Fotocronografias [n.5]

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Núcleo de Antropologia Visual - banco de Imagens e Efeitos Visuais

Editoras Ana Luiza Carvalho da Rocha, UFRGS Brasil Cornelia Eckert, UFRGS, Brasil

Comissão Editorial Angela de Souza Torresan, University of Manchester, Inglaterra Carlos Masotta, UBA, Argentina Carmen Sílvia de Moraes Rial, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Christine Louveau de la Guigneraye, Centre Pierre Neville, Université d’Évry-Val-d’Essonne, Maître de conférences en communication, França Daniel Daza Prado, IDES, Argentina Daniel S Fernandes — UFPA, Universidade Federal do Pará — Campus Bragança Fabrício Barreto, Universidade Federal de Pelotas, Brasil Fernando de Tacca, Unicamp, Brasil Flávio Leonel da Silveira, Universidade Federal do Pará, Brasil Gisela Canepá Koch, Departamento de Ciencias Sociales de la Pontificia Universidad Católica del Perú, Perú Jesus Marmanillo, Universidade Federal do Maranhão, Brasil João Braga de Mendonça, Universidade Federal da Paraíba, Brasil Luciano Magnus de Araújo, Universidade Federal do Amapá, Brasil Luiz Eduardo Achutti, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Milton Guran Paula Guerra, Universidade do Porto, Portugal Renato Athias, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Rumi Kubo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Sarah Pink Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, Austrália Sylvaine Conord, Université Nanterre, França

Apoio Técnico Matheus Cervo, bolsista de iniciação científica em BIEV UFRGS Felipe da Silva Rodrigues, bolsista de inovação tecnológica em BIEV UFRGS Marcelo Fraga, bolsista voluntário em BIEV UFRGS

www.ufrgs.br/biev/ medium.com/fotocronografias fotocronografia@gmail.com +55 (51) 3308 7158

Fotos da Capa: Miguel Almada (in: Ágata Dourado Sequeira) ISSN: 2595-3559


vol. 03 num. 05

A arte que mora na cidade: intervenções artísticas urbanas 2018



Vol. 03 num. 05 - 2018 - Arte Urbana Sumário Apresentação - 06 Jose Luis Abalos Junior Yuri Rosa Neves

Organização

Jose Luis Abalos Junior Yuri Rosa Neves

Editoração

Felipe da Silva Rodrigues Matheus Cervo

“Acción Poética S.M.”: - 12 uma narrativa biográfica de Marcela Echeverría Cristiane Penning Pauli de Menezes

Quando a galeria é a cidade - 26 Ronaldo de Oliveira Corrêa

Transitar pelas cidades sul-americanas: - 40 uma experiência a partir dos lambes urbanos Otros Hermanos: Roberta Filgueiras Mathias, Beatriz Fazolo Nogueira Miguel

Pichação/graffiti em Santa Maria: imagens, piscadelas e coisas que os olhos não podem ver

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Detalhe ou fragmento? Olhar em partes a paisagem urbana no cotidiano da cidade: corte & ruptura imagéticas no registro fotográfico do grafitti

- 64

Rodrigo Nathan Romanus Dantas

Danilo Gustavo Silveira Asp

Arte Urbana e Espaços Expectantes: Intervenções clandestinas - 80 e projectos comissionados nos terrenos da antiga Lisnave (Almada, Portugal) Ágata Dourado Sequeira

