentos na margem adentrando o rio até a elaboração da pintura em ateliê. Contato do meu corpo com a paisagem, entre a fotografia e a tela, entre esta e a margem e entre a tela e a ação da pintura (tecido carregado, em suas tramas, de informações resultantes da sequência de aderências e impregnações). Portanto, o contato configura a tessitura, o emaranhado de experiências que estruturam o campo pictórico (Figura 1).

Figura 1. Filtro. Acrílica, areia e impressão fotográfica sobre algodão cru. 120 x 60 cm. 2013, Clóvis Vergara de Almeida Martins Costa. Foto do autor.

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[ 1 ] Técnica de impressão na qual a imagem, impressa em papel transfer, é transferida ao entrar em contato com a superfície do tecido através de calor e pressão.

Dentre alguns desdobramentos destas experiências, decorre a captura de imagens pela fotografia, impressas posteriormente em algodão cru por meio do processo denominado sublimação 1. Após a impressão de imagens, este tecido retorna à margem para sofrer interferências advindas do contato entre a água, a areia e toda a sorte de ocorrências que animam este local: vento, chuva, trânsito humano e animal. O suporte que carrega as imagens, bem como os indícios da permanência sobre a margem, é deslocado ao atelier para ser trabalhado através dos procedimentos específicos da pintura: recobrimentos, transparências, elaboração de campos de cor, raspagens e inscrições de linhas e planos. Configura-se, então, um processo dividido em várias etapas, que inicia na ação direta na paisagem e culmina no ambiente reservado e interno do atelier. Encarando o tempo como distensão, pode-se perceber que essa investigação ocorre em meio ao tempo entre os procedimentos. Nas passagens entre suportes distintos e na migração de linguagens, o campo pictórico estrutura-se como espaço para a ocorrência e a duração destas temporalidades. Surge então a seguinte hipótese: a pintura encarna a copresença de diversos acontecimentos (dentre os quais a migração de linguagens e a proliferação de sentidos) para fazer reverberar, através de sua superfície impura, a duração e a distensão da experiência. O conceito de distensão é utilizado aqui porque a migração da imagem entre os meios fotográfico, pictórico e ambiental revela, de alguma forma, camadas temporais distintas que se condensam no espaço da pintura. A imagem da experiência passada na margem, transubstanciada em pintura, gera a atualização da ocorrência que originou sua captura. A fotografia, portanto, ultrapassa aqui seu caráter indicial para promover uma imagem pictórica em via de existir. A relação com a margem aqui se estende para pensar a

pintura enquanto espaço de fronteira, zona onde o olhar aporta e de onde o olhar se projeta. A eclosão dos sentidos proporcionada pela vivência das margens é análoga à experiência diante do campo pictórico (podemos ampliar a noção de campo pictórico para todos os elementos que perfazem o processo da pintura, incluindo o próprio lugar da experiência). O acontecimento-pintura é aqui então pensado enquanto instante pictural. O procedimento de transferência da imagem fotográfica para o campo pictórico consiste numa operação de ancoragem de um referente extraído do real, por meio da experiência direta, no espaço específico da pintura. Assim, a noção de pintura como zona de aporte, uma vez que sua fisicalidade acaba por se configurar como uma espécie de litoral propício para a recepção de informações visuais provenientes da imagem fotográfica e de materialidades diversas. Infiltrações na epiderme/superfície do tecido, as imagens impressas engendram determinadas faturas no campo pictórico: subdivisões de planos em cores esbatidas (geralmente nas primeiras camadas utilizando o azul e o óxido de ferro vermelho) que se sobrepõem, passando por um processo de maturação da cor. Por meio de inúmeras camadas de tinta, formam-se espaços demarcados por linhas e zonas de cor. O plano sofre uma espécie de inflexão, a partir da qual a visão precisa se ajustar a cada retorno ao campo visual. Alguns predicados essenciais ao fazer pintura podem ser colocados em foco para aprofundar a discussão acerca dos seus domínios, assim como provocar algumas contribuições para a sua distensão, refletindo sobre possíveis desvios e atravessamentos aos quais a linguagem pictórica parece estar sujeita. Talvez nenhuma categoria de arte tenha questionado sua natureza e problematizado tanto seu estatuto quanto a Pintura.

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Inerente à História, a prática pictórica está presente, misturada à própria constituição (invenção) da humanidade. Das pinturas rupestres, passando pelas diversas formas de enunciação na arte dita primitiva, do adorno do corpo, dos vasos e cântaros à própria arquitetura, a pintura transita entre o divino e o comezinho, se desprende dos muros e se encarna nas telas portáteis, incitando a coleção e o trânsito das imagens que pouco a pouco, não mais indexadas a uma narratividade, passam a se constituir como dispositivos de enfrentamento e investigação do real. Numa pedagogia da leitura de imagens, a Pintura criou um alfabeto plástico composto por sua substância colorida e percorreu, lado a lado com o texto, a história dos eventos que marcaram as civilizações. Através da pintura a ótica sofisticou seus avanços científicos na criação de câmaras escuras e caixas de projeção, produzindo como instrumental em seus processos, objetos análogos ao olho. Escrutinou, portanto, o olhar em operações que gravitaram a matemática, a física e a química das cores. Precursora da fotografia, do cinema e da imagem digital, a velha arte da pintura resistiu em seu repto pelo olhar ativo. Trata-se da fundação do olhar a cada Pintura. A pintura pode ser muitas coisas, incorporar diversas linguagens, entrar em cópula com o mundo, misturar-se ao espaço físico real e fazer dele sua trama, sua trança, estrutura, alvo, suporte e espessura. Fratura o tempo e o entrelaça a cada fatura, gesto e decisão. A pintura se reinventa. Tem como uma de suas consequências a transformação de um olhar pragmático em um olhar pensante, inventivo, que estranha e reconfigura o real. Uma noção bastante comum é ver a pintura como imagem construída sobre a tela (tal como um anteparo de projeção). Vale aqui a indicação do livro O conhecimento secreto, (HOCKNEY, 2001) no qual David Hockney trata deste segmento da pintura que busca construção

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da imagem como análogo do real, valendo-se de dispositivos óticos de projeção de imagens. A pintura se enuncia como espaço receptor, zona de aporte de imagens trabalhadas em operações de seleção e agrupamento. Ao longo de seu desenvolvimento na história, a pintura ligada a mimese, indicava, por sua constituição fragmentária, um raciocínio ligado à colagem, à montagem de uma cena. Paradoxalmente, a representação realista, resultante de uma visão objetiva, acabava por distorcer e alterar esta realidade justamente em virtude do uso de mecanismos que, a princípio, estariam a serviço do aprimoramento da sua representação. As relações imbricadas entre fotografia e pintura ocorrem de longa data. Ambas intencionam (ao menos quando percebidas como instrumentos de representação/ apresentação do visível) capturar, no plano visual, imagens do mundo percebido, como se através de uma visão objetiva do real, por meio do quadro/retângulo (tela de projeção da imagem), fosse possível mensurar e apreender o espaço externo ao sujeito. Percebe-se que existe um movimento de retroalimentação em seus códigos ao longo da história. Reciprocamente, pintura e fotografia distensionaram seus limites. Na produção que analiso aqui, a presença da fotografia e da pintura ocorre numa zona de distensão, auxiliada pelas possibilidades que a fotografia digital apresenta. Nota-se aqui um princípio elementar da linguagem pictórica, a noção de aderência, colagem, montagem do Um-no-Outro para a qual atenta Didi-Huberman em, A pintura encarnada, onde a soma de elementos conflui sobre e sob a face da imagem: Uma trança entre a superfície a profundidade corporais, uma trança de branco e de sangue: “branco untuoso, homogêneo, sem ser pálido nem opaco”, mais uma “mistura de vermelho e de azul que transpira imperceptivelmente”. Mas é uma trança temporalizada, por assim dizer: a passagem colorida que não deixa de ser uma dialética indiscreta, sempre imprevisível, do aparecimento (epiphasis) e do desaparecimento (aphanisis). (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.36).

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Encontramos exemplos dessa superfície dialética nos trabalhos de Paul Cézanne e Francis Bacon: Merleau Ponty (2004) observa Cézanne como o homem acrescentado à natureza (quem olharia para quem na relação pintor/montanha?), Gilles Deleuze (2007) indica que Francis Bacon revela o homem acoplado ao animal, uma pintura devir desta zona de indiscernibilidade. Local onde o olhar avança e recua, onde se localiza a disjunção composta por aparecimentos e desaparições, assomos e crepúsculos sempre em via de alternarem suas ocorrências trançadas, espaço de alucinação, onde para acessar a superfície torna-se necessário aportar o subterrâneo, os debaixos que ecoam e escapam pela margem sempre incerta. Excesso e infusão de um olhar. Pintura como zona de indiscernibilidade entre o homem e o animal, assim considera Deleuze a obra de Francis Bacon. A representação/ apresentação da figura enquanto rastro, consequência e motor do gesto pictórico. Um mar de carne, desilusão figural (DIDI-HUBERMAN, 2012), o oposto do trompe-l’oeil: afirmação do artifício, da brutalidade do fato. Deleuze alucina a concepção da pintura em Bacon, conectando a carne da pintura à carne humana, como se o fato pictórico perfizesse a zona indiscernível entre o homem e o bicho: o campo pictórico aqui pode ser compreendido como zona de acumulação, coagulação e síntese da sensação (DELEUZE, 2007). Por condensar diversas temporalidades nas conjunções espaço temporais de seu tecido ex-posto, a pintura promove a urdidura do olhar encarnado. Sua encarnação é golpe, vestígio, pentimento. Além desta noção de acúmulo e síntese da sensação, a pintura investe para o fora de campo, para um além de sua inscrição estrita ao quadro, ao corte da imagem, uma possibilidade trazida pela fotografia no que toca ao prolongamento do espaço fora de campo. Ao promover

Para Kaprow, o legado de Pollock se estende, acionando uma experiência de escala diante da pintura que nada tem a ver com a ilusão da perspectiva renascentista. Trata-se de uma escala diante do oceânico, de um deslimite que impulsionou a arte do século 20 aos mais variados aportes experienciais, materiais e temporais. Um fora de campo, como um fora de campo específico, ativando misturas, combinações de meios e atravessamentos dos mais variados. A própria denominação combine-painting já pressupõe uma contaminação, um atravessamento das coisas do mundo no corpo da pintura. Observo, em relação à produção de Robert Rauschenberg, uma aproximação com o modo através do qual a fotografia aparece em minha produção atual, ou seja, a imagem fotográfica como parte

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um corte no real, a fotografia coloca em suspensão toda a informação que não aparece no campo visual; operação que aciona os limites do quadro enquanto borda, fronteira com o espaço contíguo ao quadro. Um fora de campo que se distende ao infinito, ao cosmo, como nas pinturas all over de Jackson Pollock. Allan Kaprow, no texto O legado de Jackson Pollock, reflete: Não penetramos numa pintura de Pollock por qualquer lugar (ou por cem lugares). Parte alguma é toda parte, e nós imergimos e emergimos quando e onde podemos. Essa descoberta levou às observações de que sua arte dá a impressão de desdobrar-se eternamente – uma intuição verdadeira, que sugere o quanto Pollock ignorou o confinamento do campo retangular em favor de um continuum, seguindo em todas as direções simultaneamente, para além das dimensões literais de qualquer trabalho. (Embora a evidência aponte para um relaxamento do ataque à medida que Pollock chegava à borda de muitas de suas telas, nas melhores delas ele compensava isso virando sobre as costas do chassi uma parte considerável da superfície pintada.) Os quatro lados da pintura são, portanto, uma interrupção abrupta da atividade, que nossa imaginação faz seguir indefinidamente, como se se recusasse a aceitar a artificialidade de um “final”. (KAPROW, 2006, p.41).

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integrante do tecido, cumprindo com a função de suporte para a pintura. Segundo Laura Flores: Rauschenberg constrói suas imagens utilizando a acumulação de um meio tomado como um todo: a Fotografia se torna uma textura. Assim, na obra de Rauschenberg, cada imagem fragmentada perde valor semântico: a foto é simplesmente uma base textural sobre a qual se pode ou não pintar. A reunião de imagens individuais tem valor como conjunto, amontoamento ou acumulação. (FLORES, 2001, p.248).

Contudo, a intersecção entre fotografia e pintura nas operações que envolvem este projeto produz uma rede imbricada de sentidos para estas duas categorias de arte. A fotografia não é apenas uma base ou fundo textural, posto que trama com o tecido a configuração do campo pictórico. Contrapondo-se a uma ideia de encadeamento histórico, destaca-se a obra de Robert Rauschenberg pelo emprego simultâneo de meios fotográficos e pictóricos em seus trabalhos. Sua produção, ao articular a apropriação de materiais e referências, a mistura de linguagens, a contaminação entre os meios (gestos atrelados a ironia duchampiana a desconstrução dadaísta), coloca-se numa perspectiva que em nada se relaciona com algum tipo de tributo à tradição. O que se percebe na obra deste artista emblemático para a compreensão de uma pintura de cunho pós- moderno, são superfícies portadoras de elementos antagônicos, onde o entrecruzamento de elementos como abstração e figuração, modernismo e pop engendram o campo visual sem qualquer pretensão ou alusão a um determinado avanço histórico linear. Pode-se afirmar que Rauschenberg sedimentou o espaço compartilhado entre a pintura e as demais linguagens artísticas. A prática pictórica deslocou-se do plano projetivo ortogonal para o lugar

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de encontro com o mundo. A ideia de morte da Pintura, portanto, não passou de uma eclosão, do nascimento, da proliferação de múltiplas outras concepções de Pintura. Nos procedimentos que analiso aqui, partindo de minha produção pessoal, o trabalho da pintura no interior do atelier busca adensar as tensões acumuladas pelas instâncias que perpassam o processo. Visa, portanto, atingir um determinado grau de condensação destas percepções, produzindo um campo suficientemente consistente, eloquente, que possa consolidar o trabalho. Porém, a consolidação não se dá numa etapa final, posterior, mas já se enuncia nos interstícios e intervalos que modulam o processo: A consolidação não se contenta em vir depois. Ela é criadora. É que o começo não começa senão entre dois, intermezzo. A consistência é precisamente a consolidação, o ato que produz o consolidado, tanto de sucessão quanto o de coexistência, com os três fatores: intercalações, intervalos e superposiçõesarticulações. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.141)

Espaço de negociação com o real. A observação direta é ação, é exposição do corpo ao tempo: fragmento de litoral, campo de jogo e despojo. Descaminhos do olhar materializam-se em fragmentos do mundo percorrido. Através do fragmento retido pelo dispositivo fotográfico, deflagra-se o todo, a área plana, o plano onde se dá o jogo e instaura-se a pintura. Jogo que se instala no pensar, na imagem do pensamento: uma orientação no pensamento - o suporte dos conceitos. Através de traços diagramáticos e intensidades, atravessados numa dança contínua de avanços e recuos, descambos e aportagens. Mas a que margem se faz referência aqui? Em que consiste esta superfície limítrofe, a qual entendo enquanto campo pictórico? A pintura é margem? A margem do rio em seu sentido literal existe enquanto espaço fronteiriço entre a água e a areia. Este lugar cambiante

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irradia forças de absorção e extrusão, recolhe informações advindas de múltiplas origens e as devolve ao rio, criando novas rotas para aportagens em outras margens. Nota-se aqui uma relação estrita com a superfície da pintura, que retém diversos componentes tais como índices fotográficos, gestos, materialidades, temporalidades e os reapresenta sobre o campo pictórico. Nesta relação topológica ocorre a fricção entre universos, entre a fluidez do rio e a retenção da terra. A pintura, então, através de sua pele, crosta, superfície, divide estes universos distintos e, de forma ambígua, os transpassa, os costura, ou melhor, sutura este rasgo entre o que chamamos de real e o que é imaginado. A pintura é uma zona de aporte e comporta em sua estrutura o princípio da indeterminação, ao passo que consolida o olhar sobre e com o mundo percebido. Aparição, inscrição em determinado campo visual, área limitada por coordenadas. A pintura como parede, anteparo, mapa, espelho, caixa e janela. O espaço de sua contenção sempre foi o espaço da possibilidade de sua enunciação. Entretanto, este espaço avizinha-se de um exterior, de um fora de campo e, justamente desta intersecção, deste roçar o real, externo aos seus limites, é que a pintura nutriu-se de possibilidades renovadas para a sua (re) invenção ao longo dos tempos. A dúvida, a indeterminação, a possibilidade de encontro com o horizonte do outro lado do rio levam-me a pensar que a pintura é pertinente porque a sua consolidação é possível apenas se existir, de fato, um mergulho nestas muitas águas que perfazem o tempo. A pintura, portanto, trata de uma questão temporal. A luz, seu veículo essencial, só pode ser percebida e apreendida em função de uma duração, ou melhor, de sua suspensão. Ao recolher uma fração de tempo para condensá-la na superfície, a pintura opera uma distensão, pois devolve esta temporalidade através do olhar, atualizando-a. O olhar, deste modo, aporta sobre a pintura para restituir uma duração retida, realidade que

Assim, a pintura parece nutrir-se de uma relação direta com o acontecimento. O pintor, neste intervalo entre a apreensão de um momento e seu desvanecimento no tempo, situa-se sobre a margem da superfície sensível da paisagem e a superfície sensibilizada, emulsionada de sua própria existência. Como placa sensível, deixa-se impregnar e fixa, através da fatura pictórica, o tempo distendido pela luz, a luz do sol que torna possível a aparição das coisas no mundo, a luz que revela, portanto, a paisagem da experiência do pintor. Para Tomás Maia, a busca pelo instante pictural em Cézanne deflagra um novo entendimento sobre a pintura e coloca a questão do tempo (movimento) como elemento operacional de sua fatura:

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eclode, excresce, transborda de sua superfície latente. Paul Cézanne, ao insistir na apreensão de um mesmo motivo, como na série de pinturas da Montanha Santa Vitória, parece formular sobre aquela realidade um questionamento acerca de sua natureza. Como se, ao pintar repetidamente a paisagem, esta pudesse, em algum momento, abrir-se e fazer eclodir sua verdadeira aparência, feita de luz armazenada em sua matéria. Mas a investigação cezanniana só foi possível pela entrega total ao campo externo no qual se consolida a experiência do olhar do pintor. Uma atenção radical ao tempo que escapa e que pode ser filtrado nos gradientes da superfície pictórica. Maurice Merleau Ponty aponta para o caráter emergente da apreensão de uma determinada realidade nos procedimentos pictóricos de Cézanne: Cézanne não acha que deve escolher entre a sensação e o pensamento, assim como entre o caos e a ordem. Não quer separar as coisas fixas que nos aparecem ao olhar de sua maneira fugaz de aparecer, quer pintar a matéria ao tomar forma, a ordem nascendo por uma organização espontânea. (MERLEAU-PONTY, 2004,p.116).

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Se Cézanne procura o instante pictural é porque ele supõe que a pintura é portadora de uma nova percepção, a começar pela percepção do movimento: a percepção, não só de um instante (que a fotografia fixa e a cronofotografia multiplica), mas do intervalo entre dois instantes. Do intervalo, pode mesmo dizerse, entre todos os instantes, seja qual for o momento do dia ou a época do ano. (MAIA, 2015,p.31)

[ 2 ] Utilizo a ideia de plano de imanência como espaço possível para o acontecimento, relacionando-o, portanto, tanto com o espaço das ocorrências na margem do rio quanto com o campo pictórico. Segundo Deleuze e Guattari, os conceitos “(…) são os acontecimentos, mas o plano é o horizonte dos acontecimentos, o reservatório ou a reserva de acontecimentos puramente conceituais(…)” (DELEUZE, GUATTARI, 1992.p.52).

Pensar consiste em estender um plano de imanência que absorve a terra (ou antes a "adsorve''). A desterritorialização de um tal plano não exclui uma reterritorialização, mas afirma como a criação de uma nova terra por vir. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.117).

A distensão, nestes aportes, pode ser pensada como a absorção deste tempo entre tempos, ao qual Cézanne depositava sua atenção e, portanto, sua vida, e seu prolongamento na duração própria da pintura. Se, para Santo Agostinho, o tempo é distensão (da própria alma), podese pensar na pintura como lugar da distensão na superfície, o lugar; portanto, onde o tempo transborda, atravessando as fronteiras de sua duração para migrar à superfície como matéria pictural. Através do fragmento retido pelo dispositivo fotográfico, deflagrase o todo, a área plana, o plano de imanência 2 onde se dá o jogo e instaura-se a pintura:

Poderia pensar aqui em distinguir dois movimentos geradores da pintura. O primeiro, o de exposição do tecido ao fluxo, ao campo aberto, está relacionado ao que Deleuze e Guattari denominam traços intensivos do plano de imanência, vetores de força de natureza infinita. O segundo, constituído pelo momento de análise e tratamento em espaço fechado, no atelier, é observado como correspondente aos traços diagramáticos, como ordenações, cortes, justaposições que originam outros campos, configurações infinitas de caráter fracionado, multiforme. Quando inscrevo estes elementos gráficos na superfície, percebo acionar na pintura espaços pelos quais se entrevê a paisagem. Espaços constituídos por linhas rígidas. A linha, portanto, habita diversas instâncias neste translado paisagem/atelier. Na paisagem, sua intensidade é potencializada pela linha de horizonte, a linha d’água, da margem incerta que dança sobre outra linha, a da areia. Constituem também as delimitações de espaços entre as fotografias, assim como o rolo, estendido sobre a margem, que pode ser percebido como uma linha espessa. A borda da pintura delimitada pelo chassi é considerada nessa leitura como linha rígida, que delimita o espaço e concentra as intensidades ativadas. Já aquelas formadas pela divisão imprecisa de planos e campos de cor tornam-se flexíveis, fornecendo ao olhar alterações nos acontecimentos plásticos promovidos pela fatura pictórica. A margem do rio é linha de fuga, espaço de vazão para a experiência no campo aberto. O campo pictórico, atravessado por estas várias composições de linhas de força, é constantemente

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Esta apreensão de uma luz que excresce, que transborda das coisas nesta margem entre o sujeito e o mundo, pode ser relacionada diretamente com os procedimentos realizados com os tecidos nas situações litorâneas. A retenção de um tempo/luz decantado na margem desdobra-se nas distintas etapas do processo. Ao ser enterrada para a secagem, a superfície acomoda-se abaixo da terra para eclodir, carregada de índices, prenhe de signos a serem decifrados e postos à luz da pintura. Energia vital que escapa (e aporta) de um fundo indeterminado (o lodo do rio) para as bordas do real: A excrescência não é um excedente supérfluo à vida; pelo contrário, é a essência – sem substância – da mesma vida: o movimento da vida que se excede. Vida que produz a vida fora de si, excedendo-se como vida. (MAIA, 2015,p.26).

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tensionado a fim de condensar as diversas instâncias experienciais que compõem a pintura, sua espessura temporal. A noção de condensação parece ocupar aqui um lugar determinante, uma vez que na criação do território sobre o qual e através do qual distintas instâncias experienciais acumulam-se, transparece o cruzamento de lugares, suportes e linguagens. Nos deslocamentos que contaminam a superfície da pintura, a criação de um bloco perceptivo adensa-se. Sair pelas margens, capturar imagens fotográficas, imprimir no tecido, retornar à margem, enxaguar, dobrar e torcer o suporte preparado e impregnado, fixar a areia, aterrar, secar, descobrir, transportar ao atelier. Posteriormente, tratar por adição de campos de cor, transparências, zonas de opacidade, atravessamentos de signos gráficos como as linhas, planos de cor, encobrimentos e toda sorte de depósitos de gestos e procedimentos construtivos na elaboração do campo pictórico enquanto território de embate. Ativar, portanto, o lugar do aparecimento e desaparecimento dos índices fotográficos e materiais advindos de uma trajetória em distensão. A formação de um território é ativada no entrelaçamento destas instâncias processuais, como se o cruzamento de procedimentos e temporalidades advindos do processo instaurasse um lugar, ainda que indeterminado, de onde a poética enuncia-se. Território em trânsito, marcado por índices advindos de diversos componentes, como aponta Deleuze: Um território lança mão de todos os meios, pega um pedaço deles, agarra-os (embora permaneça frágil frente a intrusões). Ele é construído com aspectos ou porções de meios. Ele comporta em si um meio exterior, um meio interior, um intermediário, um anexado. Ele tem uma zona interior de domicílio ou de abrigo, uma zona exterior de domínio, limites ou membranas mais ou menos retráteis, zonas intermediárias ou até neutralizadas, reservas ou anexos energéticos. Ele é essencialmente marcado por “índices”, e esses índices são pegos de componentes de todos os meios: materiais, produtos orgânicos, estados de membrana ou de pele, fontes de energia, condensados percepção-ação. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.121).

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Desde os primeiros movimentos sobre a margem para a obtenção de imagens a serem transferidas ao campo pictórico, procuro estar atento às tensões visuais que animam meu olhar. Mudanças no clima, por exemplo, alteram a textura da água (rio, lagoa, mar....). De plano espelhado passa a campo ondulante, que insiste em avançar sobre a faixa de areia. O vento modula os limites entre a vegetação do morro, a água e a linha de horizonte. A neblina, quando existente, vela a paisagem do outro lado do rio, intensificando o foco no que está perto. O trabalho da pintura no interior do atelier busca adensar as tensões acumuladas pelas instâncias que perpassam o processo. Visa, portanto, atingir um determinado grau de condensação destas percepções, produzindo um campo suficientemente consistente, eloquente, que possa consolidar o trabalho em pintura. Porém, a consolidação não se dá numa etapa final, posterior, mas já se enuncia nos interstícios e intervalos que modulam o processo. A experiência na margem, ao migrar para o espaço da pintura exposta ao tempo, dilata-se uma vez que perfaz uma cadeia de procedimentos que se retroalimentam e complexificam. Na pintura, o tempo distendido da experiência é aberto pela luz que excresce na superfície (das coisas/paisagem e da própria pintura). A luz, portanto, ao incandescer, irrompe de um fundo indeterminado; escapa deste fundo para atestar toda a memória de luz já gravada neste lugar externo ao campo pictórico. A paisagem, então, passa a lançar seu olhar sobre o pintor. Nesta relação invertida entre sujeito e objeto, dá-se o instante pictural. Maia continua, ao abordar a noção de incandescência na pintura de Cézanne: Ser pintor é ver que se é visto por um ponto de incandescência, e ser visto pelo que não tem olhos não é outra coisa senão ver a incandescência. É esse o nome da reversibilidade do visível, quando o visto se torna vidente e qualquer corpo devém luminoso. (MAIA, 2015, p.29).

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A paisagem grava sua aparição no sujeito. Este processo de gravação, análogo aos procedimentos de impressão utilizados para a elaboração dos suportes em tecido, advém da experiência direta. O andar sobre a margem, o navegar nas águas turvas, originaram impregnações da própria paisagem em minha placa sensível. As capturas fotográficas, deste modo, acionaram um movimento de alocação deste olhar da paisagem, revertendo-o sob forma de imagem (Figura 2). Um processo de reversibilidade do visível foi instaurado, encarnando na superfície da pintura os instantes provenientes de uma sucessão de encontros com a margem. Minha investigação em arte parte do constante embate entre meios, tendo como arena ou ringue, o campo pictórico. Partindo da atenção sobre a natureza do instante pictural como encarnação de um entre-tempo, contido na relação direta do pintor com seu motivo de trabalho, percebo que a disposição da pintura como espaço de impregnação (gravação, retenção, sudário), bem como a preparação do campo pictórico através do suporte fotográfico, constituem procedimentos que distendem as temporalidades próprias da pintura e da fotografia e as consideram em sua correspondência inesgotável.

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REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2007. DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. DIDI-HUBERMAN, Georges. A pintura encarnada. São Paulo: Escuta, 2012. FLORES, Laura González. Fotografia e pintura: dois meios diferentes? São Paulo: Martins Fontes, 2001. HOCKNEY, D. O conhecimento secreto. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. MAIA, Tomás. Incandescência: Cézanne e a pintura. Lisboa: Atelier-Museu Júlio Pomar, 2015. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

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Figura 2. Registro de impregnação/ processo de trabalho à margem, fotografia Clóvis Vergara de Almeida Martins Costa. Foto do autor

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O corpo transfigurado: porque a noite é sempre outra

Lizângela Torres Artista Visual, pesquisadora e professora do Curso de Artes Visuais – Licenciatura da UFPel. Possui graduação, mestrado e doutorado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com participação no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior na Faculdade de BelasArtes da Universidade de Lisboa – Portugal. Atualmente pesquisa formas de apresentação e proposição de experiências deflagradas por ações noturnas através de instalações multimídia: fotografia, vídeo, objeto, pintura e desenho. lizangelatorres@ gmail.com

Quando tudo desapareceu na noite, "tudo desapareceu" aparece. É a outra noite. A noite é o aparecimento de tudo desapareceu. 1 Maurice Blanchot

Keywords: Photography; Night; Simulacrum; Ghost.

À noite, folhas caem no solo, ouço o chacoalhar do rio, seu barulho persiste e embala a série. O branco das vestes, preenche parte da superfície da pele, abrindo rasgos de noite na falta do tecido. No quintal de casa, a área demarcada pela cerca e muro dobram o fora da noite. Nos fundos do pátio, o solo é revirado pela insistência das caminhadas, que marcam o fundo da dobra. O movimento faz desprender partes do meu corpo que sobram na superfície da fotografia. A luz, que escapa da casa, invade o território da noite, atinge meu corpo e transfigura-se em fantasma na fotografia. Saídas para o espaço da noite, através de caminhadas por ruas soturnas, de deslocamentos de carro por estradas escuras e de movimentações pelo pátio e interior sombrio da casa, apresentam-se como ações recorrentes na série de proposições artísticas intitulada Incursões Noturnas. Originária de registros de ações noturnas, esta série de imagens resulta dos movimentos repetitivos do meu corpo para a câmara, ou com a câmara fotográfica. Esta proposição em arte, iniciada em 2002, mostra-se aberta, num processo contínuo de criação, conformando uma obra em processo. Em trânsito à noite, o agente do percurso e o espaço percorrido são sempre outros. Uma zona desconhecida, mas sempre revisitada. Ela é repetidamente investida para a experiência imersiva no incerto da duração fugidia. Porque a noite é sempre outra. Numa sequência de deslocamentos que se repetem incessantemente, projeto-me em direção à câmara. A fotografia registra a duração do movimento de aproximação ou afastamento do meu corpo em relação ao aparelho fotográfico, que, por sua vez, mantém-se à espreita, registrando a trajetória do movimento.

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The transfigured body: because the night is always other

Resumo: Diante do trabalho Da série Incursões Noturnas – Pátio / 003, por mim realizado em 2008, proponho um relato de processo e a leitura da obra, na qual observa-se a transfiguração do corpo na superfície fotográfica. A desorganização da figura pela captura do movimento suscita a relação com o conceito de corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari. A forma espectral da imagem que insiste em séries dissemelhantes, sugere a noção de imagem fantasma, possibilitando a discussão sobre a relação da fotografia com a imagem ícone e a imagem simulacro, diferenciadas por Platão. Para pensar o caráter da fotografia no contexto das Incursões Noturnas, cujas imagens afirmam-se como cópias distorcidas da ação, como a imagem fantasma, propõe-se uma análise do conceito de simulacro em Deleuze, a partir da reversão do platonismo em Nietzsche. Palavras-chave: Fotografia; Noite; Simulacro; Fantasma. Abstract: In light of From the series Nocturnal Incursions - Patio / 003, a work produced in 2008, I propose a reporting on process and a reading of the work, in which the body’s transfiguration is observed on the photographic surface. The figure’s disorganization captured in movement evokes the relation with Deleuze and Guattari’s concept of body without organs. The spectral form of the image insists on a dissimilar series and suggests the notion of the phantom image, thus raising a discussion about the relationship of photography with the icon and the simulacrum, images differentiated by Plato. In order to consider the nature of photography in the context of Incursões Noturnas, in which the images assert themselves as distorted copies of the action, as phantom images, this article proposes an analysis of the concept of simulacrum in Deleuze, based on the reversion of Platonism in Nietzsche.

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[ 1 ] BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 163.


Figura 1. Lizângela Torres. Da série Incursões Noturnas - Pátio / 003. Fotografia digital em caixa de luz. 2008. Coleção da artista.

Embaraçando a sobra da noite, o movimento do corpo desfaz o foco, produzindo zonas de manchas, vultos que distorcem o espaço estanque. O corpo em ação perde suas bordas para o território da noite, tornando a imagem indistinta. Misturando-se ao fora (noite), a figura em transe cria zonas indiscerníveis ao espaço noturno. Quando me desloco para a câmera, entrego-me à obra. O meu corpo torna-se obra e, ao ser fixado na superfície fotográfica, faz nascer outro corpo ao mesmo tempo que me mortifica. Da série Incursões Noturnas – Pátio / 003 é o título de um trabalho criado a partir de uma ação ocorrida no quintal de casa (Figura 1). São fotografias coloridas obtidas através de câmara digital compacta. As fotos apresentam o processo de construção recorrente das Incursões Noturnas: vestes brancas, movimentos repetitivos para o aparelho fotográfico, longa exposição e câmara fixa.

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A sombra singra o corpo onde o branco das roupas ausenta-se. Como uma ferida aberta, uma brecha na superfície refletora permite entrever o interior do corpo. Esta forma elíptica escura repete-se na sequência das fotografias; um dentro de espessidão da sombra que mais parece o fora na noite. Por esta brecha, em algumas fotos da série nota-se que o corpo é pura superfície, pois o interior mostrase vazio. A fenda negra secciona a figura e desnuda a noite de suas entranhas. Um corpo desprovido de órgãos, um invólucro do breu, uma pele que se desdobra no fora que, de acordo com José Gil 2: (…) cria-se um espaço interior «paradoxal». Este está e não está no espaço. Uma vez que é vazio, e uma vez que é da ordem do corporal não corporalizado, o espaço interior compõe-se de «matéria intersticial» (o que resta do esvaziamento, do desaparecimento ou da dissolução dos órgãos) ou matéria energia, quer dizer, matéria em devir por excelência. (…) Neste sentido, vai permitir ao corpo tornar-se superfície (pele), (…) (GIL, 2008, p. 189-190).

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[ 2 ] Nascido em 1939 em Muecate, Moçambique, José Gil é filósofo, ensaísta e professor na Universidade Nova de Lisboa, Portugal.


As fendas da figura capturada na fotografia denunciam sua condição de pura superfície, como um corpo sem órgãos suportando, através da sua pele sutil, as intensidades do fora. Segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari, o corpo sem órgãos, sem uma organização estruturada, define-se pela presença transitória de órgãos determinados. O corpo sem órgãos não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo. (…) O organismo não é o corpo, CsO, mas um extrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil. (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 24).

Na Série Incursões Noturnas – Pátio / 003, o meu corpo perde a organização que o identifica, pois se transfigura em corpo da fotografia. Assume a determinação do corpo da fotografia. No detalhe que compõe esta série, referente à figura 2, o corpo parece vestir outro corpo. Observadas através da ferida no ventre da figura, camadas de pele sobrepõem-se. Sem órgãos, o espaço interior paradoxal deixa-se entrever pela fenda e mostra a pele do corpo no devir do tempo passado Porque o espaço interior se confunde agora com a pele. Deixando de ser um conteúdo, tornando-se vazio, tende a confundir-se com o continente (a pele). Estabelece uma conexão íntima com a pele, tornando-se uma espécie de parede atmosférica interior da pele. Por outro lado, a pele não é uma película superficial, não transborda apenas para o interior, confundindo-se com ele, mas também para o espaço exterior, integrando o tempo cronológico no seu ritmo próprio. A isto (a este fenômeno) chama-se imanência. (GIL, 2008, p. 190).

Figura 2. Lizângela Torres. Detalhe Da série Incursões Noturnas - Pátio / 003.

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[ 3 ] Deleuze através do acontecimentofantasma faz uma interpretação do conceito de fantasma na psicanálise, definindo-o como a contraefetuação das ações dos corpos numa superfície metafísica.

O movimento registrado nas ações que realizo empresta à imagem um caráter flou. Transfigurado pela captura do deslocamento, o corpo torna-se espectro. Desfigurado na superfície da fotografia, faz surgir outro corpo de linguagem. Este corpo pertence à noite, habita a região do breu noturno. Não aparece, não existe, mas insiste como um acontecimento-fantasma 3. Porém, da desorganização que define o corpo sem órgãos, não sobra nem o fantasma, pois, segundo Deleuze, “CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações.” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 14). Portanto, algo de organismo preserva-se na estrutura da fotografia, uma organização fantasmagórica do corpo orquestrada pela sintaxe da linguagem fotográfica. É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder à realidade dominante. (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 26).

Em frações mínimas de organização, a fotografia guarda da confusão de forças de um corpo desorganizado, uma sugestão imprecisa de figuração. Um espectro anônimo, não identificável, sem contornos rígidos, informa que, através das sucessivas aparições noturnas, busca reconstituir por migalhas de singularidades um processo de subjetivação. Para José Gil, há ainda outro espectro que investe no corpoinconsciente do outro, na sua abertura afetiva. O corpo espectral não tem figura; não se confunde com a presença esbatida ou informe, mas pertence ao corpo real ou intensivo. “É um corpo de afeto, mas mudo

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e sem visibilidade outra que a densidade e a presença do silêncio, onde circulam forças que se moldam aos contornos de ausência que delineiam o corpo espectral.” (GIL, 2008, p. 23). É outro corpo do corpo, invisível, mas percebido no encontro dos corpos-inconscientes. Numa leitura do silêncio e da noite comunicase por meio de um inconsciente da linguagem do corpo espectral 4. Indefinido, vaporizado, desorganizado, o sujeito da ação desintegra-se e transforma-se em imanência da superfície: centro indeterminado de convergência de forças. O meu corpo na fotografia torna-se fantasma. Como zonas de indistinção ao espaço da noite, as fendas no corpo registrado pela fotografia deixam esvaziar a vida: da ação resta o fantasma. A palavra fantasma tem origem no grego phántasma, atos. Segundo consta no Dicionário Houaiss, significa aparição, sonho, imagem oferecida ao espírito por um objeto. No latim phantāsma, ātis quer dizer ser imaginário, ficção, visão, aparência, espectro. Para Platão, fantasma significa simulacro, uma imagem que se distingue da arte da cópia, cujo caráter principal não reside na semelhança, mas na existência. Na alegoria da caverna de Platão, sombras projetadas na parede da caverna são tomadas como a realidade da vida; projeções de objetos aceitos como o real. Nas trevas platônicas, o homem é prisioneiro das sombras, preso pela escuridão. Precisa de um mestre que o conduza da noite para o dia. A luz vem de outro lugar, e é preciso abandonar a caverna para chegar à iluminação e ter acesso ao real. Numa aproximação da fotografia com a alegoria da caverna de Platão, as imagens resultantes das Incursões Noturnas simulam o real tal como as sombras projetadas, porém diferem-se das sombras nas paredes da caverna por não pretenderem se passar

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[ 4 ] A noção de corpo espectral de José Gil se distingue do modo lacaniano de desfasamento de linguagem e de comunicação de corpos espectrais inconscientes. Pois, para Gil: “o trauma, assim como a cura, dependem da comunicação entre inconscientes; a um inconsciente da linguagem a que pertence o corpo espectral; e o inconsciente a que me referi designa o inconsciente do corpo real ou intensivo, e não o inconsciente do fantasma.” (GIL, 2008, p. 23).


[ 5 ] A partir dos diálogos Fedro, Político, e Sofista de Platão

[ 6 ] PLATÃO. O Sofista. 236b, 264c

[ 7 ] “Estrangeiro — Logo, se há falsidade, também há fraude. Teeteto — Certo. Estrangeiro — Ora, havendo fraude, forçosamente tudo terá de ficar cheio de simulacros, imagens e fantasias.” PLATÃO. O Sofista. 236b, 264c.

como verdadeiras, pois se afirmam como falsas. Contrariando a lógica platônica, as fotografias por mim realizadas se referem a um modo de ver e de pensar baseados em outros pressupostos, diferentes daqueles determinados pela luz da razão, pela visão, pela aparência, pela moral, pela norma, pela representação mimética de um ideal, ou de uma verdade. “Seria aliás pôr a verdade de cabeça para baixo e negar a perspectiva e a condição fundamental de toda a vida falar do espírito do bem como o fez Platão (...)” (NIETZSCHE, 2009, p. 8). Ao afirmarem-se como cópias distorcidas da ação, as imagens resultantes da Série Incursões Noturnas se aproximam da noção de imagem simulacro, na imagem dissemelhante em que se baseia a imagem fantasma. Para confirmar a hipótese de que as fotografias geradas pelas Incursões Noturnas comportam-se como simulacros da noite, propõese agora uma análise do conceito de simulacro em Deleuze, a partir da noção de reversão platônica de Nietzsche. Platão 5 discute sobre a divisão e distinção entre dois tipos de cópias. Distinguindo-as em uma escala hierárquica, propõe os seguintes tipos de imagens-ídolos: “eidola” as melhores cópias, os ícones; e “simulacros-fantasmas” 6, as imagens deformadas, falsificadas 7, dissemelhantes em relação aos modelos. Desta distinção entre duas espécies de cópias em Platão, Deleuze destaca: As cópias são possuidoras em segundo lugar, pretendentes bem fundados, garantidos pela semelhança; os simulacros são como os falsos pretendentes, constituídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essencial. É nesse sentido que Platão divide em dois o domínio das imagens-ídolos: de um lado, as cópias ícones, de outro os simulacros-fantasmas (DELEUZE, 2007, p. 262).

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O simulacro marca uma infidelidade com o modelo, estão em relação de dissemelhança, tornando as essências irreconhecíveis. Platão dispõe entre as cópias ruins, além dos erros, das distorções e dos resultados miméticos falhos, as figuras intencionalmente marginais e independentes. O simulacro para Platão são cópias degradadas, estão aquém das cópias ícones, que apresentam poder de mimese, cuja posição hierárquica encontra-se logo abaixo da ideia, que é o fundamento, a essência ou a forma perfeita. A teoria das Ideias de Platão parte de uma vontade de selecionar. Quer distinguir, fazer a diferença entre a coisa mesma e suas imagens, entre o original e a cópia, o modelo e o simulacro. Porém, Deleuze, baseado na noção de “reversão do platonismo” de Nietzsche, lança a pergunta: “Mas estas expressões todas serão equivalentes?” (DELEUZE, 2007, p. 259). O que objetiva esta divisão para Platão não é distinguir um gênero em espécies, mas, antes, selecionar linhagens, fazer distinção entre os pretendentes, entre o puro e o impuro, o autêntico e o inautêntico. Para Deleuze, “a dialética platônica não é uma dialética da contradição nem da contrariedade, mas uma dialética da rivalidade (amphisbetesis), uma dialética dos rivais ou dos pretendentes.” (DELEUZE, 2007, p. 260). Efetuar a divisão do verdadeiro e do falso pretendente serve-se para filtrar as pretensões. A motivação platônica quer “assegurar o triunfo das cópias sobre o simulacro, de recalcar os simulacros, de mantê-los encadeados no fundo, de impedi-los de subir à superfície e de se insinuar por toda parte.” (DELEUZE, 2007, p. 262). Para Gilles Deleuze, a imagem simulacro, “a outra imagem”, não apresenta seu caráter baseado na semelhança, mas na existência. (DELEUZE, 2007, p. 255-286). Para Jean Baudrillard, o simulacro é um artefato, um objeto feito, que anuncia a vitória dos artefatos-fantasmas

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e aponta a crise da concepção da obra como imitação de um modelo. (BAUDRILLARD, 1991, p. 198). O historiador romeno Victor Stoichita comenta que Platão: [...] chama a atenção para uma clivagem essencial, ao estipular duas formas de fabricar imagens (eidolopoiiké): a arte da cópia (eikastiké) e a arte do simulacro (phantastiké). A partir de Platão, a imagem-eikón (imagem-cópia) será submetida às leis da mimese e atravessará em triunfo a história da representação ocidental, ao passo que o estatuto da imagem simulacro (phantasma) permanecerá fundamentalmente vago e marcado por poderes obscuros. ( STOICHITA, 2011, p. 9).

[ 8 ] OVÍDIO. Metamorfoses. Lisboa: Cotovia. 2007.

[ 9 ] Plínio, o Velho. História Natural, ano 77.

Para Stoichita, o simulacro atravessa a história da representação e dispõe de um mito fundador: o mito de Pigmalião 8. Um escultor cipriota, chamado Pigmalião, apaixona-se pela sua obra, uma escultura feita de marfim, com a beleza com que mulher alguma consegue nascer. O escultor simula a sua carne com marfim. Os deuses decidem dar-lhe vida e a oferecem para ser sua esposa. De uma escultura que não representava ninguém, criada da imaginação do artista, nasce uma mulher. Torna-se uma mulher estranha, pois, apesar de existir, ter alma e corpo, mostra-se como um fantasma: simulacro. A particularidade do mito de Pigmalião é que a imagem é construída e não imita ninguém. “O mito de Pigmalião funda o simulacro enquanto criação artística transgressiva. (…) Desafia o visual em nome do tátil. Simulação, transgressão, corporalidade e tactilidade fundam o Efeito Pigmalião.” (STOICHITA, 2011, p. 221). Um efeito de morte, um efeito de ressurreição, um efeito de duplo e de circularidade de energias. Esta relação entre o visual, o tátil e fantasma sugere uma digressão para tratar da noção romana de imago. O romano do século I, Plínio, o Velho 9, nos parágrafos 2 a 5 do XXXV Livro, propõe uma genealogia da imagem e da semelhança a partir das noções romanas de pictura e imago para afirmar o início da história da arte a partir da morte de sua origem.

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Georges Didi-Huberman observa que, no parágrafo 2 do XXXV Livro, quando Plínio discorre “sobre o que resta da pintura” (quae restant de pictura), propõe dois sentidos para esta expressão: um sentido óbvio, “o que nos resta a dizer sobre a pintura”; e outro mais melancólico “como se este «resto» de pintura fizesse referência a uma arte que, segundo ele teria existido somente no estado de vestígio: a sobrevivência espectral de um desaparecimento.” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 78). A origem da arte para Plínio está ligada à produção e transmissão de uma «semelhança extrema», cuja expressão Imaginum pictura é o objeto desaparecido, pelo qual impele Plínio a decretar que a semelhança já está morta. Para Plinio, imago refere-se a uma categoria pelo qual é possível pensar o estatuto do objeto figurativo. […] nos atriuns, era exposto um tipo de efígie destinada a ser contemplada: não eram estátuas realizadas por artistas estrangeiros, nem bronzes ou mármores, outrossim máscaras moldadas em cera, que eram dispostas cada uma em um nicho: tinha-se, assim, imagens (imagines) para fazer o cortejo fúnebre da família e, sempre que alguém morria, toda a multidão de parentes desaparecidos estava presente; e os ramos da árvore genealógica partiam para todos os lados, com suas ramificações lineares, até essas imagens pintadas. (Plinio, o Velho In: DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 80).

Imago e pictura referem-se aos objetos de cera moldados sobre os rostos dos ancestrais, como máscaras que recebiam uma matéria colorante para atingirem uma extrema semelhança com o antepassado falecido. Como um ritual relacionado a legitimar a posição dos indivíduos “na instituição genealógica da gens romana” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 81.), imago é a conjunção entre matéria e rito. Afastando-se da noção de mimese, como a prática da representação da aparência no retrato, imago difere da construção a partir da ordem da ideia, a qual Vasari 10 atribui um sentido intelectualista ao desenho (disegno), definindo o retrato por uma imitação ótica.

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[ 10 ] Giorgio Vasari (1511-1574) foi um pintor, arquiteto e biógrafo italiano renascentista. Escreveu biografias dos artistas da Renascença italiana, essenciais para a história desse período.


