Anais ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES - PARTE 1

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ANAIS DO ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES i 9 -11 de Outubro, 2012 São Paulo


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ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES

Rejane Galvão Coutinho, Monica Baptista Sampaio Tavares, Mauricius Martins Farina (Coords.)

9 -11 de Outubro, 2012 São Paulo

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ANAIS DO ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES Editoração e Supervisão Rosângela Aparecida da Conceição Design Gráfico Isabel Carvalho Web Design Mariana Maia Catalogação Sebastiana Freschi - CRB-8/3938

Ficha catalográfica - Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes/UNESP Sebastiana Freschi - CRB-8/3938

ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES (2012: São Paulo, SP) A786

Anais [de] ARTE_PESQUISA [recurso eletrônico]: INTER-RELAÇÕES: 9, 10 e 11 de outubro 2012 / coord. Rejane Galvão Coutinho, Monica Baptista Sampaio Tavares e Mauricius Martins Farina. São Paulo: UNESP - Instituto de Artes, 2012. Internet http://arte-pesquisa.blogspot.com.br Evento organizado pelos Programas de Pós-Graduação em: Artes da UNESP, Artes Visuais da USP e Artes Visuais da UNICAMP. ISBN 978-85-62309-06-9

1. Arte. 2. Artes visuais. I. Coutinho, Rejane Galvão. II. Tavares, Monica Baptista Sampaio. III. Farina, Mauricius Martins. IV. Título. CDD: 700

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APRESENTAÇÃO

O ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES é um evento organizado pelo Programa de PósGraduação em Artes da UNESP, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da USP e Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UNICAMP e tem como objetivo estimular discussões e trocas entre os três programas de pós-graduação em artes e artes visuais no estado de São Paulo, que acontecerá bienalmente, cada vez em uma das instituições. Esta edição teve como foco a qualificação das pesquisas no campo das artes, com a participação de palestrantes nacionais e internacionais que debateram questões ligadas à temática da pesquisa nas dimensões estética, histórica e cultural, além de contemplar mostra de arte, espetáculos de dança, música e cênicas. Seguindo a tendência contemporânea, o evento almejou ser amplo o bastante para abranger diversas áreas, pensadas em sua relação com as políticas públicas e com as diversas instituições culturais nacionais e estrangeiras. Assim, um dos objetivos do encontro foi favorecer um intercâmbio, estreitar trocas e incentivar pesquisas multidisciplinares. Os artigos desta publicação eletrônica foram selecionados pela Comissão Científica, sendo sua publicação vinculada à apresentação, presencial ou por videoconferência, ao longo do evento. Desta forma, temos dez na linha Arte-educação, vinte e quatro na linha História, Teoria e Crítica da Arte, e trinta e dois na linha Poéticas e Linguagens, totalizando em sessenta e seis. Temos muito a agradecer, pois tudo isso não se faz sozinho: o encontro atingiu um patamar de importância que pôde contar com a presença de pesquisadores estrangeiros de renomadas instituições. Além disso, o evento continua a se beneficiar com a participação e o reconhecimento do qualificado corpo docente e discente das três universidades e seus respectivos programas de Pós-graduação. Lembramos também, e agradecemos a participação indispensável dos servidores técnicos do Instituto de Artes da UNESP, bem como o suporte que nos foi dado pelos responsáveis pelo auditório do Instituto de Física Teórica. Registramos os nossos agradecimentos aos grupos de pesquisa GIIP e CAT, a Fundação OSESP, aos editores da Revista ARTE!Brasileiros, do Mapa das Artes, da Revista Digital ART&. Ressaltamos o precioso auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Comissão Organizadora

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ARTE_PESQUISA: INTER-RELAÇÕES 9 -11 de Outubro, 2012 São Paulo

Comissão organizadora Mauricius Martins Farina (coord. programa de pós-graduação em artes visuais - UNICAMP) Monica Baptista Sampaio Tavares (coord. programa de pós-graduação em artes visuais - USP) Rejane Galvão Coutinho (coord. programa de pós-graduação em artes - UNESP) Comissão de produção Gilbertto Prado (USP), José Spaniol (UNESP), Maria de Fátima Morethy Couto (UNICAMP), Marta Luiza Strambi (UNICAMP), Rosangella Leote (UNESP), Sônia Salzstein (USP), Sumaya Mattar (USP) Comissão Científica Afonso Medeiros (UFPA), Bernard Darras (Université Paris I), Francisco Laranjo (Univ. Porto), François Soulages (l'Université Paris VIII), Lucia Gouvêa Pimentel (UFMG), Luis Alberto Freire (UFBA), Luis Sergio de Oliveira (UFF), Milton Sogabe (UNESP), Mirtes Marins de Oliveira (FASM), Sandra Rey (UFRGS), Sheila Cabo Geraldo (UFRJ), Suzete Venturelli (UnB) Comissão de Apoio Rosângela Aparecida da Conceição (mestranda - IA-UNESP), Inês Moura (mestranda - IAUNESP),Soraya Braz (mestranda - IA-UNESP), Leopoldo Tauffenbach (doutorando - IA-UNESP), Myriam Salomão (doutoranda - FAU-USP), Fábio Oliveira Nunes (pós-doutorando - IA-UNESP) Comissão de Seleção Agnus Valente (UNESP), Anna Paula Silva Gouveia (UNICAMP), Dária Gorete Jaremtchuk (USP), Eduardo Braga (SENAC), Fabio de Oliveira Nunes (UNESP), Fernando Fogliano (SENAC), Geraldo de Souza Dias Filho (USP), Gilbertto Prado (USP), Jose Leonardo do Nascimento (UNESP), Liliam Amaral (UNESP), Lucia Helena Reily (UNICAMP), Luise Weiss (UNICAMP), Luiz Cláudio Mubarac (USP), Lygia A. Eluf (UNICAMP), Márcio Périgo (UNICAMP), Marco Antônio Alves do Valle (UNICAMP), Marco Buti (USP), Marco Giannotti (USP), Marcos Solon Kretli da Silva (USP), Maria de Fátima Morethy Couto (UNICAMP), Maria José de Azevedo Marcondes (UNICAMP), Mário Ramiro (USP), Marta L. Strambi (UNICAMP), Mauricius Martina Farina (UNICAMP), Monica Tavares (USP), Omar Khouri (UNESP), Sônia Salzstein Goldeberg (USP), Sumaya Mattar (USP) Produção Executiva e Web Design Rosângela Aparecida da Conceição Design Gráfico Inês Moura

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Captação de imagens e Transmissão Online Lucas Araújo Batista, Lídia Cesaro Penha Ganhito, Felipe Morelatto Monitoria Sidiney Peterson Ferreira de Lima (mestrando - IA-UNESP), Noara Lopes Quintana Garcez Pimentel (mestranda - IA-UNESP), Camila da Costa Lima (mestranda - IA-UNESP), Myriam Salomão Myriam Salomão (doutoranda - FAU-USP)

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AGRADECIMENTOS

REALIZAÇÃO

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Índice Arte-Educação

Daiane Aparecida Isidoro Pettine

AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA NO ENSINO DAS ARTES: uma possibilidade artística e formativa

1-13

Estela Maria Oliveira Bonci, Miriam Celeste

AÇÕES PROPOSITORAS DE EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS COM CRIANÇAS DE 9/10 ANOS: a exposição “COLEÇÃO, CIÊNCIA E ARTE”.

14 - 23

Giuliano Tierno de Siqueira

A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: da tradição oral à criação de um curso de pósgraduação lato sensu

24 - 33

Hanna Talita Gonçalves Pereira de Araújo

INTERLOCUÇÕES ENTRE ARTISTAS E CRIANÇAS: pesquisa qualitativa em artes visuais

34 - 41

Heloisa Pait

A GUENIZA DE MARÍLIA - um mergulho na memória junto com alunos de graduação

42 - 51

Janaína Quintas Antunes Priscila Zanganatto Mafra

ARTE E TECNOLOGIA: ferramentas a descobrir na aprendizagem

52 - 60

Maria Cristina da R. F. da Silva Judivânia Maria Nunes Rodrigues Giovana Bianca Darolt Hillesheim

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE ARTE: lugares acadêmicos e lugares nãoformais

61 - 74

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Renata Pereira Navajas Mancilha Barbosa

TRILHANDO CAMINHOS CONHECIDOS DA CIDADE DE SÃO JOSÉ SOB NOVOS OLHARES DAS CRIANÇAS

75 - 90

Sônia Tramujas Vasconcellos

FORMAÇÃO DO PROFESSOR PESQUISADOR DE ARTES VISUAIS: discursos e contextos

91-98

Yáskara Beiler Dalla Rosa

GT EDUCAÇÃO E ARTE DA ANPED: analisando a produção sobre formação de professores de arte

91 - 104

História, Teoria e Crítica da Arte

Alena Rizi Marmo

APROPRIAÇÃO, TRANSFORMAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO COMO PRÁTICAS NA PRODUÇÃO DE LUIZ HENRIQUE SCHWANKE

105 - 116

Ananda Carvalho

CURADORIA EXPANDIDA: processos de criação em rede a partir de julio plaza e ricardo basbaum

117 - 126

André Guilles Troysi de Campos Andriani

A ATUAÇÃO DA FUNARTE ATRAVÉS DO INAP NO DESENVOLVIMENTO CULTURAL DA ARTE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA NAS DÉCADAS DE 70 E 80 E INTERAÇÕES POLÍTICAS COM A ABAPP

127 - 138

Andréa Virginio Diogo Garcia

OS DESAFIOS DA PINTURA FRENTE À ARTE-TECNOLOGIA

139 - 147

Arethusa Almeida de Paula

À SOMBRA DE HÉLIO OITICICA

148 - 158

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Caroline Saut Schroeder

NON À LA BIENNALE: o boicote à X BIENAL DE SÃO PAULO

159 - 172

Clara de Freitas Figueiredo

A “MORTE DA PINTURA” COMO “ENCOMENDA SOCIAL”: do construtivismo de laboratório ao produtivismo

173 - 200

Danielle Manoel dos Santos Pereira

ATRIBUIÇÃO CONFIRMADA: a pintura do forro da nave dos terceiros do Carmo em Mogi das Cruzes (SP)

201 - 214

Eduardo Augusto Alves de Almeida Eliane Dias de Castro

CONCEPÇÕES DE CORPO NA ESTRUTURAÇÃO DO SELF DE LYGIA CLARK

215 - 228

Eduardo Tsutomu Murayama

A PINTURA DE JESUÍNO DO MONTE CARMELO NA IGREJA DO CARMO DE SÃO PAULO: de painel invisível a marco na história da arte paulista

229 - 238

Fabricia Cabral de Lira Jordão

A CRIAÇÃO E ATUAÇÃO DO NAC/UFPB NO PERÍODO DE 1978|1985 EM JOÃO PESSOA.

239 - 247

Josimar José Ferreira

‘AS FIANDEIRAS’: bricolagens, inter-relações e desdobramentos de um mito.

248 - 259

Lúcio Reis Filho Alfredo Suppia

O LABORATÓRIO DE MÍDIAS LOCATIVAS E CINEMA GPS (LALOCA) E A PESQUISA HISTÓRICA: mapeamento anotativo das obras arquitetônicas do estilo art déco em Juiz De Fora, Minas Gerais

260 - 273

Marilia Mendes Machado

OPAVIVARÁ: a arte contemporânea e suas relações com o espaço do público

274 - 281

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Myriam Salomão

A CONTRIBUIÇÃO DO RESTAURO PARA UMA NOVA HISTÓRIA DA PINTURA COLONIAL PAULISTA

282 - 292

Paulo Roberto Monteiro de Araújo

ANSELM KIEFER E O PROBLEMA DA ARTE COMO SOBREVIVENTE DE SUAS RUÍNAS

293 - 300

Priscilla Barranqueiros Ramos Nannini

O ENTRELAÇAR DA PALAVRA E DA IMAGEM NA ARTE, POESIA E DESIGN

301 - 314

Ricardo Coelho

A MATÉRIA COMO EXPRESSÃO DO TEMPO NA ARTE

315 - 331

Sandra Maria de Oliveira

INVESTIGAÇÕES DE UM PROCESSO EM DANÇA: possibilidades entre o moderno e o contemporâneo

332 - 341

Sônia Aparecida Fardin

INTERLOCUÇÕES ENTRE PICTÓRICO E FOTOGRÁFICO EM CAMPINAS – 1950-1980

342 - 352

Teresa Midori Takeuchi

COR, LUZ E FIGURINO NO CINEMA NOVO E NO NOVO CINEMA BRASILEIRO

353 - 368

Thiago Gil de Oliveira Virava

‘UM BOCADO DE LOUCURA, DE DESGRAÇA E MUITO DE SAGRADO’

369 - 384

Thyago Marão Villela

O TERMIDOR ARTÍSTICO SOVIÉTICO: arquitetura construtivista e stalinismo no processo revolucionário

385 - 396

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DO TRADICIONAL AO SUSTENTÁVEL: a utilização das cinzas em vidrados cerâmicos no brasil.

397 - 407

Adriane Hernandez

POÉTICA E FENOMENOLOGIA proposições para pesquisa e ensino da arte

408 - 417

Alessandra Lucia Bochio

EES: intermídia/ tradução intersemiótica

418 - 429

Andréa Tavares

MAPEAMENTO PARA CURSO DE DESENHO POR CORRESPONDÊNCIA

430 - 447

Branca Coutinho de Oliveira Amilcar Zani Netto Heloisa Zani

A DOBRA SCHUMANNIANA: entre-planos

448 - 458

Cladenir Dias de Lima Agnus Valente

CORPO - TERRITÓRIO DE METAMORFOSES E HIBRIDISMO

459 - 469

Claudio Hideki Matsuno

DESENHO INTRUSO

470 - 478

Dora Lilia de Campos Sabor

A FOTOGRAFIA COMO ELEMENTO DIDÁTICO NO ENSINO DA ESCOLA PÚBLICA: a educação do olhar no meio ambiente construído

480 - 492

Vanessa Yoshimi Murakawa

Poéticas e Linguagens

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Fabiana Turci Salman

O SILÊNCIO ESCRITO

493 - 500

Fernanda Albuquerque de Almeida

POR UMA ESTÉTICA DO MACHINIMA

501 - 513

Gabriela Caetano D'amoreira Agnus Valente

PAISAGENS HÍBRIDAS: as multimídias e a construção das obras artísticas

514 - 529

Gina Dinucci

ANIMA: fotografia como amálgama de tempos

530 - 537

Jade Samara Piaia

MATERIALIZAÇÕES FORMAIS E COMPOSITIVAS NO DESIGN GRÁFICO VOLTADO À CULTURA

538 - 548

João Pedro Canola Pereira Agnus Valente

SUJEITO HÍBRIDO: corpo comum e corpo artístico na prática da performance art.

549 - 561

Juliana Harrison Henno

ESTUDOS DE CASO DE PROCESSOS DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA BASEADOS NA FABRICAÇÃO E PROTOTIPAGEM DIGITAL

562- 572

Lia Fernanda Ramos de Oliveira

PARÁBOLAS NONSENSES

573- 585

Liene Nunes Saddi

TECNOLOGIA E EXPRESSIVIDADE: reflexões sobre experimentações em videoarte e videoclipes na obra de Zbigniew Rybczyński

586 - 600

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Luiz Carlos Andreghetto

VISUALIDADES PICTÓRICAS: divergências e convergências entre cinema e pintura na poética de Derek Jarman

601 - 610

Lyara Luisa de Oliveira Alvarenga

PASSANTE: Corpo e imagem em experimentação audiovisual

611 - 623

Maíra Cezaretto Camargo

FRED FOREST: o poder da mídia espontânea como elemento de criação artística

624 - 633

Marcelo Salum Ferreira

COMO CONSTRUIR UM DISPOSITIVO DE ESCUTA?

634 - 650

Maria Helena Machado Farina

PORQUE SOMOS HELENAS: uma passagem entre linguagens

651 - 666

Maria Patricia Francisco

ARQUIVOS EM PROCESSO: filme, fotografia e memória

667-681

Matheus Mazini Ramos

NOVAS COMPLEXIDADES: um novo olhar para a fotografia

682-694

Mirla Fernandes Ribeiro

TERRITÓRIOS EXPANDIDOS - práticas contemporâneas de arte-joalheria

695-703

Myrna Coelho

ARTE E LOUCURA: alguns fundamentos clínico-estéticos.

704- 715

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Nardo Germano

POR UMA POÉTICA DA AUTORIA ABERTA: apropriação do sistêmico como programa poético nas artes participativas e interativas.

716 - 732

Natália Godinho Coutinho

DOUTRINA E CONFRONTO - corpo e paisagem nos trabalhos de Absalon e Natália Coutinho

734 - 743

Rachel de Castro Venturini Lucia Fonseca

ARTE NO TERRITÓRIO DO DIÁLOGO

744-761

Roseli Behaker Garcia

A PERCEPÇÃO DE ESCULTURAS POR TRÊS PESSOAS CEGAS

762-775

Sandra Minae Sato

ARDENDO EM CHAMAS

776-783

Viviane de Andrade Sá

ARQUITETURA VIOLADA: hipóteses projetuais através de práticas artísticas

784-802

Wagner Leite Viana

A PAISAGEM NA CONTEMPORANEIDADE: uma revisão do gênero pictórico a partir do belo, do sublime e do pitoresco e a atitude da “caminhada” como constituição para uma poética.

803 - 810

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AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA NO ENSINO DAS ARTES: Uma possibilidade artística e formativa Daiane Aparecida Isidoro Pettine

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Resumo: O propósito desse texto é problematizar a avaliação escolar no atual sistema educacional brasileiro e no ensino de Artes. A intenção é discutir e dar destaque a avaliação diagnóstica como processo artístico e formativo. Indagamo-nos se em Artes, uma disciplina em que criação e expressividade são pontos notórios, os métodos tradicionais de avaliação são pertinentes ou necessitam de visões específicas. Buscamos explicitar e discutir as funções da avaliação em artes e propor uma metodologia de avaliação diagnóstica e formativa que valorize a expressividade do estudante e possa a partir de seus apontamentos, traçar um panorama dos hábi tos culturais e das referências artísticas dos mesmos, para então, elaborar, adaptar ou traçar intervenções pertinentes no currículo escolar proposto nas aulas de Artes. A metodologia foi desenvolvida a partir de uma revisão bibliográfica de publicações que discutem a avaliação em artes e outras que discutem a avaliação formativa. Na articulação dos referenciais teóricos, utilizamos apontamentos de autores como Bruner, Perrenoud, Luckesi, Pilleti, Fusari, Iaverberg, Dewey, e Barbosa. Assim, propomos a discussão da relação entre expressar, diagnosticar e avaliar, verificando se tais ações e verbos são vistos como antagônicos, realizando uma revisão bibliográfica sobre avaliação em Artes e dando destaque aos discursos e práticas que confrontam a perspectiva da avaliação diagnóstica não como um fim em si mesma e compreendendo-a não como mero instrumento, mas como um dos objetivos do processo de ensino e aprendizagem. Palavras-Chave: Avaliação diagnóstic. Avaliação Formativa. Avaliação em Artes.

Summary: The purpose of this paper is to discuss the current school evaluation in the Brazilian educational system and the teaching of Arts. The intention is to highlight and discuss the artistic process as diagnostic assessment and formative. Asked ourselves whether in arts, a discipline in which creation and expressiveness are notorious spots, traditional methods of evaluation are relevant or need specific views. We seek to explain and discuss the functions of assessment in arts and propose a methodology for diagnostic evaluation and training that enhances the expressiveness of the student and may from his notes, draw a picture of cultural habits and artistic references to these, for then draw , adapt or draw relevant interventions in the school curriculum proposed in Arts classes. The methodology was developed from a literature review of publications that discuss the evaluation in arts and discussing other formative assessment. In articulating the theoretical framework, we use notes from authors such as Bruner, Perrenoud, Luckesi, Pilleti, Fusari, Iaverberg, Dewey, and Barbosa. Thus, we propose the discussion of the relationship between express, diagnose and assess whether those actions and verbs are seen as antagonistic, conducting a literature review on evaluation of Arts and highlighting the discourses and practices that confront the prospect of not as a diagnostic assessment end in itself and not understanding it as a mere instrument, but as one of the goals of teaching and learning. Keywords: Diagnostic evaluation. Formative Assessment. Evaluation of Arts.

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UNESP SP – Instituto de Artes

1 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


1. Avaliação em Artes, um diagnóstico A existência da Arte como disciplina escolar explicita a visão de que o ensino e a vivência artística são importantes para o desenvolvimento dos alunos. Em uma educação que se importa com os desenvolvimentos cognitivos, motores e emocionais dos estudantes, a Arte certamente tem seu espaço. Atualmente, o ensino de Arte é diversificado, não sendo voltado apenas para desenho geométrico ou artes plásticas, como já o fora, mas também, para outras linguagens artísticas como a dança, a música e o teatro, e busca oferecer aos estudantes condições para que compreendam o que ocorre no plano da expressão e no plano do significado ao interagir com as Artes, como aponta Barbosa (1978). Ao trabalhar com uma disciplina que lida com expressão, significação e criação, como adaptar a esse contexto as metodologias avaliativas? Como fazer com que os métodos avaliativos sejam condizentes com um ensino em que a expressividade e criatividade são norteadores educativos? Em que ponto da avaliação diagnóstica pode ser útil a esses objetivos? Essas foram as perguntas norteadoras e fundantes da presente reflexão e proposta. Questões que são compartilhadas por muitos autores e professores, frisadas no excerto abaixo:

'Se as aulas de Arte trilham os percursos da escolha, do gosto, do subjetivo e da pura expressão de sentimentos, o que há para ser avaliado? Se o papel do professor se resume – a tal ponto de ser desnecessário – pela ótica do despertar, cultivar ou fazer aflorar, para que avaliar? O que se espera saber se tudo o que existe já está previsivelmente guardado no repertório do aluno? Como superar dificuldades? Será mes mo que o dom sacraliza o destino – e as aprendizagens – dos alunos?” (GUIMARÂ ES, 2010: 54)

Problemática e questionamentos apontados, hora de pensar nas possibilidades e implicações vindas dos mesmos. Partindo das questões de Guimarães (2010) acima, nosso primeiro apontamento é sobre a necessidade da avaliação dentro do ensino, seja de Artes ou não. Escolhemos a perspectiva do professor Carlos Cipriano Luckesi (1995), que define a avaliação escolar como processo que existe para garantir a qualidade da aprendizagem do

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estudante com a função de qualificação e classificação. A função qualificativa avalia se a apropriação dos conhecimentos e habilidades mínimas foi atingida, auxiliando no avanço e crescimento do aluno, já a classificatória separa os alunos por níveis de aproveitamento. Luckesi defende que a função classificatória da avaliação não contribui para o desenvolvimento do aluno, já que ela só o compara com o aproveitamento de outros e não dá ênfase as habilidades desenvolvidas pelo estudante, e que a função de qualificação deve ser sim o parâmetro avaliativo. O estudante aprendeu o mínimo necessário? Ele progrediu com o processo? Essas devem ser as perguntas norteadoras de uma avaliação democrática, segundo o autor. “A prática escolar e, consequentemente, a prática docente deverá criar condições necessárias e suficientes para que essa aprendizagem se faça da melhor fo rma possível. Isso significa que a prática escolar e docente desenvolverão meios efetivos pelos quais educandos, de fato, aprendam os conteúdos que estão sendo ensinados e propostos. O acesso e a permanência na escola, não significarão nada caso esses fatores não estejam recheados pela qualidade de ensino e da aprendizagem. Um ensino e uma aprendizagem de má qualidade são antidemocráticos, desde que eles não possibilitarão aos educandos qualquer processo de emancipação.” (LUCKSE, 1995: 25)

Visando uma prática de cria condições para que a aprendizagem aconteça e vendo o aprendizado como uma possibilidade de vivência e descoberta, chegamos a uma perspectiva de que a avaliação é um processo auxiliar para que esses objetivos aconteçam. A concepção de avaliação de Luckesi está preocupada com a perspectiva de que o educando deverá apropriar-se criticamente de conhecimentos e habilidade necessárias à sua realização como sujeito crítico dentro da sociedade. Essa forma proposta pelo autor, objetiva realizar a avaliação da aprendizagem como um instrumento auxiliar de aprendizagem e não como instrumento de aprovação e reprovação dos estudantes. Ter clareza dos parâmetros a serem utilizados na avaliação, objetivos de mínimos de ensino definidos, coletar os dados pertinentes e traçar um plano de ação a partir deles, são as práticas básicas de um educador comprometido com esse tipo de visão, segundo o autor. A perspectiva da avaliação como um processo auxiliar conflui com uma visão de avaliação processual. Perspectiva que defende que a avaliação não é uma prova e sim um instrumento para análise de aproveitamento e formulação de intervenções educativas. Saindo

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das concepções e partindo para as práticas, Pilleti (1997) afirma que:

“A avaliação é (...) u m processo contínuo de pesquisas que visa interpretar conhecimentos, habilidade e at itudes dos alunos, tendo em vista mudanças esperadas no comportamento, propostas nos objetivos, a fim de que haja condições de decidir sobre alternativas do planejamento do trabalho do professor e da escola como u m todo”. (PILLETI, 1977: 121)

Na definição acima, o autor mostra que a avaliação escolar é um processo, portanto, ela é um meio e não um fim. Um meio utilizado para verificar até que ponto os objetivos estão sendo alcançados, identificando os alunos e conteúdos que necessitam de atenção ou revisão, e reformulando o trabalho com a adoção de procedimentos que possibilitem sanar as deficiências identificadas. Para que a avaliação possa ser utilizada e entendida como meio, Piletti aponta procedimentos básicos, um deles é o professor informar o aluno sobre os objetivos da avaliação e analisar com ele os resultados alcançados, fazendo o estudante perceber assim que a avaliação é um processo e não uma forma de punição. O autor também ressalta que a avaliação é um processo contínuo e não algo que se finaliza em determinado momento. Essa visão combate a ideia de que a avaliação é apenas o momento de realização de provas ou divulgação de notas. Para que essa perspectiva classificatória e punitiva seja aos poucos diluída, se faz necessário explicitar o caráter processual e contínuo da avaliação. A avaliação portanto, se caracteriza em um processo, meio e ação contínua que é comumente dividido em três fases, seu início (diagnóstica), sua execução (formativa) e ao seu término (somativa) e em cada fase é realizada uma avaliação diferenciada. 2. Avaliação diagnóstica, conceitos e perspectivas A avaliação diagnóstica tem como objetivo verificar os conhecimentos prévios e as particularidades dos alunos e da classe como um todo. Aplica-se este tipo de avaliação ao iniciar um processo, atividade, semestre ou ano letivo. A avaliação diagnóstica identifica o padrão de conhecimento dos alunos sobre os temas a serem trabalhados, identifica desejos e

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anseios dos estudantes quanto ao tema, constata as deficiências em termos de pré-requisitos e a partir dos dados coletados adapta o currículo e os objetivos educacionais a classe e aos alunos. O conceito de avaliação diagnóstica não recebe uma definição uniforme de todos os especialistas. Há quem a defina como um processo realizado para diagnosticar os pontos fracos e fortes do aluno na área de conhecimento em que se desenvolverá o processo de ensino/aprendizagem. No entanto optamos pela visão de que ela uma ação avaliativa com a função de obter informações sobre os conhecimentos, aptidões e competências dos estudantes com vista à organização dos processos de ensino e aprendizagem de acordo com as situações identificadas e não somente elencar seus pontos fortes e fracos. Philippe Perrenoud (1999) afirma que na prática da avaliação da aprendizagem não só se classificam os alunos na sala de aula, mas também, estas práticas possuem um efeito social muito mais definido: a avaliação cria as hierarquias sociais que consolidam a sociedade atual. O autor exemplifica que “certos adultos associam a avaliação a uma experiência gratificante, construtiva; para outros, ela evoca, ao contrário, uma seqüência de humilhações” (PERRENOUD,1999: 78). Assim, para este autor “avaliar é – cedo ou tarde – criar hierarquias de excelências”. Podemos observar que Perrenoud afirma que o alvo da avaliação é a promoção humana (avaliação formativa) e que o professor é um artista porque procura a beleza na formação dos alunos. Assim, refletindo o status da prática da avaliação com a leitura da obra de Perrenoud, surge uma missão social para os professores: não perenizar a hierarquia social. Por isso, considerando as palavras de Perrenoud, rechaçamos a visão de que a avaliação diagnóstica se atem somente a análise de facilidades e deficiências por considerarmos que tal perspectiva seja carrega nitidamente um juízo de valor aos saberes dos alunos e porque os classifica novamente entre os que “sabe m” e “os que não sabem”, estabelecendo uma hierarquia velada. Acreditamos também, que a avaliação diagnóstica possa ser muito mais do que isso, que ela pode valorizar os referenciais, hábitos, questionamentos e preferências e experiências artísticas dos envolvidos e usar tais informações para estabelecer um espaço de diálogo, discussão e interlocução sobre tais dados.

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A avaliação diagnóstica pode identificar as características de aprendizagem dos alunos, do espaço ou da comunidade e valorizar os anseios e referenciais dos sujeitos com a finalidade de escolher o tipo de trabalho mais adequado a tais características e valorizar a bagagem e referenciais dos educandos. Com esse tipo de avaliação pode-se prevenir a detecção tardia de expectativas, facilidades e dificuldades de aprendizagem dos alunos ao mesmo tempo em que se busca conhecer, principalmente, as aptidões, os interesses e as capacidades e competências enquanto pré-requisitos para futuras ações pedagógicas. As informações obtidas podem auxiliar as redes de ensino bem como as unidades escolares, a planejar intervenções iniciais, propondo procedimentos que levem os alunos a atingir novos patamares de conhecimento. Ou seja, seus resultados servem para explorar, identificar, adaptar e predizer informações acerca das necessidades, hábitos e anseios de aprendizagens dos alunos, não somente destacar suas deficiências. Optamos por usar a avaliação diagnóstica como ponto de partida para essa reflexão por considerar que o estudante chega a escola com uma bagagem cultural e artística que deve ser levada em consideração para elaboração de currículo a ser desenvolvido e de que uma análise prévia dos hábitos e desejos artísticos/educacionais dos estudantes é de extrema relevância para que as práticas e conteúdos tenham conexão com os sujeitos. Bruner (2011) critica a educação tradicional, que ignora o saber dos alunos, como se fossem “tabulas rasas” e torna professores transmissores do saber. Na opinião dele, a melhor maneira de superar essa visão e abordagem pedagógica seria considerar espaços onde os indivíduos ajudam uns aos outros, cada qual de acordo com suas habilidades. Isso significa possibilitar um espaço de troca entre todos e valorizar seus referencias artísticos. Sendo assim, se há espaço para troca, os referenciais dos sujeitos envolvidos são levados em consideração, assim como sua bagagem, repertório, expectativas e questionamentos artísticos. “O conhecimento adquirido é mais útil para alguém que está aprendendo quando ele é “descoberto” por meio de esforços cognitivos do próprio indivíduo que está aprendendo, pois, dessa forma, ele é relacionado ao que se conhecia antes e utilizado em referência a isto.” (BRUNNER, 2011: 95)

A possibilidade de estabelecer uma comparação entre parâmetros ou referenciais, é citada por Bruner no excerto acima, como impulsionador cognitivo. A avaliação diagnóstica

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surge então, no ensino de Artes, como forma de recolher dados e de valorizar a os pressupostos dos sujeitos. Mas o que é diagnosticar? Que dados são notórios de dest aque ao se realizar uma avaliação diagnóstica em uma situação artística/educativa? Buscando realizar uma avaliação não embasada em classificação e numeração e objetivando um ensino de Artes que possibilite a (re)construção de significados, usamos uma metodologia de avaliação diagnóstica que adote a avaliação como uma ação contínua explicitando seu caráter processual. "A avaliação deverá ser assumida co mo u m instrumento de compreensão do estágio da aprendizagem em que se encontra o aluno, tendo em v ista to mar decisões suficientes e satisfatórias para que possa avançar no seu processo de aprendizagem. Desse modo, a avaliação não seria tão-somente um instrumento para a aprovação ou reprovação dos alunos, mas sim u m instrumento de diagnóstico de sua situação, tendo em vista a definição de encaminhamentos adequados para a sua aprendizagem." (LUCKESI,1995: 81)

O excerto acima vincula a avaliação a compreensão de estágio de aprendizagem e não somente como instrumento de aprovação. Entretanto, a concepção de avaliação observada na prática pedagógica de muitos professores é de caráter excludente, na qual o professor avalia para selecionar, classificar e controlar, pressupondo que todos os alunos aprendem da mesma forma e no mesmo tempo. Nesse tipo de visão, raramente o aluno é efetivamente inserido como sujeito do processo avaliativo. Quando passamos a avaliar o trabalho artístico de nossos educandos temos que objetivar parâmetros para analisar e fomentar criatividade e não avaliar a sua criatividade. A criatividade, expressividade e inventividade como premissas do fazer artístico, não podem ser quantificadas. Os critérios de avaliação propostos pelo professor de Artes devem estar de acordo com o conteúdo trabalhado e com os objetivos que o mesmo estabeleceu como importantes para a aprendizagem de seu educando. A observação dentro do processo de ensino aprendizagem de Arte é fundamental para que a avaliação aconteça de maneira contínua e diagnóstica e não ocorra apenas como verificação, conforme já frisado por Luckesi. Acreditamos que avaliação diagnóstica tem uma função essencial na avaliação em

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Artes por dois fatores. O primeiro é o fato de a partir dela se formular ou adaptar o currículo, possibilitando uma confluência entre conteúdo e estudantes e que estes sejam ouvidos em seus desejos e expectativas. O segundo é o fato de formular os objetivos a serem alcançados a partir dos conhecimentos, hábitos ou referenciais prévios do grupo, como já frisamos. Há uma diferença muito grande em se desejar alcançar Z em uma turma que já passou pelo M e em outra que está em D. Conhecendo e delimitando os conteúdos de ensino, fica mais fácil e coerente se delimitar os objetivos de ensino e assim realizar uma avaliação que leve em consideração o desenvolvimento da classe ou do estudante a partir do seu ponto de partida e seu processo. Frisamos, porém, que uma avaliação diagnóstica que leve em consideração os estágios e expectativas dos estudantes em uma perspectiva formativa, deve ser acompanhada por uma avaliação de caráter processual.. Acrescentamos a esses propósitos o fato da avaliação formativa fornecer dados sobre o andamento da aula, sobre as práticas que melhor ou pior se adaptaram ao grupo, os conteúdos que precisam ser retomados e sobretudo direcionar quais objetivos necessitam ser replanejados. Acreditamos que uma avaliação diagnóstica embasadas nos preceitos citados valorize os estudantes e esteja em confluência com uma avaliação formativa, que veja todo o processo educacional/artístico como meio de colher informações e se (re)planejar. A avaliação diagnóstica, bem como a formativa e somativa, pode ser realizada por meio de conversa, entrevista, questionário, prova, observação ou revisão e os dados coletados serviram de base para nortear a avaliação ao longo do processo. Como nos referimos ao ensino de Artes e buscamos uma avaliação diagnóstica que também possa ser expressiva e formativa, sugerimos uma metodologia que além de fornecer informações sobre as expectativas e referencias artísticos dos alunos, possa ser criativa. 3. Uma metodologia diagnóstica, artística e formativa Essa metodologia foi testada e implementada nas aulas de Artes no 5º ano do Colégio Vila Mariana, em São Paulo. O objetivo era verificar os hábitos culturais dos estudantes e colher informações sobre os referenciais artísticos dos mesmos. Tal necessaidade foi diagnosticada na aula inaugural de Artes, onde conversamos sobre as linguagens das Artes e

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os estudantes (após passado o “espanto” de que Artes não era só pintura) apontaram o desejo de vivenciar diferentes experiências em distintas linguagens. Além disso, acreditamos que a metodologia era necessária ao perceber que alguns estudantes já tinham experiências interessantes com linguagens e professoras diferentes. Buscando um meio de quantificar essas experiências de uma forma organizada e criativa, foi proposto que os alunos dividissem uma folha A4 comum em dez partes e em cada parte escrevessem uma linguagem artística diferente (FIG. 1) partindo de um quadro elaborado por eles mesmos na lousa.

FIGURA 1 – Exemplo folha A 4 co m as linguagens artísticas.

Em seguida, pedimos que eles desenhassem (ou escrevessem) primeira coisa que vinha a cabeça ao pensar naquela linguagem, suas preferências quanto a linguagem ou que criassem algo que achavam que tinha conexão com o tema. A intenção era não utilizar os meios tradicionais de avaliação diagnóstica, que se limitam a anotações ou questões assertivas. Intentamos provocar os estudantes e deixá- los

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livres para criar. Nosso objetivo não era saber se alguém conhecia o pintor de Monalisa ou o autor da 9ª Sinfonia, como objetivam as avaliações diagnósticas tradicionais. Almejávamos usar os referenciais dos estudantes como conteúdos de aula e partir de seus anseios e preferências para formular o currículo e estabelecer um espaço de interlocução com tais preferências. E a partir daí citar Da Vinci ou Beethoven. Como resultado, analisamos a forma e o conteúdo desenhado ou escrito e os transformamos em resultados estatísticos para analisar a sala como um todo. O material continha um total de de 20 desenhos de 20 alunos diferentes. Osa dados coletados foram transformados em estatísticas e foram condensados em uma tabela que pode ser analisada abaixo (TAB. 1).

TABELA 1 Dados coletados nos desenhos dos estudantes Dança

Cinema

Fotografia

Teatro

Música

60% Desenho de uma Bailaria ou algo referente ao Ballet

50% Desenho de uma tv.

70% Desenho de uma fotografia.

40% Sem referência.

25% Desenho de nota musical.

30% Desenho de uma sala de cinema.

20% Desenho de uma câmera.

40% Desenho de um palco.

10% Sem referência.

10% Desenho ou nome de u ma peça infantil.

25% Desenho ou nome de Banda/Artista.

25% Si mesmo dançando 5% Familiar Dançando 5% Desenho de um rádio 5% No me de u m grupo ou música

15% No me ou desenho de um filme.

5% Desenho de um fantoche.

5% Desenho de uma câmera ou set de filmagem.

5% Desenho de um familiar.

20% Desenho de Instrumentos Musicais. 20% Desenho de Familiar Dançando. 10% Desenho de um rádio.

Pintura

Desenho

Escul tura

Quadrinhos

Gostari a nas aulas

75% Desenho de uma obra.

75% Desenho livre

50% Escultura/ referência a Argila.

95% Desenho ou referência a Turma da Mônica.

50% Pintura

10% Desenho de um p incel ou tintas.

25% Lápis

50% Sem referência.

25% Cinema 5% Música

5% Desenho de um Gib i.

5% Dança

10% Desenho de um familiar.

5% Teatro 5% Livre

5% No me de Artista/Obra.

5%Sem referência.

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De todos os dados coletados, selecionamos e arrendondamos alguns para frisar as medidas práticas tomadas a partir dos mesmos. O primeiro dado a ser ressaltado foi o número de estudantes que desenharam ou citaram familiares como artistas, 45% dos desenhos continham alguma a referência a familiares. Desse total, 60% desenharam em música, 20% em pintura 10% dança e 10% teatro. Conversando com eles sobre esse dado, percebemos que muitos tocam ou atuam em bandas ou grupos relacionados a centros religiosos e são o primeiro referencial dos estudantes ao pensar nas vertentes. Usamos essas referencias em aula, os estudantes fizeram entrevistas com os familiares citados sobre sua atuação com as linguagens e discutimos os resultados posteriormente. O interessante desse dado é a percepção de que a Arte passa a ser vista como uma atividade próxima e não mais algo restrito somente a àqueles que recebem um “dom.” O segundo dado a ser ressaltado foi a presença marcante do quadro Monalisa nos desenhos no quadro destinado a pintura. Cerca de 75% desenharam um quadro, desses quase 90% desenharam a Monalisa como referência. Acerca desse assunto, utilizamos os computadores para fazer uma pesquisa sobre Da Vinci e exploramos o Louvre pela internet para visualizar a obra original e discutir sobre ela. O terceiro dado de destaque é a presença preponderante da tv dentro da linguagem cinema. Os estudantes, refletindo sobre isso, ressaltam que o principal veículo de acesso aos filmes é a tv. Vale ressaltar também que parte deles nunca ter ido ao cinema. Em uma conversa sobre seus filmes favoritos foi proposta uma vivência cinematográfica composta sobre uma pesquisa sobre as diferentes linguagens (terror, romance, aventura e outros), aula sobre conceitos básicos de cinema, prática de roteiro e filmagem. Além do notório o uso hegemônico da argila como ferramenta para se fazer esculturas ao longo da vivência escolar, outro dado a se destacar é a prese nça preponderante da Turma da Mônica como referência em quadrinhos. Por fim, destacamos as expectativas dos estudantes quanto ao ensino de Artes. Apesar da maioria gostar e desejar as vivências em pintura em sala, é interessante a presença de diferentes linguagens entre os anseios. O uso dessa metodologia nos trouxe dados preciosos para utilizar dentro da sala. Em

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geral, os estudantes recebiam muito bem o uso de suas próprias referências como ponto de partida para as aulas. Dewey (1980) critica que o sistema de avaliação escolar da "Escola Tradicional", que incentiva a competição entre alunos e afirmava que esse sistema levava os alunos a considerarem que não deve existir apoio e cooperação entre colegas, porque tal poderia incentivar alguns alunos a não se empenharem no trabalho escolar. Assim, como o autor consideramos que a cooperação entre alunos, a livre troca de ideias, comentários e sugestões são fundamentais para o desenvolvimento das capacidades das estudantes. Valorizar seus referências e estabelecer uma interlocução entre eles e os conteúdos e vivências artística é uma forma de estabelecer esse espaço onde a avaliação diagnóstica não os separa em prérequisitos. Ao trabalhar com uma disciplina que lida com expressão, significação e criação é possível adaptar as metodologias avaliativas a esse contexto, propondo uma avaliação que instigue a criação e valorize seus referenciais artísticos. Fazer com que os métodos avaliativos sejam condizentes com um ensino em que a expressividade e criatividade são no rteadores educativos é colocar em prática uma educação coerente e uma avaliação que não visa somente classificar e sim fornecer dados e auxiliar o processo educativo em que o estudantes são o ponto de partida e de chegada. Mais que isso, é ver a arte como ciência a ser vivência, pesquisa e conhecida, mas também como ação presente em nosso cotidiano de diferentes formas a não serem rechaçadas e sim debatidas. A avaliação diagnóstica pode ser útil a esses objetivos fornecendo dados, informações, referenciais e quebrando o ciclo de classificação ou reprovação.

Referências Bibliográficas BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

______. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: Editora com Arte, 1998.

BRUNER, Jerome S. A Cultura da Educação. Porto Alegre: ArtMed, 2011. DEWEY, John. A arte como experiência. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

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FERRAZ, Maria Heloísa, FUSARI, Maria F. Metodologia do Ensino de Arte . São Paulo: Cortez, 1993. GUIMARÃES, Ana Luiza Bernado. A Avaliação da Aprendizagem em Arte. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Educação, Comunicações e Artes, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2010. HADJI, Charles. A Avaliação desmitificada. Porto Alegre: Editora Artmed, 2001. LUCKSEI, Carlos. Prática Docente e Avaliação. Rio de Janeiro: ABT, 1990. ______. Avaliação da aprendizagem escolar. São Paulo: Cortez, 1995.

MODINGER, Carlos Roberto (org.). Prática Pedagógicas em ARTES: espaço, tempo e corporeidade . Erechim: Edelbra, 2012. PERRENOUD, Philippe. Não mexam na minha avaliação! Porto Alegre: Editora Ática, 2003. PILETTI, Cláudio. Didática Geral. São Paulo: Editora Ática, 1997.

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AÇÕES PROPOSITORAS DE EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS COM CRIANÇAS DE 9/10 ANOS: A exposição “Coleção, Ciência e Arte” Estela Maria Oliveira Bonci1 Mirian Celeste Martins 2 Resumo: Escrever com bico de pena... Desenhar um mapa... Construir uma imagem a partir de imagens recortadas... Traçar desenhos simétricos... Essas e outras ações propositoras serviram para preparar crianças de 9/10 anos, alunos da rede particular de ensino da cidade de São Paulo, a vivenciarem experiências estéticas em um projeto interdiscip linar. Interligadas aos conteúdos e às práticas diversas presentes no processo educativo, apresentamos a preparação à visita da exposição “Coleção, Ciência e Arte”, no Centro Universitário Maria Antonia (CEUMA) . Intervenções pedagógicas relacionadas às obras e suas temáticas abordadas na exposição foram desenvolvidas com as crianças, sem informar às crianças sobre a exposição e o que nela iriam apreciar. A partir dos conteúdos trabalhados em sala de aula nas disciplinas de Português, Geografia, História, Matemática, Ciências e Arte, as temáticas e os problemas e experiências vividos pelos artistas e cientistas presentes na exposição foram despertados nas produções das crianças. Neste artigo serão apresentados apenas esses antecedentes à visita que foi reali zada posteriormente, seguida de outras produções artísticas e portfólios produzidos pelas crianças. As produções iniciais das crianças revelam a proximidade com as obras dos artistas e cientistas presentes na exposição. A ressignificação da experiência é o bservada em alguns dos relatos verbalizados pelas crianças após as intervenções e após o contato com a exposição, sendo possível perceber como os antecedentes foram significativos nesse processo de descoberta. A intervenção pedagógica associada à ação mediadora, sempre trará ao processo criativo a possibilidade de novas representações, novas relações de similaridades e diferenciações, novos olhares sobre aquilo que se percebe e o que se sente. É neste caminho que enveredamos pelos projetos interdisciplinares. Refletir sobre os objetivos da mediação cultural nas conexões entre escola e instituições culturais é o que se pretende com a divulgação deste artigo. Palavras-Chave: Projetos interdisciplinares. Mediação cultural. Escola. Ações propositoras. Experiências estéticas.

Abstract: Writing with pen and ink ... Draw a map ... Building an image from images cut ... Trace designs symmetrical ... These and other actions proposents served to prepare children of 9/10 years, students of private schools in the city of São Paulo, to experience the aesthetic experiences in an interdisciplinary project. Linked to content and practices present in various educational process, we present the preparation of the visit of the exhibition "Collection, Science and Art," at the University Center Maria Antonia (CEUMA). Pedagogical interventions related to works and their themes addressed in the exhibition were developed with children without informing children about exposure and that it would appreciate. From the contents learned i n the classroom in the disciplines of Portuguese, Geography, History, Mathematics, Science and Art, the themes and 1

Estela Maria Oliveira Bonci, Mestranda em Educação, Arte e História da Cultura na UPM-Mackenzie/ SPBrasil, especialista em Psicopedagogia pela UPM-Mackenzie/SP-Brasil, especialista em Educação Especial pelo Centro Un iversitário Claretiano, graduação em Pedagogia pela UPM -Mackenzie/SP-Brasil, atualmente Coordenadora Pedagógica de Educação Infantil e Ensino Fundamental I do Co légio Claretiano/SP -Brasil. 2 Mirian Celeste Martins, Docente do Programa de Pós -graduação em Educação, Arte e História da Cu ltura da Universidade Presbiteriana Mackenzie co m mestrado na ECA/USP e doutorado na FE/USP. Autora de liv ros e artigos, entre ele co-autora de Teoria e Prática do Ensino de Arte pela FTD (2010). 14 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


issues and experiences faced by scientists and artists in the exhibition were awakened in the production of children. This paper will be presented only to visit these antecedents that was held later followed by other artistic productions and portfolios produced by children. The initial yield of the children show the proximity to the works of artists and scientists in the exhibition. The reframing of experience is seen in some of the reports verbalized by children after intervention and after contact with the exhibition, and you can see how the background were significant in this discovery process. The educational intervention associated with med iating action, always bring the creative process to the possibility of new representations, new relations of similarities and differentiations, new perspectives on what is perceived and what you feel. It is in this way that we set for interdisciplinary projects. Reflecting on the goals of cultural mediation in the connections between schools and cultural institutions is what is intended to publicize this article.

1. A trilha inte rdisciplinar A finalidade do ensino é promover nos alunos a compreensão dos problemas que pesquisam. Compreender é ser capazes de ir além da informação dada, é poder reconhecer as diferentes versões de um fato e buscar explicações, formulando hipóteses sobre as consequências dessa pluralidade de pontos de vista. Fernando Hernández (2000, p. 183)

Durante a minha formação acadêmica, tive oportunidade de observar diferentes formas de ensino em Arte- Educação, realizadas por diversos professores, dentre os quais, muitos não consideram o desenho infantil como parte fundamental da aprend izagem da criança. Apresentamos nesta comunicação, parte da minha pesquisa e reflexões realizadas como mestranda do curso de Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pesquisa esta já apresentada para a banca de Qualific ação. Atuando como Coordenadora Pedagógica de Educação Infantil e Ensino Fundamental I de escola particular da cidade de São Paulo, possibilitou- me realizar a pesquisa com o objetivo de compreender a teoria e a prática pedagógica direcionadas para o desenvolvimento das linguagens expressivas, investigando a importância da arte não apenas como meio para a construção de conhecimentos. Seguindo um caminho de construção e descobertas, trabalhamos com projetos de trabalho, os quais não são uma metodologia didática, segundo Hernández (2000), mas sim uma forma de entender o sentido da escolaridade, um enfoque do ensino que tenta ressituar a concepção e as práticas educativas na escola, e não apenas readaptar uma proposta do passado, modernizando-a.

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Parece haver uma compartimentalização do saber. As disciplinas são organizadas e trabalhadas como realidades estanques, sem interligação, dificultando a compreensão do conhecimento como um todo, sem permitir uma percepção ampliada da realidade. Em busca da superação dessa fragmentação, uma possibilidade de mudança é pensar na educação interdisciplinar, baseada na integração das disciplinas, permitindo a construção de uma compreensão ampla e abrangente do saber. A disciplinarização da educação cristaliza o conhecimento nas disciplinas e cada professor tem sido um arquivista especializado numa disciplina (GALLO,s/d) tendo a função de possibilitar o acesso dos alunos às disciplinas. Neste cenário encontramos alunos e professores incapazes de realizar interconexões entre o s diferentes arquivos constituídos na aquisição dos saberes durante a vida. Antes de seguir o caminho da desfragmentação do saber, é preciso compreender a noção de interdisciplinaridade. Entre as muitas definições, trazemos Ivani Fazenda (2002, p. 11): ―Interdisciplinaridade é uma nova atitude diante da questão do conhecimento, de abertura à compreensão de aspectos ocultos do ato de aprender e dos aparentemente expressos, colocando-os em questão‖. A interdisciplinaridade destaca-se dentre os princípios pedagógicos, como um eixo articulador das áreas de conhecimento. A partir de um planejamento conjunto, um eixo integrador é escolhido, podendo ser um objeto de conhecimento ou um fato. Um projeto de intervenção pode proporcionar a compreensão da realidade sob a ótica da complexidade e da globalidade. A interdisciplinaridade ocorre como uma forma de ver, sentir, estar e entender o mundo e sua rede de infinitas conexões, sendo o acompanhamento do processo e as mudanças ao longo do caminho, aspectos importantes. A trilha interdisciplinar caminha do ator ao autor de uma história vivida, de uma ação conscientemente exercida a uma elaboração teórica arduamente construída. Tão importante quanto o produto de uma ação exercida é o processo e, mais que o processo, é necessário pesquisar o movimento desenhado pela ação exercida — somente com a pesquisa dos movimentos das ações exercidas poderemos delinear seus contornos e seus perfis. (FAZENDA, 2002, p. 15)

Segundo Fazenda (2002), não existe interdisciplinaridade sem disciplinas e sem problematização. O problema está presente nos recortes feitos nos conteúdos e suas relações arbitrárias que não possibilitam a compreensão de sua essencialidade. O desejo do conhecer 16 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ilimitado se perde e não buscamos saber como surgiram e se desenvolveram os conteúdos por nós estudados e que ao longo dos anos apresentamos aos nossos alunos. No ensino contemporâneo, sofremos da excessiva compart imentalização do saber. A organização curricular das disciplinas coloca-as como realidades estanques , sem interconexão algu ma, dificu ltando para os alunos a compreensão do conhecimento como u m todo integrado, a construção de uma cosmovisão abrangente que lhes permita u ma percepção totalizante da realidade. (GA LLO, s/d)

Embora seja idealista a possibilidade de uma percepção totalizante da realidade, o princípio da interdisciplinaridade permite um grande avanço na idéia de integração curricular. Entretanto, a idéia central da prática interdisciplinar é trabalhar com as disciplinas, preservando as contribuições próprias de cada disciplina. Os temas transversais através de projetos que integrem as diversas disciplinas e seus conteúdos foram e são um modo de trabalhar interdisciplinarmente proposto pelos PCNs. O desenvolvimento da imaginação criadora, da expressão, da sensibilidade e das capacidades estéticas das crianças poderá ocorrer no fazer artístico e no contato com a produção de arte. Para desenvolvê- las, a prática do educador deve estar apoiada na observação das crianças quando aprendem, articulando a ação, a percepção, a sensibilidade, a cognição e a imaginação. 2. A ação inte rdisciplinar A partir de uma ação interdisciplinar, analisar e refletir o desenho infantil e as linguagens expressivas das crianças, despertam questões que nos instigam a investigar, compreender e buscar respostas sobre como são expressas e como ampliar essas diferentes manifestações artísticas. De que modo, em processos de percepção sensível, é possível enriquecer os registros através dos desenhos? Como ler estas produções para b uscar nelas fonte de novas intervenções pedagógicas? Para responder essas e outras questões foi preciso escolher uma ação e um espaço que dialogassem com a proposta do trabalho interdisciplinar com projetos, estimulando os participantes a criação e não apenas a representações. Em conjunto com as professoras e 42 alunos de 5º ano do Ensino Fundamental I de uma escola particular da região central da cidade de São Paulo, desenvolvemos intervenções em sala de aula a partir dos conteúdos estudados pelos alunos, com várias produções 17 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


conforme a provocação de cada momento. Estas articularam conteúdos e as experiências próximas às dos artistas que configuravam a exposição. Em nenhum momento se falou da exposição ou se mostraram obras relacionadas à ela, pois a ideia era trabalhar com vivências e conceitos que poderiam interligar ao que veriam lá. Após as intervenções, os alunos envolvidos tiveram contato com a exposição “Coleção, Ciência e Arte” localizada no Centro Universitário Maria Antonia e novas produções foram realizadas, prevendo como chegada ao destino final, a apresentação de portfólios elaborados durante a caminhada. A proximidade do local da exposição da escola e a diversidade de materiais a serem trabalhados e explorados com os alunos foram algumas das condições para se realizar a intervenção com os alunos nessa exposição. 3. A exposição “Coleção, Ciência e Arte” Desde 17 de novembro de 2011 até 1 de julho de 2012, o Centro Universitário Maria Antonia (CEUMA), órgão ligado a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP, localizado à Rua Maria Antonia, 258/294 em São Paulo/SP, apresenta a exposição ―Coleção, Ciência e Arte”, em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros, o Museu de Arte Contemporânea, o Museu de Arqueologia e Etnologia e o Museu Paulista, unidades da Universidade de São Paulo. A exposição reuniu objetos, obras de arte e documentos de âmbitos culturais bastante diversos, selecionados por sua especial relevância, de um conjunto maior que se encontra nos acervos dessas unidades. O Museu de Arqueologia e Etnologia cedeu objetos do Quarup (ritual de homenagem aos mortos praticado por indígenas brasileiros da região do Xingu) e urnas funerárias amazônicas, além de alguns itens da arqueologia egípcia. O Instituto de Estudos Brasileiros forneceu séries cartográficas que ajudam a ilustrar os circuitos de produção, circulação e consumo nos mapas. O Museu de Arte Contemporânea participou da mostra com importantes obras de artistas modernos, como Tarsila do Amaral e Joaquim Torres-García. Nas obras de arte contemporânea, destacam-se as obras de Cindy Sherman e Jeff Koons, entre outros. Por fim, o Museu Paulista apresentou um conjunto de instrumentos náuticos e de localização espacial, como astrolábios, telúrios e cronômetros. 4. Ações propositoras

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Iniciamos as intervenções com os alunos sem lhes apresentar a temática da exposição que visitariam. Optou-se por provocar ações expressivas ligadas a cada uma das disciplinas problematizando aspectos que a exposição tangencia. As professoras participaram das ações orientando os alunos na realização do que era proposto, sem apresentar maiores detalhes para a execução da ação proposta. As ações propositoras foram desenvolvidas de fo rma que fossem trabalhados conteúdos abordados em sala durante as aulas, relacionados às temáticas presentes na exposição. Para cada disciplina, uma ação foi desenvolvida e vivenciada pelos alunos. Em Geografia, os alunos deveriam desenhar o mapa do Brasil e dentro dele desenhar a cidade de São Paulo. Foi interessante perceber que a maioria dos alunos desenhou o mapa da cidade de São Paulo, sem perceberem que poderiam desenhar a cidade através de representações ou símbolos característicos. Um aluno desenhou a bandeira da cidade de São Paulo na sua localização no mapa do Brasil, como pode ser observado (FIG.2).

FIGURA 1: Brasil FONTE: Victor José, 10 anos.

FIGURA 2: Brasil FONTE: Luccas, 9 anos.

FIGURA 2: Mundo FONTE: Anália, 10 anos.

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Após relembrar os alunos das aulas de História em que estudaram sobre os costumes e a cultura dos povos indígenas, os alunos desenharam um grande cocar de acordo com o que imaginaram sobre o objeto.

FIGURA 3: Cocar FONTE: Gu ilherme, 10 anos.

FIGURA 4: Cocar FONTE: Ju lia, 10 anos

Com auxílio da professora de Arte, os alunos recortaram 5 imagens de paisagens trazidas de casa e remontaram a paisagem, formando com os pedaços recortados uma nova imagem.

FIGURA 4: Recortes FONTE: João C., 9 anos.

FIGURA 5: Recortes FONTE: Dana J., 9 anos.

Relembrando as aulas de Ciências sobre o corpo humano com os alunos, a produção proposta foi desenhar um corpo em movimento. Cada aluno escolheu um movimento para representar.

FIGURA 5: Pular corda FONTE: Viv iana, 10 anos.

FIGURA: Defender FONTE : João C., 9 anos.

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Utilizando bico de pena e nanquim, os alunos redigiram como seria uma viagem imaginária durante a aula de Português.

FIGURA 6: Escrita FONTE: Gabriel, 10 anos.

E para finalizar, na aula de Matemática os alunos desenharam o outro lado de uma imagem impressa, mantendo sua simetria.

FIGURA 7: Simetria FONTE: João C., 9 anos.

Destacamos no desenvolvimento e análise das intervenções a importância de uma preparação para uma visita à exposição, a qual foi diferenciada do que normalmente se faz, isto é, não foi apresentado às crianças o que veriam na exposição, mas situações foram realizadas para que as crianças vivessem a mesma experiência que os artistas tiveram em seus processos de criação. 5. Ações propositoras A partir das ações propositoras, procuramos entender a teoria e a prática pedagógicas, possibilitando ações mediadoras, resgatando a importância da Arte não apenas como forma de 21 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


expressão, mas também como meio para a construção de conhecimentos e expressão da percepção sensível da criança em projetos interdisciplinares.. Segundo Arnheim (2005, p. 35): Vejo u m objeto. Vejo o mundo ao meu redor. Qual é o significado destas afirmações? Para os fins da vida cotidiana, o ver é essencialmente u m meio de orientação prática, de determinar com os próprios olh os que uma certa co isa está presente num certo lugar e que está fazendo uma determinada coisa. Isto é identificação no seu sentido simp les.

Buscando os ensinamentos de Dewey, este destaca a importância de valorizarmos as situações de aprendizagem abertas à investigação constante do indivíduo, baseadas em hipóteses que desencadeiam práticas problematizadoras, desencadeando uma continuidade do pensar pedagógico. A recepção estética, para ele, é uma ação de recriação do processo de produção. O artista cria apenas o "produto artístico", diz o autor. A "obra de arte" é o que ele provoca em quem o experimenta. Nesta perspectiva, o conhecimento do desenvolvimento do desenho infantil é importante para a prática pedagógica, não com o intuito de sua prática acelera r a evolução espontânea do desenho, mas de criar possibilidades que favoreçam o conhecimento da criança independente do tipo de representação utilizada por ela. A intervenção pedagógica associada à ação mediadora, sempre trará ao processo criativo a possibilidade de novas representações, novas relações de similaridades e diferenciações, novos olhares sobre aquilo que se percebe e o que se sente, proporcionando o diálogo entre escola e instituições culturais. Referências Bibliográficas

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A Arte de Contar Histórias Da tradição oral à criação de um curso de pós-graduação lato sensu Giuliano Tierno de Siqueira 1 Resumo: O presente artigo trata da criação do curso de pós-graduação lato sensu A Arte de contar histórias – abordagens poética, literária e performática. Nos últimos vinte anos o fenômeno da narrativa oral tem ocupado os mais diversos espaços ligados à produção de cultura (bibliotecas, livrarias, centros culturais, etc), à educação escolar e à educação na vida (OLIVEIRA e SILVA, 2002). As formações dos profissionais dão-se de maneiras mais diversas em cursos de curta e média duração como extensões universitárias, oficinas, workshops, etc, na maioria das vezes, ministrados por narradores que têm experiência na área ou com formações em linguagens artísticas, sobretudo a linguagem teatral. O que se observa também é uma espécie de formatação de um produto narrativo, dito de outro modo, uma opção estética que se reproduz em muitas práticas como, por exemplo, a presença de um narrador com indumentária característica da cultura popular (mesmo vivendo em centros urbanos) e a presença de um músico que participa com a produção de sons incidentais no transcorrer da narrativa. O fazer teatral também absorveu a narratividade, deslocando muitas vezes a prática narrativa a um compromisso performativo muito mais característico da linguagem teatral do que da oralidade. Outro fenômeno importante a ser observado é a transfiguração das bibliotecas escolares e públicas que trouxeram para o centro do debate a importância de um acervo mais acessível ao público e a real necessidade de um mediador de leitura. O contador de histórias passou a ser a principal figura nessa mediação, ao mesmo tempo em que o seu papel também passa a ser questionado em pesquisas voltadas à mediação de leitura, um paradoxo: será que a figura do contador de histórias ao invés de aproximar o leitor do livro não o distanciaria de tal relação, pois sua performance e companhia facilitaria a leitura e suprimiria do leitor o caminho solitário necessário ao enfrentamento de decodificação dos signos literários? Numa explosão de profissionais da palavra que atuam no teatro, em bibliotecas, nos espaços culturais e comerciais e até mesmo corporativos, entendeu -se como necessário a criação de um espaço para pensar e exercitar, com vagar, aspectos que regem a atuação do contador de histórias na contemporaneidade, daí o surgimento de um curso de pósgraduação lato sensu. O curso surgiu no ano de 2010 e atualmente está com a quarta turma em andamento. As abordagens são poética, literária e performática. A abordagem poética trata da reflexão e exercício prático da construção da poética de cada contador de histórias a partir da observação, comparação, análises e sínteses das comunidades de narradores tradicionais e letrados (MATOS, 2007). A abordagem literária procura aproximar o estudante da reflexão da composição de seu repertório e de suas leituras e como estas orientam a sua prática. Por fim, a abordagem performática reflete desde a presença da voz na palavra escrita até o encontro com a audiência. Tal espaço não esgota as questões em torno da prática narrativa, contudo este experimento tem aberto uma clareira para o exercício de práticas e reflexões no campo da arte de contar histórias. Palavras-chave: Formação. Contador de histórias. Narrativas orais. Pós-graduação. Narrrador.

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Doutorando em Arte Educação. Instituto de Artes da UNESP. Linha de Pesquisa: Processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural.

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Fundo de cena Nos últimos anos na cidade de São Paulo houve uma eclosão de contadores de histórias em diversos espaços culturais como livrarias, centros culturais, escolas, b ibliotecas, hospitais, teatros, empresas, entre outros territórios. Observa-se que esta expansão da presença dos contadores de histórias não é exclusividade desta cidade, mas acontece em tantas outras capitais e cidades do interior do Brasil e em muitas partes do mundo (KOUYATÉ, 2012) 2 . Muito se tem dito, pensando, experimentado no campo das narrativas orais. Contudo, a formação e os caminhos para tornar-se um contador de histórias profissional ainda são temas que dividem opiniões e que causam mal estar e controvérsias em muitos encontros destinados às suas reflexões. Mal estar, porque alguns contadores de histórias e formadores de outros narradores entendem que há na cultura acadêmica e na sistematização do saber em torno da oralidade uma apropriação de um saber, por parte da academia, que nasce nas e das comunidades tradicionais e que seguem outra lógica de ensino-aprendizagem, talvez mais ligada à transmissão de valores e aos afetos de uma memória partilhada. Controvérsias, sobretudo, porque numa cidade cosmopolita como São Paulo, com pessoas oriundas das mais diferentes localidades, com experiências complexas, diversas, com uma falta de nitidez em reconhecer-se parte integrante de uma única comunidade com fronteiras claras, com uma dinâmica de produtividade que exige funcionalidade, eficiência, empreendedorismo de cada indivíduo e da coletividade questiona-se o estatuto da transmissão tradicional no processo de ensino e aprendizagem deste ofício - justamente pela forma de vida em comunidades tradicionais lidar com a ocupação do tempo e do espaço com dinâmica diversa a esta - e coloca-se em xeque a resistência ao pensamento formativo sistematizado do sujeito que escolhe exercer o ofício e a profissão de contador de histórias.

ATO ÚNICO

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Conteúdo proferido por Hassane Kouyaté, griot (narrador oral) de Burkina Faso, no evento Boca do Céu, organizado pela contadora de histórias e pesquisadora Regina Machado, que ocorreu entre os dias 13 e 15 de setembro de 2012, na Oficina Cultural Oswald de Andrade na cidade de São Paulo.

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Prólogo Neste pêndulo, entre o mal estar e as controvérsias, aparecem miríades de nuanças capazes de abrir mundos de reflexão neste campo formativo daquele que virá a ser um contador de histórias. Neste trabalho optou-se por contar a história da concepção, implantação e realização de um curso de pós-graduação lato sensu em A Arte de Contar Histórias com três abordagens diversas: poética, literária e performática, que se ligam por camadas ora simultâneas, ora alternadas. Em linhas gerais, as três abordagens são aberturas de espaços com vistas para o alargamento da experiência do narrador. Dito de outro modo, um aspecto que sempre incomoda em toda prática artística de qualquer natureza é o modismo e a reprodutividade de um determinado ideário estético que engessa a experimentação e o alargamento da experiência de pensar, sentir e dizer tanto àquilo ao que concerne a linguagem quanto à própria experiência humana. A abordagem poética trata da reflexão e exercício prático da construção da poética de cada contador de histórias a partir da observação, comparação, análises e sínteses das comunidades de narradores tradicionais e letrados (MATOS, 2007) 3 . A abordagem literária procura aproximar o estudante da reflexão da composição de seu repertório e de suas leituras e como estas orientam a sua prática. Por fim, a abordagem performática reflete desde a presença da voz na palavra escrita até o encontro com a audiência.

Quadro 1: A concepção, implantação e realização do curso O curso de pós-graduação lato sensu foi concebido no final do ano de 2009 e implantado no início do ano de 2010 em parceria de três instituições : Sead (Serviços Educacionais à Distância) – que faz a gestão administrativa do curso, por tratar-se de um curso pago e de natureza privada; SIEEESP (Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo) – que fornece a infra-estrutura (instalações; equipamentos; etc) para que o curso aconteça na cidade de São Paulo; e, por fim, o ISEPE – Instituto Superior de Ensino do Paraná que faz a gestão pedagógica e que legitima o curso junto ao MEC, por estar credenciado pela portaria número 579-2002 MEC, publicado no Diário Oficial da União

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MATTOS, Gislayne Avelar de. A pal avra do contador de histórias . São Pau lo: Martins Fontes, 2007. p. 33.

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número 43 de 05-03-2002. O curso acontece de acordo com a Resolução 01-07, de 08-06-07, do CNE-CES.

Quadro 2: Estranhamentos Não foi raro encontrar estranhamentos quando da aparição do curso. Isto porque a maior parte das formações na área, oficinas, workshops, são de curta duração e em geral são oferecidas por profissionais da narrativa que já trazem consigo um lastro de experiências como artistas e contadores de histórias e que nestes curtos encontros condividem 4 suas trajetórias, suas técnicas, seus sentidos. Outro ponto que contribuiu para estes estranhamentos foi a presença da palavra especialização que é intrínseca a um curso de pós-graduação lato sensu. “Um contador de histórias especialista? Isto não é um paradoxo? Visto que nas comunidades tradicionais sua presença é justamente a marca do holístico, da inteireza?” Vale ressaltar que o curso surge na cidade de São Paulo, no ano de 2010, numa grande cidade, cuja convivência com a narratividade difere das comunidades tradicionais no sentido daquilo que Walter Benjamin nomeia como o narrador sede ntário ou o narrador marinheiro; ou aquele que fica em sua terra e a conhece tão profundamente que é capaz de guardar e transmitir todas as memórias e experiências àquela comunidade; ou aquele que vai para longe, vive aventuras diversas e regressa ao seu povo para contar- lhes suas peripécias 5 . Aquele que quer contar histórias assumindo a figura do narrador nos grandes centros urbanos (podemos inferir também nos meios rurais, visto que vivemos a mundialização 6 dos meios e modos de produção) tem que entrar em contato com aquilo que Luis Alberto de Abreu nomeou como a restauração da narrativa.

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“Condividono: terceira pessoa do plural do verbo condividere, em italiano. Condivisione, em italiano, significa “o compartilhar”. In: A GAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e Outros Ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p. 87. 5 BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. p. 197. 6 Uma denominação precisa para o fenômeno da globalização. Conceito utilizado por Robert Brenner, István Mészáros e David Harvey, que complementam, com vigor analítico, as idéias d e Chesnais sobre a nova etapa de desenvolvimento capitalista e a crise do sistema do capital no limiar do século XXI.

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Ao perder o contato com a praça, com as ruas, com a comunidade, enfim, o homem perde seu imaginário, abandona a fonte de sua cultura e diminuem-se consideravelmente a quantidade e a qualidade das experiências que podem ser comunicadas. Seu repertório de imagens, sem o acréscimo das imagens apreendidas no contato e conflito co m outros homens, reduz-se àquelas geradas apenas a partir de si próprio (os sentimentos) e advindas no contato e conflito com seu reduzido meio familiar e círculo social (moral). Os próprios sentimentos sem o conflito com a complexidade do mundo real tendem a permanecer na superfície ou a se tornar idealizados. Ao abandonar as ruas o homem d iminui substancialmente sua capacidade de aprender. O saber distancia-se do sentir7 .

Portanto, a tese de que via de regra o narrador é um sujeito holístico fica ameaçada pela constatação deste distanciar-se do sentir, proposto por Abreu, daqueles que se afastam das ruas, das praças, do convívio. Para restaurar a narrativa será então preciso ou talvez, pode-se dizer, que um dos caminhos possíveis poderá ser a criação de um projeto de convivência que tem uma duração (mais longa que os curtos encontros de oficinas, workshops), que acontecem num espaço específico e que têm um objeto muito claro: a narratividade. A especialização aqui funciona como a construção de um esforço comum para restaurar a narrativa, uma espécie de programa para des-programar automatismos, préconcepções, que tiram o sujeito da experiência: A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que ocorrem: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cult ivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar mu ito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2004. p. 87).

Portanto, a especialização aqui pode ganhar uma outra acepção: dar a ver um espaço, um tempo e um fazer “especiais”, dito de outro modo, um gesto de interrupção: parar para pensar nas palavras, sua arquitetura, seus fundamentos, sua história trançada na história de cada sujeito; parar para olhar o outro e a si mesmo na performance narrativa; parar para escutar autores, histórias, textos e a polifonia das vozes que compõem um pensamento vivo 7 ABREU, L. A. A restauração da narrativa. Net, São Paulo, set. 2012. Seção Núcleo de Dramaturgia. Disponível em: <http://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia/FreeCo mponent9545content77389.shtml> Acesso em 20 de setembro de 2012.

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em torno de uma linguagem artística, como é a arte de contar histórias. Além claro, de pensarse nas múltiplas potencialidades destes encontros abrirem olhos e ouvidos dando tempo e espaço para a construção de estéticas diversas em torno desta arte milenar.

Quadro 3: A relação entre a narratividade e o teatro pensadas no curso Outro fenômeno que se observa de maneira bastante contundente é a presença da narratividade no fazer teatral. É fato que desde o final da década de 20 do século passado, na Alemanha, observa-se experimentos de quebra da quarta parede 8 , dito de outro modo, experimentos teatrais que rompem com a tradição - de um teatro burguês e dramático, cuja função é produzir a ilusão de que o que acontece no palco é uma “fatia da vida”9 – e dirigemse diretamente ao público ora contando alguma coisa, ora revelando a própria estrutura que produz o efeito de ilusão. O mais importante teatrólogo no Ocidente (dramaturgo, diretor, etc) neste sentido foi Bertolt Brecht 10 . O recurso da narratividade dava o efeito épico à cena, uma adjetivação possível ao tipo de teatro que Brecht e sua companhia experimentavam. Dizemos uma adjetivação, pois o substantivo à Épica, no sentido stricto sensu não é possível existir no teatro, segundo Anatol Rosenfeld, visto que o teatro hibridiza-se com o lírico (a expressão de sensações, sentimentos, sinestesias de um sujeito) e com o dramático (criação de personagem, conflito, relação de causalidade) 11 . Contudo, a motivação de trazer para o corpo programático do curso a discussão da narratividade no teatro foi a de discutir mais profundamente a história das apropriações que o teatro fez da narrativa oral e também abrir discussões e práticas a partir das prod uções contemporânea em teatro, que trazem marcas de narratividade. Além disso, propor uma discussão para pensar e analisar experimentos nos quais o contador de histórias pode ampliar sua potência narrativa quando se utiliza de recursos teatrais 8

Quarta parede é termo utilizado no teatro dramático para dizer que há uma parede simbólica entre o cosmos fictício criado pela encenação e a platéia que frui o espetáculo. 9 Termo cunhado pelo escritor francês Émile Zola, ideólogo da estética naturalista. 10 Bertolt Brecht nasceu em 1898 e faleceu em 1956, seus trabalh os artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações de sua companhia o Berliner Ensemb le. 11 ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo : Perspectiva, 1997. p. 15.

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e quando estes mesmos recursos teatrais interditam a autenticidade do contador de histórias visto que o teatro e a narrativa oral podem servir-se solidariamente um do outro, mas não pertencem à mesma natureza estética.

Quadro 4: Energia gerada pela convivência Ainda tratando do tema da restauração da narrativa, foi imprescindível pensar que a potência dos encontros estaria centrada em princípios que norteiam a própria arte da narrativa oral, sendo eles: divertimento; reflexão; e a presença da voz de todos os alunos nas arenas de aula (a presença dos ouvintes de maneira ativa e não passiva). Divertimento, partindo do pressuposto de que o trabalho com o “músculo” da imaginação depende exclusivamente de um des-condicionamento do corpo e da descristalização de conceitos morais rígidos, portanto o jogo é elemento fundante de uma prática como esta; Reflexão partindo do ideário de que a narratividade está, desde Benjamin, vinculada à reflexão de questões urgentes da própria existência, como: o nascimento; a guerra; o amor; a morte, etc; e por fim, A presença da voz dos alunos, pois qualquer processo emancipatório no campo da formação deve partir do pressuposto de que todos estão em igualdade de condições (inteligências) em qualquer experimento de ensino e aprendizagem, desde a construção da dinâmica das aulas até o seu processo avaliativo, e sobretudo, no processo de escritura dos trabalhos de conclusão de curso.

Quadro 5: Mediação de Leitura O contador de histórias é um mediador de leitura? O que é mediar a leitura? Ta lvez estas duas questões só possam ser feitas depois de uma outra: a que conceito de leitura estamos nos remetendo? Muitos pensadores e profissionais da mediação de leitura são enfáticos em dizer que a contação de histórias não é um exercício de mediação à medida que espetaculariza a palavra do livro e desvia o leitor de seu objetivo: a leitura. Para estes especialistas o mediador é um sujeito que trabalha com uma “leitura neutra” deixando que a palavra se apresente ao leitor o menos “contaminada” possível por inferências dos mediadores.

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De outro lado, alguns contadores de histórias são convidados pelos espaços de leitura justamente para exercerem a função de mediadores, pois são “lúdicos”, “agradáveis”. Será que os contadores de histórias não são mesmo mediadores de leitura? Será que os mediadores de leitura são realmente neutros em relação à leitura de livros? Qual a medida de tudo isso? O que estamos querendo de fato tocar quando afirmamos ou perguntamos estas coisas? Este quadro é praticamente uma colcha de retalhos de perguntas que levam a outras perguntas ainda mais complexas, como por exemplo: a que ideário de contação de histórias estão se referindo os especialistas que não vêem na narratividade oral uma ação potente no processo de mediação? Por que afirmam que há espetacularização? Será pelo uso de expedientes oriundos do teatro, como: figurino, instrumentos musicais, cenários? Será isso a contação de histórias? E a neutralidade defendida? Que neutralidade é esta? A forma de ler? O tom da voz? Aconselhar é antes de tudo perguntar ao invés de responder diz Walter Benjamin no clássico texto O Narrador, de 1936, já citado neste artigo. Portanto, este curso tem se mostrado também um perguntador destas urgentes prementes em nossa sociedade que são bastante complexas. Espera-se que as produções de pesquisas e textos que ainda estão por vir nos trabalhos de conclusão de curso possam contribuir para a expansão reflexiva e de práticas em torno da mediação de leitura, da formação de leitores e de uma possível relação solidária entre estas práticas e o ato de contar histórias.

Quadro 6: Distribuição O curso tem se distribuído da seguinte forma: fundamentos (repertório); performance (construção da poética de cada contador de histórias); e literatura (leitura e escritura). Estas camadas não são as abordagens, pois as mesmas, como dito anteriormente, são: poética, literária e performática. Abordagens e camadas aqui se diferem. Abordagens são as formas pelas quais se apresentam os conteúdos do curso, dito de outro modo, o como o objeto, a arte de contar histórias, se mostra; já as camadas são movimentos do pensar, dizer e praticar a contação de histórias que se cruzam ao longo de toda a duração do curso.

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A camada de fundamentos como está em torno do repertório transversa as três abordagens, pois trata de temas como a relação entre memória e sociedade; a relação da figura do narrador e a narratividade; as vozes da voz do narrador, os pathemas ou padecimentos que são marcas da voz de todos nós e como isto aparece no contador de histórias; e especificamente a formação de repertório, conhecendo, reconhecendo, analisando, contando e recontando contos populares das comunidades tradicionais, contos de fadas (e as inferências da psicanálise), além da literatura clássica e contemporânea, pensando exclusivamente como são compostas as bibliotecas particulares de cada narrador. A performance além de ser uma das abordagens do curso, também apresenta-se como uma camada à medida que é o espaço de construção da poética pessoal de cada contador de histórias, entendendo como poética o conceito grego de poiesis ou fabricar, produzir, entender as pegadas do jeito singular de cada narrador e seu vínculo com a sua comunidade de ouvintes. Ainda neste espaço da performance pode-se incluir os laboratórios de criação, como o de Criação de Canções (entendendo que a canção conta histórias) e o de manipulação de objetos, na perspectiva da projeção imaginativa em objetos ou na “desobjetação” dos objetos animando-os no processo de enriquecer o ato de contar histórias. Um trabalho bastante delicado foi pensado em torno da materialidade da palavra, do cuidado do dizer e da investigação da relação existente entre a palavra, a voz e o corpo como ato integrado, mas que para ser compreendido como tal exige um debruçar-se técnico e sensível nesta relação existente no entre estas categorias (palavra, voz e corpo). Além claro, de ser o espaço privilegiado para o exercício prático de cada estudante expor suas práticas e negociar impressões, descobrir, inventar, encontrar caminhos de ajustes, potências, expansão de técnica e sentido. E por fim, a camada literária que também é uma abordagem do curso. Nesta camada os estudantes praticam e partilham leitura em voz alta, escutam-se, conhecem histórias diversas, inventam histórias e sobretudo, escrevem. Aproximam-se do gesto da escrita como instrumento emancipatório de suas práticas narrativas, culminando na produção em um artigo de conclusão de curso. Este artigo deverá trazer a experiência do narrador, sua poética e a relação com um aspecto ou mais aspectos que o moveram ao longo do curso.

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Epílogo Neste ano de 2012 estamos em andamento com as terceira e quarta turmas do curso, e duas turmas já concluíram a jornada. Foram produzidos até o momento 35 trabalhos de conclusão de curso com uma grande diversidade de abordagens em torno da temática da arte de contar histórias. Abordagens educacionais; estéticas; discussões entre o teatro e a narrativa oral; mediação de leitura; contação de histórias e o palhaço; narratividade oral e tecnologia; enfim, uma diversidade incrível de possibilidades de pensar esta arte complexa e de fundamental importância para a experiência humana. Os desafios daqui para frente estão apontando para entender como a especialização nesta área do conhecimento humano chega à vida profissional e tem contribuído para o alargamento da experiência narrativa nos mais diversos espaços de produção e consumo de cultura. Uma pergunta que tem se aberto hoje, com as turmas atuais é o aprofundamento da questão: o que a minha memória privada contribui para pensar, dizer e sentir a memória pública e coletiva? Um desafio que se apresenta para cada um que se envolveu e que ainda pode vir a se envolver com esta experiência de narrar o saber e ouvir o aprender.

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INTERLOCUÇÕES ENTRE ARTISTAS E CRIANÇAS: Pesquisa Qualitativa em Artes Visuais Hanna Talita Gonçalves Pereira de Araújo 1 Resumo: O objetivo desta comunicação é apresentar a metodologia empregada no desenvolvimento de pesquisa de doutorado em artes visu ais. O objeto desta pesquisa são os processos de interlocução entre artistas produtores de narrativas visuais e crianças no processo de fruição, leitura e interpretação destes produtos. Neste estudo qualitativo que segue a metodologia da pesquisa participante, pretende-se mediar o processo de criação poética de quatro artistas plásticos durante sua criação em interlocução com um grupo de crianças entre 5 e 6 anos, devolvendo registros aos artistas sobre os modos como elas recebem e compreendem os segmentos do manuscrito visual. De um lado, o estudo propõe compreender melhor as estratégias que as crianças empregam na leitura de imagens narrativas. De outro, busca investigar como os artistas respondem aos esforços de significação dessas crianças convidadas a interpretar segmentos narrativos e como essa relação mobiliza as suas etapas de criação. Este é um projeto de pesquisa qualitativa e configura-se como um estudo de caso com observação participante (BAUER; GASKELL, 2002). Nosso foco prima pelos dizeres dos participantes acerca da experiência vivida, assim como os modos que eles referem-se a ela. Em consonância com as diretrizes da pesquisa qualitativa, buscamos compreender os processos de comunicação de acordo com a perspectiva dos sujeitos, como elas espontaneamente se expressam e o que elas julgam importante narrar. A pesquisa de campo será realizada utilizando o registro em diário de campo, assim como a coleta de produções pictóricas das crianças. Os esboços e materiais de registros dos artistas integrarão os materiais a serem analisados. Os dizeres das crianças e os modos que elas realizam a leitura das imagens serão foco de observação e análise. Vislumbramos compreender como procedem as diversas crianças na interação com imagens e livros, artista e processo de criação artística. As duas entrevistas realizadas com cada artista buscam compreender os modos que a idealização de interlocutores, as produções pictóricas e comentários das crianças sobre suas imagens afetam a produção e a poética de suas obras, buscando o significativo emergente no processo de criação, antes e após a criação da narrativa visual. Outro procedimento que será tomado nesta etapa do projeto consiste no registro de suas falas sobre seu processo criativo, com o objetivo de entender como estão imbricados ao artista sua poética, estilo e preferências, em relação às idiossincrasias do desafio de criação em interlocução com um público idealizado. Palavra-chave: Processo de criação. Metodologia qualitativa. Narrativas visuais. Interlocuções com crianças.

Abstract: The purpose of this communication is to present the methodology used in the development of doctoral research in visual arts. The objective of this research is the processes of dialogue between artists producing visual narratives and children in the process of enjoyment, reading and interpretation of these products. This qualitative study, which follows the methodology of the research participant, aims to mediate the process of poetic creation of four artists during its creation in dialogue with a group of children between 5 and 6 years, returning records to artists about the ways they receive and understand visual segments of the manuscript. On one hand, the study suggests better understand the strategies that children employ in readi ng narrative images. On the other hand, it investigates how artists respond to the signifying efforts of those children invited to interpret narrative segments, and how this relationship mobilizes its 1

Un iversidade Estadual de Camp inas 34 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


creation steps. This is a qualitative research project and sets up as a case study with participant observation (BAUER; GASKELL, 2002). Our focus prioritizes the participants' testimonies about their experience, as well as the ways they relate to it. In line with the guidelines of qualitative research, we seek to understand the processes of communication according to the perspective of the subjects, as they spontaneously express themselves and what they deem important to be narrated. Field research will be conducted using the journaling field, as well as the collection of pictorial productions of children. The sketches and record materials from the artists integrate the materials to be analyzed. The wording of the children and the ways they perform the reading of the images will be the focus for observation and analysis. We envision to understand how the children interact with pictures and books, artist and process of artistic creation. The two interviews with each artist seeks to understand the ways that the idealization of interlocutors, pictorial productions and children's comments about their images and poetry of his works affects the production, seeking significance emerged in the process of creation, before and after the creation of the visual narrative. Another procedure that will be taken at this stage of the project consists of the recording of his lines about his creative process, with the goal of understanding how the artist is intertwined with his poetic style and preferences in relation to the idiosyncrasies of the challenge of creating a dialogue with an idealized audience. Keyword: Creation process. Qualitative methodology. Visual narratives. Dialogues with children.

1. Processos de criação e livros de imagem O processo de criação artística é tão amplo quanto diverso que o mesmo artista produz cada projeto de uma maneira. Os processos de criação artística suscitam muitas indagações que abarcam desde os procedimentos técnicos até a complexidade de construção da poética das obras. Como um artista consegue mobilizar uma variedade de sentimentos em apenas uma imagem? Como a materialidade plástica permite construir metáforas visuais que impulsiona múltiplas emoções? Como o artista consegue indicar as trilhas que o olhar percorre nas imagens? De que modo as crianças percebem a estética e as sutilezas poéticas incutidas nas imagens produzidas para elas por artistas plásticos? Nos referimos neste artigo a artistas plásticos que dedicam uma parte de sua produção artística à criação de imagens de literatura infantil e os modos de produção em diálogo com seus receptores idealizados. Essas imagens as quais citamos -denominadas ilustrações- revelam-se muitas vezes autônomas em relação ao texto escrito, por este motivo as chamamos de „imagem narrativa‟, uma vez que „ilustração‟ consiste em uma imagem em referência a um texto escrito. A força narrativa de uma boa imagem dispensa o discurso verbal. A carga narrativa pode emergir da própria imagem. Neste sentido, existe a possibilidade de complexas narrativas serem alicerçadas somente pela imagem. Este„livro de imagem‟ é uma categoria da literatura que 35 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


tem por especificidade a narrativa visual, podendo ser 'lida' por crianças e por adultos, e de diversas maneiras. Ademais, esta categoria encontra-se em expansão, tornando-se um mercado de trabalho promissor nas artes plásticas, pois conta com alguns incentivos para sua produção, sendo esta modalidade responsável por uma parcela muito significativa das vendas do mercado editorial.

FIGURA 1 FONTE: Livro Cena de Rua, Angela Lago

Inserimos, como exemplo, quatro imagens em sequência narrativa (Imagens 1, 2, 3 e 4) do livro de imagem Cena de Rua, da artista Angela Lago, narrativa esta que seu processo de criação foi objeto de investigação em nossa dissertação de mestrado.

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FIGURA 2 FONTE: Livro Cena de Rua, Angela Lago

FIGURA 3 FONTE: Livro Cena de Rua, Angela Lago

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FIGURA 4 FONTE: Livro Cena de Rua, Angela Lago

2. Imagens 1, 2, 3 e 4 : página dupla de Cena de Rua 2 O livro de imagem é um tipo de produção editorial que abrange muitos leitores e representa no campo das artes plásticas um instigante espaço para experimentação. Embora o livro de imagem seja preconizado como apenas para crianças que ainda não foram alfabetizadas, a produção contemporânea, marcada pela forte atuação de artistas plásticos, demonstra que ele é um material a partir do qual pode-se desenvolver muitas leituras já ele suscita a reflexão e a construção de saberes a partir do conteúdo imagético, como na narrativa „Cena de Rua‟, por exemplo. Diante desta temática que mescla as implicações educativas da criação artística de produtos culturais para a infância e as especificidades da criação em interlocução com os receptores, necessitávamos de uma metodologia de pesquisa que contemplasse toda a complexidade das etapas de coleta, tratamentos e análise de dados. Nos referimos neste artigo à metodologia de pesquisa utilizada em nossa pesquisa de doutoramento.

3. As contribuições da Pesquisa Qualitativa nas Artes Visuais 2

Lago, Angela. Cena de Rua. Ed itora Rhj: Belo Horizonte, 1994. 38 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Os estudos em Artes Visuais transitam entre a vida e arte dos artistas-sujeitos e suas poéticas, nas repercussões de suas produções, seja nas interações e apropriações dos objetos de Arte. Desta forma, faz-se necessária uma metodologia que possibilite abarcar todas as especificidades da criação e recepção em Artes Visuais. Na perspec tiva da Pesquisa Qualitativa é o ambiente natural do sujeito a fonte direta dos dados. Os dados a serem coletados são predominantemente descritivos. Neste tipo de abordagem é o pesquisador quem se insere no ambiente de coleta dos dados. Dentro das possibilidades de atuação na pesquisa qualitativa, esta pesquisa configurase como um estudo de caso de pesquisa participante, já que o pesquisador coleta os dados no cotidiano dos sujeitos, realizando a mediação entre os diferentes atores da pesquisa.

A base

desta metodologia consiste em entrevistas semiestruturadas que busca m compreender a perspectiva dos participantes acerca de determinado ponto de vista. Para Gaskell (2002), O primeiro ponto de partida é o pressuposto de que o mundo social não é u m dado nat ural, sem problemas: ele é ativamente construído por pessoas em suas vidas cotidianas, mas não sob condições que elas mesmas estabeleceram. Assume-se que essas construções constituem a realidade essencial das pessoas, seu mundo vivencial. (...) A entrevist a qualitativa, pois, fornece os dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos. (p.65)

Nesta pesquisa em que buscamos compreender a perspectiva dos artistas e das crianças encontramos na entrevista qualitativa e na observação participante um modo satisfatório para a coleta de dados. Se por um lado os dados levantados junto aos artistas são seus dizeres em relação à criação artística e os resquícios de sua produção, por outro, na coleta de dados com crianças pequenas, o levantamento de dados será feito a partir de entrevistas grupais e videogravação das atividades de mediação de leitura das narrativas visuais. Gaskell defende que “toda pesquisa com entrevistas é um processo social, uma interação ou um empreendimento cooperativo, em que palavras são o meio principal de troca”(p.73). É a partir dos dizeres dos participantes que são construídas as categorias de análise. O autor prossegue defendendo que a entrevista qualitativa

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não é apenas um processo de informação de mão única passando de um (o entrevistado) para outro (o entrevistador). Ao contrário, ela é u ma interação, u ma troca de ideias e significados, em que várias realidades e percepções são exp loradas e desenvolvidas. (Idem, p. 73)

O material empírico utilizado na pesquisa qualitativa consiste nos relatos sobre a aparência dos fatos para os distintos sujeitos. Deste modo, a coleta de dados constitui-se como uma troca na qual o pesquisador instiga e medeia a produção do conhecimento acerca do objeto a ser estudado junto aos sujeitos. Com relação a essa interação entrevistador/entrevistado na entrevista qualitativa Gaskell diz que Co m respeito a isso, tanto o(s) entrevistado (s) como o entrevistador estão, de maneiras diferentes, envolvidos na produção de conhecimento. Quando nós lidamos com sentidos e sentimentos sobre o mundo e sobre os acontecimentos, existem diferentes realidades possíveis, dependendo da situação e da natureza da interação. Deste modo, a entrevista é uma tarefa comu m, u ma partilha e u ma negociação de realidades. (GASKELL, 2002, p.74)

Outro ponto essencial a se considerar no desenvolvimento desta pesquisa que busca seguir a metodologia de Pesquisa Qualitativa é o lugar dos participantes e seu lugar enquanto sujeito da pesquisa. Alguns sujeitos deste estudo são crianças entre cinco e seis anos de uma instituição de educação infantil. Para que a pesquisa tenha os desdobramentos que vislumbramos e que consiga, de fato, ouvir o ponto de vista dos participantes partimos do pressuposto que as crianças pequenas são sujeitos sociais capazes de dizer sobre o mundo, assim como suas impressões acerca do vivido, indicando seu modo particular de significar suas experiências. Esses registros sobre o vivido são coletados com desenhos, dizeres, olhares e interpretações. A análise dos dados na Pesquisa Qualitativa corresponde a um momento no qual uma infinidade de material deve apurar-se para delinear os resultados do estudo em andamento. Muitas vezes, os temas estão diluídos nos dizeres, mesclando os pontos questionados, em que os assuntos se sobrepõem e se alternam, no ir e vir dos dizeres da entrevista qualitativa. No emaranhado dos dizeres nos quais diversos assuntos estão entretecidos, devemos buscar pontuar quais são os pontos convergentes para a criação de categorias de análise dentro do próprio corpus da pesquisa.

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Na entrevista em artes visuais muitas podem ser as imbricações de temas nos discursos acerca do fazer artístico uma vez que elas refletem o próprio fazer artístico, entrelaçando diferentes temas. Entendemos que a separação em categorias ajuda a enxergar confluências nos d izeres dos entrevistados e torna possível iluminar os dados de vários pontos de vista, a par tir da dinâmica de criação de agrupamentos e reagrupamentos. O resultado ajuda a esclarecer os procedimentos e as condições sob quais os artistas produzem os livros de imagem, buscando aproximações dos processos criativos e as especificidades do fazer artístico, neste caso, em interlocução com os receptores.

Referências Bibliográficas ARAÚJO, H. Li vro de Imagem: três artistas narram seus processos de criação. (Dissertação de Mestrado) Instituto de Artes-Unicamp, Campinas, 2010. BAUER, M. &GASKELL,G. Pes quisa qualitati va com texto, i magem e som. São Paulo : Vo zes, 2007. FLICK, Uwe. Uma introdução à pesquisa qualitati va. Porto Alegre: Bookman, 2004. TESSLER, Elisa. O Mei o Como Ponto Zero: Metodol ogia de Pesquisa em Artes Plásticas. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

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A GUENIZA DE MARÍLIA Um mergulho na memória junto com alunos de graduação Heloisa Pait 1 Resumo: A Gueniza do Cairo é um arquivo repleto de textos medievais, descoberto entre o fim do século XIX e início do XX, que revelou todo um universo de trocas cult urais, comerciais e hábitos cotidianos de uma comunidade judaica com laços por todo o mundo islâmico da época. Ela nos coloca inúmeras questões: o que é memória? como ela é repassada de geração em geração? que significado tem para a geração presente? Esse artigo retrata as peripécias de um curso de graduação inspirado em parte nos relatos sobre a Gueniza do Cairo. O curso pretendeu, a partir de histórias familiares, refletir sobre a memória e relatar a história usando recursos literários. As interações do cursos, as descobertas dos alunos e da própria professora ao longo desse mergulho simbólico são trazidas para o leitor. A maior parte dos alunos é originada de culturas fortemente orais. Mesmo assim, o passado remoto foi resgatado através da observação de hábitos mais que de narrativas, mostrando uma pluralidade de formas de lembrar: a cozinha, o cantar junto, presentes de viagem, lembranças de assombração, uma barragem que causa uma cicatriz numa cidade de fronteira. O curso, na fronteira entre o criar e o fazer científico, desmente o chavão de que “o brasileiro tem pouca memória”: basta oferecer o espaço para que a memória dos fatos e da imaginação venha à tona... Palavras-Chave: Memória. Interior de São Paulo. Escrita criativa. Ensino superior. Oralidade.

1. A Gueniza do Cairo: forjando um curso A Gueniza do Cairo é um arquivo repleto de textos medievais, descoberto entre o fim do século XIX e início do XX, que revelou todo um universo de trocas culturais, comerciais e hábitos cotidianos de uma comunidade judaica com laços por todo o mundo islâmico da época. A existência do arquivo se deve ao respeito judaico geral pela palavra escrita; textos que contenham, em especial, o nome de Deus, não podem ser descartados sumariamente. Os responsáveis por uma sinagoga em Fustat, o Cairo Antigo, por precaução, amontoaram num sótão todos os textos produzidos por aquela comunidade, desde registros civis até poesias, certificados de compras a interpretações teológicas, cartas de gente importante a fuxicos comunitários, e lá deixaram tudo por mil anos. Cautelosamente estudados por pesquisadores ao longo do último século, os textos da Gueniza do Cairo trouxeram de volta aquele mundo medieval, como contam Adina Hoffman 1

Heloisa Pait fo i bolsista da Comissão Fulbright e atualmente é professora de sociologia da UNESP de Marília. Sua tese de doutorado, defendida na New School for Social Research, em Nova York, trata dos desafios individuais diante da comunicação med iada. Agora ela investiga a participação de brasileiros na nova esfera comunicativa global. Co mo educadora, Helo isa busca formar cidadãos aptos a pensar de modo autônomo e a expressar suas idéias na vida pública. Helo isa escreve para o público não-especializado sobre mídia e cultura política e também escreve ficção. Sua página na UNESP (www.marilia.unesp.br/helopait) contém informações adicionais. 42 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


e Peter Cole em seu fascinante livro ―Sacred Trash: the lost and found world of the Cairo Geniza‖ (Hoffman e Cole, 2011). Cheguei a esse livro através de outro mais incrível ainda: uma biografia de Yehuda Halevi, escrita por Hillel Halkin (Halkin, 2010), que resgata a poesia do importante poeta Andaluz assim como sua vida na Espanha moura e cristã e sua passagem por Alexandria e Fustat, no Egito. Ler o livro de Halkin me fez conhecer tão bem esse Halevi — seus sonhos, suas perdas, seus negócios, sua poesia —, que me imaginava tomando café com ele em alguma dessas paradas da vida para trocar idéias, quem sabe até alguns textos (Pait, 2012a). Acredito que nós, cientistas sociais, somos feitos de outra matéria de que os historiadores. Pensamos na lógica das ações humanas, seja no mercado, numa briga de galo, numa esquina de cidade grande ou num parlamento. Olhamos a sociedade um pouco assim de cima pra baixo, como quando num passeio na mata nos deparamos, fascinados, com um imenso formigueiro. Mesmo quando chutamos o formigueiro, pra ver o que acontece, logo voltamos à posição de observadores atentos, curiosos para ver como se dará o novo equilíbrio, que é o que fundamentalmente nos interessa. Os historiadores não. Eles vêem o mundo em movimento. Ler ―O Mediterrâneo‖ de Fernand Braudel (Braudel, 1995), por exemplo, equivale a deitar na grama e ficar olhando as nuvens se transformarem em cor, forma e textura: Braudel resgata mundos passados e vai nos dizendo sutilmente como somos nós filhos desses mundos, dessas gentes que vão pra lá e pra cá, abrindo negócios e portos. Mas somos pessoas plásticas e com alguma ajuda conseguimos transpor essa barreira do tempo. Assim é que eu, cientista social mesmo que sem um campo disciplinar definido, me aventurei nos últimos tempos pela história humana que aconteceu antes da invenção da imprensa, que é mais ou menos o Big Bang da ciência social e de uma tal ―modernidade‖. Li sobre a invenção do alfabeto e até sobre a origem da linguagem, estudei o período bíblico e me inteirei da sofisticação da civilização islâmica. Cheguei a dar um mini-curso sobre os povos do Oriente Médio e coloquei em uma disciplina o Gilgamesh sumério como leitura de abertura. Isso me torna tão historiadora quanto uma aula de Pilates nos faz bailarinas, mas é fato que essas leituras têm me expandido a noção de tempo. Quando uma aluna de mestrado percebeu que seu projeto teria mais sentido se ela tratasse da memória da migração nordestina para o interior de São Paulo do que das razões econômicas e sociais desta migração, uma porta se abriu para mim. Quer dizer que essas

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histórias todas — as que eu lia nos livros, as que eu contava na minha ficção, as que eu simplesmente gostava de ouvir por natureza — podiam dar uma tese? E será que os alunos iriam gostar se eu desse um curso inteiro sobre a memória? A proposta de conectar histórias pessoais e familiares a um contexto social amplo seria factível, em nossas universidades que teimam em cindir ciência e vivência? Eu havia dado um curso no semestre anterior dedicado à arte, ao invés de à sociologia da cultura, onde alunos de relações internacionais produziram fotografias, documentários, trilhas sonoras e literatura. A experiência foi bem sucedida e então nesse semestre não pensei muito e montei o curso, ―Memória e Vivência‖, dentro de uma disciplina que me atribuem anualmente cuja ementa não li. O curso, cujo programa pode ser acessado da minha página na UNESP (Pait, 2012b), prometia que ―Ao final, os alunos verão que processos culturais complexos são feitos de ações muito reais e muito próximas de todos nós.‖ Também prometi um curso leve em leituras mas exigente em reflexão; nós iríamos aprender a resgatar o passado e não a avaliar as memórias dos outros ou, ainda, o modo como os outros avaliam as memórias dos outros. As leituras tinham o papel de aguçar uma sensibilidade ou ensinar uma técnica de escuta ou escrita mais do que de revisão bibliográfica sobre o tema da memória, a qual nem eu tinha tanta familiaridade. Deixei para o final, depois da entrega dos trabalhos, por exemplo, um maravilhoso texto de Appadurai, A vida social das coisas (Appadurai, 1988), pois como é que eu saberia que ele seria útil, de antemão, para aquele aluno que tratou dos presentes do pai? A estrutura do curso era idêntica à de meus outros cursos. Havia uma primeira parte com textos informativos ou conceituais e com exercícios a serem feitos no ambiente Moodle da Unesp (NEaD, 2012), um intervalo para discutirmos os projetos para os trabalhos finais, uma segunda parte com textos enfatizando aspectos metodológicos e uma terceira parte com a apresentação e discussão dos trabalhos finais, nas aulas e também online. Abri a possibilidade para alunos da UNESP de outros campi fazerem o curso como extensão à distância, e dei uma aula presencial na Casa Guilherme de Almeida, em São Paulo, para eles. Pelo caráter do curso e pelo tamanho reduzido da classe, a discussão sobre os trabalhos finais não ficou reservada apenas à aula do meio do curso; em todas as aulas fazíamos uma rodada para saber como iam indo as pesquisas. E o que os alunos pesquisaram?

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2. Vivendo a me mória: conceitos e escutas O primeiro texto que indico no curso é, descobri, o mais importante. É através daquelas idéias que os alunos vão enxergar os outros textos e sua própria realidade. Descobri isso por acaso, mas agora faço uso consciente desse dado, indicando um texto inspirador para a segunda aula; na primeira introduzo o curso, mostro o Moodle, falo um pouco de mim, converso com eles e conto um pouco dos textos que leremos. Nesse curso, o texto inicial foi ―Os meninos da Rua Paulo‖, de Ferenc Molnár, na tradução clássica de Paulo Ronái (Molnár, 2011). O resultado foi muito além do que eu esperava: os alunos, na aula e no Moodle, trouxeram interpretações as mais variadas dos trechos que escolheram para fazer o exercício. O tempo parecia se suspender num parágrafo escolhido por um aluno, naquele livro que era todo ação. A memória era na verdade a memória do que imaginamos no passado, para uma aluna. O adulto Molnár aparecia en passant em outro trecho. Eu mesma me perguntava se ele não falava da sua guerra recente através daquele romance de jovem. E eu, que comecei o curso com uma idéia linear do tempo e da memória, fui percebendo a riqueza das relações entre passado e presente. Fomos percebendo juntos. Uma coisa eu tinha a ensinar, ou melhor, a desensinar. Quando eles vinham com as frases prontas, os clichés acadêmicos completos e coerentes sobre a seletividade da memória e o uso político do passado, eu lhes dizia: e é assim que você mesmo se lembra da sua vida? Pois não estamos estudando ―eles‖ nesse curso, mas sim como nós lembramos. Essa tensão às vezes se resolvia facilmente, às vezes não. Um aluno me confessou, ao final do curso, que ele quase desistiu da disciplina em certo momento. Pois às vezes eu, brava, dizia: escute o que suas avós disseram, e não o que uma especialista em não-sei-quê falando de não-sei-quem disse há não-sei-quanto-tempo. Por alguma razão torta, legitimar o discurso dos alunos, vide Piaget, Freire, Dewey ou qualquer educador com bom senso, parece ferir certezas profundas. É preciso ser bravo e dizer aos alunos que o que os olhos deles vêem é relevante, assim como o que escutam de seus entrevistas e mesmo o que sentem... Ao mesmo tempo, é preciso introduzir conceitos suficientemente robustos para que esse olhar e essa escuta sejam efetivos; caso contrário teremos boas histórias mas não iremos além do que vai uma boa história ouvida no ônibus. Comecei com um texto na minha opinião dificílimo, de Luis Krausz sobre o escritor israelense Aharon Appelfeld (Krausz, 2011), tanto conceitualmente quanto por trazer um contexto histórico distante e complexo. Fiquei surpresa quando vi os alunos trabalhando as idéias do autor e também de Walter Benjamin, usadas por 45 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ele, para entender a idéia de memória. Krausz fala em ―recomposição‖, um conceito para mim extremamente feliz. A memória não é um resgate do passado nem uma invenção do presente. É um jogo de tentativa e erro por meio do qual conseguimos imaginar um passado possível, usando tanto os fragmentos do passado como nossa imaginação, servindo- lhes de cola. ―Muito difícil o texto?‖, eu perguntei para uma turma depois que lhes pedi que ficassem 10 minutos pensando simplesmente no que é a memória. ―Não, não o texto,‖ um aluno me respondeu. ―Pensar assim no vácuo no que seja a memória é que é difícil.‖ Com esse jogo entre conceitos, deconstruções e reflexões fomos elaborando as perguntas que queríamos responder ao longo do curso e buscando assuntos e histórias para investigar. E, como disse, queria dar instrumentos para a escuta mais que textos sobre a memória. Então entraram na bibliografia o missionário Jean de Léry (Léry, 2009), que nos mostrou que é possível manter uma certa serenidade mesmo diante de canibais, e o antropólogo Clifford Geertz (Geertz, 1989), com sua técnica de descrição densa. Duas alunas leram esse último autor da mesma forma: elas se viram como um ―Geertz às avessas‖, tentando se extrair de uma situação familiar muito íntima mais que ser aceito numa comunidade estrangeira. Na segunda parte do curso, vimos alguns textos sobre meios de comunicação, que é minha área principal de pesquisa, analisando as complexas relações entre mídia e memória, além de um texto que tratava do uso político da memória — mas agora sem o ranço cínico que em geral se atribui em geral a esse ―uso político‖ — e um ensaio de Arthur Miller sobre uma visita que fez à Cuba, que incluiu dois encontros com o então ditador Fidel Castro (Miller, 2004). Esse último texto, junto com o próprio Léry e com Molnár, mostraram aos alunos algumas técnicas de escrita que eles poderiam usar em seus trabalhos. Pois a descrição dos fatos não prescinde dos recursos narrativos que temos, e que desenvolvemos ao longo dos séculos de escrita e mesmo de cultura oral. Também dei para eles uma aula, que repito na maioria dos meus cursos, sobre os vários níveis de interpretação com os quais os cientistas sociais devem trabalhar, baseada nas idéias de Charles Sanders Peirce e tão didaticamente explicadas por John Sheriff (Sheriff, 1989). Insisti que não estávamos tratando do passado em si, ou seja, do que vivemos objetivamente ou do que viveram nossos avós. Nosso objeto era a memória destas pessoas, os modos pelos quais resgatamos coisas, guardamos outras, perdemos outras ainda.