Pixo-narrativas e estética da fachada

- 96

Mulheres e graffiti: construindo imagens nas ruas de Belém do Pará

- 110

Mapeando graffiti: uma experiência pedagógica

- 126

Adauany Zimovski

Thayanne Tavares Freitas Fabricio Barreto



Vol. 03 num. 05 - 2018 A arte que mora na cidade: intervenções artísticas urbanas Pixação. Graffiti. Stickers Arts. Stencil. Muralismo. Instalações. Nos últimos anos temos percebido um relativo aumento tanto destas formas de expressão visual na cidade, quanto em pesquisas acadêmicas que buscam entendê-las. Em razão disto, nesta quinta edição da revista Fotocronografias, tivemos o objetivo de reunir ensaios visuais fruto de etnografias em espaços urbanos, procurando, através da produção de imagens e da estilística narrativa, captar esta emergente produção imagética e criativa destas formas de arte na superfície das metrópoles contemporâneas. Por meio dos diversos ensaios que recebemos pudemos perceber consonâncias na proliferação de interesses pelas diferentes formas de arte urbana que coexistem nos espaços e remetem a variados significados, intuitos e contextos de produção. Como Ricardo Campos (2010) aponta em “Porque pintamos a cidade? Uma abordagem etnográfica ao graffiti urbano”, são notáveis as referências às combinações de dimensões lúdicas, políticas e estéticas nas pesquisas sobre esta temática. A pixação e o graffiti são parte de modalidades históricas de intervenção e pressupõe diferentes espaços-tempos. A elas associam-se outras formas de saber-fazer-intervir na urbe, como é o caso dos lambe-lambes que aparecem nos ensaios aqui apresentados. Apesar de já ser uma modalidade também histórica, agora começa a ganhar mais espaço nas pesquisas e figurar como modalidade artística. Os espaços onde as intervenções ocorrem são aspectos importantes das reflexões suscitadas pelas autoras e autores. Dentre estes espaços, destaca-se intervenções realizadas em ruínas, como trazem os ensaios visuais de Fabrício Barreto na cidade de Pelotas-RS, Brasil, e Ágata Sequeira em Almada, Portugal. Estes trabalhos convidam a pensar o graffiti e as novas modalidades de intervenção na cidade em uma relação com espaços degradados e com aspecto de abandono. Em ambos os casos, o cenário de desindustrialização marcado pelo passado ligado às atividades comerciais ganha novas cores, expressões e usos no presente. Evidencia-se como as ruínas, enquanto matéria da cidade, são espacialidades desejadas por muitos artistas urbanos. Fabrício Barreto, ministrando Vol. 03 num.05 - 2018 - Arte Urbana - p. 06 - 11

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uma oficina de fotografia com estudantes secundaristas, enfoca nas descobertas destes espaços marcados por intervenções que são vividas por estes estudantes na cidade de Pelotas. Ágata nos sugere pensar nas variações entre as obras presentes num mesmo lugar que remetem, de um lado, ao sentido transgressor dessas formas de arte e, de outro, as comissionadas que refletem uma aceitação num público mais amplo. O tema das políticas urbanas associadas aos processos históricos de criminalização e legalização de intervenções urbanas também aparecem constantemente nos ensaios, implicando na consideração de que não há como trazer imagens de intervenções urbanas sem tocar no tema da ilegalidade e do lugar marginal de muitos contextos em que ocorrem estas práticas. A pichação, ou a pixação como colocam alguns autores que se referem a especificidade desta intervenção na cidade de São Paulo, mostra-se com a principal representante das expressões urbanas quando falamos nas dinâmicas políticas das formas “ilegais” de apropriação do espaço público. São nos trabalhos de Adauany Zimovski e Rodrigo Romanus Dantas que percebemos uma tentativa de demonstrar como este processo se dá imageticamente. Escritas incompreensíveis à maioria das pessoas, Adauany chama atenção para como estas formas de inscrição revelam uma disputa discursiva e, remetendo às ideias da filósofa Márcia Tiburi sobre o pixo, considera como poderiam figurar enquanto efeitos de uma insurgência democrática no ambiente urbano. Preencher fachadas e paredes brancas com pixação surge, então, como um chamado de alguns grupos em favor de sua forma de codificar e se apropriar do espaço. Já Rodrigo Dantas parte de uma loja especializada em arte de rua (street art) para trazer algumas imagens de graffitis e pixos. Sua intenção é abalar dicotomias rápidas entre legal/ilegal, vandalismo/arte e graffiti/pixação a partir de vivências dos praticantes entre a rua e a loja. Outra dimensão evidenciada nos ensaios visuais aqui presentes é o reflexo da globalização nas práticas de intervenções urbanas. Além de Almada, Portugal, com Ágata Sequeira, e os diversos contextos no Brasil, representados por ensaios realizados nas cidades de Belém, Jacareí, Curitiba, Santa Maria e Pelotas, contamos também com as experiências de captação de imagens e intervenções em diferentes cidades na América Latina com o coletivo Outros Hermanos. Em um trabalho que não se limite ao registro de imagens, exploram sua própria produção de intervenções nos espaços com lambes de imagens (des)construindo cenários. O projeto das autoras intitulado “Otros Hermanos” demonstra uma sensibilidade 8