Mesmo que pertencendo a uma “magia artística” e partindo de um processo de construção que envolve escolhas intelectuais, a fotografia por mim desenvolvida aproxima-se mais à noção de imago do que a de retrato na história da arte a partir de Vasari 11, pois a imitação como mimese, observada nas categorias tradicionais da arte da pintura e do desenho na tradição vasariana, apresenta-se como um processo de construção baseado na representação por intermédio de um processo mental. Uma busca pela aparência, através da mimesis de Platão que desenvolve uma fatura intermediada, sem contato físico com o retratado. As fotografias que constituem a série Incursões Noturnas dissonam dos procedimentos baseados na mímese. Apresentam-se, portanto, como fantasmas; a outra imagem contrária à lógica da imagemícone de Platão, que não se baseia por semelhança ao referente como pura aparência construída pelo intelecto. A fotografia resultante das Incursões Noturnas é construída com a exigência da impressão do corpo através de simulação, transgressão, corporalidade e tactilidade. A imagem acontece por meio do efeito do mito de Pigmalião, por um efeito de morte, de ressurreição, de duplos, de retornos regressos de energias. “A fotografia é mágica e a magia pode ser perturbadora.” (ALMEIDA e FERNANDES (Orgs), 2015, p. 72.). Esta relação entre a representação mimética da aparência do retratado com a ideia de uma sobrevida na pintura, aludindo à magia da

fotografia em capturar almas, muito corrente nas décadas subsequentes a sua invenção, é observada no conto O Retrato Oval12 de Edgar Allan Poe. O conto O Retrato Oval trata da obstinada maestria de um pintor retratista que, focado em imitar a beleza de sua esposa, entrega a alma dela à arte através de uma aterradora, vertiginosa impressão dúbia assombrada por sua capacidade de duplicar o real. A morte é resultante da cópia da beleza e semelhança extrema: imagemícone. Nota-se uma oposição ao mito de Pigmalião quando a vida (a existência) sucede a beleza sem semelhança: simulacro. A partir da característica da representação mimética da pintura, de parecer apresentar a essência da modelo, Allan Poe comenta nas entrelinhas a magia da fotografia ao capturar a perfeita aparência do referente, imbuído da noção de fotografia como reflexo de um real. Carlos Souza de Almeida e Carlos M. Fernandes observam os seguintes temas possíveis de entrever neste conto: a crença ancestral da migração da alma para uma cópia do corpo, o medo gerado pela suspeita que a câmara poderia apoderar-se da alma das pessoas retratadas (ainda visto em certas culturas), o mito literário do duplo e “o vampirismo artístico”, “ou mesmo o vampirismo da fotografia, a eternização traiçoeira e enganadora à qual não podemos escapar quando o obturador é disparado”. (ALMEIDA e FERNANDES (Orgs), 2015, p. 72.). O conto de Poe faz um comentário sobre a fotografia nos seus primórdios, destacando seu caráter de imagem ícone e seu poder de objetificação e morte. Desde a descoberta da fotografia, a vocação para com a verdade documental e o compromisso com a realidade, como pressupostos e qualidades fundamentais do meio, foram logo percebidos, assimilados e subvertidos. Na esteira da sua invenção, a fotografia já apresenta uma relação com os dois tipos de cópias defendidas por Platão. A fotografia intitulada Os últimos instantes (1858), de Henry Peach

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[...] a noção romana de imago supõe uma duplicação do rosto por contato, um processo de impressão (o molde em gesso se imprimindo sobre o próprio rosto), em seguida de expressão física da forma obtida (a tiragem positiva em cera realizada a partir do molde). Imago não é, portanto, uma imitação no sentido clássico do termo; ela não é factícia e não requer nenhuma ideia, nenhum talento, nenhuma magia artística. Ao contrário, ela é uma imagem matriz produzida por aderência, por contato direto da matéria (o gesso) com a matéria do rosto. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 81).

[ 11 ] Vasari no livro Vidas, de 1550, determinou a concepção da arte, da imagem e da semelhança, ainda hoje corrente.

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[ 12 ] POE, Edgar Allan. Contos de Terror de Mistério e de Morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.


Figura 3. Henry Peach Robinson. Os últimos instantes, 1858. Fonte: The Royal Photographic Society no National Media Museum, Reino Unido..

Figura 4. Hippolyte Bayard. 1841, primeira performance fotográfica. Fonte: Société française de photographie

Robinson, apresenta um exemplo de fotografia composta, criada a partir da combinação de cinco negativos (Figura 3). A imagem parte de uma encenação para mostrar o invisível: a morte. Num primeiro momento, pode-se pensar que, por ela partir de uma encenação, não apresentar o real, seria da ordem do simulacro. Porém, as boas cópias, ou os ícones, são consideradas boas imagens não somente por apresentarem semelhança externas às coisas, mas, sobretudo, por serem semelhantes à ideia, ao modelo interiorizado. Apresentam uma pretensão à semelhança de uma essência interna ou espiritual. Logo, Últimos Instantes, que representa a morte, comporta-se como imagem icônica, mostrando-se por semelhança à ideia de morte. Assim, na ordem platônica das cópias estaria entre as melhores cópias.

A cópia apresenta uma similitude imitativa numa relação intrínseca ao modelo. Ou seja, a cópia parece verdadeiramente com o seu referente porque representa a ideia da coisa, sendo que a identidade da ideia é que determina a boa pretensão das cópias fundada sobre uma semelhança interna, ou derivada. O simulacro apresenta uma pretensão não fundada, mostrando um desequilíbrio interno. Se, para Platão, o simulacro é uma cópia da cópia, é a degradação do ícone pela semelhança distorcida; encontra-se então à margem do essencial, do modelo. Na primeira década posterior à invenção da fotografia, Hippolyte Bayard, em 1841, realiza a primeira performance fotográfica (Figura 4). Como uma ação de protesto por não ser reconhecido entre os inventores

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da fotografia, Bayard distribui uma foto do registro de sua morte, na qual ele próprio aparece afogado. Ironicamente, o fotógrafo joga com o princípio de veracidade da foto, produzindo através da imagem do seu corpo uma encenação para a fotografia. Para Laura Flores, “O afogado constitui não apenas a primeira performance fotográfica, mas também a primeira mostra de subversão da veracidade fotográfica em prol da legitimação de uma mentira.” (FLORES, 2011, pgs.145-146). Nesta imagem, Bayard transfigurase em morto, disfarça-se e produz o falso para criar uma máscara. Uma falsificação com a potência de um fantasma: simulacro. A diferença entre as cópias de Bayard e Robinson, apesar das duas lidarem com o tema da morte e partindo de uma encenação, não se refere à essência de morte. O que se distingue nestas imagens é o grau de dissimulação, ou as camadas de disfarces, e pelo modo de construção de uma imagem que abarque a participação do observador, pois, em Bayard, o fantasma da morte, como signo, enlaça o observador como uma armadilha para desvendar sua charada. Não produz uma representação da morte como modelo ideal. Ao disfarçar-se de morto, apresenta a injustiça da exclusão do fotógrafo do mérito da sua invenção. Para Deleuze, o simulacro é uma imagem sem semelhança, contrária à cópia, que é uma imagem com semelhança, pois “o simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude.” (DELEUZE, 2007, p. 262) O simulacro não traça alguma relação com o modelo que se impõe às cópias, pois apresenta um modelo outro, que é sempre outro, como um modelo possível que se oponha ao bom modelo do mesmo. Ele desprende-se da relação com o modelo “graças a uma agressão, de uma insinuação, de uma subversão” (DELEUZE, 2007, p. 262) contra o fundamento que institui o modelo. “O “mundo-verdade”, nós o abolimos: que mundo nos ficou?

Através do sensorial e das teorias da sensação, na estética deleuzeana a obra de arte é experimentação. Para o filósofo, “a estética sofre uma dualidade dilacerante” (DELEUZE, 2007, p. 265). Se de um lado é definida pela teoria da sensibilidade como forma de experiência possível, por outro lado é designada pela teoria da arte como reflexão da experiência real. Para se obter uma junção destas duas, é necessário que a experiência em geral condicione a experiência real. Ou seja, que a reflexão da experiência real desprenda-se da égide do modelo, da essência, e volte-se para a experiência outra possível do simulacro. Para Deleuze, a obra de arte mostra-se sempre como um mundo

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O mundo das aparências talvez?... Mas não! Com o mundo-verdade abolimos também o mundo das aparências!” (NIETZSCHE, 2018, p. 30). No campo da arte, a fotografia sofre transformação e torna-se simulacro, variando em camadas de disfarces, em níveis de distorção ou em graus de dissemelhança. Nas Incursões Noturnas as fotografias e os vídeos desprendem-se em simulacros. O indistinto, a mancha, o desfocado, o tremido e os excessos criam uma imagem falsa em relação ao referente. Como na fotografia de Bayard, que apresenta o tema da morte física para falar da morte do autor, as séries Incursões Noturnas criam camadas de entendimento, ou de disfarce, do trabalho na relação com o observador: através do tema da noite, abordam-se os processos de transfiguração - criação - morte. De acordo com Nietzsche: O fato do artista ter em maior apreço a aparência que a realidade não é uma objeção contra esta proposição. De fato, aqui a “aparência” significa a realidade repetida, uma vez mais, mas sob forma de seleção, de reforço, de correção... O artista trágico não é um pessimista, ele diz sim a tudo que é problemático e terrível, é dionisíaco... (NIETZSCHE, 2018, p. 27).

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Figura 5. Lizângela Torres. Da série Incursões Noturnas / 016. Fotografia digital, 2016. Coleção da artista.

diferente para cada olhar, “como se uma paisagem absolutamente distinta correspondesse a cada ponto de vista” (DELEUZE, 2007, p. 266), contrariando a ideia de pontos de vistas diferentes de uma mesma obra. A cada olhar, séries divergentes ressoam de pontos singulares excentrados da obra. Estas se referem às séries divergentes que formam os mundos incompossíveis, tendo em vista a noção de compossibilidade de Leibniz. Das mônadas, pontos singulares convergem séries, que se prolongam em outras séries convergindo em torno de outros pontos. As séries, que são divergentes a estas, criam outros mundos incompossíveis. O caos, formado pelas séries divergentes, confunde-se com a obra, tornando-se potência de afirmação de todas as séries heterogêneas.

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Entre estas séries de base se produz uma espécie de ressonância interna; esta ressonância induz um movimento forçado, que transborda das próprias séries. Todos estes caracteres são do simulacro, quando rompe suas cadeias e sobe a superfície: afirma então sua potência de fantasma, sua potência recalcada. (DELEUZE, 2007, p. 266)..

Esta comunicação, através de séries heterogêneas, constitui um sistema sinal-signo, comum entre os fenômenos físicos e suas qualidades. “O sinal é uma estrutura em que se repartem diferenças de potencial e que assegura a comunicação dos dispares; o signo é o que fulgura entre os dois níveis da orla, entre as duas séries comunicantes.” (DELEUZE, 2007, p. 266). Na adversidade da incursão na noite fria ao norte do litoral gaúcho, a neblina densa, que ofuscou a objetiva, intensificando a divergência Da Série Incursões Noturnas / 008, desencadeou a diferença no processo de transfiguração em signo.

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[ 13 ] Segundo a reflexão teórica sobre a fotografia, baseada na semiótica de Charles Sanders Peirce, numa foto, o tempo está encerrado, retendo para sempre uma imagem que jamais se repetirá. A fotografia aponta continuamente para o que foi e não é mais, fixando o tempo do acontecimento luminoso como o traço do ocorrido.

Nas Incursões Noturnas, capturas do real transfiguramse em signos, produzindo séries, que divergem da aparência do ocorrido. Poder-se-ia pensar que os espectros nas fotografias são representações de fantasmas, mas as formas espectrais que aparecem nas fotografias não pretendem ser icônicas. Os fantasmas na fotografia são o resultado das relações indiciais entre o real, a noite, o movimento, o corpo e a fotografia; tratam-se de signos indiciais, em termos de semiótica peirceana 13. A questão não está se os espectros nas fotos representam ou não fantasmas, pois eles são propriamente fantasmas: simulacros. O acontecimento noturno, que configura a obra, pulsa em séries de ações. De cada uma dessas, outras séries divergentes propagamse configurando simulacros: fotos, vídeos e instalações. As instâncias do trabalho, a ação, as capturas e a instalação desdobram-se umas nas outras, formando uma série divergente, dissemelhante. Cada instância ressoa em série: série de ações, série de capturas, série de imersões. Todas as séries são constituídas como aparições de fantasmas que insistem em retornar. Cada aparição desdobra-se em outras séries, formando uma constelação de séries divergentes, que fulguram simulacros. Desta constelação, outras séries divergentes ressoam produzindo este texto. Deste último, outras séries... Mesmo que haja semelhanças entre séries heterogêneas, a semelhança não está baseada numa identidade preliminar como ocorre com os ícones, mas sim podendo estar na similitude como produto de uma disparidade de fundo, como identidade da diferença. A semelhança subsiste como efeito exterior do simulacro, como efeito da propagação de suas séries divergentes. Uma identidade como a lei que perturba as séries divergentes, forçando um movimento de retorno. A semelhança como a força que distorce as divergências na construção de fantasmas. Para Deleuze, esta constatação “coloca o próprio mundo

como fantasma” (DELEUZE, 2007, p. 267). Esta semelhança deve ser pensada e julgada a partir da disparidade que a constitui e a diferença deve ocupar o âmago deste sistema, então acentrado. O simulacro impossibilita a ordem platônica da participação através da distribuição hierarquizada e “instaura o mundo das distribuições nômades e das anarquias coroadas.” (DELEUZE, 2007, p. 267). Como potência para produzir um efeito, no sentido de signo, e de máscara, a simulação exprime um processo de disfarce como uma máscara por trás de outra, num movimento de eterno retorno. Entre o simulacro e o eterno retorno há uma reciprocidade de entendimento, “um não pode ser compreendido senão pelo outro” (DELEUZE, 2007, p. 270), pois o eterno retorno é o fantasma de todos os simulacros; é a potência da afirmação da divergência, do descentramento e do falso. As eternas voltas do retorno selecionam e excluem tudo aquilo que pressupõe o Mesmo e o Semelhante, o modelo e a cópia. Portanto, reverter o platonismo, em Nietzsche, significa emergir os simulacros das profundezas renegadas do platonismo, posicionando-os no mesmo plano das cópias, conquistando a potência do falso. Não se trata de distinguir essência x aparência, ou modelo x cópia, pois esta distinção refere-se à esfera da representação. O que está em jogo para o simulacro é a subversão desta lógica da representação, pois “O simulacro não é uma cópia degradada; ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução.” (DELEUZE, 2007, p. 267). As Incursões noturnas divergem da experiência encarcerada nas trevas da caverna platônica. A vivência no ambiente escuro, é libertadora, pois, pela consciência da ilusão, ou potência de criação, afirmam-se os fantasmas, quimeras e máscaras, cujas imagens reportam às incursões noturnas, que por sua vez contam sobre estar

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na duração da vida: o real perceptível mostra-se como uma face distorcida do mundo que chega até nós. Quebram-se os modelos, os moldes e as cópias e a imagem segue livre. Derrubam-se hierarquias e pontos de vista privilegiados e a obra de arte torna-se um “condensado de coexistências, um simultâneo de acontecimentos.” (DELEUZE, 2007, p. 268). Diante da vertigem do Simulacro, onde somente as diferenças se parecem, as distorções da repetição insistem através de séries dissemelhantes. Ao vagar pelo labirinto de cavernas subterrâneas, as máscaras de disfarce transfiguram a realidade, tornando-se mais possíveis que o real. Como um processo de contato, a luz que o corpo em movimento rebate atinge a superfície sensível do sensor da câmara fotográfica e “imprime” o seu duplo como um rastro. Entretanto, o corpo que insiste no espaço da fotografia mostra-se diferente em aparência. Tampouco apresenta a máxima semelhança do imago romano. Transfigura-se na superfície da fotografia, desorganiza-se, perde seus órgãos, abrem-se fendas virtualizantes, decalcando o traço da ação. Desfigurado, então, o ator da ação jaz num tempo/espaço outro. Dele resta senão um fantasma.

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Carlos Souza de; e FERNANDES, Carlos M (Orgs). O lápis mágico: Uma história da construção da fotografia. Lisboa: Instituto Superior Técnico PRESS, 2015. BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. Lisboa: Relógio D'Água, 1991. p. 198. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia – Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1996. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. FLORES, Laura González. Fotografia e pintura: dois meios diferentes? São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2009. _____. Crepúsculo dos ídolos: como filosofar a marteladas. São Paulo: Lafonte, 2018. PLATÃO. O Sofista. 236b, 264c. POE, Edgar Allan. Contos de terror de mistério e de morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. STOICHITA, Victor. O efeito Pigmalião: para uma antropologia histórica dos simulacros. Lisboa: KKYM, 2011.

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TER UMA IDEIA EM CINEMA: Sobre o ato de criação no cinema brasileiro feito por mulheres Cíntia Langie Professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Realizadora audiovisual desde 2007. Mestre em Comunicação Social (PUCRS, 2006) e Doutora em Educação (UFPel, 2020). Atualmente coordena o projeto Cine UFPel, onde também é curadora. cintialangie@gmail.com.

HAVING AN IDEA IN CINEMA: About the act of creation in Brazilian cinema made by women

Resumo: O artigo busca pensar o cinema a partir de algumas ideias do filósofo Gilles Deleuze, sobretudo no que se refere à noção de criação. Como recorte, escolhemos trazer como referências apenas filmes brasileiros dirigidos por mulheres, numa busca por dar protagonismo a obras que muitas vezes ficam esmagadas pelo cinema hegemônico. Para colocar o pensamento em movimento, garimpamos da obra de Deleuze duas noções que irão delimitar os caminhos da análise: vazamento e necessidade. Entre algumas realizadoras citadas, estão Glenda Nicácio, Ana Carolina, Lúcia Murat, Yasmin Thayná e Grace Passô. Palavras-chave: Cinema brasileiro; Mulheres no Cinema; Criação.

Abstract: The article seeks to consider cinema in relation to the ideas of the philosopher Gilles Deleuze, especially with regard to the notion of creation. As a thematic approach, we chose to bring up only references to Brazilian films directed by women, seeking to give prominence to works that are often overwhelmed by hegemonic cinema. In order to put our thoughts in motion, we extracted, from Deleuze's work, two notions that will define the paths of analysis: leakage and necessity. Among some of the directors mentioned are Glenda Nicácio, Ana Carolina, Lucia Murat, Yasmin Thayná and Grace Passô.

Este texto faz parte de um dossiê, um conjunto, um compilado de textos que buscam pensar modos de usar a filosofia de Gilles Deleuze. Aqui, vamos nos aproximar do cinema, selecionando alguns escritos do filósofo, principalmente seus textos relacionados ao conceito de criação, mas traçando um outro caminho no que se refere às referências fílmicas: se o repertório deleuziano é baseado no cinema de arte europeu, sobretudo diretores homens brancos, aqui vamos recorrer a ideias do filósofo como disparadores para pensar o cinema brasileiro feito por mulheres. A ideia do texto, portanto, é traçar um ponto de vista, com o desejo de olhar para alguns filmes da cinematografia brasileira sob o prisma da criação. Trata-se de um passeio, sem muita objetividade ou ponto de chegada, mas compondo um trajeto afetivo. Percorrendo as noções de vazamento e necessidade garimpadas na obra deleuziana, buscaremos pensar o que é “ter uma ideia em cinema”, sempre estabelecendo pontos de encontro com filmes dirigidos por mulheres. Podemos, sem medo, dizer que Deleuze está interessado nos movimentos aberrantes 1, nas experiências dissidentes, naquilo que pode criar uma nova paisagem possível: aquilo que vaza as estruturas. Ao pensar no cinema brasileiro feito por mulheres, nos interessa aquilo que rompe algumas barreiras, aquilo que ultrapassa os fluxos corriqueiros, aquilo que desvia do que corre sempre num mesmo padrão. Assim, este texto rodeia duas questões: Como o cinema brasileiro feito por mulheres vaza o modelo narrativo clássico do cinema hegemônico? Como suas histórias e temáticas estão ligadas, de certo modo, a alguma necessidade que as faz criar? De acordo com Karla Bessa, no prefácio do livro Mulheres atrás das câmeras:

Keywords: Brazilian cinema; Women in the cinema; Creation

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[ 1 ] Alusão ao título do livro Deleuze, os movimentos aberrantes, de David Lapoujade (2015).


[ 2 ] Texto publicado no Dossiê Pandemia no site da editora N-1. Disponível em: https://n-1edicoes. org/092. Acesso em 03 out. 2020.

[ 3 ] Nossa tese de doutorado, defendida em 2020, aborda a experiência com o cinema brasileiro contemporâneo e sua difusão no circuito universitário de exibição. Ver: LANGIE, Cíntia. Cinescrita das salas universitárias de cinema no Brasil. Tese de doutorado. Pelotas, PPGE UFPel, 2020. Disponível em: https://drive. google.com/ drive/ folders/ 1WMx1UvlJ5F_ ShzdHdJEIZ_ xlzb4eT55k? usp=sharing

As mulheres que desafiaram a tendência naturalizada não só no cinema brasileiro, mas no cenário mundial, e contaram suas próprias histórias – sejam elas documentais, ficcionais, em narrativas e estéticas convencionais ou ousadamente experimentais – foram sistematicamente ignoradas ou subestimadas das salas de exibição às críticas jornalistas ou acadêmicas (BESSA apud LUSVARGHI, SILVA org., 2019, p. 19).

Essa invisibilidade das mulheres na história do cinema brasileiro não é nenhuma novidade, e aqui buscaremos exaltar o trabalho delas, destacar nomes e títulos de obras e realizar um pensamento cujo protagonismo seja o delas. Esse é um de nossos objetivos. Neste artigo, não nos interessa um estudo específico sobre cada filme, com foco na estética e na linguagem das obras. Nosso interesse é a potencialidade da experiência com o filme brasileiro dirigido por mulheres de diversas regiões do país. Não se trata de uma análise aprofundada sobre um ou dois filmes, mas uma passada rápida por vários. Também não pretendemos citar todos os filmes mais importantes da cinematografia brasileira feita por mulheres, mas alguns deles que nos chamam a atenção. Concordamos com Bruna Battistelli (2020) quando ela diz: “tempos duros exigem que olhemos e valorizemos o que é produzido em nossas terras a partir de um pensamento nosso" (2020, p. 07) 2. Olhar para o cinema brasileiro trata-se, portanto, não apenas de um recorte teórico, mas sobretudo de um ato político e militante 3. Sigamos com ela: "toda pesquisa é militante! Precisamos aceitar isso e entender com que nossas pesquisas estão aliançadas. Tempos difíceis exigem conversas difíceis" (2020, p. 07). Assim, o que justifica as linhas que seguem é a necessidade de jogar luz no que o hegemônico ofusca, é salientar a importância de que tais obras dirigidas por mulheres sejam cada vez mais difundidas, amplamente disseminadas, no sentido de arejar os olhares sobre o mundo, com maior respeito à diversidade.

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Antes de iniciar a jornada, seria interessante termos algo em comum: a ideia de que a criação está num mesclar de coisas e que ela vai além do previsível. Esse mesclar de coisas é anterior à vontade das artistas, supera convenções e fórmulas detectáveis e conectase com um certo espírito do tempo. A criação é compartilhada. Com essa perspectiva em mente, partimos para um encontro afetivo com o cinema brasileiro feito por mulheres. Vazamento e criação: o feminino como inovação Quando fala especificamente do cinema, Deleuze diz haver dois perigos: ou não ter nada novo para dizer ou dizer o novo por si mesmo: fetiche de inovação, obra afetada. “Nos dois casos é copiar, copiar o antigo ou copiar a moda” (DELEUZE, 2016, p. 226). A criação pressupõe um certo vazamento: vazar padrões, romper estruturas, reunir elementos nunca dantes reunidos e, assim, o inesperado se torna eterno e necessário. Desse modo, criar, para o filósofo, é também inventar um novo jeito de resolver problemas. Para o filósofo, pensar cinematograficamente é pensar com blocos de movimento e duração. Ou seja, uma das maneiras de criar, em cinema, é inventando um modo de encadear imagens e sons, imprimindo um estilo. No texto O cérebro é a tela (2016), Deleuze conta que quando criança ia muito às salas de cinema. Depois da guerra, volta ao cinema, mas de outro modo, agora estudante de filosofia. Ao ver os novos autores e a maneira como eles exigiam que o movimento fosse introduzido no pensamento teve com isso um encontro, numa perspectiva filosófica, afirmando: “[...] foi um encontro que me impressionou” (DELEUZE, 2016, p. 299). Ao ver novos encadeamentos temporais, ao perceber modulações frente ao molde tradicional de contar histórias, viu-se instigado a escrever sobre a arte cinematográfica. Achou ali matéria para seu pensamento, que

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[ 4 ] Segundo a diretora, o filme é inspirado na linguagem de Alma no olho: “Quando vi esse filme pirei, o cara fez o que fez no filme quando eu nem era nascida” (THAYNÁ, 2015). Disponível em: https:// www.geledes. org.br/yasminthaynakbela-onegro-e-o-unicoindividuo-no-brasilque-precisa-seassumir-enquantosua-propriaracaetnia/. Acesso em: 9 out. 2020.

originou seus dois livros sobre o cinema: Imagem-movimento (1983) e Imagem-tempo (2005). Para Deleuze, o cinema vale pelos circuitos cerebrais que ele instaura. Não somente circuitos intelectuais, mas emotivos, passionais. Portanto um filme pode apresentar certa riqueza, complexidade, conexões, disjunções, circuitos e curtos-circuitos que levam o pensamento a pensar (DELEUZE, 2005). De outro lado – e para ele onde estaria a maioria da produção cinematográfica – há tão pouca criatividade na forma de encadear as imagens e na arte de contar histórias que se configuraria como deficiência do cerebelo. O que Deleuze chama de circuitos são as formas como a montagem articula ligações entre as imagens e sons nos filmes. Cada cineasta decide se quer investir em circuitos clássicos, de encadeamento causal, como na narrativa clássica hollywoodiana (BORDWELL, 2005), ou se quer inventar circuitos livres, novos (DELEUZE, 2005, p. 87). Lembremos, com isso, dois filmes brasileiros contemporâneos, dirigidos por mulheres negras. O curta-metragem Kbela (Yasmin Thayná, 2015) retrata o racismo estrutural de uma forma experimental, inusitada e inovadora. Bebendo do jogo estético proposto por Zózimo Bulbul em Alma no olho (1974) 4, Yasmin Thayná cria um caminho singular, feminino, para dar conta de tópicos fundamentais da luta antirracista, sobretudo na sua interseccionalidade com a questão de gênero e classe. Yasmin Thayná inventa, cria, fabula. Vale-se de alegorias: cenas poéticas, que fogem da significação dura e fechada, buscando a sensação a partir de imagens fortes e não previsíveis. Durante os 21 minutos do filme, experimentamos um jogo de imagens puras (Deleuze, 2005): cenas desconexas entre si, sem relação causal própria do sistema sensório motor, é a invenção de um novo espaço-tempo, de uma nova forma de contar uma história, aquela história: do corpo negro em uma sociedade misógina e racista.

A filosofia se conecta com o cinema porque ambos propõem uma montagem, “uma decupagem das coisas” (DELEUZE, 2016, p. 224). Enquanto a filosofia agrupa no mesmo conceito coisas que se acreditaria serem muito distantes, o cinema por sua vez atua por decupagem de imagens visuais e sonoras. O cinema é um agrupamento de heterogêneos, em um filme temos a coexistência de elementos variados e variáveis, como nas cenas de Kbela, em que ouvimos um jazz muito alto, misturado a vozes soltas de xingamentos ao corpo negro, vozes essas que não tem um sujeito, mas surgem como do imaginário coletivo. Enquanto isso, vemos na tela, de forma intercalada, uma mulher que mastiga algo indigesto, bocas soltas falando coisas ininteligíveis (alusão às vozes) e a imagem da foto acima: no banheiro, uma mulher sem cabeça esfrega os cabelos de uma cabeça de mulher negra. É uma costura de imagens e sons que dá ao filme um tom ensaístico, pois a montagem não segue uma lógica causal e realista, mas brinca com as possibilidades do campo cinematográfico.

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Figura 1. Frame do filme Kbela: alegoria do tratamento de alisamento de cabelos crespos. Fonte: Kbela (2015).

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No longa-metragem Café com canela (Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2017), percebemos uma série de escolhas visuais ousadas para dar conta de criar a atmosfera necessária para o drama que está sendo contado. A história se passa no interior da Bahia, e uma experimentação visual é feita para criar a ideia de comunidade, de que aquelas personagens compartilham um território afetivo comum. Na cena em que a protagonista Violeta (Aline Brune) sai de casa, um jogo de pós-produção cria a falsa sensação de que estamos em uma casa só, com três portas: a porta da casa da Violeta e as portas de seus dois vizinhos. Um plano apenas que reúne três casas, num jogo geográfico que cria um espaço afetivo na tela, familiar, de comunidade. Como esse filme conta a dor de uma mãe (Margarida, vivida por Valdinéia Soriano) que perdeu um filho, a direção encontrou uma forma de dar a ver a relação com a espiritualidade desta personagem com cenas na cachoeira para nos levar ao campo da ancestralidade. Nessas cenas, ficamos sem saber se o que ocorre na tela é real ou trata-se de sonho da personagem. De nossa leitura da obra deleuziana, entendemos que a imagem-tempo se expressa com elipses, hiatos, vazios, apresenta-se como uma forma errante, dispersiva. É própria de filmes que contam histórias ambíguas, com princípio de indiscernibilidade (DELEUZE, 2005, p. 16): não se sabe mais o que é imaginário ou real. Nesses casos, o cineasta constrói um mundo, um espaço-tempo próprio que não segue as leis do tempo cronológico, nem do espaço real. Não há a obrigação, na arte, de ser fiel às representações, nem ao mundo exterior: as coisas perdem funcionalidade. Ainda em Café com canela, há o recurso de elementos fantásticos, como o sangue escorrendo na parede do quarto e as paredes da cozinha se fechando e enclausurando a personagem em desespero. Tudo isso são invenções em cinema para criar sensações, mostrar visualmente o que as personagens estão vivendo em suas

subjetividades. E talvez a cena mais tocante do filme seja aquela em que as duas personagens conversam sobre o que é o cinema. No final desse diálogo, Violeta olha diretamente para a câmera, no olho do espectador, quebrando a dita quarta parede. Nesse momento perdemos a relação com o tempo cronológico e viajamos junto com o devaneio da personagem. Na imagem-movimento, o esquema sensório-motor permite que se adivinhe o que vai vir depois, pois uma imagem engancha na outra. Na imagem-tempo não há necessariamente esse prolongamento, pois não se reconhece o que virá na sequência: é aí que o pensamento é convidado a um exame e o espectador pode, assim, se envolver com a própria imagem, por isso Deleuze as chama de puras. Se a imagemmovimento submete a matéria à representação, a imagem-tempo passa a liquefazer a previsibilidade das histórias, como no filme Um céu de estrelas (Tata Amaral, 1996), em que a personagem, diante de

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Figura 2. Frame do filme Café com canela: elemento fantástico do sangue para mostrar a dor da personagem. Fonte: Café com canela, 2017.

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situação tão surreal no seu relacionamento abusivo, não age mais com lógica nenhuma: às vezes reage às situações, noutras assume atitudes imprevisíveis. Esse é um filme-chave da cinematografia feminina e feminista brasileira. Se passa todo dentro de um mesmo cenário: a casa de Dalva (Leona Cavalli), a protagonista. Enclausurada em seu território, é invadida por seu ex-namorado, numa alusão direta aos abusos de parceiros no universo particular das mulheres. Ali, no ambiente doméstico, em planos fechados, Dalva está encurralada e suas atitudes variam entre o desespero, a culpa, o amor e a vontade de resistir ao que passa com ela. Um caminhão de emoções em poucas horas da vida de uma mulher, e nós, espectadores, somos convidados a criar nossas versões e julgamentos para a história, pois nada fica entregue de bandeja nessa obra. Outro filme de Tata Amaral, Hoje (2011), também brinca com essa zona de indiscernibilidade entre realidade e imaginação, ao contar a história de uma mulher que perdeu seu marido durante a ditadura. A protagonista Vera (Denise Fraga) compra um imóvel com a indenização que recebeu do governo pela morte misteriosa de seu ex-marido. Novamente brincando com o espaço da intimidade, Tata Amaral cria um universo doméstico para sua protagonista e narra as possibilidades de invasão desse espaço de uma forma nada convencional: tentando recomeçar a vida na casa nova, Vera passa a ser atormentada pelo fantasma do exmarido, que surge física e simbolicamente, atuando como uma ideia em cinema, com imagens e sons, para dar uma sensação de um passado que nunca nos abandona. Também inovadores a seu próprio modo são os filmes da cineasta Ana Carolina, cuja estética varia entre a crítica e a ironia, beirando o surrealismo em alguns títulos. Destaque para a sua trilogia

da condição feminina: Mar de rosas (1977); Das tripas coração (1982) e Sonho de Valsa (1987). Todos esses possuem formas narrativas disfuncionais, ou seja, há elipses, ambiguidades, coisas que ficam mal explicadas, entradas bruscas de novos elementos, ousadia nas representações das personagens, situações cômicas e inusitadas. São narrativas de rupturas, deslocamentos, há sempre alguma insatisfação nas personagens, um incômodo, como se fosse alguma força feminina ali representada, que não se adapta aos modelos sociais vigentes da época. Suas personagens femininas excêntricas parecem dizer que a loucura era a única saída para a sobrevivência em uma sociedade com valores arcaicos e absurdos.

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Figura 3. Frame do filme Mar de rosas: personagens presos em valores soterrados. Fonte: Mar de rosas, 1977.

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O filme Mar de rosas segue uma lógica rarefeita, aberta, esvaziada: um road movie que transpassa três gerações de mulheres e uma série de eventos cuja lógica é a crônica de situações inesperadas. Se em Deleuze ter uma ideia em cinema é criar blocos de movimento e duração que comportem sensações, podemos traduzir que a criação, ou o vazamento, está no gesto de inventar imagens que, mesmo sem significar algo de forma clara e direta, permitem um jogo com o espectador e o levam a múltiplas interpretações, numa possibilidade de experiência, de vivenciar as histórias junto das personagens. É como a cena da montanha de areia em Mar de rosas. A personagem da filha Betinha (Cristina Pereira), entediada, sai na frente da casa. Nesse momento, passa um caminhão com entrega de areia. Betinha inventa que o material era sua encomenda e pede ao motorista que despeje tudo pela janela. Enquanto isso, Betinha entra na casa e tranca sua própria mãe Felicidade (Norma Bengell) na peça da frente, para que ela fosse soterrada pela areia. Como esse filme retrata três gerações de mulheres - uma mais velha acomodada num casamento infeliz, uma de meia idade tentando sair do casamento e a menina que busca subverter tudo – esta cena é o ponto máximo da invenção imagética para dizer mais: é a mãe; são os valores ultrapassados; as regras; a tristeza e a normativa social que Betinha pretende soterrar. Ana Carolina inventa mundos e universos singulares em outros de seus filmes, como a escola decadente para mostrar a sociedade em ruínas em Das tripas coração, como a mulher entrando pelo cano em Sonho de valsa, como a impossibilidade de comunicação e convivência entre as diferenças em Amélia (2000). São filmes em que percebemos certa ambiguidade, brechas, disjunções. O cinema de Ana Carolina se liberta dos clichês fechados em representações que induzem a respostas prontas. No filme Das tripas

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coração acompanhamos o cotidiano nada pacato de professoras e estudantes que se comportam de modo aleatório, por vezes histérico, e uma série de eventos cuja lógica é a crônica de situações inesperadas. O filme deixa buracos, introduz vazios e espaços em branco, rarefaz a imagem. “Suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo” (DELEUZE, 2005, p. 32). Poderíamos dizer que Ana Carolina faz ver sem mostrar tudo, para que cada espectador possa criar sentidos de acordo com sua própria experiência. E tudo isso também se torna possível pelo modo como a autora inventa suas personagens mulheres, fugindo dos clichês da mídia de massa, pois, como diz Flávia Guerra “é mais fácil uma mulher não fazer uma caricatura de uma personagem feminina” (GUERRA apud LUSVARGHI, SILVA org., 2019, p. 197). Assim, muitas mulheres têm ideias em cinema a partir de um desejo de experimentação, realizando obras menos previsíveis, criando soluções visuais e sonoras para suas histórias. Uma força, também, para atuar como um sopro de arejamento de criação, em uma era marcada pela redundância no campo audiovisual, com filmes de mercado cada vez mais repetitivos e previsíveis. E tal marca de invenção, muitas vezes, advém de uma necessidade intrínseca ao fato de ser mulher, como veremos a seguir. Necessidade: o cinema como grito de guerra diante das opressões Criar também é trabalho e retrabalho, exige muito esforço. “Não há obra, mesmo curta, que não implique uma grande empreitada” (DELEUZE, 2016, p. 305). No Abecedário, o filósofo vai lembrar que “ideias não nascem prontas. É preciso fazê-las” (1997, p. 54). Para traçar um plano que corta o caos - para criar - é necessário, além de ideias, afinco, rigor. Lapidar a obra, deixar fluir, dar tempo, distanciamento, produzir, desmontar, refazer: como um artesanato. Só para citar um

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[ 5 ] Entrevista da diretora disponível em: https://revistaquem. globo.com/ Entrevista/ noticia/2015/10/ diretora-annamuylaert-falasobre-que-horasela-volta-estouorgulhosa-de-mim. html. Acesso em: 15 set. 2020

[ 6 ] Texto na íntegra disponível em: https://lapea. furg.br/images/ stories/Oficina_de_ video/o%20ato%20 de%20criao%20 -%20gilles%20 deleuze.pdf. Acesso em janeiro de 2019. Vídeo da palestra disponível em https://www. dailymotion.com/ video/x1dlfsr

exemplo, Anna Muylaert conta que levou praticamente 20 anos para criar o filme Que Horas ela volta? (2015), já que a ideia de fazer um roteiro sobre a vida de uma babá surge em 1995, ano em que seu filho nasceu 5. E foi dessa experiência pessoal, que a artista sentiu a necessidade de transformar suas ideias em um filme. Em O ato de criação - palestra proferida em 1987 para alunos de Cinema 6 -, Deleuze dialoga sobre o que seria ter uma ideia em cinema. Para o filósofo, ter uma ideia é algo raro, uma espécie de festa. Além disso, só é possível ter uma ideia em um domínio específico: “as ideias, devemos tratá-las como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão” (DELEUZE, 1987, p. 2). Segundo Deleuze, é preciso que um cineasta tenha uma necessidade, caso contrário, ele não tem nada. “Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade” (idem, p. 3). E essa necessidade faz com que cada artista saiba do que quer se ocupar. A partir disso propõe inventar imagens e sons e colocá-los em sequência em um bloco de movimento-duração que é o filme. Desse caldo possível, da costura de retalhos própria do cinema, há uma forma de contar histórias que aposta no hibridismo de gêneros, como a mistura de elementos documentais com cenas ficcionais nos filmes Que bom te ver viva (1989) e Uma longa viagem (2011), ambos de Lúcia Murat. Nos anos 1970, Lúcia Murat foi presa política e sua militância se faz presente de forma viva em seu cinema. Como diz Angela Davis: “profissionais da cultura, portanto, devem se preocupar não só em criar arte progressista, mas em se envolver ativamente na organização de movimentos políticos populares" (2017, p. 180). Essa é a verve criativa de Lúcia Murat. Uma verve pautada pela necessidade. Ambos os filmes acima citados tratam de assuntos relativos à ditadura militar brasileira. Além desses, todos os demais títulos dirigidos por ela carregam a marca de uma atitude política, levando suas batalhas

da vida ao cinema. Ela parece querer exorcizar, no cinema, problemas existenciais, experiências profundas, vividas na pele. Em Que bom te ver viva, Lúcia Murat reúne falas de diferentes mulheres, todas elas resistentes do período da ditadura. São entrevistas no estilo documentário expositivo. Porém, tais falas são intercaladas por cenas ficcionais de uma personagem que interpreta uma mulher que sofreu tortura sexual e quer seguir sua vida. Para contar essa história, Lúcia Murat lança mão da fabulação de uma personagem ficcional que não só costura os demais depoimentos, como contribui para criar uma imagem de resistência e seguir em frente. Em Uma longa viagem, a diretora brinca com o tempo e o espaço. Novamente misturando ficção e realidade, cria um documentário autobiográfico cuja linha cronológica segue as memórias de seu irmão Heitor, o principal entrevistado do filme.

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Figura 4. Frame de Uma longa viagem: Lúcia Murat e seu irmão Heitor. Fonte: Uma longa viagem, 2011.

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Nesse documentário, Lúcia Murat entra em cena, pois é sua voz que narra em primeira pessoa. Para dar vida às suas lembranças, ela usa novamente o artifício de um personagem ficcional (Caio Blat), mas dessa vez baseado no seu próprio irmão. Através de leituras de cartas, projeções de fotos e imagens de arquivos, elementos poéticos da direção de arte, podemos viajar no tempo como se estivéssemos acompanhando as aventuras de Heitor jovem. Além disso, o advento das cartas reais que os irmãos trocavam na juventude traz à obra uma imagem de memória. Tudo isso representa o mundo imaginário de Lúcia Murat, expresso pela sua necessidade de falar de todas essas coisas caras a ela. Necessidade também fez Teresa Trautman criar o filme Os homens que eu tive (1973). Um filme considerado ousado para a época, por contar a história de Pity (Darlene Glória), uma mulher que vive um relacionamento aberto com vários homens. Teresa é a primeira mulher diretora de um longa-metragem de ficção no cinema moderno brasileiro, e é a única mulher do país a criar e comandar um canal de TV por assinatura: Cine Brasil TV. Sua necessidade de falar de um assunto que na época era considerado um tabu só reforça sua personalidade forte e disposta a romper barreiras. O filme questiona os papéis sociais atribuídos às mulheres e aos homens e provoca uma nova paisagem possível para a subjetividade feminina: necessidade de impor novos jeitos de pensar e de agir. Essa verve feminista também se expressa na obra da diretora Ana Carolina, principalmente na sua trilogia da condição feminina, já citada na seção anterior deste texto. A revolução feminina não é de agora e está presente desde o começo da história do cinema. Basta lembrarmos da primeira mulher negra que dirigiu um longametragem no Brasil, Adélia Sampaio, e seu filme sobre o amor entre duas mulheres em 1984. O seu Amor Maldito não foi apenas o primeiro

filme dirigido por uma mulher negra, mas o primeiro filme que fala do tema lésbico na história do cinema brasileiro. Um fato curioso é que o filme foi feito de forma cooperativada, e a Embrafilmes se recusou a financiar a obra na época, alegando se tratar de uma "bestialidade", por conta da temática homossexual. Mesmo com todos os contratempos, Adélia Sampaio manteve-se firma na sua necessidade de contar essa história, e teve uma ideia em cinema, ao fazer todo o filme intercalando dois tempos: o da história de amor entre Fernanda (Monique Lafond) e Sueli (Wilma Dias) e o do julgamento de Fernanda no tribunal após o suicídio de Sueli. A escolha do local onde se passa uma história é um gesto de criação, que porta uma proposta estética e um jogo de sensações. A clausura do ambiente fechado, o imaginário de um tribunal: o que está sendo julgado nesta obra? A personagem Fernanda e o suposto assassinato passional? Ou o amor entre duas pessoas do mesmo sexo? Com esse filme, Adélia Sampaio cria não apenas uma obra de arte, mas

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Figura 5. Frame de Amor Maldito: o ambiente do tribunal como metáfora contra a homofobia. Fonte: Amor Maldito, 1984.

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[ 7 ] Segundo pesquisa da ANCINE, 98% da produção cinematográfica brasileira é de diretores homens (LUSVARGHI, SILVA org., 2019, p. 15).

um grito de guerra na luta contra a homofobia, mostrando de modo poético o quanto o preconceito oprime as pessoas na sociedade. É também, muitas vezes, a necessidade de escancarar problemas sociais que leva muitas mulheres brasileiras a realizarem seus filmes. Apesar de pouco citada e raramente lembrada, temos o trabalho militante de Helena Solberg, única representante feminina do Cinema Novo. Além disso, cabe lembrar uma série de documentaristas que atuam em prol de causas igualitárias, com destaque a Maria Augusta Ramos. Esta cineasta, responsável por, entre muitos outros, O processo (2018), tem uma carreira inteira dedicada a um cinema de denúncias de problemas sociais da realidade brasileira, numa busca por permitir que vozes periféricas se expressem por elas mesmas. Com seu estilo observativo, Maria Augusta aposta na invisibilidade da câmera para trazer à tona situações de pessoas normalmente excluídas, utilizando o recurso da encenação em alguns títulos. Seu cinema manifesto pode ser compreendido pela sua chamada trilogia da justiça, com os filmes Justiça (2004); Juízo (2007) e Morro dos prazeres (2013). Se para Deleuze ter uma ideia é algo raro (1987, p. 2), podemos dizer que ainda mais difícil é para mulheres criar em um campo tradicionalmente masculino, ou melhor, um campo em que os pontos de vista e os repertórios imagéticos são sobretudo criados por homens 7. Mais raro ainda, então, é para uma mulher, dentro de um universo machista, poder colocar seu ponto de vista. E aí está o grande diferencial, como é o caso das personagens fora do padrão criadas por Ana Carolina, ou da sutileza na montagem dos documentários de Maria Augusta Ramos. Essas ideias, normalmente, advêm das suas próprias experiências. Ou seja, ter uma ideia em cinema, para as mulheres, muitas vezes é como um sopro de desabafo de uma sociedade opressora, e é a

partir da vivência de cada uma, nessa sociedade, que elas sentem necessidade de falar de determinados assuntos do mundo. Em seu curso sobre roteiro, a diretora Anna Muylaert, autora dos filmes Durval Discos (2003), Que Horas ela volta? (2015) e Mãe só há uma (2016), diz que tudo que ela sabe está na pele. Tudo que adquiriu de conhecimento sobre o ofício de escritora foi na experiência, no embate corpo a corpo. Para ela, há um conhecimento acumulado, que vem dessa trajetória, mas cada filme é um filme, e cada processo é único. O principal é descobrir o seu processo a cada vez. O que se cria em cinema: um campo imagético, um repertório de imagens que pode arejar o que é possível no mundo. E muitas vezes vem das mulheres essa modificação de clichês do cinema brasileiro, para além daquilo que estamos acostumados a ver. Na pegada do afrofuturismo, temos, vindo à tona, uma promessa de vozes e ideias de mulheres negras no audiovisual que, sobretudo por necessidade, jamais deixam de tocar nos temas do racismo e da luta de classes em suas obras. Um exemplo é a série documental Afronta! (2020), escrita e dirigida pela cineasta Juliana Vicente. Produzida pela Preta Portê Filmes, em coprodução com o Canal Futura, Afronta! apresenta entrevistas com artistas negras e negros que se realizaram em seus campos de atuação: música, cinema, moda, dança e artes em geral. A série também está disponível na Netflix. Impossível não citar o trabalho de Grace Passô - que é inclusive uma das entrevistadas da série Afronta! - e sua necessidade de exorcizar suas dores. Seja o desprezo pelo caminho que segue o Brasil, no curta República (2020) da série IMS Convida 8, seja em seu estrondoso manifesto sobre o corpo preto na peça Vaga Carne, que virou filme em 2020, Grace Passô busca colocar em seu cinema, de forma abstrata, com uma força e uma presença incríveis, as suas lutas de vida.