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3. Contando o passado: achados em nossa gueniza Marília, vocês devem saber, fica no Centro-Oeste paulista, ou seja, numa região que há menos de um século era indicada nos mapas como ―terra dos índios bravios‖. Isso mesmo, enquanto na capital rolava a Semana de Arte Moderna de 1922, profundamente conectada com ciclos culturais globais, seja no design gráfico, no comportamento feminino, nas artes plásticas e na ideologia, no interior de São Paulo continuava o choque brutal de duas culturas muito distintas. Nas primeiras aulas que dei no campus da UNESP de Marília eu havia notado traços indígenas nos rostos de meus alunos, mas como ninguém falasse des sa herança nas aulas ou nos corredores, minha observação ficou apenas como curiosidade. Já nas aulas sobre memória a herança ganhou voz. Pois algumas alunas falaram das avós ou bisavós ―bugras‖, como elas mesmas se referiam a essas figuras familiares. Uma havia sido roubada da aldeia pelo marido. A outra foi depois obliterada da memória familiar. Ríamos das histórias, um riso um pouco nervoso por estarmos desenterrando juntos, num espaço tradicionalmente asséptico, esses ossos todos. A presença destas índias na família parecia trazer um certo estigma que era preciso abafar. Para nós, no curso, ficou patente a necessidade de resgatar suas histórias assim como de analisar os modos pelos quais elas foram suprimidas. ―Racismo‖, eu disse, ―é então algo que não es tá apenas nas estruturas, no Estado, ‗neles‘. É algo que atravessa nossa própria história, nossos sentimentos, nossa família.‖ Mesmo que nenhum aluno tenha abordado esse tema especificamente no trabalho final, a discussão serviu para reforçar a idéia de que o que acontece conosco é parte da história de nosso país. Estamos ligados por densas tramas à vida de nossa comunidade, dependendo dela para nos situarmos e também a construindo através de nossas ações e valores. Pode parecer um pouco óbvio, mas os alunos se mostraram muito surpresos com esse fato; parecia que até então suas vidas eram meros detalhes diante dos grandes movimentos nacionais. O trabalho que mais me comoveu foi o de Mariana Franzolin, sobre uma avó da qual mal tinha ouvido falar. Ela mesma, fazendo a pesquisa ao longo do curso, se deu conta de se referia a essa pessoa como ―a mãe da minha mãe‖, como se com ela não tivesse relação direta. Mariana resgatou fotos da avó, cartas que ela havia escrito para a mãe de Mariana quando esta estava na faculdade, e principalmente um lugar em sua própria memória para essa mulher. Além disso, com sua própria mãe, visitou a cidade de origem da avó e procurou parentes e amigas da falecida senhora. O retrato que acabou fazendo da avó foi um pouco 47 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


decepcionante; ali não havia nenhuma heroína, nenhuma personalidade carismática. Uma mulher freqüentemente doente e às vezes difícil, apenas isso. Mas a busca dessa figura, ao lado da mãe, aproximou as duas, que voltando a Marília puderam se ver como duas mulheres inteiras, com sonhos próprios e uma história própria. ―A memória‖, concluiu Mariana, ―cria laços entre as pessoas‖. Divertidíssimos os relatos da aluna Cassia Lussani, especialmente os feitos em sala de aula, sobre os hábitos de uma pequena cidade no Sul do país. As festas, as fofocas, os dramas políticos, as visões conservadoras da estrutura familiar convivendo com a realidade da fragmentação familiar em regiões de fronteira e grande mobilidade espacial. Cassia parecia ter duas linguagens: a linguagem exuberante com que descrevia o leite das vacas e a vida no campo, e a linguagem sem graça da academia, que lhe servia de camisa-de-força. ―Leite de caixinha na minha cidade eu não tomo de jeito nenhum, me dá até nojo. Aqui até que tomo, é diferente‖, ela analisava sua própria atitude em espaços distintos. Eu não conseguia interrompê- la nas aulas, tomada por suas narrativas maravilhosas sobre um mundo muito diferente do meu. Então um dia ela começa a contar de um monumento, erguido pela prefeitura endinheirada pela reparação pela barragem de Itaipu, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer em homenagem a Luís Carlos Prestes em sua passagem pela região. ―O problema é que o monumento fica num lugar meio escuro, ermo, então o povo começou a dizer que era um lugar mal-assombrado.‖ O monumento, duplamente comunista, mal-assombrado: o que mais podíamos querer? A verdadeira história da cidade, marcada pela barragem que expulsou agricultores, muitos dos quais estão hoje no Paraguai, e gerou uma renda sempre malempregada pelos governos locais, essa não era lembrada, analisada, não servia de ensinamento. No meio da mata, um não- monumento, parte de uma história anterior à chegada dos primeiros moradores da pequena cidade... Vai ser difícil esquecer a apresentação de João Souza, quando ele sacou da mochila um canguru de pelúcia, dando concretude a suas narrativas sobre os presentes que o pai trazia ao longo dos anos 1990 de suas viagens internacionais. Esse foi o trabalho que melhor articulou a vida social geral com as histórias humanas, colocando o trabalho do pai, funcionário de uma companhia farmacêutica, no contexto da abertura econômica brasileira da época. Presentes que o pai comprava apressado em free shops de aeroportos ganhavam todo um significado

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para o menino que os aguardava em casa e que já vinha de uma família bastante conectada com o mundo cultural global. É possível até que esses presentes — brinquedos, games — tenham despertado no aluno a vontade de aprender inglês e até de fazer o curso de Relações Internacionais. O ensaio de Artur Gondo foi daqueles que mais mostrou trabalho emocional. Ele se propôs a ouvir respeitosamente as histórias de sua mãe e de sua avó, ambas nascidas no Brasil mas em comunidades com marcante cultura japonesa. Familiarizado com a literatura feminista, muito crítica ao papel da mulher na sociedade japonesa, Gondo abriu espaço em seu texto para as visões dessas mulheres, que talvez ocupem um papel subordinado na ordem doméstica mas que, de qualquer forma, tiveram infâncias felizes em comunidades acolhedoras. O trabalho doméstico era pesado, mas não humilhante, concluiu o aluno, num exercício onde ele resgatou e repensou suas próprias concepções de respeito e deferência, tão centrais à cultura japonesa. ―Talvez,‖ eu sugeri, você deva ter mais respe ito pelos seus entrevistados que pelos seus mestres...‖ Um dos alunos disse ao final do curso: ―Entrevistar não é apenas fazer perguntas e anotar as respostas.‖ De fato, o curso mostrou que escutar exige abertura e atenção incomuns. Cito ainda o trabalho impecável de Renata Menezes, com uma reflexão rigorosa sobre os usos dos meios de comunicação numa trajetória familiar; a fascinante descrição do papel das aventuras de Harry Potter na construção da infância feito por Ricardo Pacífico; o resgate da história de um bairro da cidade de Mauá, na grande São Paulo, por Thais Camargo; a descoberta de Débora Aleixo de que uma antiga canção familiar era na verdade um hit dos anos 1960; o resgate da trajetória profissional de um ―caipira moderno‖ feito por seu neto, Pedro Bernardes; e finalmente o trabalho de minha orientanda Cinthia Xavier, que me trouxe para esse campo de estudos, e que nesse artigo reflete sobre os ―lugares da memória‖. Sim, pois eu, vindo de uma cultura letrada e altamente narrativa, só via a memór ia nos textos e nas histórias. Com a Cinthia, aprendi que na cozinha, fazendo uma peixada, o passado vêm à tona e especialmente o passado silenciado dos ancestrais indígenas, assim como aprendi com Gondo que nos silêncios da cultura japonesa também estão contidos tempos passados. Pois é, aprendi. Numa aula me dei conta, por exemplo, de que gosto de imitar para minhas sobrinhas os trejeitos de uma tia, mas que nesse imitar eu na verdade transmito quem foi meu pai, um fantástico imitador de quem falo pouco pe la dor que essa perda ainda me

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causa. Fui contando aos alunos as histórias dos meus bisavós, e em particular de um que descrevi em um texto na internet, o que me pôs em contato com um neto seu italiano, primo de minha mãe. Pois uma coisa é ensinar que os meios de comunicação aproximam as pessoas. Outra coisa é ver isso acontecendo, essas teias humanas se refazendo aos nossos olhos. Eu também precisava relacionar melhor teoria e prática! Enfim, esse curso surgiu de uma inquietação pessoal, provocada por algumas leituras, entre as quais destaco a de Krausz, e por uma orientanda, e é isso o que deu a ele o caráter de workshop: consegui trazer os demais participantes para dentro desse campo investigativo. Desse curso, onde eu insistia para que os alunos buscasse m contextos sociais para suas trajetórias tão pessoais, surgiu meu próprio texto (Pait, 2012c), sobre a relação de meus bisavós com uma antiga sinagoga paulistana, onde minhas memórias, a história de São Paulo, minha condição atual e o futuro da comunidade judaica local se embaralham em imagens, frases, cadernos escolares e segredos familiares. Esse foi, digamos, meu ensaio final. Foi através dele que fucei, literalmente, minha própria gueniza. Mas só cheguei a ela através de minha aventura pela gueniza de Marília, com seu leite de vaca e sua peixada, suas assombrações e silêncios, seus parentes perdidos e índias seqüestradas.

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ARTE E TECNOLOGIA: FERRAMENTAS A DESCOBRIR NA APRENDIZAGEM Janaína Quintas Antunes 1 Priscila Zanganatto Mafra 2 Resumo: Atualmente, existem diversas dificuldades para os que querem superar o pensamento cartesiano que nos cerca, o preconceito racionalista que envolve a produção de conhecimento. Existem diversos problemas relacionados ao consumo desenfreado de informações sem um aprendizado relacionado a este. A Educação e os ambientes alfabetizadores aliados aos avanços tecnológicos enfrentam este problema de forma relacionada. Podemos observar na teoria de Paulo Freire, baseada no diálogo, uma aplicabilidade muito atual para solucionar este problema do século XXI. Procuramos identificar o uso da tecnologia e de ambientes artísticos comparando o com os quatro pilares fundamentais na educação trabalhados por Jacques Delors. Tece -se uma breve reflexão sobre a aprendizagem em espaços alfabetizadores e criativos, que vão além da sala de aula, como os museus interativos da cidade de São Paulo, que são utilizado s como exemplo. Dentro da análise dos espaços desses museus, observa-se como a interatividade presente neles está aliada aos novos paradigmas na educação visando à formação de uma sociedade de conhecimento. Uma conexão entre arte, ambientes alfabetizadores, interatividade e o resultado da união destes na aprendizagem é demonstrada. Palavras-Chave: Aprendizagem e Tecnologia. Pedagogia da Sensibilidade. Estética contemporânea. Ambientes Alfabetizadores. Interatividade. Abstract: In the contemporary world, there are several problems related to the unleashed consumption of information without a learning related to this. There are many difficulties for those who want to overcome the Cartesian thinking that surrounds us, the rationalistic prejudice that involves the production of knowledge. The Education and the literacy environments combined with the technological advances have faced this problem relatedly. We can see in the theory of Paulo Freire, based on dialogue, a very current applicability to solve this problem of the XXI century. We sought to identify the use of technology as "a treasure to discover" by all involved in the initial or continuous literacy process, comparing it with the four fundamental pillars in education worked on by Jacques Delors. We will weave a brief reflection on the literacy learning spaces that go beyond the classroom, such as the interactive museums of the city of São Paulo. We’ll also examine how the interactivity in museums is allied to the new paradigms in education in order to form a knowledge society. Keywords: Learning and technology. Sensitivity pedagogy. Contemporary aesthetics. Literacy environments. Interactivity.

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Mestre em Educação, Artes e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Macke nzie de São Paulo; graduada em Música com bacharelado em co mposição pela Faculd ade de Artes Alcântara Machado; compositora, produtora cultural, professora de línguas e artes; pesquisadora nas áreas de estética, pedagogia, filosofia, artes, história e educação ambiental. tcheina@hotmail.co m 2

Graduada em Pedagogia, pela PUC - Pontifícia Un iversidade Católica de São Paulo -, Pós-graduada em Gestão e Organização Escolar, UNOPA R – Universidade do Norte do Paraná - Mestre em Educação, Arte e História da Cultura – Universidade Presbiteriana Macken zie – São Paulo. Professora Titular do Estado de São Paulo, no Ensino Fundamental I, e Tutora de sala no curso de Peda gogia, modalidade EAD (UNOPA R). priscila_ zanganatto@hotmail.co m 52 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


1. Educar para a tecnologia Segundo os paradigmas atuais da educação, a tecnologia deve estar inserida no contexto, como meio de pesquisa, fonte de informação, utilizando o computador, a internet, conexões em rede e outros, colocados em favor da educação e usados para tornar o aprendizado mais dinâmico e produtivo. Nesse panorama educacional deve-se aprender e ensinar o despertar do interesse, a participação e a integração dos indivíduos para a democratização de saberes, formando assim uma aprendizagem coletiva integrando todos os personagens envolvidos e ambientes que vão além dos muros da escola. “A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca [...]” (FREIRE, 1999,p.64) Assim, como Freire cita o “ser inacabado”, o cidadão contemporâneo deve buscar na educação, visão de processo, envolvendo fontes variadas e inovadoras pelo conhecimento, possibilitando o trânsito pelos saberes diversos e enfatizando a busca pelo aprender a aprender.

2. A relação do Diálogo, da Interatividade e da Pedagogia da Sensibilidade com a teoria de Paulo Freire A base do futuro das ciências humanas, em especial a pedagogia, está no diálogo. Diversos pensadores o afirmam, mas na prática, poucos aplicam esta ideia. Hoje em dia há um culto ao estudioso que acumula informações, e não conhecimento, que lê muito, decora citações, mas nunca reflete sobre elas. Porém, nenhuma área do conhecimento progride desta maneira. Paulo Freire já dizia que não há conhecimento válido se este não for compartilhado. O século XXI está fundamentando o conceito de interatividade, de participação, tanto na educação como nas artes, e também o conceito de inclusão. No entanto, devemos nos precaver contra conceitos e pessoas ainda enraizados na ideia de “conhecimento enciclopédia”, crendo que decorar fatos traz inteligência, evolução. Informação estática não traz progresso, nosso futuro virá da inclusão e da discussão. Afinal, qual a verdadeira função da arte, da filosofia, da educação, senão inclusão? Senão evolução da humanidade como um todo? 53 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Paulo Freire nos trouxe o problema do diálogo nas classes mais baixas. Como seria possível uma conversa quando a mente está ocupada demais pensando na fome, aborrecida demais para conversar? Freire moldou um método (não uma técnica) baseado na ideia de que o ser humano aprende por sucessivas aproximações do objeto. Em mais detalhes, podemos revelar esse processo do método em três momentos, três categorias. O primeiro momento, que podemos chamar de “investigação temática”, se dá em descobrir no aluno o que ele já sabe, para a partir do que ele sabe, poder saber mais. É um momento de motivar o sujeito, seduzi- lo em direção à aprendizagem. A filosofia se relaciona muito com este passo, porque filosofia é justamente ponderar sobre o conhecimento. Esta tem, ou deveria ter, o objetivo de abrir mentes, despertar verdades, conhecimento. O segundo momento pode ser chamado de “tematização”, e consiste em descobrir o significado desses temas geradores. Nesse momento há a codificação, decodificação e a tematização da palavra geradora. Freire acredita que quem constrói o conhecimento é o educando, não o educador, o educador é aquele que incentiva, coordena, ajuda, motiva. Utopicamente a filosofia deveria fazer as pessoas pensarem, refletirem, e não o fazer por elas. Assim o é também nas artes. Devemos buscar esse nobre objetivo da filosofia e das artes. Nobre e esquecido. O terceiro momento seria o da “problematização”, o momento de descobrir o significado daquele conhecimento para mim. Freire tem uma visão libertadora do conhecimento, e não a visão capitalista deste, aonde você se forma, conquista diplomas, certificados, para conseguir empregos, colocação no mercado, mérito, e não pelo conhecimento em si. E o que é a filosofia se não o meio de dar sentido às coisas, à vida? Este detalhamento dos três momentos do método Paulo Freire é mais técnico do que pessoal. Desta maneira, podemos analisá- los sobre outra visão, uma visão mais humana, prática. De acordo com esta outra visão, podemos chamar o primeiro momento de “leitura do mundo”, o segundo momento de “compartilhar o mundo lido”, e o “terceiro de reconstrução do mundo lido”. O momento de leitura do mundo é o momento de tirar elementos do mundo, é o momento da curiosidade. O interesse precede o conhecimento. A curiosidade é da natureza humana, e ela é a base da filosofia, na verdade, ela é a base de todo conhecimento, do

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aprendizado. A filosofia e as artes nos fazem ponderar sobre os motivos e as razões do mundo. O segundo momento, que seria a hora de compartilhar o mundo lido, é o foco de nossas ponderações. É o momento baseado no diálogo, na troca. Conversamos, discutimos, e assim vejo se minha leitura do mundo está correta, eu a reavalio. Todas as áreas do conhecimento, não apenas as artes, a educação e a filosofia, deveriam unir diferentes teorias, evoluir adicionando o conhecimento de suas precedentes, não ficar uma contradizendo a outra, tentado desprovar a outra. Além disso, ao fazê- lo, estão isoladas, e não segundo o ideal filosófico da discussão. O terceiro momento, o momento da reconstrução do mundo lido, é o momento de, depois de discutirmos, reconstruir o mundo, juntos. O conhecimento tem uma função emancipadora. É o momento de uma visão transformadora do mundo. É o resultado da discussão: ação e evolução. E qual deveria justame nte ser o objetivo das artes, da filosofia? Transformar o mundo, libertar, emancipar as pessoas, e o conhecimento. Só aprendemos, internalizamos conhecimento, quando o que estamos aprendendo nos faz sentido, nos interessa. É justamente esta ideia de Freire que nos falta atualmente. Poucas pessoas veem sentido no que são obrigadas a aprender, a fazer. E de qualquer maneira, aprender é compreender, e se algo não nos faz sentido, não o aprendemos, o decoramos. Aprender não é acumular conhecimento. Não há razão em ficar acumulando informações, dados, datas, fatos, porque isso vai logo ser superado. O que nunca é superado é nossa capacidade de continuar aprendendo. O importante é aprender a pensar, não a reproduzir pensamentos. Não é um pouco a mais de conhecimento que faz uma pessoa diferente, são atitudes que esta pessoa pode ter que a fazem educada. Aprendemos ao longo de toda a vida, somos seres inacabados, e é reconhecendo isso que damos um primeiro passo a caminho da evolução. Não podemos confiar em pensadores, ou filósofos que se dizem donos da verdade, porque todas as teorias são hipotéticas, o saber é apenas um desejo, então, os filósofos que se dizem donos da verdade, na verdade não são filósofos, porque não especulam, porque dão um sentido inventado.

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A teoria de Paulo Freire é uma teoria de respeito ao outro. Uma teoria que entende que todos podem aprender, e que sempre podem aprender. E é isso que nos dá identidade. Este é a principal busca da filosofia: identidade, sentido. Para Freire, o aprendiz é um sujeito que tem que ser respeitado na sua própria identidade, e assim, aprendendo, a fortalecerá ainda mais.

3. Os Quatro Pilares da Educação de Jacques Delors Segundo Jacques Delors (1998), coordenador do “Relatório para a UNESCO da comissão Internacional sobre Educação para o século XXI”, no livro Educação: um tesouro a descobrir, aponta como principal consequência da sociedade de conhecimento a necessidade de aprendizagem ao longo de toda vida, fundada em quatro pilares, os pilares da formação continuada e do conhecimento. Comparemos os quatro pilares de aprendizagem: aprender a conhecer, aprender fazer, aprender a viver com os outros, aprender a ser, adaptados à tecnologia na educação. - Aprender a conhecer: Esta é a aprendizagem indicadora de interesse e abertura pelo conhecimento, refere-se à aquisição dos instrumentos do conhecimento. Despertar o desejo de desenvolver, à vontade de aprender e querer saber mais e melhor através do raciocínio lógico, da compreensão, da dedução, da memória, ou seja, dos processos cognitivos, que são fundamentais para o “aprender a conhecer”. A intenção no “aprender a conhecer” é o despertar a sede de conhecimento, a capacidade de aprender cada vez melhor, ajudando a desenvolver as armas e dispositivos intelectuais e cognitivos permitindo construir as suas próprias opiniões e o seu próprio pensamento crítico. Aplicado ao primeiro pilar, podemos compreender a tecnologia como “uma grande caixa de ferramentas”, pronta para ser explorada por todos que estão em processo de alfabetização, do inicial ao constante, para pensar o novo e reinventar o futuro. - Aprende r a fazer: É a aprendizagem conectada por gênese ao aprender a conhecer, pois se trata de fazer com critica, criatividade e autonomia, consiste essencialmente em aplicar, na prática, os seus conhecimentos teóricos. A comunicação é um ponto essencial dessa aprendizagem, não somente para reter ou transmitir informação, mas também interpretá- las e selecioná-las.

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Logo, aprender a fazer envolve o aprender a conhecer, o que significa o aprender a aprender, para beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação aliada a tecnologia ao longo de toda a vida. Acreditamos que as novas tecnologias estão transformando a aprendizagem com avanços quantitativos e qualitativos. Quantitativos, pelo grande número de informações que temos acesso e qualitativos, porque podemos escolher os conhecimentos que nos interessam, dá-se então a importância do aprender a conhecer. - Aprender a viver juntos, apre nder com os outros: É a aprendizagem de importância vital para ter a consciência e a vivência de saber caminhar para a prática reflexiva e permanente, de novos processos de interação entre um e outro. Esse pilar atua no campo das atitudes e valores, um grande desafio para os envolvidos com a educação. Vivendo em uma sociedade de informação e conhecimento constante, o sociólogo Manuel Castells (1999, p.414) afirma: “o surgimento de um novo sistema eletrônico de comunicação caracterizado pelo alcance global, integração de todos os meios de comunicação e interatividade potencial está mudando e mudará para sempre nossa cultura”. Nessa cultura, a educação deve ter como objetivo formar um “sujeito coletivo”, com participação e integração atuando sempre com atitudes e valores que ajudem a sociedade. - Aprender a ser: É o essencial é o desenvolvimento da estética e do sentido ético. Pretende-se formar indivíduos autônomos, intelectualmente ativos e independentes, capazes de estabelecer relações interpessoais, de comunicação e evolução permanente, de intervenção de forma consciente e critica na sociedade. Por isso, a importância do uso da tecnologia, como facilitadora da aprendizagem consciente e crítica, na qual os cidadãos estejam em constante processo de alfabetização, prontos a “aprender a aprender” a leitura e interpretação do mundo.

4. Apre ndizagem e Interatividade Acreditamos que aprendizagem vai além do universo da sala de aula e amplia-se para lugares de aprender, como por exemplo, os museus. Alguns museus do século XXI, além de colecionar, preservar, comunicar, adaptaram o uso de recursos tecnológicos para facilitar a forma de socialização de conhecimento, pois

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como reconhece Menezes (2011): “Os museus, ontem como hoje, tem potencial de exercer várias

funções:

fruição

estética,

conhecimento

crítico,

informação,

educação,

desenvolvimento de vínculos de subjetividade, sonho, devaneio, etc.” Atualmente, alguns museus além de atuarem como conectores da História adaptaram “os conectores aos seus acervos”, ou seja, estão utilizando de alta tecnologia para demonstrar seus acervos, e aproximar o público a partir da interatividade. São recentes os estudos sobre a interatividade e diferentes são as definições. Das definições pesquisadas elegemos à de Diana Domingues. A criação com poéticas tecnológicas se faz em computadores, vídeo, pela transmissão de imagens, sons, textos, fax, internet que permitem gerar produções cujo traço mais instigante é a interatividade, ou o diálogo mediado por máquinas. Nas tecnologias interativas, o público é um participante da experiência, abandonando a velha contemplação e suas interpretações passivas, para dialogar através de dispositivos circulando em bites, ondas, fluxos, em trocas imediatas, em escalas planetárias, em estados de navegação, imersão, conexão, transformação, emergência. Tudo se conecta com tudo, tudo está em estado de permutabilidade, de possibilidade, em estado de contaminação quando circulamos na imaterialidade dos territórios digitais. (DOMINGUES, 2011, p.37) Essa proposta de participação é o grande diferenc ial dos Museus Interativos, onde os visitantes se encantam com a alta tecnologia e querem “experimentar o acervo imaterial”. Dentre eles, destacaremos:

Espaço Catavento O Museu Catavento foi inaugurado em 26 de março de 2009, pelo governo do Estado de São Paulo, apresenta de maneira interativa, temas nas quatro áreas do saber: exatas, humanas, biológicas e atualidades, através de 250 instalações diferentes e classificadas de acordo com a faixa etária dos visitantes. As instalações do museu são divididas em quatro seções: O Universo, A Vida, O Engenho e A Sociedade. O Espaço Catavento proporciona curiosidades, descobertas e conhecimentos, através de seus espaços dinâmicos e interativos.

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Museu do Futebol Inaugurado dia 29 de setembro de 2008, o Museu do Futebol investiga, divulga e preserva o futebol como manifestação cultural brasileira, que atravessa o cotidiano do país desde fins do século XIX. Através do acervo predominantemente imaterial do museu é apresentada a inserção histórica e cultural do futebol no Brasil, baseando em memórias, acontecimentos e representações do futebol em diferentes dimensões. Ao visitar o Museu do Futebol, o público conhece a história brasileira no século XX e relaciona como nossos usos, costumes e comportamentos são inseparáveis desse esporte, identificando o futebol através de representações nas artes plásticas, na literatura, no teatro e na música.

Museu da Língua Portuguesa Inaugurado em 22 de março de 2006, o Museu da Língua Portuguesa destaca-se por criar um espaço vivo sobre a língua portuguesa, através de seu acervo inovador predominantemente virtual, combinando arte, educação, tecnologia, cultura e interatividade. O museu está localizado na Estação da Luz, ícone urbana de várias culturas e classes sociais. Através de diversificadas exposições predominantemente virtuais, a língua portuguesa é apresentada como um conjunto cultural, que faz parte de uma comunicação universal e, ao mesmo tempo, do universo particular de cada falante. É possível conhecer origens, a história e a evolução contínua da língua portuguesa, não só através da contemplação, mas principalmente pela interação dos visitantes com os ambientes digitais do museu.

Esses três breves exemplos de museus, recordistas em visitação e em comentários nas redes sociais, nos estimula a entender a interatividade, como o “diálogo mediado por máquinas”, fascina as pessoas e estimula a participação e o interesse em novas descobertas.

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Assim, como consta nos paradigmas atuais da educação, a tecnologia aliada à educação propicia a construção colaborativa e a socialização do conhecimento, com a experiência de aprender em diferentes espaços mediadores.

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A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE ARTE: Lugares acadêmicos e lugares não-formais Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva 1 Giovana Bianca Darolt Hillesheim 2 Judivânia Maria Nunes Rodrigues 3 Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir acerca da atuação dos professores de arte e suas relações com a formação nos âmbitos acadêmico e não-formal. A partir do levantamento de dissertações de mestrado com a temática formação de professores, de entrevistas à arte/educadores e de observação de aulas de artes em espaços formais e não-formais, busca-se analisar aspectos da singularidade da formação de professores de arte. A pesquisa visa contribuir com os cursos formadores em Artes Visuais, a partir da inclusão dos componentes pesquisados em ambos os contextos, acadêmico e não-formal, com o intuito de preparar profissionais melhor habilitados para enfrentar os desafios crescentes que a educação tem recebido no campo da deficiência e da inclusão social, tanto do ponto de vista da formação de conteúdos como do p onto de vista da formação política. Palavras-Chave: Ensino de Artes Visuais. Educação Acadêmica. Educação Não-formal. Processos de Formação. Abstract: This article aims to reflect on the work of art teachers and their relationships with training in the academic and non-formal. From the survey of dissertations themed teachers training, interwies with art-educators and classroom observation of arts spaces in formal and non-formal, seeks to analyze aspects of the uniqueness of teacher of art. The research aims to contribute to the trainers courses in Visual Arts from the inclusion of componentes surveyed in both contexts, academic and non-formal in order to better prepare qualified professional to meet the growing challenges that education has received in the field disability and social inclusion, both in terms of training content and from the point of view of politic formation. Keywords: Teaching of Visual Arts. Academic Education. Non-Formal Education. Processes of Formation.

1. Contextos de atuação e formação do professor de arte O artigo tem por objetivo refletir sobre a docência em artes e suas relações com a formação acadêmica e não formal. Para tanto, partiu-se do levantamento de dissertações de mestrado que apontam o tema da formação docente, além de e ntrevistas e observação de aulas

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Profª Dra. do CEAD e do PPGA V/ UDESC. Líder do grupo de Pesquisa Educação, Arte e Inclusão e do LA VAIPE – Laboratório de Arte Interativa para Públicos Especiais . 2 Profª de Artes na Educação Básica. Membro do grupo de pesquisa Educação, Arte e Inclusão e mestranda do PPGA V-UDESC sob orientação da Profª Dra. Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva. 3 Arte-Educadora na Educação Não-Formal. Membro do grupo de pesquisa Educação, Arte e Inclusão e mestranda do PPGA V-UDESC sob orientação da Profª Dra. Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva.

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de artes em espaços formais e não- formais, buscando analisar aspectos singulares nos mesmos. Nessa trajetória foram encontradas características diversas acerca da formação em arte, ao mesmo tempo em que foram apontadas similaridades na valorização das manualidades. O estudo de caráter qualitativo utilizou como técnica de coleta de dados o levantamento bibliográfico a partir do portal da CAPES; diante da localização de 400 dissertações de mestrado sobre formação de professore s, 31 delas apresentaram foco na formação em arte e suas interfaces formais e não-formais. Da mesma forma buscou-se estudos relatados por Fonseca da Silva (2009 e 2010 ) que apresentam observação da prática docente, da ação pedagógica de professores de artes em ONG`s no Brasil e na Espanha, Organización Nacional del Ciego Espanol - ONCE, nos anos de 2010, 2011 e 2012. Dentre as ONG´s observadas no Brasil, a Associação Catarinense de Integração do Cego - ACIC, a Escola Imagens do Povo, a Agência Ensaio Brasil e a Associação Fotoativa, que têm a fotografia como instrumento de arte-educação. Como resultados, identificamos a necessidade de propor aos cursos formadores, a inclusão de elementos que contemplem as peculiaridades da atuação em espaços formais e não- formais, a fim de preparar profissionais melhor habilitados para enfrentar os desafios crescentes que a educação tem recebido no campo da deficiência e da inclusão social, tanto do ponto de vista da formação de conteúdos, como do ponto de vista da formação política. Neste sentido, a pesquisa realizada, observou que os espaços de educação acadêmicos e não-formais podem contribuir com o ensino de arte através das práticas didáticopedagógicas que enfatizam o acolhimento e valorização do saber do educando. Esta contribuição é salutar e profícua quando considera o contexto cultural, econômico e social no qual se encontra o educando, abrindo espaço para o diálogo entre arte e cotidiano. 2. Os estudos sobre formação de professores de arte Com intuito de compreender o processo de formação do professor de Artes Visuais e propor o aprimoramento desta formação, alguns cursos de pós-graduação têm realizado 62 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


estudos investigativos na área através de teses e dissertações que tratam da formação de professores e de estudos que analisam o estado da arte como tema da formação docente. O processo de observação das teses e dissertações que investigam a formação em Arte traz consigo a oportunidade de conhecer diversas facetas das licenciaturas nesta área. Um olhar atento percebe que a ênfase das pesquisas recai sobre os aspectos da formação que suscitam dúvidas ou despertam a preocupação, revelando um manancial de possibilidades de aprimoramento docente. Desta feita, embora se perceba a insatisfação como a força motriz que move a ação investigativa e chama atenção para as questões mal resolvidas na formação inicial, identifica-se a oportunidade de, a partir destas pesquisas, construir um referencial de questões norteadoras para uma formação acadêmica mais consistente nos cursos de licenciatura em Artes Visuais. Mapear, analisar e comparar o estado da arte nos estudos sobre formação de professores é o objetivo do Projeto Observatório da formação de professores de arte (CAPES/MYNCYT) ao investigar as pesquisas em torno dos cursos de graduação em Artes Visuais do Brasil e da Argentina. No que se refere à realidade brasileira, o projeto nascido em 2011 tem a chancela da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ), visa à construção de um portal eletrônico que além de armazenar e organizar os dados apontados pelas pesquisas pretende dar visibilidade às problemáticas que delas emergem, apontar áreas as quais haja carência investigativa e contribuir efetivamente na melhoria da formação inicial dos professores de Artes Visuais. O Observatório tem como ponto de partida os estudos já realizados por pesquisadores independentes que têm buscado sistematizar as pesquisas sobre formação de professores de arte, cada um deles direcionando o foco investigativo a uma das muitas especificidades e possibilidades que circundam o ensino da arte: educação ambiental, inclusiva, multicultural, tecnológica, museológica e temáticas de gênero estão entre elas. Fonseca da Silva (2011) aponta os trabalhos de Silva (2008), Nunes (2009), Tourinho (2009), Pillar e Rebouças (2008) e Simó (2010) como subsídios importantes para refletir como as mudanças educativas afetam 63 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


a formação dos professores de Arte, mas enfatiza a necessidade de constituir uma rede de pesquisadores coesa que possa se retroalimentar de maneira sistemática. Embora seja grande a tarefa a que se propõe o Projeto Observatório ao abranger significativas extensões territoriais, diferenças culturais, peculiaridades políticas

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características organizacionais, dados relevantes começam a tomar forma apontando vertentes investigativas e evidenciando aspectos arraigados ou negligenciados na formação docente. Tais dados estão sendo coletados através da análise dos estudos (teses e dissertações) cadastradas no portal eletrônico da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), tendo em vista a credibilidade e nível de alcance desta instituição criada há mais de sessenta anos com vistas a corroborar na construção de um padrão de excelência acadêmica para os mestrados e doutorados nacionais. Após verificação inicial dos trabalhos apontados na consulta realizada entre março e abril de 2012 junto ao portal da CAPES adotando como ferramenta de busca os termos formação de professores de arte, nível mestrado, foram analisados os resumos das dissertações e excluídas desta pesquisa aquelas ligadas ao universo educacional em sua amplitude (como gestão, organização curricular, legislação...), assim como as direcionadas às outras áreas do conhecimento que não à Arte. As dissertações que se referiam às demais linguagens artísticas (cinema, teatro, dança e música) e que focavam em áreas totalmente distantes da arte (como saúde, direito institucional, entre outras) também foram excluídas. Restavam ainda 31 pesquisas, assim agrupadas: estudos voltados às narrativas de vida e sua vinculação com o exercício da docência em artes e estudos direcionados a outros aspectos do ensino de artes (tais como metodologias de ensino, análise de desempenho discente, estudos sobre o currículo, entre outros). Ainda em relação aos estudos com foco específico na formação inicial de professores de Artes Visuais, obedeceu-se ao recorte temporal préestabelecido no Projeto Observatório: pesquisas realizadas a partir do ano 2000. Após este primeiro mapeamento nove estudos dissertativos enquadraram-se no grupo de pesquisas que irá subsidiar uma análise mais aprofundada em relação às particularidades da formação inicial do professor de Arte. A priori, destaca-se que apenas uma destas dissertações foi desenvolvida no âmbito de pós-graduação em artes visuais; as demais foram 64 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


realizadas em pós- graduações em educação. Tal indicativo aponta a necessidade de observar, analisar, investigar, questionar: há diferenças epistemológicas, metodológicas ou filosóficas entre as pesquisas sobre formação de professores de artes desenvolvidas nos programas de pós-graduação em educação e em artes visuais? De que ordem? Qual o estado da arte destas pesquisas? Quais os referenciais teóricos mais usados? Como estas pesquisas percebem a licenciatura em artes visuais? Muitos são os questionamentos, muito há para pesquisar. De tal forma, é bastante razoável afirmar que as investigações realizadas até o momento sobre a licenciatura em artes correspondem à ponta de um iceberg, pois muito maior do que os estudos já desenvolvidos é o montante das questões que aguardam a atenção dos pesquisadores. 3. Formação e m Artes Visuais na educação não -formal: um olhar a partir da linguage m fotográfica A formação dos arte-educadores que atuam, tanto na educação- formal quanto na educação não- formal, passa por caminhos diversos, como vimos anteriormente em relação as pesquisas acadêmicas. Neste tópico será abordada a formação do profissional que desenvolve projetos de arte-educação, na perspectiva da educação não- formal, a partir da linguagem fotográfica. A pesquisa, em curso, faz um estudo de caso sobre a formação e prática de três arteeducadores, João Roberto Ripper, idealizador da Escola Imagens do Povo no Rio de Janeiro, Ricardo Peixoto da Agência Ensaio Brasil, em João Pessoa na Paraíba e Miguel Chikaoka, da Associação Fotoativa, em Belém do Pará. Até o momento, já foram coletados os dados das duas primeiras organizações. Os dados foram coletados a partir de entrevistas e observações no local durante a realização de aulas e oficinas, para que de posse dos mesmos seja possível fazer uma análise qualitativa, e também comparativa, pois acontecem em diferentes regiões do país, com diálogos diferenciados da fotografia enquanto arte que nos permitem entender como funcionam essas ações de arte-educação e qual o processo de formação dos profissionais envolvidos.

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A pesquisa qualitativa significa uma nova forma de investigação nas ciências sociais, diferente das tradicionais pesquisas quantitativas que predominavam até pouco tempo nesta área da pesquisa, que não permitiam uma diferenciação entre os objetos de pesquisa das ciências naturais e sociais, além de, muitas vezes, não atender as suas especificidades metodológicas. Fonseca da Silva nos diz, a partir de seus estudos, que atualmente as pesquisas relacionadas às ciências humanas e arte “utilizam uma abordagem epistemológica de pesquisa de campo qualitativo, fato este que a diferencia das ciências naturais, não só em relação às questões filosóficas da abordagem, como também o perfil do pesquisador, as técnicas de coleta de dados e o modo de interpretação dos dados”. (2009, p.32) A autora nos diz ainda que a abordagem qualitativa por meio de entrevista proporciona uma postura diferenciada entre o pesquisador e o pesquisado, possibilitando á ferramenta da entrevista o caráter de diálogo. É importante ressaltar que o diálogo, nesse caso, não significa ausência de roteiro para entrevista, nem tão pouco fa lta de rigor na condução da mesma, que deve ser imparcial no que diz respeito à indução de repostas determinadas, além de rigor metodológico para transcrição e interpretação dos dados, respeitando assim, os sujeitos pesquisados e a importância da pesquisa acadêmica. A princípio, visto que a pesquisa se encontra em andamento, abordaremos a partir da coleta de dados, realizada entre os meses de abril e agosto de 2012, o perfil das duas organizações constituídas por estes arte-educadores, assim como algumas considerações acerca dos seus processos de ação e formação, mesmo que de forma ainda inicial. As experiências profissionais e pessoais de ação que aproximam arte e política, as quais fazem parte da trajetória do fotógrafo e educador João Roberto Ripper, o conduziram a criar em 2004 o Programa Imagens do Povo, que está vinculado às atividades da OSCIP4 Observatório de Favelas, localizada no Parque Maré, zona Norte do Rio de Janeiro. O Observatório de Favelas é uma entidade que nasce com a intenção de questionar as políticas urbanas e a abrangência das mesmas nos diferentes espaços da cidade carioca. O diretor do Observatório de Favelas diz que existe uma série de concepções advindas do Estado que nos conduz, segundo ele, 4

Organização da sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), titu lação de entidade ligada ao Terceiro Setor. 66 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


(...) a afirmação de um padrão estético homogeneizador, a partir do qual se nomeia, define, classifica e, no limite, condena as partes da cidade que apresentam formas e práticas sociais distintas do padrão hegemônico. Tal visão de mundo articula, de fo rma simu ltânea, a repetição de discursos legitimadores da “ordem” v igente e o repúdio às estéticas próprias das favelas e espaços congêneres. Diante dele, u rge afirmar percepções humanas e sensíveis das favelas e espaços populares a fim de dar visibilidade ao projeto de cidade que almejamos: plural e múlt ipla, democrática e pulsante. (SILVA, 2012, p. 11).

Neste sentido, o trabalho da Escola Imagens do Povo dentro do Observatório de Favelas, tem uma atuação fundamental na possibilidade de dar voz às pessoas das favelas, e também pessoas de outros bairros de áreas nobres da cidade que compartilham desse pensamento humanizador, pois a intenção é justamente romper com a visão da cidade partida, unindo pessoas de lugares diversos da cidade, a partir do discurso visual da fotografia. Por meio de aportes financeiros de empresas, instituições e recentemente do poder público, a Escola desenvolve cursos anuais de fotografia desde 2004 que prezam pela qualidade, “pois um desafio sempre colocado no processo de formação de sujeito, na produção e difusão de trabalhos visuais, é a construção de um trabalho de excelência” (SILVA, 2012, p.12) Neste processo de acreditar na potencialidade do ser humano e priorizar a qualidade do ensino, Ripper, os demais profissionais e colaboradores, já formaram, em oito anos de atuação, mais de duzentos novos sujeitos no campo da fotografia, principalmente moradores de favelas, atualmente com diploma de extensão universitária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Muitos deles desenvolvem trabalhos fotográficos de difere ntes formas, na intenção de produzir novos olhares para esses espaços populares, vislumbrando uma perspectiva mais justa e menos excludente para a cidade como um todo. Além do curso de formação de fotógrafos, a Escola Imagens do Povo desenvolve outras ações que significaram uma ampliação a partir de demandas e conquistas que trazem consistência ao trabalho, como abertura de um espaço cultural, a Galeria 535, o curso de Fotografia Artesanal, pinhole 5 para crianças e adolescentes, e também o curso de formação de 5

Técnica fotográfica artesanal que utiliza u m recipiente fechado, geralmente latas de alumín io, por isso também conhecida como foto de lat inha, co m u m furo na frente e papel fotográfico dentro, para d iscutir o processo de formação e fixação da imagem sobre uma superfície, no caso o papel fotográfico. 67 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Educadores em Fotografia. Esse último surge como uma demanda necessária devido ao caráter multiplicador que o projeto adquiriu por meio de antigos alunos que realizaram e realizam experiências como educadores em outras comunidades e na própria Escola Imagens do Povo. Outra ação do projeto é a Agência Escola e o Banco de Imagens, criados com a intenção de trabalhar com esses alunos que se formam na Escola, as possibilidades de inserção no mercado de trabalho. Sobre a segunda organização pesquisada, a Agência Ensaio Brasil, localizada na cidade de João Pessoa na Paraíba, a mesma apesar de direcionar suas ações também, prioritariamente, para o público considerado de vulnerabilidade social, não é juridicamente caracterizada como uma Organização Não-Governamental, ONG, ou OSCIP, como é o caso da Escola Imagens do Povo. A Agência Ensaio Brasil é uma produtora cultural, que destina suas ações na mesma direção que as ONGs, ou seja, promover ações, no caso de arteeducação, em comunidades e contextos de vulnerabilidade social, permitindo o acesso à arte para territórios da cidade que não tem acesso a educação de qualidade e consequentemente o direito ao universo da arte. Ricardo Peixoto, um dos idealizadores da proposta e que permanece hoje a frente das ações da Agência Ensaio Brasil, nos conta que: (...) Na década de 90 surge à primeira agência de fotografia do estado da Paraíba. Pioneira no mercado cultural se destaca pela produção de projetos inovadores e ousados na área experimental de produção, pesquisa e documentação da imagem. A Ensaio Brasil vem ao longo dos anos revolucionando conceitos do fazer e pensar a arte como fo rma de transformação e contribuição social. Tornou -se referência para várias gerações de artistas. (...) cria ações concretas que ganham força na produção independente do país. Marca a passagem do homem no tempo. Cron ista da sua história fortalece a democratização da arte e a livre circulação do artista e a sua obra. (agenciaensaio.blogspot.com.br)

A partir das ações de arte-educação, no âmbito da educação não- formal, a Agência Ensaio Brasil desenvolve em diferentes espaços da cidade, como o bairro do Varadouro, onde se originou a cidade de João Pessoa, o qual abriga hoje uma comunidade considerada de vulnerabilidade social, o lixão do Roger que abriga nas suas imediações uma comunidade de 68 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


catadores de papel, a rua da Areia caracterizada por ser uma zona de prostituição na cidade, entre outras comunidades na cidade e no estado, ações e projetos que promovem o acesso a arte na perspectiva de transformação social. A formação de profissionais para atuar no contexto das Organizações Não Governamentais – ONG`s, no âmbito da arte, de modo geral nasce da produção artística desenvolvida pelos educadores. Vale ressaltar que a Arte é considerada um campo importante de atuação nos movimentos sociais pela linguagem que mobiliza, pela forma como a arte é internalizada no contexto social. Se os cursos de arte não conseguem atender as demandas de professores para as escolas brasileiras, faltam 18 mil p rofessores de arte na região sul, para as ONG`s o quadro de falta de profissionais com formação é muito maior. Nas ONG’s não há uma obrigatoriedade de termos um profissional com formação em Artes atuando, fato que facilita a existência de profissionais não habilitados. Neste estudo então, ressalta-se a necessidade de compreender que características estão presentes no profissional da ONG, que contribuem para o desenvolvimento de um trabalho de arte-educação de qualidade, ao mesmo tempo em que, também busca compreender quais as alternativas para suprir a lacuna de formação existente. 4. As licenciaturas em artes e a formação para a diversidade Pensar a atuação e a formação dos profissionais que se dedicam ao exercício da docência em Artes Visuais exige um posicionamento atento à heterogeneidade peculiar a esta área do conhecimento. Sendo muitas vezes concebido como aliado em projetos sociais, culturais, terapêuticos e pedagógicos, o docente em Arte encontra espaço de atuação não somente em instituições formais de ensino, mas também em lugares não- formais, evidenciando a necessidade de conhecer as particularidades da atuação destes diversos profissionais e adentrar nos universos de formação. Em termos acadêmicos a formação do professor de Arte acontece através da modalidade de licenciatura, habilitando-o a atuar na educação formal e não- formal. O Brasil possui um conjunto de documentos que orientam a formação de professores nas licenciaturas, entre eles as Diretrizes para a Educação Básica e as Diretrizes para as Artes Visuais. Essas 69 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


diretrizes apontam principalmente para a formação no contexto escolar e para o contexto artístico, algumas disciplinas tangenciam a formação do professor que atua no ensino não formal, mas a discussão da formação para atuação em programas de cunho social é bastante distante. Arroyo (2008) analisa o contexto das novas licenciaturas que começam a existir com o objetivo de preparar profissionais aptos a atuar em realidades diferenciadas como coletivos sociais, étnicos, raciais, geracionais e do campo. Podemos dizer que a necessidade de formar profissionais específicos para atuar na realidade da diversidade nos aponta uma determinada falência do modelo de formação presente nas instituições universitárias no tocante à multiculturalidade crítica. De fato a normalização e a fixação de conteúdos acabam engessando as estruturas desses cursos que preparam profissionais para atuar numa realidade determinada, exigindo que os próprios sujeitos que necessitam de formação sejam coadjuvantes no processo de construção da carreira. Nas palavras do autor: (...) os cursos de formação e diversidade aqui narrados se tornam realidade por meio de um longo processo de pressões políticas dos diversos coletivos organizados e de coletivos docentes compro metidos com a diversidade. Formar os próprios docentes educadores é encarado como uma afirmação polít ica e identitária da diversidade. ARROYO, 2008, p.11).

Arroyo ressalta ainda que a perspectiva de formação levada em conta para a proposição curricular parte dos pressupostos da formação para a educação básica, ou pelo menos aqueles conteúdos que são considerados universais, fato que empobrece a formação para profissionais que atuam no âmbito da diversidade, pois sua realidade é secundarizada. O autor propõe então que possamos sair desses limites formais das licenciaturas já existentes e reconhecendo a realidade, os coletivos concretos e suas histórias, estudando o contexto de produção de suas diferenças, propor novas experiências de tornar-se docente a partir dessas realidades diferenciadas, interrogando qual proposta docente responde aos anseios dessas realidades. Arroyo afirma igualmente que para transformar esses cursos é necessário:

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... defrontar-se como ponto de partida com a diversidade, as diferenças e os processos históricos de produção das diferenças em desigualdade. Ir fundo na história polít ica, econô mica, social e cultural e também pedagógica dessa construção dos coletivos diversos e desiguais (ARROYO, 2008, p.14).

Encontramos nas análises de Arroyo apoio para questionar o trabalho educacional voltado para as classes populares no contexto das artes realizado nas ONG`s. Nos cursos de formação docente para o âmbito da formação em artes essa realidade nem sempre é alvo de análise, ou quando é, a docência é proposta a partir de um conjunto de conteúdos e procedimentos uniformizados que pretendem atender amplos setores, da escola básica às ONG`s. 5. Considerações Finais Nesta primeira análise do Projeto Observatório em relação aos estudos sistematizados e registrados no portal da CAPES é possível localizar alguns pontos em comum entre as dissertações de mestrado desenvolvidas sobre o assunto. Independente das especificidades geográficas em que se inserem os pesquisadores, independente se a instituição que abriga o programa de pós-graduação é do tipo pública ou privada, independente se a pesquisa foi concluída recentemente ou há mais de uma década, há aspectos que são constantes. Em relação a estas constâncias, observa-se nas pesquisas: A preocupação em auto-afirmar a importância do ensino da arte partindo do pressuposto de que seu lugar no meio educacional não está completamente reconhecido; A cautela para que o ensino da arte não esteja sendo usado para legitimar ideologias, corroborando, mesmo que imperceptivelmente, para a manutenção do status quo da classe dominante; A desconfiança em relação às políticas públicas voltadas para a educação, acompanhada do receio da ineficácia de documentos norteadores da ação pedagógica propostos pelo Estado; 71 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A constatação de que o exercício da docência e o da pesquisa estão atuando em frentes muito distintas e que é preciso coadunar esforços para a aproximação entre a academia e a escola. Por certo estas são apenas algumas das questões evidenciadas pelas pesquisas que remetem à formação do professor de artes visuais. Como mencionado anteriormente, somente a ponta do iceberg está visível, sendo necessário mergulhar e investigar outras facetas que cercam este problema complexo e múltiplo: a formação para a docência em arte. Em relação à pesquisa desenvolvida em espaços não-formais de educação, a contextualização dessas instituições, a trajetória de vida pessoal e profissional destes arteeducadores, acompanhadas da coleta através de entrevistas, nos permite até o momento, fa zer algumas considerações a respeito dos processos de formação que estão evidentemente relacionados com a própria prática. Elencamos aqui alguns pontos que se destacam nesta etapa do processo em relação à formação de arte na educação não- formal: Os arte-educadores entrevistados para a realização da pesquisa possuem formação acadêmica em nível de graduação, porém em áreas outras do conhecimento que não a licenciatura em artes, a saber: comunicação e jornalismo; Em ambos os casos, existe uma consistente prática artística e domínio técnico da linguagem fotográfica, adquiridos de forma que entrelaça o saber autodidata, formal e experimental; A ação destes educadores no que diz respeito ao processo de formação, não depende apenas do grau de escolaridade dos mesmos, mas adicionados a isso, o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre a realidade social, suas complexidades e inúmeras situações de exclusões geradas; O acolhimento e valorização do saber dos moradores das comunidades onde atuam é imprescindível para gerar conhecimento a partir dessa troca de saberem estabelecidos, constituindo um processo educacional não excludente, que dialoga com a diversidade econômica, social, histórica e cultural;

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O uso da fotografia nas diferentes possibilidades de criação artística, passando pelas técnicas artesanais, pelo estilo documental e também pelas novas possibilidades da era digital, até a combinação com outras linguagens artísticas. O potencial do uso da imagem fotográfica enquanto produção de discurso visual sobre estas comunidades, por meio de uma “fotografia compartilhada” 6 , construída a partir da visão dos seus próprios moradores.

Assim, é possível constatar, de acordo com a pesquisa, que o envolvimento político dos educadores na ação educativa a partir da arte, possibilita que estes construam sua formação neste campo do conhecimento, ampliem as possibilidades de que grupos sociais marginalizados e sistematicamente excluídos tenham acesso à arte por meio da linguagem fotográfica e buscam, a partir do discurso visual da fotografia,um novo olhar sobre o contexto dos públicos que participam das ONG`s. Propiciar o diálogo entre a arte e cotidianos excluídos abre espaço para uma proposta de inclusão e transformação social. Referências Bibliográficas ARROYO, Miguel G.: Educandos e educadores: seus direitos e o currículo. In: Indagações sobre currículo. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2008. FONSECA da SILVA, M. C. da R. Ensino de Arte e Inclusão: um recorte metodológico a partir de uma pes quisa com professores de arte. In: FONSECA da SILVA, M. C. da R., MAKOWIECKY, Sandra (Org.). Linhas Cru zadas: Artes Visuais em Debate. Florianópolis, Ed. da Udesc, 2009. NUNES, A.L.R. Panorama da pesquisa me artes visuais em interação com a inclusão. In: Mendes, G.M.L. e Silva, M.C. (Orgs.) Educação, Arte e Inclusão: trajetórias de pes quisa. 1. ed. – Flo rianópolis: Editora da UDESC, 2008, v.1, p. 21-34. PEIXOTO, Ricardo. Site da Agência Ensai o Brasil: www.agenciaensaio.blogspot.com.br Data de acesso: 16/ 09/ 2012. SILVA , M.C.R.F. Projeto Observatório da Formação de Professores no âmbito do ensino da Arte: estudos comparati vos entre Brasil e Argentina, 2012. SIMÓ, C. H. O Estado da Arte das Teses Acadêmicas que Abordam Arte e Inclusão. Um Recorte de 1998 a 2008. (Dissertação- PPGA V/ UDESC). Florianópolis, 2010.

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Fotografia compart ilhada é um termo utilizado pelo fotógrafo e educador João Roberto Ripper, para descrever essa produção imagética co mo produto de um diálogo entre educador e educandos. 73 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


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TRILHANDO CAMINHOS CONHECIDOS DA CIDADE SOB NOVOS OLHARES DE CRIANÇAS Renata Pereira Navajas Mancilha

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Resumo: Este artigo relata um trabalho de mediação cultural sobre o patrimônio histórico arquitetônico de São José dos Campos, no interior paulista. Foi realizado com alunos de Ensino Fundamental acompanhados e observados no decorrer de visitas aos principais pontos do acervo cultural da cidade. A pesquisa permitiu despertar nos sujeitos o interesse pela descoberta da tradição histórica e cultural que se revela nos espaços públicos de uma cidade. Os alunos participantes construíram mapas pessoais evidenciando os locais ou aspectos que se destacassem, sob o seu ponto de vista, como patrimônio cultural da cidade. Reuniu -se os mapas pessoais, construindo-se um coletivo. A metodologia da pesquisa foi de abordagem qualitativa, realizada por meio de pesquisa de campo, que possibilitaria uma relação de interdependência e dinamismo entre o sujeito e o mundo real. A pesquisadora fez, durante os passeios culturais, intervenções espontâneas, conforme as oportunidades surgidas. Os alunos puderam observar tudo a seu modo, isto é, não havia roteiros de observação impostos, nem questionários a serem respondidos. O objetivo era proporcionar o contato dos sujeitos com os locais e com as produções artísticas ali encontradas, de forma livre e espontânea, e, antes de qualquer informação sobre essas produções, o que se pretendia era investigar o olhar das crianças para as produções, a partir das suas próprias referências. Por meio da construção dos mapas pessoais e da montagem do mapa coletivo os alunos fizeram um exercício do olhar, demonstrando interesse, ampliando visão de mundos e seus conhecimentos ao se envolverem com as questões ligadas ao patrimônio histórico e cultural da sua cidade. Palavras-chave: Patrimônio histórico. Mediação cultural. Memória.

1. Introdução Como aluna do Programa de Pós-Graduação da Universidade Mackenzie eu me vi diante do desafio de participar de uma pesquisa coletiva para a realização de uma ação mediadora sobre patrimônio cultural da cidade de São Paulo. O primeiro entrave foi residir em São José dos Campos, fora da capital de onde são todos os demais pesquisadores, colegas da Pós- graduação. Tendo obtido permissão de realizar a pesquisa na cidade de São José dos Campos, onde eu moro , foi vencido o obstáculo inicial e passei para a próxima etapa, que foi a proposta de construção de mapas pessoais que colocassem em evidência locais ou aspectos que se destacassem como patrimônio cultural da cidade. Para a construção dos mapas pessoais foi necessário estabelecer alguns objetivos. Entre eles estão o desenvolvimento do exercício do olhar dos sujeitos da pesquisa, a

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Professora da rede pública e a luna do Programa de Pós-Graduação da Universidade Mackenzie, no curso de Educação, Arte e História da Cultura. 75 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


necessidade de lhes apresentar, por meio de visitas, os espaços privilegiados da cidade onde moram, observar

o interesse e o envolvimento que esses sujeitos pudessem ter,

intensificando, assim, suas relações com o patrimônio histórico e cultural da sua cidade. Determinados os objetivos, foram planejados os passos para a realização da pesquisa. Com uma abordagem qualitativa, que me possibilitaria uma relação de interdependência e dinamismo entre o sujeito, o mundo real e ele próprio, foi escolhida a técnica da pesquisa de campo e planejei visitas à espaços tidos como patrimônio cultural de São José dos Campos. Delimitei o espaço urbano da cidade e defini alguns locais tombados como patrimônio pela lei municipal para as visitas e investigação. Escolhi os sujeitos da pesquisa: três crianças do Ensino Fundamental, na faixa etária compreendida entre nove e treze anos de idade A escolha dos locais se deu a partir de uma pesquisa no site oficial da cidade, através do qual as crianças tomaram conhecimento da existência de vários lugares e escolheram alguns: Parque Vicentina Aranha, Museu de Arte Sacra, Parque Burle Marx, e o Museu do Folclore também situado no Parque Burle Marx . As visitas ao patrimônio Cultural de São José dos Campos ocorreram em quatro sextas- feiras no período da tarde, no mês de outubro de 2011. Durante esses passeios culturais minhas intervenções foram feitas de modo natural. Optei por deixá- los observarem tudo a seu modo, isto é, não havia roteiros de observação impostos, nem questionários a serem respondidos. A idéia era a de proporcionar o contato das crianças com os locais e com as produções artísticas ali encontradas, de forma livre e espontânea, e, antes de qualquer informação sobre essas produções, o que se pretendia era investigar o olhar das crianças para as produções, a partir das suas próprias referências. Em sintonia com o pensamento de Larrosa, que afirma a importância de gestos de interrupção como “... parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, escutar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes” (Larrosa, 2004, p. 160 e 161) para que algo nos aconteça ou nos toque, durante as visitas, havia abertura para as perguntas que surgissem das crianças, para esclarecimento de alguma dúvida, para seus comentários pessoais, sendo que estes eram sempre valorizados, e também para os seus silêncios diante do que observavam.

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Essa postura foi importante para desenvolver o pensamento estético das crianças, pois o intuito maior era estabelecer possíveis relações dos sujeitos com um conhecimento que faz parte da sua identidade, do seu entorno.

2. São José dos Campos: um pouco da sua história Segundo informações colhidas no site oficial da cidade de São José dos Campos 2 houve uma formação de povoado por volta do ano de 1630, inicialmente

como aldeia,

organizada pelo jesuíta Leon, que veio com a missão francesa para catequizar os índios guaianazes, que viviam na região. Nessa época sua economia era basicamente agrícola voltada para as plantações de café e algodão. Posteriormente, em 1767, passa à categoria de cidade e, devido ao clima ameno, ficou conhecida como a cidade dos „‟bons ares‟‟, fato que proporcionou a construção, entre outros,

do Sanatório Vicentina Aranha, sob a

responsabilidade da Santa Casa de Misericórdia da cidade de São Paulo, com o objetivo de tratar os tuberculosos, muito comuns naquela época. O decreto 7007 de 12 de março de 1935 oficializou São José dos Campos, como „‟Estância Climática‟‟. Por volta de 1940 a 1950 houve a construção da rodovia Preside nte Dutra que atravessa toda a cidade e em 1940 houve a construção do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) que impulsionou o processo de industrialização. Atualmente é uma cidade moderna, conforme se pode ver pela Figura 1, a seguir, constituindo-se um importante tecnopolo industrial do país, destacando-se pela produção de material bélico, metalúrgico, têxtil, cerâmico, e também como sede do maior complexo aeroespacial da América Latina, com importantes centros de ensino e pesquisa aeroespacial.

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FIGURA 1: Vista aérea parcial de São José dos Campos FONTE: site oficial da Prefeitura de São José dos Campos. SP

A cidade de São José dos Campos, localizada no Vale do Paraíba, possui grandes áreas arborizadas, boas oportunidades de entretenimento e

mesmo se desenvolvendo

rapidamente ainda guarda características das cidades pequenas do interior, pois há bairros que comemoram as festas dos padroeiros com quermesses, jogos de bingo, comidas típicas e procissões ao redor da igreja. É típico dessa cidade ter um especial respeito à preservação de sua herança cultural e histórica. Há nela uma tendência de transformar locais diversos, construídos para finalidades também diversas, em espaços de acesso à Arte, ou seja, em patrimônios culturais. Os locais tombados como patrimônio cultural da cidade, exceto a Biblioteca Municipal, contam com o trabalho de um monitor que é alguém formado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo, com a responsabilidade de apresentar as informações históricas sobre os locais aos visitantes.

3. O desenrolar da pesquisa Indubitavelmente a curiosidade foi o elemento decisivo na escolha, pelas crianças, dos locais a serem visitados. Visitando o site oficial do município, elas foram tomando conhecimento do acervo histórico da cidade e ficaram muito entusiasmadas. Como eram muitos os locais, foi preciso eleger 5 entre eles para serem visitados. São eles:

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3.1 Museu de Arte Sacra, situado no centro da cidade ao lado do Mercado Municipal. De acordo com as informações oferecidas pelo monitor o prédio que abriga atualmente o museu trata-se de uma capela construída em estilo neoclássico por volta de 1908, como se pode observar na figura 2, a seguir:

FIGURA 2: Capela Nossa Senhora Aparecida, que abriga o Museu de Arte Sacra. FONTE: foto da pesquisadora

Essa capela foi importante espaço de negociação para os trabalhadores que vinham da roça e traziam suas mercadorias para vender no mercado. Eles aproveitavam para rezar na capela e oferecer água aos cavalos, no bebedouro do lado dela. A antiga igreja de Nossa Senhora Aparecida foi tombada por lei municipal e atualmente faz parte do patrimônio histórico da cidade. Em seu interior estão expostas belas obras sacras que compõem um acervo de cinquenta peças de arte dos séculos XIX e XX como bandeiras de procissão, imagens de santos confeccionadas em madeira e gesso policromado, ostensórios, vestimentas litúrgicas, fotos de procissão e de festas religiosas, baldaquinos de metal e banhados em prata, livros, etc. sendo que todas as peças são acompanhadas de p ainéis explicativos. São José dos Campos é uma cidade de fortes influências religiosas marcada por um calendário católico que enfatiza comemorações tais como: Festa de Santa Cruz, Festa do Divino Espírito Santo, Festa de Santana entre outras.

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As crianças participantes da pesquisa nunca tinham ido ao museu e ficaram surpreendidas com a existência de tantas obras antigas e sacras numa cidade totalmente moderna e industrializada. Dentre as peças apreciadas no interior do museu, as que mais chamaram a atenção das crianças, justificando a foto mostrada como Figura 3, abaixo, foram as batinas e os vestuários sacerdotais para celebrações, expostas no segundo andar da capela. De acordo com a crença popular, confirmada pelo monitor da capela, um padre teria realizado um milagre vestido com uma daquelas batinas.

. FIGURA 3: Vestes litúrgicas FONTE: Foto da pesquisadora

Um dos sujeitos da pesquisa disse literalmente: – Que “da hora”! Tem tipo guardaroupa de padre dentro do vidro! (Sujeito 1- 9 anos). Após a visita ao museu, as crianças ficaram encantadas com a existência de tantas peças religiosas e, um dos sujeitos da pesquisa, de tão encantado, disse que convidaria a sua avó para visitar o museu. Aqui se configura uma ação mediadora de um dos sujeitos, quando envolve, mesmo que de forma indireta, em intenção, outras pessoas a participarem do conhecimento que ali foi possível construir. Outro sujeito mencionou seu interesse pelos painéis explicativos e ficou espantado com a história da vida de uma santa que ficou durante muitos anos presa em uma torre e era filha de pais muito ricos. A criança acreditava que a vida dos santos fosse diferente da vida das pessoas comuns e que não tivesse tanto sofrimento. Como santa, ela não poderia ter ficado presa, segundo o menino. 80 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Na saída do museu já no caminho para casa o Fred bem entusiasmado disse : – Nunca que eu ia vir no museu de Arte Sacra, nem pensava que tivesse esse lugar na cidade”. (Sujeito 2- 10 anos ).

3.2 Biblioteca Municipal A Biblioteca Municipal, diferentemente dos demais espaços administrados pela Fundação Cassiano Ricardo, conta com funcionários que atendem ao público para entregar os livros solicitados. Nela são desenvolvidos projetos de oficinas de histórias e de confecção de fantoches, máscaras relacionadas aos temas do folclore, carnaval, Monteiro Lobato entre outros, sendo coordenados pela professora Maria José Nóbrega, artesã joseense. Porém, o referido trabalho não está relacionado com as obras de Cassiano Ricardo e também não há nenhum vínculo deste com a Fundação Cultural, sendo um projeto interno da Biblioteca Municipal. O prédio é histórico e foi construído para ser teatro em 1910. Depois de reformas passou a ser utilizado para sediar a Biblioteca Municipal que homenageia o poeta e escritor joseense Cassiano Ricardo. Ele foi membro da Academia Brasileira de Letras. Sua obra foi influenciada por costumes rurais, pois quando pequeno adorava ler e percorrer a pé as margens do Rio Paraíba, que atravessa o território joseense. Era tímido e pouco brincava. Escritor com grande projeção nacional dirigia jornais e revistas. Foi, poeta, ensaísta e memorialista, porém o destaque maior da sua obra é para a poesia.

FIGURA 4: Fachada atual da Bib lioteca Municipal, localizada no centro da cidade de São José dos Campos FONTE: Foto da pesquisadora. 81 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


As crianças se encantaram com as poesias do escritor e pediram à estagiária um exemplar do caderno de poesias dele, disponível na Biblioteca. Essa visita, além de muito divertida, proporcionou muitos conhecimentos sobre a vida e a obra do autor e, mesmo que algumas informações literárias não tenham ficado muito claras, foi muito válido e enriquecedor conhecerem sobre um escritor nascido em São José dos Campos. Após a visita, ao chegar em casa um dos alunos participantes, espontaneamente, escolheu uma poesia de Cassiano Ricardo e fez uma ilustração bem divertida sobre ela. – “Puxa! Eu sabia que tinha esse escritor, mas não tinha ouvido falar que ele era nascido em São José dos Campos. Achei legal isso de ter “um cara” famoso aqui”. (Sujeito2, 10 anos).

FIGURA 5: Ilustração de poema feita por u m dos sujeitos da pesquisa FONTE: foto da pesquisadora

3.3 Parque da Cidade Burle Marx O Parque da Cidade fica localizado no bairro de Santana e é mais conhecido como parque „‟Burle Marx‟‟, considerado importante e belíssimo patrimônio turístico histórico, e cultural da cidade.

O Parque abrange

uma extensão de um milhão de metros quadrados

em área verde e pertenceu à família Gomes que veio de São Paulo para administrar a antiga Tecelagem Parahyba, fábrica de brim e de cobertores, situada dentro do parque. Após o acordo entre o Estado e o Município a propriedade passou a ser pública em troca de pagamento de dívidas da família Gomes para com o Estado, que repassou a 82 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


propriedade para a prefeitura, a qual interessou-se pela área. Atualmente, o prédio da antiga fábrica de cobertores foi reformado e abriga a Secretaria de Cultura e o Instituto de Saúde Pública do Estado de São Paulo.( IAMSP). Primeiramente a família morou na casa da sede, algum tempo depois nasce Olívio Gomes em 1949 – arquiteto modernista que é considerado uma das principais referências para compreender o modernismo brasileiro. O arquiteto foi responsável pela construção da residência familiar e sua obra promove elementos inovadores com soluções arquitetônicas que remontam às antigas fazendas coloniais. A residência tem sido utilizada, temporariamente, para sediar cursos e palestras para empresas. O artista plástico Roberto Burle Marx (1909-1994) ficou conhecido por projetos artísticos e trabalhou juntamente com Olívio Gomes na construção da casa da família, bem como executou importantes obras ao lado de Niemyer e foi responsável por todo o projeto paisagístico da propriedade onde hoje se situa o Parque.

FIGURA 6: Jardim da residência da família Go mes, localizada dentro do Parque da Cidade. FONTE: foto da pesquisadora

As informações sobre o local estavam dispostas em painéis explicativos espalhados pelo parque. O grupo que acompanhava a pesquisadora foi autorizado a visitar o interior da casa sede, embora esta estivesse fechada para visitantes. A única restrição feita foi a de não tirarmos fotografias no interior da residência nem da parte externa da casa. Assim, ilustra-se essa visita com a Figura 6, apresentada acima. 83 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Maravilhados com a beleza e tamanho do parque as crianças comentara m sobre o trabalho do arquiteto: –“Nossa! Nunca pensei que o arquiteto fizesse tanto trabalho legal porque é uma profissão que a pessoa é meio jardineiro, engenheiro e projetista. Talvez eu queira ser arquiteto”. (Sujeito 3- 13 anos). A partir da fala do aluno é possível refletir na importância de propiciar ações educativas que abram possibilidades de conhecimento sobre Arte, Cultura, História, profissões e escolhas futuras. Neste sentido

a mediação

está atrelada a

uma

interdisciplinaridade de informações sobre diferentes assuntos.

3.4 Museu do Folclore O Museu do Folclore está localizado na antiga residência da família Gomes construída em estilo arquitetônico neocolonial, expressado por elementos como o tijolo de barro no revestimento, cobertura com telha cerâmica e refinado acabamento interno. A temática do museu é o homem e a sua cultura e tem por objetivo atender as camadas mais amplas da sociedade e reconhecer a importância das diversas culturas para aprender e ensinar a respeitar a diversidade. Na ótica da organizadora, o museu ajuda o homem a viver a globalização sem perder a sua identidade. Nesse espaço foram encontradas poucas informações sobre a cidade, apenas peças confeccionadas em argila por artistas desconhecidos, máscaras, bonecões e roupas utilizadas nas festas de Folias de Reis em comemoração ao Divino Espírito Santo. A informação mais relevante para as crianças foi conhecer sobre a Santa Perna, que pode ser observada na Figura 7, apresentada a seguir. Conforme contam os antigos, a imagem teria sido encontrada na beira de um rio no bairro do Jaguari. A perna era milagrosa, de acordo com a crença do povo, conforme informou a funcionária do museu que atendeu ao grupo, pois curava feridas. Ao lado da imagem estavam as mensagens de agradecimentos das graças alcançadas pelos fiéis.

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FIGURA 7: Sala do Museu do Folclore de S. J. dos Campos. SP - Santa Perna, no canto inferior esquerdo, ao lado de mensagens dos seus devotos FONTE: Foto da pesquisadora

A comida e os sistemas alimentares fazem parte da identidade e cultura de um povo e a funcionária do Museu informou que a comida típica da cidade é o bolinho caipira, preparado com carne crua no recheio e massa de farinha de milho, depois frito em óleo bem quente. No momento da visita não havia comida típica para ser servida, mas apenas informações sobre elas. O Museu do Folclore tem um programa chamado Museu Vivo e Cultura Popular Expressão da Identidade no qual pessoas da comunidade expõem de maneira prática se us saberes (saber- fazer) nas tardes de domingo. Assim, o tradicional bolinho caipira, o bolo de fubá, a taiada- doce feito com caldo de cana e farinha de mandioca – são feitos na presença dos visitantes e consumidos por eles.

3.5 Parque Vicentina Aranha Segundo as informações obtidas com funcionários no local, por volta de 1914, o Hospital Central de São Paulo não dava conta de atender ao alto número de vítimas da 85 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


enfermidade pulmonar conhecida como tuberculose e Dona Vicentina de Souza Aranha, ilustre dama da sociedade paulista, que dedicava sua vida à luta contra aquela doença, organizava muitas quermesses no Jardim da Luz para arrecadar recursos para a construção de um sanatório. Foi então que a Santa Casa de São Paulo, em acordo com a municipalidade de São José dos Campos adquiriu uma Chácara para a edificação do hospital, mas, Dona Vicentina faleceu de tuberculose antes de a construção ficar pronta e o seu marido propôs que fosse dado o nome da esposa ao hospital. A construção foi do arquiteto e engenheiro campineiro Francisco de Paula Ramos de Azevedo (8/12/1851 a 01/07/1928) grande arquiteto formado na Bélgica e depois estabelec ido em Campinas, onde foi responsável pela construção da catedral da cidade. Desenvolveu muitos projetos arquitetônicos ao longo de sua carreira. Seu modelo de Arquitetura possibilitou a integração de técnicas e materiais do mundo industrial aos programas e moldes de urgente modernização da época, seus projetos respondem com talento e competência aos novos conhecimentos, à Arte e à racionalidade. Ramos de Azevedo revela um conhecimento técnico sobre as construções de hospitais e chefiou várias obras de construções hospitalares dentre elas destaca-se o sanatório Vicentina Aranha reconhecido como o melhor e o mais completo arranjo espacial de hospital que configura a obra mais importante da América Latina na década de 20. O prédio do hospital, mostrado na Figura 8, a seguir, é do tipo pavilhonar: possui edifício central com várias edificações de apoio ao redor, e na época, contava com pomar, biblioteca e horta. Trata-se de uma arquitetura clássica do ecletismo da época e era uma entidade independente da cidade e foi inaugurado pelo Dr. Washington Luiz Pereira de Souza, então governador de São Paulo, em 1924. O piso era original de cerâmica francesa, na entrada do hall da frente do pavilhão central, apresenta uma marquise de ferro fundido no estilo Art Nouveau. Contempla um belíssimo paisagismo com canteiros em desenho ao estilo Versailles. Nos bosques há espécies raras de plantas como araribá, louro, cabreúva, mogno, peroba-rosa, jequitibá, jacarandá da Bahia, sapucaia, pau mulato, entre outras. O sanatório funcionou até os anos 80, cessando nesse ano suas atividades. Tempos depois passou a ser utilizado como hospital geriátrico e, em 1996, conforme a Lei Municipal 86 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


4928/96 de 28/08/96, a prefeitura incluiu as dependências do hospital na categoria de “setor de preservação”. O tombamento foi feito em 1998, pela Secretaria da Cultura, através do CONDEPHAAT. .

FIGURA 8: Vista parcial do antigo Sanatório, hoje Parque Vicentina Aranha FONTE: site oficial da cidade

Atualmente nas dependências do Parque funcionam espaços para caminhada no bosque, o projeto “Leitura no Bosque” proporcionado pela Secretaria da Cultura apresentação de orquestra sinfônica, missas aos domingos na capela, visitas monitoradas. O espaço conta com uma capela dedicada ao Sagrado Coração de Jesus, totalmente financiada pelo conde Lara, natural de Tietê- SP. Atualmente, patrimônio do Município, a capela serve de palco para apresentações da Orquestra Sinfônica da cidade. O patrimônio é muito valorizado pelos moradores que sentem verdadeiro orgulho por essa propriedade tão grandiosa do ponto de vista estético, artístico e cultural, onde a natureza, a arquitetura e a atividade humana se completam. Após cada visita os participantes desenharam os locais que tinham conhecido para a construção do mapa coletivo, conforme mostra a Figura 9, a seguir, proposto no início da pesquisa. Foi discutido entre as crianças como seria construído o mapa contendo todos os lugares visitados. Elas definiram o tamanho do papel e uma delas sugeriu que fossem recortados os desenhos feitos e colados em outro fundo para ser o cenário do novo mapa.

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Este foi montado em cartolina, incluindo recortes de revistas, pintura com giz de cera, colagem com terra e imagens retiradas do site oficial da cidade, além dos desenhos feitos durante as visitas. A construção do mapa representou um importante momento da pesquisa porque trouxe oportunidade de trabalho em grupo, discussão de quais estratégias seriam as melhores para ilustrar a caminhada, abriu a possibilidade de ouvir o outro, de repensar as idéias que iam surgindo a cada minuto e principalmente e de desenvolvimento da criatividade e colaboração entre os membros do grupo .

FIGURA 9: Mapa coletivo fe ito pelos participantes da pesquisa. FONTE: Foto da Pesquisadora

4. Considerações Finais Como pedagoga e autora desta pesquisa sobre o patrimônio cultural, a pesquisadora acredita que se faz necessária uma ação mediadora que mobilize as pessoas à descoberta, à investigação sem o formato escolar, de aula expositiva ou visita monitorada.

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Com jeito de conversa de tarde de domingo aconteceram, nas sextas- feiras, as visitas aos locais considerados patrimônios culturais da cidade e foi feito o possível para que a ação se tornasse acolhedora e prazerosa, abrindo sempre espaço para o pensar, o agir, o perceber das crianças em sua forma singular, pois Arte e História não fazem parte só da escola, mas acontecem nos espaços onde as pessoas vivem, convivem, interagem umas com as outras. As visitas por São José dos Campos para conhecer e visitar seu patrimônio cultural mostraram que a cidade não é um lugar estático com informações decodificadas, mas um lugar de movimento que abriga, produz e reproduz cultura através dos tempos. Neste sentido, conhecer a identidade cultural torna possível valorizar e preservar aquilo que se reconhece como seu. Olhar o conhecido com olhos diferenciados foi muito prazeroso durante a pesquisa e desenvolveu nas crianças o sentimento de responsabilidade, curiosidade e desejo de saber mais. A ação mediadora é diferente de ensinar e não se constitui como metodologia, mas, como uma atitude que propõe postura investigativa e interdisciplinar que envolve a capacidade de pesquisar do mediador atento ao seu grupo e ao que se quer estudar. Diferentemente de transmitir informações prontas, mediar é romper com o que está definido, é ter um olhar ampliado que possibilita ao outro a descoberta. E isso foi o que ocorreu nessa pesquisa por meio da mediação. É surpreendente identificar o quanto as crianças são abertas aos conhecimentos estéticos. A partir dessa experiência sensível foram identificados nos registros e nas falas dos participantes, a presença de sensibilidade, pensamento estético, percepção e desejo de aprender sobre Arte e História e, principalmente, a capacidade dos sujeitos em mediar com outras pessoas as informações dialogadas durante as visitas. Os conhecimentos abordados nas visitas evidenciaram importantes informações sobre a arquitetura joseense, a história e a arte da cidade e chegou-se à conclusão de que a cidade tem grandes representações do momento histórico modernista. Em toda a minha jornada docente, eu nunca havia trabalhado de forma tão diferente alegre, comprometida e prazerosa. A mediação permitiu uma dinâmica que envolveu

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pesquisador e sujeitos de forma tal que os estudos, investigações e curiosidades sobre o patrimônio foram construídas conjuntamente. A pesquisa foi uma experiência muito rica que desenvolveu o exercício do olhar e ampliou as possibilidades de expressão, atenção, interpretação, pensamento, improvisação e principalmente o desejo de buscar informações significativas sobre o assunto julgado interessante. Referências Bibliográficas BARBOSA, Ana Mae (Org.) Arte/ Educação Contemporânea. Consonâncias Internacionais. São Paulo. Cortez, 2005. BARBOSA, Ana Mae e COUTINHO, Rejane Galvão (Orgs.). Arte/ Educação como Medi ação Cultural e social. São Pau lo: Ed itora Unesp, 2009. MARTINS, Miriam Celeste; PICOSQUE, Gisa; GUERRA, M. Terezinha Telles. Teori a e Prática do Ensino da Arte. A Língua do Mundo. S. Paulo : FTD, 2010. PREFEITURA DA CIDADE DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS. SP. Fotos de locais do acervo patrimonial do município. Disponíveis em < http://www.sjc.sp.gov.br/>. Acesso em: 17 out. 2011. PROGRAMA MUSEU VIVO. Cultura Popular e expressão da Identi dade. Fo lder de divulgação. Idealização do Museu do Folclore da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, de São José dos Campos.

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FORMAÇÃO DO PROFESSOR PESQUISADOR DE ARTES VISUAIS: Discursos e Contextos Sônia Tramujas Vasconcellos 1 Resumo: Apresentam-se reflexões sobre a produção de pesquisa na esfera da formação inicial do professor de artes visuais, destacando-se resoluções como a que aprova as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Artes Visuais (Resolução CNE/CES nº 1 de 16 de janeiro de 2009), circunstâncias oficiais e contextos de espaços formativos. Orientando -se em autores que discutem a relevância da pesquisa, de processos de criação e da exposição de si na produção de textos/obras (Charlot; Fischer; Salles; Corazza; Foucault), questionam-se, a partir da vivência na orientação de trabalhos de conclusão de curso, a dificuldade da escrita, da apropriação de autores e conceitos, do receio em inserir processos próprios de criação, marcas de autoria. Situações que afastam a pesquisa da docência e que afetam a formação do professor pesquisador. A pesquisa é de caráter exploratório, com o objetivo de clarifica r os objetivos da inserção da pesquisa na formação inicial do professor de arte e de evidenciar os desafios percebidos no cotidiano acadêmico de orientação de pesquisas. Por fim, apresentam-se algumas reflexões sobre modos de aproximação entre criação, autoria e pesquisa com o intuito de integrálas na produção de trabalhos acadêmicos e, principalmente, na constituição identitária do professor de arte. Estas aproximações se nutrem do pressuposto de que é necessário que se façam intervenções, reinterpretações, críticas, deslocamentos, mas enquanto ações constitutivas da experiência do próprio pesquisador e que, portanto, o afetam, o modificam. Pressuposto que insere o exercício da pesquisa, da escrita, do pensamento e da criação como uma “arte da existência”, uma marca de si ao se falar do outro, um olhar pessoal sobre outros olhares, outros autores. Em outras palavras: a ação de investigar é também uma ação de dar sentido ao que se pesquisa. Palavras-chave: Pesquisa na graduação. Formação inicial do professor de artes visuais. Professor-pesquisador. Criação. Autoria. Abstract: Presents reflections on the production of research in the sphere of initial teacher of visual arts, especially resolutions as approving the National Curriculum of the Graduate Program in Visual Arts (CNE/ CES n. 1 January 16 2009), circumstances and contexts of official training spaces. Guided by authors who discuss the relevance of research, process creation and exhibition of itself in the production of texts/works (Charlot; Fischer; Sa lles; Corazza; Foucault), wonders from the experiences on the orientation of completion of course work, the difficulty of writing, the appropriation of authors and concepts, the processes put in fear of their own creation, authoring brands. Situations that deviate from the teaching and research affecting teacher education researcher. The research is exploratory, aiming to clarify the objectives of the integration of research in initial teacher of art and highlight the challenges perceived in everyday academic research orientation. Finally, we present some reflections on ways of bringing together creation, authoring and research in order to integrate them in the production of academic papers and mainly in identity constitution art teacher. These approaches are nourished from the assumption that it is necessary to make interventions, reinterpretations, critical displacements, but as actions constituting the experience of the researcher and therefore affect the change. Assumption that the exercise is part of the research, writing, thinking and creation as an “;art of existence”, a brand of himself when speaking of another, a personal look on other viewpoints, other authors. In other words: to investigate the action is also an action to make sense of that research . 1

Professora da Faculdade de Artes do Paraná, instituição pública de ensino superior em processo de transformação em UNESPAR (Universidade do Estado do Paraná). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná/ UFPR e atualmente realizando doutoramento nesta mesma u niversidade. 91 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Keywords: Research in graduation. Initial training of teachers of visual arts. Teacher-researcher. Creation. Author.

Ponto de Partida A reflexão que fundamenta este artigo parte do contexto oficial e acadêmico de formação do professor de artes visuais que enfatizam a inserção de disciplinas e práticas de investigação científica, como as de Metodologia de Pesquisa e as que culminam no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Estas práticas visam propiciar ao futuro profissional o contato com diversos aspectos da produção científica com aprofundamento teórico e metodológico e é neste contexto que trago a tona algumas considerações e indagações provenientes de meu papel como professora da Faculdade de Artes do Paraná (FAP) em disciplinas de pesquisa.

De onde falo Atuo no curso de licenciatura em Artes Visuais da FAP (antigo Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas) desde 1999 e inicialmente atuava em disciplinas relacionadas aos fundamentos do ensino de arte e estágio. No ano de 2006 houve uma re forma curricular no curso, com a inserção do Trabalho de Conclusão de Curso no formato da disciplina de Pesquisa no Ensino de Arte, realizada no último ano, com 150 horas. Em 2010 esta disciplina foi dividida: 60 horas para a Pesquisa no Ensino de Arte I, com enfoque na construção do projeto de pesquisa e formalização de orientação via aceite pelo orientador; e 90 horas para Pesquisa no Ensino de Arte II na qual o acadêmico realiza uma breve revisão do projeto, na disciplina e com o orientador, e adentra na construção da pesquisa, com fundamentação teórica, pesquisa de campo e análise de dados com base em autores. Os alunos da licenciatura em Artes Visuais da FAP associam suas temáticas às seguintes linhas de pesquisa: Ensino de arte e processos de mediação, História, teoria e crítica da arte e Poéticas visuais. Esta abertura de linhas é resultado de um extenso debate entre professores e alunos do curso de licenciatura, no qual uma parte expressiva defende que o exercício investigativo de questões relacionadas à arte no ensino, seja no contexto educacional, poético ou teórico, capacita melhor o professor na mediação do objeto arte. Após definir a linha de pesquisa o acadêmico precisa argumentar na introdução do trabalho a relevância da investigação desenvolvida para a formação/atuação do professor de artes visuais. 92 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Esta abertura de caminhos investigativos é percebida por alunos e professores como um ganho para o curso, para a formação profissional. Os simpósios anuais realizados pelo colegiado de curso enfatizam esta triangulação de campos. Atuo nestas disciplinas desde sua criação e, deste modo, vivencio, observo e interfiro na relação e reação do acadêmico com a pesquisa. Nas diversas situações percebidas, destaco o estranhamento de muitos alunos com este exercício de investigação, com o que se solicita como formato de pesquisa, de apresentação e análise de dados, de formulação de pontos de vista. Neste contexto tenho continuamente me interrogado sobre a real reverberação destas práticas no entrelaçamento entre pesquisa e docência, na formação do professor pesquisador.

Percepções dos acadêmicos A formulação de um projeto e a efetivação da pesquisa são percebidas pelos acadêmicos como ações importantes para o fortalecimento de sua formação. Mas para muitos estas ações não são vitais, não se mesclam de modo formativo com suas indagações, suas curiosidades. São entendidas como uma exigência acadêmica, uma cultura de pesquisa que por vezes os amedrontam. Para Charlot (2005, p. 95), “a formação não é simples aprendizagem de práticas, ela é também acesso a uma cultura específica” e esta cultura atrelada à educação profissional não pode ser distinta do exercício real e cotidiano da profissão. A investigação reflexiva, crítica e rigorosa possibilita a percepção e construção de uma prática social. Mas onde está o aluno autor que mostra, entre titubeios e caminhos incertos, sua interpretação de pesquisa? Ensinar e aprender envolve, por parte de professores e alunos, investigação, pesquisa, elaboração, reformulação, participação, transformação, investigação, pesquisa. O professor opta “por conhecimentos a serem divulgados e por uma determinada ação educativa” (RODRIGUES, 2009, p. 94-95), mas para realizar determinadas escolhas ele precisa de “uma sólida base epistemológica, condição necessária para um trabalho educativo consistente” (idem, ibidem). Deste modo não estou aqui dizendo que rigor e base epistemológica não são importantes e sim que estas premissas precisam ser introjetadas e afetadas pelo aluno pesquisador. Ao iniciar a elaboração do projeto de pesquisa, o estudante se inquieta: o que é válido pesquisar? O que escolher entre infindáveis inquietações? Linhas de pesquisa e áreas 93 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


de conhecimento são apresentadas, mas o problema de pesquisa demora a surgir. Que assuntos são considerados “importantes” para a profissão? Que objeto de pesquisa será aceito pelo professor orientador? Esta ansiedade inibe e ofusca, muitas vezes, o que de fato gostariam de pesquisar e a relação com o projeto de pesquisa nem sempre se insere de forma autoral, entre criador e criação. Por vezes falta a esta viagem-percurso de constituição da pesquisa a reflexão sobre as trocas, as mudanças, as transformações. Onfray (citado por Diel, 2011, p. 6) propõe uma “geografia poética” para este percurso. E avisa: Viajar conduz inexoravelmente à subjetividade. Divid ida, frag mentada, espalhada ou compactada, é sempre diante dela que acabamos por chegar, como diante de um espelho que nos convida a fazer um balanço de nosso trajeto socrático: o que aprendi de mim? O que posso saber com mais certeza do que antes da minha partida?

As avaliações que os acadêmicos fazem do trabalho de conclusão de curso são positivas no sentido de propiciar o exercício da pesquisa, da reflexão, do contato com autores, com distintos tipos de pesquisa de campo e de análise de dados. Mas destacam a dificuldade em entender “como” realizá- la, como enquadrar sua dúvida investigativa nas normas que esta atividade exige. Este estranhamento com o formato da pesquisa denota o seu pouco uso no curso e o distanciamento deste modelo de pesquisa com processos próprios e individuais de investigação, de busca de respostas e caminhos que possibilitem uma mudança de lugar, de si próprio.

O que percebo, o que proponho A realização de trabalho de conclusão de curso ou monografia de final de curso é parte integrante dos cursos de graduação e instaurou, de modo mais sistemático, a formação em pesquisa dos acadêmicos. A Resolução que aprova as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de graduação em Artes Visuais (nº 01 de janeiro de 2009), afetando os Projetos Políticos Pedagógicos dos cursos de bacharelado e licenciatura em Artes Visuais, evidencia a iniciação à pesquisa como necessária à formação, “objetivando a criação, a compreensão, a difusão e o desenvolvimento da cultura visual (BRASIL, 2009, inciso II). Mas que práticas instauramos no curso de formação de professores de artes visuais?

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Irene Tourinho e Raimundo Martins (2010), ao refletirem sobre os projetos de investigação, seu desenvolvimento e direcionamentos no curso de licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, demarcam questões que os têm desafiado – e desatinado – nesta experiência de contribuir para que a pesquisa faça parte do conhecimento e da experiência profissional dos (futuros) professores. (...) Não são temas novos nem emergentes. Eles surgem da experiência acu mulada de profissionais que, como nós, entendem a docência como u ma p rática atrelada à pesquisa e, ao mesmo tempo, entendem a pesquisa como uma prática que fundamenta, organiza e renova a docência. (TOURINHO; MA RTINS, 2010, p. 7273).

Os autores apresentam quatro desafios que enfrentam no exercício de formar professores pesquisadores: a construção de uma concepção de ciência e de método; a escolha do tema e a arquitetura do trabalho; a escrita da pesquisa e a apresentação do trabalho. Leio as questões com interesse e entusiasmo, e me reúno a eles nestes desafios e desatinos. Desconstruir e abalar concepções de ciência e método é uma tarefa que precisamos enfrentar. Não é uma ação fácil. A experiência de muitos estudantes com a pesquisa se atrela a busca de respostas como sinônimo de certezas e verdades. Esta concepção dificulta a compreensão de que somos sujeitos da pesquisa, que nossas interrogações e pontos de vista afetam as nossas escolhas e respostas. Essas são parciais e provisórias. “Não há vias pré-definidas, a experimentação é uma aliada e o acaso deve ser considerado” (TOURINHO; MARTINS, 2010, p. 75). Contudo, ainda que o questionamento de caminhos pré-estabelecidos seja realizado por vários professores, percebo o quanto, como professora da disciplina e orientadora, reduzo o papel da experimentação e de novos modos do estudante-pesquisador revelar e relatar sobre situações e fatos percebidos. Algo se mostra urgente: investir em processos de criação, de construção da pesquisa, incorporando “seu movimento construtivo” ( SALLES, 2006, p. 13). A pesquisadora Cecília Salles discute processos de construção de obras de arte, mas suas indagações me auxiliam e se cruzam com as minhas sobre processos de pesquisa. Como não traçar um paralelo com a sua discussão de “pensamento em construção”? Das “obras como objetos móveis e inacabados”? “Uma abordagem cultural em diálogo com interrogações contemporâneas (Bias i, 1993), que encontra eco nas ciências que discutem verdades inseridas em seus processos de busca e, portanto, não absolutas e finais” (SALLES, 2006, p. 13).

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A autora insere as descobertas como resultantes do próprio processo, que são documentados, registrados e se tornam importante fonte de análise. Este é um caminho possível de pesquisa, ainda que não o único. O que me chama a atenção é a possibilidade de evidenciarmos o percurso da pesquisa, modos do estudante registrar, anotar e refletir sobre o que está investigando. Muitas vezes preocupada na validação dos dados, dos relatos, posso estar “varrendo para longe” modos próprios de se construir descobertas e pontos de vista. Sinto- me próxima de Foucault, autor que aliou o rigor no tratamento de documento s com uma notável abertura a possíveis transformações do próprio pensamento, fazendo e refazendo as próprias afirmações. Fischer (2007, p. 42-43) destaca as ricas lições apreendidas na trajetória de trabalhar com Foucault, destacando a relação inseparável da teoria e prática deste autor, assim como sua concepção de discurso, como uma prática que forma os objetos de que fala, nas relações de poder e saber. Ou seja, os textos não são realidades mudas, revelam sentidos escondidos que a análise de discurso mate rializa. Uma teoria que se torna método. Estas constatações tencionam o modo como oriento os alunos a selecionar autores, ler artigos, resumindo os pontos principais que se relacionam com seu tema/objeto para “aplicá- los” na pesquisa. Cada vez mais considero que já na graduação precisamos incentivar a paixão pela pesquisa, por autores, pela escrita, ampliando nosso olhar e revendo nossos pressupostos sobre o modo como o aluno faz as relações e ponderações no seu texto. E chego no “ponto de basta” de Sandra Corazza (2007, p. 104), “onde é necessário parar e pensar: afinal, como é mesmo que venho fazendo meu movimento de pesquisa?” o que este movimento revela das minhas coordenadas, das curvas de visibilidade, das linhas de sedimentação e também das fraturas, das mudanças de foco? Nas palavras da autora, um movimento de “mapear o terreno e cartografar as linhas de trabalho nele realizado”. Tento, deste modo, prestar contas sobre as conquistas, descobertas e resíduos que percebo na minha trajetória como professora e orientadora. Mas concordo com Corazza de que não é fácil dobrar-se sobre o trabalho de pesquisa e sobre si mesma. Pois ao apresentar algumas reflexões sobre modos de aproximação entre criação, autoria e pesquisa na produção de trabalhos acadêmicos, revelo também as minhas angustias e dificuldades na instauração deste diálogo. Ao externar estas inquietações procuro direcionar o foco para a necessidade vital de intervenções, reinterpretações, críticas, deslocamentos como ações constitutivas da

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experiência do próprio pesquisador e que, deste modo, o afetam, o modificam. Nas palavras de Foucault, sair-se do que se é para criar outros possíveis de ser (2006).

Conclusões emaranhadas As indagações e questionamentos sobre os caminhos trilhados pelos alunos na construção da pesquisa revelam meu desejo de manter percursos e construir novos, afetados pela produção de significados próprios do campo da arte e da educação, divergentes de concepções naturalizadas que nos aprisionam. Defendo, cada vez com mais vigor, a importância da pesquisa já na graduação para que o futuro professor de arte a insira em sua prática cotidiana, socializando questões relacionadas a arte e seu ensino. O que se apresentou aqui é que este percurso não é tranqüilo, não é externo ao suje ito. As formas de subjetivação atravessam e produzem as práticas de pesquisa (CORAZZA, 2007). Precisamos, deste modo, rever os estatutos que balizam o Trabalho de Conclusão de Curso se acreditamos, e eu acredito, que a investigação, ao mesmo tempo em que é afetada e se constitui pela nossa interpretação, também nos transforma. Quero, sim, vivenciar, participar, afetar e ser afetada pelo licenciando-pesquisador no percurso-construção de sua pesquisa.

Referências BRASIL. Resolução n. 1 de 16 de janeiro de 2009. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2009/rces001_09. pdf. Acesso em 03 de abril de 2012. CHARLOT, Bernard . Relação com o saber, formação dos professores e globalização: questões para a educação de hoje. Porto Alegre: Art med, 2005. CORAZZA, Sandra. Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos. In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). Caminhos investigati vos I: novos olhares na pesquisa em educação. 3. ed. Rio de Janeiro: Lamparina Ed itora, 2007, p. 103-128. DIEL, Maria do céu. Escritos. Campinas: Império do livro. 2011. FISCHER, Rosa M. B. A paixão de trabalhar co m Foucault. In: COSTA, M . V. (org.). Caminhos investigati vos I: novos olhares na pesquisa em educação. 3 ed. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2007, p. 39-60. FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos III. 2. Ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2006. RODRIGUES, L. M. O. Pesquisa científica e formação de professores. In: FELDMA NN, M. G. (org. ). Formação de professores e escola na contemporanei dade . São Paulo: SENAC São Paulo, 2009, p. 81-96 SALLES, Cecília A. Redes da criação: construção da obra de arte. 2 ed. São Paulo : Ed. Horizonte, 2006. 97 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


TOURINHO, Irene; MARTINS, Raimundo. Desafios e desatinos na formação de professores pesquisadores: entre realidades, necessidades e imaginação. In : FREITAS, N.; RAMALHO E OLIVEIRA, S. (orgs.). Proposições interati vas: arte, pesquisa e ensino. Florianópolis: Ed . da UDESC, 2010, p. 71 -88.

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GT EDUCAÇÃO E ARTE DA ANPED: Analisando a produção sobre a formação de professores de arte Yáskara Beiler Dalla Rosa 1 Resumo: Os estudos na temática da formação de professores tem se intensificado nas últimas décadas. Esse impulso se concretiza tanto pelas necessidades da prática pedagógica quanto pela crescente legislação que busca regulamentar a formação nos cursos de graduação para o atendimento das demandas da Educação Básica. Igualmente os professores de artes se veem afetados por essa transformação, fato que estimula os pesquisadores a buscarem compreender como o fenômeno da formação em artes se constitui dentro do cenário educacional. Esta pesquisa tem como objetivo analisar o que se tem discutido em relação à formação de professores de arte no binômio arte-educação. Para isso, foi feito um levantamento dos trabalhos completos das 32ª, 33ª e 34ª Reuniões Anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), correspondentes aos anos de 2009, 2010 e 2011. A busca ocorreu no GT24 – Educação e Arte, incluído na ANPEd à partir da 32ª Reunião. Dos quarenta e cinco artigos publicados nesse período, nove abordaram o tema, o que representa uma porcentagem muito pequena para um assunto em destaque na atualidade. Os pesquisadores que escreveram os artigos possuem em sua maioria doutorado, sendo que oito são do sexo feminino e dois do masculino. Dos dez pesquisadores, cinco tem graduação em educação artística, quatro em pedagogia e um em história. Apenas dois não possuem doutorado e dos oito que já concluíram, seis realizaram o doutorado em educação, um em artes e outro em psicologia. Além disso, um dos pesquisadores está com o pós-doutorado em educação em andamento. Nos artigos pesquisados, os principais autores utilizados como fonte de pesquisa foram: Dewey, Hernández, Ferraz e Fusari, Pillar, Foucault, Freire, Deleuze e Guattari e também Barbosa. Para o desenvolvimento deste artigo foi realizada pesquisa no sitio da ANPEd e pesquisa bibliográfica. O GT24 – Educação e Arte vêm reforçar a importância da pesquisa em artes a fim de que os novos desafios da escola sejam atendidos e para que a arte seja ministrada com qualidade na escola. O artigo discorre sobre o que vem sendo estudado, sobre as dificuldades encontradas no material analisado em se ter claro um objetivo, sendo que a maior parte deles traz apenas levantamentos teóricos como resultado. Algumas sugestões de aspectos que ainda podem ser abordados dentro dessa temática também são feitas, como o trabalho da arte e de novas tecnologias em uma escola inclusiva. Além disso, o artigo é uma ferramenta de pesquisa e reflexão para graduandos e pesquisadores em arte. Palavras-chave: Educação. Arte. Formação de professores.

Abstract: Studies on the subject of teacher training have grown in recent decades. This is due to both the needs of pedagogical practice and the increasing legislation that seeks to regulate the training in undergraduate courses to meet the demands of basic education. Art teachers also find themselves affected by this transformation, a fact that encourages researchers to seek to understand how art training is arranged within the educational framework. This research aims at analyzing what has been discussed about the training of art teachers in the art x education binomial. A survey has been made of the complete works of the 32th, 33th and 34th Annual Meeting of the National Association of Graduate Studies and Research in Education (ANPEd) in the years 2009, 2010 and 2011. The search occurred in GT24 - Education and Art and included in the ANPEd from the 32nd Meeting. Out of the forty-five articles published during this period, nine address the issue, which representsonly five per cent. The researchers who wrote the articles mostly have doctorate degrees, eight are female and two are male. Out of ten researchers, five 1

Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, bolsista de Desenvolvimento Tecnológico Industrial do CNPq - Nível C / UDESC. 99 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


have degrees in art education, four in education and one in history. Only two did not have a doctorate degree; eight have completed it: six in education, one in art and one in psychology. Moreover, one of the researchers is undertaking a postdoctoral in education. In the articles surveyed, the main authors used as a source of research were Dewey, Hernández, Ferraz and Fusari, Pillar, Foucault, Freire, Deleuze and Guattari and also Barbosa. A thorough research was made in the site of ANPEd and in related literature for the development of this article. The GT24 - Art Education reinforce the importance of research in the arts' field so that the new challenges for quality are met. The article discusses the studies abou t the difficulties found in having a clear goal in the subject analyzed since most of them have only brought theoretical results. Some suggestions that can still be addressed within this matter are also made such as the role of art and new technologies in an inclusive school. Furthermore, the article is a research tool and reflection for undergraduates and researchers in art. Keywords: Education. Art. Teacher training.

1. Introdução A formação de professores de artes tem sido amplamente discutida em âmb ito nacional. Desde que a disciplina de artes passou a ser obrigatória nas escolas, há uma preocupação quanto aos conteúdos e o que tem sido ministrado nas aulas. Essa preocupação ficou clara na pesquisa feita nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd, a partir da 32ª Reunião Anual, quando foi incluído o GT 24 – Educação e Arte. Este artigo tem como objetivo analisar o que se tem discutido em relação à formação de professores de arte no binômio arte-educação. Alguns dos artigos pesquisados buscam respostas para seguintes questões: 1. Qual a contribuição de Dewey para a formação de professores (SILVA, 2011); 2. Como acontece o cruzamento entre os pensamentos de Deleuze e Guattari e a proposta triangular (ZORDAN, 2011); 3. Como a arte pode concorrer para mudar uma política cognitiva na formação de professores (DIAS, 2010); 4. Como refletir sobre as relações entre a formação docente em artes visuais e o estágio curricular na modalidade de educação à distância (GUIMARÃES; OLIVEIRA, 2010); 5. Como investigar de que forma a arte contribui para a formação de professores cursistas (LINHARES, 2009); Dos nove artigos pesquisados, quatro foram escritos por professores de arte, quatro por pedagogos e um por uma pesquisadora da área de história. Trata-se de uma pesquisa

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bibliográfica que aborda a formação de professores e de uma pesquisa feita no sítio da ANPEd para análise dos artigos avaliados. A justificativa deste artigo está no fato de que os professores precisam de respostas para melhor trabalhar com os alunos em sala de aula e, assim, formar professores cada vez mais seguros do trabalho que desenvolvem.