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estética aguçada sobrepondo imagens e nos fazendo pensar sobre formas de representar e compor os contextos urbanos. Ainda neste registro da globalização destas experiências, cabe mencionar o trabalho de Cristiane Menezes apresentando a artista Marcela Echeverría pintando frases pelas ruas de Santa Maria. De naturalidade Argentina, mas já erradicada na cidade brasileira há bastante tempo, Marcela, em busca de formas de se expressar, conheceu a proposta do escritor mexicano Armando Alanís Padro de “Accion Poética” e, em comunicação com ele, passou a integrar o projeto preenchendo de poesia os muros brancos da cidade. O lema central que encontramos nas fotografias parece uma lembrança que poderia se direcionar para os habitantes das mais diversas cidades ao se pensar nas intervenções artísticas nestes espaços: “sin poesia no hay ciudad”. Outro aspecto notável nas pesquisas sobre as expressões urbanas a ser evidenciada neste volume é a presença feminina neste meio, seja como pesquisadora abordando temáticas de gênero, ou mesmo como produtoras de muitas intervenções. No que se refere a estas questões, Thayanne Freitas e Danilo Asp apresentam algumas dimensões interessantes deste cruzamento com gênero na reflexão sobre expressões visuais na cidade. Thayanne apresenta um ensaio com mulheres realizando graffitis em Belém do Pará alçando um olhar “duplamente político” para pensar suas atuações. Sugere como esta forma de expressão pode ser articulada com a marginalização de mulheres na ocupação de espaços públicos, seja por questões do próprio mundo do graffiti, ou por aspectos da condição feminina de modo mais geral na sociedade. Neste sentido, seu ensaio nos traz a potência das redes para criação de mais fissuras nas formas de resistência a padrões hegemônicos. Danilo Asp traz imagens do processo de criação de uma grafiteira intervindo artística e politicamente também na cidade de Belém com pinturas e dizeres de cunho crítico feminista, como a frase “Meu corpo, minhas regras”, recorrente em muros de outras cidades do país. Além disto, estes trabalhos são importantes por remeterem a uma “virada gestual” nas pesquisas sobre intervenções artísticas urbanas. Não se trata de uma produção imagética da versão final da intervenção, mas o acompanhar dos seus processos de produção. Vol. 03 num.05 - 2018 - Arte Urbana - p. 06 - 11

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Todos os trabalhos runidos nesta edição do Fotocronografias nos convidam a conjecturar como a antropologia tem muito a contribuir com os estudos de imagem, arte e cidades, principalmente quando expressa versões particulares de como os habitantes de metrópoles contemporâneas vivenciam seus cotidianos cruzando com estas formas de intervenções, ou as produzindo. Temos um exemplo disto no trabalho de Ronaldo Corrêa que traz imagens de colagens nas paredes da cidade de Curitiba que compõem o trabalho etnográfico realizado pelo autor. Paralelo à sua captura de imagens devaneando pela cidade, discute como estas formas de expressão convidam os habitantes a descobrir nuances e produzir sentidos com o espaço. Assim, o autor nos conduz a pensar como todos estes trabalhos são frutos de pesquisas e descobertas de elementos particulares para explorar os meios de como a arte faz sua morada na cidade. É em Ranciere (2005) que encontramos o tema da escrita conceituado enquanto “partilha do sensível”. Talvez esta seja uma pista ao pensarmos as dimensões de uma etnografia das gestualidades nas pesquisas sobre intervenções artísticas urbanas: uma tag, de um personagem urbano, de um cartaz a base de cola são partilhas de afetos e sensibilidades. Assim, os ensaios aqui presentes nesta edição da revista Fotocronografias nos instigam a refletir que mais interessante do que se questionar o que são intervenções artísticas contemporâneas, poderíamos partir para uma pergunta mais profícua: como estas expressões urbanas são vivenciadas no cotidiano da cidade? Além dos agradecimentos às diversas contribuições que compõem este número da Revista Fotocronografias, o qual não contou com nenhum tipo de financiamento, esta edição não seria possível sem Felipe Rodrigues e Matheus Cervo do corpo técnico e editorial da Revista. Desejamos à leitora e ao leitor curioso sobre o tema das intervenções artísticas urbanas uma boa leitura!

Jose Luis Abalos Junior Yuri Rosa Neves Doutorandos em Antropologia Social PPGAS/UFRGS

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“Acción Poética S.M.”: uma narrativa biográfica de Marcela Echeverría Cristiane Penning Pauli de Menezes¹ Resumo: A arte urbana e sua inserção nas paredes da urbe é uma polêmica que ganha guarida nas discussões da sociedade complexa. Muitos rechaçam as práticas de grafismos urbanos, com argumentos pautados na propriedade privada e na estética. Santa Maria é emblemática nos grafismos urbanos, porém, dentro do rol de aceitação estética encontra-se Marcela Echeverría e a “Acción Poética”. O objetivo deste ensaio é trazer sua narrativa biográfica e fazer imbricações com as dinâmicas culturais nas sociedades complexas. Palavras-chave: Arte Urbana. Cidades. Graffiti. Poesia. Sociedades complexas.