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[ 8 ] Disponível em https://www. youtube.com/ watch?v=Cil9R4CSMw


compartilha atores sociais como personagens, e o roteiro é inspirado nas histórias de vida das mulheres da periferia. E assim voltamos ao livro Mulheres por trás das câmeras: A expectativa é de que, ao sabermos valorizar essa produção e a importância de diminuir as desigualdades de gênero no cinema, também possamos ver outros modos de enquadrar a cultura branca ocidental, a miséria e a desigualdade social, as disputas por outros mundos, corpos e subjetividades, despertando em nós autocríticas ainda não assentados no nosso campo de "afectos e perceptos" (BESSA Apud LUSVARGHI, SILVA org., 2019, p. 11).

Figura 6. Frame de Vaga Carne: Grace Passô e a presença do corpo preto. Fonte: Vaga Carne, 2020.

Essa necessidade é expressa também na noção de comunidade que algumas obras reivindicam. A comunidade não só como elemento filmado, mas como característica nas equipes por trás das câmeras. Um gesto de criação compartilhada, de incorporar o local filmado também na realização dos filmes. Um exemplo é o longa Café com Canela já citado anteriormente. Essa produção foi encabeçada por ex-alunos de um curso público de Cinema da Universidade Federal do Recôncavo Baiano - UFRB, fora dos grandes centros urbanos tradicionais do Brasil e contou com a participação da comunidade local na equipe técnica e elenco. Outro exemplo é o filme Baronesa (2017). Para a realização desse filme, a diretora Juliana Antunes morou seis meses na favela a fim de se aproximar da realidade filmada. A obra

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Expandir nosso repertório imagético como forma de estar no mundo com mais respeito às diferenças: esse é o aprendizado que a experiência com esses filmes dirigidos por mulheres pode trazer. Aqui, sem querer esgotar o tema, nos interessa falar da conquista de uma personalidade narrativa do cinema brasileiro feito por mulheres. Uma certa maturidade na variedade de obras a respeito de realidades socioculturais distintas, no aparecimento de gestos originais de artistas e artesãs, muitas dessas residentes em regiões periféricas desse país de dimensões continentais. São, pois, obras politicamente engajadas e, no contexto atual em que o embrutecimento parece tomar conta do panorama político brasileiro, lamentamos que tais obras nem sempre tenham espaço para circular e chegar amplamente ao público. Despedir-se com uma provocação: como vazar no consumo de filmes? Os filmes das diretoras acima citadas possuem como marca a invenção de um mundo visual a partir do encadeamento entre questões individuais dos personagens com problemas sociais dos lugares em que vivem. Não se trata de mulheres no isolamento, mas em relações; não são (super) heroínas idealizadas dos filmes de mercado, mas a história de mulheres comuns, brasileiras. Esse tipo de imagem porta, pois, algo de variação: ventila o que pode e o que

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não pode ser dito, valendo-se de tipos comuns. As personagens de grande parte dos filmes aqui citados nascem como circunstâncias: forças revolucionárias que se agitam para mostrar realidades, fazer ver uma dimensão de existência de milhares de mulheres brasileiras. Porém, fica a provocação: Onde estão estes filmes? No contexto atual, apesar da profusão da produção de obras na cinematografia brasileira, vigora ainda o que Sales Gomes, na década de 1960, classificava como colonialismo cultural: “Lutar para fazer filmes e precisar, para exibi-los no próprio país, recomeçar uma luta ainda mais exaustiva é afinal de contas um escândalo” (SALES GOMES, 2016, p. 368). E para além do já tão anunciado domínio do mercado pelos filmes estrangeiros - a maioria dirigido por homens -, acreditamos que há algo cultural, uma necessidade de nos reeducarmos para um consumo consciente de audiovisual, o que poderíamos, sem juízo de valor, chamar de responsabilidade do espectador. Daí finalizamos com algumas provocações, retomando as noções já apresentadas anteriormente de vazamento e de necessidade: Como vazar a previsibilidade no consumo de imagens? Como romper os algoritmos, o que a grande mídia nos impõe com a propaganda e o marketing? Como sair dos clichês, daquilo que nos é empurrado goela abaixo pelo mercado conservador? O que temos visto condiz com nossas necessidades de vida e existência? Reparamos de onde vêm os filmes? Quem os produziu? Como diz a música do Titãs: “...a televisão me deixou burro, muito burro demais. Agora todas coisas que eu penso me parecem iguais...”. Tudo aquilo em que a gente encosta, contamina. Nesse período de pandemia, essa declaração é mais visceral: como um vírus, as referências estereotipadas e clichês da mídia de massa se incorporam no cotidiano social e nos modos vigentes de criar e viver relações no mundo. Num contraponto, trazemos também a música da

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banda Mulamba: “você vai lembrar quando eu te olhar lá de cima... Vai reconhecer e vai respeitar minhas cinzas”. Portanto, está mais do que na hora de as realizadoras mulheres - negras, brancas, indígenas, trans - serem assistidas e respeitadas. Precisamos, todas e todos nós, lutar pelo fim do privilégio de fala, também no cinema, para que cada vez mais as próprias mulheres passem a contar suas realidades. Reconhecer os pontos de vista produzidos a partir das experiências vividas, da necessidade de criação que advém de subjetividades singulares. Trata-se de uma atitude feminista também na escolha do que ver e do que compartilhar. Procurar assistir e difundir obras que busquem, por que não dizer, mudar o mundo para outro que não seja patriarcal, nem racista, nem heterossexista, nem classista. Muitas diretoras mulheres podem oferecer experiências sensíveis nesse sentido. Como subverter as nossas escolhas e entrar em contato cada vez mais com obras produzidas por mulheres? Obras que portam características singulares de suas comunidades de origem e que, por isso mesmo, se fossem amplamente difundidas, trariam uma outra dinâmica à cinematografia nacional, uma certa multiplicidade de olhares. E, como não poderia ser diferente, finalizamos com uma citação delas sobre elas: O que temos a perder se mais mulheres das periferias, dos cafundós do Brasil, indígenas, negras, trans ... sejam instigadas a nos oferecer seus olhares? (BESSA Apud LUSVARGHI, SILVA org., 2019, p. 11).

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REFERÊNCIAS

FILMES CITADOS

BATTISTELLI, Bruna. Cara colega de Universidade. In: Dossiê Pandemia. Site da editora N-1. (2020). Disponível em: https://n-1edicoes.org/092. Acesso em: 03 out. 2020.

AFRONTA! Direção: Juliana Vicente, Brasil, 2020.

DAVIS, Angela. Mulheres, Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2017.

AMÉLIA. Direção: Ana Carolina, Brasil, 2000.

DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1983.

AMOR maldito. Direção: Adélia Sampaio, Brasil, 1984.

_________. O ato de criação. Tradução: José Marcos Macedo. In. Folha de São Paulo, 27/06/1999. Transcrição de conferência realizada em 1987.

BARONESA. Direção: Juliana Antunes, Brasil, 2017.

ALMA no olho. Direção: Zózimo Bulbul, Brasil, 1974.

CAFÉ com canela. Direção: Glenda Nicácio e Ary Rosa, Brasil, 2017. _________. A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’ Abécédaire de Gilles Deleuze. Entrevista com Gilles Deleuze. Editoração: Brasil, Ministério de Educação, “TV Escola”, 2001. Paris: Editions Montparnasse, 1997. 1 videocassete, VHS, son., color. DELEUZE, Gilles. Dois regimes de loucos. Textos e entrevistas (1975-1995). São Paulo: Editora 34, 2016.

DAS tripas coração. Direção: Ana Carolina, Brasil, 1982. DURVAL discos. Direção: Anna Muylaert, Brasil, 2002. JUSTIÇA. Direção: Maria Augusta Ramos, Brasil, 2004. JUÍZO. Direção: Maria Augusta Ramos, Brasil, 2007. KBELA. Direção: Yasmin Thayná, Brasil, 2015.

LANGIE, Cíntia. Cinescrita das salas universitárias de cinema no Brasil. Tese de doutorado. Pelotas, PPGE UFPel, 2020. Disponível em: https://drive.google.com/ drive/folders/1WMx1UvlJ5F_ShzdHdJEIZ_xlzb4eT55k?usp=sharing.

MÃE só há uma. Direção: Anna Muylaert, Brasil, 2016. MAR de rosas. Direção: Ana Carolina, Brasil, 1977.

LUSVARGHI, Luiza; SILVA, Camila Vieira da. Mulheres atrás das câmeras. São Paulo: Estação Liberdade, 2019. THAYNÁ, Yasmin. O negro é o único indivíduo no Brasil que precisa se assumir enquanto sua própria raça/etnia. In: Portal Geledés, 2015. Disponível em: https:// www.geledes.org.br/yasmin-thaynakbela-o-negro-e-o-unico-individuo-no-brasilque-precisa-se-assumir-enquanto-sua-propria-racaetnia/.

MORRO dos prazeres. Direção: Maria Augusta Ramos, Brasil, 2013. PARAÍSO Perdido. Direção: Monique Gardenberg, Brasil, 2018. PROCESSO, O. Direção: Maria Augusta Ramos, Brasil, 2018. QUE horas ela volta? Direção: Anna Muylaert, Brasil, 2015. REPÚBLICA. Direção: Grace Passô, Brasil, 2020. UMA longa viagem. Direção: Lúcia Murat, Brasil, 2011. UM céu de estrelas. Direção: Tatá Amaral, Brasil, 1996. VAGA Carne. Direção: Grace Passô, Brasil, 2020.

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O diagrama da gruta: imagem e pintura em Clarice Lispector e Gilles Deleuze Lilian Hack Doutora em Artes Visuais1, com ênfase em História, Teoria e Crítica da Arte pelo PPGAV/UFRGS (2020), realizou pesquisa pelo PDSE/CAPES na UPJV, em Amiens, França (2018-2019). Investiga os processos de criação na escrita sobre arte e as relações entre palavra e imagem. lilianhack@gmail.com

[ 1 ] A tese de doutorado intitulada Escrever um sopro em papel de água viva: imagem e pintura em Clarice Lispector está disponível aqui: http://hdl.handle. net/10183/214321.

Le diagramme de la grotte: image et peinture dans Clarice Lispector et Gilles Deleuze

Resumo: Como enunciar a conflagração que dá lugar a uma imagem? Neste ensaio exploramos esta questão desde uma articulação oferecida pelo conceito de diagrama, tal como o lemos em Lógica da Sensação, de Gilles Deleuze, exibindo uma investigação do plano de forças que compõem as imagens de dois quadros pintados pela escritora Clarice Lispector, que possuem como tema a gruta. Nessa exploração, partilhando um recorte possível diante da complexidade dos processos de criação, teríamos um “diagrama da gruta”. Palavras-chave: Clarice Lispector; Gilles Deleuze; Pintura. Imagem; Diagrama.

Résumé: Comment énoncer la conflagration qui donne place à une image? Dans cet essai, nous avons exploré cette question à partir d'une articulation offerte par le concept de diagramme, tel que nous le lisons dans la Logique de la Sensation de Gilles Deleuze, montrant une investigation du plan des forces qui composent les images de deux tableaux peints par l'écrivain Clarice Lispector, qui ont pour thème la grotte. Dans cette exploration, partageant une esquisse possible devant de la complexité des processus de création, nous aurions un « diagramme de la grotte».

Ler Clarice com Deleuze Ler Clarice Lispector com Gilles Deleuze é um exercício de entrega a um pensamento das sensações, ao fluxo das palavras geridas pelas forças vertiginosas do devir e da imanência. O pesquisador Carlos Mendes de Sousa (2012) escreveu certa vez que Clarice Lispector é deleuziana. Há especulações que dizem que Deleuze é que é clariciano. No prefácio do livro de Simone Curi (2001) o filósofo Peter Pál-Pelbart sugere que seria possível acessar um devir-Deleuze em Clarice Lispector e um devir-Clarice em Gilles Deleuze. Sem dúvida Clarice Lispector produziu uma escritura nômade, como afirma Curi. Uma escrita fragmentária, composta por um método de bricolagem, por uma superfície de deslize ininterrupto das palavras em direção a um sentido sempre diverso daquele da sintaxe usual. Sua linguagem é aquela do desvio, do erro, como diria Maurice Blanchot (2011). Lemos Clarice Lispector e é como se ela nos lesse em suas palavras. E esse efeito surpreendente não depende de gêneros. Clarice Lispector rompe com toda identidade e nos convoca desde as mais insuspeitadas visões das coisas e acontecimentos. Deleuze, com sua filosofia da diferença, nos entrega ao mesmo plano de sensações. Alheia aos gêneros, Clarice Lispector não produziu apenas literatura. Suas pinturas nos entregam a uma prática muito singular de elaboração que contudo não difere desse método improvisado e bricoleur que lemos em alguns de seus livros. Apesar da fragilidade técnica e da timidez com que tratou seus quadros, eles demonstram uma ousadia em relação à abordagem da matéria e dos materiais. E levantam questões muito interessantes desde a perspectiva das relações conceituais entre escrita e imagem, guardando aspectos

Mots-clés: Clarice Lispector; Gilles Deleuze; Peinture; Image; Diagramme.

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ainda inexplorados acerca dos processos de criação visuais da escritora. Neste ensaio nos dedicaremos a pensar duas de suas pinturas que contornam um mesmo “tema”: a gruta. Tentando nos aproximar de certos aspectos do processo de criação destas imagens, nos utilizaremos do conceito de diagrama, elaborado por Gilles Deleuze. Este filósofo nos mostrou muito bem como há um problema comum às artes, seja à pintura, literatura, música, etc., que é aquele da captura de forças. E o diagrama surge na confluência de diferentes forças e signos em relação. Desse modo, nos interessa investigar quais forças estão em relação na pintura de Clarice Lispector, e que repercutem também sobre sua escritura, desde signos a cada vez particulares. Segundo a artista e filósofa Anne Sauvagnargues (2014), estudiosa da obra de Gilles Deleuze, e disseminadora de um pensamento sobre a ecologia das imagens, a força não é apenas potência, ela é imagem. Ela nos mostra como a imagem não se define por seu suporte, mas consiste em uma relação de forças, de ações e reações, a imagem é um composto de afectos e perceptos. E como a força, ela é necessariamente plural. Uma imagem isolada não tem nenhum sentido porque ela é uma relação de forças. Desde essa perspectiva, no presente ensaio, nos propomos pensar a imagem da gruta de Clarice Lispector em três movimentos: primeiro como uma “imagem vista”, uma cavidade explorada em seu interior. Segundo, como uma “imagem pintada”. E terceiro como uma “imagem escrita”. Estes três movimentos compõem o que nomeamos de diagrama da gruta. Certamente esse diagrama não se reduziria a estas três imagens que aqui exploramos, contudo, o recorte nos permitirá uma aproximação possível ao conceito de Deleuze e à obra de Clarice Lispector.

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Uma imagem em três movimentos Em uma carta endereçada a suas irmãs, em novembro de 1950, Clarice Lispector conta como foi sua visita a uma caverna – uma gruta – situada nos arredores da cidade de Torquay, na Inglaterra, na época em que acompanhava seu marido, o diplomata Maury Gurgel Valente: “Ontem fomos ver umas cavernas antigas – milhões de anos pré-histórica. Foi muito bonito. Apesar de dar certa aflição. Saí de lá disposta a não me preocupar com coisas pequenas, já que atrás de mim havia tantos e tantos anos” (2007, p. 236). Provavelmente ela se referia à Kent’s Cavern, um complexo de cavernas que constitui um dos sítios paleontológicos mais importantes da Europa, por guardar alguns dos fósseis hominídeos mais antigos da região. Essa visita impressionada de Clarice Lispector registra o encontro com a pré-história, ciência relativamente nova na época, cujas investigações tiveram grandes desdobramentos sobre as produções artísticas modernas, especialmente depois da “descoberta” – ou reconhecimento histórico – das pinturas rupestres na Grotte de Lascaux, na França, e da Cueva de Altamira, na Espanha, poucos anos antes. O reconhecimento da datação pré-histórica destas pinturas provocou uma ebulição no campo da história e teoria da arte, promovendo debates sobre o conceito de imagem que repercutem, ainda hoje e de modo ainda pouco teorizado, sobre as práticas de muitos pesquisadores e artistas. É assim que temos o registro dessa visita de Clarice Lispector, desde a qual, podemos supor, ela teve contato direto com a gruta, com esse “interior de uma gruta”, e talvez até mesmo alguma informação acerca das pinturas rupestres recém reconhecidas. Essa é a imagem da gruta em seu primeiro movimento, vista de corpo inteiro pela escritora, desde um mergulho em seu interior.

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Figura 1. Clarice Lispector. Interior de gruta, 1960. Técnica mista sobre madeira, 40 x 56 cm. Acervo do Arquivo de Literatura do Instituto Moreira Salles. Fonte: Arquivo pessoal.

Figura 2. Clarice Lispector. Gruta, 1973-1975. Técnica mista, 40 x 50 cm. Arquivo Museu da Literatura Brasileira. Fonte: Arquivo pessoal.

Nos arquivos de Clarice Lispector sob guarda do Arquivo de Literatura do Instituto Moreira Salles e do Arquivo Museu da Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, ambos no Rio de Janeiro, entre os mais de vinte quadros que compõe o acervo iconográfico da escritora, há duas pinturas que tem em seus títulos uma referência à gruta. Respectivamente, Interior de Gruta, data de 1960, e é a pintura mais antiga que conhecemos desde seus arquivos (Figura 1). Já o quadro intitulado Gruta, possui uma datação ambígua, que marca o entretempo de 1973 a 1975 (Figura 2). Essa distância temporal entre os quadros pode explicar a diferença de tratamento dos materiais utilizados para pintar, as dimensões do suporte e a intensidade das cores. De resto os dois guardam muitas semelhanças. Se nos acercamos dos títulos, podemos dizer que Clarice Lispector nos entrega a uma dimensão pouco usual de uma paisagem. No primeiro quadro, estamos como que diante da gruta em sua entrada, ainda

que o título nos encaminhe a seu interior. Vemos pequenos seres que voam entre as camadas que compõem as paredes de uma caverna, pressentida pelas linhas e manchas de cor que elevam a sensação de certa perspectiva em direção a um interior. Podemos reconhecer ao menos três pequenas borboletas, duas delas bem desenhadas pela caneta esferográfica e depois coloridas pela caneta hidrográfica e por pinceladas de cor. No outro quadro, é como se víssemos com uma lente de aumento uma pintura incrustada nas paredes de uma gruta. Um cavalo em traços informes nos olha, e seres larvares se esgueiram pelas paredes, alguns em pinceladas bem detalhadas e outros em traços rápidos. É assim que Lispector registra a imagem da gruta em seus quadros. Temos essa imagem aparecendo em seu segundo movimento, como pintura. Como terceiro movimento temos a imagem escrita. Nos romances Água viva e Um sopro de vida, acompanhamos personagens e

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narrativas que se misturam ao que podemos reconhecer como registros da prática pictórica da própria escritora. A personagem de Água viva narra sua angústia frente à tentativa de colocar em palavras uma de suas pinturas, que podemos supor, corresponde ao quadro Interior de gruta, pintado por Clarice Lispector em 1960, como já mencionado, portanto antes da publicação desse romance, em 1973: Quero pôr em palavras mas sem descrição a existência da gruta que faz algum tempo pintei – e não sei como. Só repetindo seu doce horror, caverna de terror e das maravilhas, lugar de almas aflitas, inverno e inferno, substrato imprevisível do mal que está dentro de uma terra que não é fértil. Chamo a gruta pelo seu nome e ela passa a viver com seu miasma. Tenho medo então de mim que sei pintar o horror, eu, bicho de cavernas ecoantes que sou, e sufoco porque sou palavra e também o seu eco. (LISPECTOR, 1998, p. 15-16).

Já em um fragmento de Um sopro de vida, lemos a personagem Ângela Pralini nos dar a medida da técnica utilizada pela própria Clarice Lispector para pintar, nos permitindo reconhecer o quadro intitulado Gruta, pintado em 1975:

Água viva de 1973 e Um sopro de Vida, organizado e publicado por sua secretária e amiga Olga Borelli, em 1978, um ano após a morte de Clarice Lispector, em 1977. É assim que teremos essa imagem em três movimentos, o que desejamos reconhecer como um diagrama da gruta, um vai e vem de uma imagem plural, a cada vez produzida por uma nova relação de forças e por signos singulares. É importante ressaltar que esse diagrama não está representado na pintura, nem no texto, esse diagrama não é nem mesmo uma imagem sobre uma superfície, seja aquela da pintura ou do texto. A gruta pintada ou escrita não forma um diagrama. O diagrama é esse jogo complexo de relações que não encontram descanso em uma representação, mas antes percorrem, de uma ponta a outra, aquilo que movimenta as imagens e as palavras, e que numa conflagração, dará lugar à pintura da gruta assim como às passagens em que ela aparece no texto literário.

Vemos assim como a escritora vai da gruta visitada na década de 1950, à gruta pintada em 1960 e 1975, e depois à gruta escrita em

O conceito de diagrama em Deleuze O conceito de diagrama se espalha pela obra de Gilles Deleuze e ganha a cada vez nuances diferentes. Ele aparece em seu livro sobre Foucault, assim como em Mil Platôs, escrito com Félix Guattari, e ainda em Lógica da Sensação, onde Deleuze pensa aspectos da pintura e da imagem desde a obra do artista Francis Bacon. Tendo em conta a noção de diagrama apenas deste último texto mencionado, em sua relação com as artes visuais, já percebemos como o estudo do conceito é complexo e passa por práticas distintas e muito interessantes para pensar especialmente os processos de criação. É preciso observar que Deleuze define o conceito, neste livro, de um modo muito singular, a partir não apenas da pintura de Francis Bacon, mas também de suas palavras, daquilo que Bacon fala e escreve sobre seu trabalho visual, e igualmente de outros textos e referências visuais do pintor, tais como a fotografia. Portanto, Deleuze

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Vivo tão atribulada que não aperfeiçoei mais o que inventei em matéria de pintura. Ou pelo menos nunca ouvi falar desse modo de pintar: consiste em pegar uma tela de madeira – pinho de riga é a melhor – e prestar atenção às suas nervuras. De súbito, então, vem do subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga nas nervuras acompanhando-as um pouco – mas mantendo a liberdade. Fiz um quadro que saiu assim: um vigoroso cavalo com longa e vasta cabeleira loura no meio de estalactites de uma gruta. É um modo genérico de pintar. E, inclusive, não precisa saber pintar: qualquer pessoa, contanto que não seja inibida demais, pode seguir essa técnica de liberdade. E todos os mortais têm subconsciente. (LISPECTOR, 1978, p. 56).

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toma todo esse campo complexo de relações utilizadas por Bacon para compor suas pinturas como um diagrama. Ou seja, o diagrama é assim compreendido como um trabalho preparatório, que inclui anotações escritas, outras obras vistas, esboços, todo um campo de imagens em relação, de modo que o ato de pintar surge como um a posteriori, um après coup desse trabalho. O filósofo escreve que essa operação preparatória ao ato de pintar é silenciosa, muitas vezes invisível, mas muito intensa. O diagrama pode ser entendido também como uma catástrofe no quadro, que é um caos e ao mesmo tempo germe de ordem e de ritmo. Ele é a pintura antes de pintar, seus “dados probabilísticos e figurativos”, dados sobre os quais o pintor irá trabalhar para efetivamente começar “o ato de pintar” (DELEUZE, 2007, p. 102-103). O diagrama está, portanto, antes da pintura, relacionado ao campo de referências visuais e linguísticas, mas também presente na pintura, em seus dados materiais, nas manchas e traços involuntários, acidentais, que não se confundem com nenhuma representação: são traços não figurativos e não narrativos. Segundo a pesquisadora brasileira Tatiana Roque (2015, p. 84), “a diagramática é um regime sob o qual uma realidade se engendra sem que seja necessário passar por qualquer mecanismo de representação”, isso significa que “a capacidade que possui uma ação ou um pensamento de produzir um efeito independentemente de uma representação consciente é dita diagramática”. O Diagrama, portanto, não é uma representação, mas um regime engendrado por uma realidade que independe de uma representação consciente. “O diagrama estabelece conexões, mas não com o objetivo de representar algo real, ele constitui um real porvir”, nos diz Tatiana Roque (2015, p. 84). Diríamos assim que o diagrama corresponde a uma forma de relacionar imagens, textos, experiências, de modo que ele não apenas organiza a percepção, mas lhe dá lugar

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O diagrama de Clarice Exceto por dois quadros em tela, todas as outras pinturas de Clarice Lispector são feitas sobre tábuas de madeira de “pinho de Riga”, como ela nomeia esse material. A madeira oferece à Clarice Lispector o desenho de suas camadas, estas linhas que ela irá seguir, contornar e colorir com manchas em alguns quadros, especialmente nas duas grutas. Mas de onde surgem essas linhas da madeira? Elas surgem precisamente do corte diagonal ou vertical de uma árvore. Uma matéria vegetal. Elas surgem da sedimentação que constitui as camadas da madeira. É através da fenologia – estudo das relações entre os processos e ciclos biológicos e climáticos nas plantas – que descobrimos como se originam os anéis de crescimento anual das árvores. São sedimentações causadas pelos “fenômenos climáticos como precipitação, temperatura e luz, e fatores edáficos” – relacionado ao solo e à água do solo –, que afetam o crescimento das plantas. “Sob certas condições, um destes fenômenos ou fatores pode prevalecer sobre os outros e influenciar, de forma determinante, os mecanismos que regulam o crescimento das árvores” (Mattos, 1999, p. 3). Nesse processo é a água, em sua abundância ou escassez, um dos principais agentes que contribui para o crescimento, que contribui para a sedimentação das camadas de uma árvore. É curioso notar que o vocabulário vegetal utilizado na descrição destas camadas que constituem a massa das árvores, suas paredes internas e externas – palavras como alburno e cerne, por exemplo – também se alterna ao vocabulário anatômico – córtex, medula, etc. Este mesmo vocabulário descreve as camadas de uma gruta, de uma caverna, como aquela visitada por Clarice Lispector em Torquay. O vocabulário da espeleologia – ciência que estuda a constituição química e física das grutas e cavernas – é arquitetural – sala, alcova, nicho, patamar –, mas principalmente anatômico – cavidade, divertículo,

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Figura 3 e 4. Clarice Lispector. Detalhe do verso dos quadros Interior de gruta e Gruta, respectivamente. Vemos bem as linhas e manchas da madeira que serve como suporte da pintura. Fonte: Arquivo pessoal.

Figura 5. Clarice Lispector. Detalhe do quadro Interior de gruta. Podemos ver uma pequena borboleta logo acima da mancha branca. Fonte: Arquivo pessoal.

artérias, etc. Todo esse vocabulário que nomeia estas espacialidades minerais das grutas, e vegetais das árvores, é preciso reconhecer, fazem referência ao corpo. Poderíamos dizer que compreendemos estas espacialidade à nossa medida, uma medida humana. Ou então, que frequentamos estes espaços como corpos, como um corpo que percorremos, e portanto não apenas como uma superfície. A gruta é um corpo, a árvore é um corpo. Essa superfície sobre a qual Lispector irá pintar é assim um corpo vegetal, uma massa corporal. Outro dado importante a ser notado é o de que essa matéria vegetal de que é feita a pintura de Clarice Lispector, a árvore, a tábua de madeira, carrega em suas nervuras a presença da passagem ou a ausência da água. Água viva. Assim as linhas que se formam, e que irão se assemelhar à gruta,

são estas camadas temporais de composição desse vegetal que estão impregnadas dessa passagem da água, passagem do tempo. O mesmo ocorre nas grutas, nessa gruta pré-histórica visitada por Lispector, constituída através de milênios de exposição à umidade, presença da água que provoca as manchas, texturas e densidades de suas camadas, que produz estalactites, cristalizações, etc. São estes desenhos, marcas e manchas da madeira que Lispector irá seguir em muitos de seus quadros, como um esquema preparatório, um dado probabilístico, um clichê visual a afirmar ou subtrair. Como nos mostra Anne Sauvagnargues (2014, p. 223), “seguir não é absolutamente a mesma coisa que reproduzir, e nós não seguimos jamais para reproduzir. [...]. Somos forçados a seguir quando estamos em busca das singularidades de uma matéria, ou antes de um material, e não

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descobrindo uma forma”. Segundo a filósofa, “a arte, real, segue a matéria, e compõe com ela um novo encontro”. Será desde essa perspectiva que poderemos pensar estas linhas seguidas na pintura de Clarice Lispector. E mesmo ao se libertar destas linhas, como ela o faz em algumas pinturas, a madeira permanece sendo uma superfície de contato, portadora de uma presença objetual, e não como um simples suporte para a pintura. A tábua de madeira é um corpo. Um corpo vegetal, um corpo mineral, um corpo virtual que a pintura não cessa de atualizar. Estas linhas, manchas e marcas dos veios da madeira, oferecem um plano desde o qual é possível começar a pintar, possuir um chão, um “desde onde partir” a uma pintora que assume que “qualquer um pode seguir essa técnica”, como ela escreve em Um sopro de vida,

pois “não se precisa saber pintar”. Porém, “desde que não seja inibida”, pois é preciso assumir um risco imenso em se deixar levar por essas marcas, por essa “técnica de liberdade”, se “deixar levar pelo caos”. É assim que o diagrama é esse caos deflagrado pelas linhas e traços da madeira, sobre as quais Clarice Lispector irá trabalhar, linhas e traços que ela irá seguir, interpondo e sobrepondo novos traços e manchas de cor de modo involuntário, acidental, livre, criando assim “traços assignificantes ou traços de sensações” (DELEUZE, 2007, p. 103). Poderíamos dizer que Lispector usa os veios da madeira como uma pauta sobre a qual ela irá lançar manchas e elementos visuais. Se para seus datiloescritos ela usa a máquina de escrever, com estas tábuas de madeira ela irá inventar uma máquina de pintar. Ela entra na pintura através desse campo probabilístico, campo de possíveis, como se retirasse dessa matéria da madeira os elementos à sua pintura, como se testasse essa matéria numa operação preparatória ao ato de pintar, que não excederá a própria matéria do suporte, mas da qual ela irá, pouco a pouco, em outras pinturas, se liberar. O diagrama da madeira também oferece um caos a ordenar. E considerando que Lispector pinta enquanto escreve Água viva, podemos imaginar a pintura como um diagrama da escritura, um esboço preparatório à escrita. Mas o contrário é também possível, se considerarmos que o maior número de pinturas da escritora será posterior à publicação desse livro, datando dos anos de 1975. Água viva é que seria um esboço antes de pintar, o livro sendo um diagrama preparatório às pinturas que virão. E é precisamente isso que registra Clarice Lispector em certo momento: “Escrevo-te como esboços antes de pintar”. Mas pouco importa a ordem, pois escrever e pintar são experimentações, estados, devires em continuum, ambos fazem parte dessa iniciação, desse ritual preparatório à criação, dessa comunidade das artes que constitui a captura das forças – da sensação. Criação

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Figura 6 e 7. Clarice Lispector. Detalhes do quadro Gruta. Podemos notar o uso de diversos materiais de desenho e pintura: guache, acrílica, caneta esferográfica e hidrográfica. Fonte: Arquivo pessoal

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que precisa vir, que exige passagem, e não vê diferenças entre um suporte e outro – a máquina de escrever ou a máquina de pintar. Esse trabalho preparatório à pintura é também denominado por Deleuze como hystérèsis (histerese), termo utilizado para descrever a tendência de um sistema de conservar suas propriedades na ausência de um estímulo que as gerou. Vemos bem como Lispector se utiliza dessa possibilidade oferecida pela madeira sobre a qual pinta. Esse suporte oferece um estímulo – as condições necessárias – para desenvolver a pintura, e a pintura conservará desse estímulo alguns traços, algumas propriedades: a repetição das linhas dos veios da madeira, o contorno das formas, e mesmo a textura, exposta na absorção da tinta, mas também nos vazios, quando não há nada sobre a superfície, quando ela deixa a madeira visível entre as pinceladas de cor. É desde essa complexa relação entre imagens e palavras que não representam, mas se constituem a partir de um devir, uma metamorfose real nas e das formas, que podemos ver estas duas pinturas da gruta de Clarice Lispector – e de forma remota todo seu conjunto de pinturas. O diagrama é essa relação complexa que vai da gruta vista à gruta pintada, passando pelo suporte que oferece estes traços e manchas das paredes de uma gruta, os veios da madeira, desembocando enfim nas palavras que lemos em Água viva e Um sopro de vida. Todo esse conjunto de relações que não se oferece como uma representação numa superfície determinada, mas está numa superfície, está nas imagens. Há uma conflagração de forças que dá lugar às imagens. E a imagem não é aqui de modo algum aquilo que nos acostumamos a chamar de imaginário – como se fosse algo oposto ao real, algo mental, ilusório, abstrato, uma fantasia. A imagem é real porque produz efeitos reais sobre nosso corpo. Ela nos entrega às

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sensações, que são reais. Sensações de desconforto, leveza, quaisquer que sejam. Como escreve Anne Sauvagnargues em Deleuze et l’Art (2014, p. 35): “A imagem é um modo da matéria, um movimento real, e o efeito da arte deve ser compreendido nesse plano. Longe de ser uma ficção da cultura, um critério antropológico, a arte toma a consistência e a inocência de um efeito de subjetivação, que faz palpitar afectos na matéria”. Clarice Lispector sente esse palpitar dos veios da madeira, essa pulsação de suas imagens, sem desprezar outros sentidos que lhe chegam, suas memórias corporais, e a exigência de elaboração destas experiências que encontram lugar na escrita. Da pintura do clichê à semelhança informe Outra característica do conceito de diagrama elaborado por Deleuze é que ele desfaz o registro óptico da pintura. A figura surge de um trabalho manual, numa insubordinação ao olho. Isso porque o diagrama depende de todo um conjunto de traços manuais e “possibilidades de fato” que se elevam da pintura. O diagrama está ao mesmo tempo “na cabeça” do pintor, mas especialmente “na mão”. Ele está presente nas ideias caóticas que o circundam, mas especialmente nos gestos que levam imagens à pintura, e nos acasos e surpresas materiais que surgem no quadro. É nesse sentido que o diagrama é uma terceira via da pintura, como Deleuze escreve, ele não leva nem ao registro ótico da abstração de Kandinsky e Mondrian, por exemplo, nem ao “exclusivamente manual” do expressionismo abstrato de Pollock ou De Kooning. Se Bacon, e Cézanne antes dele, assim como muitos outros artistas abstratos modernos, lutam contra os dados figurativos, os clichês visuais, isso se passa porque, como Deleuze nos mostra, a figuração é um fato, ela existe antes mesmo da pintura: “Estamos cercados de fotos que são ilustrações, jornais que são narrações, de imagens de cinema, de imagens de televisão. Existem clichês

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e estereótipos tanto psíquicos como físicos, percepções prontas, memórias, fantasmas” (2007, p. 57) A radicalidade da afirmação de Deleuze está em suportar que pintar “é dramático”, porque a pintura já acontece muito além da tela branca, ela acontece num universo complexo de clichês com os quais o pintor entra em contato. Universo que ele não escolhe. Um pintor, e noutra extremidade, qualquer pessoa, não escolhe com quais imagens entrar em contato. As imagens nos invadem, é impossível escapar. O trabalho do artista está em transformar esse clichê em uma obra. Contudo não se trata de simplesmente deformar o cliché, de o maltratar, de o triturar como escreve Deleuze, de simplesmente transformá-lo em uma abstração. Mas de os convocar todos, de os acumular, de os multiplicar. Claro, essa é uma via possível, não universal, como ele afirma. Mas o que essa via sugere, no pensamento desse filósofo, é que o artista não é aquele que domina as imagens – no sentido de ser aquele que concentra sua produção em termos técnicos e criadores – nem aquele que é dominado por elas, mas aquele que as manipula. Essa manipulação, portanto, empenha um trabalho manual, e não apenas ótico. E empenha um trabalho de colocação de signos em movimento, signos em relação. É contra esse registro estritamente ótico da arte que grande parte dos artistas modernos irão lutar. Se trata de permitir que a imagem seja percebida, sentida em todos os seus efeitos sobre os sentidos. Como nos mostra Anne Sauvagnargues (2014), se trata daquilo que Deleuze falou com Bacon, a imagem é motora não porque registra o movimento, ou porque está em movimento, mas porque age sobre os nervos, sobre o sistema sensório-motor do corpo. Lispector escreve em certo momento: “quero pintar um quarteto de nervos” (1998). É nesse sentido que a pintura, a arte de modo geral, produz um modo de pensar que passa por afectos e perceptos, que inventa isso que incessantemente

nos tornamos a partir desse campo de forças sensório-motor. Precisamos incessantemente reivindicar que esse pensamento é tão fundamental a nossos modos de estar no mundo, de inventar mundos, um modo de conhecer que corresponde a um modo de criar. É nesse sentido que dizemos que “a pintura pensa”, porque a pintura acontece num campo complexo de signos e outras imagens em relação. Atingir essa dimensão sensório-motora de nossa relação com o mundo não é tão simples e óbvio quanto parece, pois na maioria das vezes nossa capacidade de ser afetados está amortecida. Clarice Lispector também manipula clichês em sua pintura. Ela não os escolhe, ou seja, ela trabalha com probabilidades que são dadas de antemão e que concernem a seu suporte de pintura antes que a tinta seja lançada no quadro. Nesse sentido é o acaso que designa um tipo de escolha, que não é necessariamente estética. Ou seja, Clarice Lispector não pinta sobre esse suporte premeditadamente, ou projetando sobre ele uma imagem ou uma figura pré-determinada, tendo em mente algum projeto estético. Lispector age sobre os dados visuais já presentes nesse diagrama, é afetada por eles, por suas sensações, e afirma essas afecções na pintura. Isso significa dizer que os dados probabilísticos oferecidos pela matéria com a qual trabalha tem uma importância fundamental na manipulação visual que fará de sua pintura. É assim que lemos em Água viva (1998): “Crio o material antes de pintá-lo, e a madeira torna-se tão imprescindível para minha pintura como o seria para um escultor”. E ainda: “Quando pinto respeito o material que uso, respeito-lhe o primordial destino”. Quando Clarice Lispector anuncia “quero pôr em palavras mas sem descrição a existência da gruta que faz algum tempo pintei – e não sei como”, como citado a pouco, ela se nega a escrever sobre a pintura se utilizando de uma metáfora, e reivindica uma metamorfose entre palavras e imagens. Ela não quer simplesmente descrever, o que

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seria utilizar a palavra em seu nível elementar, representacional. Ela escreve na tentativa de dar palavra a essa coisa que é a pintura, essa coisa que é a imagem. E o pensamento que essas imagens produzem deve ser compreendido por extração e não por abstração. As imagens da gruta que Lispector pinta não surgem como uma abstração conseguida a partir de um trabalho sobre os veios da madeira, nem como uma abstração ensaiada e premeditada. Também não se trata de uma figuração da gruta visitada. A pintura age por extração do clichê: o que a permite encontrar a gruta na madeira, mais do que em sua figuração, mas em suas sensações. Por isso não cabe procurar definir a pintura de Clarice Lispector desde os conceitos de figuração ou abstração. Pois o sentido visado por esse registro de semelhanças é antes aquele da sensação: como apresentar a sensação? Como tornar presente a sensação através das formas, cores, linhas? Extrair do clichê uma imagem é proceder justamente no plano da experiência oferecida pela sensação, plano em que real e irreal se confundem, em que real e imaginário se interpenetram. Não há escolha entre um e outro. A pintura de Clarice Lispector, assim como sua literatura, nos inquieta justamente com esse jogo de indiscernibilidade entre estes planos do real e irreal. E se quisermos avançar ainda um pouco mais, podemos pensar que o registro de semelhança que experimentamos diante da pintura de Lispector, especialmente diante das grutas, seria aquele de uma semelhança informe, tal qual a nomeia Didi-Huberman (2015) com Georges Bataille. O filósofo nos mostra que o informe é assumido como um trabalho das formas sobre a percepção das semelhanças, numa afirmação do “estésico (que convoca desejo, dor, repulsa, portanto os sentidos, as sensações) em lugar do estético (que convoca o gosto), e do sintoma (intratável) no lugar do simbólico (partilhável)” (DIDIHUBERMAN, 2015, p. 234). O conceito de informe permanece à margem de uma certa história da arte que sempre procurou por unidades, sem

admitir as falhas, quebras, os buracos na linguagem. De modo que não podemos associar, muito simplesmente, o conceito de informe de Bataille com o surrealismo de Breton, por exemplo. O surrealismo sim é um movimento sobre o qual a história da arte se apropriou, em boa medida de maneira bastante injusta, o mantendo muito bem localizado na modernidade. Mas o conceito de informe em Bataille escapa a essa apropriação historicista. Ele é um conceito que serve para desclassificar as formas, e não para as classificar. Um conceito que escancara a ruptura com a semelhança cristã, divina, com a própria semelhança humana por fim, em proveito de uma semelhança que reivindica uma metamorfose das formas, em que a semelhança entra no devir das formas, devir inominável, devir informe das formas, devir entregue às forças que se exercem sobre as formas. Como dirá Clarice: “Em nada disso existe o abstrato. É o figurativo do inominável”. Não vemos as pinturas de Clarice Lispector sem nos sentir fustigados por suas imagens. Elas rompem nossa suposta intimidade ocular. Não se trata de dizer que as imagens são mais diretas do que as palavras, ou mais silenciosas do que estas. As imagens fabricam um ruído interminável sobre a superfície da linguagem. Pensar a pintura de uma escritora como Clarice Lispector, e mais do que isso, tentar mostrar que sua pintura pensa por imagens, por signos visuais que não se confundem com os signos linguísticos de sua literatura, convoca uma visada ampla de seus processos de criação, que se elaboram a partir de imagens diversas em relação, como tentamos mostrar aqui, dispondo para isso do conceito de diagrama. Mas sobretudo a pintura de Clarice mostra nossa fragilidade diante das palavras. Se ela exibe em sua obra literária aquilo que a linguagem não dá conta, não consegue dizer, como argumentam alguns de seus críticos, devemos incluir aí suas pinturas, sua obra visual, suas imagens, que exibem uma linguagem sob o signo vertiginoso da sensação.

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REFERÊNCIAS BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. CURI, Simone. A escritura nômade em Clarice Lispector. Chapecó: Argos, 2001. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. __________. Logique de la sensation. Paris: Editions de la différence, 1981. __________. Francis Bacon. Lógica da Sensação. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2007. DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe: ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Tradução Caio Meira e Fernando Scheibe. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. __________. Minhas queridas. Teresa Montero (Org.). Rio de Janeiro: Rocco, 2007. __________. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1978. MATTOS, Patrícia. Identificação de anéis anuais de crescimento e estimativa de idade e incremento anual em diâmetro de espécies nativas do Pantanal da Nhecolândia, MS. Tese (Tese em Engenharia Florestal do Setor de Ciências Agrárias). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1999. Disponível em: <https:// acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/25399/T%20-%20MATTOS%2C%20 PATRICIA%20POVOA%20DE.pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 10 nov. 2019. ROQUE, Tatiana. Sobre a noção de diagrama: matemática, semiótica e as lutas minoritárias. In: Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência. Vol. 8 – nº 1 – pp.84-104, 2015. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/tragica/article/ view/26805> Acesso em: 10 mar. 2020. SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et l’art. Paris: Presses Universitaires de France, 2014. SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector: figuras da escrita. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2012.

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Uma (Breve) Introdução ao Pensamento Pós-Estruturalista

Daniel de Mendonça Professor no Departamento de Sociologia e Política e no Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pelotas. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Nível 2. ddmendonca@gmail.com

A (Short) Introduction to Post-Structuralist Thought

Resumo: Neste artigo, proponho um caminho para organizar a tarefa inicial de compreensão do pós-estruturalismo. Trata-se de um trajeto que inicia com as análises estruturais de Ferdinand de Saussure e Claude Lévi-Strauss, passa pela discussão ontológica de Martin Heidegger sobre o fundamento e, finalmente, chega na desconstrução estrutural de Jacques Derrida. Meu objetivo não é falar exaustivamente sobre cada um dos autores, mas, a partir de categorias centrais dos seus pensamentos, apontar um caminho para uma compreensão geral do pósestruturalismo. Palavras-chave: Pós-estruturalismo; Pós-fundacionalismo; Lévi-Strauss, Heidegger; Derrida.

Abstract: In this article, I propose a way to organize initial steps for comprehending post-structuralism. It is a path that begins with Ferdinand de Saussure and Claude Lévi-Strauss' structural analyses, and then proceeds toward Martin Heidegger's ontological discussion of the ground and, finally, arrives at Jacques Derrida's structural deconstruction. My goal is not to talk about each of these authors comprehensively but, using main categories of their thought, to point out a pathway for a general comprehension of post-structuralism. Keywords: Post-structuralism; Post-foundationalism; Lévi-Strauss; Heidegger; Derrida.

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Introdução Talvez uma das tarefas mais complicadas para quem inicia a sua aventura na longa jornada em direção do entendimento do pósestruturalismo seja a de encontrar textos introdutórios que auxiliem nesses primeiros passos. Trata-se de um verdadeiro trabalho de arqueólogo, ainda mais se essa busca ficar restrita ao que foi produzido ou traduzido para a língua portuguesa 1. Ainda assim, é prudente buscar por essas introduções, uma vez que não é nada convidativo ao iniciante a leitura direta dos textos de Jacques Derrida ou de Gilles Deleuze, somente para dar dois exemplos de filósofos rotulados como pós-estruturalistas. Mesmo a estratégia de ler Derrida e/ou Deleuze, iniciando por uma série de obras introdutórias sobre esses autores, tampouco se revela eficaz à compreensão mais ampla do pós-estruturalismo. A razão é simples: praticamente nenhum autor rotulado como “pósestruturalista” se viu como tal, uma vez que “pós-estruturalismo” foi um termo cunhado pela academia estadunidense na tentativa de classificar formas de pensamento heterogêneas, cujo ponto comum, como veremos, foi a recusa de uma leitura de mundo essencialista que reinava no estruturalismo francês (PEETERS, 2013). Nesse sentido, quando falamos em pós-estruturalismo, falamos de um termo essencialmente negativo, ou seja, não se trata de um movimento intelectual organizado ou de um sistema de pensamento comum. O pós-estruturalismo é, antes, a negação do fundamento, da essência, do fechamento de sentidos, compartilhada por diversos filósofos franceses a partir do final da década de 1960. Porém, ainda que tal negação possa ser encontrada diversas vezes nos textos desses pós-estruturalistas por leitores treinados e familiarizados, ela dificilmente será percebida por um iniciante neste campo de estudos. Neste artigo, sem a pretensão de cobrir de forma abrangente

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[ 1 ] Em língua portuguesa, sugiro a introdução elaborada por James Williams (2013). De minha autoria, ver: Mendonça (2016).


a diversidade do pós-estruturalismo, proponho um caminho para organizar a tarefa inicial de compreensão dessa temática tão cara às ciências humanas em geral. Trata-se de um trajeto que inicia em Ferdinand de Saussure e Claude Lévi-Strauss, passa por Martin Heidegger e chega em Jacques Derrida. É claro que meu objetivo não é, novamente, falar exaustivamente sobre cada um dos autores acima. Minha ideia é apontar um caminho para uma compreensão geral do pós-estruturalismo, indicando insights e categorias teóricas ou filosóficas centrais que foram ou criadas por esses autores ou por eles desenvolvidas. Nesse sentido, partindo do princípio de que o pós-estruturalismo é uma “reação” ao estruturalismo, não podemos falar do primeiro sem considerarmos o segundo. É por essa razão que o meu ponto de partida será apresentar a lógica do pensamento estrutural, iniciando por Saussure, um “estruturalista avant-garde”, e, na sequência, mencionar a centralidade do pensamento do maior expoente do estruturalismo, Lévi-Strauss. A seguir, apresentarei a forma como Heidegger elabora a questão do fundamento, a partir da sua noção de Abgrund. Na última seção, discutirei a forma como Derrida critica o estruturalismo, a partir do que chamo de a inspiração heideggeriana presente em Derrida. “No princípio era…” Saussure e Lévi-Strauss Quando falamos em estruturalismo, a primeira referência é Saussure e o seu Curso de Linguística Geral (SAUSSURE, 2006). Este livro, como amplamente sabido, é resultado da compilação dos cursos ministrados pelo linguista genebrino entre 1906 e 1911, realizada por seus discípulos e publicada em 1916, três anos após a sua morte. No Curso, são estabelecidas as bases para o estudo das línguas a partir do que será por ele chamado de linguística estrutural.