2. Buscando respostas para a formação de professores A disciplina de Artes, desde que se tornou obrigatória, passou sempre por diversas discussões, a começar pela qualificação do professor que ministra a disciplina. Ou seja, quem é o profissional habilitado para lecionar a disciplina de artes? Quem é o professor de artes que estamos formando? Como relata Barbosa (2011), em nosso país nem mesmo a obrigatoriedade das leis garante que os estudantes tenham um ensino/aprendizagem que os tornem aptos para compreender a Arte. O que ainda pode ser feito? Para Barbosa (2011, p. 15),

A falta de um aprofundamento dos professores de Ensino Fundamental e Médio pode retardar a Nova Arte-Educação em sua missão de favorecer o conhecimento nas e sobre Artes Visuais, organizado de forma a relacionar p rodução artística com análise, in formação histórica e contextualização.

Em seu livro A Formação de Professores de Arte: diversidade e complexidade pedagógica (2005), Maria Cristina da Rosa faz um histórico do ensino da Arte em nosso país e diz que o Movimento Escola Nova influenciou toda uma geração de professores de Arte no Brasil. Relata também que este fato é percebido ainda atualmente “não só na área de arte como também em outras áreas do currículo escolar [...] principalmente pelas idéias que ligam a produção artística com os conceitos de liberdade, dom, emoção e expressividade”( ROSA, 2005, p. 37). Nos materiais pesquisados para a elaboração deste artigo, é curioso perceber que entre quarenta e cinco artigos, em três anos de ANPEd, apenas nove discutiram sobre formação de professores. Talvez algum não tenha sido computado, mas se ocorreu, foi pelo fato de em grande parte faltar objetividade no assunto. Não foi raro, por exemplo, encontrar 101 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


artigos onde nem mesmo o objetivo era claro. Todos esses materiais pesquisados são artigos publicados entre os anos de 2009 e 2011, publicações muito recentes portanto e, mesmo assim, apenas vinte por cento de todo o material discute a formação de professores. Os artigos analisados para esta pesquisa, a grande maioria escrita por profissionais de artes, são ensaios sobre a formação de professores. Há ainda, ao que parece, uma necessidade da elaboração de teorias e reflexões a fim de compreender a atuação dos profissionais de hoje. Silva (2011), um dos autores dos artigos da 34ª Reunião escreveu:

[...] é preciso buscar nos fundamentos da Educação, da Arte e do seu ensino elementos para uma teoria da formação em arte, co mo já proclamava, desde a Década de 1980, a Pro fessora Noêmia Varela, precursora dos primeiros cursos de formação in icial e continuada para arte/educadores realizados no Brasil.

Zordan (2011), outra das pesquisadoras da 34ª ANPEd, descreve que: “O que trazemos aqui mostra o quanto, apesar dos avanços da pesquisa sobre ensino e arte no Brasil, a realidade das artes na sala de aula apresenta problemas parecidos com os detectados desde antes deste campo de estudos específicos ser estabelecido e ampliado academicamente”. Profissionais da pedagogia mostram uma preocupação em discutir a formação de professores e, principalmente de mostrar possibilidades para os professores que trabalham artes na educação infantil. Pontes (2011) relata que:

Os contextos culturais de produção e apreciação ganham relevância, o que permite perguntar como esses contextos estão sendo considerados na formação de professores e como esses professores, enquanto leitores de arte, têm v ivenciado experiências estéticas e promovido experiências em suas escolas.

É frequente ser oferecida nos cursos de Pedagogia apenas uma disciplina que aborda a arte na educação, sendo que as principais necessidades que estes pro fessores tem enquanto alunos de graduação é a de que forma trabalhar arte na educação infantil. Questionam sobre o tipo de exercícios que podem ser dados aos alunos e muitas vezes ficam frustrados quando descobrem que não há uma receita. Há também nesse mo ntante, uma pesquisadora de história que escreveu um artigo baseado em oficina oferecida a um grupo de professores. Em se tratando dos professores da área de artes, Rosa (2005) diz que existe uma dicotomia entre cursos de Bacharelado e de Licenciatura, problema esse já superado em boa parte das universidades que oferecem cursos de arte. A autora continua dizendo que: 102 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Particularmente na área de Educação Artística está colocada uma questão central para nosso estudo que é a dicotomia entre o artista e o professor de artes [e que para Vianna] o professor deverá ser também u m pesquisador, o que poderia se traduzir para a nossa questão específica, que o professor deverá ser também u m art ista. (ROSA, 2005, p. 21).

Talvez, a questão central seja que a pesquisa em arte, em formação de professores não pode estagnar. Guimarães e Oliveira (2010) dizem que:

[...] a formação docente conecta-se às mais diversas realidades; estas estão em constante transformação, nunca se tornam estanques, e precisam ser repensadas constantemente. Ainda que insistamos muitas vezes em trabalhar co m desenhos que um dia foram válidos, paradigmas educacionais que serviram em outros tempos já não servem mais para gestar práticas educacionais, hoje em dia.

Sabemos da importância da arte na educação e o quanto ela é fundamental para o crescimento, no mais amplo sentido da palavra, do aluno que estamos formando.

3. Considerações finais A pesquisa nas reuniões anuais da ANPEd mostrou a necessidade de um debate constante no que diz respeito à formação de professores. Novos temas como os binômios arte e tecnologia e arte e inclusão tem aparecido e trazido novas dúvidas e reflexões. São temas que podem afligir muitos profissionais que buscam por um efeito imediato, mas os resultados são lentos e dependem de novas pesquisas e práticas para que desse modo sejam levantadas e apresentadas novas possibilidades. Outra questão que ficou evidente também nesta pesquisa foi o fato de profissionais de outras áreas e que trabalham com o ensino da arte estarem buscando respostas. Há críticas relacionadas a quem deve lecionar artes, mas a questão é que profissionais da área da pedagogia se veem muitas vezes obrigados a ministrar aulas de um conteúdo que não lhes foi oferecido. Se nós, profissionais da área, já nos deparamos com tantas dúvidas e incertezas, o que dizer desses professores que de todas as maneiras tentam suprir a falta de uma base em artes para trabalhar com seus alunos.

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Além disso, a pesquisa mostra que nós, formadores desses alunos q ue um dia estarão em sala de aula, ainda estamos deixando muitas lacunas. Questionamentos sempre deverão ser feitos e a busca por novas respostas nunca pode parar.

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APROPRIAÇÃO, TRANSFORMAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO COMO PRÁTICAS NA PRODUÇÃO DE LUIZ HENRIQUE SCHWANKE Alena Marmo 1 Resumo: Luiz Henrique Schwanke (1951-92), é autor de uma produção de mais de cinco mil obras. No início artista naïfy, o contato com a história da arte, em princípios dos anos setenta, quando cursava Comunicação Social na Universidade Federal do Paraná (1970 -74), funcionou como um divisor de águas. Deixando de lado a pintura ingênua, passou a apropriar -se de trabalhos e gestos de diferentes artistas, na produção de desenhos, pinturas, esculturas e instalações como resultado de sua intensa e constante investigação acerca da história da arte. Em sua obra, os gestos de apropriação, transformação e ressignificação são constantes, seja de obras e comportamentos de artistas, ou de objetos de uso cotidiano. Neste artigo, serão analisadas seriações resultantes de seus estudos e discussões acerca da história da arte partindo do conceitualismo dos anos 70, passando pelas pinturas gestuais e esculturas de plástico dos anos 80, e chegando às instalações com luz dos anos 90, entre as quais está o trabalho com o qual participou da 21ª Bienal Internacional de São Paulo. Palavras-Chave: Apropriação. Transformação. Ressignificação. História da Arte. Schwanke.

1. O artista e a sua produção Luiz Henrique Schwanke nasceu em Joinville no ano de 1951, e faleceu em 1992, deixando uma produção de mais de cinco mil trabalhos, entre desenhos, pinturas, esculturas, objetos e instalações. Desde cedo demonstrou interesse e ap tidão em arte, seja literatura, teatro ou artes visuais. Na adolescência, exercitou a escrita por meio da instauração de três volumes de contos e dois de poesias, todos datilografados em caderno pautado e ilustrados hora à caneta, hora à lápis grafite. Embora trate-se de uma produção infantil, tais textos antecipam alguns elementos que cerca de vinte anos mais tarde aparecem em seus trabalhos, tais como o desenho de mãos e dedos, e as colunas da arquitetura grega. Seu início nas artes visuais se deu por meio de uma produção de natureza naïfy, na representação da paisagem local. Paralelamente, nas artes cênicas, atuou no palco e produziu texto, cenário e figurino no exercício de um teatro o qual define como sendo de “ultra vanguarda” (Schwanke, s/d). Em 1970, muda-se para Curitiba e inicia os cursos de Direito e de Comunicação Social na Universidade Federal do Paraná. O primeiro desiste no terceiro ano, o segundo, o qual

1 Doutoranda em A rtes Visuais na ECA/USP. Professora da Universidade da Reg ião de Joinville – Un iville.

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conclui, dá- lhe a base de desenho e pintura, assim como o apresenta a História da Arte cujo contato pode ser entendido como um divisor de águas em sua produção. Em diálogo com o contexto artístico do Brasil nos anos setenta, dá vasão à uma produção de natureza conceitual cuja base está calcada nos gestos de apropriação, transformação e ressignificação do passado. Sempre em consonância com a produção de arte de seu tempo, tais gestos perduram nos anos oitenta na concepção de pinturas gestuais e esculturas de plástico, e nos anos noventa, com as instalações com luz. Schwanke muito escreveu, e seus escritos revelam interesse pela luz, imaterial, e pelo plástico, matéria. A antinomia se faz presente em sua produção, seja fisicamente ou conceitualmente: presença e ausência, real e virtual, e luz e sombra, sendo a última a mais explorada em seus trabalhos. Artista pesquisador, aparecem em seus textos e entrevistas nomes de artistas, escritores e filósofos, assim como referências à diversos momentos da história da arte. Talvez falar em fases ao referir-se à produção de Schwanke seja limitador, já que suas diferentes e inúmeras seriações se entrecruzam, evidenciando um conjunto numeroso e complexo, fruto de estudo e erudição. Nesse artigo será analisado o recorte composto pela Série Sinistra e revisitamento2 aos clássicos produzidos nos anos setenta, pelos Perfis e pelas colunas de plásticos dos anos oitenta, e por instalações com luz dos anos noventa.

2. A produção conceitual Na década de setenta, a produção de Schwanke é marcada pelo conceitualismo fundamentado no resgate de obras e comportamentos de diferentes momentos na concepção de trabalhos calcados no estudo da ação e da luz, elemento que muito interessa ao artista. Destaca-se a Série Sinistra e os Revisitamentos aos clássicos por meio dos quais o artista apropria-se de pinturas do Renascimento, do Barroco, do Impressionismo, do Neoplasticismo, entre outros, os estuda e os ressignifica como resultado de suas discussões e reflexões. A Série Sinistra, por exemplo, é composta por cinco trabalhos resultantes da apropriação de 2

[...]entendido como ato de o artista buscar referência em alguma obra de arte existente, com a intenção de construir a sua. (LAMAS, 2005, p.25) [...] significa vivenciar intensamente uma fruição estética; ser afetado pela obra reagindo ao estímulo profundo por ela causado, e nesse ato apropriar-se do que foi particularmente singular na fruição, visando transformá-la, ressignificá-la.(LAMAS, 2005, p.217) 106 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


reproduções do Renascimento e do Barroco por meio da cópia de fotolito invertido de maneira a obter a imagem espelhada da obra apropriada, a qual denomina por virtual. O espectador que desconhece o original apropriado, talvez não perceba que as imagens encontram-se invertidas. Entretanto, essa modificação pode influenciar na percepção geral da obra como, por exemplo, entender que Erasmo de Roterdã era canhoto, quando na verdade era destro (FIG. 1). Ou então que Baco, representado por Caravaggio, em Schwanke, toca o bandolim com a mão esquerda, quando no original o faz com a direita. Nos trabalhos desta série, Schwanke destaca a mão “esquerda” reforçando-a com desenho à grafite sobreposto à imagem de forma que o observador perde a referencia do que é original à obra apropriada.

FIGURA 1: Luiz Henrique Schwanke. Hans Holbein - Erasmo de Roterdã. 1977. Cópia heliográfica. 67 x 51cm. FONTE: Foto de Rui Arsego. Acervo Museu de Arte Contemporânea Luiz Henrique Schwan ke.

A ação de interferir em reprodução de imagem de obra de arte pode remeter à Marcel Duchamp que apropriou-se de uma reprodução da La Gioconda (1503-5) de Leonardo da Vinci e interviu na mesma ao desenhar à caneta barba e bigode. Com o título de LHOOQ, Duchamp brinca com o som e significado da palavra já que quando tal sequência de letras é pronunciada em francês, tem-se por resultado a frase elle a chaud au cul 3 , (CABANNE, 1987). A intenção de Duchamp provavelmente não estava na maculação da imagem, mas no questionamento e até ironização acerca da idolatria exacerbada sofrida por aquela pintura, assim como na interferência exercida no olhar do público que não sabe mais distinguir o original da reprodução (ARGAN, 1992). Assim como Duchamp, Schwanke brinca com o título dado à série, na medida em que é dúbio. Ao mesmo tempo e m que o termo sinistra pode 3

Ela tem calor no rabo. (livre tradução). 107 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


remeter a sinistro e ser entendido como aquilo que é maligno e obscuro, significa mão esquerda, tratando-se de uma pista dada ao público acerca da interferência por ele realizada. Já na seriação de revisitamentos aos clássicos, formada por vinte seis desenhos à lápis de cor e ecoline sobre papel, o artista parece discutir, além da ação e conteúdos que envolvem as pinturas apropriadas, a antinomia luz e a sombra. Tal série podem ser divididos em dois grupos: o dos que agem e o dos que estão submetidos à ação. Quando Schwanke apropria-se de pinturas cujo tema diz respeito à uma situação que envolve uma ação pontual, a figura principal é substituída por um dedo e à que está submetida à tal ação, por sua vez, tem em seu lugar a figura de uma poltrona. Pode-se tomar como exemplo o trabalho são josé carpinteiro, de la tour (FIG. 2). Conforme sugerido no título do trabalho, trata-se de um revisitamento à obra Cristo na oficina de carpintaria (1645), de Georges de La Tour, artista do período Barroco cuja especificidade de sua pintura, apropriada por Schwanke, é a presença de um único foco de luz, o que contribui para que o contraste de luz e sombra seja ressaltado. Talvez seja esse o motivo que levou Schwanke à escolha dessa obra tendo em vista seu interesse pelo assunto claro/escuro. Na pintura do artista francês o menino Jesus auxilia São José ao iluminar o recinto com uma vela, ou seja, a ação principal que permeia a composição é realizada pela criança, caso contrário, o trabalho de carpintaria não poderia ser feito por falta de luz.

FIGURA 2: Luiz Henrique Schwanke. são José o carpinteiro, de la tour. 1979. Lápis de cor e ecoline sobre papel. 62cm x 35cm. FONTE: Foto de Rui Arsego. Acervo Museu de Arte Contemporânea Luiz Henrique Schwanke.

Nesse sentido, no desenho de Schwanke, a imagem de São José é substituída por uma poltrona colocada na mesma angulação, uma vez que o último está submetido à ação de ser 108 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


iluminado. Jesus menino, por sua vez, é substituído por um dedo que aponta para a poltrona, já que é ele o responsável pela luz. Já nas situações em que a obra apropriada é fruto, ela mesma, de uma ação, como no caso de encomenda de retrato, a figura do dedo não aparece. Entretanto, observa-se que nos retratos escolhidos por Schwanke as figuras agem de alguma forma, e o artista referencia tal ação na estrutura da poltrona que utiliza na substituição do retratado. Em rosa e azul, de renoir (FIG. 3), assim como indicado pelo título, Schwanke apropria-se da pintura Rosa e Azul (1881), de Pierre Auguste Renoir, artista pertencente ao impressionismo, movimento caracterizado pela importância dada ao elemento luz, o qual lhe é tão caro.

FIGURA 3: Luiz Henrique Schwanke. rosa e azul, de renoir. 1979. Lápis de cor e ecoline sobre papel. 35cm x 62cm. FONTE: Foto de Arui Arsego. Acervo Museu de Arte Contemporânea Luiz Henrique Schwanke.

Na composição de Renoir, as meninas estão de mãos dadas motivo pelo qual Schwanke as substitui por um par de poltronas que, além de serem das mesmas cores e rebuscamento dos vestidos e estarem na mesma posição, estão interligadas por um suporte, assim como as meninas por meio de suas mãos. Tanto na série Sinistra, como nos revisitamentos pode-se perceber, pela escolha das obras apropriadas e revisitadas, o interesse de Schwanke pela história da arte e pelo tratamento da luz, mas também pela mão e dedos, elementos de ação que permeiam, direta ou indiretamente, todo a sua produção. 3. A pintura gestual Em consonância com a dita Geração 80, a partir dessa década sua produção ganha cunho gestual na concepção de pinturas figurativas e em grandes formatos. São inúmeras e diversas séries das quais os Perfis ou Linguarudos está entre as mais conhecidas. Trata-se de

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figuras humanas sempre de perfil, em sua maioria com a língua para fora, produzidas uma a uma e em série, por meio das quais dá feição Neoexpressionista ao comportamento de repetição e seriação apropriados da Pop Arte, especificamente, de Andy Warhol (FIG. 4).

FIGURA 4: Luiz Henrique Schwanke. sem título. 1985. Guache sobre folha de livro de contabilidade. 128cm x 178cm. FONTE: Acervo Museu de Arte Contemporânea Lu iz Henrique Schwan ke.

Nessa série, composta por mais de três mil pinturas, o artista retrata um ser humano mais interno do que externo. A língua, criadora do verbo, por sua forma e mobilidade possui o poder de uma chama. Destrói ou purifica, cria ou aniquila, ela julga, sendo justa ou perversa, arrogante, mentirosa e má. A língua nos Perfis, e por vezes o nariz, parece assumir o papel que antes era do dedo nos revisitamentos, ela aponta num gesto de acusação e denúncia condenando o espectador que ao fruí- la, assume o papel de quem está submetido à sua ação (MARMO: 2005). A repetição e seriação aqui assumem a função inversa das obras de Andy Warhol na medida em que são diferentes umas das outras, conduzindo o espectador a contemplar uma a uma. Também nos anos 80, a partir do conto Cefaleia, de Julio Cortázar, Schwanke dá forma às Mancúspias como resultado de mais um gesto de apropriação. Nesse co nto, por meio de um sujeito plural, Cortázar parece retratar diferentes “eus” de uma mesma pessoa, que se revelam em alguns momentos do conto como sendo femininos e em outros como masculinos. Tal sujeito, múltiplo, cuida das mancúspias, seres que têm pelos, que se alimentam de aveia maltada e que necessitam de cuidados especiais para sobreviver. As mancúspias de Schwanke mostram-se como seres híbridos, meio machos, meio fêmeos e que tal como descreve o autor belga-argentino, possuem pelos no lombo. É interessante notar que Cortázar descreve uma situação em que o sujeito escuta [...] um roçar na janela do banheiro [...] o que pode ter sido causado por uma mancúspia que fugiu e vem como todas para a luz. (1951, p. 62). Tal passagem indica que esses seres, assim como Schwanke, gostam de luz. Talvez seja este um 110 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


dos motivos que levou Schwanke a dar forma a diversas mancúspias sendo que, uma delas, aparece apontando o dedo, como uma espécie de referência à pesquisa anterior, de cunho conceitual. No final da década de 1980, o artista deixa de lado a pintura e, em consonância com a arte de seu tempo, dedica-se à produção de esculturas feitas de objetos industriais utilizados como módulos ou estruturas, aos moldes minimalistas. Mantendo o diálogo com a Pop Arte, utiliza-se da repetição e seriação de objetos apropriados, na construção de esculturas muitas vezes monumentais, apesar de colocar em discussão a ideia de monumento.

2. A apropriação de plásticos Embora o desejo pelo tridimensional tenha sido desperto em Schwa nke já nos ano 70, seus projetos de esculturas e instalações só vêm à tona a partir de 1988, quando recebe menção especial do júri da I Bienal de Escultura ao Ar Livre do Rio de Janeiro. . Os gestos de apropriação, seriação e repetição permanecem dando forma a trabalhos que seguem uma vertente construtiva. Colunas seriadas de baldes e bacias, repetição de frutos e acumulação de objetos de plásticos, Schwanke subverte o significado de objeto industrial, põe em cheque a ideia de monumento e, consequentemente, a ideia de escultura. Em 1989, em uma exposição realizada no Museu de Arte de Joinville, Schwanke executa o primeiro trabalho de intervenção urbana da cidade por meio de colunas de plástico inseridas em três diferentes pontos. No jardim do terminal rodoviário, instalou nove colunas seriadas totalizando cento e oitenta bacias brancas, na ocupação de vinte e um metros de comprimento por cinco metros de altura. No cruzamento da Avenida Beira Rio com a Rua Nove de Março foram instaladas sete colunas, quantific ando duzentos e trinta e um baldes brancos e vermelhos, atingindo quatro metros de altura. Já na Praça da Bandeira colocou duzentas e trinta e sete bacias vermelhas, distribuídas em nove colunas, alcançando vinte e um metros de comprimento por quatro metros de altura. Há quem diga “monumental”. Entretanto, ao utilizar materiais pobres, como são os baldes e as bacias, adquiridos a baixo preço em qualquer mercado de esquina, o artista ironiza a ideia de monumento. Para dar forma às colunas, conforme pôde ser constatado pelos textos encontrados 111 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


entre os seus pertences, Schwanke pesquisou sobre a origem e importância desse elemento arquitetônico ao longo da história, desde a papiriforme até a neoclássica. Tal interesse é ressaltado pelos registros realizados pelo próprio artista em sua individual no Parque Lage, no Rio de Janeiro (FIG. 5), cujo enquadramento revela intenção de colocar em diálogo colunas de plásticos, pobres, com colunas de ordem coríntia, dotadas de rebuscamento.

FIGURA 5: Luiz Henrique Schwanke. sem título. 1988. Baldes de plásticos, barras de ferro. Parque Lage/RJ. FONTE: Foto de Luiz Henrique Schwanke. Acervo Museu de Arte Contemporânea Lu iz Henrique Schwan ke.

Desde cedo seus textos e desenhos revelam o interesse pela Grécia Antiga, seja por meio do conteúdo de suas histórias, seja pelas ilustrações. Na Grécia Clássica, no século V, são deixadas de lado as concepções religiosas (Mithos) que dão lugar ao homem (logos), de forma que o grego centrará a sua atenção no humano e na arquitetura, considerada como um território separado das outras artes. Nesse contexto em que o homem se torna o centro e a medida do universo, a escala humana torna-se base para a arquitetura. Assim, os gregos faziam uso do conceito de proporção, e as construções clássicas deveriam ter as mesmas proporções entre o todo e as partes, tal como o corpo humano em relação aos seus membros. (PEREIRA, 2010). No trabalho sem título (FIG. 6), Schwanke brinca com a proporção das colunas de baldes que seguem as mesmas da de um palito de fósforo. Tal constatação pode ser realizada não apenas pelo título e proporções de baldes vermelhos em relação aos brancos, mas também pelas fotografias que realizou das colunas nas quais em três delas fixou um palito de fósforo real. Observa-se que Schwanke escolheu interferir na coluna próxima à pessoa retratada de maneira a brincar com a escala entre o humano, a coluna e o palito.

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FIGURA 6: Luiz Henrique Schwanke. sem título. Interferência em foto de obra com palito de fósforo. Museu de Arte de Joinville. FONTE: Acervo Museu de Arte Contemporânea Lu iz Henrique Schwan ke.

E coincidência ou não, ao riscar-se um palito de fósforo obtém-se fogo, e por meio dele, têmse luz, elemento que tanto interessou ao artista. Cabe observar que essas colunas de palitos de fósforos podem referenciar o trabalho São José o carpinteiro, de la tour (FIG. 4).

4. Da matéria à imaterialidade: os trabalhos de luz A luz sucede às trevas e ambos os elementos constituem, de forma geral, uma dualidade universal. E conforme pôde ser observada, tal antinomia se faz muito presente na produção de Schwanke, seja mais diretamente na produção dos anos setenta, ou nas décadas de oitenta e noventa quando não está tão evidenciada já que encontra-se por trás da instauração de alguns trabalhos. Assim como relata em seus escritos, a partir do momento em que teve contato com a luz na história da arte, principalmente por meio da obra de Caravaggio, o caso de claro-escuro virou uma obsessão. Qualquer coisa era forma, via em tudo a forma da sombra tornando o volume uma forma (SCHWANKE s/d). Em 1980, como prêmio conquistado no Salão Paranaense, Schwanke realiza uma exposição individual na Galeria Sergio Milliet, no Rio de Janeiro, cujo título A casa tomada por desenhos que não deram certo, é resultado de uma apropriação do conto A casa tomada (1946), de Julio Cortázar, autor que mais uma vez é referenciado em sua produção. No conto, o Cortázar trata da história de um casal de irmãos que herda dos pais uma casa espaçosa, e com ela a memória da família. Entretanto, em determinado momento uma coisa, começa a tomar conta da casa ocupando, inicialmente, o lado menos usado, até que acaba por tomar conta da casa inteira, e os irmãos terminam por abandona- la. Na exposição, composta pelas revisitações, Schwanke 113 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


apresenta seu primeiro trabalho com luz. Consiste na projeção de uma grande massa luminosa, por meio de um projetor de cinema de arco voltaico, sobre metros e metros de papel em branco amassados e inseridos no meio da galeria ocupando um espaço significativo. E Schwanke, com o intuito meio jocoso (s/d) intitula o trabalho de O apogeu do claro-escuro pós-Caravaggio (FIG. 7).

FIGURA 7: Luiz Henrique Schwanke. Apogeu claro-escuro pós-Caravaggio. 1980. Papel, projetor de cinema. Galeria Serg io Milliet/ RJ. FONTE: Acervo Museu de Arte Contemporânea Lu iz Henrique Schwan ke.

Como revisitamento à obra de Cortázar, Schwanke permite que o espaço de sua exposição seja inteiramente tomado, pela luz. Em diálogo com o concretismo latino americano, na discussão do Cubocor (1960) de Aloísio Carvão, Schwanke da forma ao Cubo de Luz ou Antinomia (FIG. 8), projeto realizado na 21ª Bienal Internacional de São Paulo. Consiste em um cubo de três metros quadrados, composto por quarenta e cinco lâmpadas de 2.000 Watts de multivapores metálicos, voltadas para dentro, na projeção de noventa mil watts de luz. Schwanke constrói um cubo virtual, uma escultura de luz. Ao trabalhar a forma do cubo, estrutura aparente, tendo a paisagem como suporte, mantém diálogo com o Minimalismo, e tal como Dan Flavin e Donald Judd, utilizase do objeto por si mesmo, é o material que fala. Contudo, diferente de Flavin, a obra de Schwanke provoca instabilidade.

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FIGURA 8: Luiz Henrique Schwanke. Cubo de luz ou Antinomia. 1991. Estrutura metálica, 45 lâmpadas de 3m2. 21ª Bienal Internacional de São Pau lo. FONTE: Acervo Museu de Arte Contemporânea Lu iz Henrique Schwan ke.

Já na obra de Aloísio Carvão, é a cor pigmento que se impõe como um e lemento concreto, enquanto na de Schwanke, a primazia é da cor luz. Ao dar concretude e fisicalidade à cor, Carvão provoca a sua retração o que resulta em sua multiplicação nas complementares. (MORAES, 1986). No caso de Schwanke, ao contemplar-se diretamente aquela grande quantidade de luz, o espectador entra na escuridão, na vivência de seu extremo oposto. Mais uma vez a antinomia se torna evidente. Dessa forma, o Cubo de luz, segundo o artista, consiste em um paradoxo já que se trata de um trabalho imaterial na medida em que é feito de luz, então visível, porém incontemplável, já que possui a mesma quantidade de luz utilizada em estádios de futebol. Sendo assim, partindo da discussão acerca da luz, por meio da representação do claro/escuro em seus desenhos, a partir de estudo de diferentes momentos da história da arte, Schwanke chega a possibilitar ao público a experiência real dessa antinomia, na construção de um trabalho que fala diretamente aos sentidos. O material é apenas o material. Ao estudar a obra de Schwanke, percebe-se que ele não busca na história da arte uma justificativa para a sua produção, mas por meio dela ele a discute na exploração de diferentes elementos e comportamentos, dando forma a uma produção numerosa, diversa e articulada. As colunas, do final dos anos 80, remetem ao dedo, explorado nas décadas de setenta e oitenta, e cujo gesto vertical aponta para o infinito, que é alcançado, nos anos noventa, por meio de seu Cubo de Luz.

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CURADORIA EXPANDIDA: processos de criação em rede a partir de Julio Plaza e Ricardo Basbaum Ananda Carvalho

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Resumo: Este artigo expande o conceito de curadoria para compreendê-lo de forma propositiva e sob uma perspectiva da ideia de rede. Observa a produção de Ricardo Basbaum a partir de desdobramentos dos conceitos de “escrita prospectiva”, “artista-etc” e “curador-etc” para reler a exposição de Arte Postal proposta por Julio Plaza na 16ª Bienal de São Paulo. Nessa mostra, Plaza organizou uma chamada aberta em que qualquer pessoa poderia enviar um trabalho para ser exposto. A autoria dissolve-se para tornar importante a ação e a criação de relações. Palavras-Chave: Curadoria. Rede. Arte Contemporânea. Julio Plaza. Ricardo Basbaum. Abstract: This paper expands the concept of curating to understand it in a proactive form and from a perspective of network's idea. It observes the production by Ricardo Basbaum from the concepts of "writing prospective", "etc.-artist" and "etc.-curator" to reread the Mail Art exhibition proposed by Julio Plaza at the 16th. International Biennial of São Paulo. In this show, Plaza hosted an open call which anyone could submit a work to be exposed. The authorship dissolves to make important the action and the creating of relationships. Key Words: Curating. Network. Contemporary Art. Julio Plaza. Ricardo Basbaum.

1. Curadoria expandida O desenvolvimento do circuito da arte contemporânea considera a tentativa de fuga da moldura, do pedestal e do “cubo branco”. A observação dessa produção pressupõe diversos questionamentos: a relação da obra com o espaço, a relação entre obra e espectador, a efemeridade da obra, a relação entre documento e processo de criação, a dissolução da autoria, a saída da exposição de seu espaço institucional e tradicional, a multiplicidade dos meios, entre outros aspectos. Pode-se considerar também uma ênfase no desenvolvimento de plataformas curatoriais do discurso através de palestras, debates e publicações. O curador argentino Ferran Barenblit, que já dirigiu o Centro de Arte de Santa Mônica (Barcelona) e atualmente é diretor do Centro de Arte Dos de Mayo da Comunidade de Madrid, afirma que: A história da arte do século XX bem que poderia ser definida como a tentativa de criar a obra de arte impossível de ser exibida e colecionada. Uma obra que jamais possa ser mostrada ao público de uma forma mais ou menos razoável, nem entrar num museu ou numa coleção. A história da museologia, ou da curadoria, bem que poderia ter sido a oposta: a tentativa de, a qualquer preço, expor e colecionar a obra de arte feita para não 1

Doutoranda em Comunicação e Semiótica na PUC-SP. Pesquisadora dos grupos arte&meios tecnológicos (CNPq/FASM) e Processos de Criação (CNPq/PUC-SP). Pesquisa desenvolvida com apoio de bolsa CNPq. 117 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


poder ser jamais exposta e colecionável. Esta tensão definiu boa parte do modus operandi das práticas curatoriais das últimas décadas, sinônimo oferecido ao conjunto de sua história. (BARENBLIT e LAGNADO, 2010, p. 101)

Esse comentário um tanto polêmico sobre a tensão entre a produção artística e a produção curatorial demanda pensar exposições experimentais a partir dos processos de criação dos curadores. Para isso, este artigo compreende o conceito de curadoria como uma esfera crítica do pensamento desenvolvida em relação as possibilidades de presença de cada obra, de acordo com Paulo Herkenhoff (2008, p. 24): Curadoria é um processo de projeção temporária de sentidos e significados sobre a obra, produz algum tipo de estranhamento, capaz de mover o conhecimento. No oposto, a curadoria do tipo modelo Chanel, isto é, nenhuma ousadia e só reiteração de certezas elegantes. Curadoria pode ser um jogo do sensível com a obra de arte, buscar um diálogo poético, mas sem perder a perspectiva crítica.

Ao observar a história da curadoria, pode-se citar exposições que ficaram famosas por colocar em prática a definição à cima. As edições da Documenta de Kassel (Alemanha) são um exemplo. A Documenta 5, realizada em 1972 com a curadoria de Harald Szeemann, transformou o “museu de 100 dias", forma em que a exposição era organizada anteriormente, em um “evento de 100 dias”, que “incluiu não apenas pintura e escultura, mas instalações, performances, happenings e, claro, eventos, que perduraram pelos cem dias, como a „Organização para a democracia direta‟, de Joseph Beuys” (OBRIST, 2010, p. 104). A décima edição, com curadoria de Catherine David em 1997, "inaugura no âmbito das exposições internacionais de arte contemporânea, por meio dos 100 dias de debates, o conceito de plataforma para a produção de conhecimento” (SPRICIGO, 2009, p. 72). Já a Documenta 12, curada por Roger Buergel, desenvolveu plataformas discursivas através da internet como o projeto Documenta 12 Magazines, que criou uma rede de comunicação com diferentes mídias internacionais. Pode-se citar ainda, a exposição que levou Szeemann a tornar-se curador independente e posteriormente organizar a Documenta 5: "When Attitudes Become Form" (Quando as Atitudes se Tornam Forma), realizada na Kunsthalle de Berna na Suíça, em 1969. Esta foi a "primeira exposição a reunir artistas pós-minimalistas e conceituais numa instituição européia" (OBRIST, 2010. p. 103) e seu catálogo que "discute como as obras poderiam 118 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


assumir forma material ou permanecerem imateriais, documenta esta revolução nas artes visuais" (SZEEMANN apud OBRIST, 2010, p. 113). Já, as exposições “Paris – Berlim”, “Paris – Moscou”, “Paris – Nova York” organizadas por Pontus Hultén, no final dos anos 1970, no Centro Georges Pompidou (Paris, França) "incluíam não apenas objetos de arte, que iam do construtivismo ao pop, mas também filmes, cartazes, documentos e reconstruções de espaços de exposições" (OBRIST, 2010, p. 48). E por último, na exposição "Thirty-Six Hours" (Trinta e Seis Horas) realizada em 1978 no Museum of Temporary Art (Washington, D.C., EUA), o curador Walter Hopps permaneceu durante dois dias e meio recebendo trabalhos e organizando-os no espaço expositivo em conjunto com os artistas. Não havia restrições, apenas que o trabalho passasse pela porta (OBRIST, 2010). Dentro desse contexto, o tema da minha pesquisa de doutorado é Redes críticocuratoriais: processos de criação dos espaços comunicacionais em exposições brasileiras contemporâneas. O objetivo é pensar a crítica e a curadoria sob uma perspectiva de rede na medida em que são espaços comunicacionais de/e em relação aos processos de criação dos artistas. O pensamento do artista, crítico, curador e professor Ricardo Basbaum, principalmente seus textos em que propõe uma crítica e uma curadoria propositiva, é um eixo para esta pesquisa. É assim que meu trabalho se constitui: nas idas e vindas entre uma irredutível condição conceitual e o imperativo do enfrentamento sensorial – haverá aí tanto uma fenomenologia do conceito como a efervescência das sensações (sejam imediatas, sejam mediadas), do voltar-se ao (corpo do) outro. Percebo que a área de trabalho que tenho desdobrado se estrutura em direta relação com diversos aspectos de um conceitualismo ampliado, em contato com o corpo e generoso com deslocamentos entre papéis e linguagens. (BASBAUM e LAGNADO, 2009) Ela/ele (leitor/espectador) entrará em um ambiente discursivo onde o processo de vivência dos trabalhos está entretecido com os conceitos trazidos pelo texto, de modo a ela/ele estar submetida/o a um tipo de dupla experiência, sensorial e conceitual: o trabalho de arte, em toda a sua materialidade, exercita plenamente a capacidade de funcionar como ponto de atração, um centro transitório que reordena tudo a sua volta; esta potência de atração é resultado do campo sensorial criado pelo trabalho, do padrão sensível de pensamento que se dá com a intervenção; assim, esse campo sensorial é inseparável da rede conceitual que o coloca em ação e que agora se vê forçada a reconfigurar suas conexões. Assim, o tipo de escrita que podemos chamar de prospectiva fabrica estrategicamente um sentido de presentidade/atualidade que designa e desenha a intervenção proposta. (BASBAUM, 2011)

Apesar do segundo parágrafo citado referir-se a produção crítica, a proposta de Basbaum para uma escrita prospectiva pode ser ampliada para as práticas curatoriais de 119 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


acordo com a definição já citada de Paulo Herkenhoff. Com o objetivo de discutir exposições que organizam-se desta forma prospectiva e expandir o conceito de curadoria, este artigo discute a experiência da mostra de Arte Postal proposta por Julio Plaza na 16ª Bienal de São Paulo em relação ao pensamento de Ricardo Basbaum.

2. Curador-etc No início dos anos 2000, Ricardo Basbaum escreveu o texto “Amo os Artistas-etc” como resposta ao projeto do curador Jens Hoffmann para discutir a seguinte proposição: “A próxima Documenta deveria ser curada por um artista”. Nesta publicação, Basbaum define os conceitos de “curador-etc” e “artista-etc”:

(...) quando o curador questiona a natureza e a função de seu papel como curador, escreveremos „curador-etc‟ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias, tais como curador-escritor, curador-diretor, curador-artista, curador-produtor, curadoragenciador, curador-engenheiro, curador-doutor, etc); (...) quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos „artista-etc‟ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artistacurador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-químico, etc); (...) O „artista-etc‟ traz ainda para o primeiro plano conexões entre arte&vida e arte&comunidades, abrindo caminho para a rica e curiosa mistura entre singularidade e acaso, diferenças culturais e sociais, e o pensamento (BASBAUM, 2004).

A partir da definição de artista-etc, este artigo procura compreender a definição do curador-etc num sentido prospectivo. No desenvolvimento de seus textos e trabalhos, Basbaum explora o circuito “criação + recepção” de forma lúdica, sensorial e conceitual através de palavras, diagramas e objetos. Um dos seus projetos mais conhecidos é “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, que o artista vem realizando desde 1994. Basbaum oferece aos participantes um objeto em aço esmaltado, que serve de base para a realização de uma experiência artística durante um mês. A única regra é que, após a vivência, o colaborador/realizador devolva o objeto e produza uma documentação - fotos, vídeos, objetos,

depoimentos,

textos

-

que

é

publicada

no

site

http://nbp.pro.br/experiencia_participante.php. Segundo Basbaum (2005), (...) uma das características mais interessantes de “Você gostaria de participar de uma experiência artística?” reside em como o projeto faz da autoria um problema, provendo um 120 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


modo de incluir o participante como um colaborador decisivo. Na verdade, sem os participantes o trabalho existe somente como projeto potencial.

O projeto de Ricardo Basbaum configura-se como um sistema colaborativo em que a experiência de cada um cria uma relação de interdependência. Ao mesmo tempo discute a recepção e o espaço expositivo. Os termos “espectador”, “curador” e “artista” confundem-se em um só. A partir da proposição de Basbaum, o objeto foi enterrado, copiado, exposto em lugares públicos e privados ao redor de todo o mundo, e até, não devolvido. Assim como na Arte Postal, o que importa é a experiência artística, o processos e seus possíveis questionamentos.

3. Curadoria em rede: Arte Postal Apesar de haver referências de ter sido realizada por Marcel Duchamp no início do século, a Arte Postal (ou Arte Correio, ou Mail Art) começou a realmente tomar corpo nos anos 1960. Nessa década, pode-se destacar o grupo Fluxus, Robert Fillou, Ray Johnson e Chieko Shiomi, mas, é nos anos 1970, que a Arte Postal foi desenvolvida ativamente (BRUSCKY, 2010). Nesses anos de ditadura, procurava-se questionar o circuito tradicional de arte criando redes de comunicação marginais pelos mais diversos países. Os artistas utilizavam diferentes técnicas e estratégias que não podem ser confundidas pelo simples envio ou transporte de uma obra de arte. As motivações para esta nova expressão são múltiplas e não dependem de qualquer circunstância especial. Artistas, em número considerável, rompendo com o conceito tradicional de „obra‟, afastando-se dos esquemas de exposições oficiais e comerciais, desconfiados da função da crítica e no mínimo indiferentes às revistas de arte dominantes (…) passaram a organizar-se para enfrentar uma situação inteiramente diversa, criando suas próprias associações, seus próprios intercâmbios, suas próprias publicações e selecionando os locais para as suas exposições. Tornaram-se economicamente independentes dos mecanismos centralizadores da arte, ao dedicar-se a atividades paralelas. (ZANINI, 2010a, p. 81).

Os trabalhos de Arte Postal eram enviados sem considerar um retorno ao seu local de origem. Essa produção evidenciava a intenção de participação do artista na constituição de uma rede para a existência da arte. Segundo Paulo Bruscky, artista brasileiro com uma grande produção nesses meios, essa estratégia “proporciona exposições e intercâmbios com grande

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facilidade, onde não há julgamentos nem premiações dos trabalhos (...). Na Arte-Correio, a arte retoma suas principais funções: a informação, o protesto e a denúncia” (BRUSCKY, 2010, p. 77). Essa proposta também demonstra um caráter de confiança, na medida em que, muitas vezes, o artista não sabia o que iria acontecer com o trabalho enviado, nem aonde este iria chegar. Ou seja, constrói-se uma existência, porém com a possibilidade de ser fluida e efêmera. Na maioria das vezes, o que “restava” era uma documentação feita através de panfletos ou folders muito simples. Cristina Freire (2006, p. 65) ressalta que a “Arte Postal substitui o valor de exposição pelo de circulação. Essa movimentação de obras como envios postais cria um arquivo-conceito que transita pelas margens do circuito oficial e oscila do permanente ao transitório, do público ao privado, do global ao local”. Walter Zanini é um dos principais incentivadores dessa experiência no Brasil. Como diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP 2, de 1963 à 1978 (AJZEMBERG, 2003), abre um espaço institucional e cria um grande arquivo de Arte Postal. Julio Plaza, artista, curador e pesquisador espanhol, começa a lecionar na Escola de Comunicações e Artes da USP em 1974 e colabora intensamente nas atividades do MAC-USP. Em 1981, Zanini, como curador da 16ª Bienal de São Paulo, convida Julio Plaza para organizar uma das exposições especiais desta Bienal: uma chamada aberta para envio de Arte Postal. É importante relembrar que naquela época, a Bienal de São Paulo era organizada por núcleo de países, que selecionavam suas obras separadamente através de vias diplomáticas. Segundo Zanini (2010b, p. 202):

A mudança decisiva consistia em eliminar as representações nacionais e organizar a instalação dos trabalhos usando critérios de analogia, quanto à linguagem, à proximidade e 2

Dentro da perspectiva da curadoria expandida discutida neste artigo, é importante relembrar a exposição Jovem Arte Contemporânea, realizada em 1972 sob a direção de Zanini. "A JAC-72 era uma mostra livre, de caráter conceitual, em sentido amplo, com obras de natureza muito efêmera, construídas no interior do museu e abertas a todo tipo de material e técnicas. Foi planejada para os jovens, mas não havia restrições de idade, um lote trabalhando ao lado dos outros. O espaço para exposições temporárias (cerca de 1.000 metros quadrados) foi dividido em 84 áreas com diferentes dimensões e formatos, designadas a cada um dos inscritos por lotes de desenho" (ZANINI, 2010b, p. 188). Cristina Freire (2006, p. 27) também comenta que "Os participantes permaneceram ocupando, literalmente, o museu nas duas semanas de realização da mostra. A ênfase era deslocada do objeto produzido para os processos de produção e visava, sobretudo, à consciência de suas significações. Ao se dispensar o júri ou qualquer autoridade externa, a participação dos inscritos ocorreu sem qualquer censura ou restrição. A possibilidade de confronto, colaboração, auxílio, permuta, construção e destruição, além do discurso permanente entre os participantes, concretizou a autoria coletiva da exposição. Em pleno regime militar, realizou-se na exposição/manifestação um 'exercício experimental de liberdade' " . 122 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ao confronto com o que os trabalhos de outros países tinham em comum. Tentamos, portanto, influenciar as escolhas dos comissários através de um regulamento que daria alguma orientação sobre a nossa ideia. E, pela primeira vez, a Bienal pôde adotar uma atitude de responsabilidade crítica. Também introduzimos os convites diretos para um certo número de artistas.

Somada a essa tentativa de transformação da Bienal, a exposição de Arte Postal vem questionar uma organização tradicional, já que qualquer pessoa poderia enviar um trabalho para ser exposto3. No texto curatorial desta exposição, Julio Plaza propõe que “o „mailartista‟ apropria-se do mundo da informação que está a seu dispor, daí o informacionismo em ritmo de bricolagem retórica e semântica; o artesanato postal como colagem de informação em espírito de mistura” (PLAZA, 2009, p. 455). A Arte Postal discute, principalmente, a produção de mensagens e seus espaços de recepção. “É uma estrutura espaço-temporal complexa que absorve e veicula qualquer tipo de informação ou objeto, que penetra e se dilui no fluxo comunicacional (…)” (PLAZA, 2009, p. 453). A autoria dissolve-se para tornar importante a ação e a criação de relações. É uma arte do trânsito, em que desenvolve-se sistemas variáveis de produção. Conforme propõe Julio Plaza (2009, p. 452), é “a informação artística como processo e não como acumulação”. Como resultado da exposição de Arte Postal na XVI Bienal de São Paulo foi produzido um catálogo4 com imagens de praticamente todos os trabalhos expostos. Os artistas cujas reproduções das obras não foram possíveis ou não chegaram a tempo do fechamento da edição do catálogo tem seus nomes citados. A publicação também lista os endereços de todos os artistas participantes. Essa estratégia ressalta a importância da compreensão de uma arte em rede que possibilita novos circuitos de expressão da linguagem. Nesse sentido, os pensamentos de Julio Plaza a partir da Arte Postal, que posteriormente se desdobraram em estudos sobre o videotexto e as artes tecnológicas, chama a atenção para uma perspectiva relacional e expandida do esquema “autor + obra + recepção” (como pode ser observado no

3

Na época, foi divulgada uma carta convite (posteriormente reproduzida no catálogo da exposição): “A XVI Bienal de São Paulo (16 de outubro a 20 de dezembro de 1981) apresentará em seu Núcleo I a produção artística configurada nos sistemas de expressão e comunicação que utilizam os novos media. Nesse contexto será incluída a arte postal, que permitirá a criação de um espaço aberto aos artistas que se dedicam a essa atividade em contínua expansão no mundo de hoje. É inegável a importância de se dar melhor a conhecer ao público esse novo sistema de arte criado para a intercomunicação dos artistas. Apreciaria poder contar com a sua participação. Envie trabalhos (produção gráfica, registros musicais, vídeo-K7, fotografias, etc.). Anexe foto sua junto ao seu ambiente de trabalho, ou de seus arquivos.” (FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO, 1981) 123 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


livro resultante de sua pesquisa de doutorado “Tradução Intersemiótica” e também no texto “Arte e Interatividade”).

4. Curadoria em rede: a dissolução da autoria As práticas artísticas citadas retomam criações/ações que, ao questionarem os conceitos, procuram expandir os circuitos. A partir delas é possível discutir a ideia de rede para compreendê-la como prática curatorial. Musso (2004, p. 20) apresenta que “para sair de sua relação com o espaço físico, a rede devia, primeiramente, ser pensada como conceito para tornar-se operacional como artefato”. Nesse artigo, o autor desenvolve uma revisão do conceito de rede e destaca as abordagens de Michel Serres, Henri Atlan e Anne Cauquelin. A partir dessas contribuições, Musso define a rede como “uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento” (MUSSO, 2004, p. 31). Para dar continuidade a essa proposição, Cecilia Almeida Salles defende “a associação da noção de rede a um modo de pensamento, na medida em que buscamos a compreensão da plasticidade do pensamento em construção, que se dá, (...) justamente nesse seu potencial de estabelecer nexos” (SALLES). Desse modo, a curadoria em rede pode ser compreendida numa perspectiva relacional a partir dos nós de criação. Este artigo procura apresentar um breve exemplo de como ao expandir o conceito de curadoria, pode-se desenvolvê-lo de forma prospectiva. Neste caso, observa-se possibilidades de dissolução da autoria e da força de poder concentrada no papel do curador. Seguindo a proposta de uma curadoria aberta, pode-se citar ainda a exposição “Ocupação”, realizada em 2005 no Paço das Artes; algumas proposições da Casa da Xiclet 5 (São Paulo), o projeto “Temporada de Projetos na Temporada de Projetos”6, realizado em 2009 também no Paço das Artes; e recentemente a exposição “Artes e Ofícios 1 – para todos”7, realizada no Liceu de Artes e Ofícios (São Paulo) em 2012 na mesma época da abertura da Bienal de São Paulo. Todas as propostas curatoriais citadas são exposições cuja 4

Atualmente a Fundação Bienal de São Paulo disponibiliza todas as edições de seus catálogos para serem visualizados online: http://www.bienal.org.br/FBSP/pt/AHWS/Publicacoes/Paginas/default.aspx 5 http://casadaxiclet.com/ 6 http://projetosnatemporada.org/ 7 http://www.arteseoficios1.blogspot.com.br/ e veja discussões sobre a proposta em https://www.facebook.com/events/278130645635808/ 124 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


participação era aberta e sem critérios seletivos específicos. É claro que uma observação desses critérios a partir uma perspectiva cultural, política e econômica atual se faz necessária. Mas, por uma opção de recorte, essa discussão não será apresentada aqui. Por fim, este artigo propõe que a construção de uma curadoria expandida e prospectiva possa ser vista como uma rede aberta, constantemente tencionada pelo desejo assertivo de fechamento, uma busca por experiências relacionais entre pesquisadores, artistas, trabalhos e vivências.

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A ATUAÇÃO DA FUNARTE ATRAVÉS DO INAP NO DESENVOLVIMENTO CULTURAL DA ARTE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA NAS DÉCADAS DE 70 E 80 E INTERAÇÕES POLÍTICAS COM A ABAPP André Guilles Troysi de Campos Andriani

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Resumo: Esta pesquisa teve como objetivo primordial levantar e apontar a importância da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) através do Instituto Nacional de Artes Plásticas (INAP), no desenvolvimento de uma política cultural para as artes plásticas, abrangente e democrática, jamais vista na história do Brasil até então. Demonstramos aqui a relevância do INAP no desenvolvimento cultural da arte brasileira contemporânea nas décadas de 70 e 80 e suas interações com a sociedade civil, em especial com a Associação Brasileira de Artistas Plásticos Profissionais (ABAPP), destacando as principais personalidades destas instituições que afetaram o panorama das artes plásticas no Brasil através de projetos, debates e embates. Para concretizar esta pesquisa foram necessárias diversas viagens à cidade do Rio de Janeiro, ond e foram feitos levantamentos de documentos no Centro de Documentação da FUNARTE (CEDOC), arquivos particulares e intensa pesquisa em jornais e revistas do período. Também foram registradas, nove horas e meia de entrevistas, com ex-diretores do INAP, ex -presidentes da ABAPP e artistas plásticos. Com todos os dados obtidos e confrontados, acreditamos ter conseguido demonstrar o pioneirismo da FUNARTE ao implantar uma política cultural que abarcava as novas linguagens de artes plásticas que não usufruíam dos espaços públicos naquele momento e no intenso esforço de levar a atuação da instituição aos estados da Federação menos favorecidos em políticas públicas culturais. Foi também destacada a importância da ABAPP no pólo oposto deste processo, não como simples opositora, mas como provedora de propostas políticas e artísticas, com reivindicações próprias e inovadoras, proporcionando autonomia aos artistas plásticos durante o período de regime militar (1964-1986). Concluiu-se que a FUNARTE e o INAP foram positivamente confrontados pela ABAPP e tiveram em seus quadros, profissionais competentes que trabalharam para descentralizar as ações do INAP do eixo Rio/São Paulo. Atuaram dentro do possível, combatendo as barreiras geográficas, econômicas e ideológicas do mercado de arte brasileiro dos anos 70, que haviam se infiltrado nos museus, galerias e salões públicos. Infelizmente o fechamento da FUNARTE durante o governo Collor de Mello em 1990, desincumbiu o Estado para com a cultura no Brasil de forma direta e provocou uma desestruturação geral nas artes plásticas, principalmente em ações para o jovem artista. O apoio estatal às artes plásticas foi transferido aos descontos via Lei Rouanet o que confluí para as idéias do Estado mínimo neoliberal, delegando aos departamen tos de marketing dos patrocinadores, importantes decisões que têm se mostrado injustas socialmente. Atualmente vemos a tentativa do restabelecimento de um lugar legítimo para a FUNARTE e esperamos que esta retorne ativa através do atual CEAV (Centro de Artes Visuais da FUNARTE), deixando de ter um papel apenas burocrático e assumindo uma atuação efetiva e direta na cultura das artes plásticas, seguindo o exemplo pioneiro do antigo INAP, e se possível atingindo patamares superiores de excelência, proporcionais ao panorama atual. Palavras-Chave: FUNARTE, INAP, ABAPP, arte contemporânea brasileira, artes plásticas

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Doutorando do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UNICAMP. Orientado pelo arquiteto e escultor Dr. Marco Antonio Alves do Valle. 127 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


1. Embates políticos entre a ABAPP e o INAP Dentre todos os levantamentos da pesquisa de mestrado que originou este artigo, acreditamos que um dos mais relevantes tenha sido a constatação dos freqüentes embates políticos da ABAPP frente o INAP. Relevante porque evidencia a complexidade política do panorama artístico cultural do período estudado no qual ocorria uma intensa participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas culturais. A ABAPP (Associação Brasileira de Artistas Plásticos Profissionais) foi uma entidade de classe profissional oficializada em 30 de agosto de 1977, constituída por agremiação livre de artistas profissionais, independentemente das escolas artísticas a que se filiavam. A atividade político-profissional da ABAPP era fundamentada nos princípios do direito ao livre exercício da profissão e da expressão de pensamento. Contou com importantes artistas brasileiros 2 . A primeira ABAPP era carioca, depois foram constituídas outras em outros estados da Federação, localizadas em cidades como Belém, Manaus, Pernambuco e Porto Alegre. Já existiam outras associações anteriores à ABAPP, a Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa é uma delas, fundada em 1938. Nos concentramos na ABAPP porque esta foi a que manteve um embate perante o INAP desde sua criação que é o que nos interessa nesta pesquisa. Também foi a pioneira, congregando todas as associações de artistas plásticos do Brasil em encontros e debates para discutir a política cultural dedicada às artes plásticas. Durante a pesquisa foi constatada uma recorrência de manifestações da ABAPP perante o INAP em que discutiam a atuação deste instituto em sua política cultural dedicada às artes plásticas. Desta forma tornou-se imprescindível mostrar os principais pontos da atuação desta associação e contar um pouco da sua história, focando nos principais embates da ABAPP frente o INAP.

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Alguns dos principais artistas participantes da Associação carioca foram: Iberê Camargo, Katie Van Scherpenberg, Loyo Pérsio, Carlos Vergara, Marilia Kranz, Rute Gusmão, Maria Luiza Saddi, Fernando Cocchiarale, Valério Rodrigues, Indaiá Lacerda, Manfredo de Souza Netto, Jorge Duarte, Adriano de Aquino, Rogério Luz, Cildo Meireles, Marília Rodrigues, Ascânio, Fayga Ostrower, Frank Schaeffer, Rubens Gerch man, Waltércio Caldas, Joaquim Tenreiro, Solange Oliveira, Igor Marques, Montez Magno, Paulo Roberto Le al, Carlos Scliar, Abelardo Zaluar, Antonio Henrique Amaral, Glauco Pinto de Morais, Ronaldo do Rêgo Macedo, Aníbal Fernando Martinho, Paulo Estellita Herkenhoff, Miriam Danowsky, Carmen Bardy, Aluisio Carvão, Thereza M iranda, Denise Weller entre outros. 128 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Este é, portanto o primeiro trabalho acadêmico a citar a ABAPP e a importância de sua atuação política frente o INAP, e também o primeiro trabalho que registrou em vídeo entrevistas com profissionais que atuaram na associação, sendo eles, o pintor Adriano de Aquino, o pintor Carlos Vergara, a artista plástica Katie Van Scherpenberg, o crítico de arte Paulo Estelitta Herkenhoff e a artista plástica Rute Gusmão. Carlos Vergara, um dos fundadores da ABAPP, cita durante a entrevista um acontecimento crucial para entendermos o panorama político e social no qual a ABAPP foi criada. “Bom. A ABAPP é uma, era uma entidade que, que nos anos 60, depois de 64, tava um pouco assim adormecida e hibernando. Com a morte, com o acidente do Calabouço 3 , quando o Edson Luís foi morto pelas forças de repressão, o corpo dele foi levado pelos estudantes direto para a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. E aí, foi uma mobilização que se deu imediata de várias, várias áreas da, da, não só dos partidos políticos que tavam contra a ditadura como também, entidades e, IAB4 , jornalistas. E eu fui pra lá junto com outros artistas e percebemos que a gente não tinha. A gente não tinha um organismo que representasse, que fosse representativo, representativo de uma classe. Entendeu? Uma classe ainda muito dispersa tal , mas uma classe composta de artistas que tinham visão política e não só, não existiam só alienados, pintores, mas também artistas que tinham visão política. E aí esse fato em si, a percepção que a gente teria que ter uma entidade que nos representasse, que fosse representativa dos artistas, é que forçou um pouco a retomada, como já existia uma entidade, essa entidade foi aumentando um pouco ressuscitada. Eu não me lembro exatamente, porque aquilo era uma ação muito complexa no momento em função da repressão mesmo, mas também porque é, reunir artistas que tinham tradicionalmente uma visão individualista do trabalho, tal, ou então uma visão sindicalista do trabalho que era uma coisa que muitos de nós não queríamos ter. Quer dizer, como se o artista profissional fosse, ahh, ahh... Nós não queríamos um sindicato! Pra reivindicar coisas, melhorias financeiras só, não. Nós queríamos um órgão representativo, que a gente discutisse questões objetivas políticas e teóricas da função do artista plástico.5 ”

Carlos Vergara, se interessava mais pela ABAPP por proporcionar um local de discussão política e teórica da arte e não puramente sindical. Esta postura fez com que a ABAPP adotasse desde o início discussões amplas, em várias direções interessantes à classe.

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Aqui Carlos Vergara se refere ao Restaurante Calabouço. Edson Luís de Lima Souto (Belém, 24 de fevereiro de 1950 — Rio de Janeiro, 28 de Março de 1968) foi u m estudante secundarista brasileiro assassinado pela Polícia Militar durante um confronto no Restaurante Calabouço, centro do Rio de Janeiro. Edson foi o primeiro estudante assassinado durante o Regime M ilitar e sua morte marcou o início de u m ano com intensas mobilizações contra o regime militar. Tinha origem pobre e iniciou os estudos na Escola Estadual Augusto Meira em Belém do Pará. Mudou-se para o Rio de Janeiro para fazer o segundo grau no Instituto Cooperativo de Ensino, que funcionava no restaurante Calabouço. Durante o mesmo confronto outro estudante foi atingido e morreu no hospital, seu nome era Benedito Frazão Dutra. 4 IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil). 5 VERGA RA, Carlos. Entrevista registrada em vídeo, co m o artista plástico Carlos Vergara. Rio de Janeiro, 14 de Outubro de 2009. Duração do vídeo: Vinte e nove minutos e onze segundos. Concedida a André Guilles Troysi de Campos Andriani. 129 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


O pintor e um dos fundadores da ABAPP Loyo Pérsio, falecido em 2004, conhecido por ter uma visão mais sindicalista dentro da ABAPP, também extremamente necessária àquela conjuntura, em entrevista à Tribuna da Imprensa demonstrou as necessidades básicas sociais e jurídicas de se criar uma associação de artistas plásticos como a ABAPP, que apoiasse os artistas e suas produções em um momento de repressão no qual ocorriam constantes averiguações da polícia e outros órgãos criados pela repressão. A união em uma associação buscava meios de garantir mais segurança aos artistas plásticos filiados. “Apesar de que milhares de pessoas se preocupam com a arte, apesar de tudo isto, o artista não existe. A profissão de artista é, ainda juridicamente inexistente. O artista é um fantasma para os nossos legisladores. Na vida prática, é um marginal. Se identificar-se à polícia como artista, prendem-no. Essa condição, que a situação na fronteira entre o operário, o intelectual e o contraventor, leva-o, gradativamente a humilhar-se, a desvalorizar-se como ser humano, a compactuar, a aceitar o que ele sabe que é injusto, irracional e terrivelmente feio. 6 ”

Carlos Vergara discordava da idéia da ABAPP atuar apenas como um sindicato, focado exclusivamente nas questões profissionais e alheio as questões sociais e políticas, era contrário a algumas posições de Loyo Pérsio, vejamos um trecho da entrevista onde cita isto. “ABAPP, a ABAPP era um centro de discussão, mas a ABAPP de um certo momento ficou, teve uma posição muito sindicalista vamos dizer assim, e tanto assim que muitas vezes a gente discutia, quando era convocado em uma reunião da ABAPP, quando eu já tinha saído da presidência, momentânea que eu tive, se dizia que o melhor artista profissional hoje talvez fosse um a mador, porque essa visão sindical, sindicalista, de o artista teria de ter uma carteirinha de artista ou só poderia se envolver com o trabalho de arte aquele que tivesse escola de Belas Artes, ou esse tipo de coisa, enquanto uma área muito grande dos artistas não concorda vam. Entendeu? Então esse encaminhamento pra, pra uma posição mais vamos dizer assim sindical que era representada muito por uma linha do Loyo Pérsio, entendeu, um artista que presidiu a ABAPP durante um tempo e não vai aí nenhuma crítica, vai uma discordância, quer dizer não vai uma recusa, vai uma discordância de uma linha de pensamento que tava tomando, mas que levou a associação a continuar.7 ”

A retomada da ABAPP foi oficializada em assembléia-geral realizada em 30 de agosto de 1977 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com a presença de 52 artistas, entre os quais, Fayga Ostrower, Frank Schaeffer, Loyo Pérsio, Carlos Vergara, Rubens Gerchman,

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BITTENCOURT, Francisco. ―O art ista plástico, esse fantasma‖. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro. 26 de Dezemb ro de 1978. 7 VERGA RA, Carlos. Entrevista registrada em vídeo, co m o artista plástico Carlos Vergara. Rio de Janeiro, 14 de Outubro de 2009. Duração do vídeo: Vinte e nove minutos e onze segundos. Concedida a André Guilles Troysi de Campos Andriani. 130 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Waltércio Caldas, Joaquim Tenreiro. Assim foi fundada a ABAPP, Associação Brasileira de Artistas Plásticos Profissionais do Rio de Janeiro e divulgado o seu estatuto 8 . Em 27 de setembro de 1977 9 , assinavam pela Diretoria Provisória da ABAPP, os artistas plásticos Carlos Vergara e Loyo Pérsio. É interessante esta dualidade na Diretoria Provisória, se recordarmos que Carlos Vergara não compactuava com a visão sindicalista de Loyo Pérsio. Isto demonstra o ambiente democrático que caracterizaria a atuação da ABAPP durante sua existência, onde diversas correntes se uniram para chegar a conclusões e ações que fortalecessem a representação da classe. Katie Van Scherpenberg em entrevista cita que uma das principais razões objetivas da criação da associação foram os descontentamentos como o Salão Nacional vinha sendo conduzido, por pessoas ligadas ao mercado de arte. Profissionais como críticos de arte, marchands, e até mesmo artistas. “Eu não me lembro muito bem as datas, já faz algum tempo, mais de 30 anos, mas os principais fundadores, as idéias né, vieram de artistas como Vergara, Loyo Pérsio, Adriano de Aquino e eu estava no meio disso, as discussões eram extremamente acaloradas na época. A política das artes plásticas estava minada por uma série de vamos dizer, posições tomadas especialmente por críticos da época. Estavam tomando conta, aliás, durante anos, dos salões. Os salões na época não eram divulgados, então ninguém sabia as datas, ninguém sabia aonde os salões iriam acontecer e quem entrava nos salões eram justamente os apadrinhados da crítica. A posição da ABAPP foi exatamente para, uma das reivindicações da ABAPP foi justamente para reivindicar que os salões fossem abertos a todos os artistas plásticos de todo Brasil, que houvesse uma transparência em termos de agraciamento, vamos dizer dos prêmios. Os prêmios, tem que se lembrar, na época eram altíssimos.10 ”

Segundo Adriano de Aquino, Ex-Presidente da ABAPP, a associação reunia artistas das mais diversas tendências estéticas e o elo principal que unia esses artistas, era a vontade de que instituições como o MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) re fizessem seus paradigmas, suas formas de trabalhar. Vários fatores favoreceram esta vontade dos artistas,

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MORAIS, Frederico. ―Novo Salão Nacional: todos estão contra‖. O Globo. Qu inta -feira, 08/09/1977. Carta da Diretoria Provisória da A BAPP endereçada ao então Diretor do INA P, o Senhor Alcíd io Mafra de Souza, datada em 27 de Setembro de 1977. Rio de Janeiro. Assinada por Carlos Vergara e Loyo Pérsio. 10 SCHERPENBERG, Kate Van. Entrevista registrada em v ídeo, com a art ista plástica, pintora Kat ie Van Scherpenberg. Rio de Janeiro, 16 de Setembro de 2009. Duração do vídeo: Uma hora, vinte e dois minutos e quarenta e sete segundos. Concedida a André Guilles Troysi de Campos Andriani. 9

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como o incêndio no MAM 11 , questões da gestão do MAM, a distância que se formara entre os dirigentes do museu e a classe artística 12 . “É, motivações que a gente falava, é bem objetivo básico. Primeira diz respeito à questão da liberdade de expressão. Havia um cerceamento como eu já falei anteriormente, a introdução que eu fiz foi em caráter mais genérico, agora em pontos bem objetivos. Isso em primeiro l ugar. Precisávamos de um instrumento que não fosse um instrumento digamos, do circuito. O que era esse circuito de arte, alguns textos, pensamentos críticos ou manifestações públicas, como exposições que visavam contestar o regime. Então nós achávamos que isso era importante, mas não era o suficiente, precisávamos de uma instituição de diálogo político né, ou que obrigassem as instituições abrir a porta do diálogo político. Aí compreendido não só as instituições públicas, como as privadas, no caso do Rio de Janeiro a inserção direta em assuntos da reconstrução do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A ABAPP funcionou dentro do Museu de Arte do Rio de Janeiro. Fizemos uma série de reivindicações que diziam respeito à segurança e inclusive de ocupação mesmo conceitual dos artistas na gestão do MAM. Isso foi uma, foi um desejo da ABAPP logo no começo porque nós achávamos que havia uma separação muito grande entre os gestores e a produção que tava em curso, chamada produção contemporânea, nós estávamos adquirindo, então fizemos uma atuação política e conquistamos algum espaço ali dentro, é, discussões foram feitas, fizemos u m conselho formado por diversos artistas, intelectuais e gestores do próprio museu né. Alcançou-se alguma coisa, teve um certo alcance. Então esses eram os itens e depois discutir a questão da apresentação pública. São poucas coisas que a arte tem, ou tinha na época, hoje tem pouco, na época tinha menos. Que era a gestão, por exemplo, dos salões de arte, quer dizer o que eles representavam, o que eles eram, se eles refletiam as expectativas dos artistas daquele período. Isso, e daí evidente o outro assunto diz respeito à questão dos materiais. Foi inclusive feito no Rio de Janeiro, foi presidido simbolicamente, eu fui a São Paulo, convidei o Volpi que presidiu a sessão de abertura do Primeiro Encontro Nacional dos Artistas Plásticos, aliás vou ver se eu acho um dos anais aqui pra te dar, porque lá você pode ver exatamente o que era essa luta da ABAPP naquela ocasião. E que dizia também, aliás, o quarto ponto, eu coloquei três, a liberdade de expressão, instituições né, ou seja, representação institucional, terceiro a questão dos materiais e quarto a questão da mídia. O que era a mídia cultural? Eu digo o que era a mídia cultural? Como é que o diálogo poderia ser estabelecido. Não era interesse de fazer uma relação doutrinária ou de imposição à mídia, mas sim de abrir uma discussão de forma diferente com uma representação de artistas e a própria mídia. Quer dizer, um diálogo mais aberto, mais pronto à discussão, ou seja, que as questões não fossem só, digamos pautadas pelo trabalho, mas que fossem também perguntadas, questionadas e perguntadas pelos artistas. E assim foram feitos alguns seminários como esse Simpósio Nacional de Artistas Plásticos. Que eu acho que só foi feito esse. Na época eu era Presidente da ABAPP, fui eu quem incentivei essa realização, o Volpi foi o Presidente de Honra desse primeiro encontro, e nesse encontro se debateu essas questões. Porque veja bem, quando eu tô falando da questão da mídia eu tô falando muito numa questão da 11

No dia 8 de ju lho de 1978, u m incêndio causado provavelmente pelo descuido de um fu mante irresponsável ou por uma falha elétrica, destruiu cerca de 90% de seu acervo, principalmente as obras de Picasso (Cabeça Cubista e um Retrato de Dora Maar), M iró, Salvador Dalí, Max Ernst, René Magritte, Ivan Serpa, Manabu Mabe e tantos outros artistas importantes, além de todos os trabalhos presentes em uma grande retrospectiva de Joaquin Torres García, u m dos criadores do grupo Cercle et Carré que originou o Universalismo Construtivo. Após intensos trabalhos de restauração, o Bloco de Exposições voltou a funcionar em 1982. Entre 1993 e 2002, o museu recebeu doações de coleções particulares como as de Gilberto Chateaubriand, cerca de 4.000 obras, que incluem telas de Cândido Portinari, Tarsila do A maral, Lasar Segall, Di Cavalcanti e gravuras de Oswaldo Goeldi, entre outras obras. 12 AQUINO, Adriano de. Entrevista registrada em vídeo, co m o pintor Adriano de Aquino. Rio de Janeiro, 17 de Setembro de 2009. Duração do vídeo: Duas horas, vinte e três minutos e trinta e oito segundos. Concedida a André Gu illes Troysi de Campos Andriani. 132 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


mídia no sentido de, é, de juntar forças, ou seja, a mídia sofria a mesma opressão e todos os brasileiros sofriam opressão igual 13 de um sistema é, digamos fechado, que era o regime militar que impunha regras a toda, comunicação e expressão.14 ”

A ABAPP queria essencialmente possibilitar que o artista tivesse uma parcela de participação em eventos gerados pela sua atividade. O que, pela lógica, lhe é de direito. Participar de júris artísticos, de conselhos, ganhar espaço na mídia, ser reconhecido judicialmente. Questões que hoje em dia soam óbvias, mas que naquele período inexistiam. Esses conceitos de maior participação do artista no sistema que ele é a peça central, foram conquistados pioneiramente pela ABAPP. As entrevistas gravadas em vídeo e aqui transcritas confirmaram os primeiros dados obtidos com a pesquisa documental de que a ABAPP foi a principal mobilização por parte da sociedade civil que interferiu na atuação do INAP, exigindo uma atuação democrática da instituição e propondo projetos diversos. Devemos recordar que a partir de 1975, todos estes espaços institucionais criticados pela ABAPP, como o MAM e o Salão Nacional já estavam sob o controle da política cultural da FUNARTE através do INAP. Sabemos que o diretor do INAP, o Senhor Onofre de Arruda Penteado vinha fazendo um enorme esforço no sentido de democratizar o Salão Nacional de Artes Plásticas recémcriado, chegou até mesmo contatar os artistas na época, enviando-lhes um anteprojeto para apreciação e sugestões, foi demitido por pressões internas da FUNARTE 15 , possivelmente decorrentes da prática de clientelismo em seus espaços, como o Salão e as galerias da FUNARTE. Devemos lembrar que este momento inicial do INAP era marcado por forte clientelismo 16 , relatado por Paulo Herkenhoff em sua entrevista. “Aberto aos iniciantes, aos amigos. Eu acho que tinha coisas de amigo, tanto que no dia em que eu assumi, um desses chefes de trazer amigos, pediu pra sair naquele dia. Um dia só, e eu despedi pessoas que não apareciam, podia ser poeta, podia ser escritora, não comparece, tchau, rua, isso 13

Ver o caso do artista plástico Lincoln Vo lpin i citado no subcapítulo 4.1 da d issertação: A Atuação da FUNARTE através do INAP no Desenvolvimento Cultural da Arte Brasileira Contemporânea nas Décadas de 70 e 80 e Interações Políticas co m a A BAPP. Disponível na biblioteca digital da UNICAMP. 14 AQUINO, Adriano de. Entrevista registrada em vídeo, co m o pintor Adriano de Aquino. Rio de Janeiro, 17 de Setembro de 2009. Duração do vídeo: Duas horas, vinte e três minutos e trinta e oito segundos. Concedida a André Gu illes Troysi de Campos Andriani. 15 MORAIS, Frederico. ―Novo Sa lão Nacional: todos estão contra‖. O Globo. Qu inta-feira, 08/09/1977. 16 HERKENHOFF, Paulo Estellita. Entrev ista registrada em v ídeo, co m o crítico de arte e escritor Paulo Estellita Herkenhoff. Rio de Janeiro, 14 de Outubro de 2009. Duração do vídeo: Duas horas, trinta minutos e cinqüenta e um segundos. Concedida a André Guilles Troysi de Campos Andriani. 133 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


aqui é lugar de trabalho, entendeu? Isso eu fui assim, é realmente, preciso. Não ter assiduidade e não cumprir dever, rua! Pode ser quem for, porque não é uma q uestão pessoal, é uma questão de um compromisso institucional em um momento que você tem um desafio pela frente de levar a Fundação para o resto do Brasil, com uma limitação enorme de gastos não é? É, então você tinha que fazer o trabalho render né.17 ”

A ABAPP havia criado internamente uma Comissão de Estudos dos Salões e Congêneres 18 em 30 de agosto de 1977 no MAM. Em caráter de urgência, essa comissão estudava o regulamento do novo Salão Nacional de Artes Plásticas enquanto rapidamente colhia 102 assinaturas para um manifesto enviado ao Deputado Humberto Lucena da Comissão de Comunicação do MDB 19 , solicitando que fosse sustada a regulamentação do Salão que ele preparava 20 . Isto registra, portanto uma participação da associação na formulação do novo Salão Nacional de Artes Plásticas, resultante da extinção dos dois salões anteriores, o Moderno e o de Belas Artes. A ABAPP neste momento já dispunha de notoriedade e o segundo Diretor do INAP em 1977, o Senhor Alcídio Mafra de Souza, continuando o trabalho de Onofre Penteado, encaminhou para a Associação um segundo anteprojeto de um novo regulamento do Salão Nacional de Artes Plásticas, para que lhe enviassem estudos e sugestões. O Primeiro Salão Nacional ocorreu de 24 de novembro de 1978 a 20 de dezembro e recebeu críticas da ABAPP por dois motivos principais: continuar praticando o antigo sistema do Salão Imperial que estimulava a competição, baseado naquilo que a ABAPP chamava de funil hierarquizador do mecanismo competitivo, composto por três etapas, inscrição, seleção e premiação e por não ampliar a participação dos artistas no júri. A ABAPP havia solicitado que fossem eleitos pelo menos em parte, pela classe artística e não somente pelo Estado 21 . Uma outra importante conquista da ABAPP, fruto de intensa mobilização junto aos artistas de todo o Brasil, foi a realização do 1º ENAPP (Encontro Nacional de Artistas Plásticos Profissionais), realizado de 26 a 29 de novembro de 1979, com apoio da 17

HERKENHOFF, Paulo Estellita. Entrev ista registrada em v ídeo, co m o crítico de arte e escritor Paulo Estellita Herkenhoff. Rio de Janeiro, 14 de Outubro de 2009. Duração do vídeo: Duas horas, trinta minutos e cinqüenta e um segundos. Concedida a André Guilles Troysi de Campos Andriani. 18 Carta da Diretoria Provisória da A BAPP endereçada ao então Diretor do INA P, o Senhor Alcíd io Mafra de Souza, datada em 27 de Setembro de 1977. Rio de Janeiro. Assinada por Carlos Vergara e Loyo Pérsio. 19 MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Partido político opositor ao Regime Militar iniciado em 1964 no Brasil. 20 MORAIS, Frederico. ―Novo Salão Nacional: todos estão contra‖. O Globo. Qu inta-feira, 08/09/1977. 21 PONTUA L, Roberto. ―Associação revê Salão‖. Jornal do Brasil. Seção de artes plásticas. 11/ 12/ 1978. Rio de Janeiro. 134 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FUNARTE, da Fundação RIO e da RIOTUR.

Neste encontro foram obtidas diversas

conquistas da classe dos artistas plásticos, debatendo-se assuntos diversos e abrangentes, como o ensino de arte, o mercado de arte brasileiro, a participação dos artistas nos espaços de consagração, importação de materiais artísticos de qualidade entre outros de um vasto temário organizado pela ABAPP com a cooperação do INAP. De 07 a 11 de novembro de 1983 ocorreu o 2º ENAPP no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, também com apoio da FUNARTE através do INAP 22 , configurando mais uma ação no sentido de descentralizar as ações da instituição. Em 1981 a ABAPP dispunha de tanta força política dentro das questões de artes plásticas, que até mesmo Walter Zanini, Curador Geral da XVI Bienal de São Paulo solicitou sugestões à ABAPP, para que esta indicasse artistas brasileiros a serem convidados a participar do Núcleo I da Bienal. A relação solicitada deveria ter no máximo dez nomes e ser acompanhada dos motivos que levaram à escolha 23 . Adriano de Aquino era o Presidente da ABAPP neste momento. Dentre as várias ações da ABAPP até 1981, podemos resumir em algumas essenciais para demonstrar a abrangência de sua atuação. Havia representações da ABAPP no Conselho Cultural do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) e na Bienal de São Paulo, já citada. Também organizou um ciclo de palestras em conjunto com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). Iniciou a elaboração do Jornal Número 2, jornal da Central Nacional de Artistas Plásticos. As conquistas da Associação culminaram na nomeação do então Presidente da ABAPP, o pintor Adriano de Aquino feita pelo Ministro da Educação e Cultura, Rubem Carlos Ludwig, para que integrasse a Comissão Nacional de Artes Plásticas (CNAP) 24 . No 6º Salão Nacional de Artes Plásticas em 1983, a ABAPP organizou uma votação nacional com os artistas plásticos de todo o Brasil para decidir alguns membros da subcomissão de seleção e premiação do Salão. Os candidatos foram, o pintor Carlos Scliar, o artista plástico multimídia Paulo Roberto Leal e o artista plástico multimídia Montez

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―Encontro Nacional‖. Jo rnal Correio da Bahia. Salvador. 4 de Outubro de 1983. Carta de Walter Zan ini endereçada a Adriano de Aquino. Receb ida em 24 de Janeiro de 1981. 24 Relatório de Ativ idades da ABAPP aos associados. Documento datilografado, sem data e autor específico. Data provável: Outubro de 1981. 23

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Magno 25 . Carlos Scliar obteve a maior votação da história das comissões dos salões brasileiros, foi eleito com 264 votos, Paulo Roberto Leal com 235 e Montez Magno com 200 votos. Este é um fato essencial que demonstra o amadurecimento da ABAPP e do INAP e as relações que ocorreram entre eles. Essa atitude permitiu a participação de artistas de lugares longínquos. Tal procedimento surgiu de Rute Gusmão, Ex-Presidente da ABAPP do Rio de Janeiro e contou com a participação imediata das associações de artistas plásticos de São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia e Paraíba, além de artistas isolados no interior do país 26 . Foi tão bem aceito que repetiram-no nos dois salões seguintes. No 7º Salão Nacional em 1984, a ABAPP do Rio de Janeiro conjuntamente com a Associação Profissional dos Artistas Plásticos de São Paulo (APAP-SP) e artistas de Porto Alegre, lançaram o pintor e desenhista Abelardo Zaluar, o pintor e gravador Antonio Henrique Amaral e o pintor Glauco Pinto de Morais para serem eleitos para o júri de seleção e premiação 27 , os três ganharam. No 8º Salão Nacional em 1985, a ABAPP, em comunhão com representações do Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo, indicou mais três artistas, sendo que cada Estado responsabilizouse por um destes artistas. Anna Bella Geiger foi a representante do Rio de Janeiro, Luis Paulo Baravelli de São Paulo e Rubem Valentim pela Bahia 28 . Dentre todas as lutas que a ABAPP aderiu é preciso ressaltar a questão da melhoria dos materiais artísticos, onde discutiam a péssima qualidade do material nacional, indicativa do descompromisso da industria nacional e também das altíssimas taxas de importação de bons materiais importados. Esta luta específica da ABAPP foi liderada por Katie Van Scherpenberg. Originariamente esta questão vinha desde o primeiro Salão Preto e Branco

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Informe datilografado da ABAPP sobre os candidatos da ABAPP para a Subco missão de Seleção e Premiação do Sexto Salão Nacional de Artes Plásticas, sem data específica. Podemos situar a data deste documento com a informação de que o Sexto Salão Nacional de Artes Plásticas ocorreu no final de 1983 e in ício de 1984. 26 HERKENHOFF, Paulo. ―Uma análise do Salão Nacional‖. In: Catálog o do Séti mo Salão Nacional de Artes Plásticas. Texto de abertura de Paulo Herkenhoff. FUNA RTE. Rio de Janeiro. Novembro de 1984. 27 Informe da ABAPP do Rio de Janeiro datilografado, sobre a eleição do júri do Salão Nacional de Artes Plásticas. Agosto de 1984. Ninguém assina o documento. 28 Informe da ABAPP do Rio de Janeiro datilografado, sobre a eleição do júri do Salão Nacional de Artes Plásticas. 16 de Setembro de 1985. Ninguém assina o documento. 136 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


organizado por Iberê Camargo e segundo Paulo Herkenhoff29 é uma luta dos artistas plásticos brasileiros anterior a Iberê Camargo. Katie Van Scherpenberg produziu um representativo texto 30 no qual considera a dificuldade do artista brasileiro em conseguir material de qualidade. Uma espécie de censura orquestrada por uma visão equivocada de protecionismo da industria nacional. A ABAPP conseguiu parceria com o INAP e tocou um projeto de pesquisa de melhoria de materiais 31 . Essa luta culminou com o anúncio da medida da eliminação das taxas sobre materiais de artes plásticas importados feito Presidente da República José Sarney durante abertura do 8º Salão Nacional de Artes Plásticas no dia 13 de dezembro de 1985 32 . A ABAPP nunca teve o interesse específico de participar diretamente da estrutura do Estado, mas não há dúvidas como pudemos ver, de que seus embates e sugestões em defesa do artista plástico brasileiro resultaram em mudanças de muitos procedimentos do INAP. Segundo Rute Gusmão a ABAPP encerrou suas atividades no Rio de Janeiro em 1988. “Então eu acho que é uma coisa assim de avaliação difícil não é, a gente, a gente dizer se a ABAPP alterou a atuação da FUNARTE. Eu acho que teve direções importantes na FUNARTE como a direção do Paulo Herkenhoff no INAP, ele realmente fez um trabalho excelente. Agora, nós tivemos um papel, eu acho que é interessante a gente analisar essa coisa do papel, a gente teve um papel enquanto sociedade civil, a gente fez a pressão, fez reivindicação, fez a politização, fez um trabalho ideológico no meio artístico, acho que os artistas muitos é, começaram a discutir a sua produção, o sentido da sua produção, o sentido da sua produção dentro da sociedade brasileira, dentro da cultura brasileira. Eu acho que isso é, se nós tínhamos identidade ou não como produtores, enfim eu acho que, que a ABAPP propiciou um trabalho político importante. Eu acho que é interessante que ela existiu né, naquele período de 77 né, quando o AI-5 tava em vigor ainda a 88 que foi o ano da nossa Constituição Federal cidadã, Constituição Federal de 88 não é. Era, ela deixou de existir em 88, eu acho que ela foi se esvaziando. Quer dizer o artista foi deixando de participar da ABAPP e eu fico pensando muito porque que isso aconteceu. Eu acho que ela foi, ela existiu enquanto ela foi necessária como instrumento da transição no meio das artes plásticas, que era um meio extremamente retrógrado né, vamos falar a verdade. A gente vivia o academismo, vivia o domínio da censura enfim, a gente vivia um individualismo enorme, o isolamento dos artistas né. Eu acho que quando o artista a se discutir, discutir sua produção dentro de uma sociedade que tava em processo de transição, toda ela que a transição se deu em todos os seguimentos sociais e as instituições foram criadas, os partidos, as centrais sindicais, os sindicatos enfim os movimentos, as associações de moradores, houve todo um movimento na década de 80 né. Em final dos anos 70 e início dos anos 80, durant e os anos 80 e a ABAPP fez 29

HERKENHOFF, Paulo Estellita. Entrev ista registrada em v ídeo, co m o crítico de arte e escritor Paulo Estellita Herkenhoff. Rio de Janeiro, 14 de Outubro de 2009. Duração do vídeo: Duas horas, trinta minutos e cinqüenta e um segundos. Concedida a André Guilles Troysi de Campos Andriani. 30 Este texto foi publicado no catálogo do Sétimo Salão Nacional de Artes Plásticas o titulo do texto era: Instrumental de Trabalho e Censura. 31 Entrev istas com Paulo Herkenhoff e Katie Van Scherpenberg registradas em v ídeo pelo autor do artigo. 32 JÚNIOR, Reynaldo Roels. ―VIII Salão Nacional de Artes Plásticas. Sem novidades, mas co m qualidade‖. Jornal do Brasil. Caderno B. Sexta-feira, 13 de Setembro de 1985. 137 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


parte desse movimento né, então eu acho que ela trouxe uma contribuição que extrapolou o INAP, FUNARTE, eu acho que ela trouxe uma contribuição à sociedade brasileira, ela pensou a cultura. Foi a entidade que pensou a cultura na época, portanto ela é uma entidade, é, ela fez um movimento né, que tem que ser reconhecido pelo país, né, tem que ser reconhecido pela sociedade brasileira. Ela não pode ficar no esquecimento, por isso eu acho muito importante esse trabalho que o André tá desenvolvendo porque é a primeira vez que a ABAPP tá falando desde 88. 33 ”

O pensamento de Rute Gusmão é uma coerente explicação sobre o esvaziamento, o fim da ABAPP do Rio. Ela existiu enquanto necessária, seu esvaziamento foi proporcional ao crescimento da liberdade dos artistas. A busca pela liberdade pode ser entendida como o elo que conecta todas as lutas da ABAPP, em todos os sentidos, na criatividade, na aceitação de todas as correntes artísticas contemporâneas desprezadas pelo mercado e pela política cultural naquele momento, na questão do acesso aos bons materiais, na liberdade de expressão do artista durante o regime militar nos casos de censura, pela transparência nos processos públicos como concursos, salões e abertura de galerias públicas para exposições individuais. Usufruímos destas conquistas que hoje nos parecem atemporais, mas que começaram lá no final dos anos 70, com a pioneira ABAPP. Devemos colocar a ABAPP na história da arte brasileira em local de destaque, algo que foi protelado até o momento e agora explicitamos através deste estudo sobre os embates da ABAPP perante o INAP.

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GUSMÃO, Rute. Entrevista registrada em vídeo, co m a artista plástica Rute Gus mão. Rio de Janeiro, 13 de Outubro de 2009. Duração do vídeo: Uma hora, vinte e dois minutos e 49 segundos. Concedida a André Guilles Troysi de Campos Andriani. 138 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


OS DESAFIOS DA PINTURA FRENTE À ARTETECNOLOGIA Andréa V. Diogo Garcia1

Resumo: O artigo discute os desafios da pintura brasileira na atualidade frente aos trabalhos artísticos, cuja matéria e suportes privilegiam as novas mídias tecnológicas. Para tanto, é estabelecida uma reflexão sobre as relações dos valores sensuais na pintura e na arte-tecnologia e as inter-relações entre desejo e ação na contemplação/fruição da obra de arte. A discussão aborda ainda a questão dos aspectos de fragilidade existente no caráter sedutor que permeia tanto a pintura quanto as instalações interativas, e ainda, o âmbito efêmero e transitório que parecem circundar a linguagem da arte-tecnologia. Palavras-chave: pintura brasileira, arte-tecnologia, valores sensuais, instalação interativa. Resumen: El artículo discute los desafíos de la pintura brasileña en la actualidad haciendo frente a los trabajos artísticos, cuya materia y soportes, privilegian a las nuevas midias tecnológicas. Para tanto, se establece una reflexión acerca de las relaciones de los vaores sensuales en la pintura y en el arte-tecnología, y las inter-relaciones entre deseo y acción en la contemplación/fruición de la obra de arte. La discusión aún aborda la cuestión de los aspectos de frágilidad existente en el carácter seductos que se acreca tanto a la pintura, cuanto a las instalaciones interactivas, y aún, el ámbito efímero y transitorio que parecen circundar el lenguaje del arte-tecnología. Palabras llave: Pintura brasileña, arte-tecnología, valores sensuales, instalación interactiva.

Os desafios da Pintura frente à arte-tecnologia Ao falarmos em pintura na contemporaneidade, parece ser difícil estabelecermos frente à diversidade estilística dos trabalhos produzidos nesta linguagem o que viria a ser pintura. Parte desta dificuldade pode estar inserida em dois pólos: por um lado o público que se depara com obras cada vez mais inusitadas quanto aos aspectos de sua visualidade, e por outro os agentes diretamente responsáveis tanto pela produção da obra quanto pela sua inserção no circuito formal de arte. No fim do século XX, nota-se certo movimento de "repúdio" às chamadas correntes caracterizadas pelos "ismos", com a concomitante recusa por parte dos artistas a terem suas obras rotuladas dentro de uma determinada categorização. Por outro lado, quase em uma antítese a esse discurso, vemos o artista em sua busca poética, que ao contextualizar sua produção, tenta defini-la entre possibilidades como: pintura objetual, 1

Mestranda bolsista Capes, na linha de Abordagens Teóricas, Histórica Culturais da Arte, Unesp, sob orientação prof. Dr. Omar Khouri. 139 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


pintura matérica, pintura instalada, etc. Essa auto-definição faz, inegavelmente, parte do processo de construção poética e toma parte na densidade das discussões que permeiam o cenário contemporâneo. Contrariamente ao pensamento que parece ser a regra vigente, de que não se pode definir o que é pintura nos dias de hoje, crê-se aqui na necessidade de estabelecer um parâmetro para nortear o que é tomado como uma obra de pintura. Para tanto, é preciso deixar especificado que se entende por pintura a obra cujo conjunto imagético é entendido ou apreendido pelos aspectos cromáticos em suas nuanças, quer sejam exacerbados, quer sejam sutis, e que possuindo um determinado grau de abertura apresentam um aspecto acabado, limitado espacialmente, e cuja sustentação acontece em virtude de uma superfície outra que não a do próprio suporte. Quaisquer que sejam suas rupturas de suporte ou matéria, sua condição bidimensional prevalece como ordenadora da obra. Uma vez delineada, ainda que de maneira breve, o que se entende por pintura, o que se pretende neste artigo é propor uma discussão reflexiva sobre os desafios a serem enfrentados pela linguagem da pintura frente à arte-tecnologia. Por ser esta uma discussão ampla, neste presente momento será privilegiada a questão da sedução visual na pintura versus sedução sensório interativo de trabalhos oriundos de novas mídias tecnológicas. Ao abordar os referidos aspectos, outro ponto faz-se inerente à discussão: a questão da posterioridade da obra quanto a sua reapresentação ao público, manutenção e conservação. No vasto campo das poéticas pictóricas individuais será feito um recorte de duas obras de artistas brasileiras para pontuar a discussão, a saber: O Mágico - 2001 (FIG.1), da artista Beatriz Milhazes, e Mundo Macio - 2007 (FIG.2), de Leda Catunda. Estas duas obras podem ser tomadas como referenciais no aspecto coeso de suas respectivas trajetórias artísticas. Teremos em um contraponto, que permitirá trazer à reflexão a arte-tecnologia, duas instalações interativas, Presence2 - 2009, de Hugues Bruyère, documentada em vídeo, e Sensible3 - 2009 do Projeto Biopus, grupo argentino, formado por Emiliano Causa, Matías Romero Costas e Tarcisio Pirotta, também documentada em vídeo, ambas realizadas na cidade de São Paulo, na mostra File. 2 3

http://www.youtube.com/watch?v=w9WdFNsAZrA http://www.youtube.com/watch?v=6hTYSqfYJU8 140 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Retomando o que foi dito anteriormente, sobre os desafios a serem enfrentados pela pintura, crê-se que o maior deles é a necessidade existencial de um caráter poético sedutor que lhe permita reafirmar seu lugar enquanto linguagem expressiva e inovadora. Seu desafio é ser sedutora. Acredita-se que para tanto, deva possuir o que Bachelard (1997) chama de valores sensuais. Entenda-se por estes a sensualidade e o magnetismo. A realização concreta de tais valores por parte do artista se faz necessária para vir de encontro às sucessivas mudanças pelas quais a sociedade tem passado, tanto tecnológicas quanto a forma como interagem com essas tecnologias. Estas mudanças assimiladas na vida cotidiana geram situações sócioculturais que repercutem diretamente na autoformação de um público com novos anseios na maneira de se relacionarem com a obra de arte. Tais expectativas caracterizam um universo de inter-relações entre o desejo e a ação na fruição da obra. Tendo em vista esta realidade contemporânea, se pode dar início a discussão partindo do recorte das duas pinturas: O Mágico e Mundo Macio. Na obra O Mágico - 2001 (FIG.1), da pintora e gravadora carioca Beatriz Milhazes, observa-se na parte inferior da tela o início de um arabesco centralizador que direciona a concentração de outras formas multicoloridas. Flores, círculos concêntricos e figuras orgânicas sobrepostas criam um ritmo sinuoso, estabelecendo uma exuberância cromática e um aspecto de delineamento gráfico. A profusão de cores estrategicamente dispostas no espaço confere unidade à imagem, sem torná-la visualmente pesada. Ao trazer para tela uma ampla paleta de cores, Beatriz Milhazes, inegavelmente, revela o domínio poético da sensualidade e do magnetismo da cor, tornando impossível ao olhar uma percepção imediata da obra. A dinâmica de formas e cores se tornam sedutoramente contemplativas, atraem pela policromia. A obra Mundo Macio - 2007 (FIG.2), da pintora paulista Leda Catunda, apresenta nos recortes de formatos orgânicos imagens digitalizadas de parques, cachoeira, flores, praias, caminhos e campos. Cada uma das paisagens, fragmento do todo, é emoldurada por tecido laranja que também as conecta umas às outras. O espaço entre os recortes insere-se na obra, agregando o valor de elemento contrastante, atuando ainda como moldura visual das imagens centrais e, ao fazê-lo, quase pode sugestionar-nos pela ideia de caminhos de múltiplas direções. Nesta pintura, dois fatores evidenciam a realização do magnetismo e da 141 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sensualidade: o uso do tecido como suporte e pseudo-moldura dos fragmentos, e as imagens das paisagens. O tecido, um material sedutor por suas características de maciez e ligeira transparência, sugestiona um tatear que não se realiza por meio outro que o do próprio olhar. As representações paisagísticas, por sua vez, tendem a despertar similar apelo magnético que o de uma paisagem real, com a qual possamos deparar-nos. Sua constância e serenidade induzem e seduzem à contemplação. Segundo Bachelard (1997), a natureza contemplada atrai magneticamente à contemplação, por possuir e ser intrínseca a ela uma natureza contemplativa. A contemplação é da vontade, da ordem do ver. Sendo assim, é uma necessidade direta do homem. O autor pontua também que a visão é a menos sensual das sensações. Ao se tomar este ponto de vista como uma verdade, e a ele acrescentar o fato de que uma das primeiras maneiras de travar contato com o mundo, ou percebê-lo, se dá pela visão, sopesaria então, sobre o ver, uma caracterização mecânica funcional. Se ver introduz, desvela o mundo, por conseguinte, fazer parte deste mundo requer ir além do ver. Requer ação participativa, exploratória. O fazer parte do mundo compreende agora a realização do que antes era desejo de agir, em ação, estabelecendo outra dinâmica de relação com o objeto de arte. É nesta transposição da contemplação à interação que se situam as instalações interativas, que serão abordadas a seguir. No entanto, antes é preciso esclarecer que se entende por instalação interativa, a criação de um novo ambiente em um lugar já existente, no qual as pessoas possam interagir com aparatos ou recursos tecnológicos, vivenciando as situações propostas. Para dar continuidade, retornemos a análise da instalação Presence, também chamada de Soft n' Silky, desenvolvida em 2006 pelo canadense Hugues Bruyère, e executada em São Paulo em 2009. O trabalho consiste de uma interface de dupla face na qual o público pode interagir pelo toque das mãos ou pelo toque do próprio corpo na superfície. A dupla face permite interação pelos dois lados, frente e verso. A superfície é denominada Performative Surface - superfície performática. Ela é de algodão 300 fios, esticada em uma moldura de 10x8x3, permitindo a interatividade de várias pessoas ao mesmo tempo. O entorno escurecido ambienta e evidencia a interface posicionada na vertical. Três possibilidades distintas de imagens são apresentadas para a manipulação: a captação da sombra das pessoas ao se 142 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


aproximarem, bolas coloridas que podem ser guiadas, deformadas ou perfuradas, e uma espécie de fumaça ao redor da sombra do corpo das pessoas, que podem assumir ritmos e corporeidades diferentes, conforme a movimentação. Pensado para se completar como obra mediante a manipulação corporal ou tátil, Presence se apresenta no mais sedutor dos modos ao romper com a aura de estaticidade e distanciamento intocável, vinculado as linguagens tradicionais da arte. Talvez nenhum outro momento seja tão importante à sedução quanto aquele em que se tem consciência da permissão de transgredir a regra do olhar pelo toque, para ir além no sentir. Inegavelmente, a sensorialidade do trabalho é um ato de sedução, que responde às expectativas de um público acostumado a conviver com as facilidades e praticidades oriundas das tecnologias atuais. Subjaz ao tocar uma ideia inconsciente de se conhecer em profundidade, o que mero olhar não alcança. O ato de tocar é o consumar da relação sedutora. Como o próprio nome já sugere, é a presença que realiza a obra. Na instalação Sensible, desenvolvida em 2007 pelo grupo argentino Biopus, uma mesa de tela em tecido elástico, sensível ao tato, permite aos interatores manipularem concomitantemente imagens e música em tempo real. Tais imagens coloridas são na verdade um ecossistema virtual, que representam criaturas que proliferam explosivamente com a interação das pessoas, para se extinguirem com a sua ausência. A interatividade a que se dispõe a obra, e da qual depende para se tornar como foi ideada, promove a realização dos valores sensuais. Seduz por sua condição de ser tocável, pela cromia luminosa, bem como pela música. Se sua horizontalidade exige uma aproximação mínima para ser notada em sua potencialidade, em oposição à verticalidade de Presence que se mostra mesmo à distância, a sonoridade atua tridimensionalmente neste espaço, suprindo essa ausência e atraindo possíveis novos interatores. Neste universo, que deslumbra e encanta as pessoas de diferentes idades, está presente também um aspecto de ludicidade. As ações interventivas que podem ser executadas possuem muito da lógica dos jogos e brincadeiras infanto-juvenis. Jogos estes orientados por um grupo pequeno de regras para propiciarem uma vivência divertida e prazerosa. Se tomarmos o ponto de vista de Bachelard (1997), no que diz respeito à visão ser a menos sensual das sensações, como uma máxima irrefutável, a pintura em sua contemplativa 143 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


razão de ser estaria condenada à ignorância. No entanto, o autor também reconhece que é possível que a visão se sensualize. É neste processo de sensualização que se pode localizar o grande desafio da pintura de descobrir elementos, características e configurações imagéticas que a tornem capaz de "sobreviver" frente ao apelo sensório interativo das novas linguagens. Crê-se que as pinturas apontadas dão mostras de terem conseguido alcançar os valores sensuais exigidos - ainda que inconscientemente - pelo público na atualidade. Até este momento se falou dos aspectos que configuram a sedução poética nestas duas linguagens distintas, e em linhas gerais, o fato de seu acontecimento ocorrer em virtude de expectativas tão humanas, como o anseio de romper os limites que se acreditam inerentes à contemplação. Ao se falar em limites na contemplação, faz-se necessário também falar dos limites impostos a exploração sensorial. Por mais que isto possa passar despercebido, o limite da experimentação é real, uma vez que há um controle através de um número de ações que o programa computacional permite executar para devolver uma resposta interpretativa do gesto. O percurso criativo, ou de construção poética de tais trabalhos, é minuciosamente racionalizado, as variáveis precisam antes de tudo serem previsíveis ao criador. É preciso evidenciar ainda que esta discussão aqui exposta não pretende estabelecer um juízo de valor que atribua uma superioridade da pintura em relação à arte-tecnologia, ou vice-versa, mas sim lançar novas possibilidades de análise e reflexão sobre o tema. Uma vez tendo sido feita esta abordagem, outro aspecto surge margeando a discussão: a reflexão sobre a posteridade da obra quanto a sua reapresentação ao público, manutenção e conservação. Todo objeto de arte traz em sim certa fragilidade física ao se levar em conta a sua posteridade. Ele precisa resistir ao decorrer dos anos como objeto real, e possibilitar a exposição às novas gerações. No entanto, uma fragilidade mais acentuada parece acompanhar os trabalhos de artetecnologia, se comparados às pinturas. Não há dúvidas de que com a mesma rapidez com que as inovações tecnológicas acontecem, ferramentas, dispositivos e programas operacionais tornam-se defasados. Novos equipamentos e acessórios substituem os anteriores, por questões que vão desde a praticidade ao desempenho. Mesmo que se queira ignorar as leis de mercado de oferta e demanda, o artista, como qualquer outra pessoa, está sujeito a elas. Sua matéria 144 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


prima, neste caso, totalmente industrializada, é dependente de terceiros, com período de validade pré-determinado. Os recursos de que se dispõe para o arquivamento de dados podem vir a serem perdidos devido a incompatibilidades impostas por novos leitores de mídias. A própria manutenção dos equipamentos que já se possui está sujeita a reposição de peças, que tanto podem não serem mais confeccionadas, quanto podem alcançar valores que tornem inviável economicamente tal procedimento. Esta relação cíclica gera um problema a ser solucionado pela arte-tecnologia: como conservar, manter, reproduzir e reapresentar ao público, em épocas longínquas, estes trabalhos que requerem ferramentas operacionais específicas, e que em um futuro próximo se tornarão obsoletas? Esta questão é de ordem prática e não será esboçada aqui nenhuma tentativa de respondê-la, pois, fazê-lo, seria incorrer em um erro pretensioso. Apesar de irresistivelmente sedutores, tanto para apreciadores de arte, quanto para leigos, tais trabalhos parecem serem circundados por uma efemeridade e uma transitoriedade que lhes conferem uma "vida útil" breve. Neste sentido se pode ainda estender a discussão a outro aspecto, que também parece reforçar a questão da brevidade destes trabalhos, a impossibilidade de interagir com a obra, dada a superação rápida das mídias, que ocasionaria a sua real perda. Por mais que se deseje, o registro do trabalho, no caso, por vídeo ou fotos, não é a obra, uma vez que sua completude se dá pela ação direta dos interatores. O registro se executado em lugar da obra é mero simulacro, que não alcança concretamente os valores sensuais ideados. Se por um lado, o desafio da arte-tecnologia é superar o devir dos limites impostos pelas tecnologias vindouras, por outro lado, em um contraponto, a pintura enfrenta o desafio de ser tão sedutora quanto à arte-tecnologia, para ter seu lugar assegurado. A pintura, tendo uma existência física que parece acenar para uma posteridade, livre de se tornar coadjuvante do desenvolvimento tecnológico, precisa, no exercício constante de se fazer sedutora, mesmo com seus rasgos de rupturas com o tradicionalismo, quer seja de suporte, quer seja de matérias pictóricas, continuar a ser pintura.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - O Mágico - 2001 http://www.mercadoarte.com.br/artigos/wp-content/uploads/2012/07/Beatriz-Milhazes-O-Magico.jpg

FIGURA 2 - Mundo Macio - 2007 http://www.touchofclass.com.br/main/artistas/leda.html Referências Bibliográficas BACHELARD, Gaston (1989). A Água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2002. CHIARELLI, Tadeu. Leda Catunda. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. MESQUITA, Ivo. et al. Leda Catunda: 1983-2008. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2009. Internet

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BOCHIO, Alessandra Lucia. Imagem Interativa: diálogo com o público. SOFTBORDERS - Conferência Internacional de Arte e novas mídias. Centro universitário de Belas Artes de São Paulo, 2010. Disponível em: http://www.usp-br.academia.edu. Acesso em 14 de Setembro, 2012. BOCHIO, Alessandra Lucia. As imagens das Instalações Interativas: uma abordagem sobre os modos de solicitar a participação do público na obra de arte. 2011. 128 p. Dissertação de mestrado em Artes Universidade Estadual Paulista. Instituto de Artes Unesp. Disponível em: www.ia.unesp.br/Home/posgraduacao/stricto-artes/dissertacao_alessandra_lucia_cbochio.pdf Hugues Bruyere, Presence (interactive installation) at FILE 2009 in São Paulo. Disponível em: http://www.youtube.com. Acesso em 09 de Setembro, 2012. Sensible by projecto Biopus at File 2009 in São Paulo. Disponível em: http://www.youtube.com. Acesso em 09 de Setembro, 2012. Siga as novidades do mercado de Arte. Beatriz Milhazes. Disponível www.mercadoarte.com.br/artigos/tagbeatriz-milhazes-site-oficial. Acesso em 08 de Setembro, 2012. MESQUITA, Ivo. Leda Catunda. Touch of Class. Disponível em: www.touchofclass.com.br

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À SOMBRA DE HÉLIO OITICICA Arethusa Almeida de Paula1 Resumo:O presente trabalho tem por escopo dissertar sobre a influência poética do artista plástico Hélio Oiticica em artistas da nova geração da arte brasileira. A partir do livro de Harold Bloom, “A angústia da influência: uma teoria da poesia” mostra como a presença de um poeta-artista forte age positivamente na produção artística, num fluxo contínuo de trocas poéticas. Palavras-chave: influência. Poética. Arte contemporânea. Abstract:This paper aims to discuss the influence of artist Hélio Oiticica in artists of the new generation of Brazilian art. Based on the book by Harold Bloom, “The Anxiety of Influence: a theory of Poetry” shows how the presence of a strong poet-artist acts positively in artistic production. Key-words: influence. Poetic. Contemporary art.