“Poetic Action “: a biographical narrative of Marcela Echeverría Abstract: The urban art and its insertion in the walls of the city is a controversy that gains shelter in the discussions of the complex society. Many reject the practices of urban graphics, with arguments based on private property and aesthetics. Santa Maria is emblematic in urban graphics. However, within the list of aesthetic acceptance is Marcela Echeverría and “Poetic Action”. The purpose of this essay is to bring its biographical narrative and make overlap with cultural dynamics in complex societies. Keywords: Urban art. Cities. Graffiti Poetry. Complex Societies.

1 Doutoranda em Processos e Manifestações Culturais (FEEVALE). Mestre em Direito (UFSM). Graduada em Direito (FADISMA) e no Programa Especial de Graduação para Professores (UFSM). Pós Graduada em Direito (UNIFRA). Concessão de Incentivo Interno: FEEVALE.

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Este ensaio possui o escopo de descortinar e trazer em estreitas linhas os caminhos de Marcela, idealizadora do “Acción Poética S.M.”. A história da argentina cruza os pagos do Rio Grande do Sul e ali inicia uma importante marca para a arte urbana santa-mariense. Marcela Echeverría nasceu em 1969, na cidade de Buenos Aires. A história daquela menina cruzou com a de Santa Maria depois de muito tempo. Ainda jovem, terminara o ensino médio e ali nasciam dúvidas sobre seu futuro profissional. Sobre si, Marcela sabia algumas coisas: gostava de letras, de literatura, de filosofia, de sociologia e história. Resolveu aventurar-se com o curso de jornalismo. Faltou empolgação. Tentou ciência da computação e o olho não brilhou. Encontrou um curso técnico em jornalismo e ali achou mais: uma guinada em sua trajetória estava por vir. O tempo passa e Marcela conhece uma pessoa no jornalismo, com o qual veio morar no Brasil. Se trata do pai de seu filho. A família dele é oriunda de Santana do Livramento. Cidade em que o jovem casal fez morada por um ano e meio, aproximadamente, e depois vieram para Santa Maria. Junto do casal vem uma importante página da Arte Urbana para a cidade: chega a “Acción Poética”. A “Acción Poética” foi criada pelo escritor mexicano, Armando Alanís Padro. O autor começou movido pela vontade de publicar poesia, atrelada a dificuldade em fazer impressões com as empresas editoriais. Resolveu sair para rua e começar a pintar. Escolhia o fundo branco e a letra preta, imitando a página de um livro. E assim ele começou. Ao ver de Marcela, a poesia faz um diálogo com quem passa. Ela tomou coragem e perguntou se podia fazer a ação em Santa Maria. Armando responde que sim e passa normas. Depois disso, ela se põe a pensar: “E agora? Eu que vou sair pra rua pintar?” Lembrou que fazia muito tempo que passava todos os dias por um muro grande com bastante visibilidade. Munida de coragem deu o primeiro passo a um projeto que modifica a estética de toda uma cidade. Escreveu “sin poesia no hay ciudad”. A cidade mudou.

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As sociedades complexas trazem seu bojo a importância das dinâmicas culturais no âmbito das cidades e tais dinâmicas se caracterizam pela heterogeneidade e descontinuidade. Para Velho, pode-se auferir que a principal característica das sociedades complexas está na coexistência de diferentes visões de mundo e de estilos de vida (2003, p.14). E, é justamente essa heterogeneidade de saberes dentro do mesmo espaço que gera conflitos. A metamorfose anunciada por Velho é processo social pelo qual, através da mobilidade contínua entre códigos, faz com que o indivíduo se reconstrua permanentemente. Nesta sociedade é possível verificar não tão somente códigos e discursos diversos, mas, também, posições diversificadas sobre diversos temas. É justamente essa maleabilidade e fluidez que configura um dos aspectos mais cruciais para a compreensão das sociedades complexas no âmbito dos grandes conglomerados de pessoas: as cidades. É possível, a partir dos estudos de Simmel, compreender o motivo pelo qual a inserção da arte urbana não é bem recepcionada por fragmentos da sociedade, uma vez que o indivíduo não inserido neste contexto de arte tende a repelir as manifestações que fogem à sua lógica de normalidade. Marcela é bem aceita. Ela possui autorização dos proprietários para inserir sua arte nos muros e isso a coloca em um patamar de estética pouco questionada. No âmbito das sociedades complexas não é possível conceber uma linha homogênea de práticas e saberes. E, mesmo assim, a sociedade quer ser uma totalidade e uma unidade orgânica, de maneira que cada um de seus indivíduos seja apenas um membro dela (SIMMEL, 2006, p.84). Mesmo há vinte anos em Santa Maria Marcela escreve em espanhol. Escolhe frases com carinho e espalha amor nos brancos das paredes frias.