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É bem conhecida a distinção saussuriana entre a linguística diacrônica, que, de forma geral, estuda a evolução histórica da língua e a sincrônica, que trata a língua como um sistema de elementos relacionados entre si. Para Saussure, que toma o segundo caminho, a língua é um sistema no qual todas as partes devem ser consideradas em solidariedade sincrônica. Antes de explicar a lógica da solidariedade sincrônica, é importante mencionar a distinção que Saussure faz entre língua e fala. Para o autor, a língua – o português, o inglês, o espanhol – deve ser sempre considerada a partir de uma lógica estrutural. Nesse sentido, ela é muito mais do que um código linguístico, sendo um sistema social compartilhado entre todos os falantes. Os falantes são sujeitos de um sistema linguístico, ou seja, para que eles possam ser compreendidos entre si, eles devem se submeter a esse sistema e serem, numa palavra, seus reprodutores. A fala, por outro lado, é um ato individual. O objeto de estudo de Saussure é a língua e não a fala, ou seja, o que interessa ao linguista é a dimensão estrutural e não a subjetividade de cada falante. Isso quer dizer que cada ato de fala é sempre precedido e está sempre imerso em um sistema linguístico partilhado entre os indivíduos. Dito isso, vejamos agora os elementos básicos da linguística sincrônica que posteriormente fundamentaram o pensamento estruturalista. O primeiro, como vimos, reside no fato de que a língua é um sistema, dependente, portanto, de uma solidariedade social. O elemento linguístico essencial é o signo linguístico, ou seja, a união entre o conceito ou o significado, o qual, segundo Saussure, gera o sentido ou a compreensão, e a imagem acústica, que é o significante. É fundamental entender a ideia de que o signo linguístico, segundo Saussure, não une uma palavra a uma coisa, mas articula um conceito (significado) a uma imagem acústica (significante). Isto quer

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dizer que o que é nomeado não é a tradução linguística de uma “coisa”, como suporia um realismo epistemológico ingênuo. Tal característica Saussure chama de a “arbitrariedade do signo linguístico”, ou seja, o signo nomeia arbitrariamente uma coisa. Assim, algo é chamado de “copo” a partir de um batismo arbitrário da língua e não como resultado da tradução da natureza da coisa que foi nomeada “copo”. Outro elemento fundamental do signo é o seu caráter relacional e negativo. Tal elemento nos ajuda a compreender, por exemplo, o que hoje amplamente conhecemos como teoria da diferença. Nesse sentido, um signo, segundo Saussure, refere-se a outro signo, diferenciando-se dele. Em outras palavras, um signo nunca é positivo, mas negativo, sempre revelando uma diferença. Assim, um signo só pode ser compreendido na relação com outro signo. Pensemos, por exemplo, nos signos relacionados à ideia de família. “Pai”, sendo um elemento da estrutura familiar, somente o é, uma vez que ele se relaciona negativamente com os demais elementos. Assim, “pai” não é “mãe”, “filho” ou “filha”. Percebamos como a negatividade, a interdependência e a função exercida pelos signos linguísticos promovem o sentido, ou seja, a nossa capacidade de compreensão deriva-se do fato de que compartilhamos uma estrutura significativa comum ou, para usar o termo saussuriano específico, um sistema linguístico. Apresentados os elementos do pensamento de Saussure que serão fundamentais ao ulterior desenvolvimento do estruturalismo, passemos, de forma imediata e muito panorâmica, à abordagem de Claude Lévi-Strauss, que incorpora à antropologia as principais teses da linguística estrutural. Inicialmente, é digno de nota que o antropólogo francês defende que os fenômenos de parentesco são fenômenos do mesmo tipo que os linguísticos, indicando, assim, a existência de uma homologia entre a antropologia e a linguística

estrutural (LÉVI-STRAUSS, 2012). O estruturalismo, uma novidade teórica no campo das ciências humanas e sociais, tem início no final dos anos 1940, cujas noções centrais de totalidade e de interdependência, como já indiquei, são oriundas do estruturalismo linguístico. Como na linguística, as relações humanas são estruturais e totalizantes, sendo preciso compreender a articulação e a interdependência de seus elementos. Dito isso, pergunta-se: qual é o objetivo do estruturalismo? Para Lévi-Strauss, o objetivo do estruturalismo não é simplesmente conhecer as relações mais aparentes entre os elementos estruturais. O objetivo efetivo do estruturalismo é ir além dessas relações mais superficiais entre os elementos, uma vez que o que ele busca é conhecer aquilo que subjaz às relações sociais, ou seja, o fundamento que governa as relações de uma estrutura (Lévi-Strauss, 1967). Nos estudos de LéviStrauss sobre as estruturas de parentesco, o antropólogo identificou que as três formas de relações familiares – a consanguinidade, a aliança e a filiação – fundamentam-se na proibição do incesto, que é universal entre as comunidades humanas. Essa proibição é o não dito, o interdito silencioso que fundamenta as relações familiares em todas as sociedades. Conforme Lévi-Strauss, em antropologia, como em linguística, o método estrutural “consiste em descobrir formas invariantes no interior de conteúdos diferentes” (LÉVI-STRAUSS, 1967, p. 393). É central saber, a partir do estruturalismo, que uma estrutura é uma totalidade, uma relação de interdependência entre elementos que se articulam entre si, que guarda formas invariantes governadas por um fundamento que, silenciosamente, opera entre conteúdos diferentes numa estrutura social. Assim, o estruturalismo é a busca pelo fundamento, pelas formas invariantes, por algo imutável que subjaz toda e qualquer estrutura social.

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[ 2 ] Desenvolvi uma análise mais abrangente sobre a relação entre ser e fundamento em Heidegger em outro lugar (MENDONÇA, 2020).

O Abgrund heideggeriano Vejamos agora a noção de Abgrund 2 de Martin Heidegger e a sua importância para o pensamento pós-estruturalista. Abgrund significa sem fundamento, sem chão, afundamento, sem fundo. Esse elemento de desfundamentação, que marca o pensamento heideggeriano, será central à forma de pensar desconstrucionista característica ao pósestruturalismo. Assim, para entendermos o pós-estruturalismo como a desfundamentação do estruturalismo, precisamos dar um passo atrás no tempo e entendermos a revolução heideggeriana concernente à questão do fundamento. A obra central de Heidegger para essa discussão específica é O Princípio do Fundamento (HEIDEGGER, 1999), publicada originalmente em 1956, quase trinta anos após Ser e Tempo (HEIDEGGER, 2002). Neste livro, como o seu título indica, Heidegger busca pela “essência do fundamento”. As questões são mais ou menos as seguintes: quando falamos em fundamento, estamos falando exatamente sobre o quê? O que é um fundamento? De que maneira devemos lidar com a ideia de fundamento? Para elaborar essa discussão, Heidegger parte da análise do princípio do fundamento de Leibniz, o qual estabelece que nihil est sine ratione, ou seja, “nada é sem fundamento”. Dito de outra forma, para Leibniz, tudo que existe tem um fundamento. O que é, nesse sentido, um fundamento? Segundo a análise de Heidegger, fundamento é “a base, o fundus em que alguma coisa se apoia, está e jaz” (HEIDEGGER, 1999, p. 136). Em outras palavras, fundamento é aquilo que é a causa ou a condição de algo. Se o fundamento é a causa ou a condição de algo, significa que ele precede aquilo que fundamenta, ou seja, o fundamento está fora daquilo que ele fundamenta. Nesse sentido, o fundamento é, ao mesmo tempo, algo exterior e causador do que é fundamentado. O fundamento está intimamente ligado aos objetivos da ciência

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e da epistemologia. Em O Princípio do Fundamento, Heidegger apresenta o exemplo da Botânica, ramo do conhecimento científico que explica as causas da existência das plantas. Dessa forma, o filósofo afirma que uma planta está fundamentada a partir da cadeia causal que possibilita a sua existência, ou seja, o solo no qual ela está plantada, a água da chuva, a luz do sol etc., sendo todas essas causas anteriores à existência da planta e que baseiam a sua existência. A ciência dedica-se ao estudo dos entes, da planta, do solo, da água, etc. Notamos, no sentido que atribuímos ao fundamento, que solo, água e sol estão fora da planta, não nela. Essa distinção entre o ente fundamentado e o que está além dele e que o fundamenta é decisiva para entendermos a virada que Heidegger promoverá no que concerne à questão do fundamento. Para Heidegger, a ciência cuida dos entes; ela não é capaz de perscrutar o ser. Segundo ele – e esse ponto é central em seu argumento – o fundamento, no sentido ontológico, contrariamente à busca científica, não está fora ou além do ente, mas no ente. O filósofo inverte a forma de pensar sobre a temática. Tal inversão ocorre a partir da ressignificação do princípio do fundamento de Leibniz há pouco mencionado, como veremos agora. Retomemos o enunciado do princípio do fundamento de Leibniz: “nada é sem fundamento”. A leitura tradicional deste indica que “tudo tem fundamento”. Tal interpretação é chamada por Heidegger de a “primeira tonalidade” de leitura do princípio. No entanto, o filósofo alemão apresenta a “segunda tonalidade” de leitura, focando agora nos termos “é” e “fundamento”. Note-se que “é” é o verbo ser. Essa nova tonalidade indica outra maneira de vislumbrarmos o fundamento. Para Heidegger, significa que cada ente, como ente, tem um fundamento. Assim, o filósofo reafirma a existência do fundamento, mas tal existência deve ser buscada no nível dos entes e internamente a eles.

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O fundamento está no ente e não fora dele. O ente auto fundamenta-se. Porém, qual é o impacto dessa mudança de tonalidade? Para Heidegger, a busca pelo fundamento, como disse, não é científica, mas não é igualmente de cunho epistemológico. Nenhuma ciência é capaz de compreender efetivamente o que o fundamento é. O fundamento deve ser perscrutado no âmbito da ontologia, ou seja, na reflexão do ser enquanto ser. Dito isso, qual é, então, a relação entre ser e fundamento para Heidegger? Primeiramente, é fundamental entender que Heidegger desloca a discussão sobre o fundamento, tradicionalmente nos campos epistemológico e científico, para o terreno ontológico, que é o terreno da reflexão do ser enquanto ser. Aqui surge uma das questões mais interessantes e complicadas de se compreender na lógica heideggeriana. Para Heidegger, ser é de tipo fundamental, ou seja, há uma relação intrínseca entre ser e fundamento. Dito de outra forma: para o filósofo, ser e fundamento são o mesmo. Notamos, no entanto, que o mesmo para Heidegger não significa dizer que ser e fundamento são iguais. O mesmo significa “mesmidade”. Ser e fundamento coadunam uma “mesmidade”, o que é algo completamente diferente de dizer que eles são iguais, uma vez que ser indica uma coisa e fundamento indica outra coisa. Heidegger afirma que ser “é”, na essência, fundamento. Se o ser “é”, na essência, fundamento, ser não pode ter fundamento. Tal constatação nega a lógica tradicional científico-epistêmica sobre o fundamento que vimos há pouco, ou seja, a de que o fundamento estaria fora dos entes. Se ser “é”, na essência, fundamento, ser, logicamente, não tem fundamento. Se ser não tem fundamento, estamos diante de um Abgrund, um sem fundo, um sem fundamento. Assim, se o ente é, ou seja, uma cadeira é, o ser humano é, Deus é, é porque eles são entes. Se o ente é, ou seja, se ele tem fundamento, ele,

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ontologicamente falando, auto fundamenta-se. O ser, contrariamente, não é, uma vez que ele não tem fundamento. Se o ser tivesse fundamento, ele não seria ser, seria ente. Com base no trajeto percorrido até o momento, é preciso considerar dois elementos. O primeiro: vimos a estrutura como uma totalidade formada por elementos interdependentes e que se relacionam entre si de forma negativa. O estruturalismo, como também vimos, busca conhecer a essência estrutural, ou seja, um fundamento que está além dela e que a governa. O segundo: vimos, a partir de Heidegger, que o fundamento não existe no nível do ser. E o fundamento existente no nível dos entes tem outro tratamento em relação àquilo que o estruturalismo e o fundacionalismo apregoam. Isso quer dizer que, ainda que o ente seja fundamentado, este fundamento é um auto fundamento. Temos de ter em mente que como ser não tem fundamento, lembrando que em Heidegger (2002), o ser é sempre o ser de um ente, o fundamento do ente será sempre precário e contingente. Enfim, Derrida Nesta última seção, numa tentativa de juntar as peças ainda deixadas soltas nas seções precedentes, apresentarei alguns elementos da leitura crítica de Derrida ao estruturalismo, quando este filósofo mobiliza elementos pós-fundacionais, em grande medida influenciados pelo pensamento heideggeriano. Como afirmei, minha intenção é tentar agir como um bricoleur, juntando as peças desse quebra-cabeça pósestruturalista, que articula estruturalismo e pós-fundacionalismo. Para Derrida (2002), especificamente, a crítica ao estruturalismo está ligada à “estruturalidade da estrutura”, a partir de uma operação desconstrutivista que identifica o fundamento e o essencialismo presentes no estruturalismo. Ao essencialismo e fundamento, o filósofo

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dá o nome de “centro”. O problema, segundo Derrida, não é o de uma estrutura ter um centro, uma vez que ele parte do pressuposto de que uma estrutura sem centro é algo impensável (DERRIDA, 2002). O problema está no estatuto que o centro estrutural ocupa no contexto do estruturalismo. Trata-se de um centro fundante e fixo ou, dito de outra forma, a leitura derridiana do centro representa, lembrando Lévi-Strauss, as formas invariantes que deveriam ser descobertas em uma dada estrutura. Essa condição de imutabilidade do centro está, como todo fundamento essencialista indica, fora da estrutura. Derrida entende que o “centro” estrutural do estruturalismo não é propriamente um centro, visto que o que é imutável numa estrutura, em última análise, não faz parte do jogo estrutural, não está na estrutura, mas fora dela. O “centro”, portanto, não é um centro, mas o fundamento transcendente. O centro, no estruturalismo, é um centro de controle, um fundamento fixo, que silenciosamente governa a estrutura. Diversas são essas figuras de centro na história do pensamento humano segundo Derrida: essência, sujeito, consciência, Deus, homem. Na história da metafísica da presença, todas essas figuras assumiram, em algum momento, essa condição de centro. Derrida questiona esse centro fundante da estrutura, defendendo a ideia de uma estrutura que, ao contrário, não possua um fundamento transcendente. Ele desenvolve um argumento muito semelhante ao de Heidegger, ou seja, de que o ente auto fundamenta-se. Nesse sentido, uma estrutura se auto estrutura, o que significa que ela não se constitui a partir de um fundamento que lhe seja transcendente. Toda estruturação da estrutura, como vimos, é interna a ela. A conclusão derridiana é inevitável: o centro joga o jogo estrutural podendo, inclusive, deixar de ser centro. A questão para Derrida é: como isso ocorre? Como esse auto

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fundamento tem lugar? Para ele, primeiramente, a totalização de sentidos de uma estrutura é algo impossível, uma vez que a estrutura está sempre pronta para ser reestruturada. Há, conforme o pensamento derridiano, duas formas de perceber essa impossibilidade. A primeira forma que indica a impossibilidade de totalização é a que Derrida chama de a “hipótese clássica”: a estrutura não será total, uma vez que ela é “um discurso finito correndo em vão atrás de uma riqueza infinita que jamais poderá dominar” (DERRIDA, 2002, p. 244). Assim, a estrutura não será total, segundo essa hipótese, porque essa estrutura é um discurso finito, incapaz de abarcar a infinitude que sempre a excede. Derrida descarta a hipótese clássica, preferindo uma solução à la Heidegger que, na falta de um nome, Oliver Marchart (2007) batizou-a de “hipótese pós-clássica”. Nesta segunda hipótese, a totalização também é impossível, mas não pelo excesso de sentidos que transborda uma estrutura finita, como entende a hipótese clássica. Ao contrário, o campo que permite essas substituições infinitas é também marcado por uma falta constitutiva, resultando, assim, na impossibilidade de sua própria totalização. Nesse sentido, a impossibilidade de fundamento final de uma estrutura no nível ôntico se dá justamente porque, sob o ponto de vista ontológico, o ser não tem fundamento. Assim, por um lado, o pós-estruturalismo mantém a lógica da totalização (sempre parcial) de uma estrutura, lógica essa oriunda do estruturalismo, como aprendemos com Saussure e Lévi-Strauss. Por outro lado, o pós-estruturalismo desconstrói o preceito central do estruturalismo, ou seja, aquele que busca encontrar ou descobrir as formas invariantes no interior de conteúdos diferentes. A estrutura, de acordo com a perspectiva pós-estruturalista, auto fundamentase sem a crença na necessidade de descobrir fundamentos ou essências transcendentes. Mantém-se, portanto, a lógica estrutural,

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mas sem a existência de um centro fundante externo a esta e imune às transformações. A estrutura estrutura-se num jogo infinito de possibilidades e de emancipações. REFERÊNCIAS DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: ______. A escritura e a diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. ______. A escritura e a diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. p. 227-248. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2002. ______. O princípio do fundamento. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. LÉVI-STRAUSS, Claude. A análise estrutural em linguística e antropologia. In: ______. Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2012. ______. Estruturalismo e crítica. In: COELHO, Eduardo Prado (Org.). Estruturalismo: antologia de textos teóricos. São Paulo/Lisboa: Martins Fontes/Portugália, 1967. MARCHART, Oliver. Post-foundational political thought: political difference in Nancy, Left, Badiou and Laclau. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007. MENDONÇA, Daniel de. A questão do fundamento em Heidegger e a importância para a teoria política pós-estruturalista. Trans/Form/Ação, Marília, v. 43, n. 4, p. 117-146, Out./Dez., 2020. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/ transformacao/article/view/8930/6884. ______. Democracia e Desigualdade: pós-estruturalismo. In: MIGUEL, Luis Felipe (Org.). Democracia e desigualdades: o debate da teoria política. São Paulo: Ed. UNESP, 2016. PEETERS, Benoît. Derrida: biografia. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2006. WILLIAMS, James. Pós-Estruturalismo. 2ª ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2013.

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Deleuze e a música: modos de criar no curso de Bacharelado em Música Popular da UFPel Marcelo Barros de Borba Formado bacharel em música (UFSM) tem mestrado (UFSM) e doutorado (UFPel) em educação. Atualmente atua como docente nos cursos de música da Universidade Federal de Pelotas-RS. Reside em Pelotas e colabora como professor e pesquisador no Núcleo de Música Popular (NUMP). Contato: (53)999112033, borbapercussao@ gmail.com

Deleuze and music: ways to create at the Bachelor’s course in Popular Music at UFPel

Resumo: O presente trabalho problematiza os modos de pensar a criação no curso de bacharelado em música popular da Universidade Federal de Pelotas-RS. Operando a partir da perspectiva da filosofia da diferença (DELEUZE, 2010; 1999; 2009), a música e a filosofia deleuziana ocupam um lugar de pensamento e ativação artística. São propostas alianças com filósofos e compositores como Tom Zé para abordar a prática de conjunto e a constituição de bandas. Palavras-chave: Filosofia da diferença; Criação musical; Bacharelado em música popular.

Abstract: The present investigation discusses ways of thinking about creation in the Bachelor's course in Popular Music at the Federal University of Pelotas-RS, Brazil. Operating from the perspective of the philosophy of difference (DELEUZE, 2010; 1999; 2009), music and Deleuzian philosophy occupy a place of reflection and artistic activation. Alliances are proposed with philosophers and composers like Tom Zé to address ensemble practice and the constitution of bands. Keywords: Philosophy of difference; Music creation; Bachelor's degree in popular music.

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Encontros Tive um encontro com Tom Zé na adolescência por meio de um LP, trazido pelo meu irmão mais velho. Era empréstimo do amigo do amigo dele. Pedi permissão para escutar o disco Estudando o Samba (1975). A licença veio junto de muita recomendação. Extremo cuidado e cautela para não arranhar o “bolachão”. Nem pensar em forçar o braço ou agulha da vitrola. Aproveitei que estava sozinho em casa à noite e apontei para a faixa 3 - TOC . Ouvi por alguns minutos aquela repetição louca de violão de aço que ia e voltava sem evoluir muito. Naipes de sopros atacavam vez ou outra. Vozes roucas e agudas surgiam. Gritavam ensandecidamente. Desliguei rápido pensando que havia algo de errado. Talvez tivesse arranhado sem perceber. Ou se tratava de um espírito maligno com vozes estranhas. Afinal, já era tarde da noite. Definitivamente, não era nada do que esperava encontrar. Alguns anos depois compreendi melhor que Tom Zé estava me confundindo pra esclarecer. Um encontro acontece onde há matérias expressivas, quando duas ou mais coisas fazem passar algo diferente, onde me coloco a pensar. O encontro pode ser com pessoas. O encontro pode ser com as coisas das pessoas. Com o LP do Tom Zé, com aquelas vozes malucas. Com as coisas do bolachão. No deslocamento de pensamento produzido por TOC. O presente trabalho problematiza a criação musical no curso de bacharelado em música popular da Universidade Federal de Pelotas-RS. Operando a partir da perspectiva da filosofia da diferença (DELEUZE, 2010; 1999; 2009) são propostas alianças com filósofos e compositores como Tom Zé para abordar a prática de conjunto, a constituição de bandas segundo a noção de devir desenvolvida por Deleuze e Guattari (1995). Propõe-se pensar a música não mais como produto das noções dualistas de forma e conteúdo, mas da relação expressiva entre as forças e as matérias. Sendo assim, este estudo

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torna-se pertinente pela possibilidade de se compreender algumas singularidades que permeiam a prática musical em grupo no ensino superior de música. Lócus de trabalho do pesquisador.

Em algumas bandas os encontros costumam ser explicados a partir das afinidades entre pessoas. Em um curso de música popular tais histórias precisam ser construídas, forjadas, inventadas. O curso de música popular na Universidade Federal de Pelotas oferece um percurso de especialização e profissionalização do músico. Uma possibilidade específica de formação em música popular, uma parcial dentro da diversidade de ofertas de formação em música existentes nas universidades brasileiras. Através do currículo, do conhecimento das disciplinas e das práticas musicais. Há coletivos em processos de formação. O grupo é variado. Unem-se guitarristas, bateristas, baixistas, DJs, entre uma pluralidade de instrumentistas e cantores que buscam, em grande parte, certa qualificação do fazer artístico. Pensar a criação musical na universidade, a partir da perspectiva da diferença, requer a necessidade de renunciar a verdades absolutas, de princípios transcendentais e de critérios universais. Deleuze (1999) nos desafia a pensar a vida como acontecimento em vez de realidade

dada de antemão. Dessa forma, o artista, o músico, o compositor são produzidos como efeito da linguagem, são sujeitos produzidos pela linguagem, sujeitos do discurso, dos processos de subjetivação, enfim, dos efeitos de inúmeras instâncias. Ou seja, um conceito nunca é criado do nada, mas, sim acontece de uma multiplicidade de situações. Nesse sentido, sinto-me insatisfeito com a concepção de criação musical como genialidade, dom, leitura essencializada do fazer artístico musical. É possível quebrar com o espontaneísmo já tão naturalizado entre artistas. O artista é criador de afectos e perceptos (DELEUZE, 2010). Abandono o conceito de criação que remete à imagem pronta, senso comum. Não há um grau zero. Como criar aquilo que ainda não existe, ainda não foi visto, o novo? Do nada. Eis a criação sob o pilar criacionista. Eu sou o autor, criador e possuo o que criei, pois, é minha imagem e semelhança. É identitário. Criar o que é esteticamente aceitável. O que compartilha os padrões já estabelecidos de beleza criativa. O belo estético, equilibrado e harmonioso. Por isso, verdadeiro e autêntico. Nesse jogo moral, a banda de música cumpre um papel previamente estabelecido. Alguma torção nas estruturas há de acontecer, alguns filhos pelas costas hão de nascer. Algo novo em relação a criação musical é sempre bemvindo. Os modelos se impõem, automatizam o processo de criação artística. As plataformas de streaming, TV, redes sociais apresentam demandas aos músicos. Sugerem um fazer musical automatizado, fábrica de montagem em série. Como relacionar-se com isso e ainda traçar linhas virtuais, maquinar uma voz heterogênea de si mesma como quer Deleuze? Se as bandas podem dar vida a novos modos de existência, me incomoda automatizar processos e pensar a arte como linha de montagem fabril. A forma como vêm sendo estruturados tais cursos no Conservatório de música está ligada ao papel que a música e os

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O bacharelado em música popular da UFPel Com a palavra Arnaldo Antunes Nós [Titãs] aprendemos a tocar juntos porque queríamos mostrar nossas músicas. Você vê que tinha um potencial ali que teve muito desdobramento posterior. Tinha aquela coisa de aprender a fazer, fazendo. Tudo um pouco mais mundano. Na época do Equipe eu já fazia música com o Paulo, o Marcelo e o Branco tinham um trio com Bellotto que era o Trio Mamão, o Nando tinha uma outra banda chamada Camarões... o Brito já compunha e gostava muito de desenhar. Com o tempo a gente continuou fazendo música. (CANAL CULTURA, 2018)

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músicos desempenham histórica e socialmente num processo de “racionalização e de especialização do campo musical” (VASCONCELOS, 2002, p.59). Ao longo dos anos, nesse espaço de ensino e de aprendizagem, que enfoca a relação mestre-aprendiz, desenvolve-se a leitura e a composição musical (no que se refere ao registro de obras em partituras), a interpretação (com a atividade física dos instrumentos tornando as obras acessíveis aos ouvidos), a formação do público ouvinte (com a apreensão/recepção dos sons/ crítica musical), além do trabalho focado na performance do alunoinstrumentista. As características culturais desse espaço de formação vêm sendo construídas desde a Idade Média com as escolas de música ligadas à Igreja e, a partir do século XVIII, com a expansão dos Conservatórios de Música pela Europa. Já os Cursos de Bacharelado em música com habilitação específica em música popular são recentes no Brasil. Segundo Caldas (1992), o surgimento do Conservatório de música de Pelotas tem uma relação de proximidade com o canto lírico, num movimento político de interiorização da cultura artística do Rio Grande do Sul. Em 1925, com o aumento na procura por vagas de ensino musical, acontece a ampliação da estrutura física do Conservatório. No livro História do Conservatório de Música, Caldas (1992) nos conta que a Semana da Arte Moderna de 1922 produziu demandas de jovens interessados em pintura e desenho na cidade de Pelotas que leva à transformação do Conservatório de Música em Instituto de Belas-Artes. Algum tempo depois, por dificuldades financeiras, a Instituição retorna apenas como Conservatório de música. Em 1961, o Conservatório de Música de Pelotas recebe autorização do MEC para o funcionamento do Curso de Música através do decreto Federal nº 50.948. A comunidade e políticos da cidade buscavam federalizá-lo ao criar a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e com o tombamento do Theatro Sete de

Abril, os . Os estatutos da UFPel foram aprovados pelo Decreto Federal nº 65.881, de 15 de dezembro de 1969, e apresentavam o Conservatório de Música de Pelotas como unidade agregada. O primeiro reitor da UFPel, o prof. Delfim Mendes da Silveira, confirmou na direção do estabelecimento a professora Lourdes Nascimento (CALDAS, 1992). Grandes musicistas foram formados nessa época. Em virtude da proximidade com o Porto de Rio Grande, espetáculos importantes passaram por Pelotas. A cidade de Rio Grande era parte do caminho de montagens artísticas com destino às capitais do Uruguai (Montevidéu) e Argentina (Buenos Aires). As disciplinas de práticas de conjunto, no curso de bacharelado em música popular da UFPel, evidenciam tipos de funcionamentos artísticos. Tal formação específica, proposta a partir de práticas em conjunto, agencia referências de dentro e de fora da universidade, absorve modelos e também rechaça tendências do seu tempo. Nesse sentido, considero importante problematizar os processos de criação e prática musical em grupo no bacharelado em música popular da UFPel; me alio a intercessores para problematizar as potências do ato de criação nas disciplinas de prática de conjunto. O conceito de música neste trabalho pula para um campo imanente, de vitalidade (DELEUZE, 2009). Não há como conceituar algo sem colocar nele o mundo que pertencemos. Trata-se de retirar o conceito de música do mundo dos ideais platônicos e transcendentes, ou seja, de um campo puramente reflexivo. E música popular é o contrário de alguma coisa? O avesso? Funciona apenas dentro de uma tensão com a música erudita? Música popular, neste trabalho é a música feita por artistas como Tom Zé, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção. No Brasil, a música popular envolve uma infinidade de gêneros e manifestações incluindo grupos de choro, trovadores, repentistas, conjuntos instrumentais, escolas de samba, blocos,

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nações, congados, rodas, compositores e compositoras. Em vez de reivindicar uma identidade musical brasileira, tenta-se dizer que a música popular brasileira cria uma ideia música, uma ideia de Brasil. A música popular não fixa um Brasil, mas sim diz sobre aquilo que tem sido possível criar em determinado território. Intercessores Os artistas intercessores podem colocar-se em posição mais ou menos conservatorial, em maior ou menor proximidade com a gramática musical acadêmica, não importa. Por gramática entendo como conjunto de regras e normas estabelecidas dentro de uma determinada língua. Embora não seja o erudito, aproxima-se do erudito. É influenciada pelo culto. Assim, por exemplo, a literatura clássica é utilizada como uma forma de fundamentar a gramática. Na música, o chamado repertório historicamente orientado é uma espécie de parâmetro para fundamentar o que chamo de gramática musical. Pela gramática, as normas definem as leis do bom uso, do uso correto. Do que é consonante e dissonante; para além do bem e do mal (DELEUZE, 2018). A gramática classifica, cataloga. É morosa na atualização. Absorver leva tempo para a gramática. Há um desejo de se libertar de uma gramática que determina a priori, na música, na pesquisa, na vida. Em vez de uma gramática com as regras de dissonâncias e consonâncias, me coloco a pensar sobre a possibilidades de produzir outros modos de pensar (DELEUZE; PARNET, 1996). Nesse sentido, o processo de profissionalização do músico está mais para a maquinação de um corpo. Fazer variar os modos de produção da máquina. Quebrar com as automatizações. Máquinas que funcionam na produção de modelos não me servem. Os ritornelos do bacharelado em música da UFPel podem produzir alianças entre música popular e filosofia. Música e filosofia podem trazer novas relações poéticas.

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Os intercessores funcionam na filosofia na criação de conceitos, eles podem vir da própria filosofia como também da ciência, mas principalmente das artes. Os intercessores podem ser “Fictícios ou reais, animados ou inanimados” (DELEUZE, 2008, p. 156), no entanto, “é preciso fabricar seus próprios intercessores.” (ibidem). Por isso, cabe fabricar intercessores na criação de conceitos e, com isso, “O que é preciso é pegar alguém que esteja ‘fabulando’ em ‘flagrante delito de fabular’.” (DELEUZE, 2008, p. 157). Para perturbar as verdades universalizantes proponho uma prática musical que vase referenciais de escuta. A música que circula pelos livros de história não dará conta da criação de algo novo. Tão pouco as ditas vanguardas artísticas e literárias. Não se trata de negá-las, mas tentar entender o que se passa entre as categorias. O que se passa entre o repertório acadêmico já estabelecido na universidade e a música popular consagrada. Dar corpo a novas formas de criar. Que faça com que o músico se desdobre em outras formas de pensar. Trata-se de buscar outras posições de experimentação, criação e prática musical. Criar é ... Criar ou... Criar e... Criar música não é um campo binário, 0 ou 1; mas uma proporção, a elaboração de procedimentos, tentativa de fazer algo, um alcance. É mais sobre o que funciona para você? E aquilo que não serve nesse momento, amanhã, depois quem sabe? Uma ideia adequada em música pode ser aquela que convém, que faz dar liga entre seção rítmica e harmônica, que por sua força retorna a cada seção, que favorece os elementos musicais. A ideia inadequada, aquela que não faz passar nada, não colabora para que o motivo musical siga proliferando suas afecções. O que pode uma ideia: podem afirmar e negar coisas, podem aproximar e afastar coisas. Assim como a filosofia ou a ciência, não se faz arte da noite para o dia, e muito menos num ato de inspiração. Para longe os romantismos e o espontaneísmo. É

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preciso trabalho, transpiração, criação, insistência para que se chegue na consistência. Deleuze e Guattari (2010) entendem que a arte é uma maneira de enfrentarmos o hábito, de resistir à besteira e ao já dado. Portanto, criar é resistir; e resistir pela criação de sensações. Os materiais expressivos estão por aí, no mundo. Ao organizar, crio uma maneira de dizer. Criar não é a partir do zero, mas sim a partir de materiais, damos novas formas a partir de arquivos, de uma possibilidade de organização (ZORDAN, 2010). A criação é torção e vazamento de tudo aquilo que habita meu corpo e que deseja expressar. Expressar por meio da música. Crio sempre a partir de algo. Crio a partir de arquivos. Enquanto potência capaz de variar padrões artísticos, o que pode a criação? Pode pôr a variar os modelos de produção automatizada tão habitual à indústria musical. Transvaloração dos valores. Enquanto proposta de resistência a modelos estéticos, culturais, estruturas de aprendizagem. Criar é variar padrões. Criar enquanto necessidade de dizer, de mostrar, de afetar o outro. Criar é compor matérias de expressão. A vida como vontade criadora. A criação é vontade de potência (NIETZSCHE, 2011). Um corpo que cria a partir da escrita e da leitura, atravessado por perceptos e afectos. Criação é um conceito implicado com a vida. Criar por necessidade. A criação se desenvolve dentro de um processo de inventariar, relacionar matérias musicais e não-musicais, produzir agenciamentos. Agenciar é reunir as coisas que me afetam. Comporta componentes heterogêneos, tanto da ordem biológica, quanto social, maquínica, gnosiológica, imaginária. Tem elemento tensor entre pelo menos duas matérias. Agenciamento para que se passe alguma coisa. Por isso não é fácil, não é espontaneísmo, essencialismo (o Dom musical) e exige prudência. Criar através dos ritmos que inventa; das harmonias

Bandas e Bandos Criar como uma banda ou dobrar movimentos até que se faça bandos de música. A sala de aula pode perverter o modo organizador das bandas e produzir movimentos outros, ficar à espreita como animais em bandos? Sem esgotar a noção de banda de música, digo que há uma cena que se repete. Existem desdobramentos afetivos em tocar junto, a partir de um coletivo artístico. Eu vou com você, sou parte do grupo. Estamos juntos? No mesmo tempo? É sobre como desenvolver um espaço comum de ação artística. Em alguns momentos, sou o solista, em outros faço o acompanhamento musical. Eis os desafios da prática musical com bandas na música popular. A unidade, as identidades e o pertencimento envolvido na prática musical. Proponho certa degradação de uma prática de conjunto que aposte na coesão ou construção de um conjunto ou banda enquanto unidade artística. Entramos em um momento de degradação, ou seria melhor dizer, de mutação de uma prática de conjunto que aposte na coesão ou construção de identidade de grupo. A aposta passa pela intenção de que essa coesão produza uma assinatura que seja percebida pelas versões sonoras que frutifiquem ao tomar ritmos, melodias, harmonias e timbres com material de artesania. Assim, o que este trabalho toma por identidade é criação musical. Ou seja, o que poderia ser entendido como aquilo que identifica não são aqueles que compõem o grupo,

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que desenvolve. Criar por agenciamentos. Criar transforma o desconhecido em conhecido. Dá visibilidade. O que o bacharelado em música popular da Universidade Federal de Pelotas inventa? Talvez formas de torcer a tradição, apropriar-se das molaridades do repertório e tentar produzir variações. Tornar seu. Não ao estilo autoral (ou identitário), mas por campos intensivos, por experimentações em conjunto. Assim, criar é também dar visibilidade.

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nem uma possível elaboração que busque fazer parecer do bando um corpo único, mas sim a música que faz soar. Os bandos são animais que vivem em grupos. Bandos, quadrilhas, agrupamentos. Bandos de pássaros, de tigres, de lobos, de cavalos. Bandos em movimento. O que guia um bando? A busca pela sobrevivência. O instinto é determinante para a sobrevivência da matilha. A experiência dos animais mais velhos, a proteção generosa dos mais fortes, o guardião confiável. Por isso, não vislumbramos unidade artística, pelo menos não aquela unidade que se contenta em ser percebida como uma só. A unidade que aqui buscamos experimentar é aquela que acontece por ser diversa, por ser expressão de muitos que quando juntos produzem um ser, a obra de arte, e no caso deste trabalho, um corpo sonoro. E, por ser arte, a única certeza é que as coisas não sairão como esperadas. Um bando que mesmo ao estar junto será interrompido ao final de quinze ou dezesseis semanas de ensaios. Há o entendimento de que a banda tem início e término para que outros novos bandos possam surgir. Os desdobramentos não cessam. Então fazemos um corte para que novos ciclos possam tomar corpo. O que fica é o corpo sonoro, a obra de arte produzida por aqueles e aquelas que compartilharam, por algum tempo, um espaço, a prática de conjunto, a aula de música na universidade, o território desse bando. O que pode a banda como um bando? Pode desagregar, pode desestabilizar, pode afastar-se das identidades. Sem a necessidade de constituir um dentro ou interioridades, os integrantes da bandabando desconfiam da constituição de interioridades – dogmas, verdades últimas, grandes narrativas, ideologias. Sem grandes vínculos. São bandos, uma multidão. Para um bando a criação constitui um território. E esse território é formativo. A prática de conjunto do bando é experimental, interativa, baseada na manipulação e

experimentação de sons. Acredita que a criação seja capaz de tensionar as convenções artísticas. O bando não é rígido, é plástico. Na prática de conjunto é uma possibilidade, um devir. Fazer o bando durar depende mais da capacidade de rumar mais além, estabelecer novas formações, assumir novos objetivos. Da mesma forma criativa que o músico desenvolve seus motivos, variando, produzindo novas condições. Fazendo algo novo daquilo que se desgastou. Os bandos não se estruturam numa lógica cartesiana. Eles seguem para todos os lados, num esquema rizomático. Compondo uma rede de conexões. Algumas próximas, outras distantes, mas todas relacionadas. Constelação de novas conexões. Um som que se liga a outro e outro. Rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1997). Quando perdem a flexibilidade tornam-se dogmas, servem mais a gramáticas do que ao bando. O bando não pretende superar nada, tão pouco o conceito de banda. Se assim fosse, o termo mais apropriado seria pós-banda. Porém vive como gregária, a partir dos desejos que circulam dentro das bandas. Habita a banda. O bando é como carrapato (DELEUZE; GUATTARI, 2017b), agregado da máquina de aprender por repetições. Sequer pretende independência. Ali está e disso se nutre. Os bandos não formam oposição à instituição universitária. Mas imprimem novos ritmos e tensionam os limites do seu território. Mostram que pode passar mais do que já se passa. Animalidade é o que coloca o músico a compor em bandos, a conquistar espaços. Não estabelecemos mais as mesmas relações com os elementos costumeiros de nossa existência: o hábito é quebrado quando o todo é repetido de outro modo. Se uma das marcas do pensamento dogmático é a repetição do mesmo, já que entrega aquilo que é esperado, pois cria desejo e entrega mais desejo, para um bando não existe um fora absoluto. Fora

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do capitalismo, fora da estrutura. O fora só existe na tensão, precário. Pode perder a tensão a qualquer momento, como a pele de tambor que precisa ser afinada antes e depois da performance. No bando, criar não é exclusividade dos gênios, criar é explorar os meios por trajetos dinâmicos. O ato de criação está intimamente ligado aos limites das condições impostas pelo real da vida. O bando atua por ciclos de tempo, adapta-se aos calendários, às agendas e outras molaridades institucionais. Bando, antes de qualquer coisa, é um modo de expressar-se artisticamente. É colocar-se à disposição das formas de expressão artística que pedem passagem através do corpo. O bando tenta escapar dos aparelhos de captura, do capitalismo; mas essa fuga é ofensiva, afirmativa. Foge se organizando em contrapoderes. Foge desenvolvendo resistências. Foge no mesmo lugar, nômade (DELEUZE; GUATTARI, 2017c). O bando vai te fazer pensar sobre as imagens nas quais nós nos reconhecemos como músicos. E quais dessas imagens dogmáticas estamos dispostos a desconstruir? Um bando é um coletivo de artistas que se colocam à espreita. Estão curiosos e capazes de ir além da realidade ordinária, utilitarista. Criação e intuição acionam um campo de ressonâncias, ocupam um lugar de pensamento e ativação artística. Tal campo é constituído por intensidades. Uma banda que se torna contra-banda(o). Faz passar algo. Rouba e leva adiante. Roubar (DELEUZE, 1999) também é levar adiante algo ou alguma coisa. De um campo do saber se leva a outro. Como um bando de piratas que contrabandeiam riquezas. Tudo começa por um ataque, saque, tentativa de esgotamento. Para que isso aconteça é preciso estratégia. Onde estão transitando os melhores navios? Nem todo grupo é um coletivo. Onde há acasos, há caos. Um agrupamento é a turma reunida, um grupo de pessoas que aguardam

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a primeira aula do semestre. Um bando é a correria desse grupo em movimento. Em busca de repertório, dos timbres mais adequados, da voz ainda não ouvida. Quais forças constituem um grupo? As linhas caóticas, fora de ordem, aleatórias. O acontecimento, aquilo que passa e produz singularidades, talvez não aconteça ali onde esperamos. Mas também, em um contrabando dos afetos. Refluxo das relações. Todo encontro, mesmo que um novo encontro, é também uma volta a todos os encontros que já tivemos. A cada nova banda preciso me reapresentar ao outro? Os modos de fazer de um grupo de música no contexto de um espaço acadêmico podem estar atrelados a entendimentos maiores (DELEUZE; GUATTARI, 1997). No caso deste trabalho, três são os traços de maioridades, ou seja: 1. O ensino de música numa universidade pública federal com reconhecimento social de grande alcance; 2. O ensino de música num curso de bacharelado todo estruturado a partir dos entendimentos maiores sobre educação como organização curricular, modos de ingressos, organizações didáticas e avaliação; 3. A tradição musical tonal, principal foco do curso de bacharelado em música popular. Por que isso e não aquilo? Por que um acorde e não outro? Nos ensaios ou encontros, novas melodias saltam. No fazer musical, criam motivos. O motivo, um índice do movimento. Desse modo, os procedimentos se colocam no caminho de encontrar e mesmo de inventar brechas com aquilo que se pretende um curso de formação. Sendo assim, o que significa criar procedimentos tomando como alimento as assinaturas musicais dos compositores aqui apresentados? Um caminho possível para tal questionamento

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é tomar as experimentações sonoras como provocação, não só para as músicas de um bando do curso de bacharelado em música, mas também para os outros aspectos, não sonoros, mas que também compõem a música que se cria em espaços similares. Sendo assim, no lugar de uma docência afinada em 440 hertz – ou seja, lá universal –, uma docência desafinada? Ou uma docência que não tenha uma nota referência, assim como é de costume para a execução de músicas tradicionais, sejam elas populares ou eruditas. Uma docência sem afinação prévia é uma docência que só sabe o que vai acontecer quando junto daqueles que vai compartilhar sobre o que pretendem que aconteça (PACHECO, 2011). Essa desafinação faz, por exemplo, com que a partitura perca a condição de exercer autoritarismos, passando a ser mais um elemento da artesania musical. Sem a bússola – a nota lá –, outro aspecto do mundo educacional também passa a ser desafinado. Os planejamentos não acontecem mais de modo antecipado ao encontro. O que passa a acontecer é a preparação daqueles envolvidos, que sem a imposição da afinação previamente determinada, necessitam criar seus rumos a partir do encontro e das escolhas colocados no jogo que se faz necessário para que a música possa soar. Na perspectiva apresentada neste trabalho a criação se afasta dos binarismos. A urgência do que vai ser dito é anterior ao fazer (FERRAZ 2005). Que na prática de conjunto possamos dar espaço a devires Tom Zé. Que experimentam novos sons, extirpam das máquinas os defeitos de fabricação. Dão ênfase aos estudos, a procuratividade e a des-canção. Que nos bandos os devires Tom Zé criem gradações sonoras ainda sem categorias. Que experimentam novos sons, estudos, des-cancionando a música popular. Em busca de forças sonoras ainda sem nome.

REFERÊNCIAS CALDAS, Pedro Henrique. História do Conservatório de Música de Pelotas. Pelotas: Semeador, 1992. CANAL CULTURA. Com a Palavra, Arnaldo Antunes. Documentário. Diretor: Marcelo Machado. Elenco: Arnaldo Antunes. Duração: 80 min. São Paulo, 2018. FERRAZ, Silvio. Livro das sonoridades. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Ed 34, 1999. ______. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2018. ______. Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2009. ______. Nietzche e a filosofia. São Paulo: n-1 edições, 2018. ______. O ato de criação. Folha de São Paulo, v. 27, p. 4, 1999. ______; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. vol. 3. 2ª edição. 2ª reimpressão. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 2017a. ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. vol. 4. 2ª edição. 1ª reimpressão. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 2017b. ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. vol. 5. 2ª edição. 1ª reimpressão. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 2017c. ______. Mil platôs: entre capitalismo e esquizofrenia 2. vol. 2. reimpressão. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 1997.

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______. O que é a filosofia? Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010. ______; PARNET, Claire. Abecedário de Gilles Deleuze. Transcrição integral do vídeo, para fins didáticos. Entrevistas realizadas entre 1988 e 1989. Disponível em: http://www.escolanomade.org/wp-content/downloads/deleuze-o-abecedario.pdf NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. 2011. PACHECO, Eduardo Guedes. Por uma (des) educação musical. 2011. VASCONCELOS, António Ângelo. O conservatório de música: professores, organização e políticas. Lisboa: Ed. Instituto de Inovação Educacional, 2002. ZORDAN, Paola. Criação na perspectiva da diferença. Revista Digital do LAV, v.5, n. 5, p. 62-74, 2010. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/2135

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Narrar-se para se desgarrar do razoável: a ficção como dispositivo clínico-político ético-estético Luis Artur Costa Docente adjunto do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do PPGPSI/ UFRGS, formado em psicologia, mestre pelo PPGPSI/UFRGS e doutor pelo PPGIE/UFRGS. Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. larturcosta@gmail.com

Narrate yourself to stray from the reasonable: fiction as a clinicalpolitical ethical-aesthetic device

Resumo: A experiência com oficinas de ficções colaborativas problematiza a noção de políticas do narrar e a produção dos nossos territórios existenciais, compreendendo-as como dispositivos clínico-políticos ético-estéticos que operam a experimentação constante dos nossos limites do dizer, fazer, pensar, sentir, conviver. A ética ficcional desloca a política do narrar moderno-colonial e suas plataformas globais em um exercício ético de escuta-contágio das diferenças como singularidades-virtualidades. Palavras-chave: Políticas do narrar; Ficção; Clínico-política; Ético-estética; Oficina.