Existe, atualmente, um grande campo de possibilidades para se trabalhar com Arte nas suas diversas áreas, ou seja, literatura, artes plásticas (agora chamada por um conceito alargado de artes visuais), cinema, teatro, música, dança e/ou qualquer outra categoria que possa vir a ser denominada dessa forma. Contudo o artista contemporâneo, diante desta situação, muitas vezes perde sua referência, ou até mesmo não sabe qual seria esta. Tanto ele quanto seus espectadores sentem falta de algo. Pode ser uma grande nostalgia, em que sentem saudade de algo que não viveram, ou que nunca chegarão a ver e presenciar. O artista traduz esse sentimento, porém, na maior parte do tempo não sabe identificá-lo. Harold Bloom, em seu livro “Angustia da Influência: uma teoria da poesia” traz para a crítica literária a figura do poeta forte: aquele que enfrentará um poeta precursor reconhecendo sua influência, porém conseguindo transformá-la em algo seu. O autor elege seis categorias que fazem o poeta forte ser quem ele é: Clinamen (leitura distorcida;

apropriação);

Tessera

(completude

e

antítese);

Kenosis

(movimento

1

de

Ms. Arethusa Almeida de Paula. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES. 148 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


descontinuidade); Daemonização (movimento para um Contra-Sublime); Askesis (autopurgação); Apophrades (retorno dos mortos). (BlOOM, 2002, p.64) Em nosso mundo contemporâneo, que pode ou não ser chamado de pós-moderno, vivemos em dois grandes movimentos: Clinamen,e Tessera. Se um é a queda e o outro a completude e a antítese, diante de tantas possibilidades, percebemos que continuamos à procura de nossa outra parte, seja esta poética, social, histórica, dentre outras tantas. A impressão que se tem é que apenas vemos mais do mesmo: continuamos caindo e as partes não se completam como deveriam. Portanto, o presente artigo irá trabalhar com um artista que pode ser considerado como um poeta-artista forte, no que tange à Arte Brasileira, e cuja obra, percebe-se ser grande influência para os artistas brasileiros atuais: Hélio Oiticica. Escolho este artista, por ser também influenciada por ele, e por perceber que o mesmo passou por todos os passos do efebo de Harold Bloom, saindo vitorioso em sua obra desviada de seus próprios artistas fortes. Também, apresentarei rapidamente, três artistas2, quais seja Marcelo Silveira (1962 -), Hugo Houayek (1979 -) e Alexandre da Cunha (1969 -), cujo os trabalhos a autora pode apreciar na exposição Nova Arte Nova, realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em 2009, na cidade de São Paulo. Estes três artistas eram, no momento daquela exposição, efebos em relação ao artista forte, pois podemos perceber claramente como o trabalho de Hélio Oiticica se encontra presente em suas produções. A trajetória de Hélio Oiticica inicia-se com o Grupo Frente, os componentes cariocas do Concretismo, movimento brasileiro da década de 1950, e com forte influência do Construtivismo e do Abstracionismo Geométrico europeu. Durante sua vida, primou por uma pesquisa plástica e

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As imagens dos trabalhos de Hélio Oiticica, Alexandre da Cunha, Marcelo Silveira e Hugo Houayek foram retiradas de vários sites de Internet, via Google Imagens. 149 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


teórica, num movimento intelectual bastante intenso. Escreveu muito sobre seus trabalhos, e em como estes poderiam atingir seu público, artisticamente e sensorialmente. Iniciou seus trabalhos com os Metaesquemas (1957-1958), que se constituíam por representações de figuras geométricas em guache sobre cartão, passando pelos Núcleos (19601963), que por sua vez fazia a pintura sair do suporte do quadro ganhando o espaço. Passa pelos Bólides (1963-1964), objetos intencionais que armazenam cores e outros fragmentos de sua memória, e chega até os Parangolés (1963-1964), que são estruturas coloridas projetadas para serem vestidas. Suas produções culminam nas Manifestações Ambientais (1966), que seriam uma síntese artístico-sensorial de todas essas experiências. Os Metaesquemas, Bilaterais e Relevos Espaciais (1959-1960), são de sua fase Concreta e Neoconcreta. A influência do Abstracionismo Geométrico e do Construtivismo vem pelo grupo do qual fazia parte, mas quando o artista chega aos Núcleos, vemos a grande influência de Piet Mondrian (1872-1944) e também de Kasemir Maliévitch (1878-1935), especialmente em relação às cores. Aqui sua teoria se baseará na da filosofia de Merleau-Ponty, especialmente no que tange a sensorialidade. Hélio Oiticica, estuda, produz e escreve, de modo a estruturar sua obra. Ele acredita numa arte construtiva, que constrói o artista e o espectador juntos, dentro da linguagem da arte. De acordo com o próprio artista: Esta é sem dúvida a época da construção do mundo do homem, tarefa a que se entregam, por máxima contingência, os artistas. Considero, pois, construtivos os artistas que fundam novas relações estruturais, na pintura (cor) e na escultura, e abrem novos sentidos de espaço e tempo. São os construtores, construtores da estrutura, da cor, do espaço e do tempo, os que acrescentam novas visões e modificam a maneira de ver e sentir; portanto, os que abrem novos rumos na sensibilidade contemporânea, os que aspiram a uma hierarquia espiritual construtiva da arte. (OITICICA, 1986,p.54)

Esta pode ser as fases de Clinamen e Tessera de Hélio Oiticica, ou seja, a identificação e queda de suas influências, o complemento com seus pares, e o início de sua caminhada para o esvaziamento de seus artistas fortes, ou para a Kenosis. 150 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Quando nos deparamos com seus Bólides, podemos perceber o movimento de revisão tanto de seus artistas fortes, como de sua própria caminhada artística. Por mais que as cores e materiais, dentro destes recipientes, vencessem suas barreiras, Hélio Oiticica já os havia libertado em seus Grandes Núcleos. Dessa forma, o movimento de descontinuidade já estava posto. O artista não tem mais como engarrafar esta influência, e nem mesmo suas memórias. Assim, só lhe resta o esvaziamento e a homenagem a seu artista forte, reconhecendo a força do outro e enxergando-se como parte dele: o B17 Bólide Vidro 5 [Homenagem à Mondrian], 1965. A Daemonização de Hélio Oiticica acontece quando o artista vai para o Morro da Mangueira: lugar da marginalidade carioca, comunidade de excluídos, com suas construções nãoarquitetônicas, e sua dança exuberante acompanhada pelo samba e exaltada pela Estação Primeira da Mangueira. É o este local dionisíaco que será, nos termos de Bloom, o anjo cobridor deste artista forte. Assim, tendo diante de si todo o espaço da favela, adota uma atitude revisionária de seu trabalho, e este entra num estado de redução, colocando em xeque seus artistas fortes e ele próprio. É o momento da autopurgação, da Askesis, a qual Bloom se refere. Neste ponto, a pintura de Hélio Oiticica já havia saído do quadro em forma de corespaço. Ele já havia tentado aprisionar suas memórias e aprendizados em seus Bólides, táteis e sensoriais, apresentando os vestígios mais caros de seu aprendizado visual. E quando o artista se depara com outro estilo de vida, que não o meramente erudito, uma solidão criativa acontece em meio à ebulição de informações, música e arquitetura precária. Oiticica elabora então seu conceito de “antiarte”, isolando-se de todo um aprendizado pautado na arte européia, e voltando-se a um objetivo pontual, qual seja, o espectador. O artista já não é único e depende do outro, que não é seu artista forte, mas seu leitor-participador: Antiarte compreensão e razão de ser do artista não mais como um motivador para a criação criação como tal se completa pela participação dinâmica do „espectador‟, agora considerado „participador‟. Antiarte seria uma complementação da necessidade 151 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


coletiva de uma atividade criadora latente, que seria motivada de um determinado modo pelo artista: ficam portanto invalidadas as posições metafísicas, intelectualistas e esteticista (...) é pois uma „realização criativa‟ o que propõe o artista, realização esta isenta disto é uma simples posição do homem nele mesmo e nas suas possibilidades criativas vitais. (OITICICA, 1986, p.77)

Portanto, Oiticica percebe sua força como artista forte, ao sublimar suas influencias. Ele sente “o involuntário choque do poeta com sua própria expansividade daemônica”. (BLOOM, 2002, p.168). O artista, então chega ao estado de Apophrades, volta dos mortos, já purificado, sabendo que a influência de seus artistas fortes poderá voltar a qualquer momento, porém através de suas próprias ideias, de suas próprias falas. A independência de Oiticica, de seus artistas fortes, se dá quando ele cria seu Programa Ambiental, através de obras como os Parangolés (1964), e até mesmo a Tropicália (1967): A posição com referência a uma „ambientação‟ e à consequente de todas as antigas modalidades de expressão: pintura-quadro, escultura, etc., propõe uma manifestação total, íntegra, do artista nas suas criações, que poderiam ser proposições para a participação do espectador. Ambiental é pra mim a reunião indivisível de todas as modalidades em posse do artista ao criar as já conhecidas: cor, palavra, luz, ação, construção etc.; e as que a cada momento surgem na ânsia inventiva do mesmo ou do próprio participador ao tomar contato com a obra. (OITICICA, 1986, p.78)

De acordo com Bloom, os poetas fortes voltarão dos mortos à todo momento. E com Oiticica não será diferente: ele retomou seus artistas fortes, conheceu outros, e passou novamente todas as fases: queda, completude, esvaziamento, revisão, autopurgação e retorno dos mortos. No caso da Arte Brasileira, este artista pode ser um dos únicos que trabalharam nestes movimentos. Daí sua importância e influência, não só em seus contemporâneos, como nas novas gerações de artistas que surgiram no país. Uma das justificativas para eleger Hélio Oiticica como um artista forte dentro da Arte Brasileira, se dá por observar em diversas exposições a grande influência que sua obra exerce nos

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novos artistas. E infelizmente, a sensação de “mais do mesmo”, faz com que o espectador se desinteresse rapidamente da obra. Bloom nos coloca este sentimento de forma clara: Quando abrimos um primeiro volume de poesia hoje, esperamos ouvir uma voz característica, se podemos, e se a voz já não se diferencia de algum modo de seus precursores e colegas, tendemos a parar de escutar, independentemente do que a voz tem a dizer. (BLOOM, 2002, p.199)

Por isso é válido dizer que vivemos nos dois movimentos de Clinamen e Tessera. Ainda estamos em queda e lutando para achar nossos pares, para que nossa parte se encaixe em outra produzindo um significado, e não uma repetição. Em 2009 o Centro Cultural Banco do Brasil produziu uma exposição que tinha como objetivo mostrar a produção de novos artistas brasileiros: Nova Arte Nova. Esta exposição contou com a participação de 57 artistas de 14 estados do país, e com faixa etária por volta dos trinta anos. Ao visitar a exposição, pude reconhecer as influências dos artistas que expunham no espaço: Hélio Oiticica, Lígia Clark, Regina Silveira, Leda Catunda, Leonilson. Os materiais podiam ser diferentes, a intencionalidade com certeza outra, porém, não havia como fugir do reconhecimento da imagem do trabalho de outros artistas. O primeiro artista que vou apresentar é Marcelo Silveira. Em Nova Arte Nova, ele apresenta seu trabalho intitulado Arquitetura Interior, 2009 (Fig. 1). São peças em vidro, achadas em casas de artigo para decoração, e preenchidas com serragem e pedaços de madeira. O trabalho questiona as peças colocadas para decorar as casas. A imagem deste trabalho remete diretamente aos Bólides, 1965-66 (Fig. 2), de Hélio Oiticica. A influência deste artista é identificada, mesmo que a intenção de Marcelo Silveira seja diferente.

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FIGURA 1: Marcelo Silveira: Arquitetura interior, 2009. Fonte: Google Imagens.

FIGURA 2: Oiticica: B31 Bólide Vidro 14 “Estar”, 1965/66. Fonte: Google Imagens.

Os Bólides constituem-se por objetos que dão forma à cor. Alguns poderiam ser manipulados pelo espectador, criando uma experiência sensorial. No trabalho de Marcelo Silveira, a cor, e a serragem, também ganham a forma do objeto. A diferença está mesmo na intencionalidade do artista: Oiticica possui um questionamento estético; Silveira possui um questionamento social. Caminhando um pouco mais pela exposição, me deparei com outra obra que evoca fortemente a memória de Hélio Oiticica. Trata-se do trabalho Cama, 2008 (Fig. 3) de Hugo Houayek, em que ele constrói uma estrutura com espuma e lona plástica vermelha. O visitante da exposição pode entrar dentro desta estrutura e deitar, interagindo com a obra. Impossível não se lembrar dos Penetráveis, 1960 (Fig.4) de Hélio Oiticica, e toda sua pesquisa em relação à cor, e à criação de uma estrutura que abriga o espectador, de modo que este pudesse ter uma experiência sensorial.

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FIGURA 3: Hugo Houayek: Cama, 2008. CCBB /SP. Fonte: Google Imagens.

FIGURA 4: Oiticica: PN1 Penetrável, 1960. Fonte: Google Imagens.

O trabalho de Hugo Houayek se diferencia dos Penetráveis pela disposição horizontal e pelas duas placas de lona dourada que emolduram a estrutura vermelha, fazendo uma contraposição de cores. Porém, a interação do público é, senão a mesma, muito parecida com a interação com os Penetráveis. Buscando uma referência mais forte, temos o Bólide Cama, 1968 (Fig. 5). A interação entre a obra e o espectador é que este se deite na estrutura feita de juta, madeira e um colchão. As duas obras são estruturas para com a mesma intencionalidade.

FIGURA 5: Oiticica: Bólide Cama, 1968. Fonte: Google Imagens. 155 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Alexandre da Cunha apresentou um trabalho na mostra Nova Arte Nova que à primeira vista não vemos a influência do artista forte. Mas podemos perceber a influência dos movimentos Concretistas e Neoconcretista. Em suas Public Sculptures, 2008 (Fig. 6) podemos notar o uso comum de materiais cotidianos e que fazem o diálogo entre arte-vida. Porém, ao pesquisar um pouco mais sobre seu trabalho, pude identificar esta influência.

FIGURA 6: Alexandre da Cunha: Public Sculpture, 2008. CCBB/SP. Fonte: Google Imagens.

Porém, ao pesquisar um pouco mais sobre seu trabalho, a influência se torna clara: uma dessas referências seria na obra Pool, 2004 (Fig. 7). Consiste numa caixa d‟água, com seu interior pintado com tinta automotiva. Aqui também, as intencionalidades dos artistas são diferentes, porém a referência imagética é muito forte.

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FIGURA 7: Alexandre da Cunha : Pool, 2004. Fonte: Google Imagens.

FIGURA 8: Oiticica: Bólide caixa 22 Mergulho do corpo, 1967. Fonte: Google Imagens.

Alexandre da Cunha discute os materiais cotidianos e seu uso. Dessa forma, o artista reaviva uma discussão bastante Modernista: a significação do objeto. Hélio Oiticica já trata de outra questão com seu Bólide Caixa 22 Mergulho do Corpo (Fig. 8). Esta obra ganha uma conotação denúncia contra as torturas praticadas pelo governo militar brasileiro, na época da Ditadura (1964-1985). Não posso afirmar que estes artistas têm consciência dessa influência, ou que estão no processo para tornarem-se artistas fortes. Também não conheço a obra destes artistas a fundo para fazer tamanho juízo de valor. Contudo, o objetivo deste artigo foi apontar está influência que estava clara à época da exposição Nova Arte Nova e que foi facilmente reconhecida por mim, enquanto espectadora. Pelo menos, posso alegar que o posto de efebo, dentro do que nos explica Harold Bloom, estes artistas ocupam. Eles conseguem ler mal as obras de seu artista precursor, e ainda estão na construção de uma fala própria. Dessa forma, concluo que Hélio Oiticica é um artista forte dentro da Arte Brasileira, pois através de muito trabalho, ele consegue produzir um trabalho seu e seus precursores aparecem apenas nas sutilezas de sua linguagem.

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É por isso que este artista forte influencia tanto os artistas contemporâneos à nossa época: se hoje fazemos teoria, e vivemos num grande movimento de Clinamem e Tessera, é porque ainda estamos procurando nossos pares. E Hélio Oiticica é um par de uma força imensa.

Referências Bibliográficas BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. 2º ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002. JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. 2º ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. Internet www.canalcontemporâneo.art.br www.driobook.com/houayek

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Non à la Biennale: o boicote à X Bienal de São Paulo Caroline Saut Schroeder 1 Resumo: Este artigo aborda a confluência entre a arte e a política, considerando o momento específico da organização e da realização da X Bienal de São Paulo em 1969. O Brasil , no final da década, vivia o recrudescimento da ditadura militar com o agravamento dos atos de censura e repressão à liberdade de expressão, assim como à liberdade artística. Em frente deste contexto, agentes do campo das artes visuais promoveram um boico te internacional à mostra, com o propósito de denunciar o autoritarismo do regime militar em nosso país.O manifesto Non à la Biennale propagou-se rapidamente, por meio de uma rede de artistas e intelectuais, angariando adesões em diversos países e provocando uma série de questionamentos sobre as instituições oficiais, as estruturas tradicionais da arte e o papel social do artista. Palavras-chave: Bienal de São Paulo. Boicote. Arte contemporânea.

1. A configuração de um boicote inte rnacional à X Bienal de São Paulo Os preparativos e a realização da X Bienal de São Paulo, de 1969, aconteceram em um momento de recrudescimento da ditadura militar no Brasil, em que os atos arbitrários de censura e repressão à liberdade de expressão, assim como à liberdade artística, intensificaramse. Um grupo de artistas e críticos decidiu denunciar os atos arbitrários do Estado recusandose a participar do evento, considerando a mostra como um evento oficial. Isso implicava a consciência de que grande parte da soma financeira para sua concretização vinha do poder público e que contava com o Itamaraty para as transações referentes à participação de delegações estrangeiras. Com esse gesto político, eles desejavam alertar, a um público internacional, sobre os acontecimentos no Brasil – a Bienal de São Paulo já era, àquela altura, um dos eventos importantes do circuito artístico mundial. A condição de cerceamento da liberdade no Brasil vinha sendo contestada no exterior. Segundo James Green, “em 1969, um conjunto de acadêmicos, religiosos, exilados brasileiros e ativistas políticos decidiu empregar diversos meios para informar o público norte-americano

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Caroline Saut Schroeder é mestre em Teoria, História e Crít ica de arte pela Un iversidade de São Paulo (USP) e professora colaboradora de História da Arte na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EM BAP). 159 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sobre a situação política naquele país distante e mobilizar uma oposição à ditadura”. 2 Green verificou o mesmo tipo de campanha na Europa, “contra a tortura e as violações dos direitos humanos no Brasil”. 3 No dia 4 de janeiro do mesmo ano, o jornal parisiense Le Monde publicou uma análise extensiva das novas regras impostas aos jornais brasileiros, revistas, radio, e estações de televisão. 4 Neste momento de várias manifestações públicas contra o regime militar, o boicote à X Bienal teve a peculiaridade de ser liderado por agentes do meio artístico e de ter se propagado na esfera da arte, atingindo diretamente o principal evento de arte da América Latina. Os casos de censura às artes visuais vinham se acumulando no final da década de 1960. Os artistas e críticos viviam em um estado de apreensão, tendo como um dos efeitos a auto-censura. Não havia critérios definidos do que era permitido ou não, do que era considerado subversivo ou ofensivo para o regime militar. Jacques Lassaigne, crítico francês convidado por Matarazzo Sobrinho, foi impedido de participar da X Bienal por ter exposto seu repúdio à prisão da diretora do MAM-RJ e do jornal Correio da Manhã. O fato foi noticiado no Correio por Luiz Rodolpho 5 : “(...) o governo brasileiro declarou persona non grata o crítico Jacques Lassaigne, presidente da Bienal de Paris. Seu nome foi vetado pelo Itamarati [sic] por ter assinado manifesto contra a prisão de Niomar Muniz Sodré Bittencourt”. 6 Foi também em decorrência da censura que o Brasil não compareceu à Bienal de Paris daquele ano. A exposição dos artistas brasileiros selecionados para representar o Brasil na Bienal de Jovens de Paris foi suspensa antes da abertura oficial em maio de 1969: A atitude mais chocante foi o encerramento, pelo governo, da exposição dos artistas brasileiros selecionados para a „Biennale de Jeunes‟ (a ser levada a efeito em Paris),

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GREEN, James N. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964 -1985. São Paulo: Co mpanhia das Letras, 2009, p. 28. 3 Ibidem, p. 32. 4 CA LIRMAN, Claudia. Brazilian Art under Dictatorship. London: Duke Un iversity Press, 2012, p.17. 5 Este era o codinome utilizado por Mário Pedrosa nos textos publicados no Correio da Manhã. 6 Luiz Rodolpho. Boicote à Bienal: A X bienal (se houver) será mutilada. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, sábado, 30 ago. 1969. 160 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


que se realizava no Museu de Arte Moderna no Rio, devido a certas obras de arte que comportavam o protesto, ou eram de natureza erótica. 7

A exposição era formada por um grupo coeso de artistas, com forte “acento brasileiro”. As propostas experimentais faziam referências ao contexto político, enquanto outras atingiam a “educação moral” incentivada pelo regime militar. Entre os artistas participantes estavam Antônio Manuel, Carlos Vergara, Humberto Espíndola e Evandro Teixeira. De acordo com o Jornal do Commercio, também “o fechamento da Bienal da Bahia comoveu os meios artísticos”. 8 Os organizadores não haviam acatado a ordem de um alto funcionário da Secretaria da Educação para retirar da Bienal certo obras, por ele consideradas subversivas. No dia seguinte à inauguração, a mostra foi fechada. O incidente foi atribuído também ao discurso oficial proferido pelo governador Luiz Vianna Filho, que utilizou algumas expressões consideradas proibitivas para a época, tais como: “toda a arte jovem tem de ser revolucionária” e “a liberdade caracteriza a arte”. Segundo Juarez Paraíso, um dos organizadores do evento, “a II Bienal Nacional de Artes Plásticas não foi fechada pela Polícia Federal, como se espalhou pelo Brasil afora, e sim pelo próprio Governo receoso de maiores represálias”. 9 Na ocasião, dez obras foram confiscadas e os organizadores do evento foram levados para a prisão. Também a intervenção autoritária do Estado nas universidades causou indignação: “a aposentadoria punitiva dos críticos Mário Barata, Quirino Campofiorito, Mário Schenber g, do desenhista Abelardo Zaluar, dos arquitetos Vilanova Artigas, Mendes da Rocha, agrava a situação”. 10 Por volta de 1968, professores foram impedidos de dar continuidade às atividades e políticos de oposição tiveram seus direitos cassados. Outras questões, além daquelas ligadas ao cenário macropolítico, contribuíram para alavancar o boicote: o alto grau de insatisfação com a Fundação Bienal decorrente da pouca

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AMARAL, Aracy. Arte e meio artístico (1961-1981): entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1981, p.155. 8 X Bienal de São Paulo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21 set. 1969. 9 Entrevista Juarez Paraíso. Revista da Bahia, Fundação Cultural do Estado da Bahia, n.40, abr. 2005. 10 Luiz Rodolpho. Bo icote à Bienal: A X bienal (se houver) será mutilada. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, sábado, 30 ago. 1969. 161 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


abertura da instituição a críticos e artistas durante os períodos de organização da mostra 11 , a falta de continuidade administrativa e de planejamento para as exposições, a ausência de critérios claros na seleção dos artistas participantes e indícios de restrições dentro da própria instituição. Segundo Walmir Ayala, a divulgação de uma circular, em tom de censura, que desaconselhava o envio de obras de conteúdo político ou erótico à mostra, “pesou muito para o movimento Non à la Bienalle no estrangeiro”. 12 Mesmo que membros da diretoria da Fundação Bienal tenham negado a existência da carta ou de qualquer resolução que envolvesse restrições às artes, os efeitos de sua divulgação provocaram uma série de contestações. Diante deste quadro, no dia 16 de junho de 1969, artistas e intelectuais se reuniram no Museu de Arte Moderna, na França, para discutir a situação restritiva no Brasil. “Da reunião, onde se encontravam os artistas brasileiros residentes em Paris, resultou um manifesto – Non à la Biennale”. 13 O documento foi lido em voz alta e trazia os últimos acontecimentos da repressão cultural no Brasil, denunciava a suspensão de direitos civis de políticos, intelectuais e artistas e o aprisionamento de personagens da cultura brasileira. Após acalorado debate, muitos dos presentes no encontro apoiaram o protesto. Constava do documento uma lista provisória dos artistas e comissões estrangeiras que haviam tomado a decisão de se recusar, naquela data, a participar da Bienal de São Paulo. Estavam incluídos os nomes dos artistas da primeira e da segunda representação francesa selecionada para a mostra, além de Pierre Restany, crítico convidado por Francisco Matarazzo Sobrinho para preparar uma sala especial. Dos brasileiros que assinaram o manifesto, Sérgio Camargo, Lygia Clark, Arthur Luiz Piza, Flávio Shiró, Rossine Perez e Franz Krajcberg estavam em Paris; Rubens Gerschman, nos Estados Unidos; Antônio Dias, na Itália; e Hélio Oiticica, em Londres. Há alguns dias 11

Ao desmembrar a Bienal de São Paulo do Museu de Arte Moderna (MAM -SP) em 1961, Francisco Matarazzo Sobrinho criou a Fundação Bienal para ger ir as mostras. Co m essa med ida, ext inguiu-se a Sociedade que sustentava o Museu e o seu acervo foi inteiramente doado para a Universidade de São Paulo. A partir de então, a organização da mostra deixou de contar com a participação dos artistas e críticos ligados ao MAM-SP e ficou concentrada nas mãos da diretoria da Fundação Bienal. 12 A YA LA, Walmir. A Bienal em questão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 set. 1969. 13 Lu iz Rodolpho. Bo icote à Bienal: A X bienal (se houver) será mutilada. Correio da Manhã, sábado, 30 ago. 1969. 162 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


antes da reunião em Paris, Oiticica havia enviado uma carta ao comitê da representação francesa que estaria se organizando para participar da X Bienal, advertindo os artistas de que enviar seus trabalhos ao Brasil significaria contribuir com as ideias fascistas em um país empobrecido pelo subdesenvolvimento, em um país com necessidade de mentes inteligentes no trabalho para salvá- lo do total desastre. 14 Com o apoio dos artistas e intelectuais exilados, a manifestação se alastrou: “listas de artistas que aderiram ao boicote foram enviadas anonimamente através do correio para todos os países”. 15 Junto dele, foram anexadas declarações de testemunhas e documentos relacionados à censura. O abaixo-assinado somou centenas de assinaturas. Nos Estados Unidos, ao final da década de 1960, os artistas latino-americanos se encontravam em constante confronto com o Center for Inter-American Relations (CIAR), em Nova York, uma versão anterior da conhecida organização Inter-American Foundation for the Arts (IAFA). Acusavam a instituição de servir a propósitos imperialistas, de apoiar os regimes ditatoriais na América Latina e de possuir, no quadro da diretoria, indivíduos de po uca credibilidade intelectual. Segundo Luiz Camnitzer, os diretores formavam “um grupo que sinalizava que a extensão dos objetivos institucionais da CIAR ia muito além da cultura e também eles não estavam necessariamente em sintonia com os interesses latinoamericanos”. 16 Um dos diretores da instituição americana, Lincoln Gordon, era antigo conhecido dos brasileiros. Ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil, em 1964, Gordon insistiu na manutenção do apoio econômico ao país após o golpe, que “poderia servir ao objetivo de fortalecer a democracia no país”. 17 O diplomata, favorável à ditadura, deixou a embaixada americana, para assumir o cargo de Secretário Assistente de Estado para Assuntos Interamericanos, e passou a dirigir as questões relativas à América Latina no Departamento de 14

Hélio Oiticica, 1969; apud CA LIRMAN, Claudia. Brazilian Art under Dictatorship. London: Du ke University Press, 2012, p.164. 15 Idem. 16 CAMNITZER, Lu is. On art, artists, Latin America, and other utopias. USA: Un iversity of Texas, 2009, p.165. 17 GREEN, James N. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964 -1985. São Paulo: Co mpanhia das Letras, 2009, p. 119. 163 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Estado. Após o AI-5, Gordon mudou de opinião, passando a criticar os arbítrios do regime militar. Os mesmos artistas que questionavam a atuação da CIAR deram continuidade à divulgação do boicote nos Estados Unidos. Para o grupo, pa rticipar da Bienal de São Paulo seria o mesmo que apoiar o regime ditatorial; afinal, o sucesso do evento daria prestígio cultural à ditadura. Ao entrevistar Hans Haake, Green confirmou a adesão do artista ao boicote e a sua liderança em angariar outras adesões. 18 Seu nome constava no documento redigido em Paris. Ao lado de Haake, John Goodyear apoiou o protesto : (...) os motivos apresentados para o boicote refletiam a profunda desilusão de um segmento da sociedade norte-americana com a política externa dos Estados Unidos, à medida que a guerra no Vietnã recrudescia e muitos críticos começaram a considerar que o conflito era mais do que uma aberração isolada entre as iniciativas de Washington no exterior. 19

A adesão de nomes importantes e de uma parcela significativa dos artistas da representação americana resultou na ausência dos Estados Unidos na X Bienal. O jornal The New York Times anunciou o fato em 17 de julho dando detalhes dos acontecimentos: “Um dossiê anônimo, impresso em francês que circulou recentemente aqui por um artista brasileiro residente em Nova York, detalhava a confirmação das desistências e algumas das razões por trás delas”. 20 As ações autoritárias da polícia política foram comentadas como determinantes para o protesto: (…) a queima de três trabalhos eróticos e a apreensão de 16 outros em u ma exposição recente na Bahia, mais o encarceramento dos organizadores do show e de alguns artistas participantes; a circulação por oficiais da Bienal de u ma carta aos comissários estrangeiros pedindo a eles para não enviarem trabalhos imorais e subversivos para a mostra; a recente e severa repressão do regime às liberdades civis, co meçando com o decreto de 13 de dezemb ro em que o Congresso brasileiro

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Ibidem, p. 175. Ibidem, p. 177. 20 Sao Paulo Show loses U.S. entry. New York Times, july 17, 1969. “An anonymous dossier, printed in French and recently circulated here by a Brazilian artist living in New York, detailed the asserted withdrawals and some of the reasons behind them”. 19

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foi dissolvido e quase 200 art istas, estudantes, intelectuais e políticos suspeitos foram presos.21

Enquanto no exterior o boicote era manifestado coletivamente e de forma incisiva, no Brasil, as adesões se realizavam isoladamente e em tom ameno. Como os agrupamentos e as reuniões eram cada vez mais difíceis devido à repressão da polícia política, restou aos brasileiros a decisão individual de participar, ou não, do boicote. Segundo o Jornal do Commercio, “cada um agiu de acordo com a sua consciência”. 22 Aracy Amaral lembra que, “no Brasil, entrementes, reuniões infindáveis objetivavam uma decisão coletiva, que finalmente não foi tomada”. 23 Carlos Zílio relatou um encontro, em que se planejava o protesto: “lembro- me claramente de uma reunião para tratar do boicote da Bienal de São Paulo onde havia uma proposta de Lygia Clark que era a de fazer um happening, como se dizia, em frente à Bienal etc”. 24 Inúmeras justificativas serviram de pretexto para cancelar participações e refletiam a diversidade de opiniões sobre a Bienal e o boicote. Segundo Aracy Amaral: (…) mu itas desistências foram devidas ao orgulho ou a sentimentos pessoais (por não serem artistas convidados), ou até mesmo u ma oposição ao conhecido personalismo de Matarazzo Sobrinho. Houve até mesmo aqueles que se recusaram a participar porque a Bienal apresentaria padrões mu ito baixos.25

As diferentes posições indicariam a desunião da classe artística, e, nesse quesito, para Amaral, “o resultado foi decisivamente negativo”. A Fundação Bienal teve que lidar com “baixas” durante toda a organização e realização da mostra. Poucos dias antes da abertura, a diretora do MAM-RJ pediu demissão do cargo que ocupava na instituição. No dia seguinte, a informação foi divulgada na Tribuna da Imprensa: 21

Sao Pau lo Show loses U.S. entry. New York Times, ju ly 17, 1969. X Bienal de São Paulo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21 set. 1969. 23 AMARAL, Aracy. Arte e meio artístico (1961-1981): entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1981, p 156. 24 ZILIO, Carlos. Depoimento a Paulo Sérgio Duarte, Fernando Cocchiarale e outros. In: Arte e política: 19661976. Rio de Janeiro: MAM, 1996 (catálogo de exposição). 25 AMARAL, Aracy. Arte e meio artístico (1961-1981): entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1981, p.157. 22

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“posso informar com absoluta segurança que a jornalista Niomar Muniz Sodré Bittencourt pediu demissão do seu cargo de diretora da Bienal Brasileira”. 26 A extensa carta de demissão enviada a Matarazzo Sobrinho, explicando as razões da renúncia, foi integralmente publicada no Correio da Manhã, em 21 de setembro. Bittencourt relatou que uma defasagem crescente vinha se verificando entre os altos e nobres fins da instituição e a realidade do momento brasileiro: “Com efeito, as altas finalidades da Fundação Bienal de São Paulo já não podem ser cumpridas com a simples e mecânica efetivação de seus certames, e notadamente desta X Bienal”. 27 Consciente da condição restritiva em que se encontravam as artes no Brasil, para ela, não havia mais como negar a sequência de fatos e incidentes que, (…) de origem oficial ou oficiosa, embora geralmente anônima, vêm solapando as condições precípuas para a realização tranquila e eficaz das grandes exposições artísticas no País, como os salões nacionais e estaduais, Bienal da Bahia e a nossa Bienal de S. Paulo – ou sejam [sic] – a liberdade de criação, a liberdade de expressão, a liberdade de crít ica. 28

Aos olhos de Bittencourt, a realização de uma mostra sem restrições estava inviabilizada. Ninguém poderia assegurar, de antemão, que as obras aceitas estariam indenes da apreensão a qualquer momento. A diretora do MAM-RJ temia novas intervenções públicas ou clandestinas, “(...) à cata de obras „eróticas‟ ou „subversivas‟, que venham alterar a integridade da representação brasileira”

29

na X Bienal. Segundo ela, a censura política

reduziria ainda mais a qualidade artística da mostra, já muito desfalcada de contribuições da produção artística brasileira por conta do boicote internacional. Para Niomar Bittencourt, continuar a colaborar com a instituição, nas condições que se apresentavam naquele momento, seria incoerente: seguir adiante, “como se nosso País prosseguisse inalterado em suas velhas e honradas tradições liberais, é voluntariamente

26

Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 19 ago. 1969. Fundadora do MAM deixa a Diretoria da 21 set. 1969. 28 Idem. 29 Idem. 27

Bienal.

Correio

da

Manhã, Rio

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de

Janeiro,


alhear-se à feia realidade dos dias de hoje, ou, simplesmente, acumpliciar-se com os aspectos mais sombrios da atualidade”. 30 Ao final da carta, Bittencourt reafirmou a amizade e admiração por Matarazzo Sobrinho e pediu a retirada de seu nome da lista de membros da Diretoria da Fundação Bienal. Na mesma notícia, alguns nomes internacionais foram apontados por Bittencourt como participantes efetivos do protesto, dentre eles estava Edy de Wilde, diretor do Stedelijk Museum, na Holanda: Ergueu-se, com efeito, lá fora, u ma onda de protestos e de recusas à participação na X Bienal, que, a part ir da autoridade moral e científica de u m De W ilde, diretor do Stydlich Museum de A msterdam, to mou os meios artísticos de Paris, espalhou -se pela Europa Ocidental e foi terminar nos Estados Unidos, no México e em outros países da América do Su l. 31

De Wilde cancelou sua delegação no dia 10 de junho, declarando que ele e seus artistas não aceitavam as circunstâncias políticas correntes no Brasil. 32 Na medida em que a situação sociopolítica brasileira foi se tornando notória internacionalmente, outras representações nacionais também reavaliaram as relações com a Bienal de São Paulo. O diretor do Moderna Museet, da Suécia, Pontus Hulten esteve presente no debate organizado em Paris e tomou a decisão de cancelar a participação da delegação sueca ao Brasil. Os trabalhos dos artistas já haviam sido enviados para o Brasil, mas, assim que chegaram ao porto de Santos, foram reenviados ao país de origem.

2. Adesões ao boicote: Mário Pedrosa e Pierre Restany O apoio de Pierre Restany e Mário Pedrosa ao protesto teve efeitos decisivos naqueles que ainda não haviam tomado uma posição. Como afirmou Green, “o crítico francês Pierre Restany, junto de artistas brasileiros exilados, ajudou a organizar a recusa de artistas europeus

30

Idem. Fundadora do MAM deixa a Diretoria da Bienal. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 21 set.1969. 32 CA LIRMAN, Claudia. Brazilian Art under Dictatorship. London: Duke Un iversity Press, 2012, p.24. 31

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em participar do evento naquele ano”. 33 A adesão implicou na descontinuidade dos compromissos assumidos com Matarazzo Sobrinho: o crítico francês havia aceitado o convite para preparar uma sala especial de Arte e Tecnologia na X Bienal. Mas segundo ele, não havia mais como ignorar a “forte corrente de oposição e boicote”, que se havia constituído na Europa: “a amplitude que o boicote já assumiu, praticamente 3 meses antes da inauguração da Bienal, não deixa margem para dúvida e não é negligenciável”. 34 A renúncia de Restany ao compromisso firmado com o diretor da Fundação Bienal fez com que vários artistas convidados para a sala especial tomassem a mesma decisão. Já Mário Pedrosa, como presidente da Associação de Críticos de Arte (ABCA), havia se manifestado publicamente contra a censura após o cancelamento da exposição no MAMRJ, em que estavam presentes os artistas que representariam o Brasil na VI Bienal dos Jovens em Paris. Na ocasião, a ABCA advertiu publicamente seus associados sobre as arbitrariedades que vinham se repetindo no campo das artes plásticas e reivindicou um posicionamento político dos críticos de arte; essas medidas deram impulso ao boicote no Brasil. Ao final de agosto de 1969, Pedrosa republicou, no Correio da Manhã, as mesmas recomendações: O crítico de arte historia os acontecimentos, afirma que o setor das artes plá sticas não exerce nenhuma at ividade clandestina que chame o Estado para controlá -lo e em quatro itens resolve, em essência, recusar-se a participar da organização de delegações de arte brasileira, júris oficiais ou oficiosos; recomendar aos seus sócios e mes mo aos críticos porventura estranhos aos seus quadros a mesma atitude; desobrigar os sócios já empenhados em trabalhos oficiais ou oficiosos; pedir u ma definição clara para o exercício da crítica de arte, lembrando que a Constituição vigente não prevê nenhuma forma de censura.35

Na sequência do artigo, Pedrosa historiou sobre os acontecimentos em torno do boicote, anunciou as novas adesões, reforçou os motivos do protesto e advertiu sobre os 33

GREEN, James N. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964 -1985. São Paulo: Co mpanhia das Letras, 2009, p.175. 34 Boicote à X bienal: a anticarreira ou as especulações sobre a cultura impossível. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 ago. 1969. 35 RODOLPHO, Lu iz. Bo icote à Bienal: A X bienal (se houver) será mutilada. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30 ago. 1969. 168 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


esforços desenvolvidos pela Fundação Bienal e pelo Itamaraty para minimizar os efeitos do protesto. Delegações oficiais de qualidade artística menor estariam sendo aceitas para preencher os espaços vazios. Segundo Pedrosa, a mostra, se aberta na data prevista, aconteceria mutilada, “castrada no que prometia de mais vigo roso e renovador”. O espírito combativo, de militante político de Mário Pedrosa acompanhou, com maior ou menor intensidade, sua trajetória na esfera da arte, de modo a transparecer uma constante associação entre revolução social e arte de vanguarda. Ao final da década de 1960, sua atenção desviou-se da arte para voltar-se cada vez mais à política. Pedrosa esteve diretamente envolvido em ações contrárias ao regime. Fez parte de um pequeno grupo que enviava informações ao exterior sobre os relatos de tortura e repressão no Brasil. As mensagens eram enviadas à imprensa dos Estados Unidos, da França e a brasileiros que residiam fora do Brasil. As ações do grupo foram descobertas em 1970. “Mário Pedrosa, de 78 anos, escapou da prisão porque na ocasião por acaso estava em Búzios”. 36 Solicitou, em seguida, asilo diplomático no Chile, deixando o Brasil.

3. A continuidade do protesto após o término da X Bienal A manifestação política contra a Bienal de São Paulo se manteve mesmo após o fim da mostra, em dezembro de 1969. Nos Estados Unidos, em 1970, artistas latino-americanos residentes naquele país reuniram-se para fundar o MICLA, Movimiento por la Independencia Cultural de Latino América, uma espécie de museu virtual que lutava contra as ações do CIAR (Center for Inter-American Relations), instituição que estava assumindo a representação da arte latino-americana naqueles anos. Um dos principais objetivos do grupo de artistas era dar continuidade ao boicote internacional à Bienal, em protesto contra os atos autoritários do regime militar no Brasil. O grupo conquistou novas adesões para o boicote, entre elas figurando nomes como o de Gordon Matta-Clark. Em carta aberta, publicada na sessão política da revista norteamericana Art Forum, Matta-Clark encorajou outros artistas a apoiarem a manifestação: 36

GREEN, James N. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964 -1985. São Paulo: Co mpanhia das Letras, 2009, p.218. 169 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


É de conhecimento público que a liberdade de exp ressão já não existe no Brasil, o que corresponde a uma sentença de morte à Bienal e à livre co municação naquele país. Uma vez que todas as instituições e todos os indivíduos estão sob a ditadura, parece uma tolice gratuita pensar que se pode organizar u ma exposição “independente”, ali, em setembro. No lugar de apoiar a causa do livre intercâmbio de informação pública, os trabalhos expostos em São Paulo vergonhosamente prestarão importância a este governo totalitário e a seus aliados. 37

A carta trazia o nome dos artistas que tinham expressado intenção de não enviar trabalhos a São Paulo: Carl André, Robert Morris, Walter de María, Michael Heizer, Hans Haacke, Mel Bochner, Dan Graham, Richard Serra, Xeith Sonnier, Vito Acconci, Lee Jaffe, Christo, Terry Fox e Les Levine. Uma das realizações do grupo foi a criação da publicação Contrabienal, uma “exposição impressa”, que trazia em cada página o trabalho de um artista participante. A edição única estava repleta de mensagens que aliavam arte e protesto; tratava-se de um dispositivo de resistência cultural, em favor da liberdade de expressão no Brasil. “Os organizadores da Contrabienal esperavam que os artistas considerassem mais honroso fazer parte da publicação, do que expor na Bienal”. 38 A publicação teve grande repercussão e contou com a participação de vários artistas latino-americanos. Além daqueles que participaram diretamente, outros 112 artistas assinaram cartas manifestando apoio ao grupo.

4. Os efeitos do boicote na X Bienal de São Paulo Os estragos provocados na X Bienal de São Paulo pelo boicote foram grandes, uma parcela importante de artistas brasileiros deixou de comparecer. Também não vieram as delegações dos Estados Unidos, Suécia, Holanda, Bélgica, Dinamarca e União Soviética, assim como Venezuela e Chile. Ao lado disso, muitas representações estrangeiras estiveram 37

“Es de conocimiento público que la libertad de expresíon ya no existe en el Brasil, dando con ello uma sentencia de muerte a la Bienal y a la libre co municación en ese país. Dado que todas las instituciones y todos los individuos están bajo la dictadura, parece una tontería gratuita el pensar que se puede organizar una exposición “independiente”, allí, em Septiembre. En lugar de apoy ar la causa del libre intercambio de información pública, los trabajos expuestos en San Pablo vergonzosamente prestarán importancia a ese gobierno totalitario y a sus aliados”. Idem. 38 CAMNITZER, Lu is. Comceptualism in Latin American Art: Didactics of Liberations. Texas: Un iversity of Texas Press, 2007, p. 242. 170 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


presentes com exposições secundárias ou desfalcadas de seus principais artistas. A Fundação Bienal, porém, redobrou esforços e conseguiu inaugurar a mostra na data prevista. Denúncias contra as estruturas de poder autoritárias e propostas de transformações sociais, políticas e estéticas reverberaram concomitanteme nte na virada da década de 1960/70 no Brasil. A consciência das condições limites da vanguarda provocou a crise do objeto da arte, confluindo conceitos estéticos e políticos em proposições violentas que, congregando o próprio corpo, a cidade, os mecanismos da vida social, o correio, os meios de comunicações, expandiu as fronteiras da arte para dentro do contexto social. Também estavam sob contestação as instituições tradicionais da arte, museus e bienais, que se encaixavam dentro de sistemas políticos e artísticos “engessados”, quando não opressivos. O boicote à X Bienal de São Paulo foi uma ação de efetiva participação política, que se disseminou velozmente por meio de uma rede de artistas e críticos. Tais agentes proporcionaram uma mobilização nacional e internacional em prol da liberdade de expressão, violentamente cerceada em nosso País. Isso implicava também na possibilidade de uma nova instituição artística que abarcasse uma nova arte. Durante o protesto, foram utilizados elementos definidores da arte contemporânea como o ato, o gesto (no plano da liberdade individual) e a ação conjunta (em termos de coletividade).

Referências Bibliográficas AMARAL, A racy. Arte e mei o artístico (1961-1981): entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo : Nobel, 1981. AYA LA, Walmir. A Bienal em questão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 set. 1969. Boicote à X bienal: a anticarreira ou as especulações sobre a cultura impossível. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 ago. 1969. CA LIRMAN, Claudia. Brazilian Art under Dictatorshi p. London: Duke University Press, 2012. CAMNITZER, Lu is. Conceptualism i n Latin American Art: Di dactics of Li berati ons. Texas: Un iversity of Texas Press, 2007. CAMNITZER, Lu is. On art, artists, Latin America, and other utopi as . USA: University of Texas, 2009. Entrevista Juarez Paraíso. Revista da Bahia, Fundação Cultural do Estado da Bahia, n.40, abr. 2005.

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Fundadora do 21 set. 1969.

MAM

deixa

a

Diretoria

da

Bienal.

Correi o

da

Manhã,

Rio

de

Janeiro,

GREEN, James N. Apesar de vocês: oposição à di tadura brasileira nos Estados Uni dos, 1964-1985. São Paulo: Co mpanhia das Letras, 2009. Lu iz Rodolpho. Boicote à Bienal: A X bienal (se houver) será mutilada. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, sábado, 30 ago. 1969. Sao Paulo Show loses U.S. entry. New York Times, july 17, 1969. Tri buna da Imprensa, Rio de Janeiro, 19 ago. 1969. X Bienal de São Paulo. J ornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21 set. 1969. ZILIO, Carlos. Depoimento a Paulo Sérgio Duarte, Fernando Cocchiarale e outros. In: Arte e política: 19661976. Rio de Janeiro: MAM, 1996 (catálogo de exposição).

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A “MORTE DA PINTURA” COMO “ENCOMENDA SOCIAL” _do construtivismo de laboratório ao produtivismo Clara de Freitas Figueiredo

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Resumo: Quando, em 1921, na exposição construtivista “5x5=25”, Rodchenko (1891 -1956) apresentou o tríptico monocromático “vermelho puro, azul puro e amarelo puro”, ele estava expondo, segundo o teórico produtivista N. Tarabukin (1889-1956), a morte da pintura. Foi como se, naquele momento, a arte, tal como era entendida – leia-se, a arte burguesa –, não tivesse mais razão de ser. Com a Revolução de Outubro na Rússia, o processo de decomposição da pintura teria levado ao seu “desaparecimento” no campo social. Os artistas ligados ao construtivismo -produtivismo teriam encontrado na noção de “encomenda social” a justificativa social da arte. Frente à decomposição da pintura, à crise da faktura e o fracasso na tentativa de inserção nas fábricas tais artistas focaram sua produção artística nas artes gráficas, no cinema, em periódicos, na fotografia e na factografia. Nestes termos, o presente trabalho discutirá o movimento de saída do “construtivismo de laboratório” (pinturas geométricas, objetos tridimensionais etc) em direção às esferas de construção da vida (inserção nas fábricas, artes gráficas, fotomontagem, fotografia etc). Para tanto, buscará inicialmente apresentar o surgimento do construtivismo, enquanto fenômeno diretamente relacionado com a Revolução de Outubro e com a subseqüente guerra civil (1917 -1921). Em seguida, abordará a crise da faktura (1920-1922) e as tentativas de superação da crise. Ou seja, o presente trabalho irá discutir as tentativas, por parte dos artistas construtivistas-produtivistas, de atender às demandas de uma arte justificada socialmente. Palavras-Chave: Vanguardas Russas. Revolução de Outubro. Encomenda Social. Abstract: When, in 1921, at the constructivist exhibition "5x5 = 25", Rodchenko (1891 -1956) introduced the monochrome triptych "Pure Red Color, Pure Blue Color and Pure Yellow Color", he was showing, according to the productivist theorist N. Tarabukin (1889-1956), the death of painting. It was as if at that moment the art, as it was understood - the bourgeois art - no longer had reason for being as it used to be. After the October Revolution in Russia the decomposition process of the painting would have led to its "disappearance" in the social field. The artists attached to constructivism-productivism would have found in the notion of “social order” the social justification of art. Facing the decomposition of the painting, the crisis of faktura and th e failure of the attempt to insert their works in factories, these artists focused their artistic production in graphic arts, film, journals, photography, and factografy. Under these terms, this paper discusses the movement of " laboratory constructivism" (geometric paintings, three-dimensional objects etc.) towards the spheres of life construction (insertion in factories, graphic arts, photomontage, photography, etc.). Therefore, at first seeks to present the emergence of constructivism as a phenomenon directly related to the October Revolution and with the subsequent civil war (1917 -1921). Then, it aproaches the faktura crisis (1920-1922) and the attempts to surpass the crisis. In other words, this paper discusses the attempts, by constructivist-productivist artists, to comply with the demands of an art grounded in the social. (esta última frase ta estranha, nao sei como descrever bem a arte fundamentada no social) Key-words: Russian’s Avant-garde. October Revolution. Social Order.

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Mestre em Artes pela Escola de Co municação e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP. 173 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


1. Introdução E cada vez que um p intor quis liberar-se realmente da representação, não pode fazer-lo sem que o custo fosse a destruição da pintura e de seu suicídio co mo pintor. Penso em uma tela que Rodchenko expôs recentemente. [...] Esta tela demonstra eloquentemente que a pintura como arte de representação – o que tem sempre sido até o presente – chegou ao final do caminho. (TA RABUKIN, 1977, p. 43-44)

Entre 1921 e 1922, tem-se, na Rússia, a consolidação do construtivismo-produtivismo e a criação da Frente de Esquerda das Artes – LEF (1922-1928). De acordo com o teórico produtivista Boris Arvatov (1896-1940), o processo de crise que levou à Revolução de Outubro (isto é, o processo de transição que constituiu as bases materiais para o nascimento e desenvolvimento do novo sistema social – o socialismo) foi correlato à falência da “arte pura” e ao surgimento do construtivismo-produtivismo (isto é, à tentativa de construir a passagem de „arte e produção‟ para „arte na produção‟ 2 ). Segundo a estudiosa da arte e literature russa Maria Zalambani, o construtivismoprodutivismo teriam resultado da correlação de três forças: a revolução artística que “sancionou a passagem da „representação‟ à „construção‟”(1998, p. 76, tradução nossa); a revolução social, que “impôs uma reorganização total da vida” (idem, ibidem); e a revolução técnica que “introduziu novas formas na vida cotidiana” (idem, ibidem). Esses três fatores, de acordo com a pesquisadora italiana, também teriam dado origem, no final de 1922, à LEF (Lev Front Iskusstvo - Frente de Esquerda das Artes) 3 . Com a LEF tem-se a consolidação de uma nova proposta artística coletiva 2

Conforme a pesquisadora italiana Maria Zalambani, a questão central da proposta produtivista, segundo Arvatov, seria a realização da passagem da “arte e produção” para a “arte na produção”. Isso é, “o problema consiste, então, em retraçar uma ligação entre a criação artística e o processo produtivo”. Cf. ZALAM BANI, M. L‟ arte nella produzione: Avanguardi a e ri voluzione nella Russia sivietica degli anni‟20 . Ro ma: Longo Editore, 1998, p.70. 3 Aglutinados em torno de Maiakovski (1893-1930), durante a NEP – Nova Política Econômica (1922 - 1928), alguns integrantes das vanguardas russas montaram a LEF. Emerg indo como espaço de resistência frente à imposição do “Realis mo Heroico” que se instaurava na produção artística e cultural, as páginas da revista Lef (19231926) e de sua continuadora Novyi Lef (1927–1928) reuniam as discussões de um grupo bastante heterogêneo, constituído por artistas construtivistas, teóricos produtivistas, escritores do formalis mo russo, e diretores do novo cinema soviético. Longe de ter apoio do governo, a LEF constituiu-se como uma espécie de “resistência de esquerda”, composta por inúmeros artistas que buscavam desenvolver uma arte cuja gramática estivesse ligada aos princípios da Revolução de Outubro. 174 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


e interdisciplinar. Uma proposta artística pautada na morte da arte burguesa e na defesa de uma arte justificada socialmente – imersa nas esferas de produção. Nestes termos, o presente artigo analisa a passagem do “cavalete à máquina ” (TARABUKIN, 1977). Isso é, as tentativas, por parte dos artistas construtivistas-produtivistas, de atender às demandas de uma arte justificada socialmente. Para tanto, inicialmente será apresentado o surgimento do construtivismo-produtivismo, enquanto fenômeno diretamente relacionado com a Revolução de Outubro e com a subseqüente guerra civil (1917-1921). Em seguida, será discutido a crise da faktura (1920-1922) e as tentativas de superação da crise. 2. O “elo umbilical com a Revolução” 4 ... Apartir de 1918, a guerra civil e as constantes ameaças ao Estado Soviético propiciaram a militarização de todas as esferas da vida russa. As forças humanas e materiais eram concentradas sob uma única frente e com um objetivo único: assegurar definitivamente a consolidação da Revolução de Outubro 5 . Artistas e intelectuais não foram exceção, conforme afirma o historiador francês François Albera 6 . Apesar de ainda não dispormos de informações muito detalhadas sobre as produções e inserções dos artistas nas atividades realizadas durante a guerra civil, sabe-se que foi um período de intensa produção artística. 4

e Produtivismo, segundo Nikolay Tarabukin. ARS

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, L. R. O Debate entre Construtivismo -

de outubro (1917) e a guerra civ il subsequente (1918-1921). 5 Durante a guerra civil russa, todas as diretrizes do partido se pautavam pela premissa de que: “A missão e o dever da classe operária que conquistou o poder depois de uma larga luta, são fortalecê-lo [...] assegurar definitivamente a sua dominação [...] destruir [...] todas as tentativas feitas para arrancá-lo de seu domínio”. Cf. TROTSKY, Leon. Terrorismo e comunismo. tradução Livio Xavier. Rio de Janeiro: Saga, 1969, p. 59. Conferir também FIGUEIREDO, C. F. Foto-Grafi a: o debate na frente de esquerda das artes. 2012 , 2012. 6 “Nenhum artista russo do período 1917-1921 parece ter ficado de fora dos acontecimentos sociais e políticos. Alguns aceitaram tarefas institucionais como Filonov, Chagall e Kandinsky, outros modificaram sua prática em função da transformação social; Malevitch, que fez cenários de teatro e projetos de salas de conferências, e até mes mo de espaços urbanos, cria almo fadas e bolsas ; Tatlin desenha roupas e volta-se para a arquitetura; Rozanova, para o têxtil; Exter planeja ruas, cria figurinos; Altman organiza praças públicas; Gabo forma u m projeto arquitetônico para uma estação de rádio etc.”. ois. Eisenstein e o construti vismo russo: a dramaturgia de forma em Stuttgart : Cosac & Naify, 2002, p.169. 175 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Segundo a pesquisadora americana Christina Lodder (1988, p. 49), o período da guerra civil teria sido, para os artistas de vanguarda, um momento “apaixonante e estimulante”, no qual, apesar das restrições de alimentos e materiais, os artistas teriam expressado seu “entusiasmo revolucionário” nas decorações de ruas e praças para festas revolucionárias; na produção de cartazes para a guerra civil; ao aceitarem tarefas institucionais; e ao se envolverem com as inúmeras discussões sobre o papel do artista como “criador da nova cultura socialista” (idem, ibidem). Estudiosos do construtivismo russo, como Lodder e Albera, identificam o período da guerra civil como um momento de gestação do construtivismo-produtivismo. Lodder afirma que: As diversas experiências desta revolução [Revolução de Outubro] e da subsequente guerra civil proporcionaram três ingredientes essenciais para o desenvolvimento do construtivismo. Deram aos artistas a experiência da agitação social, experiência prática na hora de levar os assuntos artísticos, e finalmente, lhes proporcionou uma ideologia revolucionária: o materialis mo marxista. (LODDER, 1988, p. 49)

Durante os anos da guerra civil, os artistas russos acataram as diretrizes do governo soviético e constituíram um bloco unificado em defesa da revolução. Aparentemente havia uma grande abertura entre os artistas e o governo soviético. Os artistas aderiram7 à revolução e os bolcheviques acolheram pragmaticamente a cooperação dos artistas. O partido concedeu aos artistas um “domínio relativamente livre no estabelecimento e funcionamento dos organismos culturais oficiais [...] e na formulação de novos valores para a nova sociedade” (LODDER, 1988, p. 49, tradução nossa). Possivelmente, a premissa produtivista posterior de uma arte fundida na vida derive das discussões realizadas nesse período.

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Sobre a sua adesão à Revolução de Outubro, Rodchenko escreveu: “Fui absorvido completamente, co m toda a minha vontade”.Cf. RODCHENKO, A. Chernoe i beloe, início dos anos 20, MS memórias arquivo privado, Moscou, apud LODDER, C. El constructi vismo ruso. . Madrid : Alianza. 1988. p. 50, tradução nossa. 176 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Sabe-se que entre 1918 e 1920 os artistas (futuros construtivistas) trabalharam sob encomenda do governo na decoração de ruas e praças para a comemoração de datas revolucionárias - como o primeiro de maio e o aniversário da Revolução de Outubro. De acordo com Lodder, existem documentos que comprovam a participação de Popova (1889-1924) na decoração do edifício dos Sovietes em Moscou e indícios de que ela participou das decorações de festas populares revolucionárias (LODDER, 1988, p. 53, tradução nossa). Ao que tudo indica, Tatlin (1885-1953) também teria participado das decorações para o primeiro aniversário da Revolução de Outubro. Lodder menciona documentos que indicam a eleição de Rodchenko (1891-1956) para o comitê responsável pela decoração da Praça Vermelha e do túmulo dos revolucionários mortos em combate, a serem homenageados em maio de 1918. Em 1919, Rodchenko também teria participado dos preparativos para o aniversário da Revo lução de Outubro. Não se conhece muito, acerca das atividades de Stepanova (1994-1958) durante a guerra civil, entretanto, foram preservados alguns cartazes com dizeres e chamados revolucionários, pintados por ela em 1919. Existem registros de que Rodchenko, Smirnov, Malevich (1879-1953) e Osmerkin (18921953) teriam sido indicados pela IZO 8 , em 11 de novembro de 1918, para desenhar cartazes e folhetos para o Exército Vermelho, a pedido do próprio Exército Vermelho 9 . A produção de cartazes foi uma das principais atividades artísticas do período da guerra civil. Na época, os cartazes eram chamados de “pintura proletária” (SALLES, 2002, p. 14), por representarem um novo veículo e suporte para a realização de uma arte pautada pelas demandas revolucionárias da guerra civil. Em 1919, a ROSTA10 convocou artistas revolucionários para produzirem cartazes informativos de conteúdo político, os quais eram distribuídos em todo o país. Os cartazes

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IZO é a abreviação do russo para Otdel Izobrazitel´nykh Iskusstv – Departamento de Belas Artes. Lodder aponta documentos que comprovam a seleção desses artistas (Rodchenko, Smirnov Malevich e Osmerkin) para os trabalhos artísticos a pedido do Exército Vermelho. No entanto, não se tem registro da possível produção realizada e se tal trabalho teria sido realizado. Cf. LODDER, C., op cit., p. 54. 10 ROSTA é u ma sig la russa para Agência Telegráfica Russa. 9

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possuíam uma estrutura gráfica muito simples, eram feitos com métodos rápidos e baratos 11 . Alguns cartazes desse período eram feitos à mão, através de máscaras recortadas. Muitos dos futuros integrantes da LEF – Frente de Esquerda das Artes (1922-1928) – participaram da produção de cartazes para a ROSTA 12 . Mesmo não havendo documentos que comprovem e enumerem com precisão a participação de grande parte dos artistas de vanguarda na s atividades revolucionárias durante a guerra civil, sabe-se que muitos deles integraram (entre 1918 e 1921) a seção IZO. A IZO (Otdel Izobrazitel´nykh Iskusstv – Departamento de Belas Artes) era uma seção do NARKOMPROS13 . Em 1918, a sede do NARKOMPROS foi transferida para Moscou e, com essa mudança, a IZO de Moscou se tornou espaço de disputas das vanguardas. Grande parte dos artistas 14 de vanguarda da época compunham os quadros institucionais da IZO e, a seu modo, cada artista disputava para responder às demandas institucionais e determinar o papel da arte e do artista na formulação da nova cultura soviética.

2.1. ...construtivismo-produtivismo... 11

É interessante notar a relação entre alguns elementos identificados na produção de cartazes (como a simp licidade e objetividade dos cartazes, a carência de material, a tentativa de incorporação da arte no processo de construção social da vida, a prática de agitação e propaganda e a recepção massiva) e as futuras premissas do construtivismo e do produtivismo (a pesquisa de materiais, a sistematicidade e objetividade construtivista, o tipo de interação que eles buscavam com o espectador, a questão da encomenda social, a tentativa de fusão da arte na vida etc.). Cf. FIGUEIREDO, C. F., op. cit., p. 27-37 e 86-93. 12 Sabe-se que Maiakovski, Rodchenko, Stepanova, Popova, El Lissitzky (1890-1941) e os irmãos V. Stenberg (1899-1982) e G. Stenberg (1900-1933) produziram cartazes para a ROSTA. 13 NARKOMPROS é a abreviação do russo para Narodnyi Komissariat Proveshcheniya – Comissariado do Povo para a Instrução Pública. O NARKOMPROS, criado em 1917, era constituído basicamente pela junção do antigo Ministério da Educação Pública, do Co mitê Governamental de Educação (criado pelo Governo Provisório), e do antigo Ministério do Palácio (que, durante o Czarismo, controlava os teatros imperiais, a Academias de Artes e os palácios reais). A direção do NARKOMPROS foi confiada até 1929 a Anatoly Vassilyevitch Lunatcharsky (18751933). Durante a guerra civil, o NARKOMPROS tinha duas importantes missões: proteger o patrimônio das ameaças de destruição advindas da guerra e da revolução e recuperar as administrações instaladas pelo antigo governo provisório. 14 A IZO de Moscou contou com a participação de inú meros artistas das vanguardas russas. De acordo com Lodder, a direção da IZO era co mposta, entre outros, por: Malevicth, Rodchenko, Tolstaya, Rozanova, Koro lev, Koneko, Kandinsky e Tatlin (o ra na função de presidente, ora de subdiretor). O colegiado era div idido em duas seções: uma deliberativa e outra executiva. Cf. LODDER, C., op. cit., p. 51. 178 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Conceituar o construtivismo não é simples. O trabalho de análise da bibliografia disponível remete à questão da recepção histórica desse movimento russo, sobretudo pela historiografia ocidental. Como explica Albera (2002, p. 196), a dificuldade se dá por: 1. Problema de acesso aos documentos e manifestos; 2. controvérsias internas aos movimentos que reivindicam essa tendência 15 ; 3. visão predominante no Ocidente do construtivismo como uma arte puramente tecnológica e despolitizada, limitada às especificidades dos materiais usados nas construções de suas obras e aos princípios geométricos. Contribuem para tal caracterização estudos como os de Rickey (2002) e Bann (1990), que desconsideram as implicações políticas da produção construtivista, atendo-se às questões estéticas puras, à análise formal. Chegam ao disparate de colocar no mesmo patamar artistas como Malevitch (1878-1935), N. Gabo (1890-1977) e Kandinski (1866-1944), enquanto pertencentes a uma tendência de cunho geométrico da primeira metade do século XX 16 . Entretanto, estudos mais recentes sobre o tema, tais como os do próprio François Albera (2002), os do pesquisador alemão estabelecido nos EUA Benjamin Buchloh (1984) e de Christina Lodder

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Existem documentos e manifestos que apresentam informações contraditórias e confusas acerca da formação do Primeiro Grupo de Construtivistas em Ação. Contribuem para essa “confusão” a existência de diversos grupos de vanguarda russa que também reiv indicavam o termo construtivista, como por exemp lo, os “arquitetos construtivistas” ou os “poetas construtivistas”. Muitos desses outros construtivistas não tinham nenhuma relação efetiva com a proposta construtivista do Primeiro Grupo de Construtivistas em Ação. Inclusive no próprio “Manifesto Construtivista”, Rodchenko, Stepanova e Gan criticavam o que eles chamam de “novos construtivistas”: “[...] e os <<novos>> construtivistas se agarraram à moda, fizeram poemas, novelas, pinturas e outras porcarias <<construtivistas>>.”. Cf. RODCHENKO, A.; STEPA NOVA, V.; e GAN, A. Quiénes somos. Manifiesto del Grupo de Trabajo de los Constructivistas (1922). In: Rodchenko: La construcción del futuro. Catalunya: Fundacion Caixa Catalunya, 2008, (catálogo da exposição). p. 104-105. p. 105. (tradução nossa). 16 “Deve-se esta confusão histórica em parte à repressão stalinista, em parte ao int eresse pessoal de alguns artistas emigrados, que, apagando os traços de origem, apresentaram-se nos países ocidentais como construtivistas autênticos, quando consistiam, na verdade, em opositores da tendência majo ritária do movimento construtivista, que, ao se encaminhar para o produtivis mo, aprofundou as suas relações originárias co m o processo revolucionário. [...] Também não se deve esquecer, neste imbróglio, o papel da Guerra Fria, que secundou a operação, iniciada pelo stalinismo, de apagamento das origens e diretrizes do construtivismo”. Cf. MARTINS, L. R., op. cit., p. 59. 179 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


(1988), criticam os vícios da historiografia ocidental na recepção da vanguarda revolucionária russa e buscam, com efeito, maior precisão, contextualização e detalhamento ao abordar o construtivismo russo e sua evolução. Apesar da dificuldade em se definir com exatidão a data de fundação e os artistas presentes no Primeiro Grupo de Construtivistas em Ação, Lodder, com base na análise de documentos - manifestos e artigos de revistas do período -, propõe o ano de 1921 como data do surgimento oficial da vanguarda construtivista 17 . Em linhas gerais, o construtivismo partiu, inicialmente, da busca por uma superação da arte burguesa, pautado na noção de construção x composição 18 , e tendo como pressuposto a arte enquanto uma atividade material, com uma finalidade prática (LODDER, 1988, p.85-87). Os construtivistas eram ligados a institutos e oficinas de arte, subordinados ao Narkompros, como o INKhUK, e consideravam a figura do artista não mais como um criador inspirado, mas sim como um artesão que colocava seu saber-fazer a serviço de uma nova sociedade. Nesse sentido, os construtivistas extraíram e pesquisaram elementos da teoria social marxista, da engenharia e da prática industrial, na tentativa de identificar fundamentos para uma atividade artística que

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“O Primeiro Grupo de Construtivistas em Ação (Pervaya konstruktivistov gruppa Rabótchaia) foi formado na primavera de 1921. De acordo com u m relatório publicado em 1922, o núcleo fo i estabelecido em 13 de dezemb ro de 1920 e composto exclusivamente por Aleksei Gan, Varvara Stepanova e Aleksandr Rodchenko. No entanto, os documentos conservados sugerem a data de 18 de março de 1921, para a consolidação formal do grupo, que incluía também os irmãos Stenberg, Konstantin Medunstski e Karl Ioganson”. Cf. LODDER, C., op. cit., p. 94. De acordo com Lodder, Tatlin e Popova também teriam atuado em parceria co m o Primeiro Grupo de Contrutivistas em Ação. Cf. idem, ibidem. 18 A noção de construção pode ser explicada enquanto um método que tinha por objetivo utilizar os materiais constituintes da obra (neste caso, materiais industriais: o vidro, o metal, a pedra, etc.), de modo a produzir obras que respeitassem a especificidade dos materiais componentes. A perspectiva de construção era associada à idéia do uso da tecnologia e da engenharia, e os trabalhos pautados pela noção de construção se caracterizavam pela precisão no trato dos materiais que constituíam as obras, pela clareza da organização dos aspectos formais e, pela ausência de elementos decorativos ou supérfluos. Nesse sentido, Rodchenko, contrapondo -se radicalmente a idéia de representação, característica da pintura figurativa e de suas regras de composição, afirmou, em 1921, no seu programa de aula para o Vkuthemas (Vyshie Gosudarstviennye Khudojestvenno-Tekhinicheskie Masterskie - Ateliê Superior Estatal Técnico-Artístico), que “a CONSTRUÇÃO é a organização de elementos [...] e a condição contemporânea para a ORGA NIZA ÇÃO é o uso utilitário do material”. Cf. Idem, p.111. 180 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


pudesse superar a “arte de cavalete”19 , reintegrando a figura do artista à dinâmica da vida cotidiana e social. Não é fácil definir os limites entre o construtivismo e o produtivismo, pela dificuldade em achar um consenso entre os teóricos que estudam tais vanguardas. Fala-se do produtivismo como uma exacerbação do construtivismo, como sinônimo do construtivismo, ou como o fundamento teórico do mesmo. Para alguns teóricos, o construtivismo seria a manifestação artística aplicada da teoria produtivista; para outros, o produtivismo e o construtivismo seriam sinônimos. Existem, ainda, estudiosos que apontam o produtivismo enquanto um desdobramento crítico do construtivismo. Lodder 20 , em Aleksandr Rodchenko: ¿constructivista o produtivista?, afirma que o termo produtivismo se popularizou entre os artistas e teóricos durante a segunda metade da década de 1920, e que talvez tivesse algum valor “propagandístico na hora de convencer os departamentos oficiais da importância da atividade construtivista” (2008, p. 94, tradução nossa). Lodder também supõe que a utilização do termo produtivista possa ter ajudado a “minimizar as associações vanguardistas que faziam que tanto o construtivismo como seu enfoque fundamental resultassem tão suspeitos aos olhos do regime” (idem, ibidem) 21 .

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Ao se referirem à arte de cavalete, os construtivistas estavam visando à arte burguesa, a arte que não levava em consideração as relações histórico-sociais e não tinha uma finalidade prática na dinâmica social. Cf. TARA BUKIN, N. El últi mo cuadro: Del caballete a la máquina / Por una teoría de la pintura. Tradução Rosa Feliu e Patrícia Vélez. Barcelona: Gustavo Gili. 1977. p. 49. 20 Cabe ressaltar que Lodder, no texto Aleksandr Rodchenko: ¿constructivista o produtivista? , bem como em seu liv ro El constructivismo ruso, ressalta a dificuldade de definição dos limites entre o produtivismo e o construtivismo. Lodder apresenta também a hipótese de que estes poderiam ser sinônimos; que o produtivismo poderia ser o desdobramento do construtivismo; ou mes mo, que o produtivismo responderia pelo campo teórico e o construtivismo pelo prático. Cf.LODDER, Christina. Aleksandr Rodchenko: ¿constructivista o produtivista?. In: Rodchenko: La construcción del future. Catalunya: Fundacion Caixa Catalunya, 2008. (Catálogo da Exposição). p. 93-101, pp. 93-94 e Cf. LODDER, C., op. cit., 1988, p. 102-109. 21 Co m o término da guerra civil (1920-1921), houve um redirecionamento das atenções do partido, do “fronte de batalha” para a economia, e em seguida à reorganização do modo de vida. Co m isso, as instituições artísticas e culturais, que durante a guerra civil go zavam de grande autonomia, co meçaram progressivamente a ser objeto de maior atenção e controle por parte do governo. Cabe ressaltar que, a d ireção do partido nunca fora mu ito “entusiasmada” pela produção das vanguardas, e após a guerra civil, esta ausência de “entusiasmo” ganhou características repressivas. Cf. ALBERA, F., op. cit., p. 184 e MIGUEL, Jair Diniz. 181 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A pesquisadora italiana Maria Zalambani (1998) explica que devido às ambiguidades e indefinições do próprio construtivismo, as tentativas de estabelecer a relação entre constr utivismo e produtivismo são um tanto difíceis. Mas, segundo a autora, pode-se afirmar que a concepção de construtivismo que se confundiria com o produtivismo seria aquela de Gan, Rodchenko e Stepanova. Zalambani também afirma que a interpretação desses dois termos como sinônimos seria fruto de um documento publicado pela INKhUK em 1923 22 . No entanto, a estudiosa italiana identifica uma sutil e ao mesmo tempo efetiva diferença entre o construtivismo e o produtivismo. Tal diferença teria origem na composição interna dos dois movimentos. Os proponentes do produtivismo eram principalmente teóricos 23 , enquanto os expoentes do construtivismo eram na sua maioria artistas. Assim, segundo Zalambani, a distinção entre as duas correntes se daria devido a um maior direcionamento da corrente produtivista à teorização e reflexão sobre o processo da produção industrial, enquanto os construtivistas estariam mais direcionados à construção do objeto 24 . Apesar da dificuldade de se precisar com exatidão a relação e as fronteiras entre um e outro, pode-se afirmar que o produtivismo corresponderia a

– , São Paulo, 2006. p. 103. Segundo Zalambani, em 1923, a seção de informações da IKhUK teria publicado um documento que narrava a história das sucessivas recomposições ocorridas no interior do instituto. Nesse documento, os termos construtivistas e produtivistas teriam sido usados como sinônimos. Cf. ZA LAMBANI, M ., op.cit., p. 116. 23 Os principais teóricos do produtivismo foram: O. Brik (1888-1945), B. Kushner (1888-1937), B. Arvatov (18961940), N. Tarabukin (1889-1956) e S. Tret‟iakov (1892-1937). 24 Na mes ma direção de Zalambani, Albera ressaltou as dificuldades de definição e afirmou que seria prudente considerar que essas duas doutrinas recobrem campos diferentes. Posto nestes termos, Albera cita a definição de A. A. Strigalev: “St ringalev distingue assim o construtivismo como „método artístico‟ [...] ´que visa dar forma a objetos realmente funcionais‟, e o produtivis mo co mo „teoria sociológico -estética que prevê um impulso e u m do mín io das artes vinculados à produção de objetos socialmente úteis, considerando a arte contemporânea uma fo rma pa rt icular de produção”. Cf. A LBERA, F., op. cit., p. 168. 22

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uma espécie de radicalização teórica da proposta construtivista 25 . Também se pode constatar que as duas correntes, se não se fundiram, aturam sempre em conjunto 26 . Em síntese, os produtivistas propunham a formação de um novo tipo de artista, do “artista-engenheiro”. O objetivo maior da plataforma produtivista era transformar a fábrica em um centro de pesquisas, estimulando a criatividade dos trabalhadores, a fim de reformular as práticas coletivas do setor produtivo. A arte seria capaz de incitar, segundo essa proposta, uma verdadeira transformação nas relações de produção e nas relações sociais. A figura do “artistaengenheiro” foi pensada, nesse contexto, como a de um trabalhador especializado incumbido de re-configurar os meios de produção, com a função de criar novos objetos, dissociados dos modelos de produção capitalistas 27 . 2.3. …e, a “decomposição da pintura”. Uma das principais características do construtivismo era a tentativa de fusão entre a arte e a vida. De acordo com Albera (2002), essa característica seria resultado da vinculação desta vanguarda com o seu contexto histórico 28 . Segundo Lodder e Albera, a experiência da revolução bolchevique e posteriormente as demandas da guerra civil russa teriam proporcionado os ingredientes necessários para uma espécie de re-direcionamento do campo artístico russo.

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Martins, em O Debate entre Construtivismo e Produtivismo, segundo Nikolay Tarabukin, afirma que o produtivismo seria u ma radicalização materialista do construtivismo. Conforme será discutido a segu ir, pode-se dizer que a proposta produtivista, parece sim, conter em si u ma espécie de radicalização do construtivismo, pois nela estaria presente (para além da discussão do objeto socialmente justificado), u ma proposta de „transformação do social‟ por meio da revolução do próprio processo de produção e circulação do objeto. Cf. MA RTINS, L., op. cit. 26 O construtivismo e o produtivismo surgem no mesmo ano, 1921, no interior da INKhUK. Os artistas do Primeiro Grupo de Construtivistas em Ação estavam sempre e m diálogo com os teóricos do produtivismo. Os teóricos do produtivismo, todo o tempo, se referiam aos construtivistas em suas discussões e propostas. A partir de 1922, ambos participaram da Frente de Esquerda das Artes – LEF. A LEF adotou oficialmente a plataforma Produtivista. 27 Um exemplo dessas tentativas foi o projeto para o clube dos trabalhadores feito por Rodchenko. Cf. GOUGH, Maria. The artist as producer Russian constructi vis m in revol ution. Berkeley: Un iversity of Californ ia Press, 2005. 28 Em 1922, Gan afirmou que: “O construtivismo é um fenô meno dos nossos dias. Surgiu em 1920, entre a ação das massas dos pintores e teóricos de esquerda”. Cf. GA N, A. Konstrukti vizm. 1922. p.1. Apud: LODDER, C., op. cit., p. 99. 183 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Segundo o teórico produtivista Nikolai Tarabukin (1889-1956), o “processo de decomposição da pintura”29 estava na ordem do dia quando a revolução de 1917 aconteceu30 . A superação da pintura já estava anunciada, mas tal superação poderia ocorrer de modos variados. No entanto, conforme Albera, o contexto social teria proporcionado aos artistas russos e às suas utopias a oportunidade de passar para o real. A decomposição da pintura levaria ao seu “desaparecimento” no social. O lento processo de autonomização do campo artístico e cultural, em andamento no Ocidente e do qual a Rússia, devido a tradições pictóricas diferentes (Bizâncio), só tardiamente havia participado, acha-se assim abolido e a arte é lançada, sem med iação no campo social. (A LBERA, 2002, 171)

Para Tarabukin, o construtivismo teria partido, inicialmente, da busca por uma superação da arte burguesa, pautado nas noções de construção 31 , tectônica 32 e faktura33 e tendo como pressuposto a arte enquanto uma atividade material, com uma finalidade prática (LODDER, 1988, p.85-87). Os construtivistas consideravam a figura do artista não mais como um criador inspirado, mas sim como a de um artesão que colocava seu saber- fazer a serviço de uma nova sociedade. Nesse sentido, os construtivistas extraíram e pesquisaram elementos da teoria social marxista, da engenharia e da prática industrial, na tentativa de identificar fundamentos para uma

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Conforme Tarabukin, o processo de “decomposição irreversível do organismo pictórico” teria sido anunciado por Cézanne e in iciado co m as pinturas de Manet. Cf. TARA BUKIN, N., op. cit., p.37. 30 Cabe ressaltar que a referência à decomposição gradual da pintura está presente no próprio “Man ifesto Construtivista”: “ELES FORAM ANUNCIADOS. O quadrado: 1915, laboratório de MA LÉVICH A linha, o quadriculado e o ponto: 1919, laboratório de RÓDCHENKO [...]”. Cf. RODCHENKO, A.; STEPANOVA , V.; e GAN, A., op. cit., p.104-105. (t radução nossa) 31 Rodchenko afirmou, em 1921, no seu programa de aula para o Vkuthemas (Vyshie Gosudarstviennye Khudojestvenno-Tekhinicheskie Masterskie - Ateliê Superio r Estatal Técnico-Artístico), que: “a CONSTRUÇÃO (konstruktsiya) é a organização de elementos [...] e a condição contemporânea para a ORGA NIZA ÇÃO é o uso utilitário do material”. Apud LODDER, C., op. cit., p. 111. (tradução nossa) 32 Segundo Lodder, a tectônica (tektonika) “[...] era defin ida como originada nos princípios ideológicos do comunis mo por u m lado e no uso apropriado dos materiais industriais por outro”. Cf. LODDER, C., op. cit., p. 95. 33 Em linhas gerais, a faktura seria a “[...] elaboração consciente do material e sua utilização de uma maneira adequada, sem obstaculizar a tectônica ou a construção” . Cf. LODDER, C., op. cit., p. 95. (tradução nossa) 184 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


atividade artística que pudesse superar a “arte de cavalete”, reintegrando a figura do artista à dinâmica da vida cotidiana e social. Se analisarmos com cuidado as pesquisas, os projetos, as obras e os documentos (“Manifesto construtivista”34 de Gan, Stepanova e Rodchenko; “Teses para a dissertação „construtivismo‟”35 de Medunstsky e dos irmãos Stenberg; “Construtivismo”36 de Gan; e “Da construção à tecnologia e à invenção” 37 de K. Ioganson) produzidos pelos integrantes do Primeiro Grupo de Construtivistas em Ação, encontraremos uma série de elementos que evidenciam o vínculo dos construtivistas com o seu contexto histórico. Como por exemplo: a referência contínua à tecnologia e indústrias 38 ; à militarização 39 ; à pesquisa de materiais40 ; à

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RODCHENKO, A.; STEPANOVA, V.; e GA N, A., op. cit., p. 105. De acordo co m Lodder, existem registros de que os irmãos Stenberg e Medunetski, em 1922, apresentaram u ma espécie de dissertação no INKhUK, intitulada “Construtivismo”. A dissertação completa se perdeu, no entanto, foi conservado num arquivo privado de Moscou um texto preliminar à dissertação, o qual foi escrito pelos mesmos autores. O texto era int itulado “Teses para a dissertação „construtivismo‟”. Cf. LODDER, C., op. cit., p. 98. 36 O livro “Construtivismo” foi publicado por A. Gan, em 1922. Cf. LODDER, C., op. cit., p. 98. 37 “Da natureza da construção à tecnologia e à invenção” foi uma comunicação escrita apresentada por K. Ioganson, em 1922, na IKh UK. Cf. LODDER, C., op. cit., p. 96. 38 Ao enumerar as futuras tarefas do construtivismo, os irmãos Stenberg e Medunetski sublinhavam a ideia de fusão entre o construtivismo e as indústrias russas: “A indústria russa sob a bandeira do construtivismo e s ua significação no mercado mundial”. Cf. STENBERG, V.; STENBERG, G; e M EDUNETSKI K. Teses para a dissertação „construti vismo‟, apud LODDER, C., op. cit., p. 98. (tradução nossa). Ioganson, em “Da construção à tecnologia e à invenção” apresentou uma espécie de resumo da sua própria evolução como artista: “Da pintura à escultura, da escultura à construção, à tecnologia e à invenção: este é o meu caminho e este será o objetivo final de todo artista revolucionário”. Cf. IOGANSON, K. Ot konstruktisii k teknike i izobreteniyu. 1922. MS arquivo privado, Mosvou, p. 1, apud LODDER, C., op. cit., p. 96. (tradução nossa) 39 No “Manifesto Construtivista”, podemos identificar algu mas expressões e terminologias militares, co mo por exemplo : “A GUERRA IRRECONCILIÁ VEL CONTRA A ARTE” e “So mos teu primeiro destacamento armado e de castigo”. Cf. RODCHENKO, A.; STEPANOVA, V.; e GAN, A., op. cit., p. 105. (tradução nossa). Além da questão terminológica, cabe ressaltar as inúmeras ativ idades realizadas durante a guerra civil russa, como por exemplo : a produção de cartazes; a decoração de ruas e praças para as festas revolucionárias; e os possíveis cartazes feitos a pedido do Exército Vermelho. É também interessante perceber como as roupas e os trajes para o teatro, projetadas por Rodchenko e Stepanova, respondem à militarização da vida. 40 Sobre a questão da pesquisa de materiais, cabe lembrar os próprios princípios do construtivismo, os quais, segundo Gan, seriam: a tectônica, a faktura, e a construção. Cf. GAN, A. Konstrukti vizm. 1922. p. 1, apud LODDER, C., op. cit., p. 98. 35

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agitação social41 ; à ideologia revolucionária 42 ; e à tentativa de formulação de novos valores culturais e artísticos para a sociedade. No “Manifesto Construtivista”, Rodchenko, Stepanova e Gan, escreveram: Não somos sonhadores da arte que construímos na imaginação: Aerorádioestações Emp ilhadeiras e Cidades em chamas SOM OS O COM EÇO NOSSA TA REFA É HOJE Um copo Uma escova para esfregar o chão Umas botas Um catálogo. (RODCHENKO; STEPA NOVA; GAN, 1921, p. 104, tradução nossa)

Estas afirmações não só explicitam a perspectiva construtivista de superação da “arte de cavalete”, como também apresentam uma relação pragmática com o contexto. Entre 1920 e 1921, o foco da energia revolucionária passou dos campos de batalha da guerra civil para a economia, para as fábricas e para a condição dos trabalhadores. Também foi nesse período que se constituiu a Oposição Operária. Uma das questões centrais da Oposição Operária era a melhoria da condição de vida dos operários 43 . Possivelmente o redirecionamento construtivista-produtivista para a produção e pesquisas de objetos úteis como “um copo”, “uma escova de esfregar o chão”

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Gan, em “Construtivismo”, escreveu: “[...] aquele que do mina a cor ou a linha, aquele que co mbina a ação de sólidos espaciais e volumétricos, aquele que organiza a ação das massas devem converter-se em construtivistas na empreitada geral de construção e movimentação das massas humanas”. Cf. GA N, A., “Konstruktivizm”, 1922, p. 1, apud LODDER, C., op. cit., p. 99. (tradução nossa) 42 Rodchenko, Gan e Stepanova declararam, em 1922, que o construtivismo era “A EXPR ESSÃO COMUNISTA DAS CONSTRUCÕES MATERIA IS”. Cf. RODCHENKO, A.; STEPA NOVA , V.; e GA N, A., op. cit., p.104-105. (tradução nossa). Também em 1922, Gan escreveu que: “O materialismo d ialét ico é para o construtivismo um compasso que indica os caminhos e os objetos do futuro distante [...]” . Cf. GA N, A. Konstrukti vizm. 1922. p. 55, apud LODDER, C., op. cit., p. 99. (tradução nossa). 43 “Para nossa própria vergonha, na própria cidade de Moscou, o coração da República, a população operária vive ainda em bairros sujos, superpovoados e sem higiene; ao visitá-los, somos levados a pensar que não houve revolução de qualquer espécie. Todos nós sabemos que o problema da habitação não pode ser resolvido em poucos meses, nem mes mo em poucos anos; que dada a nossa penúria, a s olução encontra numerosas dificuldades”. Cf. KOLLONTAI, Alexandra. 1920-1921 : Global editora, 1980, p. 22. 186 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ou “um par de botas”44 levou à busca por responder às demandas de “melhoria do destino dos operários” (KOLLONTAI, 1980, p.21).

3. O redirecionamento para a produção... Tarabukin (1977), supoe o construtivismo e o produtivismo enquanto fases sucessivas do desenvolvimento das artes plásticas. Para tanto, ele reconstrói o percurso da arte moderna até a proposta dos construtivistas de morte da arte de cavalete. A morte da arte, proclamada pelos construtivistas, é vista por Tarabukin não como destruição da arte, mas como um desenvolvimento histórico e reflexivo. Um desenvolvimento em decorrência do próprio esgotamento das formas artísticas precedentes, assim como pautado pelas demandas soc iais da sociedade revolucionária em construção 45 . Segundo ele, com Manet (1832-1883), a pintura perdera a primeira pedra de seu pedestal, dando início a uma decomposição irreversível do organismo pictórico e de seus elementos constituintes, o que teria cond uzido à proposta produtivista de dissolução da arte no processo de produção da vida (TARABUKIN, 1977).

44

A partir de 1920, Stepanova e Popova atuaram nas fábricas têxteis. Stepanova elabora inúmeros croquis de roupas que combinavam a funcionalidade e a estética, de modo a melhorar o desempenho e conforto dos trabalhadores bem como a proporcionar u ma revolução estética no modo de vestir. Tatlin e Rodchenko também produziram alguns croquis, mas foram Stepanova e Popova que se concentraram mais no vestuário. Alguns membros das vanguardas russas, como Rodchenko e Lissitzky, tentaram desenvolver móveis adequados à dura realidade soviética. Os móveis eram na sua maioria construídos em madeira e tentavam responder à ausência de espaço das habitações soviéticas (de acordo com Lodder, nos anos 20 da União Soviética, era muito comu m, que famílias inteiras – pai, mãe, filhos, avô, avó, sobrinhos etc. - ocupassem uma minúscula habitação). Muitos móveis projetados por Rodchenko e Lissitzky eram ext remamente simp les (co m o objetivo de economizar materiais) e dobráveis (de modo a ocupar menos espaço). Também foram pro jetados, naquele período, móveis que cumpriam mais de uma função nas casas. Cf. LODDER, C., op. cit., p. 139-141. 45 Sobre o esgotamento da forma artística e a p roposta construtivista de morte da arte de cavalete, é importante ressaltar a discussão feita por Tarabukin (na conferência pronunciada na INKhUK, 1921, intitulada “Foi pintado o último quadro” e ao longo do texto Do Cavalete à Maquina, 1922), sobre a tríptico monocromát ico de Rodchenko. Segundo Tarabukin, o tríptico monocromát ico de Rodchenko representava a morte da pintura. Logo, a arte, tal como era entendida pela burguesia, enquanto forma que s e justificava no reconhecimento autoral burguês, estava morta. Dessa morte, de acordo co m Tarabukin, surgiria u ma nova arte, u ma arte que seria justificada socialmente. A obra de Rodchenko, discutida por Tarabukin, foi exposta pela primeira vez em 1921, na exposição construtivista 5 x 5 = 25 (Moscou, setembro-outubro de 1921). O tríptico era co mposto por três planos monocromát icos - azu l, amarelo e vermelho -, intitulados: “Cor vermelha pura”, “Cor amarela pura” e “Cor azul puro”. 187 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Segundo Tarabukin, a abolição do campo artístico realizada pelos construtivistas 46 seria uma resposta ao que ele chamou de “encomenda social”. Com a Revolução de Outubro, de acordo com Tarabukin, teria surgido a demanda de uma nova proposta artística, a qual, de acordo com o contexto, deveria ser justificada socialmente. Albera, em Eisenstein e o construtivismo russo, busca, com base em Tarabukin, definir a proposta de “encomenda social” em três pontos: 1- não há obra nem escritor “universais”. Tudo o que um autor, um artista faz é atividade em prol de u ma classe determinada. Para realizar essa finalidade social, esses autores devem se dar conta, claramente, da tarefa da classe para a qual trabalham; 2- não há inovação em geral, inovação por si só. Apenas uma inovação que sequer na contracorrente do gosto dominante será, por conseguinte reconhecida; 3- a encomenda social não exclui a autonomia dos trabalhadores literários: a) porque a encomenda em questão não é uma encomenda feita por representantes individuais da própria classe nem de organizações distintas. Trata -se de uma compreensão autônoma dessa encomenda, que pode entrar em contradição co m as encomendas reais dos representantes dessa classe; b) essa autonomia é a autonomia não de um grupo social, e sim de u m coletivo de produção. Que pode declarar ao “cliente” que ele mes mo não compreende o que encomenda. (2002, p. 180-182)

Nestes termos, a noção de “encomenda social” se relacionaria intrinsecamente com as demandas do seu contexto histórico e de sua classe social. Mas, de forma alguma, corresponderia à “submissão a diretivas exteriores – políticas – ou encomenda formal de uma instituição ou de um organismo de Estado, mas, como compreensão daquilo que a sociedade „quer‟, „pede‟” (ALBERA, 2002, p. 180). Albera explica ainda que, de acordo com o teórico produtivista Boris Arvatov, a encomenda social seria responsável por programar a obra “em função de sua tarefa de reconstrução do „modo de vida‟ e da percepção” (idem, ibidem). A tarefa “de reconstrução do „modo de vida‟ e da percepção” estaria relacionada, de acordo com a proposta produtivista, com as noções de cultura material 47 e byt (vida cotidiana)48 46

No Manifesto Construtivista, A. Gan, A. Rodchenko e V. Stepanova declaram u ma “Guerra irreconciliável contra a arte”. Cf. RODCHENKO, A.; STEPA NOVA, V.; e GAN, A., op. cit., p. 105. 47 De acordo com Arvatov, “A cultura material de uma sociedade é o sistema universal de Objetos, as formas materiais socialmente úteis criadas pela humanidade através da transformação das assim chamadas formas naturais. A cultura material é tanto a produção quanto o consumo de valores materiais”. Cf. A RVATOV, Boris. Everyday Life 188 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


desenvolvidas por Arvatov. Segundo Arvatov, “o tipo cultural de uma pessoa é criado pela totalidade do ambiente material que a cerca, assim como o estilo cultural de uma sociedade é criado por todas as suas construções materiais”(ARVATOV, 1997, p. 120). Desta forma, segundo Arvatov, a relação do indivíduo ou do coletivo com o objeto seria um fundamento determinante das relações sociais. Para Arvatov, a relação “indivíduo X objeto” precisaria ser estudada e transformada por meio do religamento criativo da produção com a circulação. Pois, somente compreendendo o objeto como forma criadora da base cultural seria possível construir uma “Cultura Proletária”49 . Para tanto, segundo os produtivistas, o artista revolucionário deveria tornar-se “artistaengenheiro”. O “artista engenheiro” seria a figura central da proposta produtivista; segundo Arvatov, ele deveria “ser capaz de organizar o processo produtivo em sua totalidade, se tornar um engenheiro, compreender a produção e os problemas de desenvolvimento da própria produção e criar um processo produtivo altamente qualificado” 50 . Nestes termos, de acordo com Arvatov, ao observar e atuar dentro do processo de produção material, ao estudar a necessidade e a finalidade social (a encomenda social), o “artista engenheiro” adquiriria o “ponto de vista produtivo”. A

and the Culture of the Thing. Tradução Christina Kiar. October 81. Camb ridge: MA, MIT Press, Summer, 1997. p. 119-128. p. 120. (tradução nossa) 48 “As formas materiais de cultura, precisamente co mo formas que são, como formações esqueléticas isoladas, representam u ma fo rça ext raordinariamente conservadora, conhecida como cotid iano [byt]. Co mpreender as tendências do desenvolvimento do material byt significa estar apto a direcioná-las para transformá-las sistematicamente, i.e., transformar a força conservadora do byt em progressista. Cf. A RVATOC, B., op.cit., p. 121. (tradução nossa) 49 “A construção da Cultura Pro letária, isto é, de uma cu ltura conscientemente organizada pela classe trabalhadora, requer a eliminação da ruptura entre objetos e pessoas que caracterizou a sociedade burguesa. Esta construção pressupõe, em adição, o estabelecimento de u m singular ponto de vista metodológico que entende o inteiro mundo de objetos como a forma material criadora da base da cultura. A sociedade proletária não irá conhecer este dualismo das coisas nem na prática nem na consciência. Ao contrário, esta sociedade será ideologicamente embebida pelo mais profundo senso dos objetos”. Cf. Idem, p. 121. (tradução nossa) 50 Cf. A RVATOV, B. Iskusstvo i proizvodstvo. Protok ol doklada. p. 258. Apud: ZA LAMBA NI, M., op. cit., p. 72. 189 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


consolidação desse processo, segundo Arvatov, expressaria o êxito da rejeição das composições abstratas em prol de uma organização concreta dos materiais 51 . A proposta de um “artista engenheiro” estaria diretamente ligada à noção de “encomenda social” e às mudanças econômico-políticas da URSS 52 . O “artista engenheiro” teria nascido em oposição ao “artista artesão”. A produção artística, segundo a proposta produtivista, deveria superar os processos artesanais e entrar nas grandes indústrias 53 . Pois a indústria seria o meio pelo qual a arte conseguiria atingir as massas e entrar na vida cotidiana, isto é, construir os objetos do novo byt socialista. Para os produtivistas, “o fenômeno artístico tem, portanto, não apenas um aspecto estético, mas econômico-político” (ZALAMBANI, 1998, p. 71) 54 . De acordo com Tarabukin, esse aspecto econômico-político atingiria sua potência máxima na consolidação da proposta de “Maestria produtivista”.

Pois, segundo ele, a “Maestria

produtivista” seria capaz de reestruturar as relações sociais por intermédio da transformação do processo de produção. Em “Do cavalete à máquina”, Tarabukin explica que “ao passar pelo 51

Assim co mo Tarabukin, Arvatov traça o produtivismo como u m desenvolvimento histórico e reflexivo da arte. Nesse desenvolvimento, segundo Arvatov, os processos de abstrações e desconstruções das vanguardas russas representariam “a ponte histórica pela qual a classe operária deve necessariamente passar para chegar ao porto de sua criativ idade autônoma”. Cf. ARVATOV, B. Proletariat i levoe iskusstvo. In: ____. Vestinik iskusstv. 1922. p. 10. Apud: ZALAMBANI, M., op. cit., p. 74. Zalamban i explica que, segundo Arvatov, “a arte de esquerda (construtivismo, futuris mo, arte abstrata) tem desempenhado um papel importantíssimo, seja para o novo uso do material, seja para a nova concepção da forma. Se é verdade que para construir formas soc ialmente justificadas [finalizzate] é necessário partir do material [...], u m primeiro passo, nesse sentido, foi dado pelos artistas abstratos. Esses, de fato, atravessaram o cubis mo, o futuris mo e chegaram aos materiais puros. „Eles foram os primeiros a demonstrar que o material tem suas próprias leis e que conhecê-las é a primeira obrigação do artista‟. E é sempre graças a eles que a forma não é mais o ponto de partida, mas, o ponto de chegada do processo artístico”. Cf. ZALAMBA NI, M., op. cit., p. 74. (tradução nossa) 52 Cabe relemb rar que, entre 1920-1921, co m o término da guerra civil, houve, na Rússia, um red irecionamento dos frontes de batalha para a gestão da produção industrial. Cf. CA RR, Edward Hallett. nin a Stalin 1917-1929. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro : Zahar, 1981. 53 É importante ressaltar que, na dicotomia “artista engenheiro x artista artesão”, segundo a proposta de Arvatov, encontra-se também u ma d icotomia entre produção coletiva x produção individual. Sobre as noções de “encomenda social” e demanda de uma produção coletiva, em 1922, Arvatov afirmou que: “A nova cultura, a cultura da cidade industrial, não podia corresponder à técnica reacionária do artista-individualista. ZALAMBANI, M., op.cit., p. 6970. 54 Cf. Idem, p. 71. (tradução nossa). O caráter econômico-polít ico do fenômeno art ístico também é ressaltado por Tarabukin, em “Do cavalete à Máquina”, quando ele aponta a inevitabilidade da “transferência desse organismo [INKhUK] do Co missariado da Educação (NARKOMPROS) para Conselho de Economia Nacional”. Cf. TARABUKIN, N., op. cit., p. 49. 190 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


cadinho da criação, que lhe dá uma tendência à perfeição, o trabalho penoso e opressivo do operário converte-se em maestria, arte” (TARABUKIN, 1977, p. 52, tradução nossa). Isto é, o trabalhador, ao entrar em contato com o trabalho criativo, ao ser “animado pelo desejo de fazer o seu trabalho à perfeição, deixa de ser um operário artesão para converter-se em um mestrecriador” (idem, ibidem). A inserção dos artistas nas fábricas, de acordo com a “Maestria produtivista”, proporcionaria a ligação entre “o trabalho e a liberdade, a criação e a maestria inerente à arte”(idem, p. 53). E, de acordo com Tarabukin, “ao vincular a arte ao trabalho, o trabalho à produção, a produção à vida, à existência cotidiana, resolve-se de uma vez um problema social extremamente difícil” (idem, ibidem). Ou seja, se estabeleceria um novo processo de produção não alienante.

3.1. ...as tentativas de inserções nas fábricas...

O próprio Arvatov admite, sem grandes ressalvas, a impossibilidade de u ma realização total e imediata do projeto produtivista [...] é então necessário tentar uma realização, pelo menos parcial, dessa teoria, que é a única que pode lançar a ponte entre “utopia” e conhecimento, isto é “ciência”. (ZA LAMBA NI, 1998, P. 87-88)

Lodder, em El constructivismo ruso, propõe uma leitura acerca do desaparecimento do construtivismo, que, segundo a própria autora, é pouco usual. Ela afirma que o construtivismo teria “[...] fracassado em seu objetivo primário de transformar totalmente o entorno” (1988, p. 181, tradução nossa). A autora aponta, nesse sentido, os fatores centrais que levaram à limitação da proposta construtivista e ao “fracasso de seu objetivo primário”. Lodder assinala que tanto o ressurgimento da “arte de cavalete” e do realismo como estilo artístico agressivamente ativo (protagonizado pela AKhRR e pela VAPP) 55 , quanto o grande interesse dos construtivistas pela 55

Em 1922, co m o surgimento da AKhRR [ Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária ] e de sua correspondente na literatura a VAPP [União das Associações dos Artistas Revolucionários] verifica -se um retorno, protagonizado por estas associações, da “arte de cavalete”. A AKhRR e a VAPP eram proponentes do “Realis mo Heroico”, matriz oficial do chamado “realis mo socialista”. Em fevreiro de 1921, co m a criação do Colegiado Central 191 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


tecnologia contemporânea teriam levado essa vanguarda a “[...] uma dependência artística a respeito do objeto real e a uma limitada volta a ele” (LODDER, 1988, p. 181). Segundo a autora, os construtivistas teriam sido obrigados a reduzir seus horizontes para elementos mais práticos, como: os desenhos de pequenas escalas para cartazes e exposições, a fotomontagem e a fotografia. Lodder acrescenta, ainda, que essa opção pela fotografia e pela fotomontagem foi “[...] por sua vez, sintoma e causa da decadência do construtivismo e de seu compromisso crescente com a realidade existente em oposição à projetada” (idem, ibidem). Frente à hipótese de Lodder, cabe, talvez, uma reflexão dialética, que relacione concretamente o paradigma construtivista-produtivista de uma arte fundida na vida e justificada socialmente, com a realidade própria daquele momento histórico. Ainda em 1923, Tarabukin escreveu sobre o fracasso das primeiras tentativas de entrada dos artistas nas fábricas. De acordo com o autor de “Do cavalete à máquina...”, a inserção de Tatlin (1885-1953) e Malévich (1978-1935) nas fábricas não teria passado de uma “arte aplicada”. Segundo o teórico produtivista, a prática destes dois artistas nas fábricas resumiu-se à transferência da superfície pictórica – a qual teria saído das telas para adornar xícaras e pratos de porcelana (TARABUKIN, 1977, p. 51-52). Caso análogo ao descrito por Tarabukin, teria sido a tentativa de Popova e Stepanova nas fábricas têxteis. Conforme narra Zalambani (1998), essa prática não se tornou permanente (sua duração foi de 1921 a 1925) e a proposta de dissolução da arte no processo de produção não teria sido efetivada 56 . Nessa experiência, verificou-se uma divisão do trabalho na qual coube aos artistas o papel criativo – que, de certa forma, resumia-se à transferência das pinturas em telas para as pinturas em tecido – e ao engenheiro, o papel técnico de gestão e elaboração do processo para a Educação Polít ica (Glavpolitprosvet), foi in iciado progressivamente o ciclo de controle ideológico de cultura por parte dos bolcheviques. O Glavpolitprosvet possuía o direito de vetar por razões políticas todas as produções em arte e ciência. 56 Segundo Zalambani, houve inclusive uma recusa dos membros do conselho artístico da fábrica às composições geométricas de Popova e Stepanova: “Muito cedo o conselho artístico da fábrica protestou vivamente contra o desenho geométrico delas, denominando a obra delas de „matemática‟ e não arte [...] e é pedido a elas para „mascarar o construtivismo sob o véu da fantasia‟. Em 1925, a direção da Primeira fábrica de algodão estampado repropõe aos seus artistas o ornamento „flo ral‟”. Cf. ZA LAM BANI, M., op.cit., p. 64. (tradução nossa) 192 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


produtivo. As artistas não teriam conseguido encontrar o seu papel como participante de todo o processo de produção, conforme proposto inicialmente pelas vanguardas construtivistaprodutivista. Tarabukin, ao mesmo tempo em que criticava a prática de Tatlin e Malévich, realizava o esforço de determinar teoricamente o teor da proposta de inserção nas fábricas. Assim, o teórico produtivista afirmava que “O problema da maestria produtivista 57 não pode ser resolvido através de uma ponte superficial entre a arte e o processo de produção, mas somente por sua relação orgânica, pelos vínculos entre o próprio processo de trabalho e a criação [...] É só no próprio processo de trabalho [...] que reside a marca reveladora da essência da arte” (TARABUKIN, 1977, p. 52, tradução nossa). Em outros termos, o teórico produtivista estava propondo uma inserção artística que alterasse não só os produtos, mas a totalidade do processo de produção. Afetando, nestes termos, o próprio trabalhador. 3.2. …e, a impossibilidade de uma realização total e imediata do projeto produtivista.