Referências: SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia: Indivíduo e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 2003. 149p. Leituras: Unidade e Fragmentação em sociedades complexas.

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Quando a galeria é a cidade Ronaldo de Oliveira Corrêa¹

Resumo: O texto problematiza a cidade como suporte e mediação para um tipo de experiência urbana cada vez mais comum, a intervenção de agentes das visualidades contemporâneas. Recorro à coleção do projeto da série_na rua_em Curitiba. Esse projeto é uma coleção de imagens produzidas na etnografia da e na cidade de Curitiba- PR. Proponho refletir a respeito dessas plásticas para problematizar como essas intervenções transpõem não somente uma relação estética, mas também, uma revisão de práticas de arte. Palavras-chave: etnografia de rua, colagens, arte urbana.

When the gallery is the city Abstract: The text problematizes the city as support and mediation for a kind of urban experience that is becoming increasingly widespread — the intervention of agents of contemporary visualities. I turn to the collection of the project da série_na rua_em Curitiba (in_the_street_in Curitiba series). This project is a collection of images produced in the ethnography of and in the city of Curitiba-PR. I propose to reflect on these plastics to problematize how these interventions transpose not only an aesthetic relation but also a revision of art practices. Keywords: street ethnography, collage, urban art.

1 Universidade Federal do Paraná, Setor de Artes, Comunicação e Design, Departamento de Design. http://lattes.cnpq.br/3869130149433615

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INTRODUÇÃO Esse texto apresenta a cidade como suporte e mediação comunicacional para um tipo de experiência urbana cada vez mais comum, a saber, o uso das superfícies da cidade como galeria para a intervenção de agentes que chamo de especialistas das visualidades contemporâneas. Recorro a uma coleção do projeto da série_na rua_em Curitiba. Esse projeto é uma coleção de imagens digitais produzidas na etnografia da e na cidade de Curitiba-PR, realizada desde 2008. A coleção é organizada nas categorias: colagens, inscrições e pinturas, estêncil e instalações. Tomo a categoria das colagens como objeto de estudo. Esse gênero permite discutir não somente aspectos plásticos de sua materialidade, mas, e sobretudo, os conteúdos temáticos. Esses conteúdos, instância comunicativa entre o agente e a sociedade, provoca o interlocutor a responder aos questionamentos de forma reflexiva, ou mesmo ativa (interferindo, rasgando, sobrepondo, etc.). Esclareço que trabalho a partir de registros e não diretamente com os objetos plásticos; por consequência disso, a colagem é mediada pela imagem e pelas intencionalidades do fotógrafo, sendo os recortes parte da materialidade da intervenção. Problematizo como essas intervenções que encontramos diariamente transpõem não somente uma experiência estética de construção e intervenção da paisagem urbana, mas também, e principalmente, uma revisão de conceitos e práticas no tempo presente. A GALERIA-MURO. NO MURO A MATERIALIDADE DAS VOZES SOCIAIS O percurso não foi traçado, optei por vagar pelas ruas de Curitiba. Minha disposição era a de fazer nada, deixar-me atravessar pelos prédios e casas, pelos ritmos de abertura das lojas e comércios de rua e pela experiência de estar na cidade. O caderno de notas foi atualizado no telefone celular e sua multifuncionalidade (câmera, mapa, arquivo). A única decisão tomada foi olhar para o pequeno, o ínfimo; aquelas marcas que se mimetizam ou conflitam com a publicidade, colonizam os muros, as portas, o mobiliário urbano (diário de campo, out., 2016). Foi em 2017 que li o “Tentativa de esgotamento de um local parisiense” do Georges Perec. Esse autor francês esteve presente nas minhas leituras, seja para a fuga literária, seja para o enfrentamento da escrita sobre o cotidiano. O “Tentativa de esgotamento…” possibilitou-me a reflexão sobre o registro e anotação de rastros deixados por um tipo especial de ator social que denomino especialista na (re)construção da paisagem urbana; a saber, artistas, designers, militantes, poetas de rua, entre outros, que ocupam a cidade como suporte e mediação para marcar sua presença e voz.