Abstract: Experience with collaborative fiction workshops problematizes the notion of the politics of narrating and the production of our existential territories, understanding them as clinical-political ethical-aesthetic devices that operate the constant experimentation of our limits of saying, doing, thinking, feeling, living. Fictional ethics displaces the politics of modern-colonial narration and its global platforms toward an ethical exercise of listening-contagion of differences as singularities-virtualities. Keywords: Politics of narrating; Workshops.

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Fiction;

Clinical-political;

Ethical-aesthetic;

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Narrando-nos, nós dos encontros, em uma roda de ficção. Sentado no sofá com a janela sobre o colo, escorro o mundo entre minhas pernas enquanto navego para além do ar em um gesto forçoso de imaginar a vida que lá fora reinventada. Dois mil e vinte, tempos de pandemônio. Caem os escombros do mundo ao nosso redor enquanto mantemos a tranquilidade trágica dos resignados ao seu destino. Vez por outra, desespero, a claustrofobia da casa e a infinitude do isolamento fazem-se concretas. Mas em geral apenas espero, sem esperanças de salvação, mas com a certeza de que nada nunca será como antes ao mesmo tempo que tudo continuará igual. Fica o desafio de exercitar absurdos em meio a tanto delírio distópico que nos trazem os ventos. Sinto saudades das cidades, mas jamais consigo sair delas. Levo-as comigo até mesmo quando adentro os confins do pampa. De fato, sou um pedaço delas, fragmento de cidade a deambular pelo mundo. Por isso a relevância de imaginar-me outras cidades possíveis. Por isso a relevância de contar-nos outras cidades possíveis. Por que temos medo, ainda mais medo e ainda mais ódio, a cindirem o que já estava separado por abismos. Talvez seja um pueril artifício ensejar outras urbes, diferentes edifícios, desviantes condomínios, no entanto, é exatamente no campo do sensível que habitam nossos mais impronunciáveis juízos e, assim, é imprecisamente neste corpo pleno de memórias do possível que podemos, quem sabe, tornar menos provável o que é sempre inevitável. Fecho os olhos com força para evitar que adentrem as imagens de sempre e erijo uma paisagem pela qual caminho atento ao meu corpo: a brisa revirando os pelos pela epiderme, um pé de vento repentino lança cabelo ao rosto, cheiro de móveis antigos, mofo e gnv próprios do centro da cidade no inverno, um laivo de café e um amontoado de conversas me invadem ao cruzar a esquina de um antigo café. Troco olhares com os desconhecidos em busca de um no qual me reconheça. Um semblante mais taciturno,

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de olhar pedril com vetustas sobrancelhas me encara como quem desafia minha existência, não sei se me considera impossível, inviável ou apenas “imoral”. Ele larga um comentário como um pigarro na calçada e eu finjo que não escuto. Fico até curioso por saber, mas dou de ombros ao gesto indigesto e sigo meu caminho pelo calçadão. Está um belo dia de sol com uma brisa fresca, não vou esquentar a cabeça com estultices desta espécie. Abro os olhos e miro o ecrã do laptop, estou em uma roda quadrada com um grupo que fala desde diferentes lugares. Cada um narra um pequeno e intenso fragmento de cidade que carrega consigo. Uma senhora relata o quanto estão crescendo os meio-fios nos últimos anos. Um jovem diz que, por outro lado, visitou sua antiga escola e tem certeza de que as salas e corredores estão a encolher, alguém haverá de ter-lhes roubado espaço e tempo, posto que, podia apostar, o turno de um dia tampouco durava o mesmo de antes. Uma mulher comenta que há pouca novidade para ela no isolamento social, sua surpresa era de que não estávamos todos nesta mesma situação desde sempre. Não estamos? A companheira de roda do terceiro quadrado à esquerda contrapõe que nem em tempos de isolamento consegue parar e que anseia um dia no qual não precise se expor a tanta correria por tão pouca cortesia. Um jovem com o fundo de uma parede de tijolos expostos, unidos por um rejunte irregular e abundante, logo vaticina: eu, muitas vezes, nem posso correr sob o risco de morrer em decorrência do medo imaginário de alguém. Medo que mais parece ódio, diga-se de passagem. Um homem de barba hirsuta e vincos lavrados, lado a lado, nas bochechas, fala das saudades de quando o chão era solo e podia meter as mãos no território que caminha sem receio das sujidades do mundo. Outro homem, igualmente hirsuto, responde de uma sala com forte luz branca ao lado de um jovem de jaleco: “eu, da minha parte, sempre tive intimidade com as coisas das ruas, suas

Um convite para encontros muitos: oficinas de ficção colaborativa Esse artigo se originou a partir do convite para realizar uma oficina de escrita-de-si no evento Deleuze: modos de usar organizado pelo LAPSO da UFPel em 2020. A referida oficina é constituída por um conjunto de protocolos flexíveis erigidos no decorrer de alguns anos de experimentação com a produção colaborativa de narrativas ficcionais (COSTA, 2014; COSTA, 2016). Trata-se de um dispositivo simples: pessoas sentadas em roda são convidadas a fecharem os olhos e imaginarem em detalhes os passos, paisagens, sons, odores, etc. do seu cotidiano durante um dia da sua vida desde o despertar, logo após a experiência imaginativa, solicitamos que as pessoas escrevam uma breve narrativa a partir do imaginado e compartilhem com xs demais. Na sequência do compartilhamento das narrativas, são todes convidades a fecharem uma vez mais seus olhos, mas agora, ao invés de imaginarem o próprio cotidiano, são provocades a imaginarem o cotidiano de outra pessoa, em outra situação, com outras condições e marcadores sociais das diferenças que não os seus. O convite é para que cada pessoa imagine ser alguém que considere completamente diferente do que pensa ser. Tal convite à formulação de um(a) personagem pode variar muito dependendo do grupo com o qual se realiza a oficina e, também, das questões que permeiam a realização

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miudezas, porcarias para uns, encantos de cada canto ruero para mim”. A conexão trava, entrecorta as próximas falas e eu me perco singrando as falas escutadas reverberando no meu sangue, na minha carne, nas minhas vísceras. Poderei eu, pedaço de cidade que sou, ignorar o que estas histórias fazem comigo? Como uma comunidade sentada no entorno do fogo, tecemos uma trama de experiências a transformarem nossa possibilidade de experienciar as cidades pelas quais, nas quais, narramo-nos aos nós dos nossos encontros.

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da mesma: pesquisadores podem imaginar ser as pessoas que estão sendo pesquisadas em seus trabalhos, trabalhadores da saúde e da assistência, por sua vez, podem ser convidades a imaginarem o cotidiano das/os usuárias/os que frequentam seus serviços, podem ser operados deslocamentos de gênero, raça, classe, sexualidade, corporeidades, etc.. Esta experimentação imaginativa foi planejada para tensionar nossas condições de possibilidade de pensarmos a nós mesmos e às/aos demais, operando problematizações nos nossos modos de sentir, pensar, fazer, viver, tanto tornando mais concretas e passíveis de tensionamento crítico nossos próprios regimes existenciais, quanto, junto disso, colocar em questão nossas formas de visibilizar-pensar em alteridades, evidenciando-tensionando nossa posicionalidade ao pensar um “outro”. Tais narrativas de vidas ficcionadas são, também compartilhadas em um seguimento do processo de tensionamento das nossas condições de possibilidade de reconhecimento de nós mesmos, das diferenças ou das outridades (KILOMBA, 2019) que reiteramos mesmo que sem perceber. Por fim, em um terceiro momento, a partir das narrativas compartilhadas neste segundo momento, o grupo passa a construir um personagem coletivo que terá um dia da sua vida inventada-contada pelo grupo: quem seria, o que escuta, o que faz, do que gosta e do que foge, onde nasceu e onde vive, com quem anda, o que pensa e o que sente, são algumas das muitas questões que vamos tecendo para constituir uma posicionalidade da/o personagem e, então, iniciar a narrativa de um dia na vida desta pessoa do despertar ao adormecer. Já experimentamos este dispositivo clínico-político em diferentes contextos: em equipes de projetos de extensão e de projetos de pesquisa (para fomentar uma análise de implicação via a ficção colaborativa), em participantes escutades por projetos de extensão ou de pesquisa (para fomentar processos de reflexão sobre

suas próprias vidas e elaboração de materiais que poderiam auxiliar na formação de profissionais que trabalham com estes públicos), em estudantes e pessoas em geral, interessadas em experimentar a oficina. Em especial durante os anos de 2015 e 2016, desenvolvemos encontros semanais com um grupo de pessoas que integravam o Movimento Nacional de População de Rua (MNPR) e que estavam atuando como facilitadoras junto a alguns serviços da assistência especializados em atender pessoas em situação de rua na cidade de Porto Alegre. Foram três semestres intensos, nos quais nos sentamos em roda, compartilhamos experiências, debatemos sobre diferentes questões de nossas vidas e produzimos três contos, uma série de fotos e um vídeo 1. Estas produções literárias, fotográficas e audiovisuais serviram para que as/os facilitadoras/es promovessem, por sua vez, oficinas junto a trabalhadoras/ trabalhadores da rede de assistência social especializada no atendimento a pessoas em situação de rua da cidade de Porto Alegre. Para tanto, além de fazerem uma roda de conversa com as equipes, utilizavam a leitura de algum dos contos e o vídeo como dispositivos para uma intervenção que promovesse uma escuta que transformasse os modos de pensar-sentir as vidas das pessoas em situação de rua que chegavam aos serviços. Nos relatos sobre as oficinas ministradas, suas/seus ministrantes contavam de interessantes deslocamentos no campo sensível de diversos/diversas trabalhadoras/res das equipes. Tal estratégia de intervenção clínicopolítica apoiada na estética (e sua potência poética de provocar deslocamentos nos processos autopoiéticos) demonstrou muitas vezes uma grande capacidade de efetuar intensas problematizações que reverberam em todo um corpo que pensa com seus afetos. Já antes de tais experimentações a ficção se apresentava como estratégia metodológica no decorrer dos trabalhos realizados no Grupo de Pesquisa Corpo, Arte e Clínica, do qual eu fiz parte durante

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[ 1 ] O grupo de sete a nove facilitadoras/ res elaborou no decorrer de um ano e meio três contos narrando a vida de três pessoas em situação de rua, uma série de fotografias e um vídeo.


muitos anos sob a coordenação de minha orientadora Tania M. Galli Fonseca. Se desde minha dissertação Brutas Cidades Sutis (2007) a ficção estava intensamente presente como método (articulando dissertação com narrativas literárias, fotográficas e audiovisuais que redundaram em minha primeira exposição com o Coletivo Ardecidade), no decorrer desta e de outras experimentações de tal oficina, muitos outros trabalhos foram sendo realizados em nosso grupo de pesquisa utilizando a ficção (colaborativa ou não) como estratégia metodológica voltada para o tensionamento-acontecimentalização dos nossos modos de escrever, ver, falar, pensar, fazer e, em especial, escutar. Exploramos, em nosso grupo, a ficção como estratégia cartográfica na produção de conhecimento em uma perspectiva clínico-política ético-estética, partindo de uma experimentação para percorrer e tensionar nossos modos de existência. Uma experiência de antropologia especulativa (SAER, 2004) entre virtualidades, istidades, singularidades em um empirismo transcendental (DELEUZE, 2008b) no qual há uma paradoxal imanência entre sensível e inteligível, atual e virtual. Cartografia-ficcional (BOTTONI; COSTA, 2018), memórias inventadas (CUNHA, 2017); alterego heterotópico (ALVES; COSTA, 2019), retratos (CEZAR, 2018); delírio como método (NASCIMENTO, 2018; COSTA, 2012), redução ao absurdo (CARDOSO, (no prelo); COSTA, 2018), biografemas colaborativos (COSTA, 2016), inacabamento-fragmento (MAZZOLI, 2019), escrevivência (ALMEIDA, 2018; CARDOSO, 2020), historicizar (PAULA, 2019), etc. são algumas das operações metodológicas que já foram experimentadas pelo grupo. Políticas do narrar Narrar é ato constituinte e constituído pelo agenciamento de diferentes verbos em declinações muitas: amares, amedrontar, fugir,

buscar, estabelecer, compartilhar, diferir, convergir, durar, sofrer, rir, lutar, dormir e acordar. Ilimitados seriam os verbos e infinitivas suas declinações possíveis. Narrar é o ato de tecer vida coletiva e toda vida sempre é coletiva, mesmo quando apartada por individualidades é a narrativa da sacralidade privativa e do medo/ vergonha do outro que cerze esse coletivo feito de isolamentos conjuntos em apartamentos. Narrar, assim, assemelha-se aos processos de individuação psíquico-coletivos de Gilbert Simondon (2009): feitos de palavras, ideias, afetos, emoções, implicações, tais individuações comunais modulam diferentes arranjos de um viver juntes. O narrar, assim, é parte fundamental na constituição de um dançar coletivo desde uma mirada Espinosista (ESPINOSA, 1973; DELEUZE, 2008): aproximar velocidades, compor ritmos, fazer variar um conjunto, por meio destes fios-narrares nos quais duram aproximações e afastamentos, amores, temores e ódios. Todo narrar é político e toda política é narrativa. Todo narrar é afirmação de uma memória e toda memória é afirmação de uma narrativa. Toda narrativa é real e toda realidade é narrativa. Toda perspectiva onto-epistêmica ético-estética assume uma certa variação de políticas do narrar que envolvem uma certa relação-produção da memória, um certo estilo do viver juntes e um modo de perceberfazer a realidade vivida. Muitos são os gestos políticos que erigem pólis enquanto modulação de diferentes estilísticas do viver junto, enquanto operadores da individuação deste ente coletivo que tantos nomes recebe: sociedade, comunidade, coletivo, grupo, etc. Muitos são os gestos que perpassam tal processo de individuação coletivo: comer, dormir, transar, amar, trabalhar, descartar, morar, obedecer, sacralizar, transgredir, entre muitos outros. No entanto, todos eles, de algum modo, são sempre atravessados pela operação do narrar: o que se come, como se come, por que se come ou não, os modos de

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[ 2 ] Mesmo quando uma narrativa pretende realizar uma operação de reiteração do mesmo, uma homogeneização generalizante, a afirmação de uma generalidade universal, etc., o que ela opera de fato é uma repetição da diferença (DELEUZE, 1988), uma série de variação (DELEUZE, 1975).

amar e suas justificativas e histórias passadas, as formas de obter prazer consideradas adequadas e todas aquelas “proibidas” mas que ainda assim são experimentadas, as razões e funções do trabalho, a construção da ideia do que deve ser e como será descartado, enfim, todos gestos que constituem nosso viver junto são de algum modo perpassados por narrares muitos os quais, junto dos afetos por estes narrares fomentados, são a teia que une nossas singularidades em suas diferenças em um comum 2. Narramos muitas vezes com palavras, mas não só. Narramos também com imagens, sons, gestos, objetos, afetos, construções, formas e organizações dos modos de morar, trabalhar, comer, amar e muito mais. Tais narrativas duram entre nós de diferentes formas e sevem sempre de matéria-prima para novos narrares que destes partem em uma função de rememorar e recriar-esquecer nossas ancestralidades. Nosso corpo é narrador e narrado. É a concreção coletiva de milênios de narrares muitos em um ecossistema com o qual forjamos tendências do perceber, do afetar, do viver juntes interespécies, com os minerais, relevo, clima, etc.. Nosso mundo mesmo é também narrador e narrado: seus acontecimentos se sedimentam em fatos, modos, morros, rios e vales que se tornam condição de possibilidade da contínua variação do nosso narrar. Nossos gestos e afetos são narradores e narrados em meio ao corpo, o mundo e as multidões. O narrar é a produção de um bloco de perceptos e afectos (campo probabilístico-virtual de afetações e percepções possíveis) os quais, por sua vez, servem de plano de composições para a emergência de conceitos-perspectivas de mundo e as consequentes coordenações da realidade em prospectos e functivos que permitem juízos muitos (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Deste modo, por exemplo, o carrapato desde seu umwelt (DELEUZE; GUATTARI, 1997) articula-se com o mundo desde um modo de narrá-

Concepções de ficção e suas políticas do narrar Advertência: esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real não é mera coincidência, posto que a ficção é real enquanto ficção que possui como matéria prima e produção final, nossas reais afetações e experiências. Dizem alguns, que o aviso que muitas vezes vemos ao início de obras audiovisuais sobre a possível coincidência entre eventos ou personagens da obra com acontecimentos e pessoas da realidade, seria decorrente da insatisfação de uma figura célebre em ver sua história representada de um modo distinto do que realmente ocorrera em sua vida: no referido filme tal pessoa era assassinada ao passo de que estava ainda a respirar tendo, inclusive, assistido à referida obra cinematográfica e ficado extremamente insatisfeito com sua morte ficcional. Não tenho certeza que tal explicação seja correspondente

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lo pela luminosidade, pelo odor, pela gravidade e pelo calor em busca da menor concentração capilar na pele: “O carrapato, atraído pela luz, ergue-se até a ponta de um galho; sensível ao odor de um mamífero, deixa-se cair quando passa um mamífero sob o galho; esconde-se sob sua pele, num lugar o menos peludo possível. Três afectos e é tudo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.44). Nosso próprio corpo e sua complexa fauna e flora de microrganismos são já narrares eles mesmos, são possibilidades de afetação, de articulação, que condicionam e possibilitam expressividades e afetações em uma multidão agenciada como um corpo múltiplo. Uma boca, dois braços, uma coluna, um intestino, um polegar opositor, um órgão fonador, etc., tudo se articula com o mundo, ideias, afetos, objetos, gestos e muito mais na constante re-(des)delimitação dos blocos de afetações e percepções possíveis aos quais aqui denominamos narrativas: o ensejo de certa trama de sentidos possíveis em devir.

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à sucessão de eventos que nos levaram à popularização de tal advertência no início de novelas, séries e filmes. No entanto, não tenho dúvidas de que, no mínimo, se trata de uma ficção plena de realidade: ela dá corpo real aos tensionamentos vividos no confronto entre uma ética da ficção e a vontade de juízo representacional. Paul Preciado, por exemplo, inicia sua obra Pornotopia (2020) com uma advertência similar retirada de um texto de David Foster Wallace escrito em 1989: “Este texto é pura ficção. (…) Quando nesta obra se utilizam os nomes de empresas, de meios de comunicação ou de políticos, com eles só se quer denotar personagens, imagens, a matéria dos sonhos coletivos” (PRECIADO, 2020, p.7). Na advertência que serve de epígrafe a este capítulo, exploramos o paradoxo da ficção a partir do qual vamos afirmar uma ética ficcional: toda realidade é ficcional enquanto produção colaborativa em processo e toda ficção é real enquanto produção de narrativa-mundo. Assim, desde o momento que paradoxalizamos os pretensos polos entre Natureza e Artifício, também o fazemos entre o fato e a ficção (COSTA, 2012): tudo é artifício posto que nada está dado nem é eterno, estando nossos modos de ser em constante processo de construção colaborativa, complexa e singular, que jamais esgota seu campo de virtualidades possíveis em nossos modos de agenciá-la segundo nossas pretensões e sentires (WHITEHEAD, 1956). No entanto, não pretendemos, com isso, apenas igualar as narrativas científicas da modernidade-colonialidade com as narrativas ficcionais da literatura e das nossas pesquisas-intervenções em Psicologia Social, pois tal constatação deste caráter sempre ficcional na constituição da ontoepisteme do mundo não iguala estas diferentes políticas do narrar em suas ético-estéticas: enquanto uma busca produzir coordenações homogeneizantes (DELEUZE; GUATTARI, 1992) de significadosreferentes (DELEUZE, 1975) segundo uma lógica indutivo-dedutiva

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(SIMONDON, 2003) voltadas para a previsão-controle, a outra, busca produzir complexificações-singularizações-deslocamentos de perspectivações-sentidos (DELEUZE, 1975) segundo uma lógica transdutiva (SIMONDON, 2003) e abdutiva (COSTA, 2012) voltadas para a afirmação de uma clínico-política do vivermos juntes. Se há uma operação que parece transversalizar o campo ficcional em geral seria esta do afetar inteligível-sensivelmente, em suas diversas variações de políticas do narrar e de qual estilo clínicopolítico de afetação se almeja provocar: modulações distintas das produções de experiências e contágios em diferentes arquiteturas de armadilhas sensível-inteligíveis em blocos de perceptos e afectos. Poderíamos somar ainda outros elementos caros a todas ficções, mas por certo existe uma ação nesta dimensão do afetar-contagiar que nos interessa em especial: o singular campo ético-estético-político de promover a operação de deslocar, tensionar, transgredir, fazerse perder em vertigem, provocando variações em nosso regime do dizível, pensável, perceptível, etc.; operação de estabelecer rizomares em marés de ressaca, de cultivar o mofo cotidiano na multiplicação das tramas singulares de articulação com o mundo e nossos modos de viver. Nestes últimos casos, temos, por exemplo, a própria operação do delirar (COSTA, 2014) como modo caro aos fazeres ficcionais em seu labor de imaginar mundos além dos nossos imaginários totalizantes, fomentando, inclusive, imagens sem imagem possível. A metodologia da ficção se vê, assim, como parte do mundo e aliançada aos eventos-objetos com os quais se articula em uma trama de variações: aliançada sim, mas jamais filiadas no sentido de um saber representacional em uma etiologia determinista causal. Variação concebida como repetição na acepção deleuziana (1988) que se diferencia drasticamente da equivalência, da generalidade, da similitude, da replicação e da reiteração, estas últimas, próprias da

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modulação moderno-colonial das ciências em suas políticas do narrar em busca de homogeneizações na promoção de coordenações para a previsão-controle objetificantes de eventos, pessoas, etc. Assim, ao tensionarmos tal ética ficcional junto ao campo das ciências modernocoloniais (do qual a Psicologia Social faz parte), pretendemos deslocar as políticas do narrar destas desde práticas de experimentações várias que se aproximam das artes, da literatura, da contação de histórias e de muitas outras modulações da nossa produção de comum. São diferentes formas de ensejar pelo contágio um corpo possível ao nosso campo de afetações-percepções possíveis. Se tudo é, de algum modo, uma política do narrar, poderíamos afirmar sem receios que tudo é ficção, posto que tudo é, de algum modo, artifício e invenção em processos de duração distintos, do corpo ao cosmo, do social ao biológico, falamos, sempre, de processos de preensão coletivos a erigirem o mundo no qual vivemos: elétrons, átomos, moléculas, corpos, relevos, tecendo modos comuns, leis, estilos, (des)funções, etc.. Em tal radical acepção de ficção ela não estaria circunscrita à dimensão humana das palavras, valores e instituições, mas a toda e qualquer existência que afeta e se afeta na produção colaborativa da realidade, incluindo o planeta como ecossistema com seus relevos, climas, faunas e floras. Assim, ao dissolvermos em paradoxo a oposição da metafísica ocidental entre natureza e artifício findamos por devirar também as fronteiras que se queriam absolutas entre fato e ficção (COSTA, 2012). No entanto, como dissemos antes, isso não iguala as diferentes políticas do narrar presentes nestes atos-acontecimentos que tecem coletivos: no caso dos narrares humanos, por exemplo, temos um modo ficcional específico para a construção dos fatos e outro, deste distinto, para erigir o que usualmente denominamos em nosso cotidiano como ficção. São políticas narrativas distintas: uma mais concentrada

em possibilitar a coordenação, o controle e previsão, a distinção e objetivação de referentes, enquanto a outra está mais focada na construção de uma perspectiva, de uma voz, de um lugar, por meio da dimensão estético-poética dos contágios sensíveis. São ênfases nas modulações de estilísticas narrativas que afirmam distintas (mas não opostas) políticas do narrar que aqui poderíamos diferenciar como metodologia científica moderno-colonial e metodologia ficcional. Não custa relembrar que em ambas temos o campo da formalização inteligível de coordenadas e conceitos, assim como em ambas temos o plano sensível das composições, já que tais modulações são intrínsecas uma à outra do mesmo modo que o espaço e o tempo são um só na dimensão do fluxo-acontecimento (WHITEHEAD, 1994). Do mesmo modo, ambas são, de certo modo, ficções, pois ambas são constituídas em um processo artificioso de invenções muitas em constante variação. No entanto, em que pese tais similaridades, nos interessa no presente texto arraigar suas distinções e, para tanto, reservaremos o uso da ficção como método para tal modulação poética que radicaliza uma ética pragmática dos efeitos estéticos na direção da produção de sentidos, de perspectivismos, de delíriosproblemas, abduções, etc. (COSTA, 2014). Elemento muito caro às ficções em geral, o ato de provocar contágios sensíveis-inteligíveis de modo a fazer variações de experiências ganha especial importância quando assumimos a ficção como método em sua radicalidade de delírio. Assim, reservaremos aqui o uso da ficção como metodologia na Psicologia Social (COSTA, 2014) para uma política específica do narrar a qual afirma uma ético-estética voltada ao deslocamento, vertigem, incômodo, variação, problematização, delírio, etc. Tratase, assim, de uma política do narrar que assume como objetivo não a pretensa reprodução-representação dos nossos modos de ser,

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mas sim o tensionamento dos nossos modos de ser, dizer, pensar, ouvir, ver, fazer, etc.. Tal perspectiva política que assume não a tentativa de reprodução-representação do nosso mundo, mas sim sua experimentação-tensionamento está presente em diversas obras-metodologias tanto no campo usualmente referido como “artes” como naquele comumente chamado de “ciência”: recordo, por exemplo, das restrições impostas por Lars Von Trier a Jorgen Leth no filme As 5 Obstruções (2003), lembro dos Exercícios de Estilo (1995) de Raymond Queneau e de O Sumiço (2015) de Georges Perec, da deriva psicogeográfica de Debord (1997), entre muitos outros, mas em resumo, recordo da contraposição de contra-protocolos aos protocolos instituídos na busca de incrementar-deslocar nosso campo de criação. Trata-se do masoquismo como método de experimentação sensível para produzir um CsO (DELEUZE, 2018). A ética ficcional como contra-protocolo narrativo da atualidade: potências clínico-políticas da oficina. Desde ao menos a metade do século XX vivemos em um capitalismo que tem como um dos seus principais campos de batalha econômica a captura dos afetos-percepções das pessoas que o constituem. A chamada attention economy (MARAZZI, 2002) ou o capitalismo cognitivo é uma das nuances que emerge em meio às demais com a produção e dispersão massiva de imagens. Tal configuração se sedimenta em especial com a ascensão das chamadas mass medias nas primeiras cinco ou seis décadas do século XX, mas poderíamos encontrar elementos de tal organização no século XIX com a replicação técnica industrial de cartazes e imagens afins por meio da litografia, nas catedrais do Barroco europeu em seu intenso espetáculo voltado à conversão e promoção do medo-esperança, ou, até mesmo, na tipografia de Gutenberg e sua força na dispersão das

letras em meio às reformas protestantes. Em resumo, a disputa da atenção, dos afetos, das emoções e afins, não se constitui como novo território recém invadido, as ações de colonização e de capitalização há muito já se dedicavam a tal continente consciente e inconsciente, no entanto, temos no decorrer dos séculos XX e XXI uma expansão e intensificação da centralidade de tal estratégia na operação do sistema capitalista em sua reprodução e variação de si: cinema, rádio, televisão, blogs, redes sociais, aplicativos, etc., não apenas se tornam onipresentes e se infiltram em cada filigrana do cotidiano, como também se tornam grandes potências econômicas dos mercados 3. A noção de espetáculo com a autonomização da imagem como máxima acumulação do capital em uma sociedade que passa a ser governada por meio da mediação imagética (DEBORD, 1997). A noção do capital auto-replicável sem lastro necessário em ouro ou petróleo, no qual, tautologicamente, o valor de uma moeda é o valor que a moeda possui no mercado, ou seja, uma questão de fé em sua replicação e sustentação (HARDT, NEGRI, 2004). A noção de uma sociedade constituída por relações mediadas por lógicas de consumo nas quais existe aquilo que é visto segundo a lógica tautológica do best-seller: “best seller é um livro muito vendido por ser muito vendido” (BAUDRILLARD, 1995). A noção de aceleração e desmaterizalização dos fluxos (VIRILIO, 1994). A noção do nosso tempo como a afirmação constante da crise como forma de governo em uma constante e complexa gestão dos riscos e modulação dos hábitos (DELEUZE, 1992; FOUCAULT, 2008; BECK, 2008). Infindáveis são as letras já utilizadas para descrever nossos tempos. Vemos, entre todas estas noções, a afirmação de elementos constituintes do nosso capitalismo contemporâneo desde essa mirada que ressalta suas sucessivas dinâmicas de desterritorializações das singularidades e suas reterritorializações sobre territórios mais abstratos, ou seja,

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[ 3 ] Os dados são um dos principais ativos do mundo atual: https://jornal. usp.br/radio-usp/ big-tech-definefuturo-dos-euadiz-colunista/. Big Techs são algumas das maiores empresas: https:// www.ibe.edu.br/ as-10-marcasmais-valiosas-domundo-em-2020segundo-a-forbes/.


sobrecodificados (DELEUZE, GUATTARI, 2010), em especial, pelo comutador universal do capital. A dissolução de mundos, fronteiras, costumes e sua reconstituição costumam ser acompanhadas por ódios e medos que permeiam e operam tais desterritorializações, mas em especial, operam suas reterritorializações em novas fronteiras amedrontadas pela velocidade e revolução que elas próprias promoveram. À velocidade desterritorializante que o sistema violentamente provocava com sua dissolução de referências, novas referências também violentamente eram construídas em um processo de assimilação de tudo e todos a uma plataforma moderno-colonial do capital como medida de todas as coisas e pessoas. Assim, nos cruéis movimentos que inauguram a modernidade com as invasões europeias dos continentes da África e América (MBEMBE, 2018), a colonialidade se constitui como posicionalidade pretensamente universalizada que captura e sobrecodifica no mercantilismo nascente toda e qualquer vida existente no globo terrestre: sequestraram pessoas de suas casas e comunidades, tentaram impor-lhes outros costumes, línguas, nomes e história, em um inimaginável processo de escravização pleno das mais extremas violências. Em conjunto com tal processo, a fauna e a flora de cada continente foram rapidamente transladadas de um lado ao outro do globo pela promoção de grandes fazendas de monocultura (plantations) e pelo comércio de especiarias. Assim, continentes inteiros foram invadidos e devastados para a construção de “novos mundos”: dilacerantes desterritorializações concomitantes a violentas reterritorializações coloniais. Vidas, corpos, gestos, afetos, objetos, paisagens, ideais, absolutamente tudo pode ser recortado da sua superfície-trama de singularidades nas quais emerge para ser reinscrito em um plano no qual recebe um valor econômico, uma

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cifra, uma função reduzida ao mercado, a qual, por sua vez, permite uma lancinante hierarquização desde a mirada do capital. Assim, de certo modo, desde a emergência da modernidade com sua violência alterocida (MBEMBE, 2018) ao invadir, escravizar e promover genocídios em nome da constituição de um mercado transoceânico, vemos a constituição de uma grande plataforma sobrecodificadora (DELEUZE; GUATTARI, 2010) por meio da qual se produziam equivalências para então promover desigualdades e, em especial, objetificações extremas por meio da exploração e violência necropolítica (MBEMBE, 2016). A plataforma intercontinental da modernidade-colonialidade traduziu continentes inteiros em cifras e estabeleceu hierarquias centradas na europa: conhecimentos, pessoas, fauna, flora, paisagens, minerais, etc. foram objetificados em diferentes graus e traduzidos em uma escala de valor nesta plataforma sobrecodificante na qual o capital faz as vezes da linguagem binária da atual computação de dados. Nestes tempos se multiplicavam espaços de confinamentoanulação para governar e promover a objetificação violenta daquelas e daqueles aos quais tal plataforma tentava reduzir a objetos manipuláveis. As estratégias disciplinares foram uma das tecnologias de governo vigentes e pungentes nestes primeiros séculos da modernidadecolonialidade para promover o controle sobre corpos e populações. Assim, diante de tais multidões violentamente contidas em espaços fechados, o grande medo sempre era o da explosão: a revolução, a revolta, o levante que romperia com grilhões, correntes, amarras, muros, grades e outros dispositivos de contenção. Tais grandes confinamentos produzidos pela própria dinâmica reterritorializante dos fluxos por parte do capital produzirá imensa energia potencial contida nestes espaços e sempre pronta a explodir e sabotar o “normal” andamento mecânico das engrenagens da produção. No entanto, com a variação de tal plataforma moderno-colonial

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disciplinar-industrial, acompanhamos a produção de plataformas outras, que a esta se coadunaram e que são ainda mais desterritorializadas em suas operações de reinscrição reterritorializante do que as anteriores: a biopolítica (FOUCAULT, 2008) e sua reinscrição dos corpos, gestos, recursos, afetos, hábitos, etc. como tendências estatísticas ordenadas em função de metas e índices; a financeirização do mercado em uma de rede global especulativa a projetar-apostar valores em plataformas de cifras; a digitalização do mundo em plataformas eletrônicas informacionais nas quais todos e tudo são traduzidos em linguagem binária de zeros e uns. Assim, se antes os medos eram voltados para a possibilidade de explosão-revolta da massa confinada dentro das fronteiras dos espaços de fechamento disciplinares, em nossos tempos o medo é a velocidade, o contágio, a circulação, o pesadelo pandêmico tantas vezes vividos em ficções distópicas antes de ser realizado em nossos dias que agora vivemos em pleno ano de 2020. Nos tempos das tautologias virais das sociedades do consumo (BAUDRILLARD, 1995), do espetáculo (DEBORD, 1997), do controle (DELEUZE, 1992), da aceleração (VIRILIO, 1994), do líquido (BAUMAN, 2001), da hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004), etc., é a dispersãomultiplicação de contágios que promove os sonhos e os pesadelos de cada um(a), é por meio desta dinâmica de formação de tramas de replicação viral de afetações-contágios que se constituem muitas das utopias e distopias deste século XXI. Em nossos tempos a velocidade e a replicação são constituintes do valor e do temor. Viralizar é constituinte ontológico de valor socialmonetário em nossas plataformas do capital-digital ao mesmo tempo que hackers e imigrantes, assim como vírus digitais e biológicos, tornam-se imagens-estereótipos das infâmias que justificam novas velhas violências da modernidade-colonialidade. Do mesmo modo, seguindo o temor dos fluxos e suas possíveis contaminações-

encontros intempestivas, as estratégias disciplinares invertem seus vetores da exclusão para a exclusividade (COSTA, 2007). Futuros distópicos de terras arrasadas por contágios que proliferam patologias diversas, muitas envolvendo fantasias autofágicas-destrutivas (zumbis e afins), se coadunam com sonhos de sucesso viral imediato em meio às políticas do espetáculo do consumo midiático digital. Vemos, deste modo, a continuidade da produção de regimes de narrativa que estigmatizam e buscam reafirmar a lógica alterocida (MBEMBE, 2018) em novos velhos moldes que tornem possível a continuidade da violência extrema, das hierarquizações, objetificações, etc. As políticas narrativas moderno-coloniais estabelecem, assim, diferentes discursos que compõem com biopolíticas e necropolíticas na estigmatização de infâmias as quais ensejam tanto o deixar morrer quanto o fazer morrer em nossas sociedades. A plataforma modernocolonial estabelece, assim, capturas diversas por muitas linguagens na produção das homogeneizações, equivalências e desigualdades pela hierarquização da referida plataforma “comum”. A formalização matemática é fundamental para a produção das principais linguagens de tal processo de homogeneizar-igualar para hierarquizar e afirmar desigualdades radicais ao ponto máximo da objetificação alterocida (MBEMBE, 2018) das necropolíticas (MBEMBE, 2016). O capital e o digital formalizam tudo e a todos em um mesmo plano-plataforma a partir do qual as hierarquias podem ser efetuadas com facilidade desde a desterritorialização e reterritorialização sobrecodificante decorrente. A simplicidade formal constituinte do capital e do digital se assemelham à simplicidade da estrutura viral: um conjunto simples propício a constantes mutações e a estabelecer relações de contágio que os dispersam rapidamente transformando os diferentes territórios-hospedeiros nos quais se replicam-mutam transformando as formas de ver, falar, ouvir, sentir, pensar ao

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transformarem nossas políticas de narrar: narrativas biológicas, econômicas, sociais, psicológicas, tecnológicas, etc. Evidentemente tal política do narrar extremamente formalizada do capital-digital é composta em conjunto com as linguagens verbais, visuais, gestuais, musicais, arquitetônicas, etc., que se coadunam com tal estigmatização econômica e algorítmica. Assim, uma política do narrar que aposta na produção de conhecimento para além desta possibilidade de inscrição na plataforma moderno-colonial necessita de um contra-código para ultrapassar as amarras e os sulcos nos caminhos de nossas sensibilidades e pensares já tão marcados por esta lógica. As políticas do narrar moderno-coloniais afirmam uma éticoestética das generalidades, das equivalências, das igualdadesdesigualdades, das coordenações e jamais das composições, das séries, das repetições como diferença (DELEUZE, 1988). A questão de que a retórica da ciência, em especial das exatas e biológicas, ser voltada, desde sua constituição moderna nos séculos XVI e XVII, para a finalidade de previsão e controle, generalização e replicação, falam exatamente desta estética formal-homogênea-hierarquizante e sua ética de juízos binários que estabelecem desigualdades abissais entre uns e “outros” para promover relações de dominação. Assim, por exemplo, estabelecem um plano de registro universal dos seres vivos, mas os hierarquizam em uma árvore zoológica-teleológica, do mesmo modo que erigem um plano de registro universal denominado humanidade, mas o hierarquizam a partir de princípios racistas, machistas, classistas, capacitistas, cisheteronormativos, etc.. A ficção, na presente concepção, tomada como uma éticoestética (COSTA, 2014), tem uma relevante potência clínico-política sobre nossas práticas de sentir, dizer, pensar e fazer o nosso mundo. A ficção, assim, é uma política do narrar que se propõe a um exercício

ético-estético e clínico-político por meio do qual tecemos e retecemos nossas possibilidades de sentir e pensar, dizer e fazer, ser e expressar, pensando tais operações como imanentes umas às outras, impossíveis de serem cindidas em especialidades específicas como nas ciências da modernidade-colonialidade e suas políticas do narrar. O conceito de ficção aqui possui uma etico-estética que lhe faz diferir agudamente das políticas do narrar que se voltam para a produção de narrativas generalizantes-homogeneizantes, que representam, referem, explicam significados, apontam (in)existências, coordenam variáveis, sempre desde um ponto de referência que é ao mesmo tempo negado em sua concretude parcial e assumido como abstratouniversal, como se fosse a própria música das esferas e não uma multiplicidade de melodias produzidas desde certas experiências, práticas, lugares, tempos, etc.. Na ficção é exatamente a explicitaçãoconstrução-afirmação desta posicionalidade que veremos ser assumida como potência na busca por contagiar experiências com as singularidades deste lugar-ficcional narrado. Se jogarmos com o campo conceitual de Deleuze (1975), podemos pensar que enquanto as políticas do narrar moderno-coloniais ressaltam as dimensões proposicionais da designação e do significado, a estilística ética que aqui denominamos como ficcional, por outro lado, ressalta as dimensões proposicionais do manifesto e do sentido, na construção de um estilo de ser, na produção de uma estilística do viver juntos e da constante transformação de tais modulações. A ficção opera aqui como contra-narrativa voltada para tensionar nossas políticas do narrar hegemônicas: não se trata de uma linguagem representacional que coordena e ajuíza (in)existências, verdades e falsidades, mas sim uma prática de experimentação constante dos nossos limites do dizer, fazer, pensar, sentir, etc. na busca de transgredi-los e reinventá-los. Não falamos, assim, em obtenção

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de evidências, mas sim em problematizar que regimes moraisontológicos-epistêmicos-políticos-estéticos estão perpassando e constituindo as condições de possibilidade da delimitação das nossas evidências, ou seja, não se trata de (des)confirmar hipóteses, mas sim colocar em questão do que nossas hipóteses são feitas. Não se trata de evidenciar o que é considerado evidente para um certo regime de visibilidade, mas sim colocar em xeque nossa noção do visível. Por isso ressaltamos tanto a relevância da dimensão ético-estética e política nesta política do narrar, já que ela mesma se afirma como exercício ético, estético e político a um só tempo. Deste modo, as oficinas de ficção colaborativa se tornam potentes espaços clínico-políticos para compartilhar, tensionar e colocar em questão nossos regimes sensíveis-inteligíveis na busca de ficcionar outras sensibilidades e pensares possíveis por meio de um coletivo como dispositivo de produção de mundos (BARROS, 1993). Partindo da potência conectiva dos coletivos em nossos tempos, promover o contágio de afetações que ampliem nossas possibilidades de sentir e pensar ao mundo em escutas que ultrapassem as políticas de narrar moderno-coloniais. Na mesma linha, como estratégia de pesquisaintervenção, tal ação colaborativa do ficcionar coloca em xeque as divisões entre quem produz a análise, posto que o gesto ficcional é a própria análise, sendo um ato analítico compartilhado com todas e todos que participam da oficina. Não há, assim, “informantes” do campo ou “dados” a serem analisados pelxs pesquisadorxs posteriormente a sua “coleta”, tampouco tem-se uma intervenção que realiza um diagnóstico e planeja sua ação sobre um coletivo, muito antes pelo contrário, com a oficina de ficção colaborativa o gesto de análise e a operação da intervenção são realizados pelo coletivo por meio da própria produção ficcional e sua ético-estética, sua política do narrarse e narrar-nos construída pelo coletivo que constitui a oficina. Tal

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compartilhamento da construção de uma narrativa ficcional como política do narrar possibilita uma experimentação ética para além das divisões entre sujeito-objeto e expert-leigo: fazer ver outras possibilidades-singularidades das experiências que compõem o mundo, deslocando alguns dos esquadros hegemônicos de narrar ao modo da modernidade-colonialidade (narrares disciplinares, biopolíticos, necropolíticos, etc.). Temos, assim, na experimentação e na constituição desse território comum de agência pela prática ficcional, um potente dispositivo analítico de produção de escuta para além do normativo, do hegemônico, do constituído. Nas palavras de Grada Kilomba (2019): “(…) enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade na minha própria história. Neste sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou” (p.28). O ato de narrar que se constitui potencialmente como produção de escuta, faz-se possível revolução micropolítica das afetações a transformarem as condições de possibilidade das nossas experiências, nossa composição-mundo tecida por percepções-afetações-conceitos: como divisamos a paisagem-mundo vivida e como valoramos os elementos divisados em tal paisagem (orgulho, admiração, respeito, medo, ódio, vergonha, culpa).

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Maquinações Poéticas: uma aula, uma pesquisa, uma vida Róger Albernaz de Araujo Professor titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-riograndense e do Programa de Pós-graduação em Educação-IFSul. Doutor em EducaçãoUniversidade Federal do Rio Grande do Sul(2007); Pós-Doutor em Educação pela Universidade Federal de Rio Grande do Sul (PNPD, 2016) e Coordenador do grupo de pesquisa GEiSSo: Estudos e interlocuções com o pensamento: diferença, subjetivação e processos de criação articulados com educação e tecnologia (CNPq/IFSul). roger.albernaz@ gmail.com

Poetic Machinations: a class, research, a life

Resumo: Este artigo ensaia compor uma poética dos percursos da aula, da pesquisa e da vida. Tensiona, com Gilles Deleuze e Félix Guattari, o que passa e o que pode vir a passar entre essas relações. Questiona como são produzidas as sínteses de verdade e como são instituídos os conteúdos e as expressões em um determinado meio. Problematiza, com o Método Maquinatório, modos e ritmos possíveis de maquinar e de fabular deslocamentos e perspectivas: ora um meio, ora um modo, ora um ritmo. E, o que passou? Palavras-chave: Método Maquinatório; Poética, Vida; Pesquisa; Aula.

Abstract: This article attempts to compose a poetic about the pathways of the class, research and life. It intensifies, by means of Gilles Deleuze and Félix Guattari, what happens and what may come to pass between their relationships. It questions how the synthesis of truth is produced and how the contents and expressions of a certain subject are instituted. Using the Machinatory Method, it problematizes possible ways and rhythms for machinating and fabulating displacements and perspectives: sometimes through a medium, sometimes a means, sometimes a rhythm. So, what happened? Keywords: Machinatory Method; Poetic; Life; Research; Class.