Em síntese, as tentativas de transformação do entorno por meio da inserção dos artistas no processo de produção, de fato, não tiveram grandes êxitos. Entretanto, cabe ressaltar que havia uma escassez de materiais e tecnologias e, conforme as críticas da Oposição Operária 58 , as

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A “maestria produtivista” é u ma terminologia usada por Tarabukin para se referir às novas formas artísticas que sucedem a “arte de cavalete”. Martins apresenta as acepções da utilização do termo russo mastersvo combinado com o termo produtivismo. Co m base nas traduções ocidentais do termo, Mart ins explica que “O tradutor inglês opta por „production skill’, algo co mo „habilidade de produzir‟, enquanto que o francês traduz a mes ma noção por „maîtrise productiviste‟, algo como „maestria, soberania, domín io produtor ou potência produtivista‟...”. Cf. MA RTINS, L., op. cit., p. 68. 58 A Oposição Operária se formou na segunda metade de 1920, segundo Tragtenberg, e era formada por “trabalhadores revolucionários da primeira hora, particip antes das revoluções de 1905 e 1917 e da guerra civil”. A Oposiç ia entrou em choque com a direç egime. Posteriormente, a Oposiç Trotskista – ambos os movimentos foram . Cf. TRA GTENBERG, M. A revoluç : Ed itora Unesp, 1988. p. 47; e KOLLONTA I, A. Oposiç 1920-1921. Tradução Grupo Aurora. São Pau lo: Global editora, 1980. 193 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


fábricas russas funcionavam sob um regime hierárquico severo e sob a égide de um “[...] planejamento restrito a um corpo de especialistas e à mão-de-obra realizando o que a cúpula técnica define como sendo os objetivos” (TRAGTENBERG, 1988, p. 46). Além disso, na direção das fábricas encontravam-se membros da antiga burguesia russa. Preocupados com o descalabro total das nossas indústrias, e ainda apegados ao modo de produção capitalista (remuneração do trabalho em dinheiro, diferenças de salário de acordo com a função), os dirigentes do nosso Partido, cheios de desconfiança na capacidade criadora das coletividades operárias, procuravam a salvação para este caos industrial. Onde? Nas mãos dos discípulos de antigos homens de negócios, técnicos cujas capacidades cr iadoras na esfera da produção estão sujeitas à rotina, aos hábitos e aos métodos do sistema industrial econômico capitalista. São eles que introduzem a crença, ridiculamente ingênua, de que é possível chegar ao comunismo por meios burocráticos (KOLLONTAI, 1980, p. 16). Ainda no ensaio “Do cavalete à máquina…”, Tarabukin escreveu sobre a dificuldade de efetivação da proposta produtivista de transformação total de seu entorno, por meio da entrada dos artistas no processo de produção. O autor se referia a esse momento de transição como “a tragédia da época de transição” (1977, p. 55, tradução nossa) e afirmava que, nesse período, o papel do artista construtivista na produção era o “[...] de pura propaganda. E, considerando-o sob esta ótica, ele adquire um sentido definido, enquanto que, tentar atribuir a ele um significado autônomo na produção, parece frívolo” (idem, p. 56, tradução nossa). O autor também propõe a esfera pedagógica como uma esfera de atuação possível para os construtivistas-produtivistas durante o período de transição. Arvatov afirmou, em 1926, que a teoria produtivista estava passando por uma “[...] incessante acumulação de experiências” (1973, p. 76), visto que “[...] a arte produtivista era possível apenas como arte de um proletariado economicamente vencedor, como arte de uma produção coletivizada” (idem, ibidem). No entanto, segundo o esquema arvatoviano, essa 59

Zalambani afirmou que, segundo o esquema arvatoviano, o produtivismo teria como “[...] sua tarefa a produção e a construção não apenas de objetos, mas, sobretudo de comportamentos e corpos”. Cf. ZA LAMBA NI, M., op. cit., p. 88. (t radução nossa) 194 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


condição futura não deveria ser utilizada como desculpa para se evitar as tentativas no presente, visto que elas seriam fundamentais à pesquisa de novas táticas para a edificação da sociedade operária. Ao criticar a arte burguesa, Arvatov reafirmou a necessidade da proposta produtivista e argumentou que apenas uma arte socialista conseguiria estabelecer a ponte entre a utopia e a ciência. Arvatov salienta, ainda, que a “[...] arte figurativa operária [...] necessita ligar-se estreitamente com a prática social e se transformar em arte de influência social, ou seja, em uma arte que aspire suscitar ações determinadas, concretas” (1973, p. 58). Nesse sentido, o cinema, a fotografia, a arte gráfica, os cartazes, as propagandas, manifestos, textos e a proposta factográfica adquiriam, segundo ele, um caráter pedagógico 59 e de continuidade, condizentes com a realidade e com as pretensões produtivistas. Deste modo, apesar da proposta construtivista-produtivista não ter conseguido se consolidar integralmente na prática, ela buscou estabelecer nexo com as demandas histórico-sociais e dialogar concretamente com a sua realidade. De acordo com Buchloh:

Precisamente Lodder sustenta que Rodchenko e Lissitzky co meçaram a emp regar a representação fotográfica e icônica e abandonaram a sintaxe radical da estética da montagem co mo resultado dessas mudanças e com o objetivo de competir com as forças reacionárias. Contudo, o problema dessa análise – como a de todos os que rechaçam a última etapa de Rodchenko e Lissitzky – é que aplica critérios que se desenvolveram originalmente no marco da arte moderna a atividades artísticas que se desassociaram deliberada e sistematicamente de dito contexto a fim de pavimentar u ma produção estética que responderia às necessidades de uma sociedade coletivizada recémindustrializada. Dado que, como vimos, estas condições requeriam p rocedimentos produtivos e modos de apresentação e distribuição radicalmente diferentes, qualquer crítica ou avaliação histórica terá que desenvolver seus elementos de juízo a partir das intenções e condições reais que se encontravam na origem dessas práticas. (1984, p. 139)

Assim, o que para Lodder representaria um fracasso, uma redução dos objetivos almejados, para os construtivistas-produtivistas talvez tenha sido uma opção condizente com a

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Zalambani afirmou que, segundo o esquema arvatoviano, o produtivismo teria como “[...] sua tarefa a produção e a construção não apenas de objetos, mas, sobretudo de comportamentos e corpos”. Cf. ZA LAMBA NI, M., op. cit., p. 88. (t radução nossa) 195 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


demanda social e a realidade em que se encontravam 60 . 4. A Fotomontage m, Fotografia e factografia como alternativas... Frente à decomposição da pintura, à crise da faktura e ao fracasso nas tentativas de inserção nas fábricas, os artistas que eram ligados à LEF focaram sua produção artística nas artes gráficas, no cinema, em periódicos, na fotografia e na factografia 61 . Em síntese, guiados pela proposta produtivista de revolução dos processos de produção da vida, tais artistas teriam realizado o percurso do faktura à factografia. A opção pela fotografia, por parte dos artistas ligados à LEF, teria se dado, então, devido a uma reestruturação do projeto político-artístico desta vanguarda, mediante as inflexões no campo político e econômico, e a perda de espaço no campo artístico. Segundo Arvatov, a “arte produtivista se tornará, pouco a pouco, uma realidade” (1973, p. 75, tradução nossa). Mas para que isso realmente possa ocorrer, seria necessária a execução dos “estágios intermediários” da proposta produtivista, os quais deveriam ser mediados pela a “encomenda social” e pelas possibilidades produtivas. No terreno das

, os artistas ligados a LEF, teriam se chocado “com o atraso

industrial e com a debilidade financeira do estado” (ARVATOV, 1973b, p. 119, tradução nossa). Entretanto, teria havido conquistas, exatamente nas atividades que requerem menos rec

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Nessa perspectiva, cabe ressaltar a afirmação materialista de Rodchenko: “As mes mas leis de „economia‟ e limitação de materiais devem reger a produção de um barco, u ma casa, u m poema ou u m par de botas”. Cf . RODCHENKO, A. Apud: LISSITZSKI, El. i deological superstructures, en Neues Bauen in der Welt: Russland. 1930. p. 371, Apud: ADES, D. Fotomontaje. Barcelona: Gustavo Gili, 2002. p. 71. 61 Caso similar ao do construtivismo e do produtivismo, os estudos sobre a proposta factográfica não são consensuais. Entretanto, sabe-se que o seu surgimento estaria relacionado ao debate da LEF. No liv ro La morte del roman zo: dall‟avanguarda al realismo socialista, Zalamban i (2003) estuda a factografia (Grafia dos fatos), e afirma que essa teria surgido na literatura, fruto do diálogo entre as teorias pro dutivistas, formalistas, as discussões cinematográficas, e aquelas realizadas nos círculos da Proletkul‟t. De acordo co m a autora, a factografia assinalaria um mo mento de radicalização da própria literatura (u ma ruptura, nestes termos, com a estrutura ficc ional do romance) em busca de uma maio r inserção na realidade. Na factografia gêneros literários secundários, como diários, biografias e reportagens, ganham destaque. Pois, segundo os teóricos da factografia, tais gêneros possuem enredos, tramas reais; não trazem a h istória de grandes heróis, grandes romances, mas possibilitam o conhecimento da realidade cotidiana. Cf. ZA LAMBA NI, Maria. La morte del romanzo: Dall‟avanguardia al “realis mo socialista”. Ro ma: Carocci Editore, 2003. 196 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


nicas (Popova, os Stemberg, Stepanova, Shestakov, entre outros), na poligrafia (Lavinski, Rodchenko, entre outros), onde se criou todo um estilo de montagem” (idem, ibidem). Nestes termos, em 1927 tem-se uma espécie de consolidação da fotografia, da fotomontagem, do cinema e da reportagem (factografia) como instrumentos de luta contra a “estética dominante” e, contemporaneamente, enquanto “estágios intermediaios” da proposta produtivista. A fotografia e o cinema, segundo Arvatov, corresponderiam a “aqueles tipos de arte figurativa utilitária que são de massa, exequíveis por meio da técnica mecânica e estreitamente conectados com a vida material dos operários industriais urbanos” (idem, p. 93). No ensaio From faktura to factography, Buchloh propõe a tese segundo a qual a noção construtivista de faktura das vanguardas tenha sido sucedida pela de factografia, desenvolvida pelo grupo LEF. Para o autor, a experiência fotográfica está no cerne da proposta factográfica. Assim, na perspectiva factográfica, de registro primário dos fatos, encontrar-se-ia a força da “condição indiciária” (indexical 62 ) da imagem fotográfica – ou seja, a possibilidade mesma de se supor, na experiência da fotografia, a relação direta com a realidade, sem interferência ou mediação 63 . Leah Dickerman, em The Fact and the Photography

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Buchloh, em seu texto, explica porque toma o conceito de “índice” do estudo sobre a obra de Duchamp, desenvolvido por Rosalind Krauss em Notes on the Index, publicado na revista October 3 e 4 (verão e outono de 1977). Na mes ma nota, Buchloh faz, também, u ma rápida referência a Pei rce (1839-1914). Cf. BUCHLOH, Benjamin H. D., Fro m Faktura to Factography. October 30. Camb ridge: MA, MIT Presse. Autumn, 1984. p. 82-119. p.124. Peirce, ao examinar a relação entre o signo e seu objeto, propõe a divisão daquele em três espécies: ícone, símbolo e índice. No sentido implicado pela assertiva de Buchloh, o índice, segundo a divisão proposta por Peirce, diria respeito à representação imed iata ou por contigüidade física do signo com o seu referente: “Chamo de índice o signo que significa seu objeto somente em virtude do fato de que está realmente em conexão co m ele”. Cf. P EIRCE, C.S. Collected papers. Cambridge: (Mass.) Hsrvard University Press. 8 vols., de 1931 a 1958, (3.361). Apud: DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios . Tradução Marina Appenzeller. ed. 12. Camp inas: Papirus, 2009. p.63. Conferir também, NETTO, J.T.C. Semiótica, i nformação e comunicação. São Paulo : Editora Perspectiva, 1983. p.58. 63 A afirmação de Buchloh, com base em Peirce, deve ser precisada para não suscitar contra -sensos. Assim, a relação com a realidade, dita sem interferência ou mediação, refere -se à dimensão físico-química presente no processo de apreensão da luz e fixação da imagem no filme, que imp lica contigüidade física co m elementos da realidade. 197 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


, a Novyi Lef [da LEF]” (idem, ibidem). Isso é, a nova enfase dada a arte gráfica, a fotografia, o cinema e a factografia. 4.1. ...um capítulo a parte. Frente à Revolução Bolchevique (1917), as vanguardas artísticas soviéticas foram levadas a um processo de revolução da própria idéia de arte, processo esse que gerou debates acirrados e colocou em questão a própria distinção tradicional entre arte e vida. Foi nessa atmosfera revolucionária que as vanguardas construtivistas e produtivistas emergiram. Num segundo momento, diante da crescente censura por parte das forças stalinistas em ascensão, as vanguardas construtivistas e produtivistas se uniram a outros setores de vanguarda, organizando a “Frente de Esquerda das Arte” – LEF (1922-1928). A Frente, por meio das revistas Lef (1923-1926) e Novyi Lef (1927-1928), veiculava teorias, produções e debates. Frente à demanda de uma arte a serviço da construção da vida, surgem, sintetizadas na proposta factográfica, a ênfase na fotomontagem, na fotografia, na montagem cinematográfica e na literatura dos fatos. Entre 1926 e 1928, tem-se no interior da LEF um processo intenso de discussão e trocas acerca das concepções e propostas de uma fotografia, um cinema e uma literature revolucionários. Isso é, mediados pela “encomenda social”, pelo contexto social em questão e pelo paradgma produtivista 64 . , nem a fo me. Estava cheio de ideias e projetos. Era feliz co m tantas possibilidades e perspectivas. Literalmente, voava. Mas... os tempos mudam. : publicidade, teatro, cinema etc. [...]

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Cf. FIGUEIREDO, C., op. cit. 198 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Realizou foto montagens, foi o primeiro a introduzi-las na URSS [sic]. Co m elas se pode fazer mu itos experimentos com o material real. [...] , novas perspectivas, novos pontos de vista, novas formas. E . […] Mas ali... o voo foi cu rto. (RODCHENKO, 2009, p. 162-165, tradução nossa)

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ATRIBUIÇÃO CONFIRMADA A pintura do forro da nave dos terceiros do Carmo em Mogi das Cruzes (SP) Danielle Manoel dos Santos Pereira 1

Resumo: A Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo em Mogi das Cruzes (SP) é caso excepcional na história da arte colonial paulista, em razão das belíssimas pinturas existentes no forro da igreja, a construção abriga três trabalhos de grande valor pictórico localizados no forro da nave, no forro da capela-mor e no forro do vestíbulo da sacristia. A excepcionalidade destas obras deve-se ao fato de não haver na pintura colonial paulista trabalhos similares a estes, sobretudo as pinturas do forro da nave e da capela-mor. As informações contidas nas pesquisas contemporâneas apresentam atribuições para as pinturas do forro da nave e da capela-mor, mas não há a confirmação de tais atribuições, nem dos documentos comprobatórios das indicações realizadas. Em face da inexistência de assinatura nas obras recorreu-se à investigação nos arquivos e documentos pertencentes à Ordem, pois dentre os documentos de Irmandades e Ordens Terceiras, são os “Livros de Receitas e Despesas” quando ainda existem, documentos de profundo interesse para pesquisadores, por ser possível identificar todos os pagamentos efetuados, especificações do motivo para a realização de tais pagamentos e quem os recebia, na parte reservada às despesas. Foram analisados os poucos “livros” que restam da Ordem Terceira dos Carmelitas de Mogi das Cruzes, mesmo os que se julgava ineficazes para a problemática, análises criteriosas detiveram-se nas datas das atribuições que haviam sido feitas anteriormente e, entre os inúmeros dados coligidos foi possível identificar e confirmar a atribuição que havia sido feita para o pintor do forro da nave dessa igreja. Palavras-chave: Barroco. Mogi das Cruzes. Pintura. Autoria. Pintura Ilusionista.

Notas históricas: Mogi das Cruzes (SP) e a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo. O ano de 1560 é aceito por inúmeros pesquisadores como data provável em que Braz Cubas teria pisado pela primeira vez o solo mogiano e aí estabelecido pouso e, em 1561, teria fundado uma fazenda (espécie de acampamento), que mais tarde seria um arraial. Os estudiosos Emílio A. Ferreira, em Mogy das Cruzes: dados históricos e notas diversas, e Dom Duarte Leopoldo e Silva, em Notas de história eclesiástica, afiançam a proximidade do ano de 1560 com a primeira bandeira a penetrar Mogi das Cruzes, sendo essa data recorrente na maioria dos estudos existentes sobre sua fundação.

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Graduada em História pelo Centro Universitário Assunção (2007). Especialista em História da Arte pela Universidade Cruzeiro do Sul (2010). Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", na linha de pesquisa: Abordagens históricas, teóricas e culturais da arte. Bolsista FAPESP (2010-2012). Membro do grupo de pesquisa Barroco Memória Viva: da arte colonial à arte contemporânea, IA-Unesp/CNPq. e-mail: daniellemspereira@yahoo.com.br 201 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Assim como o restante do território brasileiro, Mogi das Cruzes também era habitada pelos indígenas, que foram, aos poucos, sendo expulsos de suas aldeias e dizimados. Dentre as bandeiras que aí chegaram, está a de Domingos Luís Grou, que esteve em Mogi nos anos de 1590 a 1593, com o objetivo de expulsar e apresar os índios que aí vivam. Inúmeras expedições com esse mesmo fim seriam realizadas até meados de 1607. Em 1608 foi concedida a Gaspar Vaz uma sesmaria no povoamento de Mogi. Em 8 de abril de 1611 é realizada uma petição dos moradores para elevar o povoado de Mogi a vila. E, em 1º de setembro de 1611, obteve-se a permissão para a elevação. Mogi das Cruzes desenvolveu-se como as demais vilas da Capitania de São Vicente e de outras regiões da colônia. Enquanto alguns de seus homens realizavam a busca de índios, outros faziam entradas pelo sertão em busca do ouro, contudo, mesmo diante dos fluxos e refluxos populacionais, foi “possível um desenvolvimento demográfico mais regular e a fixação definitiva de núcleos importantes de população” (Furtado, 2007, p. 124). Os mogianos tomavam parte nos inúmeros eventos ocorridos na Capitania de São Vicente, participaram inclusive das decisões nos eventos que culminariam na expulsão dos jesuítas do território brasileiro (1759), dentre outros episódios de grande valor para a história colonial paulista. No ano de 1663, segundo Dom Leopoldo (1937), ocorreu a demarcação das terras mogianas e foram assinaladas as linhas demarcatórias de fronteira entre as Vilas de São Paulo e de Mogi das Cruzes, feita com a instalação de cruzes ao longo da divisa. Embora essas divisas tenham ocasionado dúvidas quanto aos limites das vilas até meados do ano de 1679. Isaac Grinberg (1961) informa que, ainda no ano de 1663, foram expedidas ordens para construção da Casa de Câmara e Cadeia na vila e um alvará determinando que todos os terrenos que haviam sido concedidos para a edificação de residências deveriam ter iniciadas as obras, sob pena de serem os colonos destituídos do terreno, que seria concedido a outrem com interesse em levar a cabo as construções. Essa decisão deve-se à desproporção na quantidade de habitantes em relação ao diminuto número de casas existentes. A Vila de Mogi não despertou grande interesse econômico à Coroa (Ferreira, 1935) nem mesmo sofreu grande afluxo populacional como ocorreu em diversas cidades coloniais. Isso se atribui à inexistência – o volume encontrado foi considerado ínfimo – de metais e 202 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


pedras preciosas em seu solo e mesmo à ausência do pau-brasil. A cultura que predominou em Mogi foi a do algodão e a da aguardente. Sua elevação à cidade ocorreu em 13 de março de 1855. Os religiosos da Ordem do Carmo, após seu estabelecimento em São Paulo, passaram a acompanhar o avanço das bandeiras pelos sertões, o que ocasionou sua entrada na Vila de Mogi das Cruzes. A partir de 1626, pleiteou o padre Gaspar Sanches junto à Câmara Municipal a fundação de um convento para o Carmo. Isso demonstra que deveria haver frades carmelitas residindo na vila antes desse período, devido ao interesse na fundação de um convento (Grinberg, 1961). Porém, essa informação é apenas hipotética, em razão da falta de documentos comprobatórios. O que se pode afirmar diante dos documentos é que, em 1627, o padre Gaspar Sanches doa seus bens aos frades carmelitas e no ano de 1629 é dado o despacho favorável à construção do convento na vila, sendo então designados os primeiros frades para irem residir na Vila de Mogi das Cruzes: frei Manoel Pereira e frei Sebastião da Encarnação (Silva, 1937). A história dos mogianos seria desde então escrita junto à dos carmelitas, pois torna-se evidente que a penetração dos religiosos nessa região ocorreu, senão ao mesmo tempo do povoamento inicial, em data bastante próxima, porque somente 16 anos haviam se passado da ereção da vila até a primeira petição feita por frei Gaspar Sanches, conforme os documentos analisados por Ferreira (s/d), que fazem referências aos carmelitas, em meados de 1626. No ano de 1698 é anexada ao Convento do Carmo a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, que até essa época realizava seus ritos num dos altares laterais da Igreja da Ordem Primeira. Caracteriza-se essa construção, dos terceiros, como uma das mais íntegras e completas igrejas dentre as outras obras coloniais paulistas (Tirapeli, 2005). As Igrejas – Ordem Primeira e Ordem Terceira – de Nossa Senhora do Carmo em Mogi das Cruzes (SP) (FIG. 1), fazem parte de um conjunto amplo, são interligadas por um corredor interno e compartilham na fachada, sem divisões arquitetônicas, da mesma torre sineira. A Igreja da Ordem Terceira, objeto desse estudo, foi construída por volta do ano de 1698, onde estava localizado o antigo jazigo da Ordem Primeira.

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A Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo em Mogi das Cruzes (SP) é caso excepcional na história da arte colonial paulista, em razão das belíssimas pinturas existentes no forro da igreja, a construção abriga três trabalhos de grande valor pictórico localizados no forro da nave, no forro da capela-mor e no forro do vestíbulo da sacristia. A excepcionalidade destas obras deve-se ao fato de não haver na pintura colonial paulista trabalhos similares a estes, sobretudo as pinturas do forro da nave e da capela-mor.

As pinturas e a confirmação de autoria. As pinturas existentes no forro da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, em Mogi das Cruzes (SP), foram pouco pesquisadas, assim como a pintura paulista colonial; de modo geral, serão necessários empenhos diversos por parte dos pesquisadores para que um panorama artístico do período possa ser traçado. Sobretudo, após a afirmação de Percival Tirapeli (2005) a respeito de algumas obras paulistas: “A Igreja da Ordem Terceira de Mogi das Cruzes, a Capela da Ordem Terceira de São Paulo e a Igreja do Carmo na cidade de Itu formam um trio de templos com as mais belas pinturas paulistas” (Tirapeli, 2005, p. 24). Contudo, esta empreitada não objetiva alcançar esse panorama, porém almeja ser uma parte importante para que o todo seja feito; isso se dará a partir do momento em que algumas questões relativas às pinturas da Igreja do Carmo dos terceiros forem alcançadas. Dentre as dúvidas que tais obras despertam nos pesquisadores, é a aproximação com as pinturas executadas nas Igrejas da “rota do Serro” – região de Diamantina e Serro no meio norte mineiro – que direcionaram inicialmente a presente pesquisa, pois segundo Myriam Salomão e Percival Tirapeli (2005, p. 114-115) “a emoção da pintura mineira está nos tetos carmelitas da igreja de Mogi das Cruzes como fato consumado, confirmando o fluxo da mãode-obra dos artífices e as encomendas segundo a solicitação da Igreja”. Contudo, para que fosse possível analisar as possíveis semelhanças entre as obras paulistas e mineiras, outro aspecto ainda mais relevante carecia de esclarecimentos, as autorias destas obras, sendo assim, antes das comparações e análises estilísticas os esforços primários deveriam conduzir a encontrar o nome dos artistas responsáveis por tais trabalhos.

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Auguste de Saint-Hilaire (1976) chamou atenção quando declarou que os paulistas do período colonial não eram adeptos dos registros, de salvaguardar a história para o porvir; eram os “[...] paulistas, como os gregos dos tempos heróicos, viviam à cata de aventuras, enfrentavam todos os perigos e guerreavam com valentia, mas não deixavam nada escrito [...]” (SAINT-HILAIRE, 1976, p.36). Um dos maiores obstáculos colocados a esta pesquisa foi encontrar documentos de uma sociedade avessa a produzí-los, sobretudo quando indicações apontavam para a inexistência dos mesmos. Ainda diante das negativas, os primeiros levantamentos avançaram e minimamente são expostos com informações mais precisas dos documentos inéditos que tornar-se-ão conhecidos a respeito do executor da pintura do forro da nave mogiana. Nosso interesse, portanto, volta-se para a pintura do forro da nave. Em minucioso levantamento nos esparsos livros da Irmandade do Carmo, nas pesquisas de Jurandyr Ferraz de Campos (2004) e nos apontamentos do frei carmelita Timotheo van den Broek (s/ data), onde se indicava o nome do pintor e a datação da obra2 empenhou-se esta pesquisa com maior afinco, para possivelmente encontrar os dados citados pelos pesquisadores. Dentre os documentos coligidos foi encontrado no Livro: Despesas da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Mogi das Cruzes - 1768 a 1818, o mesmo utilizado para solucionar questões relativas à pintura do forro da capela-mor, um lançamento em estado precário, cuja grafia está muito clara, mas ainda resiste para elucidar a autoria da pintura do forro da nave.

2

O pesquisador mogiano Campos (2004) também teve acesso a esse documento conforme menciona, contudo ele indica que o texto datilografado tenha sido escrito pelo frei carmelita Timotheo van den Broek. Discordamos desse posicionamento, pois esse texto está datado de 2 de nov. 1904 e trata-se de um relatório elaborado pelo prior do Carmo, Francisco Pinheiro Franco, conforme a informação ao final do texto. Logo, cremos que o frei carmelita realizou desmesurada pesquisa para os levantamentos a respeito da história mogiana e carmelita, porém não havendo nenhuma referência a ele nas páginas desse manuscrito, seguiremos o que consta no documento e, embora não haja assinatura, optaremos por utilizá-lo atribuindo-o ao prior da Ordem Terceira, Francisco Pinheiro Franco (prior da Ordem de 1900 a 1904). Campos sugere que os lançamentos encontrados fossem lacônicos, portanto, não acrescia maiores dados ao problema da autoria. Como o autor não apresentou referências específicas dos documentos aos quais teve acesso em seu estudo, tal como a numeração das páginas onde estariam esses lançamentos, fez-se necessário para a pesquisa a consulta “in loco” da documentação referente à Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes. 205 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Pôde-se apurar nas páginas encontradas que Manoel do Sacramento aparece em Lançamento do ano de 1801-1802, recebendo importância paga; sabe-se que era pintor devido à menção que lhe é feita, porém não há nenhuma especificação do serviço realizado. Contudo, há para o mesmo ano outro lançamento de despesas com os materiais para a pintura do forro do corpo da igreja e nota-se que o mesmo esquema de pagamentos foi feito ao pintor da capela-mor (não era usual aos terceiros especificar com riqueza de detalhes o serviço pelo qual pagavam, a esses bastava que informações essenciais fossem incluídas no livro). É possível afirmar que essa pintura fosse referente ao corpo da igreja e não à capelamor por diversas razões, uma delas é o fato da capela não estar completamente pronta para receber pintura no forro, pois no ano de 1802 fora feito lançamento de “31 táboas para o forro” e um lançamento para a “caiação da capella”. Não sendo coerente, portanto, que tal lançamento tratasse do forro da capela, sobretudo porque os pagamentos foram para comprar tintas para “pintar o forro do corpo da igreja”. Segue abaixo transcrição dos trechos referentes à pintura do forro da nave (FIG. 2):

Transcrição da página 132 - Despesas de 1802: “ Dro. que sepagou ao pintor M. doSacramento. ro

a

a

D . p . Compra das tintas p . o forro do Corpo da Igreja

103$000 34$000”

Embora a leitura dos trechos por meio da cópia reprográfica seja custosa, realizá-la in loco, com o auxílio de alguns instrumentos (lupa, luz direcional com ampliação dos trechos) é mais fácil. Mas, ainda assim, optou-se pela inclusão ao estudo por ser o único documento comprobatório que lança luz à pintura. A pintura ilusionista de grandes dimensões (FIG. 3) ocupa a totalidade do forro da nave, inicia acima do coro e finda no arco-cruzeiro. Apresenta nas laterais duplas de bispos e cardeais do Carmo e, entre as colunas fingidas, duas duplas de santos e santas carmelitas, totalizando oito imagens de cada lado. Essas autoridades foram inseridas no muro-parapeito que circunda toda a nave, logo acima da cimalha que acompanha a arquitetura da igreja e

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foram posicionadas entre as colunas tripartites que sustentam a visão central de Santa Teresa em êxtase sobre nuvens com anjos e querubins (FIG. 4). Para uma análise mais profunda dessa belíssima pintura opta-se recorrer ao exame de Salomão e Tirapeli (2005) e segundo eles:

A pintura ocupa todo o espaço da nave, criando uma ilusão de ordens arquitetônicas com pedestais e pares de colunas tripartites que se erguem sobre as cimalhas transversais. Nos cantos das abóbadas de berço, do forro da nave e do falso parapeito, vêem-se quatro saliências aparentado nichos: um par sobre o arcocruzeiro e o outro sobre o coro. Os pedestais dos arcos extremos se articulam em volumes reentrantes, recebendo os elementos sustentantes que se desenvolvem em S sob o arranco do arco e que apóiam os concheados laterais da moldura do quadro da visão. Os parapeitos entalados entre os elementos sustentantes apresentam-se curvos e vazios, com buquês de flores ao centro. [...] A cercadura da visão tem o aspecto de alongada elipse e meio arco nas extremidades, com reentrâncias mais acentuadas na região do entablamento das colunatas. Santa Teresa, a doutora carmelita descalça da Igreja, está em êxtase sobre nuvens onde surgem cabeças de anjos [... ](Salomão; Tirapeli, 2005, 110-13).

Há nesse estudo menção quanto à atribuição da obra a Manoel do Sacramento, sem contudo terem confirmado a autoria, que é agora afirmada ao artista por meio do documento informado acima, sendo assim, não cabe mais dúvidas quanto a essa execução. Embora Salomão e Tirapeli (2005) tenham realizado uma das análises mais minuciosas que há sobre a pintura do forro da nave, outras pesquisas careciam ser realizadas no intento de identificar as autoridades carmelitas, algo que não fora efetivado na explanação criteriosa acerca da pintura. Ao analisar os atributos dos pares de santos e santas representados na pintura, pode-se por meio do levantamento iconográfico 3 identificar as duplas internas, embora o mesmo não tenha sido possível com as duplas de papas e bispos das laterais externas. Contudo não é objeto da pesquisa realizar a análise iconográfica das autoridades representadas na obra, assim sendo, não se procedeu a um maior detalhamento dos atributos e elementos que as compõem, somente buscou-se a identidade das autoridades religiosas representadas. Ao lado esquerdo (do coro para o arco-cruzeiro), na primeira dupla interna de santos, foram representados: São Simão Stock e São Pedro Tomaz; logo acima, São João da Cruz e

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Santo Ângelo da Sicília. Do lado direito, na mesma ordem, Santa Maria Madalena de Pazzi e Santa Ângela da Bohemia; logo acima, Santa Maria da Encarnação e Santa Francisca de Ambroise. Da visão central pode-se apurar que é uma das cenas mais recorrentes na iconografia carmelitana, embora não haja nenhum anjo à flechar-lhe o peito, a Santa abre e eleva suas mãos em atitude extasiada, sobre as nuvens rodeada por anjos e querubins. Quanto aos grupos de santos apresentados, grande parte dos que aparecem nessa obra foram identificados por meio de seus atributos, conforme visto anteriormente, como exemplo São João da Cruz que está abraçado a uma cruz e segura na outra mão uma caveira. Para que seja possível perceber a dificuldade na identificação dos santos podemos fazer uso da análise elaborada por Wanda Martins Lorêdo (2002), quando trata dos atributos de São João da Cruz, os quais podem variavelmente ser portados por outro santo, ainda que em determinada postura ou determinado lado. São João da Cruz ostenta o título de doutor da Igreja, e como atributos, além dos já descritos anteriormente pode ser representado com os seguintes atributos: “cruz ou crucifixo na mão, abraçado a ela ou diante dela; caveira ou crânio. Atributo como Doutor: pena e/ou livro, com a inscrição: „Pati ET contemnis‟ou „Padecer por vós e ser depreciado‟. (Lorêdo, 2002, p. 123) Além das pinturas do forro da nave e da capela-mor, há ainda na Igreja dos Terceiros do Carmo outra pintura, trata-se da pintura do vestíbulo da sacristia. Essa obra que aparenta ter sido aposta à construção do espaço, conforme a análise realizada pelo restaurador Júlio Eduardo Corrêia Dias de Moraes (2008), quando afiança que o taboado que cerca a obra não pertence a ela e não possui nenhuma camada pictórica; a pintura aí inserida está completa, não se percebe nenhuma mutilação, logo as taboas que foram inseridas no forro são de sustentação da obra, no espaço que possivelmente era maior do que a pintura que pode ter sido trazida de outro lugar. Entretanto, as pinturas do vestíbulo e da capela-mor, não são objeto da presente análise, portanto não foram apresentadas na pesquisa. 3

O levantamento iconográfico das duplas de santos e santas da pintura do forro da nave foi realizado pela autora em conjunto com a pesquisadora Myriam Salomão, no ano de 2012. 208 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Por fim, resta confirmar em definitivo a autoria da pintura do forro da nave da Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Mogi das Cruzes ao pintor Manoel do Sacramento. A confirmação da autoria dessa obra não altera em nada o seu valor, mas contribui em grande medida para que se possa verificar a origem do pintor e, assim, possibilitar que outros estudos possam ser realizados na busca pela origem desse artista, bem como de outras obras que o mesmo possa ter executado, pois até o presente momento essa é a única pintura realizada por Manoel do Sacramento de que temos conhecimento.

FIGURAS:

FIGURA 1: Igrejas da Ordem Terceira (esq.) e Primeira de Nossa Senhora do Carmo (dir.). Mogi das Cruzes. SP. FONTE: Arquivo do Carmo de Santo Elias, c. 1953.

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FIGURA 2 Documento do ano de 1801 para 1802 – Livro de Receitas e Despesas da O.T. Mogi das Cruzes, página 132. FONTE: Arquivo do Carmo de Santos Elias. Foto: Leonardo Meijon. 2011 . 210 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 3: Santa Teresa em êxtase. c. 1802. Têmpera sobre madeira. Autoria: Manoel do Sacramento Pintura do Forro da nave de Nossa Senhora do Carmo. Mogi das Cruzes, SP. FONTE: Acervo Pessoal, 2011

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FIGURA 4: “Detalhe” Santa Teresa em êxtase. c. 1802. Têmpera sobre madeira. Autoria: Manoel do Sacramento. Pintura do Forro da nave de Nossa Senhora do Carmo. Mogi das Cruzes, SP. FONTE: Acervo Pessoal, 2011

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CONCEPÇÕES DE CORPO NA ESTRUTURAÇÃO DO SELF DE LYGIA CLARK Eduardo A. A. Almeida 1 Eliane D. Castro 2 Resumo: Sabe-se que a Estruturação do Self (1974 – 1988) não é uma obra isolada, mas fruto de um intenso percurso artístico e totalmente influenciada por ele. Para investigar as diversas ideias de corpo contidas naquela proposta, localizada nos limites entre arte e clínica, convém observar trabalhos anteriores, em especial após a criação dos Bichos (início da década de 1960, aproximadamente), com objetivo de verificar a transformação e o aprofundamento da pesquisa de Lygia Clark (1920 – 1988) a respeito do corpo humano. Isso é possível por meio da análise de escritos da própria artista, além de comentários críticos produzidos por autores que acompanharam de perto sua produção. Com destaque para os textos reunidos no catálogo Lygia Clark, editado pela FUNARTE em 1980, ainda hoje uma das principais referências acerca da sua obra. Nele, a trajetória de Lygia Clark é resumida fase a fase com palavras suas e complementada por Mário Pedrosa, Ferreira Gullar e Suely Rolnik. Esta última, em especial, foi amiga e colaboradora da artista, produzindo uma série de estudos sobre suas experiências com o corpo e com a subjetividade – textos que também auxiliam esta pesquisa. A busca de Lygia Clark por um contato cada vez mais intenso com o corpo do outro – que foi de espectador a participador e, por fim, tornou-se cliente/paciente de uma proposta artística sistematizada na forma de terapia – nos ajuda a pensar com mais propriedade algo que é muito próprio do contexto artístico atual e, principalmente, d a história da arte brasileira: a participação do público na experiência artística. O presente artigo, portanto, procura estudar os diversos modos de aproximação com o corpo na Estruturação do Self e, se possível, as concepções de corpo presentes no trabalho realizado nesta proposição derradeira com a qual a artista trabalhou durante catorze anos, verificando como ela os entendia, os objetivos que visava e a problemática envolvid a, de modo a compreender melhor esses corpos tanto naquele contexto quanto nas ressonâncias que produziu no pensamento contemporâneo. Palavras-chave: Arte contemporânea brasileira. Lygia Clark. Estruturação do Self. Corpo. Arte e clínica.

Concepções de corpo na estruturação do self de Lygia Clark Foi com a criação dos Bichos, a partir de 1960, que o corpo do espectador ganhou lugar de destaque na obra de Lygia Clark (1930-1988), deixando a mera observação de lado para participar física e ativamente. Este lugar merecerá cada vez mais atenção, até que o corpo se torne o grande protagonista das experiências sensíveis da artista, na incorporação dos objetos ocorrida por volta de 1969, com a criação de O corpo é a casa. Foram descobertas reveladoras, mergulhos profundos no corpo físico e metafísico, explorações inéditas, um tanto solitárias, frutos de um intenso trabalho de pesquisa, às vezes recebido com sarcasmo pela 1 2

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crítica e estranhamento pelo público. O interesse de Lygia Clark pelo corpo humano compartilhava do projeto modernista de fundir arte e vida 3 , mas não se limitava a ele 4 . Muito pelo contrário: a artista avançou limites e expandiu o campo da arte na direção de diversas matas virgens, como a clínica, por exemplo, no caso do método terapêutico sistematizado em 1976, com o qual ela trabalhou por catorze anos, até sua morte. O corpo, na obra de Lygia Clark, foi intensamente pesquisado em aproximadamente três décadas de produção, durante as quais a maneira como era compreendido muitas vezes corria em paralelo com a medicina, a educação física, a biologia ou a própria arte contemporânea; em outras ocasiões, se desviava por completo rumo a novos horizontes. Corpos mutantes, que se construíam junto com a obra, que se modificavam ao longo das propostas, fagocitando possibilidades e significados, até finalmente serem percebidos como canal de estruturação psíquica. Não se trata de performance, body art ou qualquer outra categoria difundida, mas de uma compreensão e um uso do corpo muito específicos, que encontram semelhanças em outras produções brasileiras da época, porém sem perder sua singularidade. Produções como os Parangolés, de Helio Oiticica, que também solicitavam o corpo do público para acontecer, embora estivessem voltados ao lúdico e social. Ou como Divisor, de Lygia Pape, que unia diversos corpos em um movimento claramente político, e Roda dos Prazeres, da mesma artista, que lidava com a experimentação literal da cor por outros sentidos além do visual. Helio Oiticica, Lygia Pape e Lygia Clark eram contemporâneos, amigos e parceiros de trabalho. Havia outros, ainda, como Artur Barrio, Cildo Meirelles e Paulo Bruscky, só para citar alguns. De certo modo, todos tiveram trabalhos relacionados ao corpo humano, em especial no que diz respeito à sensorialidade e à política. Entretanto, Lygia Clark trilhou um caminho muito especial, que foi buscar no corpo a ligação do homem com o seu eu interior. Uma obra corajosamente exploradora, criando aproximações, distanciamentos, relações e conflitos; em suma, avançando barreiras e vencendo paradigmas. Suely Rolnik, psicóloga, pesquisadora de arte e colaboradora no trabalho de Lygia Clark, nos ajuda a compreender isso ao escrever que:

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Lyg ia CLARK. Lygia Clark , 1980: 36. A pesquisadora Beatriz Scig liano Carneiro concorda com a ideia de que as experiências art ísticas de Lygia Clark, quando se voltam à terapia, ultrapassam a simp les incorporação da arte na vida. Para ela, a proposta "emergia efetivamente do vivido, era vida. (...) Sua at ividade terapêutica procede das experiências mais intensas de sua arte e da sua vida" (Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Helio Oiticica, vida como arte, 2004: 62). 4

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Alteridade e corporeidade estão no coração de cada um dos dispositivos criados pela artista. Convém, no entanto, sublinhar que nada nestes trabalhos de Lygia Clark é passível de redução ao corpo concreto, empírico ou orgânico. Nada tampouco que seja identificável ao corpo visado pela maioria das "experiências sensoriais" ou das práticas de "expressão corporal" que se desenvolveram a partir das décadas de 1960 e 70 – este é apenas o contexto em que a questão do corpo é convocada. Mas o trabalho da artista se situa a igual distância das propostas contemporâneas que frequentemente recorrem ao corpo como suporte de um narcisismo onanista e rançoso, a meio caminho entre um polo masoquista (entregue ao autoflagelo culposo) e um polo exibicionista (que fetichiza o corpo voluptuosamente para melhor oferecê- lo como espetáculo, mas também – e de preferência – como mercadoria). 5

Assim, para analisar com mais propriedade o corpo concebido na Estruturação do Self, parece sensato estudá- lo também em obras anteriores, de modo a compreender o percurso que seguiu e que tanto o transformou. Corpo que está no centro das preocupações da artista 6 e revela sempre uma nova faceta, um novo caminho de pesquisa, uma outra ideia que ousa tentar defini- lo para, no final, comprovar que seu ponto de vista não enxerga tão longe quanto supunha inicialmente. Trata-se de um corpo concebido de maneiras diversas ou, talvez, de muitos corpos contidos num único vocábulo. Porque esse corpo é, ao mesmo tempo, um só e muitos outros, tão múltiplo e singular quanto a trajetória de Lygia Clark na arte contemporânea.

O corpo do Bicho, corpo-a-corpo As esculturas batizadas de Bichos eram, em sua maioria, chapas de metal unidas por articulações móveis, espécie de dobradiças. Planos herdados da fase neoconcreta da artista que ganhavam nova dimensão; abstratos e múltiplos, não se pautavam na figuração, e suas 5

Afinal, o que há por trás da coisa corporal?, s/d: 1. Em especial, desde a morte do plano, decretada em 1960, em que Lygia Clark escreve: "Demo lir o plano como suporte da expressão é tomar consciência da unidade como u m todo vivo e orgânico" (Lygia Clark , 1980: 13). 6

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formas se modificavam quando manipuladas pelas pessoas. "Ao descobrir o Bicho, Lygia definiu com nitidez seu interesse na relação entre quem frui arte e o objeto de arte e não na obra em si ou numa simples reação do espectador" 7 , explica Beatriz Carneiro em livro que esmiúça as obras de Lygia Clark e Helio Oiticica. Se havia algo de figurativo naqueles trabalhos, podemos dizer que era apenas o nome – porém, ao invés de reconhecer determinada criação da natureza, ele apenas sugeria um tipo de interação possível. Por sua vez, já não fazia mais sentido chamar o público de espectador – a participação ativa e física, não apenas contemplativa, o colocava no papel de participante, como a própria Lygia preferia dizer. Os Bichos possuíam características orgânicas. "Um organismo vivo, uma obra essencialmente ativa. (...) É impossível entre nós e o Bicho uma atitude de passividade, nem de nossa parte nem da parte dele. O que se produziu é uma espécie de corpo-a-corpo entre duas entidades vivas" 8 , diz Lygia. Porque o corpo do Bicho exige a presença do corpo do participante; o toque, a curiosidade e a vontade criativa de quem se propõe a experimentá- lo. Sua organicidade, em parte, se faz pela relação efetiva que proporciona. O corpo do homem participa da obra porque a obra exige, porque chama atenção para ele. Os Bichos sugerem que o participante perceba a obra e também o seu próprio corpo. É a primeira vez que o público interage tanto intelectualmente quanto física e afetivamente da produção de Lygia. Sim, o plano ganha terceira dimensão em diversos outros sentidos além do físico-concreto, e suas possibilidades se ampliam. É como se os quadros geométricos da fase neoconcreta da artista não apenas deixassem a parede para ganhar profundidade, mas para ganhar vida num corpo de metal, como narra Beatriz Carneiro: "Saiu do retângulo, pulou da parede e ampliou a inventividade do espectador. Caberia a cada pessoa, individualmente, a sensação de mover triângulos, semicírculos e retângulos, feitos em metal, em torno de eixos "espinhas dorsais", sentindo o peso das lâminas, a resistência a determinados movimentos, escutando o ranger das dobradiças e observando visualmente o desdobrar daqueles seres construídos com tanto rigor" 9 . O corpo do Bicho é também o corpo do homem, percebido através dos cinco sentidos, trazido à tona para reflexão, para ser conhecido e reconhecido como elemento fundamental da problemática contemporânea. Sua existência se produz no ato – o ato criador da prática 7

Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Helio Oiticica, vida como arte, 2004: 78. Lygia Clark , 1980: 17. 9 Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Helio Oiticica, vida como arte, 2004: 77. 8

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artística – praticado pelo homem, pela vontade manifestada fisicamente por meio de músculos e ferramentas biológicas de apreensão do mundo. A apropriação da ideia de ato criador – que havia sido formulada como teoria por Marcel Duchamp em 1957 10 e aparecia com frequência cada vez maior nas produções posteriores – foi um marco importante também na obra de Lygia Clark. Isso ficará mais evidente em 1964, com a proposição denominada Caminhando, que consistia numa fita de Moebius sendo percorrida com uma tesoura – o participante a cortava no sentido do comprimento e traçava, assim, seu caminho naquela estrada de papel, sem saber muito bem aonde chegaria. Ali, "a noção de escolha é decisiva. O único sentido dessa experiência reside no ato de fazê- la. A obra é o seu ato" 11 . Da mesma maneira como acontecia com os Bichos, Caminhando só poderia ser realizada na presença física do participante – é ele quem produz efetivamente o experimento artístico. Não se trata apenas de uma percepção do corpo, mas também das escolhas que esse corpo faz, junto com o pensamento. A obra se produz na prática, assim como a consciência de todo o resto. Para Lygia, "Caminhando é apenas uma potencialidade. Vocês e ele formarão uma realidade única, total, existencial. Nenhuma separação entre sujeito-objeto. É um corpoa-corpo, uma fusão. (...) Na obra sendo ato de fazer a obra, você e ela tornam-se totalmente indissociáveis"12 . A descoberta do corpo pelo participante avança até as atitudes que ele protagoniza. Tudo possui um caráter reflexivo, e o aspecto físico que integra a obra de Lygia ruma para o metafísico. Pois "não se trata da participação pela participação, nem da agressão pela agressão, mas que o participante dê um sentido a seu gesto e que seu ato seja nutrido de um

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O ato criador, 2004, se originou num trabalho apresentado por Marcel Duchamp na Federação Americana de Artes, nos Estados Unidos, em abril daquele ano. Entre as ideias contidas ali, vale destacar que, segundo o autor, no ato criador, a intenção das obras passa à realização por u ma cadeia de reações totalmente subjetivas. Em outras palavras, o resultado contém algo intencionado pelo artista, porém não efetivado no público, assim co mo algo percebido por este, porém não intencionado por aquele. Duchamp chamou essa diferença de "coeficiente artístico". Ela pressupõe a participação ativa do espectador, na forma de contribuição criativa ou coautoria, de modo que o ato criador não é realizado pelo artista sozinho. A partir dali, o público da arte, que já vinha recebendo certa atenção na concepção das obras, passa a contar com u ma t eoria que defende sua participação criativa, a ponto de se tornar foco da maio ria das intenções contemporâneas. Na obra de Lygia Clark, por sua vez, o público participa em outro nível, não previsto por Duchamp: ao invés da contribuição simples mente intelectual, ele concede o próprio corpo, nu ma participação também observada pelo aspecto físico. 11 Lyg ia CLARK. Lygia Clark , 1980: 26. 12 IBID. 219 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


pensamento" 13 , explica. Enquanto isso, "o artista se dissolve no mundo. Seu espírito se funde no coletivo"14 . Em outras palavras, o gesto não se basta em si mesmo – seu objetivo é proporcionar a construção de um pensamento. É uma obra literalmente reflexiva, no sentido de produzir um reflexo, uma reação, um caminho de volta. Primeiro, da retina para o corpo, ou seja, da simples contemplação à interação ampliada pelo aspecto físico, orgânico, biológico. Depois, da percepção do próprio corpo para a introspecção, ou seja, para a busca de uma interioridade individual, para um retorno ao si próprio, seja intelectual e/ou emotivo. A artista, por sua vez, deixa de ser uma produtora-criadora para se afirmar como propositora. É importante chamar atenção para essa ideia de Lygia se dissolver no mundo, abrindo mão de sua corporeidade em busca de outra forma existencial; vamos retomá- la adiante. Por enquanto, basta dizer que ela perde sua "aura", como já havia indicado o filósofo Walter Benjamin, e passa a compartilhar sua posição de toda-poderosa com o público, dividindo a responsabilidade sobre a obra num regime colaborativo, na qual suas intenções são praticadas pelos participantes – e a efetivação da proposta somente é possível dessa maneira. A ideia de gênio criativo e singular se esvai. Enquanto sua materialidade se dissolve, a do participante agrega um caráter metafísico: pensamento, emoção, experiência intelectual objetiva e subjetiva. A concepção de corpo se amplia para outros planos, expande-se para muito além da carne. Passa a existir o corpo interior, subjetivo, micropolítico. Ao mesmo tempo, nota-se a presença de um corpo compartilhado coletivamente, no âmbito da macropolítica, visto e posto no mundo. Naquele mesmo mundo que agora se confunde com a artista, que ela habita e constitui; o espaço de convivência da arte contemporânea. O corpo dado no contexto, na confluência de relações da existência social.

Objeto e proposta incorporados: a experiência do ato puro No final da década de 1960, Lygia Clark passa a pensar sua obra no âmbito da política. Não da política reduzida à administração governamental ou partidária, mas daquela política que, na definição do filósofo Jacques Rancière, se ocupa "do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das 13 14

Lyg ia CLARK. Lygia Clark , 1980: 28. IBID. 220 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


propriedades do espaço e dos possíveis do tempo"15 . Em outras palavras, uma rede repleta de intersecções entre as pessoas e o mundo, entre objetividade e subjetividade, entre tempo cronológico e sensível, entre espaços sociais, individuais, interiores e exteriores, além do discurso produzido acerca disso tudo. A política do viver, entendida como ato infligido e recebido incessantemente, da atuação do eu no não-eu. Em 1966, ano em que inaugura sua fase dita sensorial, que mais tarde ficaria conhecida como Nostalgia do Corpo, a artista escreveu: "Propomos o momento do ato como campo de experiência. Num mundo em que o homem tornou-se estranho a seu trabalho, nós o incitamos, pela experiência, a tomar consciência da alienação em que vive" 16 . Dois anos mais tarde, ela disse, ainda: "Somos propositores: enterramos a "obra de arte" como tal e solicitamos a vocês para que o pensamento viva pela ação" 17 . Em 1968, Lygia desenvolveu uma espécie de instalação, que chamou de A casa é o corpo. Tratava-se de um ambiente vestido metaforicamente de corpo humano, por onde as pessoas transitavam, experimentando sensações diversas. Penetravam o labirinto através de um hímen feito de elásticos, habitavam por um tempo a estrutura pseudobiológica e se encaminhavam para fora, abrindo passagem no escuro formado por uma espessa massa peluda que pendia do teto, observando, antes de sair, a si próprias diante de um espelho deformador. No ano seguinte, entretanto, a relação se inverte; agora, O corpo é a casa, obra em que sujeito e objeto se fundem numa única forma existencial. Este é o ponto de virada mais importante para as concepções de corpo em sua produção, que influenciará todas as criações posteriores. "Na fase sensorial de meu trabalho, que denominei nostalgia do corpo, o objeto ainda era um meio indispensável entre a sensação e o participante. O homem encontra seu próprio corpo através de sensações táteis realizadas em objetos exteriores a si. Depois incorporei o objeto, mas fazendo-o desaparecer"18 , relata a artista. Essa inversão de papéis, em que o corpo passa a exercer a função de casa e, portanto, a envolver a experiência sensível ao invés de vivê-la exteriormente, possibilitará a concepção de vários outros corpos, que se põem no mundo ao mesmo tempo em que contêm o mundo, numa dialética incrivelmente rica. Arte e vida se juntam, enfim, numa grande potência criativa. "Agora o corpo é a casa. É uma 15

A partilha do sensível: estética e política, 2005: 17. Lygia Clark , 1980: 30. 17 Op. cit.: 31. 18 Op. cit.: 35. 16

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experiência comunitária. Não há regressão, pois há a abertura do homem em direção ao mundo. Ele se reata aos outros em um corpo comum. Ele incorpora a criatividade do outro na invenção coletiva da proposição"19 . O participante passa a "vestir" os objetos, fazendo-os parte constituinte de seus próprios corpos e alterando, assim, a maneira segundo a qual entram em contato com o mundo, com a alteridade e com sua própria subjetividade. Percebemos o corpo criativo, que inventa e transforma, assim como o corpo coletivo, que troca experiências e se desenvolve junto com o outro. A criatividade individual e coletiva aparece claramente nos trabalhos Baba Antropofágica (1973) e Rede de Elásticos (1974). Ambos são experiências realizadas em grupo. No primeiro, uma série de pessoas, com carretéis na boca, desenrola a linha sobre um indivíduo deitado no chão. A baba faz referência ao conceito de Antropofagia do Modernismo brasileiro, que pregava a ingestão de conteúdo estrangeiro com objetivo de fortalecer a brasilidade, não gratuitamente, claro, mas como alimento metafórico. Na proposta de Lygia, a refeição foi concluída, e então se devolve ao mundo o que o corpo já não tem capacidade de processar – ou, melhor ainda, devolve-se o bagaço produzido no processo, numa espécie de vomitação, após o suco nutritivo ter sido absorvido. O que não serve a um acoberta o outro, reforçando ou o impregnando pejorativamente, construindo ou destruindo – o conceito se faz no encontro, e somente ali. Seja como for, a troca se dá em nível comunitário. As linhas de baba se acumulam sobre o corpo deitado, concedendo- lhe outra roupagem, tomando-o, dominando-o e o transformando. Por outro lado, se entendermos a baba de maneira mais literal, como "salivação", manifestação de fome, de vontade ou de ansiedade, será uma reação incontrolável do organismo, que independe da escolha, como se ele agisse à parte da consciência que o habita – um corpo primitivo ou autômato. Por sua vez, a rede de elásticos da segunda proposição foi tecida coletivamente pelos alunos de Lygia na Sorbonne, Paris, sendo vivida desde a sua construção até a aplicação. Uma rede que cobre, prende, comprime, oprime, amp lia e põe em conexão uma série de pessoas ao mesmo tempo, numa experiência que é tanto individual quanto social. Lygia definiu esse corpo coletivo como "troca de conteúdos psíquicos entre as pessoas a partir da vivência em

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Lyg ia CLARK. Lygia Clark , 1980: 37. 222 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


grupo de proposições comuns" 20 . É nessa época que o termo "psíquico" começa a aparecer em suas pesquisas. Na Sorbonne, Lygia procurava trazer à tona a fantasmática do corpo de seus alunos, utilizando técnicas de relaxamento em que os objetos sensoriais eram tidos como facilitadores. Entretanto, como conta Beatriz Carneiro, ela "constatou que o relaxamento apenas não era o que propiciava o processo de contato com a fantasmática do corpo, este acontecia devido à relação estabelecida entre o objeto e a pessoa. Esta relação ocorria nos interstícios do contato sensorial e desencadeava fantasmas que pouco levavam em conta o significado dado pela aparência do objeto, mas sim as sensações que o contato propiciava" 21 . Logo em seguida, quando retornou definitivamente ao Brasil, em 1976, Lygia continuo u com as técnicas de relaxamento, concedendo, porém, cada vez mais atenção e curiosidade aos objetos. Os grupos de colaboradores foram se desfazendo, de modo que as experiências pudessem ser realizadas individualmente. Lygia transformou uma sala de seu apartamento numa espécie de clínica, que ela chamava carinhosamente de consultório, como conta seu amigo Lula Wanderley, psiquiatra e também artista. Ele ainda explica que, "a princípio, assimilando linguagem psicanalítica, [Lygia] direcionou sua técnica para uma forma de desbloqueio verbal de pessoas a ela encaminhadas por psicanalistas. Mais tarde, ousou assumir uma postura própria, definindo a Estruturação do Self como uma terapia em si" 22 . Aquela experiência artística é vivenciada na forma de ato puro, fazendo-se na prática e se desfazendo imediatamente após, quando passa a constituir o próprio corpo. A subjetividade imanente levará Lygia ao cerne do sujeito, buscando um outro corpo, escondido sob a pele, impregnado na carne, protegendo sua identidade sob uma máscara. No processo terapêutico, interessava "a fantasmática do corpo, a memória silenciosa que o corpo carrega, plena de sensações corpóreas que não se tornaram palavra" 23 . Um corpo essencialmente individual, revestido por uma membrana comunicante – ou relacional – com o universo coletivo. Utilizando objetos materiais, a artista tentará entrar em contato com esse corpo vivencial do participante. Um novo corpo, ainda por vir, cuja política manifesta questões clínicas, como propõe a pesquisadora e terapeuta Elizabeth Lima. Para ela, a política do corpo que opera nos 20

Lygia Clark , 1980: 41. Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Helio Oiticica, vida como arte, 2004: 129. 22 O dragão pousou no espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico e o Objeto Relacional de Lygia Clark , 2002: 22. 23 Beatriz CA RNEIRO. Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Helio Oiticica, vida como arte, 2004: 61. 21

223 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


trabalhos de Lygia Clark "é, também, imediatamente clínica: liberação do homem, dilatamento das capacidades sensíveis, experimentação. (...) Assim, Lygia está no político através de uma revolução da percepção, o que, quando localizado em um indivíduo num dado momento, se aproxima de um trabalho clínico" 24 . Desse modo, vem se juntar ao criativo e ao político um corpo voltado para a experiência vivida do sujeito, que é trabalhado numa proposição estética e opera uma abertura clínica.

O corpo subjetivo Parte dos seus "clientes" – como Lygia Clark passou a chamar os participantes que se submetiam à Estruturação do Self – se queixava de desavenças com o próprio corpo, por assim dizer. Mas não é justo amenizar tais enfermidades. É verdade que o corpo vazio e desmembrado da experiência psicótica se manifesta de modo muito mais grave do que uma mera desavença: não mais percebem seus membros ou os reconhecem como elementos constitutivos do corpo, sentem um buraco dentro de si, não conciliam ação e pensamento, apresentam anorexia por uma intervenção divina que obstrui as vísceras, entre outros exemplos impressionantes citados por Lula Wanderley 25 , que continua a utilizar o método terapêutico desenvolvido por Lygia Clark em hospital do Rio de Janeiro. Em suma, parte dos clientes da artista vivia algum tipo de sofrimento psíquico 26 , que se manifestava no corpo físico. Ela percebeu que poderia percorrer o caminho inverso e, por meio do contato com esse corpo, encontrar o indivíduo em sua intimidade mais profunda, implicando mudanças, sugerindo reavenças. Através dessa Estruturação do Self era possível reestruturar o corpo desmembrado, tocando "diretamente o núcleo psicótico do sujeito, contribuindo para a formação do ego"27 .

24

Atravessando fronteiras e habitando margens: Clín ica e política nas poéticas de Lygia Clark e Helio Oiticica , 2010: 155. 25 O dragão pousou no espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico e o Objeto Relacional de Lygia Clark , 2002. 26 Lygia Clark recusava neuróticos e dava preferência aos pacientes ditos borderlines, cujos traços ainda são bastante discutíveis dentro da própria psicologia, co mo explica Beatriz Carneiro. Para a autora, essa personalidade geralmente está associada ao homem "com d ificuldades em ter uma imagem de si mesmo, percebendo-se com grandes vazios no corpo, não se identificando como uma pessoa inteira, vivendo ao sabor de emoções contrastantes e avaliando o mundo através de seus processos emocionais" (Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Helio Oiticica, vida como arte, 2004: 143). 27 Lyg ia CLARK. Lygia Clark , 1980: 50. 224 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Lula explica que os objetos desenvolvidos pela artista se dirigiam ao corpo como que para dilacerá- lo: "Mas é preciso que o corpo se dilacere sim, e essa dilaceração seja vivida como um vazio (as falhas na imagem do corpo são vivenciadas como vazio) para que o objeto seja incorporado a um dentro imaginário do corpo; como aqui o dentro é o fora, essa incorporação é sentida como um religamento com o mundo, uma nova experiência cósmica, construindo uma membrana que preserva a individualidade e a ampliação do contato afetivo com a realidade" 28 . O contato com o corpo era realizado por meio de uma série de objetos, ditos relacionais, cuja origem é variada. Alguns foram herdados de proposições artísticas anteriores, assumindo novos usos. Outros foram criados especialmente para esta obra. Havia, inclusive, os que eram trazidos pelos clientes, em colaboração criativa com a artista 29 . Retirados daquele contexto, todos perdem por completo seu significado inicial, correndo risco de serem fetichizados e explorados como arte em si mesmos. Porque os objetos não resumem a obra, eram apenas ferramentas para algo que acontecia na prática, e cuja efemeridade a impedia – ou dificultava muito – de se conservar para a história. Sem dúvida, restam relatos, fotografias, memórias; entretanto, como explica Suely Rolnik, "isolados da experiência vivida nestas ações [objetos, filmes e fotos], tornam-se carcaças esvaziadas da vitalidade de uma obra para sempre perdida, na poeira de um arquivo morto – relíquias de um passado destinadas a ser reverenciadas e definitivamente categorizadas pela história da arte" 30 . Pois a Estruturação do Self se concluía a cada sessão de uma hora, em regra três vezes por semana, realizada no apartamento da artista no Rio de Janeiro, sendo retomada como processo dias depois, porém já num contexto diferente, unido e separado pelo mesmo intervalo de tempo. Daquela proposta, hoje, é possível conhecer apenas as teorias e consequências, sob pontos de vista subjetivos e muitas vezes distintos. O "objeto relacional" não tem especificidade em si. Co mo seu próprio nome indica é na relação estabelecida com a fantasia do sujeito que ele se define. O mes mo objeto pode expressar significados diferentes para diferentes sujeitos ou para um mesmo

28

O dragão pousou no espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico e o Objeto Relacional de Lygia Clark , 2002: 41. 29 Para mais detalhes sobre a origem e a forma de cada objeto, recomendo os textos de Suely Rolnik intitulados Breve descrição dos Objetos Relacionais e Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia. 30 Afinal, o que há por trás da coisa corporal?, s/d: 3. 225 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sujeito em diferentes mo mentos. Ele é alvo da carga afetiva agressiva e passional do sujeito, na medida em que o sujeito lhe empresta significado, perdendo a condição de simples objeto para, impregnado, ser vivido como parte viva do sujeito. A sensação corpórea propiciada pelo objeto é o ponto de partida para a produção fantasmática. O "objeto relacional" tem especificidades físicas. Formalmente ele não tem analogia com o corpo (não é ilustrativo), mas cria com ele relações através de textura, peso, tamanho, temperatura, sonoridade e movimento (deslocamento do material diversificado que os preenche).31

A aplicação dos objetos relacionais traz de volta a presença da artista que, até então, encontrava-se dissolvida no mundo, conforme vimos anteriormente. Presença efetivada pelo toque, pelos sons, pela respiração que ecoa no ambiente. Porque, como nos chama a atenção Beatriz Carneiro, "não apenas os objetos relacionais eram aplicados, mas as próprias mãos de Lygia realizavam toques e pressões em locais onde ela intuía como necessário a partir da expressão do paciente" 32 . Seu corpo físico é obrigado a ganhar forma mais uma vez, agora para encontrar o outro e retirá-lo do sofrimento. A efetividade da ação se pauta na relação subjetiva entre artista e cliente: uma confluência de sensações, de vivências, de experiências que ocupam o ambiente e o transformam em local sagrado de culto, onde o metafísico se manifesta perante – e penetrando – o corpo carnal. A proposta se pauta na sensibilidade e se manifesta pelo afeto, tal como a própria Lygia concluiu: "Trata-se de compreender as necessidades fundamentais do sujeito e responder a elas através do contato com o corpo e não da interpretação analítica clássica. Isto implica evidentemente num engajamento afetivo do mediador" 33 . Acredito que existam dois mediadores no processo de Estruturação do Self, dependendo do ponto de vista. A artista, na relação entre corpo e subjetividade do cliente, e os objetos, no encontro entre artista e o outro. Em ambos os casos, o corpo exerce uma função imprescindível. É ele o protagonista. É nele, através, em torno e na presença dele que a prática surte efeito.

O corpo e os corpos 31

Lyg ia CLARK. Lygia Clark , 1980: 49. Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Helio Oiticica, vida como arte, 2004: 61. 33 Lygia Clark , 1980: 52. 32

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É possível perceber, na Estruturação do Self, resquícios de corpos anteriores, descobertos por Lygia durante sua trajetória, assumindo novos modos de existência. O corpo do ato, que faz escolhas, que decide os passos seguintes. O corpo presente, que manipula, toca e transforma. O corpo na casa, consciente do espaço físico que o envolve, permitindo significados que talvez não se produzissem no museu ou no hospital. O corpo-casa, que é habitado por todo tipo de manifestação psíquica. O corpo criativo, que constrói, estrutura, ativa contatos. O corpo individual, do artista ou do cliente, físico ou metafísico, e o corpo coletivo, em que todos estes se somam, agregando ainda o aspecto social. O corpo político da vida e o corpo estético inventado pela contemporaneidade como regime de pensamento. O corpo-clínico, buscando sanar o sofrimento. São todos corpos que convivem, que experimentam, se põem à disposição e se embatem. São corpos e anticorpos imbuídos de significado profundo, tanto subjetivo quanto objetivo, simbólico e concreto. Corpos desmembrados que buscam se reestruturar. Corpos dissolvidos que retomam a forma, sempre uma nova forma; que se transformam para resignificar. São corpos contidos numa única obra, a qual, ela mesma, já não se apresenta mais. Uma obra que assumiu forma de marca, no sentido de "estados vividos em nosso corpo no encontro com outros corpos, a diferença que nos arranca de nós mesmos e nos torna outro" 34 . Todos eles corpos incorporados à problemática contemporânea através da produção artística. Corpos que, por meio do toque, trazem à tona uma memória afetiva, a qual não se manifestaria pela palavra. Todos eles corpos que habitamos e que nos habitam, que extravazam qualquer ideia reducionista contida na palavra "corpo". Como disse Lygia em 1982, numa gravação recolhida por Suely Rolnik, Lula Wanderley e Gina Ferreira, "eu quero descobrir o corpo. O que me interessa fundamentalmente é o corpo. E atualmente eu já sei que é mais do que o corpo (...). Então, por trás da coisa corporal, é o que vem de mais profundo que interessa" 35 . Os corpos concebidos por Lygia Clark são mais complexos, fortes e misteriosos do que imaginamos.

Referências bibliográficas 34

Suely ROLNIK. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico , s/d: 5. 35 Afinal, o que há por trás da coisa corporal?, s/d: 2. 227 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


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A PINTURA DE JESUÍNO DO MONTE CARMELO NA IGREJA DO CARMO DE SÃO PAULO De painel invisível a marco na história da arte paulista Eduardo Tsutomu Murayama

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Resumo: Este artigo apresenta o processo de descoberta e restauro da chamada “pintura invisível” do padre Jesuíno do Monte Carmelo (1764-1819) na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo, assim como seus possíveis desdobramentos para a história da arte paulista. No início da década de 1940, enquanto preparava a biografia do padre Jesuíno – encomendada pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) –, o crítico de arte Mário de Andrade levantou a suspeita de que a pintura visível naquele momento, na parte central do teto da nave, poderia não ser de autoria do religioso: a composição pictórica estava geometricamente deslocada entre os elementos arquitetônicos e não condizia com os aspectos plásticos e estilísticos do artista que estudava. Surgiu, assim, a teoria da “pintura invisível” do padre Jesuíno: a desconfiança de que a pintura original do sacerdote, finalizada em 1798, poderia existir ainda intacta por baixo de outras camadas de pintura acrescentadas posteriormente. O tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) só ocorreu em 1996 – mais de meio século depois da hipótese do escritor modernista ter sido lançada – pois se aguardou a comprovação efetiva de que a pintura do padre Jesuíno ainda existia em sua integralidade e em condições de ser recuperada. Desse modo, depois de décadas oculta da vista do público, a composição “invisível” de Jesuíno ressurgiu com a recente restauração coordenada pelo historiador Carlos Cerqueira e revelou uma belíssima pintura de Nossa Senhora do Carmo em glória, de qualidade técnica e requinte estético sem par na produção artística da capital naquele período. Análises e comparações com outras obras do mesmo artista justificam porque esta composição – na opinião de renomados pesquisadores e críticos – converteu-se na melhor obra do padre Jesuíno do Monte Carmelo e um marco para a história da arte paulista. Palavras-Chave: Padre Jesuíno do Monte Carmelo. Igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo. Mário de Andrade. Pintura Colonial Paulista. Restauro.

Abstract: This article presents the process of discovery and restoration of the called "invisible paint", a paint of priest Jesuíno do Monte Carmelo (1764-1819) in the Church of Ordem Terceira do Carmo de São Paulo, as well as its possible consequences for the history of art in São Paulo. In the early 1940s, while preparing the biography of priest Jesuíno – commissioned by the Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) – Mário de Andrade (a critic of art) raised the suspicion that the painting which was visible at that time, in the central pa rt of the roof, could not be authored by priest Jesuíno: the pictorial composition was geometrically displaced between architectural elements and did not fit the plastic and stylistic aspects of the artist. Therefore, the theory of the "invisible paint" of priest Jesuíno emerged: the suspicion that the priest's original painting, completed in 1798, could still be intact underneath other layers of paint added later. The tumble by the Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) occurred onl y in 1996 - more than half a century after the assumption of the modernist writer was released - since they waited a effective proof that the painting of priest Jesuíno still existed in its entirety and could be able to be recovered. Thus, after decades h idden from public view, the “invisible" composition of Jesuíno resurfaced with the recent restoration coordinated by the historian Carlos Cerqueira and revealed a beautiful painting of Our Lady of Mount Carmel in glory, with unmatched technical quality and aesthetic refinement in the artistic production of capital in that period. Analyses and comparisons with other works by the same artist justify why this composition 1

Doutorando do Instituto de Artes da UNESP . 229 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


– in the opinion of renowned researchers and critics – became the best work of priest Jesuíno do Monte Carmelo and a milestone in the history of art in São Paulo. Keywords: Priest Jesuíno do Monte Carmelo. Church of the Ordem Terceira do Carmo de São Paulo. Mário de Andrade. Paulista Colonial Painting. Restoration.

1. A Igre ja da Ordem Te rceira do Carmo de São Paulo e o Padre Jesuíno do Monte Carmelo Em dezembro de 1927 é publicado o decreto que desapropria o prédio e os terrenos pertencentes ao antigo Convento do Carmo da cidade de São Paulo, para a construção do Palácio do Congresso. 2 Nos anos que se seguem, os frades carmelitas abandonam o secular edifício e se instalam em novo templo – no bairro da Bela Vista – construído com a indenização paga pelo governo. 3 Instalados na Vila de São Paulo de Piratininga desde 1592, vindo de Santos, os primeiros religiosos da Ordem do Carmo ocuparam um terreno localizado numa das extremidades da colina sobre a qual a cidade inicialmente tomou forma, numa esplanada próxima da ladeira que desembocava na várzea do rio Tamanduateí e uma das vias de acesso ao vilarejo. Ali construíram e reconstruíram seu convento e a sua igreja ao longo dos mais de três séculos de existência. 4 Quando a Igreja da Ordem Primeira do Carmo, contígua ao convento, foi demolida, no final da década de 1920, uma pintura do forro da nave, do século XVIII, foi destruída. Não restou nada da composição desse teto. Não existem registros iconográficos ou descrições detalhadas do teor da obra sacrificada. Simplesmente não houve, naquele momento, preocupação por parte dos departamentos públicos competentes em preservar o tabuado com a pintura setecentista. Tratava-se da primeira obra executada na cidade de São Paulo pelo artista

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Decreto-Lei nº 4319, de 16 de dezembro de 1927. A indenização paga pelo Governo do Estado foi de 4.260:000$000 réis , de acordo com o Decreto-Lei nº 4405, de 13 de abril de 1928 e Decreto-Lei nº 4566, de 01 de março de 1929. Co m esse valor os frades carmelitas compraram u ma chácara na região da Bela Vista e lá construíram u m novo convento e igreja, projeto de Georg Przyrembel, inaugurado em 1934. Ho je é a Basílica de Nossa Senhora do Carmo, situada à Rua Martiniano de Carvalho, 114 – Bela Vista, São Pau lo, SP. 4 Uma grande reforma executada no convento e igreja dos frades é citada em carta de Do m Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, governador geral da Capitania de São Paulo, para o Marquês de Pombal, então Conde de Oeiras, datada de 10 de dezembro de 1766: “(...) os mais suntuosos e melhores são a Sé, este colégio que foi dos Jesuítas, especialmente o seminário em que estou aquartelado, a Igreja do Carmo, e seu convento que se está reedificando [grifo meu], a de São Bento, que não está acabado, e o de São Francisco que é antigo, e o pretendem reformar; há mais um recolhimento de mulheres coisa limitada (...)” (TOLEDO, 2004, p. 11). 3

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santista Jesuíno Francisco de Paula Gusmão (1764-1819) 5 , mais conhecido pelo nome que adotou quando assumiu a vida religiosa, padre Jesuíno do Monte Carmelo. O atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) seria criado apenas ao final da década de 1930, ou seja, lamentavelmente, por uma questão de poucos anos entre a demolição da igreja e os primeiros tombamentos pelo órgão federal, a obra pictórica do padre Jesuíno não sobreviveu. Essa seria uma obra relevante no contexto da história da pintura colonial paulista, pois, por ser o primeiro trabalho do artista na capital, talvez Jesuíno tivesse produzido uma obra mais esmerada e cuidada, para impressionar seus contratantes. 6 A destruição desse painel setecentista, assim como a demolição do Convento do Carmo, da Igreja da Ordem Primeira da Ordem e de tantos outros edifícios coloniais da “cidade de barro” – já que as construções eram feitas em taipa – como a antiga Matriz da Sé, a Igreja e o Colégio dos Jesuítas, o antigo Mosteiro de São Bento, a Igreja de São Pedro dos Clérigos, o Recolhimento de Santa Teresa etc., refletem o paradoxo da cidade colonial de barro que no início do século XX se transformou na metrópole de concreto. O progresso econômico e industrial era incompatível com as vielas estreitas e tortuosas, bloqueadas pelas numerosas igrejas e outros tantos prédios civis – muitos praticamente em ruínas –, o que provavelmente determinou a demolição da maioria deles (ETZEL, 1974, p.139). As igrejas coloniais foram sacrificadas em função do plano de remodelação e adequação do centro da cidade ao novo perfil de ares modernos que a capital queria adquirir. Além das ruínas e demolições das igrejas e conventos, outros fatores, como as sucessivas reconstruções, acabaram por descaracterizar ou até deformar as obras originais. 5

Jesuíno Francisco de Paula Gus mão nasceu em Santos, em 1764, e foi dourador, construtor de órgão, pintor de imagens de santos e tetos de igreja, músico e arquiteto, atuante nas cidades de Santos, São Paulo e Itu entre o final do século XVIII e in icio do século XIX. Não se sabe com quem aprendeu o ofício de pintor – por isso é considerado um artista autodidata – mas enquanto esteve na cidade de Itu trabalhou com o pintor José Patrício da Silva Manso (1740-1801), renomado artista paulista dos setecentos. Juntos, pintaram painéis decorativos para a capela-mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária, na década de 1780. Realizou as pinturas da Igreja do Carmo de Itu, o que lhe rendeu o convite para pintar o teto das igrejas carmelitas de São Paulo. Na capital, sua extrema devoção o levou a dedicar-se à vida religiosa. Em 1798 ordenou-se sacerdote. Retornou para Itu e lá permaneceu até o fim da vida, onde se dedicou a construir e decorar a Igreja de Nossa Senhora do Patrocínio. Faleceu em 1819. Segundo o pesquisador Mário de Andrade, biógrafo do artista, Jesuíno Francisco de Paula Gus mão é o "maio r representante do barroco paulista" (ANDRADE, 1963, p. 202). O modernista chegou a eleger o trabalho de p intura no teto da nave da igreja dos terceiros carmelitas d e São Paulo a "obra mais plástica" de Jesuíno (ANDRADE, 1963, p. 170). 6 Conforme comentou Mário de Andrade em sua biografia sobre o padre Jesuíno do Monte Carmelo (ANDRADE, 1963, p. 144). 231 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Nesse processo, grande parte de nossa arte barroca e rococó – arquitetura, talhas, pinturas, imaginárias, mobiliário, entre outros – foram danificados, perdidos, desmembrados ou destruídos. O descaso e abandono, frutos do pouco interesse oficial e público, também influenciaram no aniquilamento de muito de nossa arte barroca, não se atribuindo nenhuma atenção ou importância para os valores históricos e artísticos das obras sacrificadas. Nesse contexto, a existência de uma pintura sobrevivente, como é a pintura do padre Jesuíno no teto da Igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo, justifica seu estudo, análise, proteção, recuperação e conservação. A igreja da Ordem Terceira do Carmo – ou oficialmente Capela de Santa Teresa da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de São Paulo – ocupava a Esplanada do Carmo desde a segunda metade do século XVII. 7 A Ordem Terceira construiu seu templo ao lado da Igreja da Ordem Primeira, e também foi reconstruída diversas ve zes, sendo a principal reforma executada no final do século XVIII – quando aconteceu o apogeu de sua decoração interna. Os dois edifícios religiosos, inclusive, dividiam a mesma torre sineira. Ao terminar a pintura do teto da Igreja da Ordem Primeira (1795-1796), e depois de decorar o Recolhimento de Santa Teresa – instituição dirigida pela Ordem das Carmelitas Descalças –, Jesuíno Francisco pintou o forro da nave, o forro da capela- mor e o forro do coro da Igreja da Ordem Terceira, seu último trabalho realizado em São Paulo, entre 1796 e 1798.

2. Mário de Andrade e a teoria da “pintura invisível” O padre Jesuíno do Monte Carmelo realizou três trabalhos de pintura na cidade de São Paulo: (1) a pintura do teto da Igreja da Ordem Primeira do Carmo; (2) as pinturas decorativas da capela do Recolhimento de Santa Teresa – também demolido, no início da década de 1920 8 e (3) pintura do teto da Igreja da Ordem Terceira do Carmo. Apenas esta terceira foi, de certa 7

Os historiadores não chegaram ainda a um consenso sobre a data da construção do primeiro templo da Ordem Terceira do Carmo em São Pau lo: 1632, 1648, 1676 ou 1691 (?). Todavia, é fato que a construção original é do século XVII. 8 São 29 painéis que ornavam as paredes e o teto da capela das noviças, representando cenas da vida e dos êxtases de Santa Teresa de Ávila, religiosa espanhola do século XVI e reformadora da Ordem das Carmelitas Descalças. Foram retirados do Recolhimento de Santa Teresa antes da demolição e fizeram parte do Museu da Cúria – por iniciativa do Arcebispo Dom Duarte Leopoldo e Silva – antes de serem doados, 19 desses quadros, em março de 1924, para a Igreja da Ordem Terceira, onde decoram atualmente um corredor lateral. Os outros 10 quadros fazem parte do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. 232 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


maneira, preservada em sua integralidade. É essa pintura que, atualmente recuperada e restaurada, impõe-se como um novo marco na história da arte paulista. A trajetória dessa pintura do forro da igreja dos terceiros carmelitas da capital é surpreendente, e envolve a participação de um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século XX, Mário de Andrade (1893-1945). É graças ao olhar crítico e perspicaz do escritor modernista que se deve a “redescoberta” e a recuperação desta que pode ser considerada a obra-prima do padre Jesuíno e a mais bela pintura de teto de igreja colonial da cidade de São Paulo. Quando, ao final da década de 1930, inventariava os monumentos do estado de São Paulo que mereciam ser tombados pelo recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), Mário de Andrade visitou a Igreja da Ordem Terceira do Carmo – que havia sobrevivido à desapropriação e à demolição dos edifícios adjacentes – e deparouse com a pintura do padre Jesuíno que já naquele momento encontrava-se bastante deteriorada e adulterada. Tendo observado, fotografado e analisado a obra do padre Jesuíno existentes na cidade de Itu – onde o artista trabalhou pintando painéis na capela- mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária (1787) e todo o teto da capela- mor da Igreja do Carmo (17901792) – o intelectual modernista desconfiou que a porção central da pintura paulistana visível naquele momento não se tratava de uma composição original de Jesuíno. Alguns anos depois, no início da década de 1940, Mário de Andrade recebeu do diretor do SPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade, a incumbência de escrever uma biografia sobre o padre Jesuíno do Monte Carmelo. Ao se aprofundar nas análises plásticas formais e estilísticas do desenho e da pintura de Jesuíno, o crítico formulou a teoria da “pintura invisível”. A teoria da “pintura invisível” levantava a suspeita de que, não sendo aquela pintura visível na parte central do teto da nave da Igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo, de autoria do padre Jesuíno, poderia a composição original do final do século XVIII ainda existir, oculta sob as camadas de repintura posteriores? A Virgem do Carmo representada na parte central do forro não condizia com o estilo de desenho dos santos, santas e beatos pintados em grupos a partir das laterais do teto; além do que a Senhora do Carmo estava deslocada entre os arcos que segmentavam o teto. Como um artista – mesmo que autodidata – 233 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


poderia não centralizar a parte principal da composição, a figura mais importante para a devoção carmelita, a representação da Nossa Senhora do Carmo, no espaço disponível? Em novembro de 1942 o modernista relatou que, numa das reformas da igreja, ocorrida entre o final do século XIX e o início do século XX, foram retirados os arcos que segmentavam o teto da nave do templo. Com a retirada desses arcos, a pintura dos santos laterais que Jesuíno executou em grupos de quatro, mais a figura central, ficaram deslocados, desproporcionais, e como estes já se encontravam escurecidos pela fuligem e pela ação dos vernizes (usados na época para proteção das pinturas, já que não havia restauro), um novo artista foi chamado para repintar o painel central, centralizando-o na nave agora sem os arcos de segmentação. Esse artista contratado pelos carmelitas teria sido o pintor acadêmico Pedro Alexandrino, ainda moço, antes de seus estudos na Europa. Todavia, nunca houve comprovação dessa informação. Entretanto, ao passar por uma nova reforma nos anos 1920, coordenada pelo arquiteto Ricardo Severo, este devolveu os arcos segmentadores da nave, por considerá- lo elemento fundamental para recuperar a aparência original do templo. Ao recolocá- los, estes arcos cobriram parte do painel central. A partir daí, Mário de Andrade concluiu que, se na época que o artista executou a pintura do teto do Carmo os arcos já faziam parte do forro da nave – como acreditava Ricardo Severo –, provavelmente Jesuíno colocou seu painel central exatamente sobre o centro geométrico do intervalo entre os arcos centrais. Restaria saber apenas se a pintura de Jesuíno havia sido raspada para receber nova pintura, ou se a nova pintura havia sido executada sobre a pintura existente. Para completar, na década de 1950, um pintor desconhecido foi chamado pelos carmelitas para retocar a pintura de Pedro Alexandrino, o que acabou por descaracterizá- la grosseiramente. Trabalhos de prospecção realizados nos anos seguintes demonstraram que havia outras camadas de pintura de períodos anteriores por baixo da pintura, e que estas estavam em ótimo estado de conservação. Desse modo, o tombamento pelo IPHAN da pintura do padre Jesuíno na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo ocorreu apenas na década de 1990 9 , após a confirmação de que a pintura do padre Jesuíno estava intacta sob inúmeras camadas de

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repintura e apresentava condições de recuperação. Inclusive, a obra que consta do parecer do tombamento é a pintura invisível do padre artista, conforme as hipóteses levantadas por Mário de Andrade, e não aquela visível na segunda metade do século XX. Finalmente, a recuperação dessa pintura inédita do padre Jesuíno – que realmente surgiu do centro geométrico da nave, entre os arcos – não teria ocorrido não fossem os esforços e a perseverança do historiador Carlos Gutierrez Cerqueira, da 9ª Superintendência do IPHAN de São Paulo. Autor do projeto A Pintura Invisível do Padre Jesuíno do Monte Carmelo: Resgate de uma Pintura Colonial Paulista, Cerqueira coordenou os trabalhos de restauro que resultaram no resgate da obra inédita desse artista colonial e que não era vista pelo público há mais de um século. A divulgação oficial da primeira etapa do restauro, em 2008, de uma área de pouco mais de 12 m², exatamente no centro do forro da nave, foi um marco para a história da pintura colonial paulista. Até aquele momento, apenas os quadros teresianos – no corredor da sacristia – e os esquadrões de santos, mártires e beatos do teto da nave e do teto do coro, eram conhecidos dos pesquisadores. Desse modo, a apresentação de um painel nunca visto e nunca descrito e analisado pelos especialistas contemporâneos aponta novos caminhos para a revisão da obra do padre Jesuíno e da história da arte paulista, desmistificando a ideia simplista de que não existiu pintura sacra – pinturas de forro – de fôlego nos templos do pacato vilarejo colonial. Essa primeira etapa da recuperação da pintura invisível de Jesuíno mostrou-se tão magnífica que o IPHAN, em 2009, logo investiu na retirada por completo das camadas de pintura sobrepostas do teto da nave, da capela- mor e do coro do templo dos terceiros carmelitas da capital, para restituir a obra do padre em sua integralidade. No primeiro semestre de 2012, o resgate e restauro integral das pinturas do padre Jesuíno na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo foi finalizado. Descobriu-se, por exemplo, que os arcos segmentadores colocados na nave por Ricardo Severo não faziam parte da configuração original do forro no século XVIII. Finalizados os trabalhos de decapagem, limpeza, reintegração cromática e aplicação de camadas de proteção, o IPHAN restituiu à

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Processo de Tombamento nº 1176-T-85 (1996). 235 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


cidade de São Paulo uma exuberante obra de arte do período colonial paulista em todo seu esplendor e frescor barroco. Desse modo, depois de décadas oculta da vista do público, a composição “invisível” de Jesuíno ressurgiu com a recente restauração coordenada pelo historiador Carlos Cerqueira e revelou uma belíssima pintura de Nossa Senhora do Carmo em glória, de qualidade técnica e requinte estético sem par na produção artística da capital naquele período. Análises e comparações com outras obras do mesmo artista – principalmente a pintura do teto da capela mor da Carmo de Itu – justificam porque esta composição – na opinião de renomados pesquisadores e críticos – converteu-se na melhor obra do padre Jesuíno do Monte Carmelo: é uma pintura refinada – vide a transparência sugerida pelo véu de Nossa Senhora; o detalhamento das vestimentas, as pedrarias, o bordado; o rosto delicado, a boca delineada e rosada, os olhos muito azuis da Virgem; o tratamento das nuvens que se abrem para deixar aparecer Nossa Senhora em glória, rodeada por um buque de anjos – e exemplar único nas pinturas paulistanas sobreviventes do período colonial.

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A CRIAÇÃO E ATUAÇÃO DO NAC/UFPB NO PERÍODO DE 1978|1985 EM JOÃO PESSOA Fabricia Cabral de Lira Jordão 1 Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir o impacto da criação e da proposta do Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba em João Pessoa. Concebido por Paulo Sérgio Duarte e Antonio Dias, em 1978, o NAC/UFPB tinha como principal objetivo se estabelecer como um espaço voltado à difusão e à produção em arte contemporânea, numa região que tradicionalmente oferecia resistência a qualquer ação atualizadora no contexto artístico e numa universidade que, há mais de uma década, desenvolvia ações voltadas, prioritariamente, para a produção artística local e regional. Para tanto, o Núcleo não se limitou em promover a exibição de trabalhos que exploravam uma variada gama de técnica, mídias, materiais e suportes (xerox arte, arte correio, art-door, livro de artista, videoarte, fotografia, instalação), também garantiu, que suas exposições fossem acompanhadas de palestras, cursos ou oficinas e que os artistas visitantes, sempre que possível, explicassem sua proposta, compartilhassem experiências, conversassem e discutissem questões relativas a linguagem artística e/ou meios que exploravam com o público interessado. Percebe-se, ainda, por meio das diversas ações de formação voltadas para os artistas e o público locais, uma preocupação para que esse processo fosse acompanhado de uma transformação das noções e práticas artísticas vigentes em João Pessoa. Esse comprometimento com a arte contemporânea e suas questões, resultaram em ações de extrema relevância, muitas pioneiras e avançadas para a realidade institucional paraibana e nordestina na época. Também observa-se uma preocupação e empenho do Núcleo em envolver os artistas em sua proposta, tanto por meio de ações de caráter mais reflexivo quanto por meio do estímulo a uma produção experimental, o que certamente contribuiu para ampliar e relativizar as noções artísticas vigente. Desse modo, após localizar o surgimento do Núcleo no contexto artístico paraibano, será verificado, por meio da identificação, descrição e análise de sua proposta e das ações promovidas no intervalo de 1978 a 1985, até que ponto seu objetivo de atuar como um centro formador, difusor e fomentador da arte contemporânea na Pa raíba se efetivou. Também se refletirá sobre possíveis razões para a diminuição de suas atividades e transformação de sua proposta a partir de 1981. Palavras-chaves: NAC/UFPB, Paulo Sérgio Duarte, João Pessoa, Arte Contemporânea.

1.

História, Teoria e Crítica da Arte O Núcleo de Arte Contemporânea foi criado na Universidade Federal da Paraíba no

final de 1978 por meio de parceria com a Funarte. Sua proposta foi concebida por Paulo Sérgio Duarte e Antonio Dias e tinha como principal objetivo e desafio estabelecer um núcleo de extensão voltado para a arte contemporânea em uma universidade cujas ações no campo das artes plásticas, há mais de uma década, giravam em torno da promoção e formação dos artistas nordestinos, principalmente paraibanos, e numa região q ue tradicionalmente oferecia resistência a ações atualizadoras no campo da arte. 1

Universidade de São Pau lo 239 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Para se compreender a dificuldade enfrentada por Dias e Duarte cabe destacar que nesse momento, na região nordeste, além da resistência ao que vinha de fora, existia uma cultura de isolamento e de defesa do artista/arte local. Esse posicionamento tem suas raízes no Regionalismo, liderado por Gilberto Freyre ao longo da década de 1920 em plena crise das economias açucareira e algodoeira, quando tem início a desarticulação e enfraquecimento político das oligarquias rurais nordestinas e a projeção, econômica, política e cultural de São Paulo. Por meio do Regionalismo, Freyre esperava fortalecer no âmbito simbólico uma ideia de região, de identidade nordestina e a promoção de uma co nsciência dos valores locais através da ênfase no passado de prosperidade da região, enformado nos valores e tradições da vida rural e na economia açucareira. Essa visão surge, não por acaso, no momento em que emerge uma consciência das potencialidades do país como um todo. Quando passa a existir, na expressão de Aracy Amaral, um “novo espírito nativista” 2 , materializado na busca de nossas raízes e num desejo de autoafirmação que produzirá “uma aceitação inédita da nossa cultura, e inclusive uma grande curiosidade pela maneira de ser brasileira”3 . Nas artes plásticas esse „espírito nativista‟ produzirá uma “valorização do popular, simultaneamente à descoberta do internacionalismo da Escola de Paris” 4 culminando com a Semana de 22 e do movimento Modernista em São Paulo, que segundo Sônia Salzstein, procurou instituir “uma forma moderna e brasileira, isto é, aberta sim às transformações do mundo moderno, mas tentando formular para estas o ponto de vista local” 5 , de maneira que através da fusão de componentes nacionalistas e modernistas se criasse uma arte brasileira. Essa concepção não pode ser percebida na região nordestina, onde se observa uma ênfase no componente nacionalista com forte apelo para a afirmação local, a favor de uma arte pura e característica da região, que fosse a expressão e o enaltecimento, através da

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AMARAL, Aracy A. Do modern ismo à abstração(1910-1950). In : AMARAL, Aracy A. Textos do Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005). Vo l.1: Modernis mo, arte moderna e o compro misso com o lugar. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 119-131. 3 Ibidem. 4 AMARAL, Aracy A. Modernidade e identidade: as duas Américas Latinas, ou três, fora do tempo. In: AMARAL, Aracy A. Textos do Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005). Vo l. 2: Circuitos de arte na América Lat ina e no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2006b, p. 74. 5 SA LZSTEIN, Sônia. Uma d inâmica da arte brasileira: modernidade, instituições, instância pública. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, v. 1, p. 382. 240 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


problemática visual, das particularidades e valores da tradição e cultura regionais. A influência do Regionalismo nas artes plásticas resultou, segundo Moacir dos Anjos, numa produção centrada na organização de paisagens, tipos e ícones que sintetizariam, em termos v isuais, o que é próprio da reg ião. [...] O que aproxi ma essas visões distintas é o desejo de representar, através de uma figuração fortemente apegada ao mundo sensível, um território perfei tamente defini do e avesso a contaminações 6 .

Esse apego a figuração somada a aversão às contaminações e isolamento cultural se enraizará de tal maneira que muitos artistas nordestinos, na década de 1950, se recusam a participar das Bienais de São Paulo “por deliberações de política artística”7 . Segundo Mario Pedrosa, “uma certa teoria „estética‟ andava no ar para justificar a abstenção dos artistas mais em voga ou mesmo representativos de Pernambuco ou da Bahia”. Essa „teoria estética‟ é assim explicada pelo crítico de arte: Pernambuco, numa linha regionalista que veio desde as primeiras teorizações modais de Gilberto Freyre, timb rou em conservar-se à parte no Brasil [...] v ia na Bienal de São Pau lo u m centro de cosmopolitis mo art ístico contrário às su as afirmações regionais e nacionais, e expresso na predominância da arte abstrata. O “abstracionismo” era para grande parte de seus artistas, intelectuais e crít icos mais influentes condenável em si mes mo, porque não seria mais do que a vitória no Brasil dum cosmopolit ismo internacionalista desfigurado e desenraizado. Na Bahia, num espírito ainda mais agressivo do que em Pernambuco, o mes mo sintoma foi registrado [...] 8 .

São essas concepções e valores que, via de regra, repercutiram na produção artística paraibana, predominantemente figurativa, com pinturas baseadas na paisagem tropical, na cor local e no imaginário popular. De maneira que em plena década de 1970, momento de grande experimentação na arte brasileira, “o perfil estético da produção das artes visuais paraibanas [pode ser caracterizado] pela predominância quase absoluta da figuração, e nas quais o mito, a fantasia, e a referência à tradição popular aparecem com frequência [...], sendo pouco marcada pela presença da abstração e do experimentalismo”9 . Foi nesse contexto de isolamento cultural, de uma prática artística comprometida com a figuração, apegada as tradicionais categorias das belas artes que surge o NAC/UFPB, num 6

ANJOS, Moacir dos. Arte em trânsito. In: NORDESTE. São Paulo : [s.n.], 1999. Catálogo de Exposição, 5 a 31 out. 1999, SESC Po mpéia, São Pau lo. Grifos da autora. 7 PEDROSA, Mario. Da Bienal da Bahia e seus enfoques. In: PEDROSA, Mario. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília [Organização de Aracy A. A maral]. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 229. 8 Ibidem, p. 229-230. 9 BECHARA FILHO, Gabriel. Apresentação. In: BECHARA FILHO, Gabriel; CA RVA LHO, Rosire s de Andrade. Fontes para o estudo das artes visuais na Paraíba dos arquivos da imprensa: 1970-79. João Pessoa: Ed itora Un iversitária da UFPB, 2009, p. 18. 241 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


momento em que, segundo afirma Duarte, “havia uma resistência muito forte a essas novas linguagens, devido ao forte apego a questões tradicionais de medium – a pintura, a gravura, etc”10 . Portanto, a criação do NAC/UFPB pode ser considerada a primeira tentativa de se implantar uma proposta cultural exógena, baseada nos debates tra vados no eixo Rio-São Paulo e aberta às experimentações artísticas. Também pode representar a primeira tentativa de, concomitantemente, romper o tradicional isolamento que marcou o campo cultural paraibano e inserir a arte contemporânea em João Pessoa. A proposta desenvolvida por Duarte e Dias conjugava exposições, por meio das quais garantia-se o contato com uma variada gama de trabalhos e procedimentos das artes visuais contemporâneas, e ações de formação (palestras, cursos ou oficinas) que geralmente acompanhavam e problematizavam as exposição. O Núcleo também promovia, sempre que possível, encontros onde o artista visitante explicava sua proposta, compartilhava experiências, conversava com o público interessado, discutia questões relativas a linguagem artística e/ou meios que explorava. Com essas ações, esperava-se superar o desafio de aproximar, formar o público e subsidiar o artista local com informações atualizadas da arte. Se no âmbito nacional esse projeto não seria uma inovação – tendo em vista as experiências desenvolvidas, por exemplo, na Sala Experimental do Museu de Arte Moderna e na Escola de Artes Visuais, ambas no Rio de Janeiro, e no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – no âmbito regional, segundo Duarte, representou um importante marco: “o NAC foi importante como marco do que viria depois ocorrer 10, 15 anos mais tarde, com mais força em Recife do que até mesmo em João Pessoa, que era uma abertura inevitável para novas linguagens na arte contemporânea. [...] O NAC cumpr iu um papel importante como núcleo pioneiro nesse debate” 11 . Segundo o crítico Roberto Pontual, o surgimento do Núcleo,

“primeiramente,

desloc[ou] o eixo de ativação de novas atitudes e linguagens artísticas até uma região ainda mais refratária do que propícia a elas. Assim, já não se deixa intacto com o Rio e São Paulo [...] o privilégio de uma velha e compacta hegemonia do sentido da experimentação, entre

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Entrev ista concedida por Paulo Sérgio Duarte a Ivair Reinaldim, no Rio de Janeiro, em maio de 2010. In: REINA LDIM, Ivair (Org.). Dossiê Espaço Arte Brasileira Contemporânea – ABC/Funarte. Arte & Ensaios. Rio de Janeiro, n. 20, p. 113-139, Ju l. 2010, p. 130-131. 11 Entrev ista concedida por Paulo Sérgio Duarte a Ivair Reinald im. In : REINA LDIM, 2010, p. 13 0-131. 242 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


nós” 12 . Ou seja, sua criação ofereceu aos artistas, numa região que tradicionalmente permanecia à margem das principais cenas de arte, uma boa infraestrutura para o desenvolvimento de propostas e ações artísticas experimentais, onde poderiam desenvolver e/ou realizar suas proposições com autonomia e efetivar uma proposta que procurava fazer uma ponte entre o nacional/local e o global/regional. Contribuiu, ainda, para a criação de um espaço que, além de apoiar e tentar envolver os artistas nas decisões que norteavam seu programa, considerava fundamental sua participação na formação do público e dos artistas locais. Essa característica, aliada a presença de Duarte e Dias, certamente contribuiu para que diversos artistas experimentais, desenvolvesse proposições no Núcleo, caso de Tunga, Cildo Meireles, Anna Maria Maiolino, Paulo Klein, 3NÓS3, Marcelo Nitsche, Artur Barrio, Vera Chaves Barcellos, Miguel Rio Branco, Paulo Bruscky, Unhandeijara Lisboa, Jota Medeiros, Falves Silva, Leonhard Frank Duch. Localmente, a proposta do NAC/UFPB foi recebida como imposição de uma determinada vertente artística e desvalorização da produção local. Consequentemente, foi duramente criticada por artistas e pela imprensa – que acusavam o Núcleo de “apenas comprar „cultura‟ no sul maravilha. [E] através de convênios com a FUNARTE, trazer artistas de renome no campo da chamada arte contemporânea” 13 . Ironizavam o “esforço do NAC em importar cultura, na tentativa vã de distribuí- la entre os artistas paraibanos considerados tão desinformados do que se faz no mundo”14 . Essa cobrança se justificava tendo em vista que a participação de artistas paraibanos na grade de programação do Núcleo foi menor que a de outras regiões. Duarte, inclusive, reconheceu que sua programação “poderia ter sido mais balanceada com os artistas locais” 15 . No entanto, como o NAC/UFPB poderia cumprir seu objetivo de atuar como um espaço voltado para a promoção e difusão das artes visuais contemporânea na Universidade e em João Pessoa, caso privilegiasse exclusivamente os artistas paraibanos, em sua maioria voltados para categorias das belas artes.

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PONTUA L, Roberto. Um Núcleo fora do núcleo (ou como ativar longe do eixo). Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 fev. 1979. Caderno B, p. 25-26. Fonte: Acervo NAC/ UFPB. Grifos da autora. 13 ALTINO, Jose. Artes Visuais. João Pessoa, s.d. Mimeografado. Fonte: Acervo NA C/UFPB. 14 Ibidem 15 Entrev ista concedida por Paulo Sérgio Duarte a Ivair Reinald im. In : REINA LDIM, 2010, p. 130. 243 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Com relação a presença dos artistas locais cabe destacar ainda que o NAC/UFPB sempre esteve aberto e disposto a apoia- los. Essa afirmação pode ser confirmada nas diversas ações concebidas, especificamente, para eles, caso dos cursos, das oficinas e das conversas com os artistas visitantes. A resistência/rejeição de fato existiu, mas partiu de parte dos artistas que segundo Dias, “[...] achavam que iam ser banidos, que hordas de artistas do „sul‟ iriam chegar para se sobrepor à cultura local. [...] Houve muita reação local. Ac ho que preferiram manter o isolamento [...]”16 . Apesar das dificuldades de inserção e das particularidades da situação cultural paraibana, o NAC/UFPB conseguiu implementar, durante três anos (de 1978 a 1981), sua proposta. O jovem crítico Duarte ao analisar os primeiros anos de atuação do Núcleo destaca: [...] O N.A.C. apresentou uma bateria de exposições onde trouxe à mostra a maior diversidade de tendências da arte contemporânea no Brasil. Não se privilegiou “ismos” ou rótulos fáceis; ao contrário, exigiu-se u m esforço de ruptura com idéias preconcebidas. O trabalho do NAC não colaborou para fortalecer u ma arte refrescante para o olhar. Quando um mo mento de fru ição pode fixar-se no elemento puramente sensível, este atrativo esteve ligado à necessidade de conhecimento de outros problemas escamoteados pelo aspecto puramente estético17 .

Ou seja, o Núcleo ao promover proposições que exploravam uma variada gama de técnica, mídias, materiais e suportes conseguiu se estabelecer como um espaço voltado para a difusão, produção e formação em arte contemporânea e, simultaneamente, ampliar/relativizar as noções artísticas que vigoravam em João Pessoa, atuando como “um dos raros organismos de fato operativos fora do eixo Rio-São Paulo”18 . A posição defendida por Duarte, na qual toma como exemplo a mostra de serigrafias do artista Claudio Tozzi, fornece alguns elementos para se compreender como a proposta do NAC/UFPB funcionava: [...] O trabal ho de Tozzi servi u de apoio à discussão das técnicas de reprodução e suas relações com a obra de arte. Esta questão se estende bem além das simples gramát icas de mu ltiplicação. Nela se confrontam dois universos contraditórios. De um lado, o trabalho de arte part idário de u ma função nostálgica a realimentar o mito do “original”, do único, do exclusivo. Valores estéticos erigidos numa situação histórica concreta encobrindo uma determinada relação social de produção de bens culturais. De outro lado, encontra-se cada vez mais à d isposição do artista meios industriais de reprodução da imagem que vão desde a simp les mesa de serigrafia até as estações eletrônicas para a gravação em fita magnética. A produção de imagens com recursos industriais causou um dos mais importantes abalos nos valores que 16

DIAS, Antonio. Entrevista concedida a Roberto Conduru. In: CONDURU, Roberto; RIBEIRO, Marília André (Org.). Antonio Dias: depoimentos. Belo Horizonte: C/Arte, 2010, p. 30. 17 DUARTE, Pau lo Sérg io. Introdução. In: NAC/ UFPB (Org.). A LMANAC. João Pessoa: NAC/UFPBFUNARTE, 1980. 18 Ibidem. 244 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


organizam e sustentam a ideologia das belas -artes. Muitas transformações no espaço de produção artística decorreram do impacto da época industrial redimensionando a 19 circulação de bens culturais e impondo novos códigos de leitura [...] .