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Perec nos convida à experiência de estar na cidade. Um convite radical de ultrapassar a objetividade da vida espetacular da cidade e atentar para os acontecimentos insignificantes da vida cotidiana. Ele nos provoca a enxergar a cidade como um ato consciente (SILVA, 2016). E, assim, buscar o sentido e a presença do tempo na cidade contemporânea. Acredito que o tempo de Perec seja similar às rítmicas da vida urbana (ROCHA e ECKERT, 2013). “Esboço de inventário de algumas coisas estritamente visíveis” (PEREC, 2016:14). Dessa forma inicia o dia 1, narrado por Perec na sua tentativa de esgotar a Praça Saint-Sulpice, em Paris. Tomo esse início para o inventário imagético de coisas que encontro no meu caminho: uma parede verde contém uma mulher sentada a olhar para nós na calçada. Uma porta fechada de onde um homem velho caminha no ar. Uma caixa de fios onde um religioso, em vestes ornamentadas, carrega sua própria cabeça. Em uma parede, bem pequeno, o encontro de um homem caracol e uma mulher alface. Em um orelhão, uma mão florida sustenta palavras de ordem. Em outro muro, uma manifestação de solidariedade feminista. Uma moça vira as costas para a calçada. Em uma caixa, um desejo frustrado: “quero morar em Curitiba”. Nessa mesma caixa, uma assertiva: “Lute como uma garota”. Perto da padaria, uma análise sociológica da política nacional. Na escadaria da galeria do TUC, corpos desnudos interpelam nosso moralismo. Ao lado desse desnudamento, palavras de ordem e amor. Numa parada de ônibus, um telefone nos comunica “o problema são os outros”, mas “a solução são os outros”. Num poste de iluminação, uma sobreposição nos pergunta “quem é o inquilino que mora em mim?” e, sobre essa, uma moça torna visível as resistências às prescrições para os corpos. Como uma crítica poética, um leve dançarino salta a catraca que poderia ser do ônibus, do cinema ou da vida. TENTATIVA DE FALAR SOBRE O QUE NÃO TEM IMPORTÂNCIA “Há muitas coisas na praça Saint-Sulpice (…) Grande número, se não a maior parte, dessas coisas já foram descritas, inventariadas, fotografadas, expostas ou arroladas. Meu propósito (…) foi mais o de descrever o restante: aquilo que em geral não se nota, o que não tem importância (…)” (PEREC, 2016: 11)

Movido por esse propósito apresentei nesse texto a superfície da cidade como um suporte e mediação para as vozes sociais que constituem a experiência urbana. A cidade, constructo histórico e humano, é atravessada por matérias que se acumulam em seus muros e que a fazem ter múltiplos significados e agentes. Por vezes, naquilo que não se pretende importante, interpelações são realizadas e respondidas. “Algumas letras do alfabeto”, “alguns símbolos convencionais” e “algumas cifras” configuram algumas aberturas passageiras para a vida urbana. Basta olhar (com o barulho de tráfego por trás) para esgotar o lugar e, assim, reconstruir ou contranarrar as figurações da vida social.

Referências: ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. 2013. (orgs). Etnografia de Rua. Estudos de Antropologia Urbana. Porto Alegre: Editora da UFRGS. SILVA, R. L. 2016. “Prefácio: Experiência do inútil, enfim”. In: PEREC, G. Tentativa de esgotamento de um local em Paris. São Paulo: Gustavo Gili. pp. 7–10. PEREC, G. 2016. Tentativa de esgotamento de um local em Paris. São Paulo: Gustavo Gili.

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Transitar pelas cidades sul-americanas: uma experiência a partir dos lambes urbanos Otros Hermanos: Roberta Filgueiras Mathias¹, Beatriz Fazolo Nogueira Miguel² Resumo: O Otros Hermanos é um projeto amplo de pesquisa visual e audiovisual em contínua elaboração a partir de viagens pelos países da América do Sul. A partir da experiência transitando / caminhando por essas cidades, apresentamos neste ensaio nossas reflexões através da produção de lambe-lambes (parte de uma produção gráfica conceitual que temos desenvolvido a partir das relações entre antropologia, design e artes). Em uma tentativa de compreensão e de estabelecimento de conexões, criamos e nos deslocamos nesses espaços sobrepondo imagens como uma forma de co-existir e interferir na paisagem urbana. Palavras-chave: Lambe-lambes, cidades, paisagem gráfica da cidade, América do Sul.

Abstract: Otros Hermanos is a visual project research from South America’s countries. From to experience to walk through the cities-metropolis, we present in this work our reflections through the production of urban arts (part of a conceptual production that we seek with the construction of the relations between anthropology, design and arts). Trying to understand and establish connections, we create and transit in these spaces overlapping images as a way of co-existing and interfere in the urban landscape. Keywords: Urban arts, cities, city graphic landscape, South America.