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Um ponto de entrada Este ensaio busca compor um percurso simples da expressão de algo bastante delicado, tratando-se do pensamento de Deleuze e suas ressonâncias com Guattari. Neste caso, um preâmbulo funciona como aquele momento de suspensão do tempo, principalmente pelo tensionamento difícil em separar o pensamento de Deleuze do de Guattari. Gosto e sou instigado por ambos separadamente, mas a relação do que passa entre os dois, afeta-me de um outro modo, com outra intensidade. Isso pode parecer apenas um efeito de linguagem, um subterfúgio para declinar de uma posição, mas resguarda e vivifica o duplo tensionamento entre os dois para que algo passe, para que algo possa vir a passar. Não se trata de uma opinião, muito menos de uma informação e, sim de uma sensação que passa, provocando efeito de outras sensações que reverberam. “O que se passou?” (DELEUZE; GUATTARI, 2017c, p. 74) Algo acontece. Mas, por onde começar? Pelo início não é possível. Não se trata de uma origem. Surge a necessidade de criar um ponto de entrada, um traço, uma brecha, um “pensamento de partida” (DE ARAUJO; CORAZZA, 2018). Talvez, inventar? Faz-se necessário um momento. Um momento que separa duas eternidades, como diz Nietzsche (1977). Um momento sem uma coordenada prévia, que produz deslocamentos; possibilidades de afirmação de uma necessidade. Algo funciona. Algo pode vir a funcionar. Assim, a necessidade tensiona o meio. Um meio que não se constitui em metade de algo; não é separação de um em dois, mas um entremeio, um “intermezzo” (DELEUZE; GUATTARI, 2017a, p. 36), por onde intensidades passam, adquirem velocidade, redundam em diferenças, inclusive no próprio meio. Ou seja, o meio não é o contexto e, sim, o texto (BARTHES, 2015); espaço de disputas, de enredamentos com excessivas “imagens” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 61) e com

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recorrentes “regimes de signos” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 62). No meio algo acontece. Algo que só acontece pelo meio. Talvez, essa seja uma perspectiva mais “digerível” de perceber o que passa em Mil Platôs, quando Deleuze e Guattari enunciam que só se cria algo, pelo meio, na relação com um território. É, neste momento, que os pés descem a terra e que um ponto se coloca em meio ao caos. Momento em que a disputa se acirra. Uma linha tensiona um desejo de fuga, um traço de diferenciação. Simultaneamente, um ponto de captura tensiona a permanência, a manutenção do momento mesmo, a repetição. Uma necessidade tensiona um acontecimento, que só acontece no momento em que a diferença retorna ao meio na transitivização (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 36) potencial, atual. Nesse caso, potencial (virtual) não se opõem ao real, assumindo a posição da própria realidade do espaço-tempo de criação, de invenção, que coloca em variação contínua as próprias variáveis que persistem na determinação de um atual e de suas relações constantes (DELEUZE; GUATTARI, 2011). Acontece um tensor. Um momento-tensor que escancara uma necessidade de deslocamento, de relação. O tensor (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 44) produz a variação contínua das variáveis, tanto atuais, como potenciais. É o tensor que torna possível que a transitivização funcione, e por efeito, que a variação tenha continuidade. O tensor faz com que um meio se desloque em direção a um limite de seus elementos, formas ou noções; em direção a um além e a um aquém do meio. O tensor opera uma de transitivização do meio e faz com que o último termo da relação reaja sobre o precedente, retomando recursivamente a cadeia das relações. No caso, a transitivização, conceito cunhado por Deleuze e Guattari no segundo volume de Mil Platôs, implica e envolve uma ideia de como as relações se produzem no duplo tensionamento de uma realidade

Uma aula é um acontecimento; uma pesquisa e uma vida, também. No caso, três planos de relação, cada um dos quais implicado com um possível de cada encontro, simultaneamente envolvidos por uma política recorrente de algo em vias de um porvir, que dissolve o próprio possível e tensiona outros encontros. A aula, a pesquisa e a vida, talvez sejam primas-irmãs de um mesmo modo de funcionamento, de um mesmo modelo. Como isso funciona? Como acontece? Isso, que funciona, tem um início, um começo? Uma dose de prudência se faz necessária. Não podemos determinar quando, onde e, a partir de quais matérias algo começou a acontecer. Do mesmo modo, não

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que alterna instâncias entre o que é, em um momento de corte e atualização, que produz o momento que acontece; e o que pode vir a ser, que produz o espaço potencial de diferenciação. Assim, temos uma realidade atual e uma realidade potencial; um atual que agrega substâncias e formas de expressão e de conteúdo, e um potencial que deseja produzir uma função com as matérias que preenchem um plano de relação; a realidade potencial é um espaço de abstração, ou seja o espaço que acontece pela passagem de uma máquina abstrata que adquire um nome quando passa e se atualiza na diferença, que tensiona os processos de variação contínua das constantes de relação e, também das próprias variáveis. A transitivização produz a continuidade rítmica das relações em um meio, em um território. [...] a máquina abstrata é como o diagrama de um agenciamento; traça as linhas de variação contínua, ao passo que o agenciamento concreto trata das variáveis, organiza suas relações bastante diversas em função dessas linhas. O agenciamento negocia as variáveis em tal ou qual variação, segundo tal ou qual grau de desterritorialização, para determinar aquelas que estabelecerão relações constantes ou obedecerão a regras obrigatórias, e aquelas, ao contrário, que servirão de matéria fluente à variação. DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 37)

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podemos determinar, de modo exato, quando algo terminou de acontecer. Algo passa; acontece. Algo passou; aconteceu. Em Lógica dos sentidos, Deleuze (1998) nos envolve com o acontecimento e nos implica com a noção de devir, quando enuncia que Alice cresce. E, não se sabe quando Alice começou a crescer, quando terminará de crescer; menos ainda, de que modo isso acontece. Alice cresce. Uma aula acontece. Uma pesquisa acontece. Uma vida acontece. O que acontece, acontece no e pelo meio, a partir e com um modo, tensionado e provocado por um ritmo. Três aspectos de um mesmo movimento: 1º. Um ponto no caos: um meio; 2º. Um olhar ao redor e o recolhimento de matérias: um modo; 3º. Uma criação/invenção: um ritmo. É uma reverberação do conceito de ritornelo (DELEUZE; GUATTARI, 2017a), que opera como tensor de deslocamento das partes envolvidas e implicadas na relação. O ritmo como tensor de um processo de diferenciação, de deslocamento, sem o qual a diferença não retorna ao meio (DELEUZE, 1976). Uma aula é um território de luta. Um espaço ocupado por imagens e organizado por regime de signos. Há um modelo de aula estabelecido pelas variáveis que intentam a manutenção de um espaço atual, que se repete no tempo, com mínimas variações, que não produzem diferenciações, mas cópias derivadas de um modelo original - múltiplos. Entretanto, também há linhas potenciais que cruzam este espaço estabelecido, transpirando um desejo de diferença. Qual é a realidade da aula? Justamente, a realidade da aula é a resultante de uma luta entre forças (DELEUZE, 1976): forças reativas (atuais), que reagem à diferença, à mudança; e, forças ativas (potenciais), que ativam modos de diferenciação do que é a realidade, pelo desejo do que ainda pode vir a ser. Isso acontece com a aula, na aula. Acontece com a vida, e na vida. Neste ponto, temos um problema. Talvez, mais de um. Que

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necessidade temos de diferenciar a aula? Por que questionar algo que já possui as respostas em sua própria estrutura e organização? Temos, então, um ponto de dobradura do problema: o que fazemos com isso, como resolvemos, como achamos as respostas? Não fazemos, não resolvemos, não achamos. Não podemos. O que podemos é problematizar os problemas, e ao invés de procurarmos respostas para os problemas, inventamos outros problemas que problematizem o problema. Uma transitivização do problema. Isso! Isso funciona como uma política de problematização de todos os problemas: poder produzir novos problemas e, por efeito, novas perspectivas de relação com o meio; novos modos e novos ritmos; deslocamentos. Maquinase com os problemas. Maquinam-se problematizações. Maquinações (DE ARAUJO; CORAZZA, 2018; DELEUZE; GUATTARI, 2011). As maquinações implicam e envolvem enredamentos de desejos. Sem desejo, declina-se da possibilidade de diferenciações, de invenções; e, resta apenas o círculo e suas circularidades, mais ou menos distantes ou próximas de um centro, de um núcleo, de uma origem. Restam os múltiplos de um uno, de um original. Restam cópias. Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto. É o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo pela repressão. O desejo e o seu objeto constituem uma só e mesma coisa: a máquina, enquanto máquina de máquina. O desejo é máquina, o objeto do desejo é também máquina conectada, de modo que o produto é extraído do produzir e algo se destaca do produzir passando ao produto e dando um resto ao sujeito nômade e vagabundo. O ser objetivo do desejo é o Real em si mesmo.

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Uma aula é um território de luta, porque seu espaço e seu tempo estão delimitados, demarcados por um círculo que determina o que a aula é, o que a aula deve ser, mais ou menos distante ou próxima de um ideal de aula posto. Deste modo, temos múltiplos de uma aula ideal; cópias diversas de um mesmo modelo que perene permanece. Do mesmo modo, isso se repete com a pesquisa e, também, com a vida. Quando Deleuze e Guattari compõem o conceito de “máquina desejante” (DELEUZE, GUATTARI, 2011) é porque maquinações tensionam deslocamentos, rupturas, rachaduras no meio do próprio desejo. Transitivização de todos os desejos. Variação contínua de todas as variáveis. E, isso funciona como tensor de deslocamentos, pelos quais os desejos, por efeito, produzem novos modos, novos ritmos e novos meios dos próprios desejos. O desejo desloca-se do próprio desejo em maquinações sucessivas; subtrações que deslocam a cópia de sua origem, fazendo-a variar em si mesma, em seu meio; e, isso rompe com as imagens do próprio desejo. Com Deleuze e Guattari, a partir do conceito de maquinação, podemos perceber o desejo de um outro modo; podemos perceber o desejo como usina, como produção de uma outra produção, recursivamente. (DELEUZE; GUATTARI, 2011). Um desejo que desafia a origem, que subverte a hierarquia, que relega o pertencimento, que martela o múltiplo e o seu regime de cópias. Um desejo que luta com o próprio modelo de desejo que compõe o meio, que determina os modos e que regula os ritmos. O desejo não é um corpo organizado, mas a consequência da operação de um modelo que organiza este corpo-desejo. Uma aula não é um espaço organizado, mas a consequência da operação de um modelo de aula que organiza este espaço-aula. A pesquisa não é um movimento organizado, mas a consequência da operação de

Ou seja, no caminho há sempre uma pedra, há sempre um modelo com o qual a necessidade estabelece uma relação e incita um desejo de luta. No meio do desejo tinha uma falta; tinha uma falta no meio do desejo. No meio da aula tinha um currículo; tinha um currículo no meio da aula. No meio da pesquisa tinha uma metodologia; tinha uma metodologia no meio da pesquisa. No meio da vida tinha um caminho; tinha um caminho no meio da vida. Talvez, tenhamos um complexo com os modelos: de falta no desejo; de currículo na aula; de metodologia na pesquisa; de caminho na vida. O desejo, a aula, a pesquisa e a vida têm complexos de síntese. Complexos com origem em uma resposta, que quando colocada como transcendente, resolve o conflito entre uma tese e uma antítese; basta saber a resposta certa; aquela que já está posta e disposta entre as imagens e os regimes de signos que determinam o espaço. A falta é a resposta para os desejos; basta desejar o que falta.

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um modelo de pesquisa que organiza este movimento-pesquisa. A vida não é um caminho organizado, mas a consequência da operação de um modelo de vida que organiza este caminho-vida. Podemos perceber, instintivamente, que existe sempre um modelo no meio do corpo-desejo, no meio do espaço-aula, no meio do movimentopesquisa, no meio do caminho-vida. Parece existir sempre um modelo no meio do caminho; no meio do caminho existe um modelo. Uma referência e uma reverência a Carlos Drummond de Andrade (1928), na obra No meio do caminho 1: No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra/no meio do caminho tinha uma pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.

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[ 1 ] O poema No Meio do Caminho é uma das obrasprimas de autoria do escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Os versos, publicados em 1928 na Revista de Antropofagia.


O currículo é a resposta para os problemas da aula; basta seguir o currículo. A metodologia é a resposta para os problemas da pesquisa; basta aplicar a metodologia. O caminho é a resposta para os problemas da vida; basta não se afastar do caminho. Se não preenchermos o que falta, o desejo dá errado. Se não cumprimos o currículo, a aula dá errado. Se não obedecemos a metodologia, a pesquisa dá errado. Se não nos resignamos ao caminho, a vida dá errado. Ou seja, a noção de erro e as imagens e os regimes de signos que a circunscreve não é um elemento natural, mas um elemento naturalizado por um modelo que opera na aplicação das consequências àquilo que não é aceito. Deste modo, o acerto já está constituído como transcendente; o elemento esperado que responde corretamente ao problema; a resposta que garante a verdade; o que garante o verdadeiro desejo é preencher o que falta; o que garante a verdadeira aula é seguir o currículo; o que garante a verdadeira pesquisa é obedecer a metodologia; o que garante a verdadeira vida é se resignar ao caminho. Ou seja, em qualquer meio há sempre uma síntese de verdade, que garante as respostas corretas que resolvem todos problemas; um modelo que faz da síntese de verdade o elemento que garante todos os juízos de verdade e, por consequência todas as generalizações múltiplas dos próprios juízos de verdade. Se não preenche a falta que garante o desejo, culpado. Se não segue o currículo que garante a aula, é culpado. Se não obedece a metodologia que garante a pesquisa, é culpado. Se não segue o caminho que garante a vida, é culpado. A falta, o currículo, a metodologia e o caminho funcionam como sínteses de verdade que se colocam como transcendentes às relações, garantindo assim as respostas corretas, as respostas esperadas, as respostas verdadeiras. Com isso o modelo estabelece o juízo como elemento de garantia à verdade em todos os meios. O juízo dita o modo e o ritmo. Quem

julga o desejo é a falta. Quem julga a aula é o currículo. Quem julga a pesquisa é a metodologia. Quem julga a vida é o caminho. No meio do caminho tinha uma síntese; tinha uma síntese no meio do caminho. E, ao redor da síntese, os múltiplos juízos proliferam e garantem a circunscrição do regime de verdades: moral. Uma aula não pode ser apenas um espaço organizado. Do mesmo modo a pesquisa. Mas, como dizer do desejo e da vida? São tipologias diferentes, diferentes meios que subsistem a um mesmo modelo de pensamento. E, o que sobressai é uma percepção de que o desejo, a aula, a pesquisa, e a vida devem ser organizados, delimitados, estabilizados, fixados sob pena de serem julgados culpados. O juízo sujeita o desejo, a aula, a pesquisa e a vida à imagem e ao regime de signos do modelo vigente em cada meio. Assim, o currículo sustenta a escola e a metodologia a academia. A falta de outra sorte coíbe os desejos e instaura uma política de consumo de prazeres, ajuizados conforme o modelo e disponíveis à aquisição. Do mesmo modo, a vida se tem coibida pelos caminhos, sustentados por uma moral refletida pelo modelo, que define posições e arbitra costumes e condições de possibilidades das relações. A falta posiciona o desejo como refém do consumo de modelos, e funciona como armadilha, refletindo imagens e sentidos de uma completude alcançável, contanto que o que falta seja adquirido. De algum modo, esse desejo de falta nos torna devedores eternos da nossa própria incompletude. Entretanto, com Beckett podemos instigar o desejo a jogar com o desejo, trocar pedras de lugar, colocar uma em um bolso e outra em outro; uma outra ainda, à boca; poder girar, parar, apressar, diminuir; e, até, simplesmente cuspir uma pedra ao chão. Uma cena de deslocamento. Deslocamentos. Aí, a poética funciona como elemento rítmico que declina da posição de arcar com as consequências derivadas da operação determinada de um determinado modelo, e

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se desafia em tensora de um modo de produção de variação contínua das constantes, e também das variáveis. Uma poética tensiona um modo, que por efeito tensiona um meio, que por efeito tensiona novas poéticas, sucessiva e recursivamente – efeito de efeitos. Uma poética da aula não garante a diferença, mas retira da síntese a certeza; desafia o mesmo e sobretudo a indiferença. Uma poética retira do modelo que julga a aula a condição de possibilidade dessa permaneça eternamente como o detentor da verdade que julga, culpa e pune. Uma poética aposta em um jogo com dados não viciados e coloca suas fichas na afirmação da continuidade do jogo e não no resultado e em um número apostado. Isso funciona para a aula, para a pesquisa, e também para o desejo e para a vida. Essa é uma problematização que Deleuze e Guattari tensionam com o conceito de máquina e suas dobraduras: isso funciona? Essa aula, essa pesquisa funciona? E, os desejos? E, a vida? Funcionam? Marcações necessárias para que novos passos tomem a cena, que outras relações aconteçam, que diferenciações se vivifiquem. Pelo funcionamento encontramos os modos, e esses diferenciam os meios, diferenciam a aula e a pesquisa, mas também os desejos de vida e a vida dos desejos. Uma poética da aula tensiona um ritmo, implica e está implicada com diferentes modos de maquinação que envolvem o meio e a própria poética. Assim, uma poética da aula tensiona um ritmo para aula, da aula, que implica modos diferentes de maquinação da aula e, também da poética envolvida. Do mesmo modo, isso funciona com os desejos, com a pesquisa e com a vida. O ritmo é estratégico para que os modos possam também produzir os meios. Há toda uma política poética de maquinação da aula, da pesquisa, bem como dos desejos e da vida. Ou seja, a produção do meio não é um regime de relações de causa e consequência, mas efeitos de efeitos.

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Maquinações poéticas da pesquisa No que implica as relações de pesquisa, enquanto meio, e envolve os movimentos de pesquisar, enquanto modo, podemos tensionar a necessidade da aquisição de um ritmo, o que efetivamente afirma a dupla articulação entre os movimentos da pesquisa e os movimentos do pesquisador – maquinações. Deste modo, temos a composição de uma pesquisa-máquina que se produz pelos deslocamentos que traça. Assim, pesquisar é traçar percursos, compor um corpo-pesquisa, corpos-pesquisas. No caso, um corpo-pesquisa do qual ainda não se sabe, um corpopesquisa por vir; um corpo-pesquisa informe que transita no limite das linhas do desejo. Ou seja, a pesquisa e o pesquisador criam para si um “corpo sem órgãos” (CsO) (DELEUZE; GUATTARI, 2017b). Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite. Diz-se: que é isto — o CsO — mas já se está sobre ele — arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos. (DELEUZE; GUATTARI, 2017b, p. 9)

E, quando pesquisador e pesquisa desejam esse corpo, um traço toma o meio da relação e passa, produzindo um ritmo na multiplicidade de linhas que acontecem. Nesse momento, necessitamos estar à espreita. Algo acontece. Um momento. Uma transitivização que modifica o real, pela redundância entre o potencial de um porvir e o atual de um ser. Em suma, mesmo que seja provisório, temos uma tensão que provoca uma multiplicidade de deslocamentos. Estamos o tempo todo na iminência de algo em vias de uma atualização, e o que importa é como dispomos desta possibilidade. Há aqui um índice

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de resistência. Mas, resistir a quê? Resistir a quem? Talvez, resistir à imagem dimensionada e determinada do que se deve inventar. É neste momento que o desejo toma corpo, quebra o leme e se põe à deriva por encontros por vir. Resistir é tensionar, desejar, potencializar. Resistir às consequências impostas pelas sínteses de verdade e aos juízos subjacentes, que sustentam a própria síntese como resultado evidente, que não só pressupõe este resultado, mas também garante a tese que o sustenta enquanto origem inequívoca. Ou seja, em termos de pesquisa podemos tensionar que pesquisar é um acontecimento. Na pesquisa algo acontece, algo necessita acontecer. Para tanto necessitamos desejar. E, é esse pequeno deslocamento que põe a máquina-pesquisa a maquinar. As maquinações da pesquisa produzem um modo de pesquisar, uma singularidade. Mas, isso não se desenha em um único traço; necessita de um ritmo, um movimento que irrompa a cena da pesquisa para que algo passe, para que algo possa vir a passar. Inventar é uma necessidade. Fabular é uma inevitabilidade. Fabular procedimentos de um método de maquinação da pesquisa - um Maquinatório de Pesquisa (DE ARAUJO; CORAZZA, 2018). Método Maquinatório de Pesquisa (MMP) Uma pesquisa compõe uma geografia de deslocamentos, e o meio da pesquisa só produz sua “paisagem melódica” (DELEUZE; GUATTARI, 1997) quando encontra “personagens rítmicos” que tomam a cena e traçam procedimentos de pesquisa. O desejo de pesquisar funciona como tensor dos procedimentos que forçam o deslocamento da pesquisa e do pesquisador. Um ritornelo de pesquisa: ora um ponto no caos, ora um olhar ao redor e o recolhimento de matérias, ora um traço fabulatório de procedimentos. Três aspectos de um mesmo deslocamento, três aspectos de um mesmo procedimento.

Assim, temos um primeiro procedimento fabulatório: afirmar a pesquisa enquanto um espaço de saúde, no caso, pelo duplo tensionamento entre uma ‘crítica sintomatológica” e uma “clínica maquinatória”. Fabular procedimentos de pesquisa que tensionem uma crítica do meio, no sentido de auscultar sintomas acerca de como esse meio funciona, e como vem funcionando para se corporificar no que é; ou seja, não se tensiona obter respostas, mas suscitar problematizações; não se tensiona a cura, mas uma saúde. O movimento crítico sintomatológico funciona como traço que deseja revolver o meio, como forma de encontrar matérias com as quais possa compor um ato de invenção, um ato de saúde. Esse procedimento afirma a dupla articulação, a dupla maquinação entre uma crítica e uma clínica – Crítica e clínica (DELEUZE, 1997); sintomasmatéria e maquinações-fabulatórias; conteúdos e expressões, matérias e funções (DELEUZE; GUATTARI, 2015). Neste caso, a ideia da tensão entre uma crítica e uma clínica, acontece pelo desejo de transcender a noção da crítica que produz a clínica que revela a verdade, fornece a resposta, obtém a cura. Deleuze nos provoca ao agenciar crítica e clínica em uma obra literária, por onde transitam vários autores com os quais conversa. Uma crítica que busca sintomas, indícios, contornos; matérias com as quais deseja abstrair diferenças; uma clínica maquinatória funciona como máquina abstrata de fabulação de espaços e estados de saúde. Um procedimento de desejo de produção de saúde para um espaço de pesquisa coloca o desejo como tensor de um corpopesquisa e de um corpo pesquisador; estabelece um ponto de entrada em que o modo, mesmo ainda fora do meio já produz uma perspectiva de relação. Pesquisador e pesquisa se encontram no limite de um território, compondo um perspectivismo crítico. Neste momento, o caos se organiza em um ponto, um corte que torna

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possível pensamentos de partida (DE ARAUJO; CORAZZA, 2018). Os pensamentos de partida funcionam como linhas que se desenlaçam do caos e irrompem um território de pesquisa. Perceptos, afectos e conceptos que preenchem um plano de imanência e um plano de composição, simultaneamente, produzindo um plano de invenção em dupla tensão com um plano de organização. Um plano que deseja um porvir, um real potencial; e, um plano que resguarda o que é, o real atualizado. Se o desejo é o ponto zero do deslocamento da pesquisa e do pesquisador, o perspectivismo se compõe como o primeiro movimento da composição de um ato de pesquisar; é nesse momento que há o olhar ao redor, o se colocar à espreita e recolher as matérias possíveis de relação. É um movimento de dupla escrita, no corpo do pesquisador e no corpo da pesquisa, no entremeio de uma multiplicidade de leituras possíveis das paisagens melódicas que as matérias desenham. Pelos pensamentos de partida, enquanto estes se compõem, emergem linhas críticas que perseguem sintomas do funcionamento do meio que se preenche em relação – uma crítica sintomatológica. Perceptos, afectos e conceptos preenchem um plano de relação, do qual emergem percepções, afecções e conceitos. É um momento de arquivamento (DO VAL, AQUINO, 2018) dos efeitos que estes encontros produzem; um momento de registro do que se consegue recolher por entre os deslocamentos da pesquisa e do pesquisador; coordenadas que constituem um mapa dos percursos de pesquisa – uma cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 2017a). Neste ponto, fica evidente a necessidade de registro que a pesquisa e o pesquisador demandam realizar. No caso, o arquivamento funciona como procedimento de acondicionamento das matérias, neste caso enquanto potenciais conteúdos e expressões que a

pesquisa pode vir a afirmar enquanto diferença. Assim, o arquivo (FOUCAULT, 1997, 2006a, 2006b, 2008, 2010, 2013, 2014) exerce uma função estratégica de fazer com que a multiplicidade de pontos possíveis no caos não esvaneça no próprio caos. A pesquisa e o pesquisador necessitam colocar os pés no chão, inclusive como impulso para um novo salto no caos. Ou seja, pelos encontros no percurso de deslocamento, a pesquisa e o pesquisador leem uma realidade potencial (caos) e escrevem uma realidade atual (arquivo) – uma escrileitura 2 acontece, um plano de invenção. Se a crítica sintomatológica funciona como elemento gravitacional, que põe a pesquisa e o pesquisador com os pés no chão, a clínica maquinatória funciona como impulso de um próximo deslocamento; um salto, uma correria ou apenas de um silêncio contido de uma parada necessária. A maquinação aqui tensiona procedimentos fabulatórios, tensiona modos de invenção; uma maquinação fabulatória com as matérias intensivas (caos) e extensivas (arquivos). A clínica da pesquisa e do pesquisador, ou seja, o desejo de saúde, da possibilidade de poder continuar a problematizar, de continuar a se deslocar, de continuar a respirar acontece pelo toque nos índices dos arquivos produzidos pelos arquivamentos, simultaneamente com a produção de novos índices, novos arquivos, outros conteúdos e expressões – arquivização (DO VAL; AQUINO, 2018). A relação entre uma crítica sintomatológica e uma clínica maquinatória ressoa pelo ritmo que estes modos de ler e escrever a realidade compõem como efeito. Por entre um procedimento crítico e um procedimento clínico algo passa; um arquivamento, uma arquivização, um salto no caos e um retorno a terra. De algum modo estes procedimentos, duplamente tensionados, coreografam uma cena de resistência (FOUCAULT, 2006a, 2006b) e de transvaloração (DELEUZE, 1976). Isso coloca o pesquisador e a pesquisa como

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[ 2 ] Projeto de Pesquisa financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior no contexto do Programa Observatório da Educação com parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação do Brasil. Possuí quatro núcleos situados em Instituições de Ensino Superior: UFRGS - coordenado pela Profa. Dra. Sandra Mara Corazza;


UFPel coordenado pela Profa. Dra. Carla Gonçalves Rodrigues; UFMT coordenado pelo Prof. Dr. Silas Borges Monteiro e UNIOESTE Campus Toledo PR - coordenado pela Profa. Dra. Ester Maria Dreher Heuser. As produções referentes ao Projeto podem ser encontradas na página da Rede Escrileituras: https://www.ufrgs. br/escrileiturasrede/

tensores de diferenciação do território de pesquisa. São as linhas de fuga que irrompem o território; linhas potenciais que desejam escrever a diferença. Mas, a diferença necessita retornar ao território, afirmar uma posição, produzir efeitos de diferenciação. É quando a diferença retorna ao território, e só a diferença retorna, pois o mesmo apenas permanece, que a desterritorialização se torna possível; quando a pesquisa intervém na realidade e a atualiza em uma nova posição ou em um novo movimento – acontece uma diferença; uma singularidade (DELEUZE; GUATTARI, 2017d). Considerações de saída De algum modo, a pedra no meio do caminho da pesquisa é a metodologia. Ela, a metodologia parece funcionar como a origem de qualquer possibilidade de construção de uma pesquisa. Assim, a metodologia acaba por funcionar como aparelho de captura da pesquisa e do pesquisador, afinal, é ela que determina os regimes de signos circulantes e as imagens esperadas pela identidade acadêmica. Há, neste sentido, uma diferença de perspectiva entre o método, enquanto processo de abstração que preenche um plano, adquirindo modos e ritmos que produzem o meio, e a metodologia que impõe um modelo como determinante dos processos que devem seguir. É o desejo de encontrar novos modos que movimenta o método e subtrai da metodologia algumas certezas, produz fissuras, pelas quais novas perspectivas de relação podem emergir. Ora, para quem pesquisa com referenciais da diferença, principalmente na relação com Deleuze, Guattari, Nietzsche e outros malditos; torna-se necessário, para não dizer inevitável tensionar o território metodológico da academia, afinal é a metodologia que se impõe como a síntese de verdade da pesquisa, das pesquisas, de todas as pesquisas – a generalização do que é e do que não

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é pesquisa. No caso, este ensaio buscou passar por este território; por uma crítica sintomatológica do que é o território acadêmico da pesquisa produziu arquivamentos, índices de perspectivas potenciais de pensar a pesquisa de um outro modo, como um outro meio e com outros ritmos. Ao invés de uma crítica ao modelo acadêmico, preferimos afirmar a possibilidade de problematizações; ao invés de respostas, novas questões, outras perspectivas. Problematizar é a potência que o método tensiona; tensiona a metodologia e, inclusive, o método. No caso, pelo Método Maquinatório de Pesquisa, formalizamos uma invenção procedimental do que uma pesquisa, também pode vir a ser. O MMP, neste caso, a partir do desejo, n-1 de qualquer deslocamento, produziu a maquinação de um modo de fazer pesquisa com cinco procedimentos, dois planos e uma linha. Procedimentos: 1. Perspectivismo; 2. Crítica sintomatológica; 3. Clínica maquinatória; 4. Resistência e Transvaloração; 5. Diferença e singularidade. Planos: 1. Invenção (composição e imanência); 2. Organização (referência). Linha: recursividade. Os procedimentos escrileem os planos e desejam a diferença e a singularidade, a invenção, inclusive dos próprios procedimentos; a linha de recursividade funciona como movimento de retorno, como índice de problematização que desestabiliza as certezas e apostas nas questões; desafia os limites da pesquisa e do pesquisador: uma penúltima questão a cada vez, para poder voltar a questionar amanhã, afinal se for a última questão será também a morte da pesquisa e do pesquisador.

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REFERÊNCIAS

______. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2015. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997. ______. Lógica do sentido (Trad. L. R. Salinas Fortes). São Paulo: Perspectiva, 1998.

______. O nascimento de um mundo. In FOUCAULT, M. Filosofia, diagnóstico do presente e verdade. p. 51-54. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Civilização Brasileira, 1977.

______. Nietzsche e a filosofia. Tradução: Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Ed. Rio de Janeiro, 1976. ______; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 1. 2ª edição. 2ª reimpressão. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 2017a. ______; ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol.2. 2ª edição. 1ª reimpressão. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 2015. ______; ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 3. 2ª edição. 2ª reimpressão. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 2017b. ______; ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 4. 2ª edição. 1ª reimpressão. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 2017c. ______; ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 5. 2ª edição. 1ª reimpressão. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 2017d. ______; ______. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011. ______; ______. O que é a filosofia? 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. DE ARAUJO, Róger Albernaz; CORAZZA, Sandra Mara. Método maquinatório de pesquisa. Pegagogía y Saberes, 49, p. 67-80, 2018. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. ______. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2006b. ______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. ______. Repensar a política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

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Diferença preta

Eduardo Guedes Pacheco Bacharel em Música Percussão pela Universidade Federal de Santa MariaUFSM; Mestre em Educação - UFSM; Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do SUl-UFRGS; Professor Adjunto na Universidade Estadual de Rio Grande do SulUERGS; Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERGS; Coordenador do Grupo de Pesquisa CAPES/ CNPq ZIP: Zona de Investigações Poéticas; edupandeiro@gmail.com; https://orcid.org/00000002-5487-8500

Black Difference

Resumo: Este texto tem por intenção compartilhar um encontro realizado entre as proposições feitas por Gilles Deleuze e alguns traços dos modos de pensar da negritude. Para isso, são tomadas desses as ideias referentes à arte, com especial atenção para a música. A pretensão é criar caminhos para um possível devir negro das ideias deste filósofo. Fazendo parte deste encontro, pensadores como Muniz Sodré, José Carlos dos Anjos e Rincon Sapiência contribuem para que este artigo crie um espaço de compartilhamento de ideias, por sua vez, um Deleuze Preto. Palavras-chave: Diferença Preta; Ritmo; Deleuze.

Abstract: This paper is intended to share a meeting that took place involving proposals falling between those of Gilles Deleuze and some aspects and ways to think about blackness. With this in mind, these have been considered with regard to ideas about art, paying special attention to music. The intention is to create paths for this philosopher’s ideias’ possible black becoming. Also involved in this encounter are thinkers such as Muniz Sodré, José Carlos dos Anjos and Rincon Sapiência whose thought contributes to this article creating a space for sharing ideas, in turn, a Black Deleuze. Keywords: Black Difference; Rhythm; Deleuze.

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A cena é a seguinte. Um grupo de pessoas tem colado ao seu corpo um tambor com altura entre 30 cm e 40 cm e 12’ de circunferência. O corpo deste instrumento é esculpido direto do tronco de uma árvore. De um dos lados é fixada uma pele de animal esticada (cabrito ou vaca), a qual quando percutida produz uma infinidade de sons que é expressa de acordo com os modos que esta é tocada pela pele humana. O tambor fica grudado ao corpo das pessoas através de um tecido que funciona como uma alça, fazendo com que o corpo do tambor se misture com o corpo dos músicos. A música que é produzida se realiza através da relação que acontece entre o contato da pele da mão de quem toca com a pele do tambor. Nesse caso, música é o resultado produzido por múltiplos movimentos e oriundos da produção de vibrações com intensidades diferenciadas e que são o resultado da diferença produzida por corpos de naturezas distintas, ou seja, música é música quando a pele do corpo do músico entra em relação com a pele do tambor (PACHECO, 2011). No entanto, quando a pele da mão toca a pele do tambor é por que a pele do corpo se movimenta. Assim, no caso deste grupo de músicos do Continente Africano, a música é música quando o corpo que se expressa através do movimento, do gesto, da expressão facial e da pele da mão que toca a pele do tambor produz uma sonoridade que se faz presente não somente pelo som, mas sim por um conjunto de aspectos que fazem da música muito mais que a presença sonora, mas sim um acontecimento complexo onde o som faz parte do que se entende por música. Esta introdução atua ao modo das Comissões de Frente, grupo de artistas que através de uma performance, e aqui tomamos este termo no seu contexto mais simples possível, ou seja, um grupo de pessoas dançando, encenado, jogando e apresentando o Tema Enredo que a Escola de Samba vai expor durante o seu desfile na avenida. Nesse caso, a apresentação diz respeito a criar um lugar

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para que possamos conversar, provocados por Deleuze e atravessados pela discussão que envolve a negritude, sobre Diferença, sobre Arte. Nossa intenção é inventar um Gilles Deleuze Preto. Uma Diferença Preta. Para isso, tomamos um dos convites do próprio filósofo quando se refere a possibilidade de produzir pensamento, ou seja, queremos fazer filhos pelas costas com Deleuze (1992). E desejamos que estes sejam negros. Se não almejo, como o pensador propõe, criar monstruosidades e aberrações, procuro lugares que possam ser atravessados por aquilo, que mesmo em Deleuze, com todos os cuidados tomados, pode, mais uma vez, se tornar o lugar narcísico perpetuado pelo pensamento majoritário ocidental, o qual é expresso na grande maioria das vezes pela referência hetero-identificada, e por sua vez, branca. Por isso, o que aqui nomeamos de preto é a potência das escolhas de produção de pensamento realizadas por pessoas negras Africanas e, também, em diáspora. Ao escolher a cena de uma manifestação musical fica explícito que desejamos falar de Diferença a partir da Arte, tema tão afeto a Gilles Deleuze. Evidentemente, este artigo não acontece fora do seu tempo, ou melhor ainda, não está apartado das coisas que acontecem durante a elaboração deste trabalho. Sendo assim, mesmo que estes escritos sejam provocados pelo evento intitulado Deleuze Modos de Usar, ação realizada pelo grupo Laboratório de Arte e Psicologia Social - LAPSO do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas – UFPEL, o qual o tema Diferença Preta foi abordado, sou provocado, também, pelo o que o contemporâneo tem nos apresentado, ou seja, uma atualização da produção de violências contra aquilo que não é norma. Nesse sentido, este trabalho expressa a vontade de estar junto dos movimentos, sejam eles acadêmicos, sociais e ou políticos que atuam na busca por um contexto social afastado do entendimento que coloca a diversidade e a diferença como marca de desigualdade, de rela-

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ções verticais e hierarquizadas, as quais têm como condição principal a exclusão de possibilidades ligadas ao viver. Este texto, que busca “pretear” Gilles Deleuze, também é uma manifestação por uma sociedade sem desigualdades. Para isso, o que escolho como ferramenta para tal empreitada é fazer deste artigo uma arma a favor da luta antirracista, buscando promover encontros entre o que este filósofo propõe e as possibilidades de produção de pensamento e vida realizados pela negritude. Algumas atenções merecem ser apresentadas. A primeira aponta para a possibilidade de que fazer música aconteça afastada das perspectivas convencionais que tratam esta experiência como algo ligado à contemplação, da dualização entre emissor e receptor e que o gesto, o movimento, a dança, o corpo e a poesia sejam elementos constituintes deste fazer. O que proponho é que repertórios musicais não se realizam somente por sons, mas também por uma gama de outras possibilidades de expressão tornando o entendimento sobre a música bem mais amplo que a presença sonora, assim como expresso na cena inicial deste texto. A segunda atenção sugere um olhar para os sons, ou seja, propõe que o fazer musical possa experimentar composições sonoras que ultrapassem as escolhas ocidentais e que as vivências rítmicas, melódicas e harmônicas sejam banhadas por mais que os movimentos de tensão e repouso da música ocidental. Em terceiro lugar sugiro que o fazer musical seja entendido como a composição de possibilidades de expressão, entre estes o corpo passa a receber atenção. Tocar, cantar e dançar passam a fazer parte do entendimento do que pode ser música. Ao tomarmos a música como esse verbo que acolhe modos de expressão que não somente os sonoros, que o façamos experimentando situações desejáveis de vida, ou seja, que este fazer experimente situações onde a relação entre os envolvidos, que as relações sonoras e de expressividade aconteçam valorizando encontros não hierarquiza-

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das, não binários, não excludentes. Para Gilles Deleuze, a Arte, assim como a Ciência e a Filosofia são os modos de pensamento criados pela humanidade para buscar dar ordem ao caos (1992). Cada uma destas possibilidades de invenção sobre e com o mundo carrega consigo as suas particularidades no que diz respeito aos seus modos de criação. Nesse sentido, a Arte “é a linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras" (DELEUZE, 1992, p. 228). Não opina, não comunica, mas cria sensações, os perceptos e os afectos. Os perceptos não são mais percepções daqueles que os experimentam, assim como, os afectos não são mais sentimentos ou afecções já que, nas palavras do filósofo, "transbordam a força daqueles que são atravessados por eles” (ibid). O convite realizado diz respeito a tomar a Arte como pensamento, sendo que para Gilles Deleuze pensar é criar. No entanto, o pensamento em Arte é expresso por cores, imagens, gestos. Na música, pensar é criar afectos de acordes, ritmos ou tons que são expressos através de blocos sonoros. Ao apresentar estas proposições o autor o faz a partir de exemplos calcados no movimento realizado por autores. Elabora seus argumentos através da ideia que cada autor, compositor, romancista, em especial e que toca mais diretamente a este artigo, os musicistas, tem no seu estilo a marca de suas assinaturas. No livro O que é a Filosofia? (1992) escrito junto com Félix Guattari, Deleuze cita alguns nomes reconhecidos e que através de suas obras subsidiam as formulações deste pensador. Emily Dickinson, Paul Cézanne, Marcel Proust, Virginia Woolf e Olivier Messiaen, este último compositor renomado do contexto da música européia. Buscando criar o processo de preteamento deste filósofo, encontro nos trabalhos de Muniz Sodré um fôlego para dar forma para esta proposição. Alimento para este movimento, é no livro O Terreiro e a Cidade (1988) do referido autor que encontramos a ideia da vontade de universalização ociden-

tal sobre aquilo que não é ocidental. Cabe citar que não estou aqui propondo que Deleuze busca universalizações, pelo contrário, o filósofo coloca esta possibilidade como franca inimiga da sua Filosofia. No entanto, entendo como necessária a citação acima realizada para que eu possa começar a desenhar o que este texto se propõe. Se o que o ocidente produziu não dá conta de que povos outros inventaram, é prudente afirmar que as invenções, por exemplo, africanas carregam consigo as mesmas potências de pensamento que aquelas produzidas no contexto europeu. Sodré (1988) nos propõe que aquilo que foi inventado pelos chamados Gregos, ou seja a Filosofia, expressa um movimento que tem por intenção dar atenção para as questões que envolvem o viver de um grupo social temporalmente e geograficamente localizados. Esta invenção nasce colada às necessidades que não estão separadas do dia a dia das cidades deste povo. Um pensamento que, a partir de Platão, ganha uma forma, ou seja, a palavra escrita. Como nos apontam Deleuze e Guattari no livro O que é a Filosofia? (1992), estas proposições vão sendo atualizadas a partir das emergências provocadas pelos novos tempos que sempre se anunciam. E que o era Grego passar a ser também Alemão, que logo passa a ser europeu e por sua vez, numa escala de tempo que se espalha por séculos, são elaboradas proposições sobre o viver que vão pautar uma ideia do que é ser um humano. Estes pensamentos, representados pelas criações expressas nos trabalhos de filósofos como Francis Bacon, Descartes e Hegel ajudam a criar a imagem da humanidade. Entre outras, algumas marcas são de fácil constatação no que diz respeito a como esta Filosofia ajuda a desenhar o que o ocidente entende como humanidade. São elas, a estreita relação entre o Cristianismo e o pensamento filosófico, o qual, por exemplo, afirma que o homem é a imagem de Deus. Sendo a figura humana a semelhança do Deus uno, cabe ao que não é esta igualdade um lugar

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subalterno no reino da natureza. O mundo animal, o mundo vegetal e o mundo mineral, a partir deste entendimento, estão a serviço da imagem humana, semelhança da divindade. Aquilo que não é esta semelhança não é digno da marca da humanidade. E tudo aquilo produzido por estes que não são o espelho divino devem ser humanizados. Outra marca importante desta construção está relacionada a como o ocidente apartou o corpo do que é entendido como criação de pensamento. Como já citado, tomando como referência as problematizações feitas por Muniz Sodré (1988), a partir de Platão pensar passa a ser sinônimo de escrever. Assim, filosofar é produzir um pensamento que acontece no momento em que o corpo encontra repouso. Entendimento facilmente percebido em como as sociedades contemporâneas tratam do corpo, por exemplo, na área da educação básica. Mas é com o autor citado que encontramos um contraponto para estas ideias. Se, como já proposto, a Filosofia nasce como uma tentativa de dar conta das emergências produzidas pela vida, é razoável propor que os povos não europeus, entre eles os Africanos, criaram suas formas de pensar sobre as suas próprias emergências. No livro Pensar Nagô, Muniz Sodré (2017) aponta para algumas destas escolhas. A primeira delas diz respeito ao entendimento que povos africanos fazem das suas religiosidades. Diferente da experiência Cristã, e também da Islâmica, as relações entre sujeitos e divindades não acontecem através de um encontro vertical, assim como não estão pautadas na perspectiva de um salvamento individual da alma. Seres materiais e espirituais compartilham virtudes e defeitos, fazendo deste encontro território de trocas. De devoção sim, mas não de subalternidade. Nesta perspectiva, os seres humanos não são mais ou menos importantes que qualquer outro elemento da natureza. E diferentemente do que aconteceu com as perspectivas Cristãs, a relação com o espiritual não apartou o corpo destas práticas. Se a Filosofia é a expres-

são de pensamentos ligados às necessidades do viver dos povos, é possível dizer que os povos africanos criaram seus modos de pensamento a partir desta emergência banhados pelas suas escolhas de relação com o mundo. Uma das marcas desta escolha é não apartar o corpo destas invenções. Se o ocidente cria a Filosofia tendo a palavra, em especial a escrita, como seu principal suporte, os Africanos expressam seus pensamentos, também, através de acontecimentos que carregam consigo a força produzida por gestos, cores, sons e imagens. Se tomarmos o que Deleuze, juntamente com Guattari propõem em O que é a Filosofia?, que Arte é uma forma de pensamento, o que este artigo sugere é que, diferentemente do que assumimos como Arte, um processo que se pauta por uma relação estética, mesmo que ancorada no entendimento que o bloco de sensações produzidos transborde a força daqueles que são atravessados por ele (DELEUZE e GUATTARI, 1992) e principalmente se apresenta pela assinatura particular do criador, o pensamento Africano que acontece não somente pela palavra, mas também pelas sonoridades, imagens e cores ocorre singularizado por outros marcadores. O primeiro deles o qual eu gostaria de sinalizar é a perspectiva de que esta Arte não se pronuncia por meio de uma assinatura singular colada ao nome de um grande criador. Tomo como exemplo o que acontece nos terreiros de religião afro-centrados. As cores, as imagens, o movimento e a música acontecem sem que haja uma separação do que envolve os rituais. Nesse sentido, a Arte aqui não acontece a partir de uma suspensão do resto da vida , ou seja, não é a partir de uma relação entre aqueles que assistem e aqueles que produzem que as sensações são colocadas no jogo. Não é um movimento estético, já que todas as sensações que envolvem este acontecimento não estão lá para serem contempladas, mas sim experimentadas. Sendo assim, as sonoridades, as cores, a dança e o canto, os quais são experimenta-

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dos num contexto do acontecimento destes encontros não separa um pensamento proposto por estas sensações dos pensamentos expressos pela presença corporal. Não é uma questão de contemplação mas sim de participação. Sendo a Arte uma forma de pensamento, esta Arte negra nasce nesse movimento coletivo, sem assinatura pessoal, se faz no encontro de corpos que escolhem pensar sobre a vida com tambores, cantos, dança, cores e imagens. Em especial, no caso dos terreiros que escolhem estabelecer uma presença por mim chamada de artística, por ser feita através daquilo que não é somente palavra. José Carlos dos Anjos, no seu texto intitulado Brasil: uma nação contra as suas minorias (2019), nos empresta outra possibilidade de inventarmos um Deleuze negro. Ao tomar o conceito de "literatura menor” (DELEUZE e GUATTARI, 1977), Dos Anjos nos apresenta as dimensões minoritárias da sociedade brasileira expressas nestes encontros artísticos dedicados ao exercício da espiritualidade. Uma literatura menor não é aquela que fala de uma língua menor, é sim aquilo que uma minoria faz da língua maior (DELEUZE e GUATTARI, 1977). Este conceito nos coloca que o menor é um desvio do majoritário e da ordem. A arte do terreiro, aquela que não é da ordem do estético (contemplação) é expressa por dimensões minoritárias da sociedade brasileira. Malandros, prostitutas, indígenas, velhos escravos e divindades não brancas cantam e dançam guiados por complexas ritmologias produzidas por tambores e atravessadas por vozes. Em Diferença e Repetição (2006) Deleuze nos convida a pensar o ritmo como um dos principais elementos da produção de diferença. Nas suas palavras,

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[...] a repetição compasso é uma divisão regular do tempo, um retorno isócrono de elementos idênticos. Mas uma duração só existe determinada por um acento tônico, comandado por intensidades. Dizer que os acentos se reproduzem em intervalos iguais seria um engano quanto a sua função. Os valores tônicos e intensivos agem, ao contrário, criando desigualdades, incomensurabilidades, em durações ou espaços metricamente iguais (DELEUZE, 2006, p. 46)

Aqui, o pensador toma o ritmo para propor uma abordagem filosófica dedicada a pensar sobre a produção de diferença a partir da repetição. Antes de dedicar atenção a como esta proposição pode ser atravessada pela possibilidade de um preteamento destas ideias, cabem algumas ressalvas sobre alguns entendimentos dedicados à música. Deleuze toma como referência a música ocidental, em especial a música dita erudita, a qual tem como uma de suas principais características nascer fora do contexto sonoro, ou seja, ela nasce no papel através do ato chamado de composição. O local que esta criação acontece é um sistema de normas e códigos chamado de grafia musical. Segundo A. M. Jones, citado por Carlos Sandroni (2001) no livro intitulado Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917 – 1933), a rítmica ocidental, e aqui vamos tomar esta proposição como sinônimo de música ocidental, é divisiva, ou seja, está baseada na divisão de uma dada duração em valores iguais. Assim, uma semibreve se divide em duas mínimas, cada uma destas em duas semínimas e assim por diante. Está lógica atravessa toda criação musical erudita ocidental, ou seja, a composição musical a qual Deleuze toma como referência acontece a partir da ideia de uma determinada estrutura sonora que se organiza sincronicamente, com pouco espaço para irregularidades e sempre pautada pela ideia de que a forma é a expressão da consonância rítmica, melódica e harmônica. Aliado a este entendimento, a ideia proposta indica que a música é feita a

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partir de repetições que são expressas também por meio do ritmo, os quais através de ostinatos temporais vão ser o território da produção de diferença. Deste modo, podemos tomar a música africana como um território profícuo para a produção de diferença, pois o ritmo e a repetição são marcas fortes desta música. No entanto, um aspecto merece atenção, diferente da música européia, ela não nasce no papel e nem é regrada por uma ideia de divisão que está submetida a um denominador comum. Este traço nos diz que a música feita pelos povos africanos não é pautada pela lógica da tensão e do repouso e nem de uma suposta organização rítmica dada pelo o que o ocidente chama de acentuação natural dos ritmos executados (SANDRONI, 2001). Tomo como exemplo a música produzida por uma escola de samba. A partir de diversas linhas rítmicas e diversos instrumentos, um grupo numeroso de instrumentistas produz uma massa sonora a qual não tem por intenção compartilhar sobre o desenvolvimento de uma linha melódica, a qual na grande maioria das vezes no contexto da música ocidental é o proposto. O que temos é um ostinato rítmico, volumoso e denso no qual o convite realizado é perceber a diferença a partir do que aparentemente é apresentado como repetição do mesmo, fazendo com que o convite seja “escutar o detalhe que se desprende do continuum sonoro” (FERRAZ, 1998). Se para Deleuze a música é a aventura do Ritornelo (ibid), o qual por sua vez é o mundo da repetição, a bateria da escola de samba é um dos locais onde a diferença é a expressão do que Deleuze chama de ritmologias. E se o ritornelo é, também, onde o ritmo encontra possibilidade de expressão, cabe retornarmos ao início deste texto, onde a discussão aqui proposta parte do compartilhamento de uma cena a qual músicos e tambores atuam em um encontro de matérias heterogêneas, as peles do corpos humanos em relação com as peles dos tambores. Para Deleuze (1997) existe ritmo quando é o entre dois, entre dois meios.