Ou seja, não se tratava simplesmente de exibir as serigrafias de Tozzi, mas, também, relativizar valores como autoria, original e cópia, além de discutir o impacto das novas tecnologias de reprodução/criação da imagem na arte, passando ainda por questões relativas ao mercado e democratização da produção artística na contemporaneidade. Logo, por meio da problematização de suas exposições, o Núcleo esperava contribuir para a formação de um “espírito crítico”20 diante de “problemas complexos como [o] que envolve a formação estética e artística numa região distante dos grandes centros de produção e decisão”21 . Assim sendo, percebe-se todo esforço do NAC/UFPB para ampliar o repertório visual e teórico dos artistas locais e relativizar as noções artísticas que vigoravam em João Pessoa. Para tanto, o Núcleo não se limitou a promover a exibição de trabalhos que exploravam uma variada gama de técnica, mídias, materiais e suportes (xerox arte, arte correio, art-door, livro de artista, videoarte, fotografia, instalação); também garantiu que suas exposições fossem acompanhadas de palestras, cursos ou oficinas e que os artistas visitantes, sempre que possível, explicassem sua proposta, compartilhassem experiências, conversassem e discutissem questões relativas a linguagem artística e/ou meios que exploravam, com o público interessado. Além disso, o Núcleo procurou fomentar projetos de pesquisas e eventos que evidenciassem a aproximação das artes visuais com outras categorias artísticas, especificamente o cinema, a cenografia, a música, a literatura e a arquitetura. Esse comprometimento com a arte contemporânea e suas questões resultou em ações de extrema relevância, muitas pioneiras e avançadas para a realidade institucional paraibana e nordestina na época. Também é louvável sua preocupação e empenho em envolver os artistas em sua proposta, tanto por meio de ações de caráter mais reflexivo quanto por meio do estímulo a uma produção experimental, o que certamente contribuiu para ampliar e relativizar as noções artísticas vigentes.

19

Ibidem.

20

CORDULA, Raul. Porque u m Núcleo de Arte Contemporânea na Universidade. João Pesso a, [198-]. 6f. Mimeografado. 21

Ibidem. 245 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A proposta concebida por Duarte e Dias, foi efetivada até 1981, quando se observa uma diminuição significativa das atividades do Núcleo, com a quantidade de exposições reduzindo em quase 50%, caindo de 13 em 1980 para 7 em 1981. De 1982 em diante, acompanhada de uma crescente diminuição de suas atividades, observa-se a modificação da proposta inicial. O enfoque antes dado à arte contemporânea (a sua exibição, produção e formação) é substituído pela ênfase nas tradicionais categorias artísticas e na promoção da arte regional. As ações de formação, além de poucas, não estavam relacionadas nem problematizavam as exposições. Essa modificações não foram expressões de uma proposta ou preocupação efetiva em converter o NAC/UFPB num centro de formação, valorização e promoção da arte regional. É importante destacar que a partir da década de 1980 a discussão em torno da questão regional recebe maior relevo nas artes plásticas, marcando presença na produção artística e no debate crítico. Nesse momento, a crítica Aracy Amaral identifica duas modalidades de animação cultural; a primeira seria relacionar a informação internacionalista com o local, com a discussão incidindo, geralmente, sobre a própria arte. A segunda se apoiaria “no próprio ambiente cultural local, transformando-o, tornando-o gerador de um processo de autovalorização, revitalizando formas de expressões que se arriscam a cair em desuso, ou que são menosprezadas [...]”22 . No entanto, no caso do NAC/UFPB, percebe-se que o enfoque na produção da região não veio fundamentado em nenhuma proposta ou numa real preocupação em convertê- lo num centro de valorização e promoção da arte regional. Tampouco essas modificações devem ser interpretadas como consequência da implementação de uma nova proposta (com metas, estratégias de ações e objetivos definidos), mas como a falta de interesse de sua coordenação em dar continuidade à proposta concebida por Duarte e Dias num momento em que, além da saída de Duarte e da crise institucional na UFPB, as políticas culturais que haviam possibilitado a criação e manutenção do NAC passam por transformações e assumem outros interesses 23 , como bem notou Antonio Dias: “depois que o Paulo Sérgio Duarte saiu, esse

22

AMARAL, Aracy. O grupo de Cuiabá: sol e energ ia. In : ______. Arte e meio artístico: entre a feijoada e o xburguer: 1961 - 1981. São Pau lo: Nobel, 1983. p. 371-375. 23

Para u m ap rofundamento da questão ver: JORDÃO, Fabricia Cabral de Lira. O Núcleo de Arte Contemporânea da Un iversdidade Federal da Paraíba 1978|1985. 2012. 240 p. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Co municação e Artes, Universidade de São Pau lo, São Paulo, 2012. 246 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Núcleo de Arte Contemporânea ficou praticamente morto durante sete ou oito anos [...] tudo depende de vontade política, não há dinheiro nem liderança”24 . Se por um lado a trajetória do NAC/UFPB demonstra o potencial da instituição para transformar e formar o processo cultural, por outro ratifica que na ausência de uma tradição e definição institucional a ativação desse potencial dependerá da maior ou menor consciência institucional (e, portanto, pública), dos esforços, articulações e atuação de seus gestores. Essa configuração, apesar de não inviabilizar o desenvolvimento de propostas institucionais significativas, compromete sua continuidade a longo prazo, já que a cada nova gestão as propostas e projetos desenvolvidos pela gestão anterior são modificados ou desconsiderados. Caso do NAC/UFPB que em sua primeira fase implementou – sobretudo por conta dos esforços de Paulo Sergio Duarte – uma proposta concebida a partir de uma real preocupação com as demandas e necessidades da área e que, pouco tempo após sua saída, foi completamente modificada. Por fim, considerando-se que no Brasil o desempenho positivo ou não de uma instituição dependerá em grande medida da atuação de seus gestores, passados mais de 30 anos de sua fundação, o NAC/UFPB novamente conta com a presença de uma coordenação que não só respeita a proposta concebida por Dias e Duarte como vem trabalhando nesses últimos 5 anos, com o auxílio de uma equipe afetiva e efetivamente comprometida, de maneira incansável, por sua reativação. Nesse sentido, apesar da inexistência de uma política de memória, do pouco apoio da UFPB e do descaso do Departamento de Artes Visuais, as perspectivas são animadoras a médio prazo. No entanto, é imprescindível, para que os resultados desses esforços permaneçam a longo prazo, lutar por mecanismos legais que não só assegurarem critérios de continuidade mas também, e principalmente, garantam a manutenção da política e perfil institucional do NAC/UFPB, tornando evidente que a definição de qualquer proposta e/ou projeto, seja ele de curto, médio ou longo prazo, deve partir (e respeitar), necessariamente, sua razão de ser institucional. Enquanto isso não acontece, o NAC/UFPB, continuará a sobreviver nas trincheiras.

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DIAS, Antonio. Entrevista concedida a Roberto Conduru. In: CONDURU; RIBEIRO, 2010, p. 30. 247 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


‘AS FIANDEIRAS’ Bricolagens, inter-relações e desdobramentos de um mito Josimar Ferreira 1 Resumo: “As Fiandeiras”, quadro de tema mitológico produzido no Barroco Espanhol, é uma das mais complexas obras de Velázquez, trabalha o tema fiar, o tecer, e sua ligação com a vida e a morte. É uma busca pela fábula antiga e seu modo de entendê-la, interpretá-la e reinterpreta-la. Uma bricolagem de mitos entrelaçados. O quadro em análise tem significado ambíguo permite várias interpretações. Aqui será analisada a sua interpretação mitológica, tendo como ponto de partida o título original, „A Fabula de Aracne‟. É colocado em perspectiva três textos mitológicos, textos estes que convergem em um ponto de fuga que é o próprio texto pictórico em sua estrutura narrativa. Palavras- chave: Fiandeiras. Reinterpretação. Bricolagem. Atualização.

“O barroco remete não a uma essência, mas sobretudo a uma função operatória, a um traço. Não para de fazer dobras. Ele não inventou esta coisa [...] Mas ele curva e recurva as dobra s, leva-as ao infinito, dobra sobre dobra, dobra conforme dobra. O traço do barroco é a dobra que vai ao infinito.” Gilles Deleuze

Contextualização Histórica O quadro “As Fiandeiras”, é uma das mais complexas obras de Velázquez, conhecido também como “A Fabula de Aracne”, trabalha o tema fiar, o tecer, e sua ligação com a vida e a morte. Essa obra é um tema mitológico produzido na ultima fase do pintor, pertencente ao Barroco Espanhol. Podemos dividir a vida de Velázquez em quatro períodos que vão marcar sua evolução artística. 1º Período: Velázquez em Sevilha. Diego Rodríguez de Silva y Velázquez, nasce em Sevilha em junho de 1599, filho de integrantes da pequena nobreza. Sevilha influenciou de modo determinante a formação de Velázquez. Em dezembro de 1610, ingressa no ateliê de Francisco Pacheco, que será seu grande mestre. Homem de ampla cultura e bem relacionado com os meios intelectuais, ensina 1

Graduado em Artes Plásticas pela FAAC/UNESP, campus de Bauru (2011). Atualmente aluno especia l do mestrado em Artes Visuais no CEA RT/UDESC e em Filosofia no CFH/UFSC, ambos em Florianópolis/SC. 248 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


coisas essenciais e que o desenho é fundamento de toda beleza pictórica, um quadro não deve estar só bem colorido, mas bem composto, bem desenhado despertando uma emoção estética. Ao ser nomeado pintor oficial da Corte, em 1623, Velázquez encerra a etapa sevilhana, que iniciou co o estudo de diversos tipos humanos – velhos, jovens, mulheres, etc, o colorido do vestuário e objetos de gêneros variados – É predominante nesta etapa a técnica tenebrista, que destaca fortemente as figuras iluminadas em primeiro plano sobre um fundo escuro, utilizando uma cor espessa que recobre totalmente o quadro. As obras correspondentes a esse período se distribuem em quadros de gênero religiosos e retratos, “Cristo em casa de Marta e Maria”, “A Mulata”, “a Velha Fritando Ovos”, “Aguadeiro de Sevilha” entre outros. Em algumas dessas ele já usa o estudo de um “quadro dentro do quadro”. 2º Período: Velázquez em Madri. Como pintor de Câmara, tem acesso às coleções reais, tanto no Alcazar, como no Prado e no Escorial. As coleções são ricas em obras venezianas, particularmente em Ticiano e Veronês. Obras que serão decisivas na formação do p intor. Conhece o pintor flamengo Peter Paul Rubens, que passava por Madri. Viaja para a Itália no ano seguinte, pois o fundamento da boa pintura estava em Veneza. Nesta etapa da obra de Velázquez, ocorre uma maior valorização da luz em função da cor e a composição, o que conduz a ordenações mais estudadas e o aclaramento dos fundos. É deste período também a grande atividade como retratista. Pinta também, as primeiras obras de temas mitológicos, nas quais a visão realista da mitologia é a característica ma is marcante, vemos isso em “O Triunfo de Baco” ou “Os Bebados”. A primeira viagem à Itália, em agosto de 1629, encerra a primeira etapa madrilena, desta viagem procura um enriquecimento através do conhecimento direto dos mestres italianos – Tintoretto, Miguel Ângelo e Rafael – e realiza: “A Túnica de José” e “A Forja de Vulcano”, conseguindo realizar a captação do fugaz, do movimento contido, conforme a estética barroca. 3º Período: Atividade palaciana.

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Ao regressar de Madri, em janeiro de 1631, Velázquez inicia uma etapa de atividades palacianas. Tem o encargo da reforma dos palácios reais. Gozando da confiança do rei e diante da necessidade de adquirir obras para os novos salões reais, Velázquez decide novamente viajar à Itália, em janeiro de 1649, onde sua técnica vai se enriquecer em vários aspectos. O pintor busca a representação da luz real, o que conduz as pinceladas quebradas e justapostas, diferentes das superfícies continuadas da primeira fase madrilena. As pinceladas são agora mais fluidas, conseguindo um efeito ótico a uma certa distância, iniciando assim, os princípios técnicos que triunfam com a pintura impressionista no século XIX. São predominantes neste período, os retratos da “Rainha Mariana da Áustria”, o de “Felipe IV” e o da “Infanta Margarida”, com trajes da alta realeza. Surpreendente é o trato do “Papa Inocêncio X”. A este período correspondem também, a “Vênus no Espelho”. Em junho de 1651 Velázquez está de volta à Corte. 4º Período: A última fase. Pouco depois do seu retorno a Madri, Velázquez é nomeado para mais um cargo dentro do Palácio: o de “Aposentador Maior”, intensificando sua atividade na corte, p que não impede que nesse período realize suas obras mais importantes. As duas viagens que o pintor realizou à Itália fizeram com que o gosto pela linguagem clássica ocasionasse sua devoção pela fábula antiga e seu modo de entendê-la e interpretá- la. Com “As Meninas”, Velázquez realiza sua obra prima. Obra também de diversas interpretações, como tema da história, se encontra dentro do âmbito da vida dos reis; como realização artística, é a culminância dos recursos pictóricos, tanto técnicos como de representação, com seu efeito de profundidade, a incrível captação da atmosfera o jogo de luz, a ruptura do plano real e o imaginário e a brilhante presença do retrato. Dentro da mesma linha do naturalismo, os quadros mitológicos são particularmente importantes na ultima fase de Velázquez, tanto pela técnica pictórica no tratamento de luz, cor e composição, como a composição intelectual e simbólica do tema.

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“A Fiandeiras”, obra mais representativa de Velázquez, dentro do tema mitológico, está inserida no momento na história da arte pictórica em que se sente um cansaço ante os quadros de temas religiosos, daí uma busca também por temas mais irreais – os mitológicos. A Espanha de Felipe IV condensa-se nos efeitos causados pela Contra-Reforma, no absolutismo monárquico, nos conflitos políticos e religiosos, no sentimento de honra e na esfera do teatro que era um reflexo da própria vida. Em Mad ri respirava-se um ambiente teatral. As lutas acirradas entre os filósofos do idealismo e do materialismo e uma cosmovisão científica também são características desse período. Embora seja o barroco espanhol e uma cultura particular, não podemos nos esquecer de que algumas realizações da era barroca foram internacionais. Para Arnold Hauser (2000) a nova cosmovisão cientifica decorreu da descoberta de Copérnico por volta de 1610. A teoria de que a Terra se desloca em torno do Sol, em vez de o universo mover-se ao redor da Terra, como se sustentava antes, mudou para sempre o antigo lugar atribuído ao homem no universo. Em 1650 Galileu comprovou o movimento dos corpos celestes. A Terra não é o centro do universo, ela é apenas um dos planetas que giram em torno do Sol, que é o centro do sistema. Saímos, então, da posição de centro do mundo para nos tornarmos apenas parte; deixamos de ser o centro privilegiado para ser uma coisa instável que roda em torno de outro. A Terra não é o centro do sistema e nem está rodeada por esferas fixas, pelo contrário, há um espaço infinito onde esses corpos celestes estão girando e não se sabe o tamanho desse espaço. É esse espaço móvel e infinito, o espaço da pintura barroca. O homem que não tem mais certezas definitivas, cria o espaço barroco. Por isso nesse espaço não cabe tudo, podemos observar isso na obra de Velázquez, um grande representante desse período. Já não se põe tudo dentro de um quadro, porque já se sabe da relatividade do espaço e da visão. Se a Renascença se caracterizou pelo equilíbrio, pela harmonia, pela racionalidade das construções, o Barroco passa a impressão de que o mundo está fora do quadro e que o pintor apreendeu, apenas, uma parte dele. Segundo Gombrich (2000), nas principais obras de Velázquez vemos que ele confiou na nossa imaginação para seguir a sua orientação e completar o que está de fora. 251 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Bricolagens e desdobrame ntos do mito Ao reconhecer em “As fiandeiras” uma narrativa, torna-se necessário o estudo da cena, das seqüências e do encadeamento lógico. Através de uma análise inicial da composição e ordenação dos elementos observamos na obra de Velázquez, vemos o estilo pictórico do séc. XVII, que como diz Wölfflin (2000) deixa-se de ver em linhas e passa-se a ver em massas, ao invés de isolar os objetos, reúne-os. É como se todos os pontos fossem animados por um movimento. As figuras têm a sua existência associada aos demais motivos do quadro. Com relação à desvalorização do estilo linear, podemos observar que a forma de contornos favorece uma ligação, na qual uma forma busca a outra, criando a impressão de um movimento contínuo. O que tem importância é a unidade e o conjunto do quadro. Característica essa do período em questão. Os olhares das personagens da obra descrevem direções visuais, percorrem espaços, as figuras estão representadas por meio de linhas curvas e graciosas, reforçando a ilusão de movimento, dando a sensação de um grande “gerúndio”; elas estão trabalhando... conversando... fiando...ando...ando.

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FIGURA 1 “As Fiandeiras” – Velázquez. Óleo em tela, 220x289 cm. Museu do Prado, Madri (Espanha). 1657.

O movimento dos corpos é um destaque que completa e desempenha funções de movimento. Os objetos que compõe o ambiente também determinam direções visuais : segmentos de retas verticais, horizontais e inclinadas; linhas circulares e curvas que se misturam às diferentes vistas possíveis dos corpos das figuras femininas (frente, lado, costas). O que mais destaca pela configuração é a roca em movimento rotatório. Sabemos que uma roca de fiar gira com muita força, e em virtude da velocidade, nenhum dos raios pode ser visto. A visão dos raios destruiria a impressão de movimento, conseguida com grande habilidade pelo artista. Um dos motivos preferidos pela pintura barroca, segundo Wölfflin (2000) consiste em intensificar o movimento em direção à profundidade, através de um primeiro plano e uma

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súbita diminuição de tamanho que dirige ao fundo. O quadro esta estruturado em dois espaços e neles podemos estabelecer novas relações. O primeiro espaço, caracterizamos como: espaço-sombra; espaço-opacidade; espaçosimplicidade; espaço-produção; espaço-trabalho. Nele estão presentes elementos que assim o configuram como um ambiente de trabalho, de produção: uma roca, novelos de lã, fios, escada, entre outros objetos. As vestimentas das mulheres são simples: saias sem amarração,mangas das camisas dobradas, pés descalços. Tudo um trabalho árduo e sem interrupção. O segundo espaço caracterizamos como: espaço- luz; espaço-brilho; espaço-luxo; espaço-produto; espaço-ócio. Os elementos que assim o configuram são: os ricos tapetes expostos na parede para serem apreciados, colocados em destaque, as damas bem vestidas, um instrumento musical, indicando um local de diversão. Apesar

dos

espaços

terem

“qualidades” diferentes,

estabelecem

entre

si

correspondências plásticas e temáticas. Por correspondências plásticas vemos o jogo de luz e sombra que percorre os ambientes, pelas direções visuais, pela homogeneidade de cores, pelo efeito de profundidade, pela simetria. Existe uma relação entre a parte e o todo, sentimos a existência de programas narrativos organizados com elos que se unem. Com relação às correspondências temáticas, podemos tomar como ponto de partida a relação processo-produto que há no quadro. A roca é o elemento definidor do processo, colocada no primeiro plano e em grande proporção e o tapete, colocado ao fundo, como definidor do produto. O tapete, colocado no fundo do quadro, somente possui “vida” em relação às mulheres que fiam e a seu instrumento de trabalho – a roca. Para se chegar ao tapete é preciso tecer o fio. Temos um programa narrativo precedendo outro. Em As Fiandeiras a história se articula em três seqüências que se constroem, no interior do relato. Nos três casos o relato se foca em seqüências gradativas: o fio, o tecer, a trama, o tapete. A ação das personagens passa-se em um cenário, que envolve e limita o lugar da cena sobre o qual se mostram sucessivamente os episódios sucessões. A relação à estruturação do espaço do quadro está ligada ao se u espaço cenográfico. O ambiente teatral 254 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


era o que se respirava em Madri, na época de Velázquez. É visto em grande parte de sua obra, como em As Fiandeiras e em As Meninas. Trabalha com a sua mecânica de funcionamento, agrupamento e ação das personagens. O ambiente que vemos é uma oficina de trabalho. Uma cortina é recolhida, o que permite associar à idéia de representação, como se a obra tivesse começado e estivéssemos ali presentes. Na parede (direita) flocos de lã, à esquerda um golpe de luz, o que indica que poderia existir uma janela aberta. Na parede frontal abre um vão, que conduz a uma outra habitação, com dois degraus. Uma parede oculta na parede esquerda, deixa entrar uma luz intensa que ilumina a cena. Há dois tapetes na parede, um posto de frente e outro na lateral direita, onde se encontram damas, uma delas olhando para a oficina, serve de elo entre os dois espaços. A presença do tapete confirma a influência do teatro, assim como o instrumento musical composto no quadro. Para Omar Calabrese (1987) é um motivo bastante repetido, e que nunca foi analisado pelos historiadores da arte em seu significado. O tapete não é um elemento lexical, mas sintático. Não funciona como tapete apenas o reconhecemos como tapete. Analisando as figuras colocadas no tapete, apesar da falta de nitidez na sua representação, notamos a presença de dois anjos no canto superior. No canto inferior direito do mesmo tapete, vemos ainda um fragmento de um lenço vermelho e a cabeça de um toureiro. Essas figuras representadas nos remete a um quadro de Ticiano, denominado o Rapto de Europa. Velázquez e outros artistas tinham uma grande devoção pelo pintor veneziano, tudo leva a crer que este quadro foi copiado quando ele passou por Madri. A obra de Ticiano foi colocada como um tapete que dá unidade temática ao quadro, mas não funciona como tapete. Usou um tapete como espelho que reflete uma cena, fato que não estava lá. É o cenário da encenação do Rapto de Europa, um possível “pano de fundo” para a representação de Velázquez. O pinto r fez isso em outras obras, em que se questiona o que ele quis pintar de verdade. O quadro em análise é característico da cultura do séc. XVII, seu significado ambíguo permite várias interpretações. Aqui será analisada a sua interpretação mitológica, tendo como ponto de partida o título original, „A Fabula de Aracne”. É colocado em perspectiva três 255 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


textos mitológicos, textos estes que convergem em um ponto de fuga que é o próprio texto pictórico em sua estrutura narrativa. Sabemos que os artistas dessa época se inspiravam nos versos pagãos de Ovídio (1983), se debruçam em temas da Antiguidade. O interesse pelos deuses pagãos sempre esteve presente como motivo artístico. As Metamorfoses de Ovídio, influenciaram artistas renascentistas, que foi fonte de períodos seguintes. Um quadro é um texto, todo texto teria ponto de entrada e pontos de fuga, quando vamos ler se produz uma leitura que caminha em uma direção. Encontramos nos planos do quadro uma coerência textual entre três narrativas mitológicas que a compõe: “As Parcas”, “A Fabula de Aracne” e o “Rapto de Europa”. Todas estão inter-relacionadas dentro de um novo texto que é “As Fiandeiras”. Os mitos que estão presentes no quadro vão determinar um percurso narrativo. O tema fiar está presente nas três cenas, a ultima brilhantemente composta por Velázquez em forma de tapete. Os três textos estão entrelaçados, formando um tecido, onde eles se cruzam. As fiandeiras do primeiro plano, mulheres tecendo nos chamam a atenção no nosso percurso e nos convida à entrar na cena. São representadas como mulheres tecendo, mas seriam as Parcas, no entanto essa relação com as Parcas não é imediata ou transparente. Passa antes a idéia de tecer, que também seria a função das Parcas, conhecidas como as “fiandeiras do destino” na mitologia. Há também uma ligação entre vida e morte, tema comum no maneirismo barroco. Brandão (1997) afirma que as Parcas são uma projeção das Moiras: Cloto, Laquésis e Atropos, fiandeiras da vida e da morte: uma segura o fuso e puxa o fio da vida, a segunda enrola-o e sorteia o nome de quem de quem deve deixar a luz e a terceira corta-o inflexivelmente. O destino é fiado para cada um pelas Parcas. Como se observa, a idéia de vida e morte é inerente à função de fiar. No espaço mais iluminado do quadro, o segundo espaço, vemos o mesmo núcleo temático – o tecer. Aqui a referência é mais direta com a mitologia, pois “A Fábula de Aracne” é o título original do quadro, e essa fábula tem como tema central uma trama, a disputa entre a deusa Minerva (Palas Atena) e a mortal Aracne, tecelã de tapetes. Nesse 256 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


espaço temos três damas bem vestidas observando a cena, e duas figuras, possivelmente Minerva e Aracne, pivôs da disputa em questão. No livro de Ovídio (1983), encontramos o texto que narra essa fábula. Palas Atena (Minerva), deusa da guerra, da sabedoria, e das artes (arte para os gregos era técnica), ela presidia os trabalhos femininos da fiação, tecelagem e bordado. Aracne filha de um tintureiro e hábil tecelã, desafia a deusa à uma competição pública, a deusa aceita o desafio. Atena representou em sua tapeçaria os doze deuses do Olimpo em sua majestade. Aracne, maliciosamente compôs aventuras amorosas de Zeus (Júpiter), com jovens mortais onde ele se metamorfoseou como cisne, como sátiro, como ouro, como fogo, como serpente, como carneiro, como cavalo entre outras formas e como touro, onde ele rapta Europa. Atena examinou o trabalho da jovem, nenhum deslize, nenhuma irregularidade. Estava perfeito. Vendo-se vencida ou igualada em sua arte por uma simples mortal e irritada com a cena criada por Aracne, a deusa fez em pedaços o trabalho de sua competidora e ainda a feriu com sua lança. Insultada Aracne tentou se enforcar, mas Atena não permitiu, aliviou- lhe o peso e transformou-a em aranha, para que tecesse pelo resto da vida. A deusa Minerva é representada por Velázquez com a lança na mão e um elmo na cabeça, vestida para a guerra, pois é assim que o pintor nos faz reconhecer a deusa, e Aracne no centro da obra, quase incorpórea, como se nesse exato momento que a olhamos estivesse sendo convertida em aranha. Velázquez parece quis captar esse exato momento. A deusa Minerva e a donzela Aracne parecem puros clarões impressionistas ante um tapete envolto em luz. Neste mesmo espaço da narrativa aparecem damas vestidas luxuosamente, que possui uma leitura ambígua. Fazia parte do contexto histórico em que a obra se insere, a importante “Fabrica de Tapetes Santa Isabel”, esse local era visitado com freqüência pelas damas da corte e pela família real. Também podemos associar elas as ninfas e as musas que presidiam a cena na fabula. Se fossemos visitar a fábrica de tapetes em Madri, não veríamos como “viu” Velázquez, Minerva e Aracne, ali materializadas, nem as Parcas tecendo. Velázquez fez uso de um ambiente comum para retratar o tema mitológico.

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Conclusões No fundo como já foi dito anteriormente Velázquez utilizou-se de um tapete para representar uma cena que não está ali, e esta cena foi tecida também por Aracne em seu desafio com a deusa Minerva. Desta forma Velázquez brinca com o tema presente em toda a obra – o tecer, quando transforma o quadro de Ticiano no pano de fundo de sua narrativa. Talvez estivesse querendo fazer uma reflexão sobre a arte pictórica como já havia feito em “As Meninas”. Em as Meninas ele se coloca pintando, aqui ele coloca uma obra já pronta. Velázquez fundiu em uma admirável unidade a fábula e a cotidianidade de forma clara e impressionante. Segundo Gilles Deleuze (1991), uma obra barroca, é uma obra que remete a varias dobras levadas ao infinito. Vemos isto nesta obra e nos mitos inter-relacionados entre si. Estão uns dobrados sobre os outros, que se redobram e se desdobram dentro da imagem articulada e construída pelo artista. A obra ao invés de um todo homogêneo, é na realidade uma narrativa complexa suscetível de numerosas escolhas interpretativas. As formas parciais aqui – a roca, o fuso, fio, o tapete – foram fundidos num movimento geral que domina a tela, produzindo o efeito de um todo articulado, que passa pelo tema mítico do fiar. Assim, as Parcas, que são figuras que comandam o destino das pessoas, vão determinar também o percurso da tela em questão, parece que elas estão criando a trama em questão.

Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petropolis: Vozes, 1997. CALABRESE, Omar. A Linguage m da Arte. Lisboa: Presença, 1986. DELEUZE, Gilles. A Dobra: Leibniz e o barroco. Campinas. São Paulo: Papirus, 1991. GOMBRICH, H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2000.

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HAUSER, Arnold. Historia Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000. JANSON, W. H. Iniciação História da Arte. WMF Martins Fontes, 2009. OVIDIO. As Metamorfoses. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983. ORTGA Y GASSET, José. Velazquez. Madrid: Revista de Occidente, 1959. WOLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da historia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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O LABORATÓRIO DE MÍDIAS LOCATIVAS E CINEMA GPS (LALOCA) E A PESQUISA HISTÓRICA Mapeamento Anotativo das Obras Arquitetônicas do Estilo Art Déco em Juiz de Fora, Minas Gerais Lúcio Reis Filho 1 Alfredo Suppia 2 Resumo: A arte com mídias locativas (locative media art) surge da necessidade de repensar a relação do ser humano com o seu entorno geográfico, muitas vezes o espaço urbano, mas também regiões inabitadas (desertos, reservas ecológicas, etc.). Dessa forma, algumas interpretações sugerem a arte com mídias locativas como um espaço entre o simbólico e o imaginário. Outras perspectivas teóricas apontam para as mídias locativas e a sua relação com a arte digital. Ao longo dos últimos dez anos, mídias locativas têm servido de suporte para a confecção de variadas obras de arte. Christiane Paul explica que “[a]s mídias locativas usam uma localização no espaço público como uma „tela‟ (canvas) para a implementação de um projeto artístico e têm se tornado uma das mais ativas e crescentes áreas da new media art.” O Laboratório de Mídias Locativas e Cinema GPS (LaLoca), baseado no Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora, com filial na Universidade da Califórnia em San Diego ( UCSD), EUA, reúne pesquisadores brasileiros e estrangeiros, bem como bolsistas de iniciação científica em seus variados projetos. O LaLoca tem por objetivo principal estabelecer um polo de produção e pesquisa de mídias móveis. Até o momento, o LaLoca tem se concentrado na produção de filmes locativos com roteiro interativo e recurso a ferramentas abertas, criadas e disponibilizadas em software livre, em parceria com a Casa de Cultura Digital em São Paulo e seu projeto “Arte Fora do Museu”. Iniciativas como o “Arte Fora do Museu” sugerem novas reflexões sobre o tema “artistas e instituições de arte”. Como primeiro conteúdo audiovisual confeccionado pelo LaLoca, destacamos o mini-documentário locativo que visa mapear as edificações mais representativas do estilo art-déco em Juiz de Fora. De acordo com Marcos Olender, o art-déco surge em Juiz de Fora como expressão de uma nova época econômica, social e cultural. “Em lugar das mansões e sobrados ecléticos, representativos do poderio dos barões de café ou dos industriais, o novo estilo vai representar um período histórico em que o comércio, o lazer cultural e os serviços apresentam um grande desenvolvimento na cidade” (Olender, 2011, p. 261). Dessa maneira, através do mapeamento das construções arquitetônicas desse estilo em Juiz de Fora, propomos observar o uso das mídias locativas como ferramenta de pesquisa histórica. Palavras-Chave: Laboratório de Mídias Locativas e Cinema GPS. Mídias Locativas. Arte Digital. Art-Déco. Juiz de Fora. Abstract: The art with locative media (locative media art) arises from the need to rethink the relationship of humans with their geographical surroundings, often urban space, but also uninhabited areas (deserts, nature reserves, etc.). Thus, some interpretations consider art with locative media as a space between the symbolic and the imaginary. Other theoretical perspectives point to locative media and its relationship with digital art. Over the last ten years, locative media have served as support for making various artworks. Christiane Paul explains that "locative media use located in the public space as a „canvas‟ for the implementation of an art project and have become one of the most active and growing areas of new media art." The Laboratório de Mídias Locativas e Cinema GPS (Laboratory of Locative Media and GPS Cinema, LaLoca), based at the 1 2

Mestre em Co municação pela UFJF e Professor do Departamento de História da UEM G/ FCCP. Doutor em Mult imeios pela UNICAMP e Pro fessor de Cinema da UFJF. 260 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Art and Design Institute, Federal University of Juiz de Fora, Brazil, with branch at the University of California at San Diego (UCSD), USA, brings together Brazilian and foreign researchers and undergraduates scholars in their various projects. LaLoca aims to establish a center of production and research of mobile media. So far, the La Loca concentrates efforts on film production and interactive script with locative use of open tools, created and made available on free software in partnership with Casa de Cultura Digital, São Paulo, and its project “Arte Fora do Museu” (Art Outside the Museum). Initiatives such as the "Arte Fora do Museu" suggest new reflections on "artists and art institutions." As a first audiovisual content made by LaLoca, we highlight the locative mini-documentary that aims to map the most representative buildings of the art deco style in Juiz de Fora. According to Mark Olender, the art-deco arises in Juiz de Fora as expression of a new economic, social and cultural epoch. "Instead of mansions and eclectic townhouses, representing the power of the coffee or industrial barons, the new style will represent a historical period in which trade, leisure and cultural services present a great development in the city" (Olender, 2011, p. 261). Thus, by mapping the architectural buildings of this style in Juiz de Fora, we propose to observe the use of locative media as a tool for historical research. Keywords: Laboratório de Mídias Locativas e Cinema GPS. Locative Media. Digital Art. Art Deco. Juiz de Fora.

1. Art déco em Juiz de Fora, Minas Gerais Para Telma Correia (2008: 49), art déco “ainda se coloca como o termo mais apropriado e abrangente para caracterizar uma determinada tendência de arquitetura que se difunde no país entre a década de 1930 e meados dos anos 1950, na medida em que dá conta de características relevantes dessa produção e está claramente vinculada a um período específico”. Segundo Marcos Olender (2011: 260), no Brasil “o art déco prolifera em várias cidades, de diversos portes, destacando-se principalmente naquelas que nasceram ou que tiveram um desenvolvimento urbano significativo nas décadas de vinte a quarenta do século XX”. Podemos citar Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Juiz de Fora e Goiânia. Além de se identificar com o concreto armado, o art déco se transforma no estilo preferido dos programas arquitetônicos nas primeiras décadas do século XX. De acordo com Hugo Segawa:

[...] o art déco foi o suporte formal para inúmeras tipologias arquitetônicas que se afirmavam a partir dos anos 1930. O cinema – e, por associação, alguns teatros –, a grande novidade entre os espetáculos de massa que mimet izava as fantasias da cultura moderna, desfilava sua tecnologia sonora e visual em deslumb rantes salas do Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras capitais, em verdadeiros monu mentos déco; algumas sedes de emissoras de rádio foram construídas ao gosto (SEGAWA apud OLENDER, 2011: 260).

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Correia (2008: 50) sugere que “o aspecto inovador da arquitetura art déco situa-se na frequente simplificação geometrizante de seus elementos decorativos e na diversificação e atualização de suas fontes de influência ornamental”. Ainda segundo Correia, o estilo “incorporou referências à máquina, às vanguardas artísticas, a manifestações de arte primitiva e de arquiteturas da Antiguidade, assim como o uso cenográfico de luz artificial” (2008: 50). Em Juiz de Fora, como sugere Olender (2011: 261), as geométricas “flores de pedra” do art déco viriam a substituir os “jardins orgânicos” de ferro e vidro do art nouveau. O art déco surge nessa cidade, outrora conhecida como a “Manchester Mineira”, como forma de expressão de uma nova época econômica, social e cultural:

Em lugar das mansões e sobrados ecléticos, representativo do poderio dos barões d e café ou dos industriais, o novo estilo vai rep resentar um período histórico em que o comércio, o lazer cultural e os serviços apresentam um grande desenvolvimento na cidade. Reúne nas ruas Halfeld e Marechal Deodoro, a partir da Praça da Estação, em direção à Av. Rio Branco, a maior concentração de edificações do estilo. São casas comerciais, cinemas e hotéis que se estabeleceram na região para ficarem pró ximos dos visitantes que chegavam à cidade e desembarcavam na Estação Ferroviária [...] (OLENDER, 2011: 261).

Utilizando-se de ornamentos geométricos em diversas e caprichosas composições, a aplicação deste estilo em Juiz de Fora, explica Olender (2011, p. 261), se diferencia daquela de outras cidades da região e do país. Isto se dá pela própria disposição das aberturas e dos espaços internos. O autor observa: “Constituindo-se, basicamente, de edificações de dois ou três pavimentos, apresenta, quase sempre, largas aberturas centrais no térreo, correspondentes às lojas, e os acessos para os outros pavimentos localizados lateralmente” (2011, p. 261). De acordo com Olender (2011: 264), o arquiteto Raphael Arcuri ganhou notoriedade na cidade por importantes construções em art déco, como a Casa Magalhães - em estilo “marajoara”, a qual apresenta como ornamentação, em sua fachada, jarras e outros utensílios de cozinha, materiais vendidos numa loja que originalmente ocupava a construção - e a Galeria Pio X – com fachadas para as ruas Marechal Deodoro e Halfeld, “a primeira galeria comercial construída na cidade e que gerou inúmeras outras que transformaram o centro de Juiz de Fora em um autêntico „shopping a céu aberto‟, atração que ainda encanta os seus habitantes e aqueles que a visitam” (Olender, 2011: 265).

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Localizado na Praça João Pessoa, o Cine-Theatro Central, ainda que não expresse destacadamente o estilo, é ladeado por duas edificações consideradas representantes do art déco. “Consolidam assim um ambiente urbano que, secundado pela simplicidade ornamental da grande fachada principal do Central, manifesta um clima art-déco” (OLENDER, 2011: 261). Hugo Arcuri, filho de Raphael, pretendeu adequar o Central à estética déco, transformando-o numa verdadeira máquina, assumindo a fascinação do estilo pelos maquinismos contemporâneos. Por sua vez, Leonardo B. Castriota (apud OLENDER, 2011: 262) considera o art déco um estilo que se adaptava perfeitamente às novas exigências e programas modernos “de uma sociedade que se via às voltas com a mecanização do seu cotidiano”.

2. Sobre as mídias locativas (locative media) Segundo o Wikipedia: “Mídias locativas são meios de comunicação vinculados a um determinado local. (...) São mídias digitais aplicadas a lugares reais que desencadear

interações

reais

em

um

dado

acabam por

plano

social”

(http://en.wikipedia.org/wiki/Locative_media). Em “Mídias Locatovas e a Esfera Pública”, Stalbaum e Silva (2011) questionam a definição acima, segundo os autores uma concepção simplista, “normalizada” e “autoritária”, que não dá conta de uma série de problemas associados ao fato de imagens poderem dialogar com sistemas geoespaciais (2011: 4). Marc Tuters e Kazys Varnelis (2006) observam que as mídias locativas emergiram ao longo da segunda metade da década passada como uma resposta à experiência descorporificada e excessivamente atada à tela (screen) da net art, ansiando por um território para além das galerias ou telas de computadores. Inicialmente proposto por Karlis Kalnins, o termo locative media foi o foco de certo número de eventos nessa mesma época, sendo o mais significativo deles o Locative Media Workshop organizado pelo RIXC, o Centro de Cultura das Novas Mídias ou Centro de Arte e Mídia Eletrônica em Riga, na Letônia, em 2003. Um relatório produzido por ocasião do workshop delineava o escopo das nascentes mídias locativas, afirmando que equipamentos GPS (Global Positioning System) acessíveis têm dado a amadores os meios de produção de suas próprias informações cartográficas com precisão militar. Em oposição à web, o foco aqui é espacialmente localizado, e centrado no usuário 263 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


individual; uma cartografia colaborativa de mente e espaço, lugares e as conexões entre eles. Em “Headmap Manifesto” (1999), espécie de ur-text para as mídias locativas, Ben Russel observa que dispositivos móveis conectados em rede e “consicentes” de sua localização tornam possíveis anotações invisíveis atreladas a espaços, lugares, pessoas e coisas (1999: 4). Segundo André Lemos (2009), a “Arte com mídias locativas (locative media art) pode ser definida como processos artísticos que usam tecnologias e serviços baseados em localização”, com ênfase no uso e apropriação de espaços urbanos, sugerindo novas relações entre mídia, cidade e ciberespaço.

Podemos definir mídia locativa (locative media) como um conjunto de tecnologias e processos info-co municacionais cujo conteúdo informacional vincula-se a u m lugar específico. (…) Esse conjunto de processos e tecnologias caracteriza-se por emissão de informação digital a partir de lugares/objetos. Esta informação é processada por artefatos sem fio como GPS, telefones celulares, palms e laptops em redes Wi-Fi ou Wi-Max, Bluetooth, ou etiquetas de identificação por rádio freqüência, RFID (Radio Frequecy Identification). As mídias locativas são utilizadas para agregar conteúdo digital a u ma localidade, servindo para funções de monitoramento, vig ilância, mapeamento, geoprocessamento (GIS), localização, anotações ou jogos. Dessa forma, os lugares/objetos passam a dialogar com dispositivos informacionais, enviando, coletando e processando dados a partir de uma relação estreita entre informação digital, localização e artefatos digitais móveis. Várias empresas, mas também art istas e ativistas, têm utilizado a potência das míd ias locativas como forma de marketing, publicidade e controle de produto, mas também co mo escrita e releitura do espaço urbano, como forma de apropriação e resignificação das cidades. (Lemos, 2008)

Lemos assinala que os primeiros projetos de locative media art datam do final dos anos 1990 e buscavam escrever e desenhar o espaço urbano com GPS, como GPS Drawing, de Jeremy Wood, ou Amsterdam Realtime, de Ester Polak. O autor classifica a arte com mídias locativas de hoje em cinco categorias: (1) anotações urbanas eletrônicas (geoannotation): escrita eletrônica do espaço que indexa dados digitais a determinado local; (2) mapeamentos e etiquetas geográficas (geotags): produção de cartografias diversas, vinculando informações como dados biométricos, fotos, textos, vídeos e sons a mapas; (3) redes sociais móveis (mobile social networking): sistemas de localização de pessoas que criam possibilidades de encontro ou troca de informações por meio de smartphones; (4) jogos computacionais de rua (pervasive computacional games): nos quais o jogador deve percorrer o espaço urbano (ver os trabalhos do grupo britânico Blast Theory); e, finalmente, (5) mobilizações inteligentes (smart e flash mobs): mobilizações políticas e/ou estéticas que 264 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


utilizam as LBT (Location-Based Technologies) ou LBS (Location-Based Systems) para organizar ações efêmeras no espaço público (Lemos, 2009, 94-5). Lemos (2009) apresenta também a modalidade de vigilância e monitorame nto: projetos que exploram ameaças à privacidade e anonimato por meio de novas tecnologias. Somem-se às categorias acima modalidades abrangendo narrativas literárias e os chamados GPS filmes, narrativas audiovisuais que demandam deslocamento geográfico do espectador, como em Nine Lives (2007), entre outros exemplos. A arte com mídias locativas (locative media art) deriva de tendências e movimentos artísticos predecessores que visavam recontextualizar a obra de arte, levando-a para fora do museu - a land art, por exemplo. Surge também da necessidade de repensar a relação do ser humano com o seu entorno geográfico, muitas vezes o espaço urbano - mas também regiões inabitadas (desertos, reservas ecológicas, etc.). Dessa forma, algumas interpretações sugerem a arte com mídias locativas como um espaço entre o simbólico e o imaginário, uma modalidade que duplica o ambiente objetivo da cidade ou do campo em esquemas virtuais que, por sua vez, reconfiguram os espaços geográficos originais. Outras perspectivas teóricas apontam para as mídias locativas e a sua relação com a arte digital. Ao longo dos últimos dez anos, mídias locativas têm servido de suporte para a confecção de variadas obras de arte. Christiane Paul explica que “[a]s mídias locativas usam uma localização no espaço público como uma “tela” (canvas) para a implementação de um projeto artístico e têm se tornado uma das mais ativas e crescentes áreas da new media art ” (PAUL, 2003: 216). Ainda segundo Paul, “[n]os últimos anos, redes sem- fio e o uso de dispositivos nômades como celulares e PDAs têm esmaecido a fronteira entre o não- local (ou espacialmente inespecífico) e o locativo (ou espacialmente específico).” (Paul, 2003, p. 216). Nesse panorama, “celulares com câmeras, PDAs e iPods têm se tornado novas plataformas para produção cultural, oferecendo uma interface por meio da qual usuários podem participar de projetos públicos em rede, assim como formar comunidades ad hoc.” (Paul, 2003: 216). Paul Dourish, por sua vez, defende que o mundo tecnologicamente mediado não se encontra separado do mundo físico no qual está embutido; ao contrário, ele promove novas maneiras de se compreender e se apropriar do mundo físico (2006: 6). Segundo André Lemos,

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Se a mobilidade era u m problema na fase do upload do ciberespaço (ir ou sair do local de conexão), na atual fase do download (ou da internet das coisas), a mobilidade é uma oportunidade para usos e apropriações do espaço para diversos fins (lazer, co merciais, políticos, policiais, artísticos). Aqui, mobilidade informacional, aliada à mobilidade física, não apaga os lugares, mas os redimensionam. Co m o ciberespaço “pingando” nas coisas, nã o se trata mais de conexão em “pontos de presença”, mas de expansão da computação ubíqua em “amb ientes de conexão” em todos os lugares. Devemos definir os lugares, de agora em diante, como u ma comp lexidade de dimensões físicas, simbólicas, econômicas, políticas, aliadas a bancos de dados eletrônicos, dispositivos e sensores sem fio, portáteis e eletrônicos, ativados a partir da localização e da movimentação do usuário. Esta nova territorialidade co mpõe, nos lugares, o território informacional. (2009: 91-2)

3. O Laboratório de Mídias Locativas e Cine ma GPS (LaLoca) e o projeto de documentário locativo sobre o art déco em Juiz de Fora Baseado no Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com filial na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), EUA, o Laboratório de Mídias Locativas e Cinema GPS (LaLoca) reúne em seus projetos pesquisadores brasileiros e estrangeiros, bem como bolsistas de iniciação científica. Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), o LaLoca tem por objetivo principal estabelecer um polo de produção e pesquisa de mídias móveis. Até o momento, o LaLoca tem se concentrado na produção de filmes locativos com roteiro interativo e recurso a ferramentas abertas, criadas e liberadas em software livre. O primeiro conteúdo audiovisual confeccionado pela equipe do LaLoca é um documentário locativo sobre o art déco em Juiz de Fora (título provisório) visa mapear as edificações mais representativas do estilo arquitetônico na c idade. Ao transitar pelo centro de Juiz de Fora, o visitante que dispuser de um celular ou tablet com GPS terá acesso a minidocumentários que explicam, detalham e relatam a história de edificações em estilo art déco. Os minidocumentários estão vinculados a posições geográficas específicas, cada um correspondendo a uma edificação, e são exibidos quando o usuário se posicionar ao redor da fachada de cada prédio selecionado. Localizados todos no centro da cidade, os edifícios escolhidos são alguns dos mais representativos do art déco em Juiz de Fora. Procurou-se traçar um roteiro de visitação que privilegia o deslocamento a pé pelas ruas do centro, embora o espectador- visitante (ou interator) possa alterar sua rota sem nenhum prejuízo da experiência. Cada minidocumentário mescla depoimentos de especialistas e pesquisadores a detalhes dos edifícios, registrados em foto e vídeo. A idéia é resgatar a história da edificação e 266 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


chamar atenção do visitante/interator para detalhes do estilo. O projeto encontra-se atualmente em fase avançada de pós-produção. Foram editados e finalizados cinco “fragmentos” ou “episódios” documentários, cada qual entre 1 e 3 minutos. O roteiro documentário começa na Praça João Pessoa (-21.761258,-43.347735), onde duas edificações em estilo art déco emolduram o largo, tendo ao fundo o Cine Theatro Central. Em seguida, o espectadortranseunte pode visitar a Galeria Pio X e o prédio dos Correios, na Rua Marechal Deodoro (21.760421,-43.348577). O trajeto sugere a descida pela Marechal, onde vá rias outras pequenas edificações no estilo art déco ainda podem ser observadas, até a Av. Getúlio Vargas, onde o espectador-transeunte pode visualizar o Rio Hotel e a Casa Magalhães (21.759898,-43.346627). O roteiro segue pela Rua Batista de Oliveira até a esquina da Rua Halfeld, onde se localiza o Cine Palace (-21.760805,-43.346767). Finalmente, o trajeto sugere a descida da Rua Halfeld em direção à Praça da Estação, onde fica o Hotel Renascer (21.759958,-43.343417). Nesta etapa de pós-produção e implantação, o LaLoca conta com o apoio da Casa de Cultura Digital de São Paulo. Os cinco capítulos acima descritos serão publicados em duas plataformas: primeiramente no âmbito do projeto “Arte Fora do Museu” da Casa de Cultura Digital, e depois por meio do software livre WalkingTools (http://www.walkingtools.net/) 3 , desenvolvido pelos professores Cicero Silva (UFJF) e Brett Stalbaum (UCSD), pesquisadores do LaLoca. O projeto em questão tem finalidade educativa e turística, auxiliando na experimentação de rotas de aprendizado arquitetônico e fruição do espaço urbano. De acordo com Telma de Barros Correia (2008: 47-8), a arquitetura que incorpora as tendências do estilo art déco é pouco conhecida e valorizada, e tem visibilidade desproporcional à sua presença, ainda muito forte, no cenário urbano brasileiro. Segundo a autora, “é freqüente encontrar-se ausente do programa de cursos de arquitetura. Pouco pesquisada, não há consenso – a começar pela própria designação – entre os que se dedicam a abordar a produção arquitetônica que pode ser a ela vinculada”. Nesse sentido, a importância do projeto enquanto

3

Nu ma definição técnica resumida, o Walkingtools é uma confederação aberta de softwa re relacionada com projetos de arte ou educação que perpassa várias linguagens, plataformas e disciplinas que compartilham padrões para entrega de conteúdo e administração de dados de GPS através da definição de u m esquema extensão XML para os padrões do GPX, permitindo que mídias (vídeos, sons e animações ) e outras formas de dados possam ser associadas aos dados do GPS (http://www.walkingtools.net/?p=49). 267 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ferramenta de pesquisa e divulgação do conhecimento histórico reside no resgate, mapeamento e valorização das edificações no estilo art déco em Juiz de Fora. Em outras palavras, o documentário locativo procura explorar algo apontado por Stalbaum e Silva (2011: 4), o fato de que, “(…) quando a computação e a geolocalização se cruzam, o olho humano passa a 'realmente olhar' para o que está lá nesse local (...)” O projeto de documentário locativo art déco foi inspirado numa variedade de elementos, tais como o flaneur de Baudelaire, parte da obra de Jorge Luis Borges, o filme GPS Nine Lives (criação de Scott Hessels e estudantes de arte e engenharia da Nanyang Technological University em Cingapura, dirigido por Kenny Tan), a idéia de “geografias emocionais” e o conceito de “psicogeografia” (o estudo dos efeitos do ambiente sobre o comportamento e as emoções dos indivíduos), desenvolvido pelos Situacionistas no final dos anos 1950. Segundo Tuters e Varnelis, o Situacionismo é frequentemente considerado um precursor do movimento das mídias locativas (2006: 3). Numa das primeiras taxonomias das mídias locativas, Tuters e Varnelis a ssinalam que, em sentido amplo, projetos nessa área podem ser classificados basicamente entre dois tipos de mapeamento: o anotativo (annotative), o qual consiste basicamente na “rotulação” (tagging) virtual do mundo, e o fenomenológico (phenomenological), que implica o traçado de ações ou monitoramento de trajetória (rastreamento) do sujeito no mundo (2006: 2). Grosso modo, ainda segundo os autores, esse dois tipos de mídias locativas (annotative and tracing) correspondem a dois pólos arquetípicos que se co nfiguram ao longo da arte do final do século XX, da arte crítica e da fenomenologia, talvez de outra forma representadas pelas práticas situacionistas do détournement e da dérive. Projetos anotativos geralmente procuram mudar o mundo por meio do acréscimo de dados a ele, de forma similar ao que é sugerido pelo détournement. Para Tuters e Varnelis, a obra anotativa paradigmática é Urban Tapestries, do Proboscis. Similarmente, ao adotar a tática de “mapeamento-enquanto-se-caminha” da dérive situacionista, obras de mídia locativa baseadas em rastreamento (tracing) sugerem que podemos nos recorporificar no mundo, e desta forma escapar da sensação de que nossa experiência do lugar tem desaparecido no capitalismo tardio. Tuters e Varnelis citam a obra Crowd Compiler (2002), de Christian Nold's, como bom exemplo desse segundo tipo de trabalho em mídias locativas (2006: 2). Projetos anotativos e fenomenológicos não são 268 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


excludentes entre si, portanto podem se justapor. O projeto art déco em Juiz de Fora parece afiliar-se incialmente à categoria de “mapeamento anotativo” proposta por Tuters e Varnelis, muita embora também possa sugerir afinidades com a segunda categoria apresentada. No âmbito da taxonomia proposta por Lemos (2009: 94-5), o trabalho pode ser imediatamente associado à categoria das anotações urbanas eletrônicas (geo-annotation), mas também ao grupo dos mapeamentos e etiquetas geográficas (geotags). O projeto também remete ao campo de experimentos em realidade aumentada móvel, uma vez que amplia a informação influente sobre a percepção de um determinado espaço físico. Vale dizer que o projeto de documentário locativo sobre o art déco em Juiz de Fora não se esgota na publicação dos cinco episódios elaborados. Estima-se a continuidade do mapeamento das edificações em art déco ou inspiradas no estilo, com o objetivo de se organizar uma memória detalhada da sobrevivência dessa arquitetura na Juiz de Fora contemporânea. A interatividade do projeto também pode ser ampliada, com inspiração em obras como PDPal (2003), de Marina Zurkow, Scott Paterson e Julian Bleecker, uma ferramenta de mapeamento para registro de experiências pessoais de fruição do espaço público. PDPal, por sua vez, também é inspirado na idéia de “geografias emocionais” e no conceito de “psicogeografia” dos situacionistas. Em PDPal, usuários criam mapas por meio da marcação de localidades com símbolos gráficos que representam atributos e valores (Paul, 2003: 217-8). No caso do documentário locativo art déco, os espectadores-transeuntes poderiam publicar impressões relativas ao espaço visitado no próprio sistema utilizado. Enfim, todo o conteúdo continuamente acumulado em pesquisa sobre o art déco em Juiz de Fora pode ser disponibilizado não apenas em interface audiovisual por meio de telefones celulares com GPS e acesso à internet, pads e demais dispositivos móveis, mas também em experimentos de visualização com recurso a métodos e tecnologias como, por exemplo,

a

Analítica

Cultural 4 ,

do

grupo

de

pesquisa

(http://lab.softwarestudies.com/2009/03/analitica-cultural-historico.html;

Software

Studies

http://lab.software

4

Em abril de 2008, u m grupo de pesquisadores do Calit 2, coordenados por Lev Manovich, recebe uma bolsa Interdisciplinar da Chancelaria da Universidade da Califó rnia em San Diego (UCSD) para o desenvolvimento do ambiente da pesquisa Analítica Cultural: u ma p lataforma aberta para a Pesquisa em Hu manidades Digitais que apoiará análises em tempo real de variadas formas de mídias visuais e de técnicas de mapeamento (http://lab.softwarestudies.com/2009/ 03/analitica -cultural-historico.ht ml). 269 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


studies.com/2010/03/versao-alpha-do-novo-software-de.html). Sobre as possibilidades do projeto aqui apresentado, convém remetermos às observações de Stalbaum e Silva:

(...) o mo mento político das mídias locativas encontra-se em u ma fase de inú meras visualizações de cenários possíveis graças à denominada “internet das coisas”, que amplia a concepção do público (e, presumivelmente, a sua resposta política) à estrutura e distribuição da riqueza material. (2011: 5)

Com efeito, o projeto de documentário locativo sobre o art déco em Juiz de Fora se inscreve no contexto de escalada da “internet das coisas” (internet of things: http://www.iot2012.org/) e, no limite, acaba por sugerir experimentos acerca de “edifícios com

memória”.

Segundo

Tuters

e

Varnelis,

de

acordo

com

a

International

Telecommunication Union (ITU), estamos no limiar de uma sociedade de objetos em conexão ubíqua. Em breve, prevê o ITU, objetos serão os maiores usuários da internet, trocando intensamente dados entre si. Essa é a “Internet das Coisas”, um cenário de objetos informatizados e quase sencientes que nos leva a considerar a proposta de “spimes” de Bruce Sterling 5 (1991: 23-24). Durante o SIGGRAPH de agosto de 2004, Bruce Sterling proferiu a palestra “Quando os blobjetos governarem a Terra”, na qual previa um mundo em que os objetos passariam de “blobjetos” a “spimes”. Os “spimes” de Sterling são objetos sensíveis ao lugar e ao ambiente, auto-conectados, auto-documentados, e capazes de transmitir informações detalhadas sobre onde têm estado, onde estão e para onde vão, ao longo de todas as suas “vidas”. Segundo Santaella, “Qualquer coisa, da escova de dentes ao pneu do carro, entrará em faixas comunicacionais, anunciando o alvorecer de uma era em que a inter net de hoje, de dados e de pessoas, conviverá com a internet das coisas” (2008: 99). De acordo com Cory Doctorow (2005), os “spimes” são os dispositivos últimos dos “hacktivistas” – um ponto limite para tornar os frutos negativos da produção industrial vis íveis e óbvios (Santaella, 2008, p. 99). O “spime” poderia assim ajudar a desvendar o fetichismo da mercadoria descrito por Marx, o resultado da alienação do produto em relação à sua produção e origem - ou potencializar esse mesmo fetichismo, ainda é cedo para saber (sobre esse assunto ver 5

Metáforas e imagens clariv identes de uma “Internet das Coisas” e de objetos sencientes estão há mu ito tempo disponíveis na obra de Philip K. Dick, autor de ro mances Do Androids Dream o f Electric Sheep? e Ubik, e contos como “Electric Ant” e “Minority Report”. 270 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Galloway e Ward, 2006; Canclini, 2012). Galloway e Ward (2006) observam que, à medida em que nos aprofundamos na maneira com que projetos de mídias locativas negociam espaços locais e globais, constatamos uma crescente “tecnologização” e comodificação dos espaços público e urbano. 6

A idéia de Sterling nos estimula a pensar em “edifícios-spime”, em

patrimônios arquitetônicos beneficiados por tecnologias do gênero – o uso de tecnologia a serviço da memória, num modelo não muito distante dos prédios inteligentes de São Paulo e outras metrópoles mundiais, mas com propósitos diferenciados. Cremos que o trabalho procedido pelo LaLoca responde a uma nova sensibilidade contemporânea no que diz respeito à vivência da arte e do patrimônio, cenário já examinado por Néstor García Canclini, para quem

Os museus online transcendem sua localização física e, ao mesmo tempo, podem visualizar e med ir em seus sites o número de visitantes por país. Os lugares de consumo e recepção são rastreáveis ao “perseguir” e armazenar os dados dos usuários. Por outro lado, dispositivos móveis co mo o iPhone e o iTouch dão acesso à oferta cultural da cidade onde a pessoa se encontra e a muitas outras no mundo. Trata-se de algumas das interações entre o museuedifício, os artistas como med iadores ou tradutores de seus acervos e os espectadores, que podem montar seus próprios arquivos e modos de ver. (2012: 179 -180)

Com o projeto de documentário locativo sobre o art déco em Juiz de Fora, pretendemos inicialmente colaborar com a valorização da memória arquitetônica da cidade, bem como investigar as possibilidades e resultados do recurso às mídias locativas como ferramenta de preservação cultural. Segundo Santaella,

Colocar geotags nos objetos, de modo que ess es objetos nos contem suas histórias, leva-nos a conhecer sua genealogia, seu enraizamento na mat riz de produção. Estamos entrando, portanto, em u m mundo em que, por estarem ligados a chips inteligentes, os objetos vão se tornar sencientes, quer dizer, conscientes das impressões dos sentidos, o que nos trará a possibilidade de um engajamento mais ativo entre o corpo, a cidade, os lugares e as coisas. (2008: 100)

6

Em “Locative Media as Socialising and Spatializing Practice: Learn ing fro m Archeology” (2006), Galloway e Ward investigam projetos de mídias locativas em comparação ao estatuto dos museus, questões curatoriais e protocolos de pesquisa arqueológica. Segundo os autores: “Para que qualquer d ispositivo tecnológico seja “consciente” de seu contexto – físico ou de outra ordem –, ele tem de ser capaz de localizar, classificar, coletar, armazenar e usar informação “relevante”, bem como ide ntificar e descartar ou ignorar informação “irrelevante”. Se imag inarmos esses dispositivos e dados como artefatos culturais, e servidores e bases de dados como gabinetes e museus, então as míd ias locativas começam a part ilhar mu itos dos mesmos interesses e preocupações da arqueologia e antropologia.” 271 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Pensamos em, de certa maneira, revificar a arquitetura art déco de Juiz de Fora por meio do uso de dispositivos móveis, revigorando a relação do indivíduo com a estética de sua cidade. Num primeiro passo, a idéia é instruir e informar o cidadão sobre a história e a natureza da edificação que ele visita. Numa segunda etapa, podemos pensar em “edifícios com memória”, sensíveis ao seu ambiente e às pessoas que nele circulam – uma imagem próxima à dos “spimes” de Sterling. O recurso às mídias locativas oferece um leque variado de possibilidades, cada edifício, monumento ou obra de arte exposta na cidade pode ser envolta em nuvens de informações. Paralelamente à implementação do projeto, reflexões de ordem ética, discursiva e metalinguística têm emergido neste momento, embora ainda esboçadamente, a partir de trabalhos como o de Galloway e Ward (2006). Comparando os métodos da arqueologia aos de trabalhos contemporâneos em mídias locativas, Galloway e Ward propõem investigações sobre quais tipos de relações sociais/espaciais são possíveis em determinados projetos de mídias locativas. Segundo os autores, a arqueologia oferece duas grandes contribuições à compreensão e prática de locative media arts. Primeiramente, a questão da autoria nos impele a pensar não apenas sobre quem é hoje capaz de criar e usar mídias locativas, mas também sobre quem será capaz de recriar e reutilizar mídias locativas no futuro. Em segundo lugar, a questão da propriedade (ownership) nos leva à ciência de que a maioria dos projetos de mídias locativas requer grandes bases de dados, e que esses dados estão submetidos às mesmas questões de ordem curatorial que qualquer outra coleção cultural (Galloway e Ward, 2006).7 Nosso trabalho de mapeamento e catalogação do estilo art déco em Juiz de Fora acaba por envolver algumas das questões discutidas por Galloway e Ward (2006). Estamos cientes de que iniciativas de catalogação, classificação e, em última análise, revalorização de artefatos culturais, podem e devem estar sujeitas e reflexões de caráter metodológico e processual. Estimamos que a reflexão teórica sobre as práticas do LaLoca amadureça nos próximos anos em paralelo à implementação de projetos.

7

De acordo com Galloway e Ward: “Autoria e propriedade são centrais para a classificação de novos artefatos de míd ia ou dados: O que faz um esquema de classificação bottom-up mais autêntico ou válido que outro construído top-down? O que faz u m pro jeto de locative media menos ética e politicamente responsável que um gabinete de curiosidades?” (2006). 272 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Por fim, decidimos expor este relato neste encontro no sentido de testar nossas hipóteses e objetivos, trocar experiências e coletar críticas e sugestões, pois muito trabalho ainda deve ser feito e muitas possibilidades ainda restam por ser exploradas. Referências Bibliográficas CANCLINI, Néstor García. A Sociedade sem Relato: Antropol ogia e estética da i minênci a. São Paulo : Edusp, 2012. CORREIA, Telma de Barros. Art déco e indústria: Brasil, décadas de 1930 e 1940. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.16, n.2, p. 47-104, ju l.-dez. 2008. DOCTOROW, Cory. Resenha. In BoingBo ing - A d irectory of Wonderful Things. Disponível em <http:// www.boingboing.net/2005/10/26/bruce-sterlings- desi.html>, 2005. Acesso em 15 de janeiro de 2008. GA LLOWA Y, Anne; WARD, Matthew. “Locative Media as Socialising and Spatialising Practice: Learning fro m Archaeology.” Leonardo Electronic Al manac, Vol. 14, Issue 3-4, 2006. Disponível em http://cast.ap.buffalo.edu/courses/s10/media_urbanis m/wp-content/readings/Galloway_3.pdf . Acessado em 5 de agosto de 2012. LEM OS, André. Mídia Locativa e Territórios Informacionais. In: A RANTES, Priscila e SANTAELLA , Lúcia (orgs.). Estéticas Tecnológicas. São Paulo: Educ, 2008. Disponível em http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/mid ia_locativa.pdf . Acessado em 4 de agosto de 2012. ___. Arte com M ídias Locativas. Enciclopédi a Itaú de Arte e Tecnologia: Revista Ci bercultura, 2009. Disponível em http://www.cibercultura.org.b r/tikiwiki/tikiprint.php?page=Arte%20com%20M%C3%A Ddias%20Locativas . Acessado em 4 de agosto de 2012. ___. Arte e Mídia Locativa no Brasil. In: LEM OS, André e JOSGRILBERG, Fábio. Comunicação e mobili dade: Aspectos socioculturais das tecnol ogias móveis de comunicação no Brasil. Salvador: Edufba, 2009, p. 89-108. OLENDER, Marcos. Ornamento, ponto e nó: da urdi dura pantaleônica às tramas arquitetônicas de Raphael Arcuri. Ju iz de Fora: Ed. UFJF, 2011. PAUL, Ch ristiane. Digital Art. London: Thames & Hudson, 2003. STALBA UM, Brett e SILVA , Cicero Inacio da. Mídias locativas e a esfera pública in Revista Zona Digital, Ano I, n. 03. Acessado em 4 de agosto de 2012. Disponível em http://zonadigital.pacc.ufrj.br/reflexoes criticas/ mid ias-locativas-e-a-esfera-publica/ . Acessado em 4 de agosto de 2012. TUTERS, Marc, VA RNELIS, K. “Beyond Locati ve Media: Giv ing Shape to the Internet of Things,” Leonardo 39, No. 4 (2006): 357– 363. Disponível em Networked Publics: <http://networkedpublics.org/locative_media/beyond_locative_ media >. Acessado em 10 de novembro de 2011.

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OPAVIVARÁ a arte contemporânea e suas relações com o espaço do público Marilia Mendes Machado 1 Resumo O artigo tem como ponto de partida o coletivo de arte Opavivará que realiza ações coletivas em locais públicos e tem como mote a desconstrução do espaço da arte e do papel do artista e do público na realização da obra. É a partir dos desdobramentos que esse tipo de proposta artística incita, que venho, neste ensaio, procurar ressaltar os caminhos que levam os artistas contemporâneos a buscar tais práticas e os seus reflexos na relação entre artista e público e entre arte e sua recepção por parte do público. Palavras-chave: Opavivará. Público. Arte pública. Abstract The article takes as its point of departure the art collective that performs Opavivará coll ective actions in public places and the motto deconstruction of the art space and the role of the artist and the public in doing the work. It is from this kind of developments that encourages artistic proposal, I have been in this essay seek to highlight the ways leading contemporary artists to pursue such practices and their reflections on the relationship between artist and audience and between art and its reception by the public. Key-words: Opavivará. Public. Public art.

Opavivará Em um sábado ensolarado no Rio de janeiro, acontece em um ponto tradicional da cidade, a Praça Tiradentes, mais uma intervenção do coletivo de arte Opavivará. A proposta patrocinada pela Prefeitura do Rio é promover um almoço coletivo, aberto a qualquer pessoa que se dispusesse a cozinhar. A estrutura montada no centro da praça contava com grandes mesas, utensílios domésticos, forno, fogão, pias, bebedouros, grandes cadeiras recostáveis e música ambiente. O Opavivará Ao Vivo! é formado por um grupo de artistas que aposta na coletividade como meio de promover a arte contemporânea em meios não institucionalizados (ruas, praças, jardins, etc). Criado em 2005, o coletivo de arte tem como projeto realizar “experiências poéticas coletivas interativas” em espaços públicos onde se propõe ações com o objetivo de “desconstrução temporária das estruturas de poder tanto da arte, num primeiro plano, como de toda a sociedade, num campo mais expandido”2 .

1

Mestranda do Programa de Pós Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Flu minense 2 Ret irado do site do Coletivo Opavivará em 10/07/2012. Disponível em: http://www.opavivara.co m.br/ 274 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


O almoço coletivo intitulado Praça de Alimentação se transforma em um momento em que os participantes se envolvem em uma intensa interação onde não há divisão entre quem é artista ou público, mas uma ação em que o objetivo é a troca de experiências de uma forma poética. A arte está contida no efêmero, no encontro, na poesia presente nas relações humanas, na celebração ao alimento, à musica e à boa conversa, não há uma obra a ser contemplada, nem sequer um produto final além do próprio almoço a ser consumido. O Opavivará aposta na ausência de separação entre o que é arte e o que forma o cotidiano da cidade, neste caso representado pela praça, excluindo, assim, qualquer coisa que venha a se remeter a algo que não seja natural, comum entre os sujeitos. Desta forma, o grupo se apóia em uma proposta inovadora de uma arte socialmente engajada, na qual q uestões que envolvem o cotidiano de uma comunidade são colocadas à frente de qualquer preocupação com autoria, apuro estético ou valor mercadológico da obra. É a partir dos desdobramentos que este tipo de proposta artística incita, que venho, neste ensaio, procurar ressaltar os caminhos que levam os artistas contemporâneos a buscar tais práticas e os seus reflexos na relação entre artista e público, entre arte e obra e entre arte e seu entendimento real por parte do público.

Arte é vida A perda de restrição da arte a espaços institucionalizados é algo que tem origem nas artes do século XX. Neste momento, a necessidade de se experimentar uma nova forma de ver e fazer arte esta relacionada a ideia de fusão entre arte e vida. Neste sentido, com efeito, foi determinado que a arte não deve ficar restrita a um universo particular e deve romper com os espaços ditos apropriados, expandindo-se a locais onde o cotidiano se faz presente a todo tempo, os espaços públicos. A arte dita “extramuseológica”3 , surge no momento em que se percebe que os espaços institucionalizados, onde a arte até então esteve confinada, não dão mais conta de absorver as propostas artísticas e as ideias acerca do que é arte e qual a sua função na sociedade pósmoderna. Além disto, questões de ordem sociológica, política, filosófica e outras, passaram a permear cada vez mais o conteúdo das obras que se expandem para além das telas, dos palcos, dos museus e das convenções. Allan Kaprow, um dos artistas precursores da ideia de Arte e 3

DANTO, 2006. 275 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Vida (Live Art), citado por Jorge Glusberg, afirma que: “em determinados momentos começaram os meus problemas com o espaço das galerias. Pensei quanto seria melhor poder sair delas e flutuar e que os environments 4 continuasse durante o resto de meus dias”. 5 Buscando atrelar novas experiências à realidade político-social vivida principalmente nos anos 1960 e 1970, não só o cotidiano invade o universo da arte, como a própria arte se apropria do cotidiano e de seus meios chegando a tal ponto que se torna impossível a dissociação entre o que é arte e o que é vida. Nas palavras de Kaprow, 1966, “não apenas a arte se tornou vida, mas a vida se recusa a ser ela mesma” 6 Artista e espectador Artistas como Allan Kaprow e Jonh Cage movidos pelo desejo de ter novas experiências e engajados no valor social que a arte poderia ter, passaram a pensar no público de suas obras não só como meros espectadores, mas também como possíveis participadores das obras. A ideia de incorporação ativa do público nas obras cresce na mesma medida em que se dissipam as diferenças entre as artes (pintura, musica, escultura, dança e outros). A pluralidade das obras, tanto no tocante à linguagem artística, quanto no que se refere à participação de várias pessoas na execução da obra se torna cada vez mais comum, fazendo com que o próprio fazer artístico, o momento de criação se torne mais importante que um produto final, mercadologicamente correto. A participação do público no momento do fazer artístico deixa de ser virtual ou simbólica para se tornar efetiva e até indispensável à proposta do artista que tira o foco do produto artístico colocando a relação entre os sujeitos envolvidos na obra como algo mais importante, como “ponto de partida” da criação artística. Nicolas Bourriaud, discorrendo sobre os “artistas relacionais” da década de 1990, afirma que:

O espaço em que se apresentam suas obras é o da interação, o da abertura que inaugura (...) todo e qualquer diálogo. O que elas produzem são espaços -tempos relacionais, experienciais, inter-hu manas, que tentam se libertar das restrições ideológicas da comunicação de massa. De certa maneira, são lugares onde se elaboram sociedades alternativas, modelos críticos, mo mentos de convívio construído.7 4

Environments são o que Kaprow chama de colagens de impacto. Tratam-se de paredes inteiras cobertas com todo tipo de material possível, ”até acumu lar todos os elementos sensoriais” (GLUSBERG, 2004). 5 GLUSBERG, 2005. 6 SNEED, 2011. 7 BOURRIAUD, 2009, p 72. 276 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


O convívio, a relação entre artistas e espectadores entra na esfera da comunicação, onde um pode interferir no que o outro esta fazendo e pensando, criando uma atmosfera de troca mútua, onde não há um emissor da arte (artista) e seus receptores (público) e, sim, “um momento de transferência, criando uma equivalência moral entre artistas e membros da comunidade”8 . (Malcolm Miles) A “equivalência moral” citada por Miles, infere não só a possibilidade de intervenção do público na obra como sua responsabilidade moral para com ela, tendo em vista que a obra em questão possui um caráter político e social que transcende a própria obra, uma vez que tem como principal foco as relações do homem em sociedade e seus desdobramentos nos campos político, filosófico, social, financeiro, educacional e outros. A obra, então, recebe a função de “transformar o mundo” através da crítica e da denúncia dos problemas vividos em determinada comunidade. Para Kaprow “trata-se de um ato moral, ético e finalmente político”9 . A questão da obra – O fim da estética Comprometida com a responsabilidade social e política de salvar o mundo, a obra de arte afasta-se da forma, apegando-se ao momento, ao instante presente, ao efêmero, etéreo. Os happenings dos anos 1960 criados por Allan Kaprow, dão a dimensão exata de uma arte que abandona o produto concreto, vendável, existindo só no instante em que artistas e membros da comunidade se encontram e criam uma atmosfera de convivência e de troca, deixando de existir no mesmo instante em que se encerra o evento. O abandono do produto final, da obra em si, reflete a intenção dos artistas em criticar o mercado de arte, em retirar da arte o seu valor material, ressaltando o seu valor filosófico e elevando a sua fusão com o cotidiano, com o imprevisível da vida. Assim, como escreve Kaprow (1966): ...eles [Happenings] parecem não ir a lugar algum e nem fazer sentido literário específico. Em contraste com as artes do passado, não tem in icio estruturado, meio ou fim. Sua forma é aberta, inacabada e flu ida: nada, obviamente, é solicitado e, portanto, nada se ganha, exceto a certeza de um número de ocorrências às quais estamos mais atentos.10

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MILLES, 2009 Kaprow, Allan apud SNEED, Gillian, 2011. 10 Id, ibd, 172 9

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Aumentando o foco na experiência, na ocorrência, em detrimento da estrutura concreta, a arte que já vinha, desde os tempos da arte moderna, questionando padrões estéticos nas manifestações pós- modernas, determina o fim da submissão da arte à beleza, à forma, em fim, à estética. A estética parece cada vez mais inadequada para lidar co m a arte a partir da década de 1960 – com a “arte após o fim da arte”, como já a denominei alhures –, sendo um sinal disso que uma das disposições iniciais era a recusa em se considerar a arte não estética ou anti-estética11 .

Divorciada da estética e comprometida com questões e valores sociais, a arte abandona os museus e galerias, desapega-se da necessidade de autoria e deixa de se preocupar em produzir uma obra, apostando nas relações humanas como ponto de partida do fazer artístico. Todas essas rupturas irão configurar um novo panorama da arte, do fazer e do pensar artístico e, consequentemente, uma nova forma de consumir arte, justamente pelo fato de que o público não só deverá mudar sua concepção do que é consumo de arte, como deverá se habituar ao fato de fazer parte dela. Transformada em todos os seus sentidos, a arte, então, passa não só a necessitar de no vos conceitos que a legitimem enquanto arte, como a incitar, tanto por parte do público como da crítica, perguntas que se baseiam na dúvida acerca do que é arte ou o que faz com que determinado evento ou ação seja algo propriamente artístico e não somente um discurso político ou, simplesmente, algo vazio de significado. Arte pra quem? A arte, quando se assume pública, traz consigo a proposta não só de ruptura com os espaços tradicionalmente destinados a ela, mas de apropriação/ocupação de espaços onde a pre sença da arte pode não ser algo comum ou identificável. Isso porque, uma vez que se está em um local público, é necessário que se considere os hábitos e as características do cotidiano daquele local específico, que poderá não condizer com a proposta ou a ideia de cotidiano do artista-propositor da obra. Esse é, talvez, o maior desafio da arte pública contemporânea: ser também uma arte do público, no sentido de considerar a realidade vivida pela comunidade onde a obra será proposta e, principalmente, no sentido de “dar voz ao público”, fazendo com que a arte

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DANTO, 2006, p 94 278 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


realmente ocupe o cotidiano daquele local e não configure, simplesmente, um “museu sem paredes”. Para Danto, na verdade,

Este [espaço público] deveria ser um dos locais em que a democracia participativa realmente poderia ter uma oportunidade. O público a ser envolvido com a obra de arte, deveria part icipar das decisões que afetam a sua vida estética. 12

A grande questão, neste caso, é colocar em evidência a realidade vivida e problematizada pelo artista em contraste com as realidades vividas pelo público ao qual esta arte se direciona. Isto porque, o fato de o artista ter saído da zona de conforto que representa o museu, não significa que ele esteja desapegado do que ele próprio considera válido para legitimar a obra enquanto arte e também não quer dizer que a sua proposta seja feita levando em consideração o que o público espera de uma obra de arte. O multiculturalismo apresentado pela sociedade contemporânea coloca artista e público, muitas vezes, em um jogo de contrastes, onde não parece haver algo em comum entre os dois lados. Assim, na opinião de Kaprow:

(...) quando a arte se afasta dos modelos tradicionais e co meça a fundir-se nas man ifestações do dia a dia da própria sociedade, os artistas não só não podem assumir a autoridade de seus talentos, mas também não podem pretender que o que acontece seja válido simples mente pelo fato de ser arte. 13

Exatamente pelo fato de não mais existir uma verdade absoluta sobre o que é arte e o que não é. Artista e público então dividem não só a função de dar vida à obra (como no caso de uma obra coletiva), mas também a necessidade de legitimá- la como arte, partindo do pressuposto de que esta legitimação, vindo apenas do artista, não dá mais conta de uma arte que está fundida no cotidiano e que trata da vida de uma comunidade que não se limita a um só ponto de vista. Essa arte necessita não só de um envolvimento do público, como poderá estar relacionada ao acesso desse público a um sistema que irá instituir e delimitar o que é e o que não é arte. A arte pública mesmo sendo de acesso irrestrito, poderá ficar condicionada a atrair somente aqueles que estiverem de acordo com um sistema de arte que tem a sua fundação nos meios

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Id, ibd, p 203 KAPROW, 2009. 279 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


institucionalizados nos quais o acesso já não é tão amplo assim, pois exige um interesse e um entendimento mais aprofundado acerca de um universo da arte, sua história, filosofia e códigos. Afastado deste mundo particular, o público acidental da arte (aquele que não tem conhecimento prévio da proposta do artista ou que não é familiarizado com o sistema), em contato com a arte pública, irá interpretá- la e reagir a ela de acordo com o seu entendimento acerca daquela proposta, podendo tratá- la como mero entretenimento, ou, simplesmente, ignorá- la. Embora, de alguma maneira seja afetado positivamente à partir do momento em que o encontro com a obra provoque reações, mesmo que não se entenda a operação artística contida na obra.

Considerações finais Muitos projetos de arte contemporânea apostam justamente nesta incerteza acerca de quem será o seu público, realizando projetos de arte em que, muitas vezes não se sabe quais serão os desdobramentos que a proposta inicial irá tomar. Na maioria do tempo também, não fica evidente a preocupação em um real entendimento por parte dos participantes acerca do caráter artístico da obra e, sim, um interesse em se experimentar as muitas possibilidades de interação humana e em vivenciar as surpresas que o acaso pode provocar. O Opavivará ao vivo, na Praça Tiradentes, Rio de Janeiro, tendo como foco a experiência denominada Praça de Alimentação, em que os participantes se juntam para cozinhar e se alimentar em um espaço público, é um exemplo de evento artístico no qual há uma multiplicidade de interesses entre os seus participantes que poderão estar lá pelo fato de se tratar de um evento artístico, pela experiência de troca e convívio com outras pessoas, pela excentricidade e curiosidade despertada pelo ato de comer em conjunto, ou, simplesmente, pelo fato de estar com fome. Esta variedade, não por acaso, é que dá o tom ideal ao evento que se torna um momento de intensa interação entre seus participantes. Os caminhos que a arte contemporânea tem percorrido oferecem ao artista a possibilidade de extrapolar todos os limites que lhe forem impostos acerca do que é uma obra de arte, do seu papel de artista na criação da obra, do papel do público no momento da criação e, especialmente, dos reflexos que determinada obra ou ação artística poderão ter no cotidiano de uma comunidade. A fusão da arte com a vida, no entanto, parece ser arriscada na medida em que a realidade pode suprimir a arte. Danto, citando as ideias de Greenberg acerca desta 280 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


questão, afirma que “no máximo pode-se dizer que a realidade define um limite do qual, pode-se dizer a arte se aproxima – mas que não pode atingir sob pena de não mais ser arte” 14 . Diante disto, há que se pensar se a arte fundida na vida, distanciada da estética e aproximada do público encontra seu limite na medida em que necessita de algo que a diferencie, enquanto arte, da realidade e como coletivos como o Opavivará, podem, mesmo estando tão dissolvidos no cotidiano, resguardar o seu estatuto artístico.

Referências Bibliográficas BOURRIA UD, Nico las. Arte Rel acional. Tradução Denise Bott mann. São Pau lo: Martins Fontes, 2009. DANTO, Arthur C. Após o Fi m da Arte: A Arte Contemporânea e os Li mites da Históri a. Tradução Saulo Krieger. São Paulo : Odysseus Editora, 2006. GLUSBERG, J. A Arte da Performance. Tradução Renato Cohen. São Pau lo: Perspectiva, 2005. KAPROW, Allan. Sucessos e fracassos quando a arte muda. Arte & Ensaios, Rio de janeiro, Vol. 16. n 18, 2009. MILLES, Malcolm. Aesthetcs in a time of emergency. In: RoutledgeThird Text, vol 23, issue 4, july, 2009, 421-433. SNEED, Gillian Dos Happenings ao di álogo: legado de Allan kaprow nas práticas artísticas “relacionais” contemporâneas. Tradução Luciara Mota e Luiz Sérgio de Oliveira In: Revista Poiésis, n 18, p. 169-187, 2011.

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A CONTRIBUIÇÃO DO RESTAURO PARA UMA NOVA HISTÓRIA DA P INTURA COLONIAL PAULISTA Myriam Salomão

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Resumo: A pintura paulista produzida no período colonial, principalmente na cidade de São Paulo, ganha novos aspecto revelados por recentes restauros. Exempl os dessa nova visualidade que se revela são os casos da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, da Igreja da Nossa Senhora da Boa Morte, ambas no centro da cidade, e da Capela de São Miguel Arcanjo em São Miguel Paulista. Este estudo é uma análise desses restauros que permitirá um novo entendimento da pintura paulista em seus aspectos técnicos, formais e históricos. Escreva o resumo em itálico. Utilize espaço simples entre as linhas, fonte Arial, tamanho 10. Palavras-Chave: Pintura colonial paulista. Restauro de pintura. Capela de São Miguel Arcanjo, São Paulo. Igreja da Ordem Terceira do Carmo, São Paulo. Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, São Paulo. Abstract: The painting from São Paulo produced in the colonial period, mainly in the city o f São Paulo, it wins new aspect revealed by recent restorations. Examples of that new visuality that one reveal are the cases of the Church of the Order Third of Carmel, of the Church of the Good Death, both downtown, and of the Chapel of São Miguel Arcan jo in São Miguel Paulista. This study is an analysis of those restorations that will allow a new understanding of the painting from São Paulo in their aspects technical, formal and historical. Word-key: Colonial painting of São Paulo. Restoration of paintings. Chapel of São Miguel Arcanjo, São Paulo. Church of the Order Third of Carmel, São Paulo. Church of the Good Death, São Paulo.

O período colonial paulista caracteriza-se por uma distinção em relação às demais regiões brasileiras, determinada por diversos fatores, entre os quais podemos destacar o relativo isolamento geográfico da região até o início do século XIX, gerando uma sociedade com poucos recursos econômicos, em sua maioria, e que nem sempre teve como arcar com as despesas da manutenção de uma atividade artística constante na capitania. Com isso, temos a sensação de que em São Paulo pouco existiu das consagradas expressões artísticas do período colonial – arquitetura, imaginária, música, talha e pintura – já que muitas das igrejas (principal espaço de manifestação artística nesse período) ruíram ou foram substituídas por outras, no final do século XIX e início do século XX, época do desenvolvimento urbano e industrial da cidade de São Paulo. Se já encontramos dificuldades em discorrer sobre a atenção dada à preservação das construções religiosas da região, quanto à pintura essas dificuldades são ainda redobradas, acentuadas pelo fato de que a pintura paulista produzida entre o final do século XVII e metade do XIX carece de estudos gerais quanto à autoria, cronologia, iconografia, inventário das obras e dos modelos que circularam e influenciaram essa produção. Se no ano de 1937, Mário de Andrade nos lembra de que “no período que deixou no

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Brasil as nossas mais belas grandezas coloniais, os séculos XVII e XIX até fins do Primeiro Império, São Paulo estava abatido, ou ainda desensarado dos reveses que sofrera” (1984, p.73), atentando para o fato de que, no caso de São Paulo, o critério de julgamento tem de ser outro. Etzel nos fala de verdadeiras “joias de família” (1974, p.132) que, por suas particularidades tão próprias, devem ser entendidas e analisadas em seu contexto, pois constituem “um núcleo característico, do Brasil-colônia: fechado, independente, agressivo e cioso de sua liberdade total” (ETZEL, 1974, p.133). Mas, atualmente surgem novos aspectos das pinturas paulistas revelados por restauros recentes ou em andamento, pois apesar de não ser uma fonte direta, constituem fontes documentais semintencionais, sendo raras as obras que chegaram inalteradas aos nossos dias (LEVY, 1997). Exemplo dessa nova visualidade que se revela são os casos da Igreja da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e da Capela de São Miguel Arcanjo, todas na cidade de São Paulo. A análise dos restauros realizados ou em andamento, permitem um novo entendimento da pintura paulista, posto que ao se realizar tal empreitada, questões diversas são colocadas, desde o entendimento técnico da feitura daquela pintura, tudo que o tempo colocou ou retirou na obra, até o que se espera ver ou mostrar para o apreciador atual, ou seja, é uma nova pintura que se revela. 1. Igre ja da Venerável Orde m Terceira de Nossa Senhora do Carmo A história da construção da igreja da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo é envolvida em incertezas: ao que tudo indica, começou a ser construída em 1697, pelo vigário provincial, reformador e visitador dos frades do Brasil, frei Manoel Ferreira da Natividade. Estava pronta em 1759, quando se inicia a pintura da capela- mor e a confecção da talha dos retábulos, ficando completa por volta de 1763. Mas a igreja atual não é essa, pois segundo registros dos livros de receitas e despesas dos terceiros, no período de 1792-93 ela estava em sua fase de maior atividade construtiva, com a remoção dos antigos retábulos e colocação de novos, além do trono e forro da capela- mor. Em 1906 a capela foi reformada e, em 1922 passou novamente por reformas, ficando pronta em 1927 e, portando, data dessa época o estado atual do edifício (DANON & ARROYO, 1971). A Igreja da Ordem Terceira possui todas as dependências necessárias para suas atividades: capela, sacristia, salões de consistório e reuniões, além do jazigo, formando um conjunto harmonioso completo na sua decoração com as pinturas da sacristia, biblioteca, 1

Doutoranda em Fundamentos e História da Arquitetura e Urbanis mo da FAU/ USP. Bolsista CAPES. 283 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


capela- mor, nave e coro, conforme já afirmado anteriormente (SALOMÃO; TIRAPELI, 2001, p.103). Na sacristia há um painel pintado por José Patrício da Silva realizado entre 1785 – 1786 (CERQUEIRA, 2007) que representa Nossa Senhora do Carmo cercada de querubins com o Menino Jesus no colo, entregando o escapulário a Santa Teresa. A pintura intitulada “Nossa Senhora com o Menino e Santa Teresa”, considerada uma obra-prima do pintor colonial paulista, José Patrício da Silva Manso (1740-1801), foi realizada sobre tela em vez de pintada diretamente nas pranchas de madeira do forro como era costume na época, e fixada no teto da sacristia. Esse fato representou bem mais conforto para o artista, pois o pintar na superfície vertical à sua frente ao invés do andaime, deu- lhe o tempo, a luz e o ângulo que melhor lhe convinha como atesta Júlio Moraes e sua equipe de restauradores, responsáveis pelos trabalhos de restauro iniciado em março de 2006 e concluído em fevereiro de 2007 (CERQUEIRA, 2007, p.7). Segundo os relatórios de trabalho (MORAES, 2007) a metodologia foi relativamente fácil de estabelecer: remover a tela e aplicar-lhe uma reentelagem, emprestando ao tecido original enfraquecido e deteriorado a resistência mecânica de uma tela nova aderida por trás, e fixá- la depois a um novo painel, em substituição às velhas pranchas que a rasgaram com os seus movimentos. Os seguintes critérios foram rigorosamente seguidos: respeitar totalmente gestos e materiais originais, adicionando apenas o imprescindível à estabilização e resgate da mensagem do artista, e o que se adicionou será sempre removível no futuro, em respeito ao progresso técnico que também haverá de prosseguir. Concluindo o restauro, foi devolvida ao seu local de origem, junto com a moldura original também restaurada (FIG. 1), e podemos ver a homogeneidade de tons e superfície, e a integração de formas e cores obtida.

FIGURA 1: Painel “Nossa Senhora com o Menino e Santa Teresa”: à esquerda, antes do restauro em 2006 e, à direita em 2007. Foto: Júlio Moraes Conservação e Restauro. 284 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Já as pinturas do forro da nave, do coro e da capela-mor foram executadas entre 1796 e 1797 pelo paulista de Santos, Padre Jesuíno do Monte Carmelo (1764-1819) e, de acordo com Mário de Andrade (1945), Jesuíno primeiro pintou a nave, depois a capela-mor e, por último, o coro. Na nave, a pintura sobre o forro tem figuras apoiadas diretamente sobre a cimalha das duas laterais: três grupos de cada lado composto por quatro figuras de corpo inteiro em cada grupo representando santos e santas carmelitas. No centro, há uma pintura de Nossa Senhora da Conceição que até o ano de 2010 estava escondida por outra executada por Pedro Alexandrino no final do século XIX (FIG.2), e só agora, após restauro voltamos a visualizá- la (FIG.3).

FIGURA 2: Fotografia da pintura da nave da Igreja da Venerável Ordem Terceira de N. Sra. do Carmo , co m conjunto de santos e santas carmelitas nas laterais e ao centro Nossa Senhora da Conceição como se via até 2010. Foto: Nenas Medrano, 2003.

FIGURA 3: pintura do centro da nave após início do restauro, já co m a imagem de N. Senhora da Conceição pintada por Jesuíno do Monte Carmelo v isível. Foto: Jú lio Moraes Conservação e Restauro, 2010.

Os serviços executados no forro da nave e coro foram os seguintes, conforme conta no relatório de Júlio Moraes (2010, p.9), restaurador responsável pelo projeto: decapagem das 285 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


camadas de tintas superpostas à pintura original de Padre Jesuíno feita majoritariamente por processos mecânicos, pois esse processo confirmou-se como o mais adequado, tanto por ser o mais efetivo na remoção dos materiais adicionados, como por garantir controle mais fino da remoção e evitar a permanência de produtos químicos. Um item imprevisto de serviço foi executado (a princípio limitado ao restauro da pintura), por determinação e com acompanhamento do IPHAN: a remoção dos arcos de madeira que subdividiam o forro, ao haver-se constatado que a pintura de Padre Jesuíno do Monte Carmelo prosseguia sob os mesmos e, portanto, tratava-se de elementos que escondiam parte da pintura e descaracterizavam o conjunto. Assim, foi encontrada significativa área de pintura original em ótimo estado escondida sob os mesmos. Verificou-se que o arco era de confecção moderna, feito à máquina, e fixado com parafusos. A pintura é a dupla de santos Elias e Eliseu, habitualmente representado nas igrejas carmelitas. Estas figuras foram retocadas e o fundo, parcialmente repintado, indicou uma intervenção começada e inacabada, talvez em função da decisão de instalar-se o arco de madeira. É no conjunto de pinturas do forro da nave e do coro que temos uma das principais renovações na visualidade: a restauração conseguiu resgatar, através de procedimentos técnicos especializados, as pinturas existentes por debaixo das camadas de tintas e vernizes que se lhe sobrepuseram nos séculos XIX e XX. É como um novo conjunto de pinturas que surge revelando o verdadeiro Padre Jesuíno do Monte Carmelo (FIG. 4).

FIGURA 4: Forro da nave após conclusão do restauro. Foto: Myriam Salo mão, 2012.

Diferentemente do forro da nave e do coro, a área da capela-mor possui uma camada a mais de pintura artística sob o painel A Virgem Maria, São José e Santa Teresa (1796) do Padre Jesuíno do Monte Carmelo, que é atribuída a José Patrício da Silva Manso. Portanto, o objetivo da intervenção foi o resgate da área selecionada da primeira (autoria do Padre

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Jesuíno do Monte Carmelo), sem prejuízo da estabilidade da segunda (atribuída a José Patrício da Silva Manso), observando-se e documentando-se a mesma dentro das possibilidades técnicas existentes (MORAES, 2010, p.24). No painel da capela-mor além da Virgem, de São José e de Santa Teresa surgiram após o restauro diversas cabeças de anjos com pares de asas, às vezes em dupla ou às vezes sozinhos (FIG. 5). E mais uma vez surge a pintura de Jesuíno em todo seu estilo afirmado na conclusão de Mário de Andrade no livro dedicado ao padre pintor em 1945: “A obra de pintura do padre Jesuíno do Monte Carmelo deriva da concepção artística do Barroco europeu, imposta à nossa arte colonial. Mas não a exige.” (p.135), ou então: “Mas Jesuíno fica no entremeio malestarento entre a arte folclórica legítima e a arte erudita legítima.” (p.143).

FIGURA 5: Detalhes da pintura do forro da capela-mor após o restauro. Foto: Myriam Salo mão, 2011.

2. Igre ja de Nossa Senhora da Boa Morte Apesar de ser uma irmandade fundada em 1728, a Nossa Senhora da Boa Morte a princípio ficou estabelecida na Igreja do Carmo e não se sabe ao certo quando iniciou a construção de seu templo, apenas que em 24 de julho de 1802 efetuou-se a compra do terreno na Rua do Carmo, onde seria edificada e a inauguração em 25 de agosto de 1810 (MAGALDI et al, 2009, p.29). Durante o trabalho de restauro iniciado em 2006, após permanecer fechada por mais de vinte anos devido a deterioração interna, foi descoberta uma pintura com a cena da Coroação da Virgem no forro da capela- mor, escondida debaixo de grossas camadas de tinta e com partes perdidas. Retirado na década de 1970, as pranchas que compunham o forro estavam desmontadas e depositadas no coro, algumas apodrecidas e outras rachadas no meio (MAGALDI et al, 2009, p.73). Provavelmente do início do século XIX, à medida que se removeu as camadas de tinta, surgiram traços da representação que despertou o interesse por 287 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


seus aspectos pictóricos e formais, acentuados pela boa qualidade técnica e integridade das cores (FIG. 6).

FIGURA 6: Aspecto do conjunto de tábuas do forro da capela-mor encontradas durante o restauro arquitetônico.

As tábuas mais danificadas eram as que representavam partes do rosto de Jesus, a totalidade do rosto de Nossa Senhora e parte do de Deus. Uma equipe de 12 restauradores realizou estudos para a recomposição a partir de dezenas de versões de artistas para o tema da Coroação da Virgem e iniciou-se o trabalho de reintegração da pintura que, a pedido dos integrantes da irmandade, voltou ao local para onde foi concebida originalmente, ou seja, na capela- mor (FIG. 7).

FIGURA 7: Pintura restaurada e recolocada no forro da capela-mo r da Ig reja de N. Sra. da Boa Morte.

3. Capela de São Miguel Arcanjo A Capela de São Miguel Arcanjo está entre os primeiros bens a serem tombados pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (antigo IPHAN) já em 1938, apenas um ano depois da criação do órgão e entre 1939-1941 passou por sua primeira grande restauração

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coordenada pelo arquiteto Luís Saia, que encontrou uma construção à beira da ruína (GONÇALVES, 2007). Foi fundada em 1560 quando um grupo de índios Guaianazes ali se estabeleceu junto com padres jesuítas vindos do colégio de São Paulo. A atual capela foi construída em 1622, pois a antiga foi demolida devido ao seu estado de degradação, sendo que é considerada a mais antiga do estado de São Paulo e marcou a chegada dos jesuítas na região. Após a expulsão dos jesuítas do Brasil, os frades franciscanos assumiram a assistência religiosa do local e frei Mariano da Conceição Veloso, de origem mineira, coordenou uma reforma da capela ampliando-a (BRITO, 2008, p.34). Com as diversas mudanças políticas e econômicas no Brasil e São Paulo, a região de São Miguel Paulista passou por momentos alternados de estagnação e desenvolvimento, assim como a capela teve diversos usos sociais: funcionou uma escola primária do final do século XIX até a década de 40 do século XX no alpendre lateral; abrigou moradores nas décadas de 1950 e 1990; no final da década de 1970 um movimento popular desenvolveu atividades culturais, além de ter abrigado escritórios de Direitos Humanos, do Menor, da Pastoral Operária e uma biblioteca em meados da década de 1980 (BRITO, 2008, p.35). Após a primeira restauração citada anteriormente, somente no início da década de 1980 recebeu nova atenção com uma obra de recuperação estrutural de suas instalações, ficando até 2004 sem intervenções, quando recebeu o apoio financeiro de algumas entidades e iniciou a recuperação física do edifício (interna e externamente) e de seu entorno, bem como o traçado de seu perfil histórico-arqueológico. Para orientar os trabalhos de restauro no interior da capela, a equipe buscou nos documentos do IPHAN relativos a primeira grande intervenção, pistas que indicassem o que haviam encontrado e perceberam, que já nos anos 1940, os relatórios continham o resultado de prospecções em técnicas possíveis para aquela época, apontando a necessidade de serviços de recuperação de pinturas dos altares e elementos diversos de madeira. Dos elementos da decoração interna, restaurados a partir de 2007 e concluídos até 2010, destacam-se na sacristia o oratório e o armário embutido e na capela lateral o conjunto referente ao altar (FIG. 8), cujo colorido de seus ornamentos foram descobertos nesse restauro e vem reforçar uma descoberta recente de que os templos paulistas mais antigos se caracterizavam por serem mais coloridos (MUSEU DE ARTE SACRA, 2005).

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FIGURA 8: Altar da capela lateral, co m detalhes à esquerda, da pintura ornamental.

Mas a surpresa maior para os técnicos restauradores foram pinturas murais nas paredes de taipa atrás dos retábulos laterais da nave (FIG. 9), sendo que se encontram atrás de estruturas de madeira que atualmente são os altares colaterais da nave e que foram descritas pelo restaurador Júlio Moraes responsável pelo trabalho da seguinte forma: “Os traços mais característicos das pinturas encontradas na capela de São Miguel são a notável simplicidade de recursos técnicos e formais, d ispondo de uma paleta limitada a três cores - branco preto e vermelho - e recursos visuais mais gráficos que propriamente pictóricos. Os vestígios encontrados definem perfeitamente a divisão visual da parede, por meio da pintura, em duas áreas horizontais: uma barra inferior, de pouca altura, cerca de 80 cm, co m motivos e co mposição mais pesados e maior uso de cores; e, u m paramento ou sobre-barra dali até o alto das paredes, em que predomina u m fundo branco, amplamente recoberto por motivos ornamentais pintados. Esta divisão, tradição milenar de origem funcional, é encontrada em praticamente todo o mundo.” (MORAES, 2011, p.2).

FIGURA 9: Pinturas murais localizadas atrás dos retábulos laterais da Capela de São M iguel.

Também de acordo com a cronologia elaborada por Júlio Moraes (1996), elas correspondem a um primeiro momento na história da pintura mural em São Paulo compreendido entre 1532-1808, demarcado pelo início da colonização e pela vinda da família 290 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


real portuguesa ao Brasil. É um período longo e também o menos conhecido, devido, por um lado, aos numerosos desaparecimentos e reformas de edificações daquele período e, por outro, à incipiência de prospecções e outros estudos pictóricos nos monumentos restantes. Já consideradas as mais extraordinárias pinturas murais coloniais até agora conhecidas em São Paulo, tanto pela elaboração visual sofisticada que preencheu e movimentou paredes brancas, destacando os singelos nichos nelas existentes com referências pictóricas a alguma arquitetura, como pelos conteúdos simbólicos contidos nos motivos fitomórficos mesclados a elas. Ganham assim uma forte expressão artístico-religiosa-decorativa, que modificava e dava outras dimensões a uma arquitetura muito simples. Trata-se com certeza de uma produção jesuítica, pela sofisticação dos recursos plásticos obtidos dentro de uma extrema limitação técnica. Visando ampliar o debate e colher propostas a respeito de como tornar visíveis essas pinturas ao mesmo tempo em que mantem a integridade dos altares laterais, foi promovido o evento “I Encontro de Arte e Patrimônio: pinturas jesuíticas na capela de São Miguel, um tesouro revelado”, no dia 15 de setembro de 2011 na própria capela. Tratou-se de evento gratuito e aberto ao público, que contou com a presença de pesquisadores da história da arte brasileira e do patrimônio cultural, e de vários representantes da comunidade local. Como conclusão geral, o evento declarou a importância fundamental de se promover a convivência e clara consignação ao visitante de duas diferentes épocas da capela: a jesuítica, representada pelas pinturas, altar- mor e demais elementos mais antigos, e a franciscana, rep resentada pelos retábulos e pela espacialidade atual da capela. Esta breve apresentação do tema que ainda poderá nos reservar muitas surpresas escondidas por debaixo de camadas de tintas, termina lembrando o quanto a tecnologia nos favorece a revelação das pinturas e nos dá uma nova visualidade com condições de ser muito mais próxima à gênese das obras pictóricas e transformando mais uma vez nossa compreensão da história. Referências bibliográficas ANDRADE, Mário de. Padre Jesuíno de Monte Carmelo. Rio de Janeiro : SPHAN/ M inistério da Educação e Saúde, 1945. (Pub licação n. 14) ______. Aspectos das artes plásticas no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. BRITO, Paulo Vin ício de (Org.). Capela de São Miguel Arcanjo. São Paulo : [s.n.], 2008. CERQUEIRA, Carlos Gutierrez (Org.). J osé Patrício da Sil va Manso (1740-1801): um pintor de São Paulo colonial restaurado. São Paulo: 9ª Superintendência Regional do IPHAN, 2007. DANON, Diana Dorothéa, ARROYO, Leonardo. Memória e tempo das igrejas de São Paulo. São Paulo: 291 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


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ANSELM KIEFER E O PROBLEMA DA ARTE COMO SOBREVIVENTE DE SUAS RUÍNAS Paulo Roberto Monteiro de Araujo 1 Resumo: O dialogar de Kiefer com o passado não se restringe à preocupação de elaborar uma interpretação histórica das épocas passadas, mas de elaborar imagens em sua obra, que expressem o caminho sócio-cultural da sociedade alemã. O objetivo do presente texto é analisar a linguagem artística de Kiefer sobre o prisma ético-existencial. Palavras-Chave: História. Interpretação. Caminho. Cultura. Imagem. Abstract: The purpose that paper is show Kiefer’s artwork as a hermeneutic about German cultural history. Key-words: History. Interpretation., Culture. ethics.