1 Doutoranda de Antropologia Social na Universidad Nacional de San Martín, Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e graduada em Ciências Sociais pelaPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É professora convidada do IUPERJ/UCAM na pós-graduação em Fotografia e Imagem onde leciona disciplinas que trabalham com a relação entre Antropologia e Visualidades. Pesquisadora do GRAPPA-Grupo de Análises de Políticas e Poéticas Audiovisuais. http://lattes.cnpq.br/3104292258472067 2 Designer formada em Desenho Industrial — Programação Visual pela Universidade Estácio de Sá e pós-graduação em Design Estratégico pela ESPM-RJ, tendo cursado xilogravura pelo Sesc-Rio e Design e Arte Contemporânea: Identidade e Comunicação Visual na Casa França-Brasil. Atua como designer freelancer em projetos gráficos e pesquisadora independente em temas relacionados à Design, Artes e Cultura Latino-americana. http://lattes.cnpq.br/0890282250419695

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Nosso trânsito pelas cidades sul-americanas e o projeto que desenvolvemos durante esses anos³ faz parte de um esforço para compreender e estabelecer conexões, criar e recriar laços a partir de experiências acadêmicas e artísticas. Os lambes produzidos são uma parte desse processo e, nesse ensaio, iremos nos debruçar sobre a produção dos mesmos. Pensar a produção desses lambes a partir de suas características técnicas talvez sirva inicialmente para trazer à tona conceitos com os quais procuramos trabalhar. As ideias de território fluido, de espaços múltiplos e complexidade da realidade sul-americana que nos acompanham ao longo de nossos diálogos e experiências sobre essas cidades podem ser entendidas aqui a partir de uma proposta oposta a de George Perec. A provocação é pela tentativa de não esgotamento de um lugar. Nossas imagens não possuem identificação espacial ou temporal. Ainda que possamos dizer que as imagens aqui expostas são de Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Buenos Aires, Lima, Cuzco e Santiago , essas cidades no sentido que pretendemos trabalhá-las, poderiam ser substituídas por qualquer grande ou média cidade sul-americana. Não trabalhamos com a proposição ingênua de que todas as cidades são iguais, pois temos consciência das particularidades de cada cidade e cada país, mas apresentamos nuances que podem conectar esses território. Partimos das diferenças entre lugar e espaço tal qual Marc Augè entendendo o espaço como dotado de valor simbólico e da ideia de Canclini de culturas híbridas (e o hibridismo se torna essencial em nossa maneira de vivenciar essas cidades), mas nosso pensamento também é voltado para a ideia de acontecimento.

3 O Otros Hermanos é um projeto de pesquisa visual e audiovisual em contínua elaboração a partir de viagens pelos países da América do Sul no qual trabalhamos as relações entre antropologia, design e arte.

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É o efêmero que nos interessa. E aquilo que permanece dessa efemeridade. Assim como nos próprios lambes, as imagens apresentadas em geral não prezam pela fixidez , ou seja, não são reproduções de estereótipos desses espaços, mas há algum grau de cultura sul-americana que se pode pressentir nas imagens. O que se perde e o que permanece dessa cultura sul-americana e sem que adentremos o universo do estereótipo? O que isso pode nos dizer sobre o que é ser sul-americano na contemporaneidade? Como nos fortalecer a partir dessas semelhanças, mas também a partir dessas diferenças?

Nesse sentido, nossos trabalhos são mapas afetivos atemporais e um convite para aqueles que transitam pelas ruas experimentarem essas transposições de espaços e tempos. Os lambes são uma maneira de permanecer sempre em trânsito, co-existindo com os lugares em uma troca constante. Esteticamente também é muito importante esse transitar reverberado agora pelos passos do outro e a ampliação da capacidade de comunicação a partir de inúmeras linguagens. As intervenções realizadas nas fotografias que produzimos ao longo desses trajetos, buscam sobrepor ou distorcer umas às outras. Novas imagens são geradas e criamos novos espaços, inexistentes fisicamente, mas que resistem em nossas memórias. Por sua vez, as intervenções geradas pelos interlocutores urbanos seguem sobrepondo esses lugares. Referências: AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994, 111p. CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. 2ª edição. São Paulo: Edusp, 1998. 392p FABARON, Ana Clara Sobre la apropiación de símbolos culturales y una reflexión sobre posibles metodologías de investigación antropológica que combinen aportes del campo del arte, en Papeles de Trabajo, Año 6, Nº 9, junio, pp. 277–281. ISSN 1851–2577. SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar Martins Fontes; 2016, 512 páginas O CONCEITO DE LUGAR. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.087/225> Acesso em: 26 maio 2018.