O encontro da pele que toca a pele do tambor faz movimentar um devir já que a pele da mão e a pele do tambor, quando em relação, fazem surgir algo mais que uma presença física apresentada por meio das ondas sonoras. Temos aqui a mais valia 1 destas ondas, temos neste encontro o devir música experimentado pela pele da mão e pela pele do tambor. Por outro lado, ao aceitarmos os convites feitos por Gilles Deleuze através da sua Filosofia, a qual nos propõe pensarmos a presença na vida como um ato de criação, ou melhor, como um conjunto de atos de criação, o que se buscou neste trabalho é realizar uma invenção. Esta, passa por fazer tocar as proposições do Filósofo as sonoridades que nascem de um outro povo. Nesse caso, este povo que está, e que através de suas potências, pode fazer surgir um povo por vir preto. Assim como, fazer tocar as sonoridades,

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Se tomarmos a pele da mão de quem toca e a pele do tambor que é tocado, a partir do encontro destas matérias distintas, temos a passagem para um outro meio, lugar este produzido com a música que faz ao se fazer presente os espaços que ocupa. Sendo assim, não é só o ritmo que produz a diferença através daquilo que repete, mas também por aquilo que nasce a partir do encontro do que é diferente, do que é heterogêneo. No encontro, nasce também a possibilidade que surja algo distinto daquilo que são os elementos deste movimento. Ao fazer nascer algo que não existia temos aqui o ritmo, também, como possibilidade de experimentação do que Deleuze e Guattari chamam de devir. Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco ele é uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação. (...). O devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 18)

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[ 1 ] O termo mais valia aqui é utilizado para dizer que as ondas sonoras produzem mais que uma presença física, mas também fazem soar sentidos os quais chamamos de música.


os gestos, as imagens deste povo, as provocações deste pensador que escolhe pensar um mundo como um lugar onde a diferença é diretamente relacionada a força vital. Fazer de Deleuze um ser negro, que toca tambor, e no seu caso, toca tambor com a criação de conceitos, fazendo desse processo um caminho rizomático, sem hierarquias e sem generais. Um lugar que é tomado pela vontade de perguntar. Lugar este onde as mais belas perguntas são aquelas que não conhecem as suas respostas. Um lugar onde em vez de aprendermos sobre o mundo para criarmos com e sobre este mundo, escolhe criar mundos para poder entender o mundo o qual habitamos. Ao pretearmos Deleuze, também Deleuzeanos a música africana através de um caminho que não se deseja universal e nem permanente. Que busca se realizar a partir, como já compartilhado neste texto, de situações desejáveis do viver (CAGE, 2006). Uma música Preta Deleuze, um Deleuze Preto Música. Uma Diferença Preta que mais que anunciar se coloca como experimentação de relações que não são pautadas por distâncias hierárquicas e por relações verticais. Fazeres filosóficos, fazeres musicais que acontecem sendo a realização do que escolho como a situação desejável do viver, ou seja, a partir de encontros horizontais e que tomem a criação de mundos como principal convite para estar no mundo. Sendo assim, A Diferença Preta é também a invenção para este povo que está, e por isso, este artigo é para eles que têm pés descalços mão secas e sola que é casa de bicho-de-pé

essa para eles que que misturam alhos com bugalhos por que simplesmente não temem os gêneros que sabem que um garfo e um copo têm mais que uma utilidade não sabem o que imanência mas vivem a imanência na pele de um tambor escutam som em vozes e muitas vozes em cada som essa para eles que deixam os olhos de qualquer um zonzos quando colocam seus dedos num pandeiro que não tem cultura os toscos que não sabem de nada e que colocam fantasias pulando todas as noites de carnaval que de tão eles têm bem mais do que um pouquinho de nós o que nos seria vital se tivéssemos (PACHECO, 2011, p. 8) Este artigo se encerra com a indagação de um pensador, Rincon Sapiência 2 que escolheu falar através do ritmo e que toma a vida do dia-a-dia como principal alimento para a sua poesia. Artista negro, que tem na cor da pele a beleza e a força da sua presença no mundo, mas que também é a marca da indiferença e a exclusão daquilo que não é branco. Tomamos de assalto suas palavras para dizer, “batemos tambores eles panelas”. Foi isso que este artigo se propôs, fazer Deleuze tocar tambor, ou seja, fazer que o encontro aqui realizado fosse capaz de produzir uma Diferença Preta.

que sons com a boca e com pés descalços descem ladeira abaixo não conhecem Varèse, Xenákis, Schoenberg, Berio Debussy, Stravinsky, Penderecki, Ligeti, Constant, Dutilleux, Stockhausen

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nunca ouviram Boulez nada sabem de Cage mas que cantam o silêncio ouvindo palavras em nome de sua educação

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[ 2 ] Músico ligado ao RAP da Cidade de São Paulo


REFERÊNCIAS CAGE. J. O futuro da música. In: Escritos de artistas: anos 60/70. Tradução de Pedro Süssekind at al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2006. DOS ANJOS, J. C. Brasil: uma nação contra as suas minorias. Revista de sicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, Vol. 26, n. 3, p. 507 – 521. DELEUZE, G. Conversações. 4ª Edição. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. ______; GUATTARI. F. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1977. ______; ______. O que é a filosofia? 2ª Edição. Tradução de Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. ______; ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997 ______. Diferença e repetição. 2ª Edição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006. FERRAZ, S. Música e repetição: a diferença na composição contemporânea. São Paulo: EDUC, 1998. PACHECO, E. G. Por uma (des)educação musical. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Educação UFRGS. Porto Alegre, 2011. SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917 – 1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed; Ed. UFRJ, 2001. SODRÉ, M. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1988. ______. Pensar Nagô. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2017.

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edição 01 • dezembro de 2013 Adriane Hernandez; Roger Coutinho

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Résumé: Cet article est une version portugaise du premier chapitre du livre d’Anne Sauvagnargues Deleuze et l’art, publié en français en 2005 aux Presses Universitaires de France. Plus qu'une introduction au livre, il présente les lignes qui, pour l'auteur, ont conduit la pensée de Deleuze sur l'art. Selon Sauvagnargues, il est possible de cartographier trois philosophies de l'art opérant dans la pensée de Gilles Deleuze, dans un mouvement qui commence par le privilège à la littérature, en passant par une investigation sur les implications de la critique politique sur l'art, jusqu'à une dernière phase consacrée à la sémiotique de l'image et de la création artistique. Sauvagnargues reconnaît encore, dans cette voie, les implications que la rencontre avec la pensée de Félix Guattari va produire dans les réflexions de Deleuze sur le plan artistique. Ainsi, l'auteur nous montre que depuis les premières œuvres jusqu'à Différence et Répétition (1968), la littérature occupe une place prépondérante dans les analyses de Deleuze. De L’Anti-Œdipe (1972) à Mille Plateaux (1980), écrit avec Félix Guattari, nous aurons une critique radicale de l'interprétation. Enfin, dans la dernière phase, Deleuze se consacre aux arts non discursifs, où le concept d'image gagnera plus d’espace dans des œuvres telles que Francis Bacon – Logique de la Sensation (1981), consacrée à la peinture, et dans Cinéma 1: L'Image-Mouvement (1983) et Cinéma 2: L'image-Temps (1985), œuvres dédiées au cinéma

Cartografias da Arte: da Literatura à Imagem

Anne Sauvagnargues Artista visual, escritora, filósofa e uma das maiores especialistas no pensamento de Gilles Deleuze. Professora do departamento de filosofia na Université Paris-Nanterre, acolhe pesquisadores do mundo inteiro no seu Laboratório Histoire des Arts et des Représentations. Pesquisadora da história da arte e da estética, explora o fio que atravessa toda obra de Deleuze em sua relação com a arte. Dedica-se atualmente ao desenvolvimento de uma Ecologia das Imagens, na qual conceitos da filosofia da diferença dialogam intensivamente com sua poética em pintura, e oferecem novas abordagens ao conceito de imagem. Suas obras foram exibidas em diversas exposições na França e na Suíça, e seus livros traduzidos para várias línguas. asauvagnargues@ gmail.com

Cartographies de l’art: de la littérature à l’image

Resumo: Este artigo é uma versão em português do primeiro capítulo do livro de Anne Sauvagnargues Deleuze et l’art, publicado em francês em 2005 pela Presses Universitaires de France. Mais do que uma introdução ao livro, ele apresenta as principais linhas que, para a autora, conduziram o pensamento de Deleuze sobre a arte. Segundo Sauvagnargues é possível cartografar três filosofias da arte operando no pensamento de Gilles Deleuze, num movimento que inicia dando privilégio à literatura, passando por uma investigação das implicações da crítica política sobre a arte, até uma última fase dedicada à uma semiótica da imagem e da criação artística. Sauvagnargues ainda reconhece, nesse percurso, os desdobramentos que o encontro com o pensamento de Félix Guattari produzirá nas reflexões de Deleuze sobre o campo artístico. Desse modo a autora nos mostra que das obras iniciais até Diferença e Repetição (1968), a literatura possui lugar de destaque nas análises de Deleuze. De O Anti-Édipo (1972) até Mil Platôs (1980), escritos em parceria com Félix Guattari, teremos uma crítica radical à interpretação. Por fim, na última fase, Deleuze se dedica às artes não discursivas, onde o conceito de imagem tomará cada vez mais espaço em obras como Francis Bacon – Lógica da Sensação (1981), dedicada à pintura, e em Cinema 1: Imagem-Movimento (1983) e Cinema 2: ImagemTempo (1985), obras dedicadas ao cinema. . Palavras-chave: Deleuze; Cartografia; Arte; Literatura; Imagem.

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Mots-clés: Deleuze; Cartographie; Art; Littérature; Image.

Deve-se proceder com cautela ao entrar na complexidade do pensamento de Deleuze, descobrindo passo a passo a totalidade de sua obra, de tal modo que seja possível detalhar o tratamento dado às relações com a arte que nele encontramos. Essa introdução pretende seguir esse método: observar o estatuto da arte o mais próximo possível do seu funcionamento empírico no corpus, para estabelecer a cartografia dinâmica do aparecimento de problemas e conceitos, levando em consideração seus surgimentos e seus desaparecimentos. Essa leitura permite evitar a elaboração abstrata e liberar orientações e questões da arte que fechariam exatamente as tensões desse pensamento em devir. A primeira constatação que se impõe é muito simples: a importância da arte irrompe com a simples menção de uma lista cronológica de publicações. De um ponto de vista meramente descritivo, Deleuze

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TRADUÇÃO Édio Raniere Doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Realizou pósdoutorado na Université Paris-Nanterre, França, sob orientação de Anne Sauvagnargues. Professor Adjunto do Curso de Psicologia da UFPel onde coordena o Laboratório de Arte e Psicologia Social – LAPSO. edioraniere@gmail.com Lilian Hack Doutora em Artes Visuais, com ênfase em História, Teoria e Crítica da Arte pelo Programa de PósGraduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS (2020), com a tese intitulada Escrever um sopro em papel de água viva: imagem e pintura em Clarice Lispector. Realizou estágio PDSE/ CAPES na Université de Picardie Jules Verne, França (2018-2019). lilianhack@gmail.com

REVISÃO Roger Xavier Licenciatura em filosofia pela Universidade Estadual de Londrina, com orientação de Anne Sauvagnargues realizou seu mestrado em filosofia contemporânea na Universidade de Paris X. Doutorando na Universidade Paris 8: Saint Denis, França com foco na filosofia de Peter Sloterdijk. rogerxavierrx22@gmail.com


consagra mais de um terço de suas publicações à análise de obras de arte 1, sem mencionar os numerosos artigos através dos quais, com seu método característico, ele prepara suas obras, artigos aos quais ele nem sempre retorna em textos posteriores. A literatura (um romance, Em Busca do Tempo Perdido, em 1964, uma obra, aquela de Kafka em 1975, uma peça de Carmelo Bene, Ricardo III, três peças de Beckett, numerosos artigos de Zola, Tournier, Klossowski, Lewis Carroll, etc.), mas também a pintura de Fromanger (1973), de Francis Bacon (1981), o cinema clássico e neorrealista, um momento da história dos estilos, o Barroco, são, sucessivamente, objetos de estudos independentes. Deleuze dedica livros inteiros a obras que muitas vezes são recentes e até contemporâneas, fornecendo assim um verdadeiro trabalho de crítica, que está bem além do interesse costumeiramente dado a obras marcadas pela história da arte. Trata-se de um novo uso da arte, onde o encontro e o exercício são imprescindíveis ao pensamento. A maneira como ele se serve das obras como campo de experimentação e validação permite-nos apreender a vivacidade do tecido conceitual de sua filosofia. Existe aqui uma forma de pensar e usar a arte que vai além do escopo dos estudos explicitamente estéticos e se difunde ao longo de sua obra. Mesmo em estudos que não tomam explicitamente a arte como tema, as análises dedicadas a ela são decisivas. Fazer o inventário destes usos, observando suas zonas de variação, deve nos permitir dar os primeiros passos rumo a esta complexa obra. Uma periodização da questão da arte fornece os elementos necessários para estabelecer uma cinemática do sistema. De fato, quando um pensador como Nietzsche, um escritor como Nietzsche apresenta muitas versões da mesma ideia, é evidente que essa idéia deixa de ser a mesma 2”, escreveram Deleuze e Foucault por ocasião da tradução francesa da edição completa de os escritos de Nietzsche

editada por Colli e Montinari. A ordem de aparição dos problemas se impõe, primeiramente, longitudinalmente, daí o interesse de um inventário cursivo do corpo da obra que permita identificar os núcleos estáveis e as zonas de transformações que tocam a arte. Esse exame fornece uma periodização que não fixa ou submete o pensamento de Deleuze a uma cronologia, nem busca fixá-lo no quadro de um desenvolvimento histórico que ele tantas vezes criticou. Uma periodização não consiste em privilegiar a ordem cronológica ou em restituir a gênese de um pensamento. Ao invés disso, ela visa esboçar uma cartografia, quer dizer, um extrato dinâmico do sistema, o qual não se reduz a uma imagem estática, mas busca tornar sensível os devires do pensamento. Sem dúvida Deleuze sempre reivindicou o pensamento sistemático, mas os sistemas não ficam parados como cristais estáticos, atemporais e homogêneos em torno de um estado invariável do pensamento. Ao invés disso, eles formam células, às quais se aplica o princípio de exterioridade tão bem definido por Deleuze em Foucault: sempre partir do exterior, definir um sistema pelos seus pontos de força exterior, e não por uma consistência interna intrínseca. É uma questão geral de método; em vez de ir de uma exterioridade aparente para um “núcleo de interioridade” que seria essencial, é preciso conjurar a ilusória interioridade para levar as palavras e as coisas à sua exterioridade constitutiva 3. Um sistema deve ser definido por seus desafios, seus impactos, suas impressões e contatos externos, tanto quanto por suas variações, suas linhas de errância, suas velocidades, seus aspectos nunca homogêneos. Tais determinações emanam dos textos, irradiando-se para os problemas concretos e as referências textuais que eles colocam em jogo. Manter-se numa estática do sistema seria o equivalente a eliminar os devires do pensamento em favor de uma teleologia da obra; observar a transformação cinética dos conceitos não é se entregar à

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fragmentação histórica, mas se interessar pelos trajetos e apresentar os deslocamentos dos conceitos. Isso permite, de outro modo, não privilegiar um modo enunciativo, afirmativo ou polêmico sempre endógeno, mas pleitear, conforme o princípio de exterioridade, por um modo aberto [exotérique] de exposição: Deleuze passa do privilégio da literatura à implicação política da arte, e em seguida para uma semiótica da criação. Podemos detalhar esses momentos distintos considerando-os como três filosofias da arte. Essas diferentes faixas ou "platôs" também definem diferentes linhas de contextualização, teóricas e práticas: quais autores e quais obras as asseguram e em qual momento, quais análises respondem a quais problemas? O impacto de um método das exterioridades permite traçar os itinerários da obra, levando em conta as velocidades e as lentidões de circulação das noções, antes de propor uma leitura cursiva. Não que o conceito se reduza às suas condições de aparição textual, nem as suas coordenadas espaço-temporais, ele não é um evento autônomo do sistema, ainda que tendo sido criado. Não podemos dissociar um conceito das circunstâncias externas de sua constituição, nem do extrato de seus movimentos e de suas migrações, os quais conduzem ao deslocamento ou à confirmação do sistema. Faz-se necessário, portanto, passar de uma estática abstrata do sistema, que negligencia a cronologia e a contextualização, para uma dinâmica dos problemas que mapeia suas sucessivas variações. Além disso, é preciso correlacionar a dinâmica do sistema com seu campo de individuação, de contextualização intelectual e social. Os conceitos emergem de uma pragmática e respondem a questões que não são exclusivamente teóricas, o que, como veremos, remete ao que Deleuze e Guattari chamam de lógica "rizomática". Isto envolve prestar a máxima atenção aos dispositivos de referência verificados para estabelecer os componentes dos conceitos nas doutrinas e nos

autores com os quais Deleuze conversa, e tanto mais porque o uso que Deleuze faz delas é curioso e problemático, como se poderia esperar de um filósofo que professa uma teoria da máscara [masque] e da criação, constantemente hostil ao estabelecimento de uma doxa, e por isso hostil à reificação de doutrinas e saberes estabelecidos. Entretanto, Deleuze é incompreensível se não restaurarmos metodicamente seu trabalho de referência, que na maioria das vezes é implícito e mascarado por suas sucessivas reelaborações. No entanto, a obra de Deleuze não será transformada em um manto de Arlequim, já que se trata de um filósofo que teorizou especificamente a prática da filosofia como a criação de conceitos. Interessar-se pelo surgimento do novo requer identificar o perfil da curva de um conceito no sistema, levando em consideração especificamente seu ponto de entrada e sua zona de dissipação, os setores teóricos que ele põe em jogo, as conexões práticas que dele decorrem. Em suma, estas são escalas preparatórias, destinadas a facilitar a entrada neste pensamento contraído e vivo. Seria equivocado considerar esta periodização como um pré-requisito absoluto a qualquer leitura sistemática: além do fato de que cabe a cada periodização ser relativa à matéria de que trata – os platôs aqui propostos não são de forma alguma exclusivos de outros recortes – a ordem lógica da consistência frequentemente interfere na ordem histórica da individuação das noções e da zona de operação. Consideremos, portanto, esta introdução como um exercício de relaxamento, menos básico do que parece, e cujo mérito pedagógico consiste em facilitar ou melhorar o contato com o sistema. Isso nos permite definir pelo menos três faixas diferentes, três estados de variação do sistema: das primeiras obras até Diferença e Repetição (1968), onde a questão da arte passa inicialmente pelo privilégio da literatura. Com Guattari, e a virada pragmática de pensamento em O Anti-Édipo (1972), Deleuze

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inicia uma crítica da interpretação e uma lógica das multiplicidades que lhe permite, depois de Mil Platôs (1980), dedicar-se integralmente à semiótica da imagem e da criação artística. Não nos propomos aqui detalhar três conjuntos, mas identificar a tensão problemática que os une e faz com que Deleuze passe da literatura às imagens. O gosto pela Literatura Primeiramente, vamos examinar a configuração desenhada pela lista de publicações explicitamente centrada em análises de obras. Até 1979 todos os títulos relacionados com a arte são dedicados à literatura, isso assinala a preponderância, a primazia, a exclusividade de um interesse pela literatura, a qual se afirma como a primeira área da arte teorizada por Deleuze. A partir de 1980, depois do intenso período de trabalho ‘a dois’ com Félix Guattari, que literalmente empurra Deleuze para fora da filosofia – Guattari não era filósofo, mas psicanalista engajado na luta militante –, Deleuze teoriza as artes não literárias. Existe aqui uma progressão explicita que assegura o princípio de uma periodização na obra de Deleuze em torno de um eixo que vai do discursivo ao não discursivo. Essa tensão culmina com o estatuto da interpretação, o qual se faz objeto de uma intensa crítica desde o encontro com Félix Guattari. A primeira filosofia de Deleuze, orientada pela literatura, se estabelece no plano do puro pensamento; no segundo período, que corresponde ao trabalho com Guattari, de O Anti-Édipo (1972) até Mil Platôs (1980), Deleuze elabora uma semiótica capaz de levar em conta os signos na materialidade de uma expressão irredutível ao sentido linguístico. Em seguida, surge um terceiro período dedicado ao signo e à imagem. Há uma trajetória verdadeiramente decisiva aqui, que diz respeito ao estatuto do signo e sua passagem do registro da interpretação ao da força. Os estudos dos anos sessenta

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expõem uma filosofia do signo naturalmente atenta a sua expressão literária, onde Proust e Nietzsche, Sacher-Masoch, Zola, Tournier são a oportunidade para o filósofo reformar a imagem do pensamento. A partir de O Anti-Édipo, Artaud e Kafka vêm a ser os heróis de uma luta contra a interpretação, a qual transforma o estatuto da literatura: “jamais interprete, experimente!” [Expérimentez, n’interprétez jamais4]. Deleuze elabora gradualmente o programa de uma filosofia do signo irredutível ao domínio linguístico, à lei da linguagem e da linguística: agora a semiótica se opõe firmemente à semiologia, ou à semântica, quer dizer à toda teoria do signo subordinada a linguística.5 O interesse pela imagem, o cinema, a pintura, respondem a esta lógica do signo não discursivo, esta “lógica da sensação” que irradia a partir dos anos oitenta. Francis Bacon: Lógica da Sensação (1981), para a pintura, A Imagem-Movimento (1983) e A Imagem-Tempo (1985) para o cinema, confrontando a filosofia com o pensamento criador da arte. A última filosofia de Deleuze se cristaliza em torno do problema da criação, pelas artes, as ciências e as filosofias. Dentro deste contexto, a semiótica da imagem toma toda sua importância. É esta aventura que se propõe explorar aqui. O interesse pela literatura é certamente precoce, mas jamais se enfraquece. É importante compreender que o programa semiótico de modo algum implica uma crítica à literatura, ou uma diminuição do seu mérito. Aliás, Deleuze se interessa pela literatura ao longo de toda sua obra. Ele publica em 1947, dois anos depois do seu primeiro texto aparecer numa revista, uma introdução para A Religiosa, de Diderot6. Em 1993, sua última obra, Crítica e Clínica, é também dedicada a uma teoria da literatura e reúne artigos às vezes muito antigos (como um artigo sobre Nietzsche, cuja primeira versão data de 1963 7) relacionados e articulados com seus novos textos. Isso atesta um permanente interesse pela literatura que não diminuiu mesmo depois que ele estabeleceu

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uma semiótica não-verbal. Mas é justamente na literatura, pela literatura, a propósito da literatura que Deleuze encontra o problema das artes não discursivas. Isso apenas torna a passagem da interpretação para a semiótica nos anos oitenta mais fascinante. A maneira como Deleuze exerce esse interesse pela literatura merece, por sua vez, ser descrita em detalhes: uma virtuose inventividade de métodos é colocada à serviço da elaboração da semiótica. De Proust e os Signos, em 1964, primeira versão de um livro que concentra duas versões posteriores em 1970 e em 1976 – são doze anos de elaboração – à Kafka: por uma literatura menor, que ele escreve em parceria com Guattari em 1975, Deleuze inventa razões para teorizar a literatura, e propõe métodos impressionantes para ajustar filosofia e literatura sem as confundir, nem as subordinar. As revisões de seu trabalho sobre Proust oferecem um bom modelo deste uso muito particular da repetição, do texto permanente que caracteriza a elaboração do seu pensamento. As três versões sucessivas de 1964, 1970 e 1976 transformam radicalmente o enunciado inicial, sem, contudo, abandoná-lo. Essas versões prolongam e de certa maneira redesenham o enunciado original, ramificandose em uma série imprevisível de soluções que correspondem aos problemas que Deleuze formula em trabalhos posteriores, e algumas de cujas formulações são encontradas inalteradas nos livros sobre cinema: pensar sob a irrupção de um choque, buscar “um pouco de tempo em estado puro”. Proust e os signos não é o único texto a que Deleuze submete essa maturação constante: Espinoza. Filosofia prática e Foucault 8 conhecem o mesmo destino feito de reedições sucessivas, agregando uma dimensão suplementar que transpõe, apenas por adição, o texto primitivo. É um dispositivo específico a partir do qual Deleuze fixa o estatuto a propósito de Foucault, no livro que lhe é consagrado, precisamente construído em torno desta

variação calculada. É esta estratigrafia do texto publicado que justifica a leitura que fazemos da obra de Deleuze, onde levamos em conta a mais exata variação que anima tais versões. Logo, a segunda singularidade, é esse uso igualmente surpreendente da escrita elaborada à dois: o primeiro texto coescrito com Félix Guattari, antes de ser, segundo o método anterior, retrabalhado e integrado em O Anti-Édipo 9, versa sobre a obra de Klossowski, pintor, filósofo, escritor, e intitula-se A síntese disjuntiva (1970). Este texto retoma a noção de síntese disjuntiva introduzida por Deleuze na Lógica do sentido, uma noção importante que conhece aqui seu ponto de aplicação prática. Pois a síntese, em Deleuze, não é um retorno ao um, mas uma diferenciação disjuntiva que procede por bifurcações e transformações, e não por fusão e identidade do mesmo. Esta síntese diferencial e não conjuntiva aplica-se à prática tão singular de escrever a dois, e ela muda não apenas o estatuto do texto, mas também sua fabricação. O trabalho coletivo com Guattari produziu uma teoria dos sistemas, incluindo os sistemas literários (Rhizome, em 1976), onde a análise da obra de Kafka um ano antes forneceu o primeiro exemplo, o qual abre o método de investigação aplicado à literatura sobre suas implicações políticas. A aplicação prática de uma escrita coletiva, impessoal, encontra seu resultado na teoria do “agenciamento coletivo de enunciação”. Este conceito, que faz sua aparição em Kafka (1981), responde à duas questões, como lembra Guattari: o agenciamento transforma as noções de “estrutura”, “sistema”, “forma” ou “processo”, ampliando o caráter formalmente articulado do sistema ou da estrutura para um processo pragmático o qual se abre em componentes “heterogêneos”, ou seja – conforme o protocolo da semiótica – não exclusivamente intelectual, discursivo, linguístico: são signos diversos, heterogêneos, biológicos, políticos, sociais, coexistentes. Em segundo lugar, um tal

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agenciamento é dito agenciamento coletivo de enunciação quando se trata de localizar para além das instâncias individuais de enunciação que privilegiam muito frequentemente a linguística ou a estilística, o modo a-subjetivo, impessoal da criação literária, irredutível a figura do autor, ou àquela do gênio privado 10. A literatura não deve mais ser considerada como negócio próprio de uma individualidade de exceção que expõe suas memórias pessoais e outros “segredinhos sujos”, mas como um empreendimento coletivo de exploração de devires sociais: nisso consiste a literatura menor, que persegue a crítica clínica e a definição sintomatológica da literatura. Além desse método de repetição, verdadeira escrita "continuada", e dessa escrita coletiva que reforma o estatuto da literatura, Deleuze inaugurou em 1967, com a Apresentação de Sacher-Masoch, uma espécie de simbiose editorial, enxertando dois escritos distintos, literário e filosófico, não necessariamente compostos em conjunto, em um volume. A simbiose, emprestada da etologia animal, serviu de modelo para buscar o conceito de síntese disjuntiva no domínio vital, ao propor um enxerto heterogêneo ou conexão entre séries díspares. Deleuze toma emprestado esse conceito da descrição da homossexualidade em Proust, e do desfile de sedução entre vespa e orquídea, séries heterogêneas, animal e planta paradoxalmente dispostas no mecanismo de reprodução da orquídea. Derivado de Proust, a captura da vespa e da orquídea ou devir coletivo, o devir-vespa da orquídea, o devir-orquídea da vespa, não serve somente para descrever o novo modo de funcionamento literário que ocorre "entre" Deleuze e Guattari. Aqui, a simbiose se aplica às novas maneiras que Deleuze estabelece para ajustar filosofia e literatura sem fundi-las ou hierarquizá-las, mas mantendo sua diferença disjuntiva, seu encontro necessário. Essa coexistência entre literatura e filosofia resulta nos habituais prefácios ou posfácios, elucidando com seus comentários eruditos os textos que estes emolduram.

A Apresentação de Sacher-Masoch justapõe duas escritas de dimensão sensivelmente correspondentes, a novela de Masoch A Vênus das Peles, e o ensaio de Deleuze O frio e o cruel que a precede. Trata-se, literalmente, de uma “Apresentação” de SacherMasoch, fornecendo a ocasião de uma reedição de suas obras, tendo Masoch, menos que Sade, despertado a atenção daqueles que como Bataille, Klossowski, Foucault se interessavam pela relação entre literatura, desejo e normalidade. Deleuze não busca atuar apenas como trampolim de difusão de Masoch, reparando a injustiça que precipitou sua obra no esquecimento ao mesmo tempo que tornou seu nome de uso comum, nem repetir pela literatura masoquista o interesse que a literatura sadista já havia provocado. Nem prefaciador, nem comentador, Deleuze pretende ao contrário produzir um espaço crítico que não se reduz nem à exegese de um sentido interno, nem ao comentário externo: é isto que define a crítica clínica. Deleuze especifica as modalidades escolhendo para o título do volume que ele compõe com o dramaturgo Carmelo Bene o termo Sobreposições11. Do mesmo modo, não se trata aqui de um posfácio, o texto de Deleuze dessa vez dá sequência ao de Bene. O volume sobrepõe a peça de Bene Ricardo III ao texto Um manifesto de menos, redigido por Deleuze, e este título indica porque o dramaturgo chamou sua atenção. A filosofia não adiciona um sentido suplementar, um manifesto do mais frente ao efeito literário. Ela não oferece o manual teórico de uma escritura que sem isso restaria opaca, mas ao contrário, ela se serve do choque dramatúrgico para lançar uma resposta filosófica estimulada pelas pesquisas do escritor. A crítica não procede por adição de um comentário a mais, mas elimina um comentário a menos. Esta vizinhança clínica é aqui redobrada pelo fato de que a peça de Bene é ela mesma uma reprise de Ricardo III de Shakespeare, mas uma reprise desejada como

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extração, o que permite a literatura (Bene) como a filosofia (Deleuze) compor com as obras e as transformar. Criar é, portanto, realizar uma amputação cirúrgica. A admiração crítica implica uma relação com a tradição por tensão subtrativa e contrativa, onde se propõe uma reprise ativa ao estilo da improvisação e não uma canonização passiva. É porque a crítica afigura-se o exercício de minoração, que não corrobora a obra prima na sua posição de invariante cultural e regra maior, mas ao contrário, o que se faz é informá-la para lhe permitir continuar viva, ou seja para permitir o seu devir e a sua transformação. Além disso, maltratar a obra através de uma experimentação elogiosa, querendo conservá-la intacta dentro de uma invariante ilusória acaba por reificá-la. A postura subtrativa desenvolve assim a definição da literatura menor, e permite uma concepção da crítica como encontro, por vizinhança e conveniência vital, ou seja, literalmente como clínica, ou modo de vida. Tais aspectos circulam entre as obras, e determinam o encontro e a vitalidade da troca entre filosofia e literatura. Em Quad, publicado em 1992, Deleuze acompanha Quad et autre pièces pour la télévision, de Beckett, com um extraordinário ensaio intitulado O Esgotado, que deve ser lido em seu sopro frágil, em seu ritmo breve, como um texto denso de pensamento poético. Ao contrário de Superpositions, esta publicação aparece sob a assinatura de Beckett, e Deleuze – delicadeza sensível – se elide e se retira sob a assinatura do escritor. A pesquisa de uma “coadaptação de duas formas”, o pensamento literário e o pensamento filosófico, se persegue sobre a plano formal por esta superposição material de discursos que não renunciam nem a sua hermética singularidade, nem aos seus cruzamentos decisivos. É uma utilização prática do encontro disjuntivo acerca do qual Deleuze teoriza nas obras escritas “a dois” com Félix Guattari, e que oferecem uma bela versão coletiva em Rhizome 12, verdadeiro discurso do método de escrita impessoal.

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De 1964 à 1993, Deleuze persegue, portanto, essa investigação filosófica com e sobre a literatura, esta crítica clínica cuja primeira apresentação explícita aparece relacionada justamente a SacherMasoch, e se desenvolve sobre sua última obra publicada, Crítica e Clínica, centrada sobre o “problema do escrever 13” ou seja, de acordo com o título do seu primeiro capítulo, sobre “a literatura e a vida”. Existe na obra de Deleuze uma reflexão constante sobre a literatura, que se caracteriza por sua força contínua, a insistência de sua reelaboração, e a originalidade de seus meios. Do literário ao semiótico Mas por uma trajetória marcante, os escritos do período de 1972-1980, anos de captura e de coescritura com Félix Guattari, anos de encontro e de transformação do estatuto da escritura, são seguidos por uma sequência de publicações que Deleuze assume sozinho, e que indicam a maturação e a urgência de uma teoria das artes não literárias, de uma semiótica da arte. A arte não se limita à literatura: a pintura e o cinema fazem sua aparição. Deleuze se dedica explicitamente a produzir uma lógica, uma taxonomia, uma classificação das imagens e dos signos que não portam enunciados. A semiótica exige uma filosofia da arte irredutível à ordem da significação e do discurso. Deleuze chama de “Ideias” tais imagens, complexos de sensação não redutíveis a uma significação discursiva, mas que estimulam o pensamento. Estas imagens não querem dizer nada, mas elas fazem pensar. Passar de uma experiência sensorial (auditiva, visual) aos dados do problema que coloca essa imagem, sem a traduzir em dados discursivos, nem a reduzir aos modelos da interpretação, da analogia imaginária ou da correspondência simbólica, é isso o que busca a semiótica. Como Deleuze passa do literário ao semiótico? Pelo aprofundamento do estatuto dos signos, e o trabalho teórico e prático

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de coescritura com Guattari, que o permitem passar do estatuto intelectual do signo à sua etologia, seu meio vital, sua eficácia material. O signo não é mais portador de uma hermenêutica do sentido que decifra os processos significantes, mas de uma lógica das forças que fazem da arte uma captura, e da imagem um composto de afectos e perceptos. A etologia dos afectos permite a passagem da Lógica do Sentido (1969) à Lógica da Sensação (1981). Estas duas obras de Deleuze moldam o trabalho coletivo com Guattari, situados entre O Anti-Édipo (1972) e Mil Platôs (1980) 14, sob o signo de uma investigação sobre política e loucura, normas sociais e psíquicas, ou, em termos mais correntes, sociologia e psicologia. Os dois volumes unidos por um mesmo subtítulo, Capitalismo e Esquizofrenia, conduzem a análise sobre a conivência que liga a “desorganização” mental da esquizofrenia à organização social do capitalismo, propondo uma investigação sobre a produção histórica dos modos culturais de criação dos sujeitos sociais, os modos de subjetivação 15. O primeiro volume, O Anti-Édipo (1972), fornece uma teoria do sujeito crítico no que diz respeito à psicanálise que Deleuze declara completamente política 16, e onde a figura do psicótico, verdadeiro anti-Édipo, conduz a luta contra a interpretação freudiana. O segundo volume, Mil Platôs (1980), elabora uma lógica das relações e uma teoria política do capitalismo que passa pela crítica das ciências humanas e exige a elaboração de uma semiótica organizando (“agenciando”) os signos discursivos e não discursivos com as relações de poder. Com essa teoria do agenciamento, a semiótica está assegurada em seu princípio. Porque o agenciamento propõe um modo de interação mas pretende escapar aos pressupostos internalistas das noções de estrutura ou de sistema, que determinam o valor de seus elementos sob um modo autocentrado, por diferenças internas no seio de um sistema fechado. Deleuze e Guattari concebem apenas

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sistemas abertos, conectados, não homogêneos, e eles chamam “rizoma” um tal dispositivo de conexões transversais, sob o modelo da erva daninha, cujas radículas itinerantes e florescentes proliferam sem raiz dominante. O rizoma empresta da biologia esse modelo de crescimento não arborescente ou centrado, que favorece a junção de regimes heterogêneos, o cruzamento e a interação sem unidade dada. Ou seja, os signos não formam preferencialmente sistemas linguísticos autônomos e fechados, mas todos os sistemas de signos, incluindo aqueles linguísticos, são abertos sobre outras semióticas vitais ou políticas, significantes ou subjetivas. Deleuze e Guattari as nomeiam regimes de signos em Mil Platôs para evitar justamente o fechamento dos sistemas de signos: o regime é um sistema aberto, rizomático, que procede por conexões e que suporta a heterogeneidade pragmática de uma abertura sobre outras semióticas. O signo se define assim como um complexo de forças necessariamente híbridas, agenciando códigos desiguais, mentais e sociais, linguísticos e pragmáticos. A noção de agenciamento programa a virada do semântico ao semiótico, e implica na crítica da interpretação. Não nos espanta ver a associação Deleuze-Guattari produzir durante esse período uma teoria política da literatura (Kafka, em 1975), da escritura impessoal como agenciamento coletivo – exatamente o que é implementado pela coescritura –, que prepara o semiótico. Pensar a pintura ou o cinema, expor o efeito da arte fora do efeito literário solicita uma teoria dos signos não-discursivos que destaca a análise dos signos da influência do discurso, critica o primado do livro assim como a postura usual do comentário (Rhizome, 1976), ou seja, desenvolve uma crítica da interpretação. Essa virada é franqueada com Mil Platôs em 1980, e as publicações que se seguem falam dela. Em 1981, Deleuze fornece uma teoria da pintura. Francis Bacon. Lógica da Sensação 17. Anteriormente ele havia

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consagrado à pintura uma curta plaqueta em 1973 em homenagem à Gérard Fromanger, O quente e o frio – à maneira do escrito sobre Masoch, O frio e o cruel. Sobre cada uma das onze páginas, texto e reprodução de quadros se correspondem: imagens e conceitos estão face a face. Da mesma forma, o conjunto da edição original de Francis Bacon separa em dois estreitos volumes a Lógica da Sensação de Deleuze, e o volume das reproduções dos quadros de Bacon. Pintura e filosofia coexistem nesse conjunto, colocadas em uma vizinhança que não impede sua distinção, exemplo original de uma tentativa editorial para renovar o estatuto dos livros sobre pintura. Essa obra é seguida pela soma magistral sobre o cinema, os dois volumes de Imagem-Movimento e Imagem-Tempo, em 1983 e 1985; Três anos mais tarde, é a unidade das artes sob a autoridade de um estilo, a singularidade de um período, e a coexistência das artes, das ciências e da filosofia, ao sabor de um período, que fazem objeto de A Dobra: Leibniz e o Barroco, em 1988. É com estas obras, especialmente aquelas consagradas à pintura e ao cinema, que Deleuze aborda de frente a questão da imagem. O encontro com Félix Guattari Essa lista de publicações indica a regularidade de uma alternância entre arte e filosofia. Ela indica também a abertura da filosofia em direção à outras artes além da literatura, e a afirmação de uma semiótica que convém tanto ao literário como às artes não discursivas. Da análise de um romance isolado (Proust e os signos), à análise do conjunto de uma obra (Kafka ou Bacon), da obra isolada ao gênero, da especificidade de uma arte (o cinema), àquela de um período histórico (o Barroco), Deleuze não cessa de expandir sistematicamente o campo da análise das artes. Para tanto, ele alterna escritos sobre arte e títulos consagrados ao estudo de autores, de obras, ou de

conceitos e problemas não especificamente artísticos, mesmo se for preciso esperar 1968 e Diferença e Repetição para que aparecesse um escrito que não fosse explicitamente monográfico, discorrendo sobre um filósofo (Hume, Nietzsche, Kant, Bergson) ou escritor (Proust, Sacher-Masoch). Um primeiro traço se desenha: da literatura às artes não discursivas se estende uma trajetória suficientemente nítida para iluminar prospectivamente o estatuto da imagem e a importância da crítica da interpretação. O primeiro período é comandado pela experiência da literatura. É sobre esse campo que a experiência dos signos se elabora antes de poder se desenvolver em semiótica, isto não significa que Deleuze descobriu a importância das artes não-discursivas mais tardiamente, mas a literatura forma a primeira paisagem onde testemunhamos a arte em ação em sua escrita.– a referência à pintura é constante a partir de Diferença e Repetição, a referência à música, à qual Deleuze não consagra uma obra separada, é de grande importância e Mil Platôs ou em A dobra –, mas porque é o primeiro campo sobre o qual se expõe o funcionamento da arte. Deleuze propõe em princípio uma filosofia da literatura que apresenta o enunciado literário e os métodos da literatura moderna como lugares teóricos de uma reconciliação entre a filosofia e o pensamento. É graças à literatura que o filósofo reforma “a imagem do pensamento” 18: isso que força a pensar é a intrusão violenta e involuntária de um signo, objeto de um encontro que força o pensamento a criar 19. A física da homossexualidade proustiana, que Deleuze examina na segunda versão de Proust, em 1970, responde à Apresentação de Sacher-Masoch de 1967. A literatura não visa apenas expor a gênese do pensamento (uma metodologia da criação do pensamento) mas conduz a uma crítica clínica, uma sintomatologia nietzschiana (desenvolvida em Nietzsche de 1962), que abre a literatura sobre uma função de diagnóstico. Deleuze prolonga por este viés a inspiração nietzschiana que faz do filósofo

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um artista e um médico da civilização: “Nietzsche o dizia, o artista ou o filósofo são médicos da civilização” 20. Esta função de diagnóstico caracteriza precisamente o novo platô da filosofia da arte, mas ela se transforma: se desloca em um novo meio e se amplia em uma nova função política e social. É preciso a datar do encontro com Guattari em 1969 , ou antes escolher como articuladora [dobradiça] a primeira obra de importância escrita em conjunto, O AntiÉdipo em 1972: melhor recorte, pois Lógica do Sentido, que Deleuze publica em 1969 21, se interessa pela constituição do sentido, sem dúvida a partir de seus limites externos, não-sentidos, inconsciente e corporeidade, mas sempre sobre o plano da fronteira interna do pensamento. Esta obra coloca o sentido em sua dimensão formal, e discute com a lógica matemática de Russell, a lógica transcendental de Husserl e a psicanálise de Lacan. O ponto de oscilação da obra de Deleuze pode ser fixado em torno do personagem de Artaud: a intrusão do “corpo sem órgãos” esquizofrênico na Lógica do Sentido marca o ponto de passagem entre a primeira e a segunda filosofia da arte. Com ele, passamos da experiência informal da arte e especialmente da literatura, à uma etologia pragmática dos modos de subjetivação sociais 22. O encontro com Guattari não tem nada de anedótico, ele é determinante, e decisivo para a filosofia de Deleuze que se reorganiza em função das empiricidades reais, da luta política, da confrontação terapêutica com a psicose e a esquizofrenia no quadro das instituições existentes. Deleuze procedia a uma crítica do sujeito a partir dos recursos da arte e da psicanálise, mas sobre o campo da filosofia pura. O encontro com Guattari desencadeia um mergulho real no empirismo, e coincide com a imersão no meio histórico da luta social, do engajamento militante: é a época do G.I.P. (Groupe d’information sur les prisons) [Grupo de Informação Prisional] e do C.E.R.F.I. (Centre d’Études, de Recherches et de Formation Institutionnelles) [Centro de

Estudos, de Pesquisa e Formação Institucionais] 23, e essa mudança assinala a aparição de um léxico político até então ausente das preocupações de Deleuze. Ele se junta à repercussão que tem Maio de 1968 na sociedade francesa, responde à essa febre política, essa injunção militante e contestadora que abala a vida intelectual e, em seguida, a Universidade francesa e que culmina com a criação de Vincennes, a qual Deleuze ingressa em 1969 24. Desse ponto de vista, o encontro com Guattari age sobre Deleuze como um gatilho e um detonador que deslocam o pensamento do elemento especulativo em direção a movimentos reais, as tensões políticas que agitam os corpos sociais, e em direção ao campo prático da loucura em seu enquadramento institucional psiquiátrico. Em um movimento foucaultiano, que atesta seu interesse comum pela historicidade e a variação dos polos do normal ao patológico, a atenção que eles dedicam, a partir de Canguilhem, ao “nascimento da clínica”, sua admiração pelos trabalhos críticos de Bataille e de Blanchot avaliando o escopo literário da transgressão e da singularidade, Deleuze expõe uma crítica da clínica. Ele se interessava pela loucura como fronteira da razão, e procurava em Sacher-Masoch e Lógica do Sentido, teorizar a criação literária em sua relação com a loucura (Artaud, o esquizofrênico) ou com a perversão (a análise do desejo e da lei em Masoch). Com Guattari, Deleuze passa de uma definição formal do inconsciente à sua dimensão simultaneamente política e crítica no que concerne à psicanálise. Guattari descreve a si mesmo na junção de três domínios teóricos e práticos que ele julgava “discordantes” até o encontro com Deleuze: a prática militante em diferentes organizações políticas marxistas, a prática clínica com Jean Oury em La Borde, no contexto da psicoterapia institucional, e a prática analítica com os psicóticos, na perspectiva de Lacan, que foi seu analista e cujos seminários constituem para ele, como para toda sua geração, uma reiteração

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decisiva da teoria freudiana. Engajado com Jean Oury na aplicação da análise no tratamento de psicóticos, na Clínica La Borde, no contexto da psicoterapia institucional derivada de Tosquelles 25, Guattari concebe o inconsciente como uma produção social, ligada diretamente à dimensão política e histórica do social. É ele quem permite a Deleuze “restituir ao inconsciente suas perspectivas históricas”, o que implica em uma “reversão da psicanálise, e sem dúvida uma redescoberta da psicose sob as vestes da neurose”, duplo movimento de crítica da psicanálise e de interesse pela esquizofrenia que caracteriza os trabalhos de Deleuze entre O Anti-Édipo e Mil Platôs. Essa dupla direção desencadeia a crítica da interpretação, porque ela rejeita a preponderância, e mesmo a dominação do significante linguístico e psíquico. Guattari empresta essa crítica da psicoterapia institucional, que se define por sua atenção à dimensão “institucional”, política e coletiva do psiquismo. Porque ela visa reduzir a lacuna entre a dimensão privada do inconsciente freudiano e a constituição sociopolítica dos sujeitos, e pretende agir sobre as instituições atuais reformando as estruturas asilares, a psicoterapia institucional representa um papel considerável na elaboração do programa de O Anti-Édipo. Sua dimensão política a opõe simultaneamente à psiquiatria hospitalar, gestão institucional, administração jurídica e médica do anormal no corpo social, e à psicanálise, análise dos processos de constituição da consciência a partir dos fluxos inconscientes. A crítica política da interpretação Guattari substitui, portanto, à psicanálise freudiana, dominada pelo cliché de uma normalidade psíquica, pela esquizo-análise, que propõe uma análise do inconsciente de inspiração marxista e substitui o modelo edipiano, neurótico, centrado sobre a pessoa, por um modelo psicótico, não edipiano, impessoal e político. A esquizo-análise faz do

consciente em sua dimensão material uma produção social, e historiciza o inconsciente freudiano, cuja economia pulsional é diretamente conectada aos dispositivos sociais, em lugar de ser concebida como uma esfera separada, um “império em um império” individual, familiar e privado. Ela atribui à loucura, à inadaptação social e à psicose um valor de experimentação prática que contém um desafio político e um valor para a cultura: segundo Foucault e a análise da loucura como fronteira da razão, o artista se torna o operador de uma transformação do gosto que se reflete na moral. A arte, clínica da sociedade, expõe a crítica social ao mesmo tempo que testemunha novos tipos de subjetivação. A crítica do sujeito se investe dessa nova dimensão política e social, crítica que concerne aos movimentos comunistas e psicanalistas que alimentam as problemáticas 26 de O Anti-Édipo. Deleuze credita sempre a Guattari estes dois resultados: tê-lo permitido sair da psicanálise, e ter sido a ocasião de uma descoberta do pragmatismo do conceito 27 . Nisso, Guattari permite a Deleuze atribuir ao pensamento teórico e à prática das artes uma dimensão política essencial, que suscita a elaboração do conceito de agenciamento em confrontação amigável com o conceito foucaultiano de “dispositivo”. O encontro com esse praticante da esquizofrenia, psicanalista militante, a cada vez mais crítico da dimensão “familiarista” da psicanálise, conduz a sintomatologia nietzschiana dos estudos precedentes para o campo do agenciamento político dos signos. Essa reorganização é o princípio da extensão da arte e permite ao mesmo tempo a passagem do literário ao semiótico, e a integração de uma dimensão política para as artes e para o pensamento, que procedem, em ambas, da crítica da interpretação. Na segunda filosofia de Deleuze, filosofia coletiva, o pensamento não é mais dissociável de seu agenciamento real hic et nunc 28. A arte não é um caso de significação, mas de funcionamento. A experimentação substitui de

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uma vez por todas a interpretação. O signo como afecto e relação de forças suplanta o significante, linguístico ou psicanalítico. Disso resulta um interesse pelas ciências sociais, em particular pela economia, história, etologia e pela teoria das civilizações, às quais até o momento Deleuze não havia consagrado análises contínuas. Sem dúvida ele utilizava o esquema nietzschiano de clivagem entre forças ativas e reativas para proceder à crítica ativa das civilizações e do niilismo e consagrava longas análises à Marx em Diferença e Repetição, mas se trata agora de pensar as artes como “a atualização de uma potencialidade revolucionária” 29. O artista, como médico da civilização, recebe um papel político e o efeito da arte se determina em sua dupla dimensão social, como produção social e agente revolucionário. Essa abertura da arte à política é indiscutivelmente um motivo que podemos datar com precisão. Em 1967, Deleuze atribui à arte um propósito mais elevado do que aquele dado à sociedade ou ao estado, e saudava Nietzsche como filósofo intempestivo, aquele que permite escapar dos perigos convergentes da eternidade e do histórico 30. Não se tratava de engajar a arte em sua dimensão política e histórica, e se reparamos uma alusão ao marxismo, este é reenviado de volta à eternidade, como duas atitudes convergentes e recíprocas que negam a verdadeira temporalidade da obra. O que é evidente para Nietzsche, é que a sociedade não pode ser a última instância. A última instância, é a criação, é a arte; ou melhor, a arte representa a falta e a impossibilidade de uma última instância. Desde o início de sua obra, Nietzsche sustenta que há fins “um pouco mais elevados” que aqueles do Estado, que aqueles da sociedade. Desde o começo de sua obra, ele a instala em uma dimensão que não é aquela do histórico, mesmo concebido dialeticamente, nem aquela da eternidade. Essa nova dimensão que, às vezes, está no tempo e age contra o tempo, ele a chama de o intempestivo. É lá que a vida como interpretação sustenta sua fonte. 31

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O intempestivo permite escapar ao mesmo tempo do históricodialético e da eternidade. Mesmo se Deleuze toma o cuidado de precisar que essa posição não equivale à “um certo estetismo, uma certa renúncia à política, um ‘individualismo’ despolitizado” 32, essa sintomatologia permanece indiferente ao contexto político, e o corpo social não aparece como uma dimensão constituinte da arte. Além do mais “a alegria artista” [la joie artiste], o humor trágico e sua vis cômica 33 implicam em uma “liberação” cujo conteúdo político permanece bastante vago 34. O intempestivo, do qual falamos há pouco, não se reduz jamais ao elemento político-histórico. Mas ele chega às vezes, em grandes momentos, em que eles coincidem. [...] Mas quando um povo luta por sua liberação, há sempre coincidência de atos poéticos e de eventos históricos ou de ações políticas [...] uma alegria artista que vem coincidir com a luta histórica 35.