1. História, Teoria e Crítica da Arte. Anselm Kiefer se apresenta como um dos grandes nomes das artes plásticas da Alemanha do século XX. A sua questão como artista está vinculada à história sócio-política da Alemanha, principalmente no que se refere à galeria de nomes que contribuíram para a formação daquele país seja em sua face trágica, seja em sua face cultural- universal. Não é por acaso que em sua gravura em madeira intitulada Os Caminhos da Sabedoria do Mundo: A Batalha de Hermann (Wege der Weltweisheit: Die HermannsSchlacht) (FIG. 1), de 1978, Kiefer apresenta uma galeria de rostos que expressam o imaginário da formação da Alemanha. A Batalha de Hermann são tanto imagensreflexões, como imagens-representações como aponta Klaus Honnef (1992, p.53) as quais nos levam as origens culturais contemporâneas da sociedade alemã. Um dos rostos retratado na gravura é a de Kant (FIG. 2). O filósofo representa a imagem de sabedoria ligada à razão como princ ípio de liberdade. Essa face de uma Alemanha racionalmente livre expressa o lado cultura alemã voltada à dimensão universal do humano. Por outro lado, a face trágica da história desse país se concentra nos retratos de Hermann, militar responsável pelo massacre que houve durante a referida batalha, e em Alfred Krupp, vinculado à indústria bélica (1992, p.54). Honnef ao dizer que Kiefer redescobriu a pintura histórica, salienta que o pintor recorre aos meios adequados para tratar das realidades históricas, embora tais meios se apresentem como sendo as próprias imagens, no caso, os retratos que

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Docente do Programa de Doutorado e de Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Macken zie (São Paulo). 293 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


são postos em uma espécie de galeria. Pode-se vislumbrar de modo reflexivo o trajeto paradoxal da história alemã. A racionalidade kantiana, assim como todo o universo artístico-cultural se perde aparentemente para dar lugar ao terrível da guerra. A racionalidade filosófica e as artes não conseguem dar vazão a construção de uma consciência sócio-cultural cujo arcabouço seria a liberdade humana.

FIGURA 1 – Wege der Weltweisheit: Die HermannsSchlacht

FIGURA 2 – Detalhe

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Diante do fracasso do pensamento filosófico e das artes, o que sobra para a história factual do país é o tenebroso das duas guerras mundiais. Kiefer “mantém viva a memória da morte e da destruição, evocada pela simples referência aos campos de batalha” (1992, p.55). Eis o motivo da galeria de retratos da gravura Os Caminhos da Sabedoria trazer à tona a memória da morte e da destruição, apesar da não referencia direta aos campos de batalha. A morte se vincula às figuras históricas retratas como Hermann ou ao próprio Krupp, cujas responsabilidades pela destruição e pelo massacre incidem na construção contemporânea da Alemanha. Outra curiosidade apresentada na gravura citada acima são os fios amarrados sobre os retratos formando uma espécie de embrulho (FIG. 3), em que se misturam as diversas faces da história alemã. Honnef se refere a esses fios como um emaranhado de linhas que se parecem com uma teia de aranha (1992, p.54). Ao fazer esse emaranhado de linhas ou fios, Kiefer, a nosso ver, procura desenvolver uma forma de hermenêutica das origens do tempo presente da sociedade germânica.

FIGURA 3 – Detalhe

A interpretação de Kiefer da história alemã tem por base o emaranhado das linhas que expressam, mesmo que de modo grotesco, a identidade daquela sociedade. A estética neo-expressionista de 295 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Kiefer esta voltada para um modo de compreender a interioridade daq uilo que se configura, no contexto histórico-social, ser alemão. Não se trata de denunciar os horrores cometidos pelo nazismo ou algo do gênero, mas sim de captar as indigências da existência daquela sociedade, que deu ao mundo formas culturais universais, principalmente a partir do século XVIII. É nesse aspecto da indigência que podemos fazer uma relação entre Kiefer e Heidegger, que alias, Matthew Biro desenvolve tão bem em seu livro Anselm Kiefer and the Philosophy of Martin Heidegger (1998). O filósofo alemão busca dar uma virada em relação à linguagem metafísica fundada tanto em uma razão procedimental como em uma intencionalidade de dominar os entes. Ao colocar a questão da linguagem na ordem do dia do pensamento ocidental contemporâneo, Heidegger procura criar uma nova linhagem de pensamento que consiga superar a instrumentalidade da linguagem técnica que encobre o Ser. A ajuda da poesia de Hölderlin se torna fundamental para a guinada que Heidegger pretende realizar em relação àquilo que ele denomina de tempo indigente. Daí ele dizer que ao mesmo tempo em que o homem constrói o mundo, tecnicamente, como objeto, ele encobre o caminho para o ser. O homem, então, fica afastado do seu ser. Deste modo, o homem da idade da técnica está contra o próprio ser. O resultado desse afastamento é, metaforicamente, uma espécie de despedida do ser. A despedida que Heidegger se refere vincula-se à abertura do pensar em relação ao Ser. A indigência da era contemporânea está na linguagem desenvolvida pela técnica que se ocupa em não apreender as determinações da existência humana em suas possibilidades de ser como expressão da dignidade do próprio homem. Como salienta Charles Taylor: Heidegger é um dos profetas da instância “do deixar as coisas acontecerem”, um dos grande s críticos da consciência tecnológica moderna, ou seja, dos neodesignistas, que defendem a noção de razão co mo razão instrumental. (The ethics of authenticity, 246).

Deste modo, ao não deixar que as coisas se mostrem ou aconteçam a partir do Ser, a Técnica como linguagem instrumental faz com que a nossa contemporaneidade se mostre como o mundo sem casa (the Homeless World), no dizer de David Kolb. O pensamento calculador desenvolvido pela técnica fica à mercê de uma subjetividade vazia. Não é por acaso que Heidegger se coloca contra as formas de subjetividades, cujo cerne está no modelo contemplativo racional das teorias do sujeito. Heidegger se torna, por meio da sua concepção de linguagem, a qual se vincula às teorias expressivistas, radicalmente um antisubjetivista. 296 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


É nessa linhagem da retomada do ser de Heidegger que Kiefer constrói a sua estética interpretativa. Kiefer pretende apreender o modo de ser da Alemanha contemporânea, fundada nas contradições entre a racionalidade crítica desenvolvida pela sua alta cultura e a instrumentalidade manipular da técnica. Essas contradições geram a indigência germânica cuja superação só pode ocorrer pela interpretação da história feita pela arte. Assim a galeria de rostos ícones retratados na gravura Os Caminhos da Sabedoria do Mundo expressa o próprio caminho para compreender as contradições da sociedade alemã. Tal compreensão ocorre por meio da temporalidade, que não necessariamente é linear. O tempo, em seu caráter existencial, ganha relevância no interior da obra de Kiefer, pois é ele que possibilita a abertura para se apreender o ser que dá sentido à história da vida alemã. Daí podermos dizer que Kiefer dá ênfase aos processos e ao tempo vinculados a sua cultura tradicional (1998, p.57). Por outro lado, cabe ressaltar que não há na temporalidade-existencial das obras de Kiefer nenhuma espécie de hermenêutica teleológica. Como enfatiza Birô, não há nenhum sentido que com o tempo e com o cuidado se irá chegar como resultado de algo (1998, p.59). O trabalho de Kiefer evoca uma perspectiva hermenêutica que contradiz toda s as noções do senso-comum da influência e da transmissão cultural. Para ele a cultura possui diversas faces, que nos possibilita apreender diferentes perspectivas de significados no seio da dinâmica sócio-cultural. Deste modo, Kiefer provoca um debate em torno da não existência de uma só perspectiva para interpretar a história sócio-cultural alemã. As obras dos anos de 1970 (1998, p.57), principalmente, a citada por nós no presente texto (Os Caminhos da Sabedoria do Mundo) fazem o espectador a ter uma postura interpretativa diante delas. Daí o espectador ter a necessidade compreender, mesmo sem chegar a conclusões finais, os diversos caminhos que a sociedade alemã trilhou em sua história recente. Sem dúvida nenhuma o nazismo ainda acaba sendo um enigma para o espectador que busca nas obras de Kiefer trilhas para vislumbrar o caráter aterrorizador desse período sem cair nos esquemas maniqueístas tão difundidos pelas visões do pensamento mediano. Deste modo, a obra de Kiefer tem como horizonte a ética do olhar sobre os diversos caminhos da história, sem privilegiar somente um deles. Tal ética desenvolvida por Kiefer se expressa em sua hermenêutica como horizonte das diversas perspectivas interpretativas. Daí Kiefer não procurar um fim absoluto daquilo que é verdadeiro na dimensão dos fatos ocorridos na dimensão da história sócio-político e cultural. Nós podemos salientar que para Kiefer a interpretação do homem tem como fundo aquilo que ele já se apresenta como sendo e que, por isso mesmo, não há uma separação entre a sua visão daquilo que 297 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


ele é realmente. O homem não está preso a nenhuma forma objetiva, antes ao contrário, qualquer objetividade já é o resultado das motivações experimentadas significativamente pelo self. Nesse aspecto da interpretação da historicidade do homem há uma coadunação entre o pensamento de Heidegger e a linguagem artística de Kiefer, pois ambos se contrapõem às formas objetivadas para se investigar o que é o homem. Não é à toa o artista alemão dizer em uma de suas aulas no Collège de France, intitulada Marine, que a poesia é aos seus olhos a única realidade possível, todo restante é só pura ilusão [(...), La poésie est à mês yeux l’unique réalité possible, tout Le reste n’étant que pure illusion.( 2011, p.35)]. Deste modo, Kiefer salienta que a poesia como horizonte do real ganha a sua determinação na possibilidade compreensiva do ser, que se expressa como linguagem. Heidegger, em Ser e Tempo, salienta no parágrafo 10 que antes da antropologia, biologia ou psicologia quererem responder o que é o homem “was der Mensch sei”, elas precisam ocupar-se do pré-ontológico, compreendido como instância em que podemos visualizar o problema da interpretação que o homem, em sua existência, elabora do seu próprio ser como realização de uma possibilidade histórica. A história não tem seu fundamento nos fatos ou documentos objetivados, antes é a questão da compreensão que o homem tem do Ser que o faz elaborar ações que se efetuam objetivamente no plano historiográfico. Ao relacionar em outra aula sua no Collège de France (2011, p. 58) Genet e Osama Bin Laden, Kiefer tenta mostrar que tanto o engajamento do primeiro com os movimentos políticos de cunho terrorista, como Baader-Mainhof (na Alemanha dos anos 70), como fonte e forma de construção de uma prosa estética, como as imagens dos atentados planejados pelo segundo as Torres Gêmeas (em Nova York em 2001) se vinculam e se entrelaçam em uma espécie de evocação de produções simbólicas. Daí Kiefer dizer que para Osama Bin Laden o atentado as Torres não era uma questão nem de vida, nem um ato em si, nem mesmo uma simples ação terrorista, mas da fabricação de imagens com finalidades simbólicas (2011, p. 59). Ações humanas que ocorrem ao longo da história são compreendidas por Kiefer como imagens simbólicas em que o homem produz de maneira concreta aquilo que ele se faz ser como possibilidade. É essa concretude que pode fazer com que o homem se volte para as determinações de sua existência como produção de símbolos em sua dimensão estética. Eis o motivo de Kiefer salientar que a imagem mais perfeita que nos foi dada ver em nossa contemporaneidade foi a dos 298 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


primeiros homens pisando na lua. Para Kiefer, tal imagem poderia ter sido criada por determinados artistas com o poder de elaboração quase perfeita: “Une image proche de la perfection” ( 2011, p. 59). Ou ainda, segundo Kiefer, “Uma imagem em que o sentido estava igualmente entrelaçado aos seus destinatários, não só em termos virtuais como ideológicos, e ambos de maneira concreta” (2011, p.59). A discussão de Kiefer em torno da construção de imagens simbólicas faz com que ele questione sobre o belo, o seu caráter único, a evidência da simplicidade, a homogeneidade como a polissemia, a inteiração desejada com o espectador, o que na imagem pode se pode juntar a provocação, o corolário da arte e a sua investigação, o papel da cena para certos artistas (2011, p.59). Deste modo, que podemos voltar ao pensamento de Heidegger como contribuição ao pensar artístico de Kie fer a partir da elaboração das imagens como ação humana. Eis o motivo da necessidade de compreendermos a estrutura da ação com base naquilo que somos. A nossa ação já é a expressão de nós mesmos que são efetivadas por meio de imagens, mesmo que de modo imediato nós não a reconheçamos. As produções de imagens no mundo contemporâneo como ações em sua forma difusa faz com que as produções artísticas repensem a sua própria produção imagética como não tendo mais nenhuma forma de eixo. Daí Kiefer argumentar que a produção de imagens que ocorrem no mundo dos fatos históricos serve como elementos construtores de símbolos. Sendo assim símbolos são formatos de linguagem cujo fundamento é não possuir eixo que venha garantir qualquer objetividade absoluta em relação ao significado artístico produzido. A linguagem nos moldes do pensamento de Herder nos permite compreender a intenção de Kiefer em relação à produção da imagem como interpretação do ser do mundo (em seu sentido heideggeriano). Para Herder, a linguagem é remodelada a todo instante pelos diversos modos de ser do homem no mundo. Ela nunca pode ser dominada, pois o seu centro de gravidade jamais é alcançado. Se gundo Taylor, a revolução implícita do pensamento de Herder foi de que o desenvolvimento de novas modalidades de expressão nos capacita a ter novos sentimentos em todos os seus aspectos (2000, p.102). Essa capacidade faz com que o homem possa viver as suas emoções exprimindo-as, sem a necessidade de descrevê-las em si. A linguagem permite ao homem criar formas linguísticas que realizam a justeza daquilo que ele pretende expressar. Expressando o que sente o homem remodela a língua, criando as suas próprias formas, no sentido de se fazer presente no mundo. Eis por que Herder diz que se cria assim um novo idioma (1987, p. 148). 299 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Nós podemos voltar ao início desse artigo cuja preocupação era com as análises que Kiefer faz da história alemã como interpretação das imagens das figuras históricas que formam a cultura alemã, como Kant, e expressar que o campo das ruínas em que Kiefer trabalha como investigador e criador de arte faz com que a própria arte sobreviva a si mesma como campo aberto a todas as possibilidades do modo de ser. Parafraseando os dizeres de Heidegger, em Ser e Tempo: O Dasein pode se ganhar, se ganhar superficialmente, ou nunca se ganhar. No entanto, ele sempre tem de ser. É tarefa do Dasein ter de ser, seja de um modo autentico ou não. Daí as imagens elaboradas em nosso mundo nunca poderem ser apreendidas em suas determinações absolutas ou em si (an sich). Eis o motivo de a história, mesmo seguindo uma linhagem civilizatória como alemã, não esteve a salvo da barbárie. Por outro lado, também não cabe interpretar a história a partir de imagens documentais que comprovem objetivamente o modo de ser de uma cultura. O que está em jogo é sempre a preocupação de trazer outras possibilidades interpretativas daquilo que o homem nos lega como ruína ou não.

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O ENTRELAÇAR DA PALAVRA E DA IMAGEM NA ARTE, POESIA E DESIGN Priscilla Barranqueiros Ramos Nannini1 Resumo: Este artigo é sobre o caminhar da minha pesquisa em artes, por onde comecei, quais foram as minhas motivações, meus questionamentos e quais caminhos vou percorrer para encontrar respostas. Meu objeto de pesquisa é a relação palavra e imagem dentro da poesia visual, artes e design gráfico. Vou fazer entrelaçamentos entre a palavra e imagem nessas linguagens, partindo da análise de obras de artistas, designers e poetas visuais que trabalham a relação verbal e visual. Algumas escolhas são: Aloísio Magalhães, Julio Plaza, Augusto de Campos, Ronaldo Azeredo, Lygia Pape, Mira Schendel e Edith Derdyk. Palavras-Chave: Imagem. Palavra. Poesia visual. Design gráfico. Artes visuais.

Abstract: This article is about the construction of my research in arts, its beginnings, my motivations and doubts, and the ways I will go over to find answers. My research subject is the relationship between word and image within the visual poetry, art and graphic design. I will make connections between word and image in these languages, based on an analysis of works by artists, designers and visual poets working verbal and visual relationship. Some choices: Aloisio Magalhães, Julio Plaza, Augusto de Campos, Ronaldo Azeredo, Lygia Pape, Mira Schendel and Edith Derdyk. Keywords: Image. Word. Visual poetry. Graphic design. Arts.

1. Introdução Arte e pesquisa: quais relações, imbricamentos, costuras existem entre elas? O pesquisador em arte possui uma vontade enorme de conhecer, questionar e buscar respostas. Mas como conduzir uma pesquisa em uma área subjetiva como o campo das artes? Nesse artigo vou discorrer sobre o caminhar da minha pesquisa, como começou, quais foram as minhas motivações, meus questionamentos e, quais caminhos vou percorrer para encontrar respostas. Meu objeto de estudo é a relação palavra e imagem dentro da poesia visual, artes e design gráfico. Vou fazer entrelaçamentos entre a palavra e imagem nessas linguagens, partindo da análise de obras de artistas, designers e poetas visuais que trabalham a relação verbal e visual, e que tenham obras que são consideradas bons exemplos de valor artístico, como Aloísio Magalhães, Julio Plaza, Mira Schendel, entre outros. Esse tema despertou meu interesse há muito tempo. No mestrado pesquisei a relação texto e imagem no livro de literatura infantil, onde trabalhei a leitura de ilustração e seu diálogo com 1

Doutoranda em Artes pelo Instituto de Artes de São Paulo – UNESP. Orientador: Prof. Dr. Omar Khouri. Participante do grupo de pesquisa pela CNPQ: Arte construtiva e poéticas da visualidade . 301 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


o verbal. Palavra e imagem sempre me encantaram, esse rico universo seduziu tanto meu olhar que direcionou minhas escolhas profissionais e artísticas. Nossa contemporaneidade é marcada por grande proliferação de imagens nas mídias e no cotidiano. E como é feita essa leitura? As pessoas apenas olham sem realmente ver, ou tem um olhar apurado em relação a tantas informações? Acredito na importância do olhar crítico em relação à visualidade, por isso a importância desse estudo.

2. Meus caminhos Começo minha pesquisa com o levantamento bibliográfico, onde farei um embasamento teórico situando a relação arte, design gráfico e poesia visual historicamente e culturalmente, destacando suas transformações ao passar do tempo. O recorte que farei do tempo histórico será a partir do início do século XX, época da eclosão dos movimentos artísticos modernistas, fase de plena revolução industrial e de grande desenvolvimento de recursos materiais, o que possibilitou que designers, artistas e poetas usassem esses mesmos recursos em seus trabalhos. Já meu recorte no Brasil se dá por volta dos anos 50, momento em que a poesia concreta está em seu auge. Poetas e artistas se unem para experimentações visuais, explorando diferentes possibilidades de suporte, materiais e sonoridade. Dentre eles destaco os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Júlio Plaza, Décio Pignatari, José Lino Grünewald e Ronaldo Azeredo, que juntos formaram o grupo Noigandres, em 1952. Essas experimentações se refletem na arte e no design. Os ismos estão em pleno desenvolvimento, influenciando artistas e poetas em suas pesquisas visuais. Como essas linguagens caminharam desde seus primórdios até os dias de hoje? Gostaria de relatar seus entrelaçamentos e retomar as origens dessas relações, pesquisando onde palavra e imagem iniciam seus encontros, quais suportes usados e sua exploração, quais as influências dos movimentos artísticos e como isso refletiu nas representações artísticas. Começo minha pesquisa buscando precursores e suas características marcantes dentro de cada movimento artístico. Pretendo relacionar palavra e imagem, mostrando seus possíveis diálogos e apontando que as fronteiras que separam essas linguagens dentro de artes, poesia visual e design, com o tempo, estão desaparecendo. O design gráfico se faz com letras e imagens, usando recursos das mídias e das artes; a poesia visual, além da palavra, usa recursos das artes em suas representações; e por fim, as artes se apoderaram de recursos da 302 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


escrita. São entrelaçamentos contínuos entre essas linguagens, permitindo assim que suas fronteiras se tornem líquidas, não mais tão definidas. E como fio condutor das minhas reflexões acerca do diálogo entre palavra e imagem, vou usar o suporte livro. Finalizo com a análise de obras de artistas, designers e poetas visuais que trabalharam a relação verbal e visual, entre eles Julio Plaza e Augusto de Campos, Lygia Pape, Aloísio Magalhães, Mira Schendel e Edith Derdyk, artistas que possuem trabalhos considerados bons exemplos de valor artístico e cultural. A escolha desses nomes veio de um primeiro recorte, artistas, poetas e designers brasileiros, com trabalhos representativos dentro de suas áreas, e que possa haver possíveis relações entre eles e também com meu tema de pesquisa. Após o levantamento e análise das obras escolhidas, pretendo trabalhar a obra da artista Edith Derdyk com mais profundidade, fazendo um estudo de caso. Edith é uma artista brasileira, contemporânea, com uma obra vasta e muito ligada ao meu tema de pesquisa, além de produzir livros de artista e livros-objetos. Vou fazer entrevistas, acompanhar seu processo criativo e analisar seu trabalho, fazendo possíveis relações e entrelaçando resultados. A ideia é situar as descobertas feitas na pesquisa bibliográfica e na análise das obras num contexto mais amplo. Analisar mais a fundo, buscando mensagens e resultados implícitos, deixando assim a pesquisa instigante para novos olhares, respondendo perguntas e não se encerrando nela, mas abrindo novas janelas para ampliar mentes e pensamentos.

3. Entrelaçamentos... Seria muito complexo buscar pontos de encontro entre palavra e imagem dentro da arte, design e poesia visual? Acredito que na verdade as fronteiras entre essas linguagens estão sendo diluídas com o tempo. Os códigos de uma linguagem são usados na outra o tempo todo. A poesia usa códigos visuais urbanos, assim como a arte. O design usa e formata a escrita e a imagem, dispondo do verbal e visual no espaço gráfico. A revolução industrial permitiu que essas linguagens se aproximassem, havendo uma transgressão dos meios. Palavra e imagem interagem há muito tempo atrás, uma vez que a imagem é uma das expressões mais antigas do homem. As pinturas rupestres poderiam ser consideradas ancestrais dos livros, são narrativas visuais onde os homens transmitiam mensagens. Ao desenhar eles se comunicavam, construíam uma narrativa do seu cotidiano, expressando seus medos e desejos. Estudiosos discutem se, na época das pinturas nas cavernas, a imagem teria, 303 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


além da função mágica, algum fim comunicativo, e se ela teria evoluído dando origem a outras formas de escrita (WALTY; FONSECA e CURY, 2001, p. 15). O homem traça sinais variados usando tábuas de argila, papiros e pergaminhos. Desde os primórdios da escrita que conhecemos hoje, palavra e imagem dialogam e coexistem. “Na evolução da escrita, verbal e visual se complementam, criando padrões estéticos, facilitando a sua reprodução e conseqüentemente a sua compreensão e a comunicação entre os povos” (LINS, 2002, p. 19). Como exemplo dessa interação, temos os Livros dos Mortos (FIG.1), no Egito, que eram ilustrados com cenas muito vivas e acompanhavam o texto com eficácia. Esses livros eram formados de tramas de fibras do tronco de papiro, considerado um dos mais antigos antepassados do papel.

FIGURA 1: Papiro do Livro dos Mortos, XXI Dinastia, por volta de 1070 a.C. FONTE: www.thebritishmuseum.ac.uk/

Na Idade Média (início do século XIV), a iconografia bíblica foi reunida em forma de livro, os manuscritos, e o diálogo entre palavra e imagem começa a se fazer presente com as iluminuras2. Artistas e gravadores começam a representar as imagens em pergaminho e papel. A linguagem escrita era privilégio de uma casta monárquica e religiosa. “Para a grande massa só existia a linguagem oral” (LINS, 2002, p. 19). Esses livros de imagens se tornaram muito populares devido às figuras, com o tempo ficaram conhecidos como “Bibliae pauperum (FIG.2), ou Bíblia dos pobres” (MANGUEL, 1997, p. 123). 2

Arte que nos antigos manuscritos une a ilustração e a ornamentação, por meio de pinturas e cores vivas, ouro e prata, de letras iniciais, flores e folhagens, figuras e cenas, ocupando parte do espaço reservado ao texto, e estendendo-se pelas margens em barras, molduras e ramagens (WALTY; FONSECA e CURY, 2001, p. 19). 304 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 2: Bibliae pauperum, Blockbuch , 1455 FONTE: http://www.unile.it/xil/ols6b.htm#top

Devido à invenção da tipografia por Gutemberg, temos o primeiro livro impresso em 1436. Esses livros caracterizam-se pela letra irregular, ausência de paginação ou assinatura, e imitava o manuscrito, que continuou sendo valorizado por muito tempo ainda. Com o aperfeiçoamento da imprensa depois de 1500, o livro vai se modificando, desde o tipo de papel, disposição das letras, à forma das ilustrações, o que permitiu tiragens e divulgação maiores e mais rápidas. O desenvolvimento da indústria do livro permitiu a expansão da escrita e da cultura. Segundo WALTY; FONSECA e CURY, “a ideia do livro está tão associada à modernidade que chega a conformar a construção do nosso imaginário cultural” (2001, p. 21). Durante o século XX, pode-se constatar um forte diálogo entre as artes visuais e a literatura, colaborando para a diluição dos limites entre as artes visuais, provocando uma aproximação entre essas linguagens. “Poetas se conscientizaram da visualidade da escrita e da página, enquanto os artistas plásticos resgatavam a origem visual das palavras, utilizando elementos textuais nas obras: grafismos, letras de diversos alfabetos, fragmentos de textos, impressos, utilizando a escrita como um elemento gráfico/conceitual” (MIRANDA, 2006, p. 10). Antigas formas de expressão foram retomadas com novos contornos, como novas formas de expressão, é o caso do livro-objeto. Todo livro é um objeto, mas alguns rompem as fronteiras atribuídas aos livros de leitura e se assumem como objetos de arte. Estes livros representam uma terceira linguagem, entre o linear e o visual, entre a literatura e as artes plásticas. Julio 305 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Plaza escreveu um artigo intitulado O livro como forma de arte (1982), onde discute acerca desse tema, inclusive reunindo categorias de livros de artistas do século XIX e XX. De uma maneira geral, a razão primordial de ser do livro é a de transmitir conhecimentos, mas há tempos estes conhecimentos extrapolaram sua leitura textual e foram potencializados com imagens e vice-versa. Unindo-se às experiências apresentadas, o design gráfico se mostrou como campo de ação importante no sentido de abrir caminho para outras interações e não apenas da leitura do texto. Ao estudar os precursores do livro-objeto, a relação arte, design e poesia visual é bem nítida. Segundo Drucker3 (2004), o livro de artista não surge de maneira linear, há pontos simultâneos de origem. Podemos localizar sua origem nas vanguardas artísticas do início do séc. XX, como o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo e o construtivismo russo. Artistas desses movimentos fizeram muitas experimentações entrelaçando texto e imagem. Mas antes disso, já existiam referências de artistas e escritores que realizaram trabalhos em que verbal e o visual dialogavam, como Lewis Carroll (poema The mouses tale, 1865), Gustave Flaubert, William Blake (Songs of Experience), William Morris (movimento Arts and crafts) e os poetas Stéphane Mallarmé (poema Un coup de dês) e Edmund Jabès. Vale destacar a série de gravuras Os Caprichos, de Goya e os manuscritos Noa Noa, de Gauguin, onde ilustração e texto são tratados com cuidado artístico. No Brasil, as experiências dos poetas e artistas visuais no período Concreto (entre anos 1950 e 60), são apontadas como o início de uma preocupação com o verbal e sua relação com a estrutura visual, uso de signos gráficos na poesia. Porém, na década de 20, havia a produção de obras onde artistas plásticos e escritores trabalhavam juntos para a elaboração de livros com preocupação visual e estética elaboradas, como a obra Feuilles de Route (1924), com texto de Blaise Cendrars e ilustrações de Tarsila do Amaral, e a obra Pau Brasil (1925), de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Houve também as experiências do grupo O Gráfico Amador (1954-61), formado em Pernambuco por intelectuais interessados na arte do livro. Seus projetos editoriais possuíam um caráter experimental, com propostas visuais inusitadas para a época, como a obra Aniki Bobo (FIG.3), de 1958, de Aloísio Magalhães e João Cabral de Melo Neto.

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DRUCKER, Johanna. The Century of Artists’ Book. New York: Granary Books, 2004. 306 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


FIGURA 3: Aniki Bobo. FONTE: LEITE, 2003, p. 104.

Em 1952 ocorre a formação do Grupo Noigandres, com Décio Pignatari e Augusto e Haroldo de Campos (São Paulo). Em 1958 produzem a revista Noigandres (FIG. 4), com o manifesto da poesia concreta e propõem os elementos para sua constituição, como o espaço gráfico considerado como agente de estrutura espaço-temporal para o poema; a idéia de ideograma, com sua sintaxe espacial ou visual e a idéia de justaposição de elementos; a palavra como matéria do poema. Poetas se ligam a outras linguagens como as artes plásticas e a música.

FIGURA 4: Revista Noigandres 4. FONTE: BANDEIRA e BARROS, 2008, p. 30.

Em 1956, acontece a I Exposição Nacional de Arte Concreta, no MAM/SP. Nesta exposição mostram um amplo panorama das artes (obras abstratas ou concretas) e da poesia concreta, a mostra foi composta de cartazes-poemas, obras pictóricas, desenhos e esculturas. Por volta de 307 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


1959, ocorrem muitas divergências entre o Grupo Ruptura (SP) e o Grupo Frente (RJ), e da cisão entre eles surge o Grupo Neoconcreto (RJ), que defendia a introdução da expressão na obra de arte e rejeitava o primado da razão sobre a sensibilidade. Das atividades do grupo Noigandres emergiu o movimento da poesia concreta. Este grupo sofre influências de Mallarmé, James Joyce, Ezra Pound e E. E. Cummings. Na poesia concreta são trabalhados os aspectos formais e sonoros das palavras. Há uma nova sintaxevisual do texto. Os poetas concretos desenvolveram experiências que desencadearam em muitas pesquisas relacionadas ao campo das artes gráficas. Começam a desenvolver seus próprios livros-objetos, como Poemóbiles (FIG. 5), Objetos Poemas e Caixa Preta de Augusto de Campos e Julio Plaza. Os poetas concretos estavam mais para “designers de linguagem” do que para escritores (CAMPOS, 1974, p. 137). Baseando-se nos princípios de relação, justaposição, correlação, escrita ideogrâmica, a poesia concreta trabalha os elementos gráficos explorando os fatores gestálticos de proximidade e semelhança visual.

FIGURA 5 – Poemóbiles, 1968. FONTE – Fotografia da autora.

Durante o Neoconcretismo (década de 70), ocorre uma explosão de livros-objeto, havendo a radicalização com as experiências com esse tipo de manifestação. A forma é explorada enquanto narrativa, havendo a dissolução das fronteiras entre poesia e artes visuais. A própria condição da arte nesse período produziu um transbordamento de limites, fazendo com que os artistas se lançassem em múltiplas direções, explorando as mais diferentes possibilidades de expressão. A produção nesse período é muito rica, texto e imagem interagem de maneiras diversas. Augusto de Campos, Julio Plaza, Arthur Barrio, Lygia Clark, Antonio Dias, Waltércio Caldas, Alex Hamburguer, Delson Uchoa, Liuba, Renina Katz, Lygia Pape, Anesia

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Pacheco, Paulo Bruscky, Luise Weiss, Mira Schendel (FIG. 6) e Jac Leirner são alguns artistas que trabalham a relação entre essas linguagens em suas expressões artísticas.

FIGURA 6 – Obra sem título, da série Objetos Gráficos, 1973. FONTE – Pérez-Oramas, 2010, p.131.

Poesia visual, arte, tipografia, texto, imagem, design se intercambiam de uma maneira que seus limites vão se esvaindo. As fronteiras de nomeações somem: arte ou poesia, livroobjeto ou arte, design gráfico ou tipografia? Verbal e visual se entrelaçam, dialogando.

4. Autores e pensamentos Para situar a relação palavra e imagem historicamente e culturalmente, entrelaçando arte e poesia visual, e destacando suas transformações ao passar do tempo, conto com obras de autores que de alguma forma conversem com meu tema de pesquisa Começo citando Zygmunt Bauman, com a obra Modernidade líquida (2001), acredito que será uma leitura importante para minha hipótese da pesquisa, sobre as fronteiras da arte, poesia visual e design gráfico que estão se diluindo, uma linguagem entra na outra, usa recursos de todas, interagem. Lucrécia D’Aléssio Ferrara, Leitura sem palavras (2007), Donis A. Dondis, Sintaxe da linguagem visual (2000), Martine Joly, Introdução à análise da imagem (1996), Lúcia Santaella e Winfried Nöth, trabalharam a questão da imagem propriamente dita, sua análise, estrutura, classificação e leituras.

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Sobre a poesia visual e concreta, autores como Décio Pignatari, Julio Plaza, Augusto e Haroldo de Campos, fornecerão base para meus estudos. O livro Teoria da Poesia Concreta (2002) traz textos e manifestos publicados entre 1950 e 1960, que prepararam e fomentaram o movimento da poesia concreta. Entre os artigos estão as influências que sofreram da arte concreta, precursores (Mallarmé, Pound, Joyce, Cummings, Apollinaire), referências nacionais (João Cabral, Volpi) e internacionais, além dos procedimentos empregados na construção poética pelos concretistas, sua nova linguagem e visualidade. Também os documentos em Arte concreta paulista (2002) são uma rica fonte de referência desse movimento aqui no Brasil. Para conceituações em design gráfico, pesquisarei os estudos de Vilém Flusser, O mundo codificado (2007), Rafael Cardoso, Uma introdução à história do Design (2008) e Richard Hollis, Design Gráfico: uma história concisa (2000), além de Design: olhares sobre o livro (2010), com organização de Luiz Antonio Coelho e Alexandre Farbiaz e a obra Alexandre Wollner e a formação do design moderno no Brasil (2005), de André Stolarsky. Vou usar a obra de Giulio Carlo Argan, Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos (1993) e o livro Conceitos da arte moderna (2000), organizado por Nikos Stangos para a contextualização histórica dos movimentos artísticos do séc. XX. Paulo Silveira escreveu o livro A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista (2001) a partir de sua pesquisa para o doutorado, onde traz definições interessantes e relaciona o livro de artista com a arte e o design, sendo uma obra de extrema importância para minha pesquisa, e Annateresa Fabris e Cacilda Teixeira da Costa, com Tendências do Livro de Artista no Brasil (1985), mais um texto esclarecedor para aprofundar os conceitos sobre livro-objeto. Roger Chartier, um estudioso do livro e de suas transformações frente às mídias contemporâneas (A aventura do livro, do leitor ao navegador, 1999), Umberto Eco, que também levanta questionamentos a respeito do livro frente aos novos suportes para a palavra e imagem; e Alberto Manguel, que escreveu duas obras importantes para minha pesquisa, Uma história da leitura (1997) e Lendo imagens (2001). Pretendo relacionar estes autores, seus conceitos, percorrendo os movimentos artísticos e seus reflexos no design gráfico e na poesia visual.

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As imagens têm sido meios de expressão da cultura humana desde as pinturas pré-históricas das cavernas, milênios antes do aparecimento do registro da palavra pela escrita. E embora a palavra escrita tenha se desenvolvido muito já no séc. XV, com a descoberta de Gutenberg, o mundo imagético teve que esperar até o séc. XX para ter sua explosão. Segundo Santaella e Nöth (2008), até hoje, era do vídeo e das novas mídias, com uma vida cercada por mensagens visuais, não temos uma tradição na pesquisa da imagem como ocorreu com a palavra, onde estudiosos foram a fundo investigar a natureza e estrutura da palavra, criando regras e teorias. Para investigar a imagem, não existe um “suporte institucional de pesquisa que lhe seja próprio” (Santaella e Nöth, 2008, p. 13). Diversas disciplinas servem como base nesse tipo de pesquisa, como a semiótica visual, crítica da arte, história da arte, teorias psicológicas da arte, estudos das mídias, entre outras, ou seja, o estudo da imagem é um estudo interdisciplinar. Outra discussão também seria que a imagem não serve como meio de reflexão da própria imagem, o que ocorre com o verbal, a língua pode ter um discurso reflexivo sobre si mesmo, e já a imagem precisa do discurso verbal para o desenvolvimento de uma teoria da imagem. Ferrara também abordou o mesmo assunto em sua obra Leitura sem palavras. Segundo a autora, todo código é constituído de signos, com sintaxe própria e maneira de representar, e para descodificar qualquer sistema, é preciso identificar o signo e a sintaxe que o constituem. A dificuldade de tal caracterização aponta a primeira e maior dificuldade do texto não-verbal, “ao mesmo tempo que é o elemento básico de sua definição” (2007, p. 14). E continua, “o texto não-verbal é uma linguagem sem código” (p. 15). A fragmentação sígnica é sua marca estrutural, nela não há um signo, mas signos aglomerados sem convenções: sons, palavras, cores, traços, tamanhos, texturas, cheiros. As emanações dos cinco sentidos surgem no nãoverbal juntas e simultâneas, porém desintegradas; não há convenção, não há sintaxe que as relacione: sua associação está implícita, precisa ser produzida. Porém, é importante notar que também o código verbal não pode se desenvolver sem imagens. Nosso discurso verbal está permeado por elas. Assim sendo, Santaella e Nöth (2008, p. 14) concluem que uma abordagem teórica seria a mais adequada ao estudo da imagem. Santaella e Nöth (2008) situam a imagem em relação ao texto e seu contexto. Material muito rico e interessante para meu objeto de pesquisa. Os autores escrevem que a relação entre a imagem e seu contexto verbal pode ser íntima e variada, destacando que a imagem pode ilustrar um texto verbal ou o texto pode esclarecer a imagem na forma de um comentário. O 311 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


contexto mais importante da imagem é a linguagem verbal, mas outras mídias e imagens também podem modificar a mensagem da imagem. Santaella e Nöth (2008) discorrem sobre a relação verbal e visual, ponto importante da minha pesquisa, relatando autores que abordaram o tema de alguma forma, como C. S. Pierce e a semiótica da imagem, que apresentou variadas classificações, fornecendo uma gama de ferramentas muito úteis para poder analisar e penetrar a fundo nos signos. Também exploram a relação palavra e imagem, indagando sobre os atributos imagéticos na própria palavra, assim como o contrário, o que a imagem tem comum com a palavra. Estas são apenas algumas das referências que vão embasar e aprofundar o meu objeto de pesquisa. Este estudo será mais trabalhado, farei novas leituras, novos olhares vão surgir, começando assim a construir o entrelaçamento da palavra e imagem, abordando minhas questões, criando novas relações e explorando minhas hipóteses. Referências Bibliográficas ARGAN, Giulio C. Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Trad. Denise Bottman e Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. BANDEIRA, João (org.) Arte Concreta Paulista: documentos. São Paulo, Cosac Naify, CUMA da USP, 2002. BANDEIRA, João e BARROS, Lenora de. Poesia Concreta: o projeto verbivocovisual. São Paulo, Artemeios, 2008. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BERGER, John. Modos de ver. Trad. Lúcia Olinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. BONSIEPE, Gui. Design: do material ao digital. Florianópolis: FIESC/IEL, 1997. BRANDÃO, Ana Lúcia de Oliveira. A trajetória da ilustração do livro infantil no Brasil à luz da sombra da semiótica discursiva. 2002. 154 fs. Tese de Doutorado. PUC, São Paulo, 2002. CAMPOS, Augusto de, e CAMPOS, Haroldo de, O grupo concretista in FILHO, Leodegário Amarante de Azevedo (org.) Poetas do modernismo, volume IV, São Paulo, 1974. CAMPOS, Augusto de, PIGNATARI, D. e CAMPOS, H. de. Teoria da Poesia Concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo, Ateliê Editorial, 2002. CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do Design. 3 ed. São Paulo: Edgard Blücher, 2008. CHARTIER, Roger. A aventura do livro, do leitor ao navegador. São Paulo: Editora Unesp / Imprensa Oficial do Estado de SP, 1999. COELHO, Luiz Antonio e FARBIARZ, Alexandre (org.). Design: olhares sobre o livro. Teresópolis: Ed. Novas Idéias, 2010. 312 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


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A MATÉRIA COMO EXPRESSÃO DO TEMPO NA ARTE Ricardo Coelho 1 Resumo: Ao pensarmos nas referências para a arte contemporânea, Marcel Duchamp surge sempre como fonte principal, o que não é de modo algum questionado neste texto, por outro lado, essa reincidência entre os historiadores e críticos contemporâneos nos faz esquecer de um outro procedimento seminal para a arte contemporânea realizado por Picasso e Braque a partir de 1912, ou seja, a inserção dos primeiros índices do mundo real no quadro, dos primeiro s materiais que não faziam parte da nobreza da arte até aquele momento. As colagens e os papiers collés, depois as esculturas de jornal. O precário e o cotidiano passaria a fazer parte dos materiais e do discurso da arte, primeiramente nos trabalhos destes dois artistas do Cubismo e depois nas montagens polimatéricas de Boccioni, nas pinturas-esculturas de Archipenko, nos contra relevos de Tatlin e nos acúmulos de camadas no tempo de materiais comuns além de dejetos do cotidiano no “Merzbau” de Kurt Scwitters. Jornal, papelão, vidro, madeira, estopa, objetos industriais, depois madeira queimada, fezes e outros materiais usados por artistas como Picasso, Braque, Boccioni, Duchamp, Tatlin, Schiwitters, Burri e Manzoni, entre outros, trouxe para a esfera da ma téria perene e nobre da arte uma parte do mundo, e como materiais que já haviam possuído uma outra função, ou haviam se tornado simples dejetos da sociedade de produção, ou mesmo dejetos imprestáveis como nossos excrementos, somavam-se ao universo da arte em seu desgaste e em sua condição física, além de ampliar o próprio conceito de objeto de arte com a alteração proposital da matéria como no caso de Burri, diferenciado-se da pintura e da escultura tradicionais. O tempo na arte começa a se tornar indicial e numa reação à estandardização das imagens na Arte Pop surge a Arte Povera italiana. Os artistas desse movimento voltam-se para uma percepção e um confronto com a realidade, com a natureza e o próprio corpo. Os materiais utilizados passam a expressar um nova concepção do tempo que pode ser percebido pelo desgaste ou transformação irreversível da matéria. O tempo torna -se uma das funções estruturais determinantes na arte desde as colagens Cubistas no início do século XX e, principalmente a partir da Arte Povera, em íntima relação com os fluxos da vida. Palavras-chave: Arte Povera. Irreversibilidade. Matéria. Processo. Colagem.

1. Atos precursores de um novo tempo na Arte. Parece que uma das características fundamentais da arte contemporânea, e que pode ser analisada tanto de um ponto de vista ontológico como de uma perspectiva existencial, é a da provisoriedade do estético. Enquanto que, numa estética clássica, a tendência seria considerar o objeto artístico sub specie aeternitatis, a arte contemporânea, produzida no quadro de uma civilização eminentemente técnica em 1

Doutorando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp

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constante e vertiginosa transformação, parece ter incorporado o relat ivo e o transitório como d imensão mesma de seu ser. (BENSE, 1971, p.15)

Haroldo de Campos escreveu este texto na década de sessenta e ao usar exemplos para sua argumentação refere-se, entre outros, a alguns artistas das vanguardas históricas fundamentais neste processo de transformação do objeto estético e da arte de uma forma mais significativa. Um pouco à frente cita Max Bense quando este afirma que “a qualidade estética nada tem a ver com a fugacidade ou eternidade do objeto estético.” (Ibid, p. 16) Estas afirmações serão úteis para esta breve reflexão a respeito das características descritas acima e que tem suas primeiras manifestações na pesquisa de Braque e Picasso, nos depoimentos bombásticos de Marinetti, na obra de alguns futuristas e depois em várias manifestações derivadas destes primeiros movimentos revolucionários do século XX. Em maio de 1912 Picasso realiza a primeira colagem “Still Life with Chair Caning” e no mesmo ano Braque realizaria o primeiro papier collé “Prato de frutas e copo de vidro” além de misturar areia e outros materiais para enfatizar a textura em sua pintura. A partir disto, surgiria um dos mais radicais gestos da história da escultura quase que, invariavelmente, realizada com materiais nobres e perenes como o bronze e o mármore. Este gesto radical seria a construção cubista. Braque e Picasso começaram a fazer escultura por montagem de objetos aleatórios, dispostos em meio a materiais pobres (junk), e estenderam sua fascinação pictórica pelo gênero relat ivamente humilde da natureza mo rta nesta até agora arte nobre da idealização da forma hu mana. (COX, 2000, p. 262, tradução nossa)

Ainda em 1912, provavelmente Braque realizou a primeira escultura de jornal mas não restam exemplares deste autor como os bem conservados e que foram realizados por Picasso “Existe pouca dúvida de que a transformação extraordinária da arte escultórica do século XX – que foi muito mais rápida do que a evolução da pintura moderna – veio quase completamente da construção Cubista.” (Ibid p. 261, tradução nossa)

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Essa colocação de Neil Cox não nos parece exagero e, ao contrário, coloca- nos ainda numa espécie de beco sem saída quanto à definição que o termo escultura poderia abranger; de esculpir, modelar, retirar partes da matéria para uma montagem com um material tão instável e frágil como uma folha de jornal. Naturalmente, há aí uma nítida dilatação do termo escultura, graças a procedimentos adotados ainda nos anos subsequentes a 1912. Boccioni parece ser o primeiro a reagir às colagens cubistas e isto fica expresso no seu Manifesto da Escultura Futurista de 1912, no qual defende a realização de esculturas com materiais diversos como vidro, metal, arame, luzes artificiais, etc. Essa ousadia poucas vezes se efetivou com sucesso no trabalho de Boccioni, que continuou a se valer dos materiais tradicionais da escultura como já havíamos observado anteriormente, e que, quando trabalhou a partir desta mistura de materiais não conseguiu a interpenetração efetiva dos objetos no corpo e do corpo nos objetos conforme almejava de forma satisfatória. “A dificuldade é que os itens não se interpenetram, de fato, de qualquer modo significativo.” (PERLOFF, 1993, p. 110) Ainda que as experiências futuristas com a colagem, e no caso da escultura com a montagem ou assemblage, não tenham produzido grandes resultados, indicaram novos caminhos para muitos artistas do século XX. Archipenko, que foi amigo de Boccioni, uniu diversos materiais e a eles acrescentou a cor, criando uma espécie de pintura-escultura; Tátlin, ao contrário, em seus contra-relevos espaciais trabalhava a partir das características intrínsecas da matéria, tirando proveito das conotações do desgaste e dos usos anteriores. Para Annateresa Fabris, a idéia polimatérica de Boccioni estende sua influência para além das vanguardas históricas como na “matéria como matéria de Burri, os combine-paitings de Rauschemberg, os décollages de Rostela, as acumulações de Armam, entre outros” (FABRIS, 1987, p. 121) Encerrando este item referente às novas categorias da arte que passavam a englobar o efêmero e o transitório como parte de sua estrutura a partir da introdução de elementos e materiais simples do cotidiano e que, de certo modo, se inicia com as colagens de Braque e Picasso, não podemos deixar de falar de Marinetti, inventor do Futurismo e quem primeiro pregou a realização de uma obra efêmera. 317 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Em oposição à arte nascida “na poeira das bibliotecas”, retrospectiva, antidinâmica, fundada no culto da imortalidade, o Futuris mo propõe a obra efêmera, transitória, a obra que desaparece junto com o cadáver de seu autor, símbolo constante do devir, do único, do momentâneo, expressão do “efêmero, instável e sinfônico universo que se forja em nós e conosco”. É por isso que a metáfora mais eficaz para tal tipo de obra é a da armação de uma casa em construção, pois simboliza a “ardente paixão pelo devir das coisas”, o repúdio pelo já realizado e consolidado, “bivaques de sono e vileza”. (Ibid, p. 83)

Em 1933, um artista que assumiu desde cedo a colagem como um dos seus principais procedimentos, como podemos notar no “Merzbild 32A”, (1921), daria vida ao desejo de transformação/construção futurista, materializando a própria metáfora de Marinetti da casa em construção. Kurt Schwitters no seu “Merzbau” construído num quarto de sua casa em Hanôver, (...) oblitera a distinção entre parede e colagem ou chão e escultura. Se a sua armação estrutural deriva das armações em rede do Cubismo, é u m Cubis mo transformado pelo impu lso futurista (e depois Dadá) para eliminar a d istinção entre o campo p ictorial e o mundo „real‟ fora do quadro. Na verdade, as pilhas de „lixo‟ liv res de suportes que constituem a assemblage arquitetural de Schwitters estavam em constante flu xo, desde que o artista acrescentava ou subtraía itens e criava novas configurações com o uso de madeira, papelão, pedaços de ferro, mobília quebrada, impressos, tíquetes de trens, cartas de jogar e assim por diante. (PERLOFF, 1993, p. 148)

Um pouco à frente, Marjorie Perloff continua: “Aspirando a um espaço adicional, Schwitters fez um buraco no teto e estendeu o seu Merzbau para o piso acima.” (Ibid,1993, p. 149) Provavelmente, este trabalho singular, que era transformado constantemente como um documento vivo, seria alterado até a morte do artista, quando sua casa seria tombada e transformada em um Museu, ou quando, um grande Museu retiraria cuidadosamente a obra para preservá- la. Ironicamente a obra foi destruída em 1943 pelo próprio contexto em que foi 318 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


construída, como a metáfora duplamente perfeita dos primeiros ideais futuristas de Marinetti. “A Casa em Construção” desapareceu perante a força e a beleza do motor e da guerra, única higiene do mundo. As colagens na pintura situam a obra em seu contexto real, a escultura se expande e se confunde com os espaços onde os limites tornam-se indefinidos; os materiais mais diversos, orgânicos como a madeira, unem-se à materiais industrializados como chapas de ferro e placas de vidro; o tempo está próximo de tornar-se uma função determinante na estrutura da obra e, pela primeira vez, a arte ocidental se aproxima dos fluxos da vida ao incorporar materiais que podem desaparecer com um simples descuido. Estas mudanças ligadas ao caráter temporal nas obras de arte são latentes e para que isso se torne mais contundente basta lembrarmos das esculturas de jornal de Picasso. As produzidas por Braque desapareceram sem deixar vestígio a não ser em seus depoimentos que comprovam a sua realização. Como contraponto, em 1972, foram encontradas no mar duas esculturas gregas fundidas em bronze próximo da aldeia de Riace, na Itália. Gombricht (1993, p. 500) afirma que são do século V a.C. e Omar Calabrese (1987, p. 202) ressalta a sua “indestrutibilidade” que resistiu por vinte cinco séculos, ressurgindo “da profundidade dos abismos”.

2. Arte Povera: A matéria como expressão do tempo na Arte. No item anterior citamos alguns procedimentos de artistas modernos, os quais anteciparam características a serem desenvolvidas, principalmente, na segunda metade do século XX, em especial, na década de sessenta num movimento de artistas italianos batizado por Germano Celant, em 1967, como Arte Povera e que, traduzido literalmente, significa Arte Pobre. No entanto, seria limitador procurar entender este movimento a partir do recorte de uma noção simplificada ligada apenas ao significado literal do termo como a utilização de materiais pobres na arte, assim como o próprio Celant, ainda em 1967, percebeu “a restrição de seu emprego a um capítulo histórico, o qual ele considerava fechado.”(VETROCQ, 2002, p.88, tradução nossa). Em 1971, Celant abandona o termo que ele próprio havia cunhado e vários artistas envolvidos ou com características do movimento já questionavam a sua 319 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


validade antes disso, expandindo suas ações para outras formas e concepções de arte. Um exemplo disto é Alighiero Boetti. Depois de 1968, sentindo que a maioria dos artistas de Turin tornaram-se excessivamente fascinados pelos materiais e estavam produzindo trabalhos baseados mais nesta fascinação pelo material „pobre‟ do que por proposições „pobres‟, as quais originalmente definiram a Arte Povera, Boetti rejeitou o rótulo Arte Povera. (CHRISTOV-BA KARGIEV, 1999, p. 41, tradução nossa)

Segundo Carolyn Christov-Bakargiev (Ibid, p. 20-23), poderíamos citar entre as influências para a formação da Arte Povera: o uso de materiais diários e objetos de design nos ready-mades de Duchamp, Lucio Fontana que abriu o espaço da pintura para o espaço e a luz reais, o grupo japonês Gutai em suas exposições a céu aberto na Europa em 1959 e 1961, enfatizando o uso de materiais naturais assim como a Land Art; a figura de Gallizio que ajudou na “formação da identificação da Arte Póvera com a vida”, o escultor Ettore Colla, a pintora abstrata Carla Acardi, a aproximação da Pop Arte com o real, e ainda: (...) o Neo Dada, o grupo de artistas Zero, Nouveau Réalis me (inclu indo Klein), e o grupo Azimuth (Manzoni, Enrico Castellani) em Milão no final dos anos 50 e começo dos 60. A exploração da natureza humana feita por Manzoni, e sua investigação dos elementos que definem u m trabalho de arte, levou -o a exp lorar os limites do corpo, natureza, arte e o mundo propriamente dito. (Ibid, 1999, p. 22, tradução nossa)

Além das mais conhecidas ações que resultaram em algumas das pinturas monocromáticas, Yves Klein “(...) adotou diversos métodos heterodoxos para produzir obras de arte. Por exemplo, usou um lança-chamas e a ação da chuva sobre a tela preparada. (Denominou Cosmogonies [Cosmogonias] as pinturas produzidas pela ação das interpéries.) (LUCIE-SMITH, 2006, p. 99) Já o italiano Piero Manzoni (1933-63)

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(...) assinou uma modelo, fazendo dela obra de arte. Enlatando suas próprias fezes, colocou-as à venda, com o preço estipulado pelo valor do peso delas em ouro. Inflando um balão, ele fez O Fôlego do artista (1961), u m reflexo perecível do pequeno frasco de vidro de Duchamp 50cc air de Paris (1919). (ARCHER, 2001, p. 30)

Outro artista que não é mencionado entre as influências, talvez por se tornar conhecido dos italianos apenas por volta de 1968, é Joseph Beuys. “Ele fazia amplo uso de materiais como feltro e gordura animal, geradores de calor, fundamentais para a sobrevivência, além de expor ferramentas do trabalho agrícola, como pás e foices.”(BYINGTON, 2001, p. 65) Todas estas influências são fundamentais para a formação, desenvolvimento e compreensão da Arte Povera, no entanto, a figura que mais nos interessa é Alberto Burri, já mencionado no primeiro item, e que, segundo Carolyn Christov-Bakargiev (1999, p. 21) influenciou fortemente os mais jovens artistas que ingressariam no movimento. Burri, a partir do final da década de 40 e início dos anos 50, passa a alterar a natureza da matéria, por exemplo, queimando materiais como papel, madeira e depois plástico, apresentando-os como parte dos trabalhos em colagens ou assemblages, mantendo o rigor da pintura apesar de incorporar materiais simples como sacos de tecido cru e elementos orgânicos como a madeira queimada, transformados pela ação direta do artista, muitas vezes, com o uso de instrumentos como um maçarico. “Ele usou esses materiais porque o faziam lembrar das bandagens ensopadas de sangue que vira na guerra. Além disso, usou madeira chamuscada, lâminas plásticas queimadas e derretidas com maçarico e folhas de flandres batidas. ” (LUCIE-SMITH, 2006, p. 55) Burri nos interessa porque está a um passo do tempo, ou melhor, a um passo de incorporar o tempo como uma das funções principais da estrutura das obras de arte. Ao agrupar esses elementos incorpora a transformação como um movimento ocorrido na realidade física do material que, no entanto, permanece imóvel na tela como um vestígio do passado. A Arte Povera, além de incorporar objetos e materiais simples do cotidiano e da cultura, traz para a esfera da Arte elementos orgânicos e naturais como nos trabalhos de Burri, 321 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


entretanto, estes materiais são incorporados em suas qualidades fluídas, passíveis de transformações constantes na própria obra. Alguns elementos, como o gelo, utilizado nas esculturas de Pier Paolo Calzolari, por exemplo, se desfaz em pouco tempo, trazendo uma nova instabilidade para o abalado universo dos objetos eternos da Arte após as primeiras inovações das colagens do Cubismo e seus descendentes diretos. Lucie-Smith destaca um outro aspecto importante presente na Arte Póvera e que afeta diretamente a relação que se estabelecia entre a arte e o corpo do observador: Um dos aspectos da Arte Povera, ignorado quando surgiu e pouquíssimo analisado desde então, era a maneira co mo desviava a atenção do espectador do objeto individual para o ambiente. A arte amb iental ou de instalação já era praticada na década de 1920 pelo dadaísta Kurt Schwitters (1887- 1948) e foi posteriormente elaborada pelos surrealistas e pelos pioneiros da arte pop. Os praticantes da Arte Povera levaram-na ainda mais longe; como seus materiais eram, por vezes, muito frágeis, ou no mínimo desprovidos de presença sólida, o que con tava era o amb iente. (Ibid, 2006, p. 165)

A citação acima expressa a crise do conceito de objeto na arte, no contexto dos anos 1960. A escultura antes apenas observada, passa a atingir o observador como testemunha do real. Hans Haacke escreveu nesse período: Uma “escultura” que fisicamente reage ao seu ambiente e/ou afeta seu redor não mais pode ser tomada como um objeto. O leque de fatores que a influenciam, assim como seu próprio raio de ação, alcança além do espaço que ocupa materialmente. Ela dessa forma funde-se com o ambiente em u ma relação que é melhor compreendida co mo u m “sistema” de processos interdependentes. (CELANT , 1969, p. 179, tradução nossa)

No contexto dos anos 1960 não apenas o espaço, mas também o tempo e o processo adquirem novas e variadas dimensões nos trabalhos dos artistas da Arte Povera e de outros movimentos contemporâneos que se utilizaram de materiais orgânicos e naturais. Numa lógica que contestava o conceito de arte até então em voga, bem como o próprio 322 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sistema/mercado de arte, o processo passa a ser a preocupação principal para muitos artistas, como podemos perceber no depoimento de Jan Dibbets:

Eu co meço pensando em usar todas as possibilidades sem me preocupar com problemas quando algo começa a ser arte. Eu não faço o trabalho art ístico eterno, só dou informação visual. Estou mais envolvido com o process o do que com o resultado final. (CELANT, 1969, p. 103, t radução nossa)

Emilio Prini, em 1968, realizava um trabalho em processo no qual uma câmera deveria tirar duas mil fotos por dia durante dez anos, ou seja, o tempo de vida do aparelho estabelecido pelo próprio fabricante. Mario Merz, também em 1968, começa a apresentar seus “Igloos” construídos com tubos de metal, vidro, sacos de areia, jornais e outros materia is. Esses trabalhos são, na sua própria concepção, efêmeros, não no uso exclusivo de materiais perecíveis, pois os Igloos envolvem até emblemas em néon, mas no que diz respeito à construção; a cada fim de exposição os trabalhos eram desmontados e remontados de novas maneiras e os materiais diversos eram escolhidos a partir do espaço da nova exposição. Um depoimento de Giovanni Anselmo é esclarecedor a esse respeito : “Eu, o mundo, as coisas, vida, nós somos situações de energia e o ponto não é cristalizar tais situações, mas mantê-las abertas e vivas é uma função de nosso viver.” (Ibid, 1969, p. 109, tradução nossa) Michelangelo Pistoletto, em 1968, cria com amigos o grupo de teatro “Lo Zoo” que, naturalmente, desenvolvem suas performances no tempo e, como no teatro, diferentes a cada apresentação. Alighiero Boetti, entre outros trabalhos, inaugura uma espécie de Arte Postal em que o tempo de envio, recebimento e reenvio era incorporado como “camadas de experiência” (CHRISTOV-BAKARGIEV, 1999, p. 42, tradução nossa). Em 1967 realizou seu “Manifesto” que tinha duplo sentido, fazendo referência a um dos meios de expressão das vanguardas e ao próprio significado literal da palavra em italiano que poderia ser Cartaz. Este manifesto era composto do nome de dezesseis artistas que eram seus amigos seguidos de códigos gráficos que tiveram sua chave depositada em um tabelião e que só poderia ser revelada após sua morte. Esta concepção de trabalho estende sua duração à própria vida do

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autor, mas curiosamente, seus herdeiros mantém este código em segredo até hoje. Isso, por um momento, lembra- nos a ironia de Duchamp que, ao ser entrevistado por Pierre Cabanne (CABANNE, 1987), em momento algum faz referência a “Etant Donné”, trabalho que seria revelado apenas após a sua morte, apesar de ter sido construído por mais de 20 anos. No caso de Boetti, sua família suspendeu seu desejo, provavelmente, frustrou seus amigos que ainda estavam vivos quando da sua morte, mas estendeu a fascinação da idéia do autor para sempre. Trabalhos com sentidos similares foram realizados por Giuseppe Penone entre 16 e 20 de dezembro de 1968, em ações que alteraram o crescimento natural de árvores e arbustos, atrelando metaforicamente a existência dos vegetais à vida do próprio artista. A Arte Povera, apesar de manter certas relações com a arte americana no que toca às possibilidades do cotidiano na incorporação de seus diversos materiais ao universo da arte, surgiu como uma espécie de resposta dos artistas italianos à crescente influência da arte americana, em especial, a arte da banalização ou estandardização da imagem da cultura de massa, ou seja, a Pop Arte americana baseada nos processos técnicos de reprodução que, em 1964, alcançou seu auge na Bienal de Veneza com o trabalho de Robert Rauschemberg, sendo premiado nessa edição. Marcia E. Vetrocq (2002, p. 82-91) ao comentar a exposição “Zero to Infinity: Arte Povera”, a qual se caracterizou como uma das mais importantes e influentes exposições históricas do movimento, ocorrida em maio de 2001, no Walker Art Center em parceria com o Tate Modern, apesar de suas falhas, destaca as dificuldades de determinar o tempo cronológico e as características do grupo que, na verdade, nunca se efetivou como um grupo realmente. Isso porque uma das principais características era a heterogeneidade e a insubordinação dos artistas participantes. Além disso, ela destaca a forte influência, ainda em nossos dias, da figura de Germano Celant, afirmando na ocasião que “a presente exibição confirma amplamente o que nunca esteve realmente em dúvida: Arte Povera nomeada, definida e demarcada por Celant é Arte Povera nomeada, definida e demarcada por Celant.”(Ibid, p. 90, tradução nossa). Com isso ela não critica Celant, mas constata uma situação que a própria exposição parecia querer mudar, destacando no catálogo outros críticos

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que se envolveram num entendimento diferenciado da Arte Povera como, por exemplo, Achile Bonito Oliva. A figura de Germano Celant é, sem dúvida, fundamental para o desenvolvimento e divulgação da Arte Povera no mundo, além de utilizar uma nova forma de fazer crítica, já praticada anteriormente por Carla Lonzi, em que se “abandona a concepção do crítico como um perito a favor de um cronista e comentador.” (CHRISTOV-BAKARGIEV, 1999, p. 19) No catálogo para a primeira exposição “Arte Povera – Im spazio” de 1967, Celant descreveu certas características que ajudaram a construir uma idéia de grupo para o movimento que, no entanto, como já foi dito, não se caracterizava e não se caracterizou de fato como um grupo: O que aconteceu (...) o lugar co mu m entrou na esfera da arte. O in significante passou a existir – de fato, impôs-se. A presença física e co mportamental tornaram-se arte (...) Cinema, teatro e artes visuais afirmam sua autoridade como anti-pretexto (...) Eles eliminaram de sua indagação tudo o que parece ser mimético da reflexão e representação ou costume lingüístico a fim de at ingir u m novo tipo de arte, a qual, pegando emprestado um termo do teatro de Grotowsky, pode-se chamar „pobre‟. (CELA NT apud CHRISTOV-BAKARGIEV, 1999, p. 18, tradução nossa)

Germano Celant, assim como Joseph Beuys faria em sua trajetória, funda seu entendimento da nova arte a partir de uma concepção um tanto quanto mística da realidade, em uma relação direta com a natureza e com os fenômenos mediados por materiais simples. Em 1969, Germano Celant escreveu: Animais, vegetais e minerais tomam parte no mundo das artes. O artista sente -se atraído por usas possibilidades físicas, químicas e biológicas, e ele começa novamente a sentir a necessidades de fazer coisas no mundo, não só como seres animados, mas como produtores de ações mágicas e marav ilhosas. (...) O que o interessa na verdade é a descoberta, a exposição, a insurreição do valor mágico e maravilhoso dos elementos naturais. Como u m organismo de estrutura simples, o

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artista mistura a si mesmo co m o ambiente, camufla-se, alarga o limiar das coisas. (p. 225, t radução nossa)

Ao voltar-se para a natureza encontra a si mesmo, e, nessa identificação mais direta da realidade, busca uma maneira de escapar dos sistemas de dominação aos quais a Arte como um conjunto de “valores antecipados”(Ibid, p. 226) está envolvida, abandona o papel de ser um artista para “perseverar, sentir, respirar, caminhar, entender, fazer-se homem.”(Ibid, p. 227). Germano Celant entende a arte como uma linguagem dentro de outras linguagens e, por isso, dependente de um sistema preestabelecido com seu alcance limitado, se comparado ao potencial de criatividade da natureza. A arte dos anos 1960 e, em especial, a Arte Povera, surge como uma possibilidade real para a expansão do mundo sensível e não codificado da cultura. As primeiras descobertas da não possessão são os momentos finitos e infinitos da vida; o trabalho de arte e o trabalho que se identifica co m a v ida; a dimensão da vida durando sem fim; imobilidade como a possibilidade d e abandonar circunstâncias contingentes a fim de mergulhar no tempo; (Ibid, p. 227, tradução nossa)

A Arte Povera é uma nova descrição ou representação da natureza sem, na verdade, ser uma representação no sentido da semelhança ou das linguagens decodificadas pela cultura; utiliza entre os meios para sua construção elementos da própria natureza em constante transformação. Tais materiais estão em íntima relação com o homem que busca a fascinação pelas descobertas elementares ou “mágicas”, como escreveu Celant, por envolverem os fenômenos e os fluxos da vida. O homem como elemento vivo e parte deste fluxo vê-se multiplicado através da percepção que não se limita mais à visão e ao intelecto para a construção do conhecimento do mundo. Píer Paolo Calzolari fez um interessante depoimento em favor dessa relação mais direta, ou horizontal da realidade, que se dá nos modos de perceber a vida sem a mediação de complexas construções racionais e, portanto, abstrações em relação aos fluxos naturais da existência:

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Eu desejo dizer que não quero momentos de consciência, que quero estar vivo tanto quanto possível e expandir tanto quanto for capaz, eu gostaria de dizer que o sorriso e a habilidade do gato são mais importantes, e que a descoberta de uma fonte é boa, mu ito boa e eu gostaria que soubessem uma insuportável lista, fisicalidade, verticalidade, comportamento, demonstração, inteligência racional, a humilhação de um procedimento, representatividade. Eu gostaria de dizer que quero que minha mímica seja u ma mímica democrática das coisas e digo que gostaria de ser feliz. (Ibid, p. 120, tradução nossa)

Christov-Bakargiev (1999, p.26)

destaca para a importância na formação do

pensamento de Celant e dos artistas da Arte Povera a Fenomenologia de Merleau Ponty, em que, “a relação entre consciência e o mundo é equivalente à relação entre natureza e o corpo” (através da percepção o homem se conecta com o mundo) e o pensamento pragmático de John Dewey (Ibid, p. 26), em que “a criatividade, forma aberta de conhecimento baseada na importância da experiência inicial, espontânea, empírica do mundo. Natureza para Dewey, não é composta por substâncias mas sim por eventos e processos.” A Arte Povera afirmou a importância vital da subjetividade expressa primeiramente pelos futuristas nos termos do Vitalismo sob influência do pensamento de Bérgson. No entanto, a Arte Povera enfatizou essa relação no processo de experimentar o mundo de uma forma mais direta com o corpo, sua presença física e comportamento, sem fazer, necessariamente, referência corporal figurativa ou representativa e sim, freqüentemente, ligada aos lugares que fazemos para nossos corpos. O corpo é referenciado em seu peso, nas suas dimensões e nas relações de proximidade com os espaços que criamos como no caso exemplar dos Igloos de Merz. Mesmo quando os trabalhos se expandem ou são realizados ao ar livre mantêm uma relação íntima com as proporções do corpo humano, numa espécie de nova abordagem humanista, que ilustra o conceito de harmonia da proporção determinada pelo corpo e que rememora a famosa figura humana de Leonardo da Vinci (Ibid, p. 19). O depoimento de Giuseppe Penone a respeito de um de seus trabalhos confirma esta característica de modo exemplar.

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Em u m riacho fiz u ma base de cimento na parte da base que têm exatamente minha altura e é tão larga quanto a abertura de meus braços, imprimi minha face, meus pés e minhas mãos. Depois cerquei a área da base com uma rede de plástico. (CELANT, 1969, p. 168)

Uma característica da Arte Povera, destacada por Bakargiev (1999, p. 26), ainda não comentada por nós, singulariza estes artistas em relação aos outros movimentos do período como a Land Art, a Arte Conceitual, o Pós Minimalismo e Anti Forma e outros movimentos posteriores como a Body Art e a Performance Art. Apesar de todas as suas mais radicais inovações, a Arte Povera mantém um constante diálogo com a cultura artística italiana. “Esta recorrência é mais notável no trabalho de Kounellis, Paolini e Pistoletto, que incorporaram esculturas e fragmentos antigos gregos e romanos, ou a pintura renascentista em seus trabalhos.”. Na seqüência, a autora destaca que tal característica pode apresentar uma contradição do movimento que procurava se distanciar das formas estabelecidas pela cultura, enfatizando a importância da relação entre arte e vida. De maneira similar, Vetrocq (2002, p. 83), no primeiro parágrafo de seu comentário sobre a exposição “Zero to Infinity: Arte Povera”, destaca que, por mais radicais que tenham sido os trabalhos da Arte Povera, no sentido de combater a idéia de Arte como um produto cultural, ela não conseguiu liberar-se a si própria dos sistemas de produção e distribuição baseados em conceitos de valor e mercadoria, e, os artistas mais importantes do movimento passaram a ser conhecidos não pelos processos de criação, desenvolvimento e transformação de seus trabalhos relegados a um segundo plano, mas pelos materiais que utilizaram. Desse modo, o próprio mercado de arte colaborou para disseminar a visão simplista do movimento como uma arte de materiais pobres. Esta constatação inevitável que se faz no presente já estava indicada na apresentação ou prólogo que Celant elaborou para seu livro “Art Povera. Conceptual, Actual or Impossible Art”, de 1969. O livro, embora queira evitar a lógica consumista, é um item para consumo. Inevitavelmente o livro transforma o trabalho do artista em um bem de consumo e um bem cultural, um meio de satisfazer as frustrações culturais do leitor.”(CELANT, p. 5, tradução nossa)

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As frustrações culturais do leitor e, em especial, do mercado, podem apenas em parte ser supridas pelos registros fotográficos, pelos estudos compilados em livros ricamente ilustrados e por obras que permanecem até nossos dias em grandes e importantes coleções, como a do “Castello di Rivoli – Museu D‟Arte Contemporanea” em Turim, na Itália. As experiências mais radicais e que nos interessam de maneira especial desapareceram na essência da própria Arte Povera, ou seja, no processo. Restam, na maioria dos casos, as fotografias que registram fragmentos das diversas fases, sendo, naturalmente, um pobre instrumento em vista da realidade física dos trabalhos, de seu desenvolvimento e construção, suas transformações constantes nos fluxos naturais até o seu desaparecimento total. A matéria da obra passa a ser efêmera como uma metáfora da vida; esta efemeridade determinada pela escolha prévia do artista é o próprio testemunho do movimento e do tempo nos fluxos naturais que, ironicamente, tornam-se latentes para nós na sua própria ausência física, presente s apenas nas descrições e registros parciais como uma espécie de testamento da sua existência no passado. Animais, vegetais, minerais, água, fogo, as energias que nos envolvem, a terra como elemento que nos aproxima de nós mesmos nos processos irreversíveis da vida, os quais se direcionam eternamente para o futuro, para a morte como parte natural da vida multiplicada em cada microorganismo. Também nas indústrias e no trabalho, nos produtos do homem com data marcada para a sua morte que é antecipada a cada surgimento de um novo produto que o substitui no desejo eterno pela posse do objeto, incorporando o próprio efêmero como uma necessidade de sua existência. A Arte Povera propôs uma nova relação com o mundo, mais direta, perceptual no sentido mais amplo, ou, em todos os nossos sentidos, de forma que pudéssemos nos aproximar de nós mesmos numa íntima relação com a vida, e, ao utilizar os produtos criados pelo próprio homem, fazia uma crítica velada à sociedade de consumo que consome a si própria numa eterna alienação e distanciamento de si mesma. O tempo entra pela primeira vez na estrutura da arte como uma expressão necessária de vida, como uma possibilidade para refletirmos a respeito de nosso próprio tempo, de nossa própria constituição efêmera. O Homem possui particularidades de percepção referentes ao 329 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


tempo, o conhecimento transmitido pela cultura e a própria memória, no entanto, o homem faz parte de um tempo complexo que, para a Ciência mais recente, consiste de tempos múltiplos que englobam todas as relações da vida na terra. Como disse Ilya Prigogine alguns anos depois da Arte Povera: A natureza não foi feita para nós, e não foi entregue à nossa vontade. Como Jaques Monod nos anunciava, chegou o tempo de assumir os riscos da aventura dos homens; mas se podemos fazê-lo, é porque, doravante, é esse o modo da nossa participação no devir cultural e natural, é essa a lição que a natureza enuncia quando a escutamos. O saber científico, ext raído dos sonhos de uma revelação inspirada, quer dizer, sobrenatural, pode descobrir-se hoje simu ltaneamente co mo „escuta poética‟ da natureza e processo natural nela, processo aberto de produção e invenção, num mundo aberto, produtivo e inventivo. Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante muito tempo ignoradas, en tre a história dos homens, de suas sociedades, de seus saberes, e a aventura exploradora da natureza. (1991, p. 226)

Ora, ainda que saibamos que este discurso não faz nenhuma referência ao trabalho dos artistas da Arte Povera é inegável a proximidade, guardadas todas as diferenças, entre o pensamento da Ciência Contemporânea, que se volta para uma observação especulativa da complexidade da natureza, e alguns dos ideais do movimento italiano que se voltou para uma relação mais intima com a própria natureza como uma forma de conhecimento direto e sem preconceitos de nenhuma ordem. A proximidade dos discursos pode ainda ser aumentada, no que diz respeito à intuição que Giuseppe Penone tinha do tempo em 1973 e a certeza para a Ciência Contemporânea da existência de tempos múltiplos: “O que mais me intriga, uma preocupação constante em minha visão poética, é a relação entre o tempo real de crescimento e o tempo pessoal.” (BANDINNI, 1973. In: Christov-Bakargiev, 1999, p. 226, tradução nossa)

Referências Bibliográficas

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INVESTIGAÇÕES DE UM PROCESSO EM DANÇA: POSSIBILIDADES ENTRE O MODERNO E O CONTEMPORÂNEO Sandra Maria de Oliveira 1 Eliane Dias de Castro 2 Resumo: Com o objetivo de realizar um estudo sobre a dança com pessoas em sofrimento psíquico e produzir reflexões sobre a arte em contextos de ações em saúde mental, propusemos uma experiência a partir de desdobramentos dos estudos de Rudolf Laban sobre o movimento humano. A dança pode proporcionar experimentações e processos de criação em que se compartilham subjetividades e se vivenciam estados mentais, corporais e percepções de si, dos outros e do ambiente que podem alimentar ações transformadoras no cotidiano daqueles que a vivenciam. Neste artigo destacamos a subjetividade como um elemento recorrente nos estudos da pesquisa de mestrado “Dança e subjetividades: investigações de um processo artístico em um contexto de ações em saúde mental”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP e é desenvolvido com apoio da CAPES. A partir de uma proposta de pesquisa qualitativa, em nossa apresentação, inicialmente, situaremos as intervenções da pesquisa que são realizadas no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II Adulto Lapa, na cidade de São Paulo. Um grupo de frequentadores dessa Unidade de Saúde participa das Atividades de Dança que são baseadas em temáticas de movimento elaboradas de acordo com os princípios teóricos de Laban, que orientam a intervenção e sua análise. A experiência produziu questionamentos sobre a importância das atividades artísticas em contextos de saúde e reflexões sobre a escolha e as origens dos modos de fazer dança hoje. É relevante para o estudo em desenvolvimento pontos de contato com o Expressionismo e a Dança Moderna na Alemanha, principalmente no que se refere à exploração dos movimentos, à exteriorização dos gestos, à possibilidade de uso da criatividade e da livre-expressão, à valorização de uma subjetividade ativa e à transformação da realidade. Acentuam-se também neste contexto de pesquisa as relações que se estabelecem entre a dança e a subjetividade na contemporaneidade; e a ampliação da experiência estética e comunicacional que a atividade de dança promove em um contexto de ações em saúde mental. Como considerações, elencamos um conjunto de rel ações entre os pontos tratados acima e como desdobramentos dos estudos expressionistas podem estar presentes na processos vividos na contemporaneidade. Palavras-chave: Dança; Laban. Expressionismo. Subjetividades. Saúde Mental.

Abstract: Aiming to conduct a study on dance with people in psychological distress and produce reflections about art in the context of mental health interventions, we proposed an experiment from the development of the studies of Rudolf Laban on human movement. Dance can provide 1

Mestranda do Programa de Pós -Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. Graduada em Dança pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e em Terapia Ocupacional pela Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). E-mail: sandra-mo@usp.br 2 Profa. Dra. do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia, e Terap ia Ocupacional da Facu ld ade de Medicina da Universidade de São Pau lo. Orientadora da pesquisa de mestrado: Dança e subjetividades: investigações de um processo artístico em u m contexto de ações em saúde mental. E-mail: elidca@usp.br

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experimentations and creation processes in which it is possible to share subjectivities and experience states of mind, body and perceptions of themselves, others and the environment, which can foster transformative actions in daily life of those who experien ce it. In this article we highlight the subjectivity as a recurring element in the research of master’s studies "Dance and subjectivities: investigations of an artistic process in the context of mental health interventions", this study is linked to the Post-graduation Program in Aesthetics and Art History at the USP and it is developed with support from CAPES. From a qualitative research proposal, in our submission, we initially situate the research interventions that are performed on Psychosocial Care Cent er CAPS II Adult Lapa, in the city of São Paulo. A group of regulars of this Health Unit participates in Dance Activities that are based on thematic motion prepared in accordance with the theoretical principles of Laban that guide the intervention and its analysis. The experiment produced questions about the importance of artistic activities in health contexts and reflections on the origins and the choice of the ways of doing dance today. It is relevant to the developing study points of contact with Expressionism and Modern Dance in Germany, especially with regard to the exploration of the movements, the externalization of gestures, the possibility to use creativity and free expression, the appreciation of an active subjectivity and the transformation of reality. It is also stressed in this research context the relationships that are established between dance and subjectivity in contemporary, and the expansion of aesthetic and communicational experience that the dance activity promotes in a context of mental health interventions. In addition, we enumerate a set of relationships between the items discussed above and how the development of the expressionist studies may be present in the lived processes in contemporaneity. Keywords: Dance. Laban. Expressionism. Subjectivities. Mental Health.

1. Introdução Apresentamos neste texto um recorte do estudo relacionado à pesquisa de mestrado: Dança e subjetividades: investigações de um processo artístico em um contexto de ações em saúde mental. Essa pesquisa é desenvolvida pela autora sob orientação da Profa. Dra. Eliane Dias de Castro, vinculada ao Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo e com apoio da CAPES. Essa pesquisa de mestrado propõe a experiência da dança para pessoas com sofrimento psíquico, uma experiência que parte de desdobramentos dos estudos de Rudolf Laban (1879 1958) sobre os movimentos naturais do ser humano. Esse trabalho consiste na realização de Atividades de Dança e na busca de estudos e pesquisas recentes que possam ampliar o quadro referencial teórico e contribuir para o enriquecimento dessa investigação na interface arte e saúde. As Atividades de Dança foram iniciadas no segundo semestre de 2011 e atende um grupo de pessoas que frequentam um serviço de saúde mental da Prefeitura Municipal de São Paulo, o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS Lapa. Esta Unidade de Atenção em Saúde Mental mantém parceria através de convênio didático-assistencial com a USP. 333 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Para poder argumentar, analisar, apresentar aspectos relevantes e relações possíveis no decorrer desse trabalho é preciso ter conhecimento e clareza sobre os aspectos históricos, culturais e sociais em que surgiram a produção desses estudos cujos desdobramentos se fazem presentes em nossa proposta de dança. Canton (2009) ressalta a arte como conhecimento que se nutre da subjetividade e que, também, se constitui de conhecimento objetivo, de elementos que envolvem a história da arte e da vida, o que posssibilita estabelecermos relaçõ es com o mundo. Na busca das origens do nosso fazer dança foi percebida a necessidade de voltarmos o olhar para o surgimento do Expressionismo e da Dança Moderna na Alemanha, pois as pesquisas de Rudolf Laban estiveram presentes no desenvolvimento da Dança Expressionista na Alemanha. Em nosso estudo surgiram questionamentos sobre como elementos do Expressionismo se fazem presentes nesse trabalho, atualmente, e sobre como desenvolver e descrever essa relação entre o moderno e o contemporâneo em uma pesquisa em dança envolvida em um contexto de ações em saúde mental. A subjetividade é um elemento recorrente em nossos questionamentos. A seguir, apresentamos alguns pontos relevantes para o desenvolvimento desse estudo que são: o Expressionismo e a Dança Moderna na Alemanha; a dança e a subjetividade na contemporaneidade; e a atividade de dança em um contexto de ações em saúde mental. Nas considerações, fazemos uma relação entre os pontos tratados acima e como desdobramentos dos estudos expressionistas estão presentes na contemporaneidade.

2. O Expressionismo e a Dança Moderna na Alemanha O Expressionismo surgiu, no início do século XX, como um movimento artístico na Europa e que se desenvolveu, sobretudo, na Alemanha. Teve uma presença marcante em várias expressões artísticas, abrangendo as artes plásticas, o cinema, a dança, a literatura, a música e o teatro. Como tendência artística teve uma grande preocupação em expressar os conflitos humanos em geral perante a sociedade, a política, a natureza, o espiritual. Pelo seu caráter humanista e universal, o Expressionismo extrapolou as fronteiras alemãs, repercutindo por todo o mundo, inclusive em nosso país, sendo permeável às diferenças regionais e nacionais (GUIMARÃES, 1998; PEREIRA, 2007). 334 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


O movimento expressionista se desenvolve em um contexto conturbado, o período que cerca a transição dos séculos XIX-XX é de profunda insegurança de referências e exarcebação de conflitos latentes e manifestos que se segue com a ocorrência de duas Grandes Guerras Mundiais. Na arte, surge a valorização de uma subjetividade ativa em meio às circunstâncias da realidade e de seus desafios, “como se a arte quisesse transformar a realidade, e não simplesmente reproduzi- la” (CANTON, 2009). Entre os anos de 1920 e 1930 desenvolveram-se diversas práticas artísticas que exploravam

as potencialidades do movimento: dança de expressão, livre, moderna, de

concerto, pura, absoluta, abstrata, natural, atualmente, essas modalidades são tidas como dança expressionista. Para este texto, optamos pela denominação Dança Expressionista por sua abrangência sobre essas práticas e, nesta ocasião, tratarmos de elementos comuns na origem dessas modalidades. Como um dos princípios para o desenvolvimento da estética expressionista na dança surge a busca do movimento interior para a exteriorização do gesto. Essa necessidade de interiorização para o ato criativo aproxima-se do conceito de “ressonância interior” elaborado por Vassíli Kandínski (1866 - 1944), participante do grupo “Der Blaue Reiter” (O Cavaleiro Azul). Para Kandínski, a organização de uma criação vinda de uma necessidade interna acontece quando um contato eficaz do observador com a obra toca a alma humana em seu ponto mais sensível (GUINSBURG, 2002). Na dança, o processo da ação expressiva envolve o observador para o qual o movimento é projetado e esse processo parte de uma necessidade interna do ator/dançarino motivado pela observação de um objeto. No início do século XX, duas correntes de abordagem corporal estavam em voga na Alemanha: a eurritmia desenvolvida por Jaques Dalcroze (1869 – 1950) e as pesquisas de Rudolf Laban (1879 - 1958). A dança expressionista deriva basicamente dessas duas correntes (CAMPOS, 1995). A dança expressionista veio para incentivar e ampliar as possibilidades do uso da criatividade e da auto-expressão do bailarino ou coreógrafo, que frequentemente era intérprete de suas próprias coreografias. Entre os principais expoentes da dança expressionista estão Mary Wigman (1886 - 1973) e Kurt Jooss (1901 - 1979), discípulos e assistentes de Rudolf Laban. Aqueles não ensinavam um estilo ou uma estética e sim pretendiam que cada aluno

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encontrasse em si mesmo ferramentas para que fossem conciliadas com a técnica (CAMPOS, 1995; PEREIRA, 2007). Rudolf Laban realizou o delineamento de uma linguagem apropriada ao movimento corporal com aplicações teóricas, coreográficas, educativas e terapêuticas. A dança como área de conhecimento artístico possibilita o estudo do movimento e da expressividade. Seguindo a orientação teórica labaniana, com a intenção de cultivar nosso sentido de movimento para comportamentos expressivos, devemos partir de nosso estilo pessoal de características de movimento. Para Laban, a dança imbuiu-se “da intenção de traduzir imagens das várias forças da vida em contínua transformação e interação entre o mundo interior do ser humano e a natureza” (CAMPOS, 1995, p.44).

3. A Dança e a Subjetividade na Conte mporaneidade A dança na contemporaneidade se coloca além dos ambientes e espaços direcionados para suas produções. Hoje em dia, o espaço e o lugar da arte são discutidos em seu significado e papel como coloca Canton (2009) e podemos acrescentar dizendo que o espaço se faz presente na dança como um exercício de construção permanente de nossas histórias e referências no mundo, corpo/espaço que se encontra imergido em situações de complexidade. Para Morin (1999), a situação de complexidade existe quando elementos constituem um todo de forma inseparável (econômico, político, sociológico, psicológico, afetivo, mitológico). A complexidade é a ligação entre a unidade e a multiplicidade. E esta ligação é proposta como um conhecimento pertinente ao homem para tornar-se um ator consciente em seus contextos, complexidades e conjuntos. A dança como estrutura de pensamento permite o encontro de materialidades nos processos de criação e poetização e podem influenciar na concepção de nosso olhar e, assim, em nossa apreensão de mundo no contemporâneo. A experiência da arte permite compartilhar subjetividades e alimentar reflexões sobre o nosso olhar e nossa ação sobre o mundo. Na experiência da dança podemos criar um espaço de encontro entre sujeitos e suas subjetividades por meio de relações poéticas possíveis pela linguagem do movimento.

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A natureza da arte em desbravar territórios é instigada quando percebemos as potencialidades de interação com um público que se encontra fragilizado e à margem de uma participação ativa nos processos culturais, políticos e sociais. Morin (1999, p.59) afirma que “é a cultura e a sociedade que permitem a rea lização dos indivíduos”, que desenvolvimento humano significa desenvolvimento das autonomias individuais, das participações comunitárias e sentimento de pertença à espécie humana. Faz parte dos processos de subjetivação, da formação do indivíduo, a construção de crenças e valores compartilhados na dimensão cultural que vão constituir a experiência histórica e coletiva. Rolnik (1997/1998) aborda, ainda, sobre a resistência ao contemporâneo, ao mundo de complexidades, em que processos de subjetivação (destaque da autora para o ocidente moderno) são brecados, neutralizados e, hoje, tornam identidades locais enrijecidas e ameaçam toda e qualquer identidade. Em Subjetividade Antropofágica (1998), Rolnik propõe um modo antropofágico para a construção da “casa subjetiva” nos dias de hoje:

(...) embora bastante inativas na subjetividade do ocidente moderno, são familiares ao modo antropofágico em sua atualização mais ativa: sintonizar as transfigurações no corpo, efeitos de novas conexões de flu xos; pegar a onda dos acontecimentos que tais transfigurações desencadeiam; desenvolver uma prática experimental de arranjos concretos de existência que encarnem estas mutações sensíveis; inventar novas possibilidades de vida. Tais operações dependem, por sua vez, do exercício de potências do corpo igualmente inativas na subjetividade contemporânea: (...) (ROLNIK, 1998, p.13)

Partindo de uma atividade em dança baseada em princípios labanianos que oferece formas de observação, análise e elementos para a produção em dança, podemos perceber o movimento em suas sutilezas, e assim, ter um vislumbre sobre a subjetividade e a história de vida que cada um traz consigo. A intenção não é capacitar e classificar sujeitos que necessitam de atendimento especial, mas oferecer a pessoas em sofrimento psíquico experiências de criação e poetização em dança, percepções do olhar, ser e estar no mundo.

4. A atividade de dança em um contexto de ações em saúde mental

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A atividade criadora da dança produz um efeito sobre a personalidade quando o indivíduo se familiariza com o movimento e aprende a executar com precisão seus ritmos e formas. Além da área da educação, outras áreas dialogam com a dança por esta ser uma área de conhecimento que permite ao indivíduo aprender o modo de dar livre curso de expressão aos seus movimentos, através de um processo consciente e uma compreensão intelectual dos elementos implicados (LABAN, 1978). O processo de criação no contexto arte/saúde permite a transposição para a vida cotidiana da vivência criativa com os materiais e recursos da arte e do corpo, ou seja, a experimentação destes recursos que promovem a abertura de outros canais criativos, podem se ampliar para além do universo da arte e se estender aos acontecimentos cotidianos, enriquecendo-os. Através dessa vivência criativa passamos a conhecer como as pessoas fazem as coisas e a compreender as diferentes formas do fazer. Na realização de atividades artísticas cria-se estados de arte e nos trabalhos com o corpo desenvolvem-se cuidados e atenção, fatores que contribuem para a reorganização da vida das pessoas (COSTA et al, 2000). No campo da Terapia Ocupacional, alguns autores propõem pensar o sentido fundamental das atividades humanas para “ampliar o viver e torná- lo mais intenso, nunca diminuí- lo ou esvaziá- lo” e nas atividades expressivas e artísticas que se constituem em linguagens de estrutura flexível e plástica, permite-se o compartilhar das experiências, a facilitação da comunicação entre as pessoas e a possibilidade de recomposição de universos de subjetivação (CASTRO, LIMA, BRUNELLO, 2001, p.52-55). Em Pimentel, Oliveira e Araújo (2009), afirma-se que pela pesquisa qualitativa a complexidade e a particularidade dos fenômenos estudados são levadas em conta, não se objetiva alcançar a generalização, mas sim as singularidades, a interação com a subjetividade dos sujeitos e as repercussões das intervenções podem contribuir para a qualidade de vida desses. Assim, fundamentados em estudos metodológicos podemos propor uma investigação na interface arte e saúde almejando interagir com as subjetividades dos sujeitos, envolvendo sujeito-informante e sujeito-pesquisador na reflexão e construção de um processo. As artes corporais proporcionam um conhecimento e uma experiência com recursos que auxiliam na transformação de rotinas e ordem estabelecidas, permitindo que o “ser criativo” vivencie a sanidade mental pelo autoconhecimento e desenvolva, de forma 338 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


consciente, uma participação não-alienada e ativa no processo sociocultural. (COSTA et al, 2000). A dança, como linguagem do movimento, estimula a atividade mental de maneira semelhante à linguagem falada e a projeção externa de uma intenção por meio das qualidades de movimento pode revelar um estado mental já que as ações desse esforço também estão presentes nas formas de expressão mental e intelectual. Ampliar o entendimento sobre as dinâmicas de movimento e apreciar uma gama de movimentos mais ampla, juntamente com a sensibilidade e a compreensão da ação humana pode tornar o indivíduo capacitado e ágil para seguir qualquer impulso voluntário ou involuntário de mover-se com desenvoltura e segurança (LABAN, 1990).

5. Considerações Alguns pontos relevantes surgidos a partir da investigação das origens do nosso modo de fazer dança foram apresentados no desenvolvimento deste texto e discorridos considerando as relações existentes entre as partes. Esses pontos focalizaram as características do Expressionismo e da Dança Moderna na Alemanha, a dança e a subjetividade na contemporaneidade e a atividade de dança em um contexto de ações em saúde mental. Um elemento que esteve presente no desenvolver desses pontos foi a subjetividade. Subjetividade que nutre a arte e que foi valorizada no surgimento do Expressionismo em um contexto conturbado na Europa, no início do século XX. Na arte, uma subjetividade ativa foi valorizada em meio às circunstâncias sociais e culturais como matéria de transformação e não simplesmente de reprodução da realidade. No surgimento da Dança Moderna na Alemanha, as pesquisas de Rudolf Laban a respeito dos movimentos naturais do ser humano estiveram presentes e para Laban a expressividade na dança traduzia imagens das várias forças da vida em contínua transformação e interação entre o mundo interior do sujeito e o seu ambiente. A partir dessas proposições, podemos dizer que o sentido dos estudos labanianos extrapola o período histórico de seu surgimento e permanece atual se pensarmos sobre as suas influências e desdobramentos em outros territórios de intervenção, como é possível vislumbrar em ações que envolvem processos de subjetivação em nosso presente contexto de multiplicidades. 339 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Na contemporaneidade, vivemos subjetividades acrescidas de outros significados e em constante transformação envolvidas num espaço de complexidades. Porém, a experiência da subjetividade nos estudos expressionistas pode reverberar no contemporâneo como uma investigação artística baseada em conceitos estéticos, numa relação de hibridismo com o passado, na produção de uma subjetividade ativa. A expressividade vivida por meio da dança vai ao encontro com as necessidades do homem contemporâneo em vivenciar e construir sua “casa subjetiva” como, também, produzir relações na dimensão cultural que constituirá uma experiência histórica e coletiva. Uma prática consciente e crítica de dança em um contexto de ações em saúde mental pode nos mostrar além das relações possíveis entre áreas de conhecimento, pois pode, no diálogo entre estudos modernos e as relações contemporâneas, promover interações espaciais, temporais e culturais que envolvem as histórias de cada um. A área da saúde mental apresenta territórios de intervenção em que a dança pode cultivar e produzir experiências de potencialidades nas relações vividas com pessoas em sofrimento psíquico, já que aspectos internos agregados aos fatores de movimento podem ser vivenciados.

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INTERLOCUÇÕES ENTRE PICTÓRICO E FOTOGRÁFICO EM CAMPINAS – 1950 -1980 Sonia Aparecida Fardin1 Resumo: O objetivo deste texto é analisar as interlocuções entre o fotográfico e o pictórico. Focamos nossa análise em dois conjuntos de imagens produzidas nas d écadas de 1950 e 1960: os retratos que o fotógrafo Victor Fiegert fez do pintor Thomaz Perina, e uma tela e alguns esboços produzidos pelo artista Thomaz Perina em suas primeiras incursões na estética abstrata. Palavras chaves: Arte. Fotografia. Pintura. Cultura Visual. Processo Criativo. Abstract: The aim of this paper is to widen the scope and focus especially on the dialog with the photographic and pictoric medium. We will focus our analysis on two sets of images produced in the 1950s and 1960s: Photographs that Victor Fiegert took of Thomaz Perina and paintings and sketches produced by Thomaz Perina in his initial work in the abstract aesthetic domain. Key words: Art. Photograph. Pictures. Visual Culture. Creative Process 5.

1. Introdução O presente texto apresenta parte de uma pesquisa de doutorado que tem como objeto a cultural visual urbana, no período 1950/1980 na cidade de Campinas, mais especificamente as interlocuções entre pictórico e fotográfico. O objetivo do artigo é realizar uma primeira análise dessas interlocuções, partindo da hipótese que além das já conhecidas aproximações dos artistas campineiros com as vanguardas do período, com destaque para o movimento concretista, existiram também interações com a sintaxe e com o repertório foto gráfico modernista. O ponto de partida para este estudo é o livro de memória do artista Thomaz Perina, e em especial alguns retratos do artista fixados neste livro, realizados pelo fotógrafo Victor Fiegert entre final da década de 1950 e início de 1960. Esta análise inicial nos parece fundamental para o estudo do tema nas décadas seguintes. Perina foi um dos grandes expoentes da pintura de Campinas no período em foco. A produção artística e as interações culturais que este artista realizou possibilitam um estudo não só de seu processo criativo como também das interlocuções presentes nas artes visuais. Perina (nascido em Campinas em 1921 e falecido em 2009) era filho de imigrantes italianos. Em suas seis décadas de trabalho atuou como desenhista, decorador, ilustrador e figurinista, mas 1

* UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS - INSTITUTO DE A RTES. Doutoranda em Artes Visuais, orientadora Profa. Dra. Iara Lis F. Sch iavinatto. 342 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


sua destacada atuação era como artista plástico. Desde os três anos o artista morou numa casa modesta na Vila Industrial, bairro operário da cidade de Campinas, onde instalou seu ate liê no início da década de 1960, local em que trabalhou até pouco antes de seu falecimento em 2009. 2. Memórias de um pensamento fotográfico Em seu ateliê Perina produziu uma peça situada na fronteira entre arte e memória. Um livro que ordena suas memórias eletivas. O Livrão, como era denominado por Perina, é composto de colagens de itens diversos que documentam sua trajetória entre 1945 e 1999. Perina nunca fotografou e afirmava que tinha certa fobia a manipular qualquer equipamento. Mas, a página n. 01 de seu Livrão (FIG. 1) apresenta elementos de um pensamento fotográfico expresso na relação do artista com seus retratos. A página funciona como abertura da narrativa do Livrão, além de sua assinatura traz uma composição de colagens de retratos do artista, de sua irmã gêmea, Virgínia, e de sua mãe. A imagem da mãe (ao centro) está acompanhada apenas da informação da data, 1929. Dos gêmeos foram fixadas duas imagens, uma de 1924 e uma de 1929, que registram dois momentos da vida social da família, as festas do bairro e os bailes de carnaval. A lege nda de uma delas apresenta Virginia, “Eu e minha irmã Virginia com quem sou gêmeo”. No topo da página uma sequência cronológica de retratos compõe uma crônica visual da face do artista, com indicações da data de cada rosto, de 1939 a 1981.

FIGURA 01: Página 01 do Livrão.

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A denominação Livrão foi atribuída devido à dimensão da peça: 0,51cm por 0,40cm, 400 páginas encadernadas com capa de papel cartão preto e pesando cerca de 6 quilos. A maioria dos itens fixados na peça é composta por imagens sem legendas ou informações de data, lugar ou autoria. É nesta peça que apontamos a presença de uma intensa interlocução do artista com o fotográfico. Ao iniciar a realização do Livrão, em 1945, Perina buscou no fotográfico a recriação de um tempo passado condensado nas imagens da mãe e da infância ao lado da irmã gêmea nas festas do bairro na década de 1920. Num segundo momento, no início da década de 1980, inseriu o tempo dilatado na montagem de retratos de várias épocas que projetam-se para fora dos limites espaciais da página. Assim, a composição fotográfica da pagina 01 foi elaborada em vários tempos e, portanto, fora da lógica cronologia do tempo vivido, na qual o miolo do livro está ordenado. Esses tempos dilatados na página 01 são narrados por Perina pelo fotográfico e realizam- se na extensão progressiva da relação sujeito-espectador e seu gesto do olhar sobre o signo, momento da retomada (DUBBOIS, 1993). Todo retrato fotográfico, além de suas especificidades temáticas, técnicas e estét icas, contem também o registro da interlocução entre fotógrafo e fotografado e os condicionamentos pré e pós ato fotográfico. No Livrão de Perina, alguns retratos destacam-se, como os fixados nas páginas que documentam um importante momento da vida do artista, a segunda metade da década de 1950, período que Perina participou ativamente do Gr upo Vanguarda (entre 1958-1966) e, principalmente, iniciou sua pesquisa em busca da síntese da paisagem e de uma autonomia técnica e estética na exploração dos limites entre figurativo e abstrato. Para esta pesquisa Perina elegeu como personagens de suas paisagens a árvore e a estrada, representados pelo círculo e pelo traço. Os retratos de Perina, feitos por Fiegert, fixados nas páginas 52 (FIG. 02) e 56 (FIG. 03) do Livrão, realizados entre 1953 e 1956, apresentam um enunciado fotográfico totalmente diferenciado dos demais retratos do artista.

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FIGURA 02: Livrão - À esquerda, a página n. 52 co m retrato dos olhos de Perina feito e assinado por Victor Fiegert. À d ireita, a página 53 co m recorte de jornal, imagem de obra, fotos do artista durante uma exposição, e duas imagens do artista no estúdio de Victor Fiegert (acondicionadas em pequenas mo lduras).

FIGURA 03: À esquerda, página n. 56, foto e identificação de autoria. À direita página 57, fotos do artista decorando baile de carnaval e outro retrato feito por Fiegert.

As biografias de Fiegert e Perina se encontram em Campinas nas décadas de 1950 e 1960. O artista e o fotógrafo participaram dos mesmos grupos de produção, fruição e reflexão sobre arte e cultura. Também frequentaram o mesmo circuito de boemia e reuniões festivas dos artistas locais. Para seus amigos artistas o fotógrafo produziu retratos especiais, e entre esses estão os de Perina. Por sua vez o artista pintou painéis decorativos para o estúdio de Fiegert. Sobre a vida pessoal e a atuação profissional de Fiegert existem poucas informações. Era imigrante, a quem é atribuída origem austríaca, chegou ao Brasil na década de 1940 após ter vivido na França. Atuou inicialmente no Rio de Janeiro e em Poços de Caldas antes de se 345 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


estabelecer em Campinas no início da década de 1950 (FONSECA; 2002, p. 56). Apenas algumas imagens dele foram localizadas, entre essas a que aparece ao lado de Perina em uma exposição de pintura, em 1952, e também fixada no Livrão (FIG. 04). Fiegert participou de mostras de concursos organizados pelo Foto Cine Clube de Campinas e pelo Foto Cine Clube Bandeirantes; com o título Entrega ao Infinito, (FIG. 5) participou da Primeira Bienal Brasileira de Arte Fotográfica, em Campinas, em agosto de 1960.

FIGURA. 04: Perina (de óculos) e Victor, em 1952.

FIGURA 05: Entrega ao Infinito.

3. Os retratos do artista quando moço Para ir além do biográfico e entender melho r aspectos envolvidos na dinâmica sociocultural no campo das artes visuais, na cidade de Campinas nas décadas de 1950 e 1960, analiso três retratos do artista realizados por Fiegert no período: um retrato feito em fotomontagem entre 1952 e 1955, localizado no acervo do MIS-Campinas, que integra um levantamento sobre a história da fotografia em Campinas realizado pela pesquisadora Dayz Peixoto Fonseca, esta imagem é uma reprodução do original que segundo a pesquisadora encontrava-se na casa do artista quando o levantamento foi por ela realizado em 1999 (FIG. 06); e dois retratos que estão colados no Livrão do artista, uma imagem do rosto recortado, realizado entre 1955 e 1956 (FIG. 07) e outra dos olhos de Perina, realizado entre 1952 e 1955 (FIG. 8).

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FIGURA 06: Fotomontagem

FIGURA 07: Rosto recortado

FIGURA 08: Olhos

Os retratos feitos por Fiegert são do período da difusão da fotografia moderna no Brasil, cuja emergência se deu em São Paulo no início da década de 1940, e tem seu marco inicial como uma crítica ao picturialismo que predominou no período 1920/1940. Ao analisar a história da fotografia moderna no Bra sil, Costa e Rodrigues (1995), avaliam que a atuação modernista da fotografia nas décadas de 1950 e 1960 foi marcada pela busca de uma autonomia formal com a neutralização da importância decisiva do referente por meio de uma linguagem abstrata que visava uma interlocução entre a estrutura narrativa do código perspectivo e as intenções plásticas da modernidade. As experiências mais radicais abandonaram os preceitos clássicos de iluminação e evidenciaram o aparato físico-químico, denunciando a interferência do fotógrafo, rompendo com a encenação de veracidade da prática acadêmica e instaurando uma nova forma de olhar (COSTA; RODRIGUES, 1995). A efervescência da fotografia moderna deu-se em São Paulo, não por acaso, no mesmo período em que surgiu o movimento concretista. Costa e Rodrigues afirmam que as atuações da fotografia modernista, representada pelo Foto Cine Clube Bandeirantes, e a dos artistas plásticos concretistas, em especial do Projeto Construtivo Brasileiro, foram marcadas pela maturidade conceitual e prática. Geraldo de Barros, um dos expoentes da fotografia moderna, teve vínculos também com os concretistas com sua atuação como artista plástico, sendo um dos signatários do manifesto Ruptura em 1952. Contudo, de acordo com os autores, as suas duas atuações não se mesclaram e se deram em tempos e campos distintos. Os autores afirmam que a arte de vanguarda foi dotada de um melhor aparato conceitual, e que os 347 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


fotógrafos, antes de modernos, eram burgueses, e a fotografia bandeirante cumpria, naquele momento, a tarefa de ganhar a sensibilidade burguesa e possibilitar à classe média prosseguir em sua tarefa de transformação do meio urbano e social diletante. Segundo Costa e Rodrigues, embora a representação perspectiva fosse contraditória com o ideário modernista, a fotografia moderna modificou seu uso, utilizando-a em seu projeto de autonomia formal, e pela potência de sua especificidade técnica tornou-se um elemento de tensão dos limites entre o figurativismo e o abstracionismo, transformando o conhecimento do mundo. (COSTA; RODRIGUES, 1995, p. 98). Os retratos fotográficos de Perina feitos por Fiegert são exemplares de fotomontagens realizadas com a operação de recursos do próprio equipamento e com intervenção manual do artista, por recorte e/ou colagem. São fotomontagens produzidas pelas ações de dilatação do processo de produção e sua extensão às etapas pós-revelação e ampliação, pelo ato de fotografar, recortar, colar, reenquadrar, refotografar, fundir negativos e sobre-exposições. Os procedimentos dados pela potencialidade inata do aparato técnico são, pela intencionalidade do fotógrafo, deslocados da lógica mecânica da programação do aparelho (FLUSSER, 1985). Tratam-se de imagens técnicas indiciais que desfiguram a pseudonaturalidade do retrato fotográfico convencional, são montagens que promovem a desmontagem da ilusão de harmonia narrativa programada pelo aparelho. As fotomontagens produzidas por Fiegert são de estrutura e aparência singelas, quase óbvia ao tensionar a relação figura- fundo. No entanto, sua potência está exatamente nessa singeleza aparente que atribui uma dinâmica quase cinematográfica, que se dá em cada uma das imagens por operações distintas. A FIG. 08 apresenta a síntese discursiva dessa série. As ações de recortar, remontar, reenquadrar e refotografar, a partir da imagem plana do referente inicial, produziram outra imagem indicial, cujo referente não é mais a tridimensionalidade de um rosto humano, mas sim a superfície bidimensional de uma fotografia remontada a partir da imagem de um fragmento desse rosto. A metáfora atemporal deste signo é produzida pelo espelhamento de olhares: do referente inicial, do produtor da operação, do aparato ótico condicionador desta ação e do observador. Ou seja, um continuum de olhares, do pintor, do fotógrafo, do aparelho e de seus futuros observadores; numa sintaxe em que sujeito e verbo se imbricam. 348 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Nesta imagem (FIG. 8), o sujeito e sua ação não se encapsulam num corpo moldado por espacialidades ou temporalidades, nem na materialidade da carne ou da máquina, mas situam-se num corpo pulsional que as perpassa. Os Jogos entre o sujeito olho e sua ação o olhar, e entre o dentro e o fora de campo, retratam o indivíduo em sua indissociável corporeidade permeada de mediações entre o sujeito visível e o sujeito vidente “Meu corpo vidente subtende esse corpo visível e todos os visíveis com ele. Há recíproca inserção e entrelaçamento de um no outro...” (PONTY, 1999, p. 135). Mas, antes de qualquer coisa, esses retratos trazem a inscrição de uma proposital proclamação da autonomia fotográfica. Realizadas para representar o artista e o amigo Perina, no auge se sua jovialidade e criatividade, essas imagens são também retratos do próprio ato-pensamento fotográfico, que o fotógrafo e fotografado realizaram.

4. Esboços de um novo olhar? Uma das mais detalhadas análises da trajetória artística de Perina esta publicada no ensaio biográfico Thomaz Perina Pintura e Poética, no qual Fonseca e Silva afirmam que nas obras de Perina acentuam-se a desconstrução da figura e o desvanecimento das cores e destacam dois aspectos do processo criativo do artista, os esboços e a cromia. Os autores também afirmam que ao relembrar suas primeiras iniciativas na mudança de trajetória “Perina relata que, mais que as pressões externas, foi penoso para ele despojar-se de técnicas que dominava...” (FONSECA; SILVA, 2005, p. 35). Buscamos aqui algumas observações iniciais sobre as possibilidades de ampliação das análises até agora realizadas sobre o processo criativo de Perina no momento em que este iniciava sua aproximação com a arte abstrata, em especial, a valorização da cromia preto e branco e a realização sistemática de muitos esboços para chegar à síntese desejada.

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FIGURA 09: Esboços - Década de 1950

FIGURA 10: Esboços – Nova fase, entre 1955 e 1960.

Nos esboços analisados e citados na obra de Fonseca e Silva (FIG. 09) é possível verificar como indicam os autores, que realmente, ao iniciar suas experimentações de distanciamento do figurativo, o artista escolhia, para finalizar, a imagem mais sintética. Porém, julgamos necessário problematizar um pouco mais essa afirmação. Apresentamos um conjunto de esboços (FIG. 10) e uma obra com o título Paisagem, que foi exposta em 1959 e recebeu o Premio Lernner (FIG. 11), trabalhos realizados por Perina no mesmo período de produção dos retratos citados, entre o final da década de 1950 e início da década de 1960.

FIGURA 11: Paisagem – 1959 (0,50 x 0,60 cm)

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Avaliamos que a opção do artista pela síntese não se dava por uma escolha a posteriori. Tratava-se de um processo intencional de decomposição da estrutura formal da paisagem até alcançar a singularidade da imagem. A forma como os esboços passam a ser criados a partir desse período indicam uma mudança no processo criativo do artista. Passam a ser produzidos sempre em séries que problematizam a relação da figura síntese com os limites narrativos impostos pela conformação da tela. A facticidade dos esboços apresenta-se como um desejo de esquecimento de uma gestualidade treinada e, por conseguinte, o exercício físico-teórico de aprendizado de outro gestual. O olho sensível do artista assimilou rápido a gramática de uma outra realidade óptica. Mas, o olho pensante necessitava ensinar a mão, mais lenta, a produzir a imagem dessa nova percepção, e o pintor precisava exercitar o domínio manual da captura pictórica dessa realidade percebida. O exercício desse aprendizado se insere num processo de mudança de percepção da realidade, dado por novos paradigmas de percepção visual que circulam entre a pintura, a fotografia e o cinema, e que problematizam a tensão entre figurativo e abstrato. Para o artista não se tratava apenas de tentativas de produção de uma nova forma visual de retratar um real previamente dado. A esse novo paradigma visual não interessava representar paisa gens (re)conhecidas, mas sim produzir paisagens conceituais desse real percebido. A atribuição do título Paisagem indica uma intenção indicial e uma vinculação a um tema clássico do cânone figurativo, porém, apresenta-se como tensão entre figuração e abstração, ao tomar como recurso para a abstração a máxima expressão cromática preto e branco. E esses significantes marcaram a trajetória do artista nas décadas seguintes. Essas são apenas algumas observações iniciais sobre os possíveis diálogos entre pictórico e fotográfico, trabalhando com a hipótese que esses dois conjuntos de imagens indicam uma situação em que o fotógrafo e artista agiram dialogicamente. As imagens que criaram apresentam uma relação de interlocução. E interlocutor “é a pessoa que dialoga, discute, conversa com um outro. (...) representa ao mesmo tempo o destinatário do sujeito falante e aquele que tem o direito de tomar a palavra em seu turno...” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 127).

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Referências das obras, esboços e fotografias As figuras. 1, 2, 3, 4, 7, 8, 10 pertencem ao acervo do Instituto Thomaz Perina; as figuras 5 e 6 pertence m ao acervo do Museu e da Imagem e do So m de Camp inas; a figura 9 foi reproduzida do liv ro Thomaz Perina Pintura e Poética e a figura 11 pertence a acervo particular.

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COR, LUZ E FIGURINO NO CINEMA NOVO E NO NOVO CINEMA BRASILEIRO Teresa Midori Takeuchi1 Resumo: Partindo do pressuposto de que a visualidade do figurino reconstrói o personagem literário adaptado para o cinema brasileiro, este tema propõe estudar as relações entre cor, luz e o figurino no cinema brasileiro. Tais elementos fazem parte de um sistema articulado no campo da comunicação sígnica, pois se constituem temas a serem analisados por meio da interpretação simbólica na visualidade do cinema. A relação que discute a articulação desses elementos é pautada na transposição entre o texto literário e as imagens cinematográficas, tendo a intersecção da estética cinematográfica proposta no cinema novo de Glauber Rocha e o novo cinema de Sérgio Rezende. Se pensarmos o cinema a partir do conceito de arte para Picasso – “a arte é uma “mentira”que nos faz perceber a verdade”, podemos associar esta analogia ao apreciarmos filmes inspirados da matriz literária, cuja traição narrativa é paradoxal à fidelidade da essência literária. Assim, podemos inferir que a cor e o figurino no cinema podem ser entendidos como elementos primordiais para se construir a identidade dos personagens, seja para a expressão da sexualidade, a identificação com uma classe social ou ideologia. Os filmes escolhidos para a leitura investigativa são aqueles que objetivam a construção da figura do sertanejo na imaginária ficcional: Deus e o Diabo na Terra do sol (1964), de Glauber Rocha, com o figurino de Paulo Gil Soares e Guerra de Canudos (1997), de Sérgio Rezende, com o figurino de Beth Filipecki. Os recortes dos filmes citados perpassam pelo contexto da época retratada na obra Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha e a conjuntura em que se passou o filme. Palavras-chave: cor, luz e figurinos no cinema. Adaptação para o cinema. Literatura e cinema. Paulo Gil Soares. Beth Filipecki.

1. Introdução O cinema e a linguagem literária estão ligados desde o surgimento das primeiras tentativas de representação de narrativas em um determinado espaço e tempo. A linguagem do cinema é constantemente recriada pela necessidade de inovação, pela função de representar, ora momentos do cotidiano, fatos históricos, musicais ou recriar histórias a partir da ficção literária. Quando se pensa em correspondência entre as linguagens artísticas, pressupõe-se que há interação entre elas, aproximando-se por mecanismos próprios de suas linguagens, entre as artes ditas do tempo, sendo que as artes rítmicas são tão espaciais como as artes ditas do espaço, como descreve o esteta Etienne Souriau, em sua obra A correspondência das Artes, (1832), publicado em 1983 pela editora Cultrix.

1 Artista plástica, mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp e doutoranda pelo mes mo Instituto. e-mail: te.midori@g mail.co m

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Em relação ao diálogo entre o cinema e a cor, Pereira (2002) observa que, na imensa gama de cores, desde as oferecidas pela natureza até as oferecidas pelo homem por meio das produções visuais artísticas ou comerciais demonstram como são interpretadas a partir de conhecimentos

empíricos

e

a

partir

das

simbologias

criadas

e

compreendidas

psicologicamente. Tais simbologias nos fornecem sentidos e interpretações diferentes. Conhecemos, então, a cor no meio ambiente, sendo estímulos comuns, aos quais associamos significados; e ainda, vemos as cores como significados, símbolos construídos pelo homem, pela sua história e experiências. Segundo Diegues (2006), atualmente, quando todos os filmes no circuito são coloridos, o preto e branco virou uma exceção utilizada apenas por questões estilísticas , como constata o produtor Júlio Uchoa ao afirmar que quando todos os filmes lançados no circuito são coloridos, o preto e branco virou uma exceção utilizada apenas por questões estilísticas. Mas no caso do cinema novo seria por questões principalmente de baixo custo. Outro aspecto a chamar atenção é a reflexão dos mecanismos da recriação cinematográfica quando esta se inspira em um romance literário, enfocando elementos como cor, luz e figurino no cinema brasileiro. Esses elementos são primordiais que reinterpretam uma obra literária por meio da visualidade do cinema brasileiro, convidando-nos para a sua reflexão estética e ideológica. Assim, os recortes dos filmes aqui analisados tecem relações entre Cinema e Estado e suas respectivas políticas cinematográficas, uma na época do cinema novo e o outro no período do novo cinema, ou o cinema da retomada, cuja inspiração partiram de uma mesma obra literária Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha. Para a análise tanto estética quanto ideológica de cada filme, pressupõe-se a necessidade de uma investigação da origem de cada tipo de cinema aqui proposto, para se estudar os aspectos visuais cinematográficos. Primeiramente, como é sabido, o cinema novo foi criado por um grupo de intelectuais, que certamente usufruíram do consumo de produtos estrangeiros desde a sua infância, perceberam que poderiam continuar a beber desta fonte estrangeira, mas de maneira consciente. A partir daí, descobrem a possibilidade de criar um novo tipo de cinema brasileiro com base nos preceitos antropofágicos do modernismo, reforçando seus vínculos com a tradição literária: filmes baratos, mostrando o lado realista do Brasil, revelando os mecanismos de exploração do trabalho inerentes à estrutura do país. 354 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Passado a época da ditadura, contexto de onde se originou o cinema novo e após o período do cinema marginal, este sem a preocupação com o engajamento político, mas ambos realizados com baixos orçamentos, surge a Embrafilme para financiar os filmes da década de 70. Esta começou a agonizar desde a década de 80 até sofrer a estocada final no início dos 90, quando uma nova lei de audiovisual, que se iniciou a partir de 1994, alavancou um novo tipo de cinema, o cinema da retomada, nome característico dado pelo período de significativo aumento da produção de filmes, daí a “retomada de fôlego” para sair do “afogamento” provocado pelo fechamento da Embrafilme, condições estas viabilizadas através de uma política cultural baseada em incentivos fiscais para os investimentos no cinema. 2. O neorrealismo no cinema novo Do desejo de ver um cinema realizado com maior realismo e expressão com recursos limitados, mecanismos inspirados pelo neorrealismo italiano e o diálogo derivado da estética Nouvelle Vague francesa, surge o cinema novo. Temas universais como crianças, malandros, policiais, camponeses, favelados e pessoas do povo eram representados de maneira a revelar visceralmente o seu modo de viver com todas as suas adversidades, abordando problemas sociais com lances de certa ousadia surrealista. Não no sentido nonsense e debochado como a estética francesa dadaísta de René Clair (Entr’acte, 1924), que via na surrealidade um instrumento poético e o mundo cotidiano apenas como pano de fundo, mas no sentido experimental de técnicas cinematográfica de autoria. A estética do cinema novo vinculava o posicionamento ideológico do diretor, como nos filmes neorrealistas, iniciados na Itália em 1945, que tanto cativaram cineastas e artistas cariocas e baianos. Estes decidiram então adotar a mesma ideologia, contrários aos propósitos dos filmes exuberantes outrora produzidos pela Vera Cruz, e de sentido diferenciado daqueles destinados puramente ao entretenimento, próprio das palatáveis chanchadas realizadas pelos grandes estúdios. Ismail Xavier explica que o Cinema Novo problematizou a sua inserção na esfera da cultura de massas, apresentando-se no mercado, mas procurando ser a sua negação, articulando sua política com uma deliberada inscrição na tradição cultural erudita. O conceito desejado era o cinema criado com “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, idealizado pelo cineasta Glauber Rocha, tão extravagante e desvairado quanto René Clair enquanto

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cineasta experimental em sua liberdade de criação, onde se confirma no fato de o Cinema Novo ser conceituado como “cinema cabeça ou autoral”. Em relação ao movimento literário e a tessitura entre as artes plásticas com o cinema brasileiro, Ismail Xavier (2001, p. 23) analisa que: Em parte inspirado nas vanguardas históricas européias do início do século, o Modernismo de 1920 criou a matriz decisiva dessa articulação entre nacionalismo cu ltural e experimentação estética que foi retrabalhada pelo cinema nos anos 60 em sua resposta aos desafios de seu tempo.

Quando o Cinema Brasileiro era realizado pela burguesia e refletia seu cosmopolitismo e as influências estrangeiras, valorizava a estética ao conteúdo, em contraposição, o Cinema Brasileiro propriamente dito inicia-se pela tentativa de dar uma visibilidade diferenciada, pautada no princípio da valorização do nacional com a concretização de filmes que retratam o povo brasileiro em suas diversidades regionais, culturais e, com o Cinema Novo, a desigualdade social e seus conflitos, tendo o oprimido como o protagonista da história, de maneira crua e nua, quase ao estilo naturalista. Assim, as obras cinematográficas misturam a cultura literária com o folclore popular, as crenças, a fé do indivíduo e seus anseios, produções estas que são responsáveis por vários sucessos da crítica e muitos também de bilheteria. Tanto em Deus e o diabo na terra do sol quanto em Guerra de Canudos, vemos as imagens fortes, reforçadas pela luz quente, figurinos que remetem ao Sertão Nordestino e o cenário “seco”, como a realidade de milhares de brasileiros assolados não só pela secura do clima, mas pela hostilidade perante a exclusão social de um sistema opressor.

Ismail

Xavier(2001) observa que tais preocupações em Glauber Rocha derivam, em parte, de seu diálogo com Os Sertões, de Euclides da Cunha, que legitima a resposta do oprimido, evidenciando a presença, no Brasil, de uma tradição de rebeldia que negaria a versão oficial da índole pacífica do povo.

3. A luz e a pintura no cine ma O cinema teve a sua herança, sendo essencialmente, a técnica de criação de imagens por meio de exposição luminosa, fixando esta em uma superfície sensível. Se por um lado os princípios fundamentais da fotografia se estabeleceram há décadas, desde a introdução do 356 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


filme fotográfico colorido os avanços tecnológicos têm sistematicamente possibilitado melhorias na qualidade das imagens produzidas, popularizando o uso da fotografia. Graças à fotografia, surgiu o Cinema, de onde originou a técnica e a arte de registrar e reproduzir imagens com impressão de movimento, bem como a indústria que produz estas imagens. Em relação ao diálogo entre o cinema e a pintura, esta, ao longo dos séculos foi se transformando e atingindo um grau de realismo cada vez maior. Até que, na metade do século XIX, com o advento da fotografia, esta tomou o lugar da pintura no que tange no registro de realidades, além de facilitar o acesso, a distribuição e sua reprodutibilidade. Com a chegada do cinema, que trouxe movimento às imagens fotográficas, antes estáticas, as composições das cenas continuam a buscar referências de utilização de luz e de cores nas artes plásticas. Os fotógrafos, tanto da fotografia estática como da fotografia de cinema referenciam inúmeros pintores e obras da pintura na concepção da fotografia de seus filmes. A pintura até hoje continua sendo objeto de estudo e referência para enquadramento, luz e cor no cinema. Em um ensaio sobre adaptações no cinema, Por um cinema impuro, André Bazin (1985, p.84) levanta o problema da inflexão do cinema com relação às outras artes e faz a seguinte colocação: O cinema é jovem, mas a literatura, o teatro, a música, a pintura são tão velhos quanto a história. Do mes mo modo que a educação de uma criança se faz por imitação dos adultos que a rodeiam, a evolução do cinema foi necessariamente inflectida pelo exemp lo das artes consagradas. Sua história, desde o início do século, seria portanto a resultante dos determinis mos específicos de qualquer arte e das influências exercidas sobre ele pelas artes já evoluídas.

Obras de pintores famosos como o holandês Johannes Vermeer (1632 - 1675), o norteamericano Edward Hopper (1882-1967), o espanhol Salvador Dali (1904-1989) entre outros, são referências constantes apontadas em diversos filmes como Moça com Brinco de Pérola (2003), do cineasta britânico Peter Webber, O Fim da Violência (1997), do alemão Wim Wenders e Blade Runner (1982), do norte-americano Ridley Scott, Um cão andaluz (1928), do mexicano Luís Buñuel (e co-roteiro de Salvador Dalí), e fotógrafos do mundo todo, que buscam a construção de luzes e cores, gradações e seus contrastes, essencialmente presentes nas artes plásticas, visando causar estesia por meio do espetáculo cinematográfico, com quadros marcantes, dramáticos, insólitos ou desoladores. Com o passar do tempo, o cinema também assumiu a responsabilidade de retratar os mais diversos temas, principalmente as 357 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


mazelas do povo no seu cotidiano, de onde surge o cinema da escola neorrealista italiana. Histórias do dia-a-dia surgem com obsessão nos filmes de Visconti, Felini, que mostram a possibilidade da forma mais acessível de se fazer cinema com recursos escassos. Walter Salles encontrará na pintura a inspiração para a fotografia do filme nas técnicas de sombra e luz do pintor Eduard Hildebrandt (século XIX) conforme declarou em sua entrevista, na parte dos extras do DVD Abril Despedaçado. Na questão da reprodução da luz tropical ainda na fase do branco e preto, Carlos Ebert afirma que foi Os Fuzis (1963), de Rui Guerra, fotografado pelo argentino Ricardo Aronovich, na época recém chegado ao Brasil, e que lhe deu entrevista ao site da ABC- Associação Brasileira de Cinematografia, comenta: (...)E vejo filmes às vezes, fotografados por grandes diretores de fotografia europeus, em lugares que poderiam se parecer com a luz do nordeste, da Bahia, ou do sertão (embora esta seja única), mu ito bem fotografados, certinhos até, mas que fora a qualidade técnica e mesmo pictórica, não refletem na fotografia, a realidade da luz, da temperatura ou a realidade social da locação em questão.

Em Deus e o diabo na terra do sol, Glauber Rocha envereda-se através das figuras míticas do sebastianismo e do Conselheiro; da história caminhando na saga do cangaço, visto pela ótica da epopéia histórica da guerra de Canudos; da literatura clássica de Euclides da Cunha e Graciliano Ramos; o contraste do preto no branco tem inspiração na representação simbólica das ilustrações em xilogravura e da literatura de cordel, tecidas no cotidiano e na cultura popular. Para compreender a estética de seu filme, podemos investigar a posição do cineasta pela sua escolha ideológica, o que justifica o fato de seu filme não ser a realista (Rocha, 2004, p.114):

A origem de Deus e o diabo é uma linguagem metafórica, a literatura de cordel. Eu gostava mais desse gênero, gosto também de Vidas Secas mas não tem mu ita afinidade comigo. Nelson tem gosto pela objetividade e a eficácia por isso escolheu Graciliano e lhe foi fiel. Ele fo i criticado por não ter inventado o seu tema, mas ele disse que escolheu Graciliano porque gostava e o difícil era justamente ser-lhe fiel.

Waldemar Lima, diretor de fotografia deste filme, criou a luz sem o uso de filtro, que pudesse causar uma sensação de desconforto nas cenas da seca nordestina. Segundo Hamilton Oliveira (2012), explica que Glauber e Walter concordavam que a saga do sertanejo Manuel 358 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


só poderia ser contada com uma luz que traduzisse e simbolizasse a crueza da caatinga. A solução estética era super-expor o filme, “estourar” a imagem, no entender do fotógrafo: Walter se apropriou da luz natural do sertão nordestino para compor uma fotografia que traduzia o universo imaginado por Glauber. Sem ut ilização de lu z artificial ou rebatedores. O que resulta é uma explosão de luz na paisagem da caatinga, nos rostos dos atores, no céu sempre branco e estourado.

A partir destas observações, deduz-se que os aspectos técnicos de luz e cor devem estar ligados ao contexto da trama, agregando-lhe significados simbólicos. Os filmes caracterizavam-se por imagens com movimentos lentos, falas longas e cenários simples. Muitos são realizados em preto-e-branco para dar a ideia de pobreza e o diálogo com a cultura popular da xilogravura e literatura de cordel, pela temática do discurso político e estético. No campo das artes gráficas, podemos considerar essa interlocução nos discursos “subversivos” dos cartuns de Henfil (1944-1988), ao compor as paisagens que este se inspirou do Cinema Novo e do capítulo “Terra”, de Os Sertões euclidiano, para ambientar seus personagens do trio da caatinga: o Capitão Zeferino, Bode Francisco Orelana e Graúna. Assim como Glauber traduziu Os Sertões metaforicamente, Malta (2008, p. 50) caracteriza o tom engajado do traço de Henfil, na mesma linguagem figurada: O cenário por onde circulam os personagens é desolador. Os cactos, que acentuam a aridez local, funcionam co mo alegoria da escassez e do desconforto. As caveiras de gado – os macabros Caverinos – simbolizam a pro ximidade da morte. Além do aspecto inovador no campo da técnica – com “fotografia” revolucionária e espaços vazios – os personagens da série Zeferino serviam como esperança matinal e válvula de escape aos seus leitores(...).

Malta ainda revela que foi Glauber quem acordou Henfil para a caatinga, que relata nas Cartas da mãe (1983, p.54) -“para a revelação de que a terra é do homem, não é de Deus nem do diabo. Foi inspirado em Glauber que criei os quadrinhos do Zeferino e da Graúna”(2008, p. 51). 4. Figurino de Paulo Gil Soares e Beth Filipeck

O guarda-roupa ou o figurino no cinema tem a função de contextualizar a narrativa visual no tempo e no espaço, juntamente com a cenografia, a fotografia e a trilha sonora. Com estes elementos estéticos, um romance é recontado na linguagem audiovisual, permitindo a 359 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


recriação da linguagem do texto escrito para a visualidade cinematográfica. Nesse sentido, a reinterpretação literária dos personagens será reconstruída, psicologicamente e socialmente por meio de simulações de ações, e visualmente através do guarda-roupa, que funciona como a segunda pele do personagem. Com base na relação entre diferentes perfis sociais, nossos heróis sertanejos nos sensibilizam nas diferentes formas de comunicação contemporânea, permeadas de significados simbólicos articulados aos signos de identidade. Em Deus e o diabo na Terra do sol, o personagem do jagunço, Antonio das Mortes foi inspirado na vida de José Rufino, cuja indumentária, foi criada por Paulo Gil Soares, jornalista e cineasta que realizou um dos mais incisivos e antológicos documentários em Memórias do Cangaço (1965). Inclusive, entrevista o próprio coronel José Rufino deste documentário. Antonio das Mortes foi construído com aproximações com o cinema e com o teatro. Do cinema, observa Bueno (2007), “a inspiração contou com as referências estéticas de Encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein (1898-1948); e dos westerns. Do teatro, Glauber se inspirou em O Diabo e o bom Deus, uma peça redigida por Jean-Paul Sartre (1905-1980)”. Euclides da Cunha (1975, p. 94), em Os Sertões, no capítulo de “O homem”, descreve a indumentária da figura do jagunço, como aquele cujas vestes são de um traje de festa ante a vestimenta rústica do vaqueiro: As amplas bombachas2 , adrede talhadas para a movimentação fácil sobre os baguais, no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se estragam em espinhos dilaceradores de caatingas. O seu poncho vistoso jamais fica perdido, embaraçado nos esgalhos das árvores garranchentas. E, rompendo pelas coxilhas, arrebatadamente na marcha do redo mão desensofrido, calçando as largas botas russilhonas, 3 em que ret inem as rosetas das esporas de prata; lenço de seda, encarnado, ao pescoço. Coberto pelo sombreiro de enormes abas flexíveis, e tendo à cinta , rebrilhando, presas pela guaiaca4 a pistola e a faca - é um vitorioso jovial e forte. O cavalo, sócio inseparável desta existência algo romanesca, é quase objeto de luxo. Demonstra -o o arreamento complicado e espetaculoso. O gaúcho andrajoso sobre um pingo bem aperado, está decente, está corretíssimo. Pode atravessar sem vexames os vilarejos em festa .

2

Referente à vestimenta do jagunço e do vaqueiro brasileiro, a bombacha é uma peça de roupa, calças típicas abotoadas no tornozelo, usada pelos gaúchos. O nome foi adotado do termo espanhol "bombacho", que significa "calças largas". Klévisson Viana (2006) se refere à calça co mo “culote”, com a cintura bem alta e pernas no meio da canela. Tal modelo permit ia agilidade na hora de correr pela caatinga. 3 Russilhona: botas de cano longo, próprias para montar. 4 Guaiaca: Cinto largo, de couro macio ou de camurça, guarnecido de pequenas bolsas, e que serve para guardar dinheiro, portar armas etc. Guaiaca: Cinto largo, de couro macio ou de camurça, guarnecido de pequenas bolsas, e que serve para guardar dinheiro, portar armas etc. 360 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Em seguida, o autor descreve-o psicologicamente e fisicamente (1975, p.96): O jagunço é menos teatralmente heróico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é mais duro. Raro assume esta feição romanesca e gloriosa. Procura o adversário com o propósito firme de o destruir, seja co mo for.

FIGURA 1: Cena de Deus e o diabo na terra do sol (1964) Antônio das Mortes (Maurício do Valle)

Para a caracterização do vaqueiro, Euclides (1975, p.95) o descreve como “o de guerreiro antigo exausto da refrega” da seguinte maneira:

vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, mu ito justas, cosidas às pernas e subindo até às virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado – é como a forma grosseira de um campeador med ieval desgarrado em nosso tempo. Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze flexível, não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo sol. É fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias...

Em relação à indumentária do sertanejo, Euclides faz a seguinte descrição (1975, p.97) Envolvos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana pau-a- à borda das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas; e entregam-se, abnegados, à servidão que não avaliam.

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FIGURA 2. Cena de Deus e o diabo na terra do sol (1964). Manuel (Geraldo Del Rey) e o beato Sebastião (Lídio Silva). Fonte: http://umpoucosobrecinema.blogspot.com.br/2010/10/deus -e-o-diabo-na-terra-do-sol-1964.html

O argumento ganhou a roupagem do jornalista e cineasta Paulo Gil Soares, que transpôs imageticamente os personagens da obra euclidiana e também “vestiu” Terra em Transe e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber. Em Manoel, aparece primeira vez como vaqueiro, depois, como beato e, por último, como cangaceiro. Sua postura de revolta cruza com o olhar destemido de Corisco, que sustenta o punhal, símbolo da masculinidade. Neste, a meia-lua do chapéu remete a Lampião, que dá o tom à composição visual do sertanejo que, em Deus e o Diabo… , simboliza a difícil luta de um povo castigado pelo sol. Entre camisas desabotoadas e adereços cristãos, o vento que balança o vestido simples da esposa Rosa, também movimenta a batina do beato Sebastião e a capa imponente que cobre o jagunço Antônio das Mortes. O filme ainda contrasta a música erudita com a popular, seja na erudição do som de Heitor Villa-Lobos com as canções populares que preenchem a sonoridade das feiras nordestinas. Com relação ao Novo Cinema, ou Cinema da Retomada, Leopoldo Nunes (apud Senador, 2003), acredita que o que ocorreu neste novo ciclo de cinema foi a criação de “uma elite cultural com o dinheiro público”, enquanto “a grande maioria dos produtores culturais foi excluída”. Pode-se encontrar tais opiniões diferentes entre os críticos da Veja e Bravo! e m Guerra de Canudos, de Sérgio Rezende, conforme a pesquisa de Silva (2008):

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A justificação de valor por critério de conteúdo na crítica da Veja é bastante limitada, rapidamente as passagens iniciais do filme (quase paradas), saltando para as seqüências finais mais agitadas em virtude da guerra. Apesar de Canudos ser descrito como co mpetente e belo (assim co mo na Veja), ao que parece, a justificação de valor atribuída na revista Bravo! por Ivana Bentes é negativa, sobretudo, porque a obra tem sérios problemas de condução ideológica e estética. Ivana Bentes só apreciou o desfecho da obra: “Guerra de Canudos s ó explode na longa seqüência.

Com base na opinião de Bentes em relação ao filme de Rezende, podemos apreender que, a inspiração da narrativa cinematográfica a partir do texto literário é quase fiel aos personagens e fatos históricos, assim como a preocupação realística na reconstrução do figurino. Podemos associar um figurino de Filipecki com a construção estilística euclidiana no capítulo de “A terra”, no trecho “As caatingas” (Cunha, 1975, p. 39) se associarmos a descrição da vegetação aos personagens com uma cena de nudez, presente durante a luta em Guerra de Canudos: Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece derrear-se aos embates desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo, invisível, no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa.

FIGURA 4: Os Desastres da Guerra, 1810-1815, Francisco de Goya (1746-1828). Fonte: http://girlindelhi.files.wordpress.com/2011/09/los -desastres-de-la-guerra-goya1.jpg

FIGURA 3: Cena do filme Guerra de Canudos, dirigido por Sérgio Rezende. Fonte: DVD Guerra de Canudos, 1997

Em relação à nudez como parte do figurino na teledramaturgia, Cao Albuquerque afirma que “o nu não pressupõe o silêncio. Ele é carregado de significados que dizem muito a respeito do personagem ou de uma cena.” (Memória Globo, 2007, p.29). A única cena em 363 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


que aparece o nu masculino durante o combate em Guerra de Canudos, provavelmente foi

inspirada na série de águas- fortes da gravura de Goya: Os Desastres de guerra (1810–1815), cujo horror é amostrado nesta série de maneira crua, nua e penetrante.

Podemos inferir que a cor e o figurino no cinema podem ser entendidos como elementos primordiais para se construir a identidade dos personagens, seja para a expressão da sexualidade, a identificação com uma classe social ou ideologia. Betton (1987, p. 37) pontua a relação do figurino com o cenário e à atmosfera geral do filme:

O guarda-roupa dos atores está muitas vezes intimamente ligado à atmosfera geral (...). Devemos avaliá-lo em relação a um certo estilo de encenação, do qual ele pode ampliar ou diminu ir o efeito. Sobressairá do fundo dos diferentes cenários para valorizar os gestos e atitudes das personagens, de acordo com a postura e ou contraste, no grupo dos atores e no conjunto de um plano.

A figurinista Beth Filipecki em seu depoimento no trabalho do filme Guerra de Canudos nos conta que o sertanejo, como uma metáfora do homem eterno, é o herói sertanejo da Idade Média, um ser íntegro apesar do sofrimento. Buscou sua inspiração para o seu trabalho com o figurino nos mestres da pintura como Goya (1746-1828), El Greco (1541-1614) e Portinari (1903-1962), que, segundo a figurinista, são pintores que trabalharam, respectivamente, o desespero da guerra, a religiosidade e o camponês. Também se inspirou nas fotos de Sebastião Salgado. Em relação à cor, a proposta era o monocromatismo e Rezende (1997, p. 120) justifica a escolha:

Em Canudos, as pessoas são da cor das casas, a cidade é da cor da caatinga, a caatinga é da cor da terra, e o figurino se integra com isso. A unidade desse mundo de uma só cor se rompe com a chegada das tropas, choque expresso através das cores vibrantes das fardas dos militares. Canudos se transforma e as roupas dos canudenses também. O tom azul, dos camisolões feitos para a Guarda Católica, conforme determinou Conselheiro, vai cedendo lugar para os tons terra. As roupas que, na fundação de Canudos, eram mais estruturadas, começam a se rasgar. As saias sobrepostas vão sendo retiradas; os xales usados como blusas, caem. Tudo vai ficando mais sujo e mais pobre. Na fase final da guerra, o que sobre é remendo, é lixo.

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FIGURA 4: Cena do filme Guerra de Canudos, dirigido por Sérgio Rezende. Fonte: http://blogo-342.b logspot.com.br/2011/ 04/cena-do-filme-brasileiro-guerra -de.html

Em relação à estética euclidiana, o professor José Leonardo do Nascimento (2012, p.3) observa que a natureza se humaniza na percepção do escritor – “ É ali que ele descreve um cosmo conflituoso, onde a guerra já está ali, nas espécies naturais brigando pela sobrevivência. Certos personagens da guerra canudense e até mesmo espécies da caatinga baiana sugeriam- lhe relevos esculturais”. Nascimento destaca que Euclides da Cunha, ao escrever sobre a sutil fronteira entre a ciência e a arte, sua obra foi entrevisto como trabalho de análise da sociedade brasileira e obra de arte, pois incorpora na narrativa de imagens diretamente inspiradas pelas artes plásticas. Explica que “Certos personagens da guerra canudense e até mesmo espécies da caatinga baiana sugeriam- lhe relevos esculturais”, exemplificando com um fragmento do texto (2011, p. 4): [...] sobre a natureza morta, apenas se alteiam os cereus esguios e silentes, aprumando os caules circulares repart idos em co lunas poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros [que] dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas e acesos[...]

Conclusão Com relação à adaptação de uma obra literária para a tela pela sua transformação em cinema, Betton (1987, p. 11) nos coloca questões que nos permitem fazer um apanhado das inúmeras semelhanças, bem como das divergências que existem entres estas duas linguagens. 365 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Betton conclui que “O cinema como um espetáculo artístico, é também uma linguagem estética, poética ou musical que comunica pensamentos, ideias e sentimentos”(1987, p.115). Em relação à importância do figurino de cinema, televisão ou teatro, Cao Albuquerque (2007) define - “O figurino é o aspecto visível de um ser invisível. Não há personagem sem figurino. Mesmo que o personagem esteja nu, ainda assim é preciso que existam recursos de figurino para que ele se torne personagem”. Harvey (2003) esclarece que o vestir, “como a pintura, consiste de valores tornados

visíveis. Vivemos em um mundo permeado de valores identitários, sociais, políticos, éticos – e os vemos no nosso estilo de vida.” O sociólogo estabelece a relação dinâmica entre os homens, as suas roupas e a complexa simbologia que é o ato de vestir da vida social em forma visível. O autor afirma que a pessoa vestida é uma persona que interpretamos, pois assim que começamos a escolher nossas próprias roupas, damo-nos conta de que já fomos vestidos desde criança por necessidades sociais. Assim, inspirado na vida real, ou na ficção, em relação ao figurino Betton (1987, p. 57) afirma que “o objetivo do guarda-roupa é exaltar a beleza, o caráter, a personalidade dos „heróis‟, e valorizar os gestos e atitudes das personagens, além de sugerir ou traduzir simbolicamente caracteres, estados de alma, ou ainda, de criar efeitos dramáticos ou psicológicos”. Neste sentido, a paleta de cores (ou a sua ausência) e suas gradações, a luz e o figurino são elementos visuais constitutivos que participam da criação da atmosfera, da exatidão ou inexatidão histórica e clima psicológico, incluindo as artes plásticas também como fonte de inspiração para a recriação dos personagens inspirados da matriz literária. O cineasta e seus colaboradores têm a liberdade de recriar, com o roteiro, os personagens literários que originou o filme, traindo ou não a sua essência, a fim de mostrar, na tela, o palco de conflitos das questões locais e nacionais, mas contido no universal.

Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, Cao. In Entre tramas, rendas e fuxicos. São Paulo: Memória Globo, 2007, p. 29. BAZIN, A. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1985. BENTES, I. História e cosmética. Revista Bravo!. São Paulo. Ano 01, n° 01, p.75. BERNADET, Jean-Claude. Brasil em Tempo de Cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 366 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


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Filmografia Ficha Técnica Deus e o diabo na Terra do sol (Brasil, 1964). Preto e Branco; 125 minutos. Direção e Argumento: Glauber Rocha. Produtor Luiz Augusto Mendes. Produtores Associados: Jarbas Barbosa e Glauber Rocha. Diretor de Produção Agnaldo Siri A zevedo. Roteiro: Glauber Rocha e Walter Lima Júnior. Diálogos: Glauber Rocha e Paulo Gil Soares. Diretor de Fotografia e Câmera: Waldemar Lima. Montagem: Rafael Valverde. Música Heitor Villa-Lobos. Canções: Sergio Ricardo e Glauber Rocha. Figurino: Paulo Gil Soares. Elenco Geraldo Del Rey (Manuel), Ioná Magalhães (Rosa), Maurício do Valle (Antônio das Mortes), Corisco (Othon Bastos), Dadá (Sonia dos Humildes) e Líd io Silva (Beato Sebastião), Marrom (Cego Júlio ) Antonio Pinto (Coronel), João Gama (Padre) Milton Roda (Coronel Moraes). Guerra de Canudos. Drama.169 min. Brasil, 1997. Morena Filmes.Distribuição: Colu mbia TriStar Pictures.Direção: Sérgio Rezende. Roteiro: Sérgio Rezende e Paulo Halm. Direção de arte: Cláudio A maral Peixoto. Música: Edu Lobo. Fotografia: Antônio Luís Mendes. Desenho de produção: Henrique Murthé. Direção de arte: Cláudio Amaral Peixoto. Figurino: Beth Filipecki. Edição: Isabelle Rathery. Elenco: Paulo Betti, Marieta Severo, Cláudia Abreu, José Wilker, Tonico Pereira, Roberto Bontempo, Tuca Andrada.

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‘UM BOCADO DE LOUCURA, DE DESGRAÇA E MUITO DE SAGRADO’ O surrealismo de Ismael Nery Thiago Gil 1

Resumo: A frase que dá título a este artigo figura em texto do poeta alagoano Jorge de Lima, publicado pouco depois da morte do artista paraense Ismael Nery, em abril de 1934. Em poucas palavras, ela sintetiza alguns aspectos fundamentais da poética de Nery, a partir dos quais propomos uma aproximação com o surrealismo, movimento que o artista conhecera mesmo antes de sua segunda viagem a Paris, em 1927, quando efetivamente entra em contato com o poeta André Breton e outros surrealistas. Tal aproximação será mediada pelo que chamamos de operações sobre o corpo, ou sobre a imagem do corpo, estratégia amplamente utilizada pelos artistas surrealistas para subverter os parâmetros e relações convencionais com o corpo humano, institucionalizados pela cultura e pela tradição artística ocidentais. Palavras-Chave: Ismael Nery. Surrealismo. História da Arte no Brasil. Modernismo. Corpo.

Às 20h40 do dia 6 abril de 1934, morria na cidade do Rio de Janeiro, aos 33 anos, o poeta e artista Ismael Nery (1900-1934), após o agravamento de uma “tuberculose pulmonar e laringeia”, segunda doença nas vias respiratórias que o acometera num intervalo de cerca de quatro anos. No mês seguinte e até meados de 1935, diversos textos sobre o artista, além de uma compilação de seus poemas e notas, serão publicados por alguns de seus amigos mais próximos, como os poetas Murilo Mendes e Jorge de Lima, ou ainda o escritor Aníbal Machado. Também uma exposição póstuma de suas obras será organizada por Murilo Mendes, em 1935, no edifício da Pró-Arte, no Rio de Janeiro. Dessa forma, são reconhecidos publicamente, pela primeira vez após sua morte, o valor e a importância da obra deixada por Ismael Nery, uma obra que, ainda hoje, permanece pouco estudada se comparada a de modernistas como Candido Portinari, Tarsila do Amaral ou Di Cavalcanti. Em um desses textos, “Instantâneo de Ismael Nery”, Jorge de Lima qualificará Ismael Nery como “congenitamente romântico e supra-real” e dirá ainda que o artista “introduz na pintura uma certa anormalidade em que há de cambulhada um bocado de loucura, de desgraça e muito de sagrado.” (LIMA, J. maio 1934, p. 73). Neste artigo, proponho discutir justamente essa “certa anormalidade”, não só da pintura, mas também dos desenhos de Ismael Nery, 1

Mestre em Artes Visuais pela Escola de Co municações e Artes da Universidade de São Paulo. 369 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


apontando algumas recorrências que indicam algumas proximidades com um aspecto pouco comentado da produção visual do movimento surrealista: a subversão dos parâmetros tradicionais de representação do corpo humano como unidade homogênea. Comecei apresentando dados sobre a morte de Ismael Nery não apenas para relembrar as homenagens e o reconhecimento prestado s por seus amigos. A morte ou, mais especificamente, a sua morte, foi presença constante na vida de Ismael Nery. E isso não apenas por conta das graves doenças pulmonares com as quais convivera durante os quatro últimos anos de vida. Na verdade, em suas Recordações de Ismael Nery, Murilo Mendes afirma que, desde que o conhecera, em 1921, Ismael já falava nas circunstâncias de sua morte e na certeza que tinha de que morreria, como Cristo, aos 33 anos, o que de fato acabou acontecendo. Antes, portanto, de discutir a aproximação sugerida com o surrealismo, convém apresentar rapidamente alguns aspectos da religiosidade de Ismael Nery e do modo como compreendia a existência humana. Isso poderá ajudar a compreender a singularidade dessa aproximação. Algumas pistas sobre esse tema são apontadas por um ensaio do poeta e escritor Barreto Filho. Publicado no sexto número da segunda fase da revista Festa, em janeiro de 1935 (portanto poucos meses após a morte do artista), o texto propõe uma análise concentrada do desenho atualmente conhecido como Figura combinada 2 . O desenho representa o instante de um beijo entre um homem e uma mulher, numa composição bastante complexa. Característica comum a diversos trabalhos de Nery, as figuras se interpenetram, num enlace favorecido pelo traço seguro e regular. Dessa interpenetração, surge uma espécie de fantasma de uma terceira figura, localizada entre o casal. O artista obtém este efeito fazendo com que parte do contorno de cada figura seja também parte do contorno de outra. Assim, a linha que sai do braço do homem à esquerda, iniciando o contorno do peito, ao penetrar na área do corpo da mulher deixa de fazer parte do corpo do homem para tornar-se contorno da figura fantasma. De maneira semelhante, a linha que sai da nuca da mulher termina por compor o contorno do pescoço e cabeça do homem. Além da 2

No artigo não há indicação de título da obra e a reprodução do desenho que ilustra a pá gina inicial vem acompanhada apenas da legenda “Desenho de Ismael Nery”. 370 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


figura fantasma que emerge do enlace, chama atenção a área do pescoço do homem, que aparece seccionada e como que oca, sem músculos ou estrutura óssea, exibindo apenas espécies de tubos que poderiam talvez representar a medula espinhal e parte do sistema digestivo e respiratório. Barreto Filho aponta com acerto para uma divergência ou contradição entre o ato erótico praticado pelas figuras e o olhar que trocam entre si, sem indícios de expressão de desejo sexual. Esse estranhamento poderia ser explicado pelo fato de que, na opinião do autor, Ismael Nery concebia o ato da geração do ser humano como realização conjuntamente divina e humana, dividida, portanto, em duas partes: “uma no plano da carne, onde há a interpenetração e a fusão dos corpos e a outra no plano do espírito, onde apenas existe uma polarização dos princípios.” (BARRETO FILHO, jan. 1935, p. 5). No primeiro plano, se produziria um novo corpo; no segundo, uma nova alma. Essa produção ou reprodução deveria ocorrer em sincronia, já que corpo e alma seriam condição de existência um do outro. O desenho de Ismael, porém, representaria justamente a cisão entre os dois planos, “como se os criadores do corpo não quisessem ou não pudessem criar também a alma.” (Ibid., p. 5). Essa impossibilidade estaria representada na contradição entre os olhares das duas figuras. Se ambos não parecem expressar desejo carnal, Barreto Filho vê no olhar do homem ainda uma espécie de centelha, um índice de atividade e de desejo de realização da fecundação espiritual. Desejo anulado pela impassibilidade do olhar feminino, que embora cedendo o corpo, parece ausente em espírito, impossibilitando a geração do novo ser. Independente do acerto dessa interpretação, interessa notar, na análise de Barreto Filho, que ela permite perceber a interessante relação entre forma e conteúdo no desenho, já que a interpenetração das figuras masculina e feminina, assim como a presença da terceira figura no espaço “entre” elas, estaria diretamente ligada à discussão sobre o ato de geração do ser humano que Ismael Nery empreenderia no desenho. Mais adiante no texto, o autor extrairá de sua análise a observação bastante pertinente de que o tema da procriação, da geração do ser humano, ponto de contato entre plano espiritual e corporal, tornou-se justamente por isso tema central na obra de Ismael Nery. Nesse sentido, o desenho do artista fixaria “o momento em que o plano natural é informado por um principio sobrenatural.”(Ibid.), no caso, a figura fantasmática, a alma. Por essa forma: 371 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


[...] o ato procriador adquire um sentido e obtém um resultado com a intervenção divina criando a alma diretamente, mas em uníssono com a ação do casal humano, de sorte que a alma apareça instantaneamente no mo mento preciso da fecundação animal. (Ibid., p. 6).

Tal compreensão do ato de geração do ser humano nos informa ainda sobre um outro aspecto do modo como Ismael Nery concebia a existência. Para o artista, católico convicto, todo ser humano carregaria em si uma parcela da eternidade. A mesma energia divina mobilizada na criação do primeiro ser humano – representada pela ideia de alma – está e sempre estará presente na geração de cada ser humano. Mas, ainda acompanhando o texto de Barreto Filho, há um elemento do desenho que merece ser destacado: a abertura na garganta. Para o autor, ela representaria um elemento “profético”. Como já foi mencionado, a morte precoce do artista deveu-se a doenças nas vias respiratórias, o que leva Barreto Filho a sugerir que no destino de Ismael Nery, “a fonte da vida se confundia com a da morte, e que ele já o havia percebido, acabando afinal por exprimir isso mesmo sobre o seu próprio corpo. ” (Ibid.). Mais do que o possível valor profético do desenho, interessa reter que, para Nery, “a fonte da vida se confundia com a da morte” e que ele exprimia essa consciência “sobre seu próprio corpo”. Essas mesmas ideias parecem se insinuar também em Figura [Fig. 1]. A figura é uma representação da maternidade. Chama atenção, porém, um elemento não tão comum na pintura modernista nacional, que é a simulação da textura de madeira na área inferior direita, como se fosse a colagem de uma matéria heterogênea à pintura. Mais uma vez, forma e conteúdo se relacionam. A Vida, representada pela maternidade na geração de um ser humano, comunica-se, enquanto energia criadora, com a geração de todo ser orgânico. É isso que permite que essa mesma Vida seja representada no quadro Eternidade por uma planta. É isso que permite ainda compreender o gesto da mãe, ao estender o braço esquerdo na direção da área vegetal do quadro. Na qualidade de matéria orgânica exacerbada pela carne exposta, o braço confunde-se e comunica-se na palma da mão com a matéria vegetal, que nada mais é do que outra forma de manifestação da mesma Vida, da mesma energia.

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Mas se o braço esquerdo conecta-se à Vida, o braço direito da mãe, cuja mão pousa sobre a área de seu corpo onde a mesma Vida está em gestação, parece conter outra mensagem. Na verdade, pertence a uma segunda figura, espécie de sombra que parece adquirir autonomia em relação ao corpo da mãe, num movimento comum a outros trabalhos do artista. Esse membro sombrio que vem pousar sobre o ventre materno, ao penetrar nessa área iluminada do corpo, mostra-se em aspecto putrefato, enegrecido, exibindo sua estrutura óssea, como se estivesse mesmo em decomposição. A mesma figura anuncia geração e decomposição, Vida e Morte, princípios opostos mas complementares, de cujo movimento compõe-se o ciclo da existência. Essas duas obras comentadas, Figura combinada e Figura, oferecem já algum material para se começar a estabelecer uma relação entre Ismael Nery e os surrealistas. Em ambas podem ser percebidos dois elementos comuns: a) a presença de uma figura “fantasmática”, que se integra e participa da configuração das demais personagens do quadro; b) a presença do que será chamado aqui de “operações” sobre o corpo dos personagens. São justamente os dois elementos que transfiguram as imagens, que levam o observador a não se contentar apenas com um nível primário de significado – o nível do “real”, se poderia dizer –, que no caso seria o de uma cena representando um beijo e outra a maternidade. O observador é forçado a ir além. Se a presença de figuras fantasmáticas não é tão comum assim na pintura surrealista, não se pode dizer o mesmo das “operações” sobre o corpo. Na verdade, esta parece ser uma estratégia central dos artistas surrealistas para sugerir outros níveis de significado em suas imagens. Para mencionar uma composição análoga a Figura, embora não aborde o tema da maternidade, pode ser lembrada La Découverte, de René Magritte, em que partes da superfície do corpo feminino representado compõem-se de textura vegetal. Assim como em Figura, é a intervenção realizada no corpo da personagem representada que desestabiliza sua percepção “normal”. Percebe-se desde já que a aproximação proposta não é de natureza formal ou plástica. Se nem a figura de Ismael Nery, nem a de Magritte podem ser chamadas de naturalistas, parece claro como o brasileiro está bem menos interessado em efeitos luminosos tridimensionais. Também é evidente a maior síntese nos traços fisionômicos da figura de 373 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Nery, compostos de elementos geométricos. Nada disso está presente em Magritte, cuja estilização lembra mais as figuras de Henri Rousseau, o que, porém, não anula a analogia de procedimentos sugerida. Outras obras podem ainda ser mencionadas. A colagem de Max Ernst Au-dessus des nuages marche la minuit, exibe um par de pernas femininas, cujo tronco é uma espécie de novelo e a curiosa cabeça compõe-se de uma forma bordada, criando um ser híbrido. Diversos quadros de Salvador Dalí baseiam-se também na alteração da representação “normal” do corpo. Corpos integral ou parcialmente esticados, como se fossem feitos de borracha ou de queijo derretido (uma das metáforas prediletas do pintor), estão presentes em obras como Le grand masturbateur, L'énigme de Guillaume Tell, Le sommeil. Nesse ponto, convém fazer uma breve digressão a respeito de um aspecto importante das discussões estéticas e poéticas surrealistas. Como se sabe, Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont, foi uma figura chave entre os poetas de gerações anteriores valorizados pelos surrealistas. Uma frase de seus Cantos de Maldoror tornou-se mesmo emblemática do surrealismo, figurando algumas vezes como emblema não só do conceito sur realista de imagem poética, mas também da colagem surrealista: “belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”. Se o princípio da imagem poética surrealista confunde-se com o da própria colagem, enquanto deslocamento e aproximação de realidades distantes, deve-se notar que o fato de o “encontro fortuito” ocorrer numa mesa de dissecação - um plano também alheio às realidades que nele se conjugam - não parece gratuito. A mesa de dissecação, seja a de um Instituto Médico Legal ou de uma faculdade de medicina, é um objeto no qual corpos humanos são abertos, retalhados e “costurados”. Cabe observar ainda que, além da ruptura da integridade do corpo humano estar contida numa frase emblemática do surrealismo, a própria intuição inicial da surrealidade, curiosamente está ligada a uma operação sobre o corpo que remete à ideia de corte, secção, tal como a mesa de dissecação. No Manifesto do Surrealismo, Breton narra o momento em que, ao adormecer, num estado psíquico entre o sono e a vigília, uma frase lhe veio à mente, causando um espanto por seu caráter bem acabado e surpreendente. A frase era algo como “Há um homem cortado em dois pela janela” (BRETON, 2001, p. 36-37). Essa frase teria dado 374 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


início a uma seqüência de novas frases, separadas por pausas curtas. Daí surgia para Breton o entendimento de que esse estado psíquico alterado era capaz de produzir frases com um valor poético surpreendente, que merecia ser anotado para usos futuros. A técnica surrealista da escrita automática, que pode ser entendida como esforço metódico para que se alcance espontaneamente esse estado, tem aí sua origem. Mas, a respeito da frase mencionada por Breton, Eduardo Peñuela Cañizal faz uma observação importante: [...] a imagem surrealista, enquanto combinatória de signos, não se resume à união de duas realidades remotas: ela pode ser também, em termos de representação, a disjunção ou separação da integridade física de uma pessoa ou de uma coisa.3 (PEÑUELA CA ÑIZA L apud MORA ES, 2002, p. 51).

Eis aqui o sentido que interessa dar aqui à metáfora da mesa de dissecação: “disjunção ou separação da integridade física de uma pessoa ou de uma coisa.” No âmbito das artes plásticas, esse sentido torna-se explícito no “Avis au lecteur”, redigido por Breton para o roman-collage La Femme 100 Têtes, de Max Ernst. Nele, Breton afirma:

A surrealidade será de resto função de nossa vontade de desambientação completa de tudo (e está claro que se pode chegar a desambientar u ma mão isolando -a de um braço, que essa mão ganha enquanto mão, e também que falando de desambientação, não pensamos somente na possibilidade de agir no espaço). (BRETON, 1992, p. 305).

Percebe-se como é justamente a capacidade em isolar membros do corpo, fazendo com que valessem por si mesmos, um dos aspectos valorizados por Breton na colagem surrealista. Enquanto procedimento técnico, ela baseia-se fundamentalmente em operações sobre os corpos de figuras já existentes, recortando-os para em seguida propor novas configurações. A operação sobre os corpos humanos é uma constante na obra plástica tanto de Ismael Nery quanto dos surrealistas que merece ser explorada. É o momento de abordar agora alguns desenhos e aquarelas de Ismael Nery atualmente conhecidos pelo título de “composições

3

CAÑIZA L, Eduardo Peñuela. O surrealismo, rupturas expressivas, p. 94-95. 375 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


surrealistas”. Elas podem indicar caminhos para se compreender alguns sentidos possíveis para essas operações. * Embora não haja certeza a respeito da atribuição desses títulos, duas dessas composições [Fig. 2] representam de maneira efetiva a ideia de “operação” sobre o corpo desenvolvida acima. E não somente porque o artista intervém e modifica a representação usual do corpo como estrutura íntegra e homogênea, criando aberturas ou evidenciando as estruturas internas do corpo, tal como em Figura combinada e Figura. Nas composições surrealistas é o próprio processo de intervenção no corpo que parece estar representado. Em Composição surrealista, aquarela datada de aproximadamente 1928, portanto pouco depois do retorno do artista ao país após sua segunda viagem a Paris, quando teria entrado em contato com o grupo surrealista 4 , vê-se uma grande mão que parece modelar uma espécie de máscara de rosto humano, face solta no espaço, que não se liga a qualquer cabeça, mas conectada à mão que modela por tubulações, talvez veias e artérias, que saem de seu interior. O aspecto moldável e flácido dessa figura faz lembrar dos personagens moles de Dali, que, no entanto, só apareceriam anos depois. O que merece destaque nesse trabalho de Ismael Nery é a ideia de um rosto- máscara moldável, portanto um rosto sem identidade fixa. Ideia semelhante aparece na outra Composição surrealista, sem data. A estrutura é parecida: uma mão que intervém num rosto, dessa vez não um rosto- máscara, mas uma cabeça e busto femininos. A mão à direita, que surge por sobre o ombro da figura, parece efetivamente realizar uma operação, estando prestes a aparar um instrumento que prende e puxa a pele da face já desfigurada por um corte anatômico sagital. Não será por acaso que esse tipo de manifestação de um desejo de intervenção nesse lugar fundamental de representação da identidade individual - o rosto - aconteça em trabalhos denominados “composição surrealista”. Diversas estratégias adotadas pelos surrealistas na 4

De acordo com Murilo Mendes, nessa viagem Is mael Nery teria encontrado os surrealistas André Breton e Marcel Noll, além de ter recebido convites para expor. Um desses convites, segundo Antonio Bento, teria sido justamente de Marcel Noll, que em 1927 coordenava as atividades da Galerie Surréaliste, em Paris. Cf. MENDES, 1996, p. 65-66; BENTO, 1973, p. 82. 376 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


representação da figura humana, apontam para um mesmo questionamento da identidade individual a partir de intervenções no corpo. Mas antes de discutir essa afinidade entre os surrealistas e Ismael Nery, pode ser interessante analisar outro desenho do artista, encarandoo como complemento necessário desse desejo de intervir e modificar a identidade individual. Em Almas num corpo, Nery nos apresenta um ambiente talvez de ateliê, próximo aos interiores metafísicos de De Chirico, em cujo centro, sentada sobre um pequeno palco semelhante àqueles utilizados em sessões de modelo vivo, encontra-se o corpo aludido no título. Da estrutura do tronco e pernas femininos, encimada por uma cabeça cujos traços fisionômicos distinguem-se com dificuldade, emergem sete outras figuras, sendo que duas delas se descolam diretamente do tronco da figura central, enquanto as outras são apenas cabeças que surgem por trás do conjunto. Pelo título do trabalho é possível imaginar que essas seriam as almas do corpo sentado no palco. Delas, apenas duas, localizadas imed iatamente à esquerda e à direita da cabeça central, possuem feições mais elaboradas, exibindo nariz, boca e cabelos, numa estilização picasseana. As demais são apenas estruturas ovais, tipo cabeça de manequim, algumas com uma sintética indicação de nariz. Das figuras que se descolam do tronco central, surgem também braços, envolvendo todo conjunto, como que tentando impedir sua dispersão. Ainda uma oitava figura poderia ser imaginada a partir das formas circulares que partem da genitália em direção ao contorno do corpo, sugerindo as nádegas de uma figura sentada de costas para o observador. Embora não seja possível, dada a ausência de fisionomia das figuras, afirmar que tratese de mais um dos muitos auto-retratos feitos por Nery, ou ao menos de outra da muitas obras em que ele se auto-representa, esse desenho parece ser a configuração visual dada pelo artista ao sentimento manifesto no poema “Oração de Ismael Nery”:

Meu Deus, para que pusestes tantas almas num só corpo Neste corpo neutro que não representa nada do que sou, Neste corpo que não me permite ser an jo nem demônio, Neste corpo que gasta todas as minhas forças Para tentar viver sem rid ículo tudo que sou. - já estou cansado de tantas transformações inúteis, Não tenho sido na vida senão um grande ator sem vocação, Ator desconhecido, sem palco, sem cenário e sem palmas. - Não vêdes, meu Deus, que assim me torno às vezes Irreconhecível 377 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A minha própria mulher e a meus filhos A meus raros amigos e a mim mes mo? - Ó Deus estranho e misterioso, que só agora compreendo! Dai-me, co mo vós tendes, o poder de criar corpos para as minhas almas Ou levai-me deste mundo, que já estou exausto. Eu que fu i feito à vossa imagem e semelhança. Amém! 5 (MATTAR, 2000, p. 76).

Se, como sugere em depoimento Murilo Mendes, Ismael Nery reconhecia-se em e sentia-se parte de todos os homens por acreditar derivarem todos de uma mesma energia divina primordial e eterna 6 , esse poema nos mostra como o artista também reconhecia em si mesmo mais de um homem. Mas dessa vez não naquele sentido transcendental, “essencialista”. O sentimento manifesto no poema é a angústia bastante terrena e concreta de alguém que reconhece ter em si mais de uma identidade, mais de uma “alma”. Ainda o amigo Murilo Mendes testemunha sobre esse aspecto da personalidade de Ismael Nery: “Não havia dois homens em Ismael Nery: havia muitos homens que se disputavam o primeiro lugar no drama que ele representava.” (MENDES, 1996, p. 60). Antes dessa conclusão, o poeta mineiro citava a seguinte frase do artista: “As leis humanas só nos permitem a realização de uma única vida, o que é para um homem do meu temperamento sinônimo de asfixia moral.” (Ibid.). Pois bem, é possível perceber uma clara correlação entre o poema e os últimos trabalho de Nery discutidos. Se Almas num corpo corresponde à angústia expressa nos primeiros versos da oração, as composições surrealistas relacionam-se ao desejo de criar corpos para suas almas, ou pelo menos de modificá-los e moldá- lo de acordo com as necessidades de cada uma. Um desejo surrealista de ultrapassar os limites da realidade do corpo, que embora seja a matéria que permite à “alma” manifestar-se e agir no mundo, é também o primeiro limite imposto por uma realidade “por demais restrita”.

5

NERY, Ismael. Oração de I. N. Republicado em Ismael Nery: 100 anos a poética de um mito.

6

“Ele [Ismael Nery] se sentia afim co m todos os homens, dizendo sempre que t inha um pedacinho de cada um. Porque todos provêm de um único germe, desenvolvido e desdobrad o através dos tempos. Acreditava firmemente no dogma da unidade espiritual do gênero humano.” (M ENDES, 1996, p. 85). 378 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A criação artística, porém, permitia ao artista intervir senão diretamente no corpo, ao menos em sua representação. É curioso observar que Ismael Nery interessava-se por medicina, tratados de anatomia e técnicas cirúrgicas, como sugere uma vez mais Murilo Mendes: O grande e saudoso cirurgião brasileiro, dr. Maurity Santos, seu amigo fiel, d isse-me que gostava de discutir com ele problemas de medicina, espantando -se com o fato de um p intor estar a par dos mais modernos métodos de cirurgia.[...] Ismael folheava a Bíblia e livros de med icina, tendo tido s empre forte atração pelos tratados de anatomia. Costumava dizer que é grande a importância do méd ico, pelo seu conhecimento da matéria da vida. Quanto ao cirurgião, ad mirava o seu poder intervencionista, que o torna um colaborador mu ito pró ximo da obra div ina. Ismael só gostava de livros com gravuras. (M ENDES, 1996, p. 33-34 e 92).

Em seus trabalhos visuais, Ismael Nery pôde realizar o que chamei acima de “operações” sobre o corpo, aludindo justamente ao sentido cirúrgico do termo. Pôde realizálas simbolicamente no espaço da arte, onde a história da arte moderna mostrava que o corpo podia ser modificado tendo como único limite o desejo e a imaginação do artista. Um limite sem limites, por assim dizer. Se a consciência dessa possibilidade de transformação da imagem do corpo no espaço da arte foi sugerida a Ismael Nery pelo encontro que teve com os surrealistas em Paris, em 1927, é difícil e mesmo pouco interessante discutir. Não se sabe ao certo com que obras Ismael Nery efetivamente teve contato. O único artista residente em Paris que se tem mais certeza de que Nery conheceu é Marc Chagall, que embora imprima uma atmosfera onírica a suas aquarelas da década de 1920, com personagens libertos, tal como nos sonhos, das leis da física, não era diretamente ligado ao grupo surrealista e tampouco praticava o tipo de surrealismo que interessa aqui. De modo que mais interessante será observar como a consciência das múltiplas possibilidade de representação do corpo humano na arte, aparece também em obras surrealistas. Já foram mencionadas algumas obras de surrealistas de Max Ernst, Dalí e Magritte, em que se notam operações sobre o corpo. Pode-se citar ainda duas obras dos dois últimos que nos auxiliam a compreender um aspecto fundamental dessas operações. De Dalí, Le Jeu lugrubre; de Magritte, o conhecido quadro Le viol [Fig. 3].

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Em Le Jeu Lugubre, a parte central do quadro, contemplada pela figura em primeiro plano, compõe-se de um “jogo” que parte de um fragmento de corpo, as pernas e nádegas aos pés do primeiro degrau da escada à direita. Esse fragmento se abre e como que se volatiliza, ligando-se à grande cabeça flutuante à direita, num processo de onde surge todo um conjunto de imagens, muitas delas compostas também por fragmentos de corpos, como o dedo que ameaça penetrar duas nádegas. Pode-se lembrar aqui da interpretação psicanalítica para esse quadro, sugerida pelo filósofo francês Georges Bataille, não para julgar o mérito dessa interpretação, mas para salientar o fato de que Bataille percebia no jogo construído por Dalí com partes fragmentadas do corpo (nádegas, dedos) um conjunto de “figurações contraditórias do sujeito”. Em seu esquema de análise, que das diversas imagens presentes no quadro, privilegia as que representam partes do corpo humano, tais figurações indicariam as diferentes fases de um processo de emasculação, passivamente contemplado pelo personagem em primeiro plano e atribuído a um “complexo de inferioridade”. Tal complexo já se teria manifestado em outras obras do artista, por via de personagens sem cabeça ou com partes de membros cortados, como em Cenicitas. O fato de que as operações de Dalí sobre os corpos de seus personagens, são vistas por Bataille como projeção de um desejo homossexual inconsciente, interessa-nos aqui pela ideia da modificação da imagem do corpo pelo desejo, seja inconsciente ou não. É dessa forma que pode ser entendido também Le Viol, de Magritte. Nessa obra vê-se, sobre um longo pescoço, uma cabeça cujo rosto é composto por um torso feminino, sendo que os seios fazem as vezes de olhos, o umbigo de nariz, e a genitália de boca, numa interessante intercâmbio entre zonas sensíveis do rosto e do corpo. Estamos diante, portanto, de uma outra possibilidade de modificação do corpo pelo desejo, baseada desta vez não na fragmentação, mas na troca ou rearticulação de suas partes. Esse tipo de operação sobre o corpo, é o que Eliane Robert Moraes chamará de afirmação da “proeminência do corpo do desejo sobre o corpo natural” (MORAES, 2002, p. 69), que podem se dar seja pela multiplicação, intercâmbio ou supressão dos membros e órgãos do corpo humano. Essas estratégias de transfiguração do corpo natural pelo “corpo do desejo”, 380 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


estão também presentes em obras de Ismael Nery, como Desejo de amor [Fig. 4], em que a dimensão sexual desse processo torna-se bastante evidente. Nessa pintura, ambientada em cenário desértico, próximo ao do surrealismo derivado de De Chirico (Dalí, Ernst, Magritte), vemos em primeiro plano uma figura cobrindo parte de seu corpo com um manto, deixando apenas o seio direito à mostra. Na altura do ombro esquerdo, a personagem desmaterializa-se, dando origem a uma forma fantasmática azulada e fundindose em parte com a paisagem. Nessa área, um casal humano em menor escala parece iniciar uma relação amorosa. O ombro direito e o pescoço metamorfoseiam-se numa forma comprida, fálica, cujo movimento ondulante acompanha o contorno da figura fantasmática e parece querer penetrar em um orifício presente nela. É interessante notar como a figura, que se pode supor feminina por conta do seio, “perde” a cabeça, surgindo em seu lugar formas que remetem à penetração sexual, prestes a ser levada a cabo pelo casal amoroso à direita. Se a dupla parece ser a materialização de uma visão imaginária cuja origem talvez seja o “desejo de amor” que dá título à obra, o corpo é transfigurado por esse mesmo desejo. Ainda outros trabalhos podem ser mencionados nesse contexto, como o desenho Erotização, que nos apresenta uma massa orgânica, composta por partes de rosto, lábios – que não se sabe se orais ou vaginais -, olhos, insinuações de pelos, um corte suturado, outros dois abertos exibindo nervos ou canais. Por trás dessa confusão de partes do corpo, surge uma mão, apalpando-a com os dedos. Chama atenção a boca que morde o rosto mais bem definido do conjunto e a penetração sexual figurada entre os dois cortes abertos. Nesse desenho, o artista radicaliza a ideia da fusão amorosa, presente em muitos de seus trabalhos como interpenetração das figuras por suas linhas de contorno, rompendo totalmente com qualquer vestígio de identidade e integridade dos corpos, ao representar, apenas a partir de fragmentos de corpos, os momentos diversos de uma relação sexual, como olhares, mordidas, toques, penetração, ferimentos. Por essa forma, Ismael Nery participa, de maneira muito próxima à dos surrealistas, daquilo que novamente Eliane Robert Moraes chama de “problematização do corpo” 7 , 7

É comu m situar o inicio desse processo em Les Demoiselles d’Avignon, obra em que Picasso põe em cheque os paradigmas de representação do corpo humano na tradição pictórica ocidental. Convém observar ainda que o artista participará da etapa surrealista de problemat ização da representação do corpo humano, levando -a para 381 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


característica da arte moderna. Ao refletir sobre esse processo, a autora sugere a seguinte possibilidade para compreendê- lo:

Se o corpo pode ser tomado co mo a unidade imediata do ho mem, formando u m todo através do qual o sujeito se compõe e se reconhece como indiv idualidade, nu m mundo voltado para a destruição das integridades ele tornou -se, por excelência, o primeiro alvo a ser atacado. [...] Para que as artes modernas levassem a termo seu projeto foi preciso, antes de mais nada, destruir o corpo, decompor sua matéria, oferecê-lo também „em pedaços‟. (MORAES, 2002, p. 60).

A partir dessa formulação, pode-se sugerir que o motivo da fragmentação do corpo, tal como o de sua transfiguração pelo desejo, está também ligado a um questionamento mais amplo a respeito da própria individualidade no mundo moderno, das possibilidades do sujeito moderno satisfazer-se com uma identidade individual, social, sexual. Nesse sentido, para encerrar, vale a pena retornar à discussão iniciada a partir do desenho Almas num corpo e o do poema “Oração de I. N.” Talvez seja possível sugerir que umas dessas “almas” contidas no corpo de Ismael Nery possa ser a de Ismaela. De fato, ela aparece no poema que leva esse nome como título: A minha irmã é minha edição feminina e meu castigo, Dá a todos o que eu nunca de mulher alguma recebi. Se eu não soubesse que sou também o seu castigo Há mu ito que seria fratricida ou suicida.8 (MATTA R, 2000, p. 74).

Sabe-se que Ismael Nery nunca teve irmã, apenas o irmão João, morto pela gripe espanhola em 1918. Ismaela pode ser compreendida como a manifestação do desejo constante do artista de alcançar a unidade, seja com todos os homens de todos os tempos na eternidade, seja dos sexos por meio da conjugação entre masculino e feminino no mesmo ser. O fato de, na vida, essa conjugação lhe ser impedida pelo corpo, que só lhe permitia ser um homem - e por isso Ismaela é o castigo de Ismael e vice- versa -, produziu na arte de Ismael Nery um

outras direções além da incorporação de elementos plásticos africanos, co mo atesta sua contribuição em Minotaure, notadamente os desenho de “Une Anatomie”, publicados no primeiro número da revista. 8

NERY, Ismael. Is maela, Republicado em Ismael Nery: 100 anos a poética de um mito. 382 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


grande interesse seja pelo momento da relação sexual, no qual por instantes os sexos se conjugam, seja pela figura do andrógino, que contém os dois gêneros no mesmo ser. Um interesse, porém, que não deixa de sublinhar a angústia causada pelo contradição entre o desejo de unidade e as limitações impostas pela realidade física do corpo. Uma contradição que pode ser percebida na aquarela Andrógino [Fig. 5], em que a figura, composta por uma metade feminina e outra masculina, exibe uma conjugação tensa entre essas duas partes. A possibilidade de conciliação entre masculino e feminino no mesmo ser é tensionada por um reforço da separação. Ismael Nery manifesta nessas obras a insatisfação e a angústia com os limites que seu corpo lhe impunha na construção de sua identidade individual e sexual. As muitas almas que o artista percebia dentro de si, consumiam-no sem poderem se expandir e realizar todas as suas potencialidades. O entendimento do espaço da arte como um lugar onde essas limitações poderiam ser ultrapassadas, resulta por vezes na diluição ou desmaterialização da figura humana, que cede lugar a uma espécie de forma translúcida e transcendental, representação da energia essencial contida em todos os homens e que os uniria no tempo da eternidade, livres da matéria de um corpo limitado e perecível. A série “Origem” e o quadro Essencialismo parecem descrever etapas desse processo. Se de fato, como sugere Annateresa Fabris, o “processo de desintegração do homem a fim de atingir a forma divina como pura energia” (FABRIS, 1997, p. 93) é um dos aspectos, senão o principal, do projeto poético e artístico de Ismael Nery, alguns dos trabalhos discutidos aqui apontam outras atitudes assumidas pelo artista, a partir do entendimento fundamental da arte como espaço de transgressão de limites. Ao realizar “operações” sobre a imagem do corpo, abrindo-o, intercambiando, transfigurando ou retalhando suas partes a partir do “corpo do desejo”, o artista manifestava a outra face daquela insatisfação, menos evasiva e mais voltada para uma vontade de intervenção na própria carne. Numa relação menos transcendente com a figura humana e, no limite, com a vida, esta foi a via por onde Ismael Nery aproximou-se dos surrealistas.

Referências Bibliográficas

383 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


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O TERMIDOR ARTÍSTICO SOVIÉTICO: arquitetura construtivista e stalinismo no processo revolucionário Thyago Marão Villela 1 Resumo: O artigo procura tratar, em linhas gerais, do processo de burocratização do Estado soviético e da reação stalinista no Partido Bolchevique e na Internacional Comunista, à luz da analogia de “Termidor soviético”, desenvolvida pelo dirigente da Oposição de Esquerda Internacional Leon Trotsky. Estabelecerei um paralelo entre a degeneração da Revolução russa, a partir da leitura de Trotsky, e o projeto regressivo que se dá no campo artístico e cultural russos, que culminará, em 1934, no estabelecimento do realismo -socialista como estética oficial do regime stalinista. Vou me valer, para isso, de uma análise da arquitetura sovi ética no quadro dos desenvolvimentos revolucionários e da vinculação do projeto arquitetônico construtivista com a noção de encomenda social. Irei me deter, portanto, ao caso da arquitetura construtivista soviética, particularmente aos projetos das residências op erárias desenvolvidos a partir de 1925 pela Associação dos Novos Arquitetos (ASNOVA – 1923) e pela União dos Arquitetos Contemporâneos (OSA – 1925). Ambas estas escolas confluíam em relação ao projeto construtivista vinculado à idéia de encomenda social e devem ser interpretados mediante desta matriz conceitual. A partir desta análise da arquitetura soviética poderemos perscrutar um processo amplo de perseguição às correntes artísticas de vanguarda e estabelecer um paralelo entre o Termidor Político e este fenômeno, que talvez possa ser chamado de “Termidor artístico soviético”. Palavras-Chave: Construtivismo russo. Arquitetura soviética.Stalinismo.

1. A “encomenda social” e a arquitetura construtivista Formulado por Serguei Tretiakov, um teórico do movimento construtivista, e incorporado no vocabulário do grupo, a encomenda social é a compreensão, por parte dos artistas, do que a sociedade “quer”, “pede”. Ela programa a produção das obras artísticas em função da tarefa destas obras na organização do psiq uismo do proletariado e do campesinato russo, na organização de um novo modo de vida. A encomenda social, deste modo, é a mediação política na produção de objetos artísticos. Isso não implica, absolutamente, em um direcionamento estatal na produção das obras, mas na autonomia dos artistas em relação ao que julgarem necessário em um determinado contexto social e histórico. Segundo François Albera, três pontos definem a encomenda social: 1. não há obra nem escritor “universais”. Tudo o que um autor, um artista faz é atividade em p rol de u ma classe determinada. Para realizar essa finalidade social, esses autores devem se dar conta, claramente, da tarefa de classe para a qual trabalham;

1

Mestrando no programa de Artes Visuais da Universidade de São Pau lo (USP). 385 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


2. não há inovação em geral, inovação por si só. Apenas uma inovação que segue na contracorrente do gosto dominante será por conseguinte reconhecida.; 3. a encomenda social não exclui a autonomia dos trabalhadores literatos: porque a encomenda em questão não é feita por representantes individuais da própria classe nem de organizações distintas. Trata-se de uma co mpreensão autônoma dessa encomenda, que pode entrar em contradição com as encomendas reais dos representantes dessa classe; essa autonomia é a autonomia não de um grupo social, e sim de um coletivo de produção. Que pode declarar ao “cliente” que ele mes mo não compreende a encomenda. 2

É a partir desta noção de encomenda social que se deve entender a produção do movimento construtivista, que surge na Rússia em 1921. É a partir desta matriz conceitual, que relega aos artistas o papel de organizadores da vida, que se deve entender, por exemplo, o abandono da pintura de cavalete, do caráter representativo da arte, da reivindicação acerca da produção de “objetos justificados socialmente por sua forma e utilidade”3 propostos pelos construtivistas. A título de exemplo, podemos citar os croquis de trajes para operários produzidos por Aleksandr Rodchenko (imagem 1) e os projetos de móveis desenvolvidos por vários construtivistas, como Vladimir Tatlin – que combinam a funcionalidade e a experimentação estética.

FIGURA 1 : Rodchenko, traje masculino, 1921

2

ALBERA, François. Eisenstein e o construti vismo russo. Trad. Helo ísa Araújo Ribeiro. São Paulo : Cosac & Naify, 2002, p. 180. 3 TARA BUKIN, N. M. El ulti mo quadro: del caballete a la maqui na. Trad. Andrei B. Nakov. Barcelona: G. Gili, 1977, p. 32. 386 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


A crítica, no caso, que os construtivistas teceram em relação à “arte de cavalete” (a pintura em tela, por exemplo), partia da avaliação de que haveria se perdido o sentido histórico da pintura como um princípio visual da cultura ocidental. O desenvolvimento industrial, combinado à Revolução de Outubro, abria as portas para que a arte pudesse se inserir concretamente na produção material da vida (e não apenas representá- la). A arte se dissolveria no social, a arte acabaria enquanto um campo especializado, fundado na divisão social do trabalho. Ela se fundiria, em última instância, com um novo tipo de trabalho nãoestranhado (Nikolay Tarabukin chega a utilizar a expressão “tornar o trabalho uma atividade alegre” 4 ). A pintura e outras formas de arte artesanais pertenciam a uma etapa anterior da organização social, e o papel que havia cumprido, o de representar, de promover um prazer estético passivo, apenas indicavam, então, o caráter datado deste esquema de produção artístico; apenas evidenciava o abismo que existiu, na sociedade burguesa, entre arte e vida, e que não poderia ser reproduzido em uma sociedade sem classes que começava a se gestar no processo revolucionário. Este vínculo direto entre este projeto artístico construtivista e a Revolução de Outubro se expressou no campo arquitetônico mediante os projetos de residências operárias, por exemplo, mais notadamente os projetos das Casa-Comunais, desenvolvidos por arquitetos como Moses Guinzburg. 5

4

TARA BUKIN, Nikolay. op. cit. Cf. KOPP, Anatole. Town and Revolution: soviet architecture and city planning 1917 -1935.Trad. Bu rton, T. E. New York: George Braziller, 1970. 5

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Estes projetos e construções respondiam ao processo de formação de habitações coletivas espontâneas, empreendidas por uma fração do proletariado russo, em parte pelas necessidades materiais, em parte pelo convencimento em relação ao projeto de mudança dos modos de vida. Tanto a Associação dos Novos Arquitetos (ASNOVA – 1923) e a União dos Arquitetos Contemporâneos (OSA – 1925) encontravam-se embasados pelas idéias de combate ao individualismo pequeno-burguês (desta forma, as habitações funcionavam como grandes organismos coletivos, promovendo a socialização dos habitantes) e de emancipação da mulher em relação ao trabalho doméstico e de destruição da família, promovedora da opressão do homem em relação à mulher – lembro que o livro de Alexandra Kollontai, d´A Nova moral e a classe trabalhadora, fora publicado em 1918, no calor da Guerra Civil, e animava os projetos destes arquitetos. Estas “encomendas” demandadas pela população 390 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


propunham amplos espaços de vivências coletiva – salão de jogos, cozinha, áreas de lazer, etc – e os habitantes se revezavam por turnos para as tarefas, indiscriminadamente entre homens e mulheres. Como contraposição às habitações destinadas aos núcleos familiares, a coletivização e a “desagregação” da família. O espaço, deste modo, procurava imprimir uma nova lógica de relações sociais. Pois bem: no curso do processo revolucionário, o desenvolvimento destas experiências foi interrompido pelo Estado soviético, e suplantado pelo retorno (ou dominação oficial, com o apoio do Partido Bolchevique) da arquitetura neoclássica. Como explicar este processo, dado globalmente no campo artístico e cultural? Antes de voltarmos ao processo arquitetônico em particular, tratarei de precisar este processo global a partir da análise empreendida por León Trotsky. 2. O Termidor soviético nas artes ou “a estatização da encome nda social” Referi- me, no início do artigo, ao conceito de “Termidor Soviético”. O que é, então, esta noção? Ela alude, em primeira instância, ao golpe de 9 Termidor, de 1794, no qual os girondinos franceses puseram fim ao período do governo jacobino da Revolução Francesa, mediante o assassinato de Robespierre e da ala radical da pequena-burguesia. Alude, portanto, ao fim do radicalismo político revolucionário e ao momento de inflexão do processo revolucionário, no qual foi, de certa maneira, restabelecido o projeto inicial girondino e contida a fúria popular. A comparação deste processo histórico com os rumos da Revolução Russa, empreendida pela ala dos opositores ao regime stalinista, procurou dar conta de explicar e de precisar a existência ou não (e de quando dataria) deste momento de inflexão no processo revolucionário russo – no qual, a partir da correlação de forças no interior do Estado so viético, haveria se gestado esta reação aos princípios do processo revolucionário. Em um texto de 1935, intitulado “O Estado operário, Termidor e bonapartismo” 6 , o dirigente da Oposição de Esquerda Internacional, Leon Trotsky, prognosticou que já haveria se concretizado

o

Termidor soviético,

e que este processo

haveria começado

6

TROTSKY, Leon. Estado operário, Termi dor e bonapartismo. Disponível em: <http://revistaiskra.wordpress.com/especiais -iskra-trotsky-e-engels/o-estado-operario-termidor-ebonapartismo/>. Acesso em: 18 set. 2012. 391 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


aproximadamente em 1924. Trotsky revisa, a partir deste texto, a posição formulada pelos oposicionistas anteriormente, desde 1926, de que ainda não teria ocorrido o Termidor, na medida em que as bases produtivas da Rússia ainda seriam planificadas pelo Estado e a produção socializada. Ou seja, o Termidor soviético se daria apenas com o retorno ao capitalismo. A precisão do conceito de Termidor se dá a partir dos seguintes pontos: 1. O Termidor francês não representou uma volta ao modo de produção feudal, ou seja, uma contra-revolução em sua acepção mais radical, alterando os fundamentos econômicos do modo de produção capitalista concretizado pela Revolução Francesa, mas reestruturou, à direita, a fração que conduzia o curso revolucionário ; 2. Do mesmo modo, as bases materiais da produção soviética não haviam ainda retornado a um esquema de apropriação privada, mantendo-se socializadas. A concretização do Termidor, portanto, residia na substituição da camada dirigente e na supressão da democracia partidária, soviética e sindical – em suma, na distorção dos princípios do Estado soviético.

7

Este processo histórico de “distorção” assentou-se em contradições materiais produzidas por múltiplos fatores decorridos de uma revolução em um país com uma estrutura social atrasada, e que passou por contradições importantes como a guerra civil e, especialmente, a Nova política Econômica, que reintroduziu elementos capitalistas na economia na tentativa de dar um novo fôlego contra as pressões do capital e o imperialismo a nível internacional, mas que gerou também pressões burocráticas importantes, formando uma classe de camponeses ricos (kúlaks) e dando bases para a reação termidoriana no interior do partido, a partir da fração liderada por Stalin e sua teoria do “socialismo num só país”. Conforme escreveu Trotsky no texto mencionado:

O burocratismo soviético (seria mais correto dizer anti-soviético) é o produto das contradições sociais entre a cidade e a aldeia, entre o proletariado e o campesinato (...), entre as repúblicas e os distritos nacionais, entre os diferentes grupos do campesinato, entre as distintas camadas da classe operária, entre os diversos grupos de consumidores e, finalmente, entre o Estado soviético de conjunto e seu entorno capitalista. 8

7 8

Cf. TROTSKY, Leon. op cit. TROTSKY, Leon. op cit. 392 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Este encadeamento de contradições, elencadas por Trotsky, desenvolveu-se a partir das políticas do Comunismo de Guerra, a partir de 1918, mas, mais precisamente, a partir da evolução das medidas de exceção da Nova Política Econômica – medidas como a proibição dos Partidos políticos e das frações no interior do Partido bolchevique (ambas estas medidas datam de 1923), bem como o incremento das desigualdades sociais no interior do país. O crescimento econômico de 1923 garantiu a estabilização da burocracia e a conquista de alguns privilégios materiais (Trotsky referir-se-á ao fator “harém- limusine” como constituinte destes privilégios) 9 . Em função do tempo, não conseguirei desenvolver as contrad ições que Trotsky aponta em seu texto. Dois deles, entretanto, merecem, no que cabe às intenções desta comunicação, uma atenção especial. Tratam-se, 1. da dialética entre a derrota das revoluções em outros países e o fortalecimento da burocracia; e 2. o que Trotsky formulou como “a aquisição, por parte do vencedor, dos hábitos do vencido”10 . A derrocada dos processos revolucionários na Alemanha, em 1923, seguida pela derrocada do processo chinês de 1926-27 (e poderia citar ainda outros, como a Hungria e a Bulgária, de 1918) isolaram a Rússia, mantendo-a atrasada economicamente em relação ao Ocidente e sustentando a posição da burocracia. Ao mesmo tempo, as direções da Comintern, orientadas pela burocracia stalinista e pela política da mesma de “socialismo em um só país” promoveram também a derrocada destes processos, alçando a burocracia a postos cada vez mais consolidados. Desta maneira, da necessidade da burocracia soviética de regular as contradições entre o campesinato e o proletariado russos, bem como e ntre a União Soviética e o imperialismo – mediante todo o tipo de aventureirismos e oportunismos – deriva o caráter centrista, ou seja, de constante oscilação política, da burocracia soviética (ou anti-soviética) fundamentado na suspensão desta em relação às massas (Trotsky emprega a expressão “vitória da burocracia sobre as massas”). Este processo de constituição da burocracia termidoriana deu-se também pela substituição das camadas dirigentes do Partido, em um jogo de perseguições e calúnias que se desdobrará, muito posteriormente, nos Grandes Expurgos. Diz Trotsky: 9

Cf. TROTSKY, Leon. A Revol ução traí da. Trad. Henrique Canary, Rodrigo Ricupero, Paula Maffei. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2005. 10 Cf. TROTSKY, Leon. op. cit. 393 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


Foram esmagados os velhos quadros do bolchevismo. Destruídos os revolucionários. Foram substituídos por funcionários de espinha flexível. O pensamento marxista foi substituído pelo temor, p ela calúnia e pela intriga. Do Bureau Político de Lên in, sobra somente Stálin; dois de seus membros estão politicamente quebrados e rendidos (Rikov e Tomski); outros dois estão na prisão (Zinoviev e Kamenev); outro está no exterior e privado de sua cidadania (Trotsky). Lênin, co mo disse Krupskaia, somente pela morte livrou-se das repressões da burocracia; na falta de oportunidades de colocá-lo preso, a epígonos o trancaram em um mausoléu. Todo o setor governante se degenerou. Os jacobinos foram substituídos pelos termidorianos e pelos bonapartistas, os bolcheviques foram substituídos pelos stalinistas. 11

O segundo elemento desenvolvido por Trotsky, ao qual eu quero atentar, é, então, o retorno às práticas culturais burguesas, ou a elementos culturais burgueses, promovidos pela burocracia a partir do atraso russo. Ao longo da década de 1920, por exemplo, pode-se observar a manutenção relativa do índice de prostituição, ao mesmo passo em que um retrocesso cultural em relação ao papel das mulheres na produção material e na vida política – chamado por Trotsky de “Termidor no lar”. O incremento das desigualdades sociais no seio do proletariado e campesinato, bem como o movimento stakhanovista incentivavam a competição e o arrivismo entre os operários, ao invés da cooperação. Pois bem: conforme havia comentado em relação à arquitetura russa, o projeto construtivista foi barrado pelo Estado. Não que houvesse tido uma grande expressão no período em termos quantitativos, é preciso frisar, mas ele participou de um r etrocesso amplo do campo artístico e sua subsunção pelas mãos da burocracia stalinista. Podemos caracterizar como um processo de “estatização da encomenda social”este, no qual, a partir da saída de cena das massas nos rumos da revolução (conforme comentado, a partir da supressão da democracia soviética), a burocracia formula suas demandas e as impõe aos artistas russos. Mais do que uma mudança de mãos do “cliente”, este processo configura uma distorção dos princípios da encomenda social.

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TROTSKY, Leon. Estado operário, Termi dor e bonapartismo. Disponível em: <http://revistaiskra.wordpress.com/especiais-iskra-trotsky-e-engels/o-estado-operario-termidor-ebonapartismo/>. Acesso em: 18 set. 2012.

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A ASNOVA e a OSA são dissolvidas pelo decreto de 1932, do Partido Bolchevique, que acaba com todas as tendências artísticas para reuni- las em grandes grupos submetidos ao Estado. O retorno às linhas da arquitetura neoclássica é a marca deste período.

As fotos acima datam dos anos 50, no caso, mas os projetos de construções deste tipo são iniciados e intensificados a partir da década de 1930. Podemos observar um retorno à idéia de habitação fundada no núcleo familiar, bem como na inserção de elementos nacionalistas. Trotsky já apontava, no texto de 1935 que referi acima, o “nacionalismo messiânico” como um desdobramento ideológico da teoria do socialismo em um só país. Ou seja,a Rússia deveria ser resgatada em sua tradição para explicar os elementos particulares que a permitiram ser o único país socialista do mundo. Esta vinculação entre o projeto 395 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


stalinista e o projeto regressivo artístico encabeçado por esta burocracia é também sintetizado na seguinte formulação de Trotsky, de 1938, e com a qual encerro este artigo: “A arte da época stalinista entrará para a história como a expressão mais profunda do declínio da revolução proletária em nível internacional” 12 .

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DO TRADICIONAL AO SUSTENTÁVEL: A utilização das cinzas em vidrados cerâmicos no Brasil Vanessa Yoshimi Murakawa1 Geralda M.F.Dalglish ( Lalada) 2 Resumo: Uma das mais antigas técnicas usadas pelos ceramistas orientais é o esmaltar a partir de cinzas, que juntamente com outros minerais se transformam em um vidrado de características próprias, com efeitos visíveis pela raridade e sutileza das peças. Atualmente no Brasil, ceramistas vem utilizando as cinzas de vegetais na composição de vidrados cerâmicos, estas cinzas procedem do reaproveitamento de materiais que seriam descartados: podas de gramas, gravetos, tronco de árvores, entre outros vegetais. O presente trabalho vem relatar a partir de um breve histórico a utilização dos vidrados de cinzas no Brasil, partindo da introdução da cerâmica de alta temperatura pelos imigrantes japoneses, apresentando os primeiros ceramistas e alguns ceramistas atuais (descendentes e não descendentes) que utilizam da técnica, além de relatar sua relevância na questão ambiental voltada à sustentabilidade. Palavras-chave: vidrado, cinzas, cerâmica.

Introdução Considerado o mais antigo vidrado utilizado pelo homem, o vidrado de cinzas teve sua origem na China, na dinastia Shang (século XVI a.C) e o seu desenvolvimento está relacionado com o surgimento dos fornos de alta temperatura que alcançavam temperaturas acima de 1200°C. As cinzas da lenha usadas como combustível depositavam-se sobre as peças formando assim uma fina camada de vidro. A técnica passou pela Coréia e por influência dos ceramistas coreanos chegou ao Japão, onde a utilização é tradicional e sobrevive até os dias atuais. No Brasil foi introduzido por imigrantes japoneses com introdução da cerâmica de alta temperatura. Percurso das cinzas e da cerâmica de alta temperatura no Brasil. Segundo Moraes (2010) o Brasil não tem tradição de cerâmica de alta temperatura, antes da Segunda Guerra as cerâmica de alta temperatura eram importadas da Europa. Foram os imigrantes japoneses 50 anos após o inicio da imigração que data de 1908, que influenciaram a produção continuada dessa cerâmica. A pesquisadora relata que em 1953, no 1 2

Mestranda do Instituto de Artes – UNESP, Processos e Procedimento Artísticos. Agência de fomento: CAPES Orientadora, docente do Instituto de Artes-UNESP. 397 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9


primeiro navio de imigrantes do pós-guerra chega ao Brasil jovens técnicos chefiados pelo especialista em porcelana Mizuno Yozo, entre eles Kojima Yasuichi natural da província de Gifu, (região conhecida pela tradição em cerâmicas denominadas Mino), a partir de 1959, instala a primeira fabrica de porcelana japonesa no Brasil.

“É então a partir de 1959 que a família Kojima acelera a instalação da fábrica, utilizando materiais obtidos na região: tijolos refratários quebrados do pátio de uma indústria local, tijolos comuns das olarias vizinhas e argila das sobras de uma fábrica de bonecas. A primeira fornada acontece entre 7 e 9 de Abril de 1960, constituída na sua totalidade por peças fabricada com a ajuda de um torno manual trazido por Kojima Juho do Japão. Só mais tarde a família passa a usar um torno elétrico, gerando um aumento significativo na produção.A Fábrica de Porcelanas Kojima foi a primeira fábrica de porcelana japonesa do Brasil, existindo até hoje em Mauá, onde se localiza também, desde 1937, a fábrica das famosas porcelanas Schmidt” (MORAES,2010).

Essa época também foi marcada pela chegada de artistas japoneses no estado de São Paulo, e no final dos anos 60 que a cerâmica começa a ganhar campo no cenário artístico.

“Entre as tendências que imprimiram suas marcas na cerâmica contemporânea, temos a arte que fazem hoje no Brasil ceramistas ligados aos conceitos orientais, a contemplação. Os artistas japoneses radicados em São Paulo, desde o inicio do século, trouxeram consigo uma tradição cerâmica ligada ao objeto utilitário. Contudo, no período pós-guerra outros artistas aqui chegaram e, entre eles, alguns com posturas mais conservadoras, com conceitos de arte dentro da filosofia oriental, sendo a cultura japonesa eminentemente estética.” (FRANÇOIS,2006 pg.64)

Esse tipo de conceito Eagleton (2005,pg.10) considera como “verdades culturais, a arte elevada, tradicionais de um povo”, uma maneira de se preservar a cultura, uma parte da identidade étnica. No Japão a cerâmica tem um nível de apreciação estética impar, a filosofia usada nos tratados de cerâmica como o Zen, o oleiro desenvolve o espírito juntamente com a habilidade para

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adquirir algo além da técnica (Murakawa,2009,pg10), os materiais utilizados são considerados expressivos por isso ocorre todo o ritual de escolha do barro, cinzas e tipo de forno. “O oriente nos mostra das mais diversas formas (religião, arte, filosofia,práticas) que o universo e o homem constituem uma única e mesma realidade, ao mesmo tempo instável,inconstante e indivisível. Sou o ar que respiro, o alimento que absorvo, as sensações que experimento, as palavras que registro...sou o barro que modelo.” (NAKANO,1989,pg 24)

Junto à tradição do fazer cerâmico japonês, os vidrados de cinzas são incorporados e adaptados para os materiais abundantes no Brasil A ceramista Shoko Suzuki, chegou ao Brasil com a primeira leva de artistas em 1962, seu trabalho traz toda a tradição da cultura oriental, e a beleza dos recursos naturais locais. “Em meio as suas pesquisas, seus sonhos de alquimista levaram-na a produção de uma nova matéria, utilizando a maderia.com sua visão criadora, inventou um esmalte especial utilizando cinzas de galhos de árvores variadas, submetidas por um longo processo de decantação.” (MORAES,2007 pg.52)

FIGURA 1: Peça de Shoko Suzuki

Na década de 70, outros ceramistas japoneses chegam e fixam residência no Brasil, entre eles: Kenjiro Ikoma, natural de Mie no Japão, chegou em 1973, construiu o primeiro forno Anagama no Brasil e tem contribuído com o ensino de técnicas tracionais na cerâmica.

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Em seus vidrados utiliza a cinza de eucalipto provenientes da queima do forno, seu atelier atualmente fica em Itapecerica da Serra.

FIGURA 2: Peça de Kenjiro Ikoma esmaltada com cinzas

Akinori Nakatani, nasceu em Osaka (Japão), formado em Educação Artística em Kyoto, foi discípulo de Mitsuo Kanoo de 1968 a 1970. Chega ao Brasil em 1974 e em 1978 instala seu atelier em Mogi das Cruzes onde está em funcionamento até hoje. Nakatani utiliza uma porcentagem de cinza em todos os vidrados, são usadas as cinzas da palha de arroz, adquirida de uma beneficiadora e as cinzas do eucalipto provenientes da queima do forno Noborigama. Atualmente esposa e filhos também trabalham na produção cerâmica do atelier.

FIGURA 3: Peça de Nakatani com cinzas de palha de arroz.

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Mieko Ukeseki nasceu em Mie, Japão. Inicia as atividades em cerâmica em 1971 em Fukuoka.Transfere-se para o Brasil em 1975 e junto a outros artistas instala o atelier do Antigo Matadouro, em Cunha –SP onde permanece até hoje. Mário Konishi, companheiro de atelier, é natural do Paraná, se instala em Cunha em 1984, casa-se com Mieko, por influência natural inicia seu trabalho como ceramista(Silva, 2011,pg 92). Segundo conversa com Mário Konishi, as cinzas de eucalipto recolhidas da queima são utilizadas nos vidrado, além de outros materiais naturais. A cidade de Cunha é considerada hoje um pólo cerâmico com mais de 20 ateliers e com 5 fornos Noborigamas em atividade.

“Nos Ateliês que usam o forno Noborigama, a maior parte dos esmaltes é feita artesanalmente. Os ceramistas usam uma técnica trazida pelos ceramistas do grupo do Antigo Matadouro, a qual ao longo dos anos mantém-se praticamente inalterada: toma-se como matéria prima, cinzas vegetais, em geral as de casca de arroz e de eucalipto (retiradas da fornalha, após a queima do biscoito), por conterem alto teor de sílica”(Silva,2011,pg 88 ).

FIGURA 4: Peça de Mieko Ukeseki

A partir da década de 80 inspirados nas técnicas tradicionais, começam a surgir a cerâmica da segunda e terceira geração de descendentes e de brasileiros sem descendência japonesa ( Moraes 2010).

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Em 1984 se instalam em Cunha, o casal Gilberto Jardineiro e Kimiko Suenaga, utilizam o vidrado de cinzas em grande parte de sua produção. São utilizadas na esmaltação das peças as cinzas de casca de arroz e de eucalipto, e outros materiais como argila, calcita, quartzo, areia e pedra ferro. Segundo Jardineiro, o processo de obtenção de esmaltes é um processo assim como a composição da argila utilizada e a queima em forno Noborigama, são resultados de vários testes, de anos de experiência. Técnica tradicional japonesa que adaptada aos materiais e a maneira de fazer cerâmica no Brasil, gera admiração a cada vez que uma abertura de fornada é realizada. A ceramista Sueli Massuda natural de Marília, interior de São Paulo, graduou-se em desenho industrial na FAAP. Em 1982, foi ao Japão com o intuito de pesquisar embalagens e acabou se interessando pela cerâmica. Em Mitaka no Japão foi aprendiz de ceramistas onde aprendeu a tornear e sobre a técnica de esmaltação com cinzas. Atualmente com atelier em São Paulo, ministra aulas de torno e vidrados sua especialidade. Em suas peças utiliza diversas cinzas, a de eucalipto na maioria. Sueli utiliza as cinzas como matéria –prima no vidrado e também com o intuito de preservar o que é tradicional.

FIGURA 6: Peça com cinzas de eucalipto

FIGURA 7- Prato- Sueli Massuda

Atelier Suenaga e Jardineiro

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Hideko Honma é nissei, da cidade de Lins, a partir de 1994 começa sua trajetória na cerâmica se especializando no Japão. No Brasil, adaptou a técnica tradicional de esmaltação em que se utiliza das cinzas de vegetais, iniciou então a pesquisa com a vegetação brasileira, por ela ser abundante e por ser próxima a sua vida. Utilizou os manuscritos da família na adaptação dos seus esmaltes de cinzas (Murakawa, 2009, pg35). “Hoje, tal qual meus ancestrais eu concretizo sonhos amassando barro, colhendo galhos e podas de jaqueira, de palha de arroz, de bananeira, de samambaia do mato. A Terra generosa e o Fogo implacável são os meus grandiosos parceiros que a 1.300°C, queimam e purificam transformando estas cinzas vegetais em brancos, marrons, verdes, azuis; acetinados e translúcidos. São infinitas as possibilidades de cores e texturas da farta natureza brasileira que hoje acolhe a minha criação.”(HIDEKO HONMA)

Figura 8: Peça de Hideko esmaltada com cinzas.

Pernambucana nascida em Recife, Acácia Azevedo atua como ceramista há mais de 10 anos. Atualmente tem um atelier em Vinhedo onde desenvolve seus projetos, suas peças. Ministra aulas de modelagem em torno, modelagem manual, engobes e formulação de vidrados cerâmicos. Utiliza como matéria prima além dos minerais as cinzas vegetais. O primeiro contato foi com a cerâmica popular, onde o figurativo estava muito presente, mas como queria participar da vida das pessoas, alterar seus hábitos, seus gestos,se interessou pelos utilitários e o trabalho em alta temperatura.

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FIGURA 9: Vaso –vidrado de cinzas- Acácia Azevedo.

Uma das ações relacionadas à sustentabilidade é o reaproveitamento de resíduos. Alguns ceramistas e indústrias vem incorporando as cinzas em seus produtos. Em Barra do Graças, Cuiabá-MT as ceramistas Odília e Lucileika integrantes do Valearte, utilizam as cinzas de matérias primas regionais para diferenciar sua cerâmica e atribuir características próprias. “Queremos trabalhar com coisas regionais, inclusive matéria-prima”, ressalta, informando que normalmente se usa a cinza de cedro e pinus, madeiras que não têm nada a ver com nossa cultura e região. Ela acredita que o uso da cinza regional vai valorizar ainda mais as peças, sem falar que poderão conseguir cores únicas com o uso desses materiais.Elas mesmas vão a campo recolher o material – pedaços de galhos, folhas secas. Para produzir um quilo de cinza precisam de 4 a 5 sacos de 50 quilos de resíduos”(COMINI,2012)

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Figura 10- Ceramista Lucileicka

Figura 11- Pastilhas esmaltadas com cinzas

A Lepri Cerâmica, indústria de revestimento cerâmico utiliza as cinzas de madeira,olarias e fundições, na fabricação de um vidrado para ecopastilhas (Figura 11). "O esmalte a base de cinzas é muito antigo, foi um dos primeiros descobertos pelo homem", afirma o ceramista. Estamos retomando essa tecnologia. Segundo Lepri, as cinzas são misturadas à base do esmalte e dão a cor à mistura, que podem ser de diferentes tonalidades de acordo com a origem das cinzas.” (REVISTA SUSTENTABILIDADE)

Como podemos observar, as cinzas de vegetais oferecem um campo amplo de possibilidades na pesquisa de vidrados cerâmicos, no Brasil as cinzas mais utilizadas por ceramistas são as de eucalipto provenientes da queima de fornos a lenha ( Anagama e Noborigama) encontradas com mais facilidade e em maior quantidade em pizzarias e olarias, e a cinza da casca de arroz, geralmente compradas de beneficiadoras. O trabalho com cinzas vem auxiliando no desenvolvimento sustentável, pois reutiliza materiais que seriam descartados, no caso da casca de arroz, ocasiona a diminuição da quantidade de um dos resíduos agro-industriais mais abundantes no Brasil. Esta prática é vantajosa, pois as cinzas podem substituir algumas matérias-primas, além de oferecer efeitos que dão às peças características únicas.

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Conclusões Atualmente as cinzas são utilizadas por vários ceramistas no Brasil, que adaptaram a técnica aos materiais abundantes da região, é interessante observar que as razões atribuídas ao uso estão ligadas ao aspecto cultural que envolve toda a questão da tradição familiar, da descendência, da influência aos não descendentes pelos seus mestres, outras pelo aspecto sustentável que atribui a cerâmica características próprias de determinado local, reaproveitando um material que seria descartado. Podemos considerar esse panorama gratificante, pois a cultura japonesa e brasileira não se repelem, mas geram novas idéias, criando novas linguagens (François, 2006 pg 55). Na cerâmica dá continuidade a uma técnica milenar e amplia pesquisas relacionadas a cinzas de vegetais como material relevante ao desenvolvimento sustentável e principalmente na composição de vidrados cerâmicos.

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NAKANO, Katsuno. Terra,fogo Homem.São Paulo: Oriento,1989. REVISTA SUSTENTABILIDADE. Cerâmica verde recicla lâmpada fluorescente e cinza de olaria. Disponível em: <http://www.revistasustentabilidade.com.br/construcao-verde/ceramica-verde-recicla-lampadafluorecente-e-cinza-de-olaria> Acesso em 28/08/2010. SILVA, Kleber José da. Caminhos da cerâmica em Cunha: Paneleiras, olarias e ateliês, elementos importantes na formação do histórico ceramista da cidade. Dissertação de mestrado.Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes,2011

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AGRADECIMENTOS

REALIZAÇÃO

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