Ao contrário, a partir de O Anti-Édipo, livro “de lado a lado político” 36, a arte e seu efeito, pensamentos como produções determinadas como máquinas sociais, convivem agora no contexto de uma análise crítica dos processos sociais, econômicos, jurídicos e políticos. A arte não é mais dissociável de sua dimensão e de seus efeitos políticos, e recebe uma função messiânica. Não é mais a alegria artista que coincide às vezes com a luta histórica, mas o efeito político revolucionário que determina o sucesso da arte. A máquina literária assume o controle de uma máquina revolucionária que vem [...]. Não há nada tão grande e revolucionário quanto o menor. Odiar toda literatura dos mestres 37.

É preciso compreender que essa nova teoria se elabora, de início, na prática que consiste em inventar uma escritura múltipla, um pensamento coletivo, e se desenvolve nessa forma de escritura filosófica que rompeu com o isolamento soberano do pensamento, se efetuando “no meio” desse ser coletivo, Deleuze

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e Guattari. “Nós escrevemos O Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era muitos, isso já era muita gente”. É em primeiro lugar a escritura que se agencia coletivamente. O discurso filosófico se afasta do elemento privado do pensamento atribuído a um sujeito, e a relação do pensamento com a vida, que Deleuze determinava noieticamente, se define agora sob o plano empírico do devir social, da etologia pragmática, da constituição política dos sujeitos. Não existe “um” autor do pensamento, mas um devirsocial da função autor, que responde à vocação emancipadora do pensamento, e esse devir se transforma em função dos desafios e apostas que atravessam a escritura. Essa nova maneira de fazer da filosofia transforma profundamente a teoria, e o estatuto do livro muda tanto quanto a função-autor.

Félix Guattari e eu tentamos fazer uma filosofia em O Anti-Édipo e Mil Platôs, sobretudo em Mil Platôs, que é um livro denso e que propõe um bocado de conceitos. Nós não colaboramos, nós fizemos um livro e depois outro, não no sentido de uma unidade, mas de um artigo indefinido. Tínhamos, cada um de nós, um passado e um trabalho precedentes: ele em psiquiatria, em política e em filosofia, já rica em conceitos, e eu com Diferença e Repetição e Lógica do Sentido. Mas nós não colaboramos como duas pessoas. Nós éramos mais como dois córregos que se reuniam para fazer “um” terceiro que seria nós. Uma filosofia, foi para mim como um segundo período que não teria jamais iniciado e se realizado sem Félix. Então, em seguida, podemos supor que teria havido um terceiro período em que se tratava para mim de pintura e de cinema, de imagens que aparecem [d’images en apparence]. Mas são livros de filosofia.39

É por isso que o período de intensa colaboração com Guattari, experimentação de escritura coletiva, pode ser considerado de início como uma extensão da lógica da multiplicidade nos casos determinados da pintura, do cinema, da arte barroca. As publicações que Deleuze retoma solitariamente se orientam em direção à semiótica muito detalhada das artes não discursivas. A teoria da arte como máquina vital e agenciamento de signos não redutíveis à linguagem permite à semiótica se implicar na análise de casos singulares: Bacon, o cinema em seu conjunto e na diversidade de períodos, de escolas, enfim, o Barroco – que Deleuze escreve com letra maiúscula. Deleuze confirma, além disso, essa periodização.

A imagem, afecto e percepto Assim, Deleuze explora a literatura, depois se interessa pelas artes não discursivas, pela pintura, pelo cinema, segundo uma trajetória que se desloca da linguagem em direção à matéria da percepção. A definição da arte como captura de forças e depois como imagem corresponde a esse movimento. Elaborada de início a propósito da literatura, e levada com Francis Bacon: Lógica da sensação em 1981 à análise da pintura, a captura de forças revela ao mesmo tempo a comunidade das artes que liga a literatura às artes não discursivas. Melhor, ela indica, inclusive para a literatura, que o efeito da arte não é redutível à sua dimensão linguageira, mas reclama uma semiótica de efeito irredutível ao discursivo, uma verdadeira lógica da sensação. É essa semiótica, essa filosofia não linguística do signo, que conduz Deleuze a definir a arte, nos anos oitenta, como captura de forças com Bacon, depois como imagem em A imagem-movimento e A imagemtempo, os dois volumes consagrados ao cinema. Após ter se apoiado na experiência da arte para conduzir a filosofia a uma reforma de sua imagem do pensamento, como a vimos em Proust e os signos em 1964, Deleuze abre agora a arte a uma via nova, ao mesmo tempo

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Um livro não tem um objeto nem um sujeito, ele é feito de matérias diversamente formadas, de prazos e velocidades muito diferentes. Desde que atribuímos ao livro um sujeito, negligenciamos o trabalho das matérias e da exterioridade de suas relações [...] 38

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em que transforma a definição da imagem. A imagem, tal como ele a concebe, seguindo Bergson, se inspirando na análise de Matéria e memória, não é uma cópia, um duplo mental, e ainda menos uma representação da imaginação, ou um cliché da opinião, mas um modo da matéria, um movimento real, e o efeito da arte deve ser localizado nesse plano estritamente positivo. “Uma imagem não representa uma realidade suposta, ela mesma é toda sua realidade” 40. Longe de ser uma ficção da cultura, um critério antropológico, a arte, em Deleuze, toma a consistência e a inocência de um efeito de subjetivação, que faz palpitar afectos na matéria. A arte é real, ela opera efeitos reais sobre o plano das forças e não das formas. Disso resulta um deslocamento muito original da fratura entre real e imaginário, o imaginário deixando de ser concebido como uma ficção mental, e a arte como uma distração da cultura. Enquanto a crítica da interpretação, formulada à propósito da literatura, insiste sob a dimensão não literária das artes que não passam, de início ou exclusivamente, por meio da língua, Deleuze insiste constantemente sobre o aspecto real do imaginário, de modo que as imagens devem ser tomadas sob um modo literal e não significante, e que se trata de restituir ao pensamento que elas produzem por extração e não por abstração. O imaginário não é irreal, mental e subjetivo, mas propõe uma indiscernibilidade relativa do real e do irreal, indiscernibilidade que a noção de captura permite explicar. Todas as imagens são literárias e devem ser tomadas literariamente, de modo que o pensamento não é separável das imagens, mas ele não é significado por elas como um conteúdo abstrato que elas representariam. Há um canto de guerra para as artes não discursivas, que não são obrigadas a repetir ou a desconstruir formas, e nem remeter ao regime significante. Não que elas sejam privadas de inteligibilidade ou de pensamento, mas elas não são redutíveis a uma significação, ainda menos a uma significação

discursiva. Captura de forças e imagem solicitam um pensamento no nível da sensação. A arte não opera em uma dimensão subjetiva privada e mental: ela não é redutível nem a um sistema simbólico, nem a um chamado imaginário, ao fantasma ou ao sonho, mas ela produz realmente imagens que fazem pensar. “Não há pensamentos abstratos que se realizam indiferentemente em tal ou tal imagem, mas pensamentos concretos que não existem senão nestas imagens e em seus meios”. Temos aí uma definição da realização em arte: “uma imagem não vale senão pelos pensamentos que ela cria” 41. Em 1981 Deleuze consagra, enfim, uma obra inteira às artes não discursivas, mergulhando na obra de Francis Bacon. Se ele havia dedicado à pintura e à música numerosas análises e alguns artigos, é a primeira vez que ele se confronta diretamente com o conjunto de uma obra pictórica e se arrisca a essa semiótica da obra definida anteriormente a propósito da literatura. Trata-se de pensar o “sistema das imagens e dos signos independentemente da linguagem em geral”. É toda a dificuldade de uma análise da pintura, que não pode redobrar a obra a descrevendo, nem cair em uma conversa sentimental e metafísica aplicada 42. A pintura é a-significante e a-sintática, precisa Deleuze, porque ela não exibe palavras em uma ordem sintática. Sua matéria não é linguisticamente formada, mas nem por isso é desprovida de efeitos sobre o pensamento. Deleuze se dedica a apreender essa massa plástica, a detalhar a maneira que ela possui de investir nosso olho, erguendo “diante de nós a realidade de um corpo, linhas e cores” 43. A imagem não é um enunciado, e solicita uma lógica da sensação não discursiva e não uma lógica da significação. “Também devemos definir, não a semiologia, mas a ‘semiótica’ como o sistema das imagens e dos signos independentes da linguagem em geral”. Disso deriva a dificuldade de uma análise das artes não discursivas, porque se trata de levar ao discurso isso que não devém do discurso, e de extrair o pensamento dessa matéria sígnica não

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linguística mas nem por isso amorfa, mas “bem formada semioticamente, esteticamente, pragmaticamente” 44. Esta tripla designação do signo, irredutível à linguagem, sensível e produtora de um efeito, permite essa lógica da sensação que Deleuze concebe com Bacon, e que responde, a deslocando, da lógica do sentido que ele efetuava em 1969. Passando do sentido à sensação, passamos de um regime da obra ainda centrado sobre a esfera mental significante a uma lógica da sensação, verdadeira definição programática da estética, como lógica do sensível. A imagem, nesse sentido novo e decisivo, não é uma representação, um duplo, mas uma composição de relações de forças, feitas de velocidades e lentidões, que conhecem igualmente uma variação de potências, um afecto. Se a imagem é uma realidade, e não uma visão mental, ela não é uma representação da consciência (um dado psicológico), nem um representante da coisa (uma visão do objeto). Deleuze a compreende em um sentido bergsoniano, como uma aparição, um sistema de ações e reações ao nível da matéria ela mesma, de modo que a imagem não tem nenhuma necessidade de ser percebida, mas existe em si como oscilação, vibração, movimento. A partir desse movimento do pensamento em direção à imagem é que nós desejamos restituir aqui alguns itinerários 45.

Notas de fim [ 1 ] Sobre os vinte e seis títulos que constam em sua bibliografia, dez são dedicados à arte – acrescenta-se que nove títulos são dedicados ao exame explícito da obra de um filósofo, e que nove títulos são assinados em parceria. Filosofar sobre a arte, sobre a filosofia, escrever a dois, por justaposição, como acabamos de ver, ou por coescritura (com Guattari, Parnet, Fanny Deleuze) – estes três modos de exposição estão sistematicamente ligados. (Nota da Autora, apresentada daqui em diante como N.A) [ 2 ] DELEUZE et FOUCAULT, Introduction Générale, F. Nietzsche, Le Gai Savoir, et fragments posthumes, t. V des Œuvres complètes, G. Colli et M. Montinari (éd.), tr. fr. P. Klossowski, Paris, Gallimard, 1967, p. I-IV, rééd. In FOUCAULT, Dits et écrits, sous la direction de D. Defert et F. Ewald, Paris, Gallimard, 1994, t. I, p. 561-564. A citação encontra-se na p. 563-564. Ver também Michel Foucault et Gilles Deleuze veulent rendre à Nietzsche son vrai visage (entretien avec C. Jannoud), Le Figaro littéraire, n° 1065, 15 septembre 1966, p. 7, rééd. In FOUCAULT, Dits et écrits, t. I, p. 549552. (N.A.) Tradução brasileira: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. v. 2. p. 37. (Nota dos tradutores, apresentada daqui em diante como N.T.). [ 3 ] DELEUZE, Gilles. Foucault, Paris: Les Editions du Minuit, Coll. « Critique », 1988. (citado, daqui em diante, como F), p.50. (N.A) Tradução brasileira: DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna Martins. Revisão de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2013. p. 52. (N.T.). [ 4 ] DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Dialogues. Paris : Flammarion (Champs), 1996. (N.T.). [ 5 ] Deleuze chega a opor categoricamente a semiótica – teoria não linguística do signo – à semiologia. Mas raramente ele também toma semiologia no sentido de “semiótica”, ao falar de Peirce, por exemplo, que inventa uma lógica não linguística do signo intitulada “semiologia”, ou quando ele se dirige à um público Anglo-Saxão acostumado com a terminologia peirceana. Em todos os outros casos, o termo semiótica é empregado, e a semiologia assume o valor da semântica, a teoria linguística do signo, que Deleuze critica duramente. Por exemplo, para o prefácio da edição inglesa de Nietzsche e a Filosofia, quando ele fala de Peirce, Deleuze escreve semiologia. Em qualquer outra parte, semiótica. Ver DELEUZE, Gilles. Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995. Paris: Minuit, (citado daqui em diante como RF), p.188, e L'Image-mouvement (citado, daqui em diante, como IM), p.101. (N.A.) Edição brasileira: DELEUZE, Gilles. Imagem-Movimento. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 83. (N.T.). [ 6 ] DELEUZE, Gilles. Description de la femme. Pour une Philosophie d’autrui sexuée. In Poésie 45, n 28, octobre-novembre 1945, p.28-29 ; Introduction In DIDEROT, Denis. La Religieuse. Paris: Collection de L’Ile Saint-Louis (dépôt de vente 1, rue Bruller, Paris XIV, 1947, p VII-XX. (N.A). [ 7 ] DELEUZE, Gilles. Mystère d’Ariane(sur Nietzsche). In Bulletin de la Société française d’études nietzschéennes, mars 1963, p.12-15, rééd. Philosophie, 17, hiver 1987, p.67-72. O documento revisado foi reeditado no Magazine Littéraire, n.298, avril 1992, p.21-24, antes de ser republicado em Crítica e Clínica. (N.A.).

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[ 8 ] O texto sobre Espinoza é escalonado por um período de onze anos: Spinoza. Textes choisis. Paris: PUF, 1970. A segunda edição aumentada modifica o título: Spinoza. Phisosophie pratique Paris: Minuit, 1981 (daqui em diante citado como SSP), adicionando três novos capítulos (III, V e VI pois “Spinoza et nous”, havia sido objeto de uma publicação separada na Revue de Synthèse, vol. III, n.89-91, janvierseptembre 1978, p.271-277) e suprime as passagens escolhidas das obras de Espinoza. Existe, portanto, uma história do livro que passa propriamente por uma transformação de seu gênero literário, do manual escolar à monografia audaciosa. Em Foucault de 1986 encontra-se o mesmo fenômeno, onde se retoma, modificando-as, as revisões sucessivas que Deleuze fez de A Arqueologia do Saber (1969) e de Vigiar e Punir (1975), e as apresenta agora encaixadas numa nova estrutura, onde elas formam os primeiros capítulos. A elaboração do livro se desenvolve, portanto, durante dezesseis anos, ao passo que as revisões diacrônicas se transformam, ao longo do caminho, em momentos conceituais: “Um novo arquivista” (revisão de Foucault, A Arqueologia do Saber), in Critique, n.274, mars 1970, p.195-209, reeditado uma primeira vez em volume separado, Paris Fata Morgana, 1972, e Escritor? Não: um novo cartógrafo (revisão de Foucault, Vigiar e Punir) in Critique, n.343, décembre, 1975, p. 1207-1227. (N.A.). [ 9 ] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. La synthèse disjonctive. L’Arc, n. 43, Klossowski, 1970, p.54-62, retomado e revisado em L’Anti-Oedipe. (N.A.). [ 10 ] GUATTARI, Félix. Les années d’hiver 1980-1985. Paris: Barrault, 1986, p.287. No momento em que o próprio Deleuze deixou de utilizar a noção, Guattari, propôs a este termo uma definição suficientemente esclarecedora a tal ponto que ela merece ser reproduzida aqui. “Enunciação coletiva: as teorias linguísticas de enunciação centram a produção linguística sobre os sujeitos individuais, embora a língua, por essência, seja social e seja, igualmente, ligada diagramaticamente sobre realidades contextuais. Além das instâncias individuais de enunciação é necessário, portanto, atualizar os agenciamentos coletivos de enunciação. ‘Coletivo’ não deve ser entendido aqui somente no sentido de um agrupamento social; ele implica também a entrada de diversas coleções de objetos técnicos, de fluxo material e energético, de entidades incorporais, de ideações matemáticas, estéticas etc.” GUATTARI, Les Annés d’inver, op cit., p.289. Com sua inflexão marxista, e seu relativo peso léxico, a noção é tipicamente guattariana. Em Les Années d’hiver, Guattari propôs um glossário muito esclarecedor de diferentes conceitos típicos da obra a dois: corpos sem órgãos, rizoma, agenciamento, territorialidade etc. (N.A.). [ 11 ] DELEUZE. G.; BENE, C. Superpositions. Paris: Minuit, 1979 (citado daqui em diante como S). O livro é lançado na Itália em 1978 e apenas em 1979 será publicado na França. (N.A.). [ 12 ] DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Rhizome, 1976 (citado R) e F, 68, 69. (N.A.). [ 13 ] DELEUZE, G. Critique et Clinique, 1993 (daqui em diante citado como CC). (N.A.) Edição Brasileira: DELEUZE, G. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. (N.T.). [ 14 ] Isso não significa que a colaboração com Guattari se limita a estas duas obras. Mas o enquadramento dos dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia é muito claro. Durante o período de 1972-1980, todos os volumes que Deleuze publica são livros coescritos, mesmo que não sejam todos com Guattari: com Guattari em 1972, O Anti-Édipo, em 1975 Kafka, em 1976, Rizoma, que fará a introdução de Mil Platôs e em 1980, Mil Platôs; Deleuze publica igualmente com Claire Parnet Conversações em 1977 e Superposições com Carmelo Bene em 1978 (na Itália) e em 1979 (na França). Será preciso esperar 1991 para ver a publicação da nova e última co-publicação com Guattari: O que é a filosofia?. (N.A.).

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[ 15 ] Deleuze, G e Guattari, F. L’anti-Œdipe. Paris: Minuit, 1972 (citado AO) e Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980 (citado MP). (N.A). Edições Brasileiras: DELEUZE, G e GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Luis B.L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2011 e Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. (N.T.). [ 16 ] DELEUZE, G. Pourparlers, 1991 (citado PP), p. 230. (N.A.) Edição Brasileira: DELEUZE, G. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. (N.T.). [ 17 ] DELEUZE e FROMANGER, Fromanger, le peintre et le modèle. Paris: Baudard Alvarez, 1973. A aproximação com Foucault é aqui, como sempre, interessante: ver FOUCAULT, La peinture photogénoque, plaqueta para a exposição de Gérard Fromanger, Le désir est partout, na Galeria Jeanne Bucher, 53 rue de Seine, Paris 6E, de 27 de fevereiro à 29 de março de 1975. (N.A.). [ 18 ] Esta expressão formula o título e a conclusão da primeira versão de Proust em 1964.Conservada no volume atual, ela compõe a partir de então a primeira parte. (N.A.). [ 19 ] DELEUZE, G. Proust et les signes, 1964, 1970, 1976 (abreviado PS), p. 118. (N.A.) Edição Brasileira: DELEUZE, G. Proust e os signos. Tradução de Antônio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. (N.T.). [ 20 ] DELEUZE, PP, 195. (N.A.). [ 21 ] DELEUZE, PP, 24. A ocasião desse encontro, segundo Jean-Pierre Faye, é fornecida por um exame crítico de Diferença e Repetição e de Lógica do Sentido que Lacan deveria acolher em sua revista Scilicet, mas que ele não publicou e que Guattari traz para Deleuze. O artigo Máquina e estrutura será finalmente editado por Faye em 1972 em sua revista Change, outubro de 1972, p. 4959. Reeditada em GUATTARI, Psicanálise e transversalidade. Ensaio de análise institucional, Paris, Maspero, 1972, p. 240-248. Ver FAYE, Philosophe le plus ironique, In Tombeau de Gilles Deleuze, Y. Beaubatie (éd), Tulle, Mille Sources 2000, p. 91-99, p. 92-95. (N.A.). [ 22 ] DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Minuit, 1969, citado daqui em diante como LS. (N.A.) Edição Brasileira: DELEUZE, G. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Editora Perspectiva, 1998. [ 23 ] GUATTARI, Les années d’hiver, op. Cit., p. 82. (N.A.). [ 24 ] Ver o belo texto que Deleuze publica com Guattari: Mai 68 n’a pas eu lieu In Les nouvelles, 3-10 mai 1984, p. 75-76, reeditado em RF, p. 215 sqq, e F, 123, n. 45. (N.A.). [ 25 ] É François Tosquelles quem, nos anos 1940, deslocado à Saint-Alban pela guerra, engajado na resistência, funda a psicoterapia institucional. Tosquelles reivindicava que andamos em duas pernas, uma perna freudiana, outra marxista. Dez anos mais tarde, depois da ruptura da corrente um tanto artificialmente soldada pela experiência da Resistência e da Liberação, Jean Oury se instala em La Borde e retoma a experiência de Tosquelles, em torno de um grupo modesto de quarenta pessoas, incluindo os residentes. Sobre a psicanálise institucional, ver Jean OURY, Félix GUATTARI et François TOSQUELLES, Pratique de l’institutionnel et politique, op. cit. (N.A.). [ 26 ] “Atrás de Marx e Freud, atrás do marxismo e do freudismo, existe a realidade repugnante do movimento comunista e psicanalista. É de lá que se deve partir e é para lá que é preciso sempre [...]

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[...] retornar. E quando falo repugnante, não é apenas uma metáfora: o capitalismo reduz tudo ao estado de merda, ou seja ao estado de fluxos indiferenciados e decodificados dos quais cada uma deve pegar sua parte sobre um modo privado e culpabilizado”. GUATTARI, La révolution moléculaire, Paris, Recherches, coll “Encre”, 1977, réed. UGE, coll. « 10/18 », 1980, p. 9. Comparar essa introdução com começo de O Anti-Édipo. (N.A.). [ 27 ] DELEUZE, PP, 24-25, 186-187; DELEUZE, Dialogues. Paris: Flammarion, 1996, p. 23. Citado daqui em diante como D. (N.A). Edição Brasileira: DELEUZE, G e PARNET, C. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro, São Paulo: Escuta, 1998. (N.T.). [ 28 ] Em latim: aqui e agora (N.T.). [ 29 ] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe, 453 (citado AO). (N.A.). [ 30 ] DELEUZE, G. L’éclat de rire de Nietzsche, (Entrevista com Guy Dumur), In Le Nouvel Observateur, 5 avril 1967, p. 40-41, retomado em ID, 180. (N.A.). [ 31 ] DELEUZE, L’éclat de rire de Nietzsche, art. cit., ID, 180. (N.A) Tradução nossa. (N.T.). [ 32 ] DELEUZE, L’éclat de rire de Nietzsche, art. cit., ID, 180. O artigo, localizado sob o signo de um “retorno a Nietzsche”, saúda a publicação na França de uma tradução das Obras Completas, de Nietzsche, editadas por E. Colli e M. Montinari, projeto editorial de grande envergadura do qual Deleuze e Foucault assumiram a direção para as Edições Gallimard na França. Ele se refere também ao Colóquio de Royaumont consagrado à Nietzsche, para o qual Deleuze fez o encerramento e cujos Anais acabavam de ser publicados: Cahiers de Royaumont. Philosophie, nº vi. Nietzsche, Paris, Minuit, 1967, retomados em ID, p. 163-167. Ver também: Sur Nietzsche et l’image de la pensé, rééd ID, p. 187197, et Deleuze e Foucault, Introduction Génerale, F. Nietzsche, Le gai savoir, fragments posthumes, t. V. Des Oeuvres complètes, G. Colli et M. Montinari (Éd), tr. fr. P Klossowski, Paris, Gallimard, 1967, p. I-IV, rééd. In FOUCAULT, Dits et écrits, sob a direção de D. Denfert et F. Ewald, Paris, Gallimard, 1994, t. I, p. 561-564. Esse texto importante infelizmente não é retomado em A ilha deserta. (N.A.).

[ 39 ] DELEUZE, PP, 187; ver também PP, 15-16 et DELEUZE, D, 23-25. (N.A.) [ 40 ] DELEUZE, RF, 199. (N.A.) [ 41 ] DELEUZE, RF, 194-195. (N.A.). [ 42 ] DELEUZE, G. L’image temps. Paris: Minuit: 1985 (citado daqui em diante como IT), p. 44; RF, 168-9. (N.A.) Edição Brasileira: DELEUZE, G. A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005. (N.T.). [ 43 ] DELEUZE, G. Francis Bacon. Logique de la sensation. La Différence : 1981, rééd. Le Seuil, 2002 (citado FBLS), p. 54. (N.A). Edição Brasileira: DELEUZE, G. Francis Bacon: Lógica da Sensação. Tradução de Roberto Machado. São Paulo: Zahar, 2007. (N.T.). [ 44 ] DELEUZE, IT, 44. (N.A.). [ 45 ] Na sequência deste capítulo, Anne Sauvagnargues desenvolve o capítulo intitulado Crítica e Clínica, que explora as funções da clínica psicanalítica, assim como as análises de Deleuze de Sacher-Masoch, Nietzsche e Spinoza em relação à arte (N.T.).

REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. Description de la femme. Pour une Philosophie d’autrui sexuée. Poésie 45, n 28, octobre-novembre 1945. ______. Mystère d’Ariane(sur Nietzsche). Bulletin de la Société française d’études nietzschéennes, mars 1963, p.12-15, rééd. Philosophie, 17, hiver 1987, p.67-72.

[ 33 ] Em latim: força cômica. (N.T.). [ 34 ] “O fundamento da arte, em efeito, é uma espécie de alegria, é mesmo isso que propõe a arte. não pode haver uma obra trágica porque há necessariamente uma alegria de criar: a arte é forçosamente uma liberação que faz tudo explodir, e primeiro o trágico”. DELEUZE, G. Mystique et masochisme, (Entretien avec Madeleine Chapsal), in La Quinzaine littéraire, nº 25, 1-15, retomado em ID (a citação se encontra na p. 186). (N.A.). [ 35 ] DELEUZE, L’éclat de rire de Nietzsche, art. cit., ID, 180-181. (N.A.).

______. Mystique et masochisme, (Entretien avec Madeleine Chapsal). La Quinzaine littéraire, nº 25, 1-15, avril, 1967. ______. L’éclat de rire de Nietzsche, (Entrevista com Guy Dumur). Le Nouvel Observateur, 5 avril 1967. ______. Logique du sens. Paris: Minuit, 1969.

[ 36 ] DELEUZE, PP, 230. (N.A.). [ 37 ] DELEUZE e GUATTARI, Kafka, 1975 (citado K), p. 32, 48. Se comparamos com o artigo precedente: “Os mestres, segundo Nietzsche, são os intempestivos, aqueles que criam e que destroem para criar, e não para conservar”, art. cit., ID, 181. (N.A.) Edição Brasileira: DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Kafka, por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2014 (N.T.).

______. Spinoza. Textes choisis. Paris: PUF, 1970. ______. Marcel Proust et les signes. Paris: Presse Universitaire de France, 1964, 1970, 1976.

[ 38 ] DELEUZE e GUATTARI, MP, 9. (N.A.)

______. Francis Bacon. Logique de la sensation. Paris: La Différence, 1981.

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edição 15 • dezembro de 2020 Anne Sauvagnargues Artigo recebido em 15 out. 2020 e aprovado em 25 out. 2020

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ensaios visuais 282

edição 01 • dezembro de 2013 Adriane Hernandez; Roger Coutinho

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Anne Sauvagnargues

[ 1 ] SAUVAGNARGUES, Anne. Somos nada mais que imagens. Entrevista concedida a Édio Raniere. Revista Polis e Psique, v. 10, n. 1. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFRGS, Porto Alegre, 2020.

Carnet Japon avril 2015

Japan April 2015 notebook

As pinturas de Anne Sauvagnargues que apresentamos a seguir compõem

The paintings by Anne Sauvagnargues presented in this visual essay compose

o Carnet Japon avril 2015, e foram todas realizadas durante sua viagem ao

her Carnet Japon avril 2015 (Japan April 2015 notebook), all made during her

Japão, em abril de 2015. Assim como este caderno, Anne Sauvagnargues

trip to Japan, in April 2015. Like this notebook, Anne Sauvagnargues makes

coleciona dezenas de outros, com imagens capturadas em seu cotidiano de

other ones, collecting images captured during daily displacements, most of

deslocamentos, na maioria das vezes de casa à universidade, sempre no

the time in transit from home to the university, always on the subway, train or

metrô, trem ou outros meios de transporte públicos. Como professora de

other public transportation. As a philosophy teacher, Anne's visual practice,

filosofia, a prática visual de Anne, que se considera em primeiro lugar artista,

considering herself first and foremost an artist, has become more intense, in

ganhou corpo, tempo e espaço neste lastro de movimentos.

time and space, with the weight of these movements.

Para ela este contexto elabora um dispositivo de pintura particular, pois o

This context elaborates a particular painting device to her, because the work

trabalho acontece no deslocamento, na velocidade da circulação, que faz

happens during the displacement, in the speed of circulation, which makes

com que tudo desapareça num instante. Por isso há uma grande limitação

everything disappear in an instant. That is why there is a great limitation in

em relação à técnica e aos materiais que ela utiliza nestas pinturas, e é esta

relation to the technique and the materials that she uses in these paintings,

limitação que lhe oferece a técnica. Ela se senta com o caderno sobre as

and it is this limitation that the technique offers her. She sits down with her

pernas e alguns pincéis especiais de feltro à mão e inicia o trabalho. O que

notebook on her legs and some special felt brushes at hand and starts the

vemos são cenas sobrepostas: uma estação de metrô está logo ao lado

work. What we see are overlapping scenes: a subway station is right next to

de uma placa de avisos, seguida de uma cena de paisagem urbana, com

a notice board, followed by a scene of urban landscape, with buildings and

prédios e praças, logo abaixo do traço rápido de pessoas à espera, de um

squares, just below the quick stroke denoting people waiting, a receptionist

recepcionista atrás de um balcão, de uma ponte vista ao longe, etc.

behind a front desk, a bridge seen in the distance, etc.

Para Anne Sauvagnargues a imagem compreende uma dimensão do

For Anne Sauvagnargues, the image comprises a dimension of movement

movimento que ultrapassa nossa concepção estática desta. A imagem é

that goes beyond our static conception of it. The image is always sensory

sempre sensório-motora e age sobre nosso sistema nervoso, de tal modo

and motor and acts on our nervous system in such a way that all images are

que todas as imagens são já motion-picture, ou seja, imagens em movimento,

already motion-pictures, that is, images in motion, as in the cinema. To find

como no cinema. Para saber mais sobre essa prática visual e os conceitos

out more about this visual practice and the concepts it evokes, and so we

que ela suscita sugerimos conferir a entrevista publicada na Revista Polis e

suggest the interview published in Revista Polis e Psique, where Anne talks

Psique , onde Anne fala sobre seus processos de criação, e sobre o encontro

about her creative processes, and about the encounter with the philosophy

com a filosofia de Gilles Deleuze e sua importância para pensar a arte.

of Gilles Deleuze and its importance for thinking about art.

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Anne Sauvagnargues Artista visual, escritora, filósofa e uma das maiores especialistas no pensamento de Gilles Deleuze, sua obra e suas relações com a arte. Dedica-se atualmente ao desenvolvimento de uma Ecologia das Imagens, na qual conceitos da filosofia da diferença dialogam intensivamente com sua poética em pintura, e oferecem novas abordagens ao conceito de imagem. Suas obras foram exibidas em diversas exposições na França e na Suíça, e seus livros traduzidos para várias línguas. Pesquisadora da história da arte e da estética. Professora do departamento de filosofia na Université Paris-Nanterre, acolhe pesquisadores do mundo inteiro no seu Laboratório Histoire des Arts et des Représentations. asauvagnargues@gmail.com

Anne Sauvagnargues Visual artist, writer, philosopher and one of the greatest experts in the thought of Gilles Deleuze, his work and its relationships with art. She is currently dedicated to the development of an Ecology of Images, in which concepts of philosophy of difference dialogue with her visual poetic in painting, offering new approaches to the concept of image. Her works have been exhibited in several exhibitions in France and Switzerland, and her books have been translated into several languages. Researcher in the history of art and aesthetics. Professor of the philosophy department at the Université Paris-Nanterre, she welcomes researchers from all over the world in her Laboratory Histoire des Arts et des Représentations. asauvagnargues@gmail.com

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resenhas 316

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Porque esperamos [notas sobre a docência, a obsolescência e o vírus] Cristiano Bedin da Costa Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACED/UFRGS), Departamento de Ensino e Currículo. Doutor em educação pela UFRGS, cristianobc@ufrgs.br

Why we wait [notes on teaching, obsolescence and the virus] Resumo: [RESENHA DE LIVRO] Porque esperamos [notas sobre a docência, a obsolescência e o vírus] / Angélica Vier Munhoz, Cristiano Bedin da Costa, Sergio Andrés Lulkin (organizadores). 1.ed. – Porto Alegre: UFRGS, 2020. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/210654 Palavras-chave: Esperar; Docência; Vírus. Abstract: [BOOK REVIEW] Why we hope [notes on teaching, obsolescence and the virus] / Angélica Vier Munhoz, Cristiano Bedin da Costa, Sergio Andrés Lulkin (organizers). 1.ed. - Porto Alegre: UFRGS, 2020. Available at: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/210654. Keywords: Waiting; Teaching; Virus.

You’ve gotta just keep on pushing Push the sky away. Nick Cave & The Bad Seeds

As 21 notas presentes em Porque esperamos [notas sobre a docência, a obsolescência e o vírus] têm uma particularidade: não foram produzidas por professores/as e pesquisadores/as em situação de trabalho, mas durante o período inicial de isolamento social relativo ao novo coronavírus. Mais exatamente, trata-se de textos cujo convite, preparo e entrega ocorreram entre os meses de abril, maio e junho de 2020, dias em que as escolas e as universidades nas quais deveriam estar atuando os/as autores/

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as permaneciam fechadas e com todas atividades de ensino suspensas; desse modo, a sua unidade, pelo menos a sua unidade iniciática, não está em algum tema, saber ou objeto de estudo, tampouco na prática daqueles/as que assinam as produções. O que as notas reúnem é um entretempo comum, no qual as 46 vozes que por elas ecoam compartilham o mesmo estado de espera. É desde o interior desse encantamento – a espera é um feitiço que nos ordena a permanecer parados, tal como sugere Roland Barthes (2003), em passagem que serve de epígrafe e argumento da publicação – que emanam as palavras, os sons e as imagens que compõem as 100 páginas do e-book. A presente resenha diz respeito a essa própria espera, na medida em que ela nos permite inventariar alguns traços comuns àqueles e àquelas que vivem a docência e a pesquisa como práticas vitais, isto é, um gesto diário, costumeiro, e até mesmo (por que não dizê-lo?) um tanto chão. É desse solo que brotam as proposições aqui apresentadas. Breves, elas dizem respeito à poética, ao método, ao texto, ao tempo, ao espaço, ao viver-junto . 1. Disponibilizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porque esperamos é a primeira publicação das edições autonomaz, braço editorial do grupo de pesquisa Zona de Investigações Poéticas (ZIP). O arranjo pretende dar luz ao entendimento do grupo a respeito de seu próprio modo de existência: diferentes estilos de escrita, diferentes formas de trabalhar a partir de um problema comum, diferentes estratégias de produção de sentido. Circulando pelas notas, como uma espécie de subtexto, lemos a ideia – colhida em Paul Valéry (2003) – de que a ação que faz pode valer tanto ou mais que a

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coisa feita. É por meio de tal perspectiva que a criação deve aqui ser entendida. Porque a dimensão poética das notas reside precisamente no gesto coletivo que as aproxima, ou seja, o poético está presente na fantasia de organização da obra (e nos convites que da fantasia se seguem), assim como é parte dos aceites proferidos (com as produções a eles vinculadas) e do arranjo final que dispõe as partes em ordem ao articular o texto. Diferentes sonos em diferentes camas para um mesmo sonho. Questão de partilha, de proximidades instauradas em um tempo de isolamento e separações. A leitura, então, não deve se esgotar naquilo que as notas dizem. Ela precisa ocupar os espaços de transição, habitar as passagens entre uma entrada e outra, escrever seu próprio entrelugar. Porque em cada nota reside uma distância, o que também nos obriga a tomá-las exatamente como são: claras, simples, transparentes. Nenhum mistério, nenhum sentido oculto, nada a ser decifrado. Lemos a verdade dos dias (de um certo número de dias, desses dias ao mesmo tempo solitários, lentos e comuns). Daí a nitidez dessas produções, todas tão irrefutáveis, simples e evidentes quanto estar só quer dizer. 2. Apresentadas na ordem em que foram enviadas à publicação, as notas não deixam de evidenciar diferentes estados de espírito em distintos momentos de isolamento social. No entanto, cada uma mantém intacta certa ideia de urgência. Querer dizer, traçar uma superfície de contato, encontrar um meio. Desde a capa (uma apropriação de Two, de Ryuichi Sakamoto e Alva Noto (Figura 1)) até a página

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Figura 1. Capa do e-book: Porque esperamos [notas sobre a docência, a obsolescência e o vírus] Fonte: Download gratuito em: http://hdl.handle. net/10183/210654

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final (com as duas taças de cristal retratadas lado a lado, sobre um piso de concreto), tudo parece funcionar como um convite ao encontro (traçar um longo fio de tinta, tal como sugere a nota – quase derradeira, hoje tristemente sabemos – assinada por Sandra Mara Corazza). Em sua totalidade, o conjunto apresenta-se como uma montagem de palavras, sons e imagens, na qual hiperligações levam tanto para referências externas quanto para vídeos produzidos pelos autores e autoras. E há também as zonas de passagem entre as notas, textos-ecos constituídos por efeitos de leitura, tal como resíduos que se desprendem do escrito anterior e se voltam para o que está por vir. Em Porque esperamos, não há vagas. A montagem, enquanto método, faz com que tudo possa ser encarado e vivido como texto. Estilo de diagramação, espaços em branco, disposição dos caracteres nas páginas: aqui e ali, há convite ao jogo, há cena, algo a ser praticado. 3. Entender as notas como textos – aceitemos o léxico barthesiano, por meio do qual a operação textual caracteriza uma assimilação crítica e transcriadora do saber, quando é feito matéria de escrileitura – permite que possamos circular pelo conjunto tendo como guia seus efeitos, e não seus supostos significados. Tais efeitos estão fundamentalmente vinculados aos diferentes modos como o isolamento pandêmico é minado em sua potência operacional, isto é, dizem respeito ao modo como a espera, em cada uma das notas, se transmuta em palavra, som, fotografia, desenho, vídeo. Há, sem dúvida, uma pedagogia da espera, mas tal pedagogia não está

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vinculada ao ensino de determinada maneira de habitar e perceber seus cenários. Ao contrário, trata-se de uma percepção liberada por certa suspensão temporal e de seus efeitos de sentido no espaço. Afetivos, tais efeitos são sempre singulares, visto que dizem respeito ao corpo, suas velocidades e lentidões. Nenhuma vontade de ensinar algo, portanto. Nenhum desejo de dizer o que e como fazer. O que lemos, vemos, assistimos e ouvimos são espécies de testemunhos, prestados a partir de vivências bastante diversas: uma noite silenciosa ou uma série de postagens em rede social, um sonho, uma leitura, a paternidade e a maternidade, um podcast sobre filosofia, um desabafo, um medo irremediável, um grupo de estudos virtual... A qualidade textual dessas notas está vinculada à sua condição humana, já que não pretendem legitimar nenhum saber institucional, e sim o uso um tanto íntimo e gratuito que os autores e autoras fazem dos signos que movimentam em suas produções. É tudo o que nós, leitores, recebemos em mãos: algo do cotidiano, nuances de vida, alguns recortes operacionais, modos de resistir: num pensar que desliza em silêncio, numa quietude feliz, no abandono exposto, num filtro dos sonhos, numa queda, na gata que sorri, numa nuvem (a senha é amor). 4. Apartada de sua rotina, sem seus costumes e vícios institucionais, a docência é uma coisa quase qualquer. Longe da realidade da aula, espaço-tempo por excelência que a permite traçar a singularidade de seu fazer, a docência existe menos, torna-se mínima, perde a forma. A noção de obsolescência (sugerida à publicação pela obra de William

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Kentridge), está longe de indicar, no entanto, um final ou abandono definitivo. Encarada como princípio poético, ela quer funcionar como uma imagem de pensamento que fundamenta um estilo de pesquisa, marcado pela recusa a acompanhar o tom dominante de determinado contexto histórico. Há lamento, obviamente, mas não há ideia de falta. Há esboços, esforços prospectivos, fantasias de percursos outros. Há tanto despedidas quanto há curiosidade, há persistência do antigo e também abertura ao que se anuncia, ainda de forma sombria, no horizonte. Sobretudo, há um tipo bastante especial de obsolescência praticada, o exercício próprio de vozes que sabem estar habitando uma passagem (tal qual uma vida que, pacientemente, põe-se a velar a própria história) – e é precisamente nesse ponto, nesse gesto, nesse uso poético do tempo do vírus, que a docência, mesmo sem querer, reencontra sua potência: e então, enquanto esperamos, aprendemos que o silêncio, que a retirada e o deixar-se ir, podem funcionar como artifícios de criação. 5. Fazer ateliês de lares distantes, e de seu conjunto um espaço textual. Fazer do texto uma zona de contato, tráfego e poligrafia. Investigar o agora no qual se escreve, o agora em que se toca, o aqui e agora de onde se diz. Propor entradas, passagens, cruzamentos, saídas. Um esforço político. Se é verdade que as palavras existem porque existe a espera (o antes de) e o efeito (o depois de), é necessário aceitar – eis algo que extraio das notas sobre as ligações, propostas por Gonçalo Tavares (2012) – que o durante é um tempo sempre mudo e, por isso,

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aterrorizante (o tempo pandêmico: o tempo da urgência do ínfimo movimento e da paciência do discurso). Dentro de casa, o corpo é uma máquina curta que não chega a produzir senão a sua própria imagem. Na janela, o solitário imagina. Frente ao espelho, o vaidoso faz gestos. Diante da tela, é impossível não temer o pior. Em meio ao texto, recorta-se, seleciona-se. A criação é fruto do medo de que a memória do presente ocupe por completo o pensamento. Não querer ser capturado pelo presente: fazer força, ler, traçar, lançar. A crença: se toco no vestígio, algo, afastado de mim, será tocado, se sentirá tocado, interrompido em seu percurso. Ou, ao contrário, a dúvida: se agarro o vestígio, aquilo que lhe deu origem aumentará, algures, a sua velocidade? O relevante, o pressentimento, o esboço de aprendizagem: interferir nos vestígios é intervir naquilo que lhes deu origem. Um vestígio (algo como uma nota assinada) é uma coisa que toca, e não apenas uma coisa tocável. É isso o que advém desses textos. Seu espaço de atuação comum. Um espaço a ser apropriado, deslocado, disseminado. 6. Chegará o dia em que poderemos, talvez, nos posicionar diante dessas notas com o estranhamento inerente à distância. Por ora, elas ainda soam próximas demais, mesmo que, sem dúvida alguma, componham o arquivo de um tempo passado. A urgência que as alimenta é também o efeito de certa ingenuidade, qualidade de quem produz tateando uma realidade nova, de extensão e nuances ainda desconhecidas. Hoje, no Brasil, os números indicam mais de 265 mil mortes em

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consequência da COVID-19. A contagem avança, os casos aumentam, agora em ritmo crescente. Passado um ano desde o início da pandemia, já não há ingenuidade alguma. O ensino e as demais atividades universitárias em modo remoto acontecem em um contexto marcado por sucessivos erros e reais atrocidades cometidas pelas diferentes esferas governamentais. Não mais esperamos, tampouco fabulamos algum por vir: o que há, o que fizemos deste tempo, é o que aqui está, o espaço no qual temos realizado nossa prática, dia após dia, fora da linha de frente. Tracemos outras linhas. Tracemos as nossas, nossos limites, nossa zona de jogo e criação. Sigamos fazendo. Pela pesquisa, pela aula, pelo texto. Porque já não somos mais aqueles e aquelas que lá estavam e esperavam, e no entanto, foi lá, naqueles dias e naquelas noites, que tivemos tempo para aprender e arranjar o que essas notas ainda dizem: em educação, assim como na vida, o primeiro trabalho, o esforço básico, é o trabalho de criar um modo de viver-junto. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. TAVARES, Gonçalo. Breves notas sobre ciência; breves notas sobre o medo; breves notas sobre as ligações (Llansol, Molder e Zambrano). Lisboa: Relógio D’Água, 2012. VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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¶ Esta revista é composta pela família tipográfica Proxima Nova, feita em 2005 por Mark Simonson e que é baseada na Proxima Sans, de 1994 e do mesmo autor.

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