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Pichação/graffiti em Santa Maria: imagens, piscadelas e coisas que os olhos não podem ver Rodrigo Nathan Romanus Dantas¹

Resumo: Este ensaio apresenta imagens de itinerários de campo da etnografia que desenvolvi no mestrado, na qual busquei compreender a construção da inteligibilidade dos acontecimentos acerca da pichação/graffiti em Santa Maria. Essas narrativas visuais sugerem inversões, recombinações e transbordamentos semânticos das categorias binárias (legal/ilegal, limpo/sujo, certo/errado, luz/sombra, belo/feio…) que tendem a dar o tom do debate público sobre o tema. Formas heterodoxas de classificação. Palavras-chave: Pichação/graffiti. Categorias binárias. Transbordamentos semânticos. Imagens.

Pichação/graffiti in Santa Maria: images, winks and things eyes can not see Abstract: This essay presents images of itineraries of the ethnographic research that I developed in the master’s degree, in which I tried to understand the construction of the intelligibility of the events about pichação/graffiti in Santa Maria. These visual narratives suggest inversions, recombination, and semantic overflows of binary categories (legal / illegal, clean / dirty, right / wrong, light / shadow, beautiful / ugly …) that tend to set the tone of public debate on the subject. Heterodox forms of classification. Keywords: Pichação/graffiti. Binary Categories. Semantic overflows. Images

1 Professor e historiador, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria, Brasil. Lattes:http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4319731A0

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Uma das primeiras questões que aparecem nos debates sobre pichação/graffiti: “Qual é a diferença entre pichação e graffiti?”. Costumo dizer que, do ponto de vista da lei, pichação é a pintura feita sem a autorização do proprietário ou gestor do imóvel, algo ilegal, e o graffiti é a prática autorizada, legal. Do ponto de vista dos indivíduos que riscam e colorem as paredes da cidade, entretanto, a fronteira entre as duas classificações é bastante porosa, ou seja, os praticantes transitam entre elas. Em geral, os grafiteiros, os que pintam de forma autorizada, são ou já foram pichadores em algum momento de suas trajetórias. Há também uma questão de status e reconhecimento. Em um contexto x, um indivíduo pode se identificar como grafiteiro ou artista, em uma situação y, o mesmo sujeito pode preferir se identificar como pichador, vandal, como dizem. Por isso, uso os termos unidos e, ao mesmo tempo, separados pelo sinal gráfico de uma barra: pichação/graffiti e pichadores/grafiteiros. Além do mais, no vocabulário dos pichadores/ grafiteiros de Santa Maria, há termos híbridos: artista criminoso, vandal art, grapixo… Em linhas gerais, para o Estado o que está em jogo na classificação é a questão do direito à propriedade; para os pichadores/grafiteiros, são as questões estéticas e de reconhecimento. Este ensaio traz algumas imagens dos caminhos que percorri pela cidade para chegar a essas formas heterodoxas, não binárias, de classificação da prática de riscar e pintar as superfícies urbanas. Ensaia-se, aqui, uma leitura pós-estruturalista do estruturalismo (Viveiros de Castro 2008), um olhar atento às ondulações e fraturas do ato universal de classificar. A narrativa começa em uma loja de street art, propriedade de um dos principais pichadores/grafiteiros de Santa Maria, desdobrando-se pelas ruas.

Imagem 1

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Nas imagens 1 e 2, vemos que, por parte da loja, enquanto estabelecimento comercial, há a necessidade de construir sua visibilidade (RANCIÈRE 2005) a partir da classificação estatal, ou seja, a que distingue pichação (ilegal, não autorizada, crime) e graffiti (legal, autorizado, arte); mais especificamente, mostrar-se como um lugar que trabalha com street art (arte de rua). No entanto, essa iniciativa de adequação à norma é endereçada principalmente aos burocratas da fiscalização municipal e aos visitantes “de primeira viagem”, pois, para quem está mais atento e familiarizado com os termos e gírias próprios dos pichadores/grafiteiros, os transbordamentos em relação à dicotomia saltam aos olhos em qualquer mirada. Na imagem 3, por exemplo, temos um quadro, também pendurado na parede da loja, onde há um desenho e a frase “Viva o grapixo art”, um termo híbrido. No detalhe de uma das camisetas (a azul claro) comercializadas pela loja, na imagem 4, há a estampa que diz: “Rabiskx Graffiti Bombardeio Pixo”. Rabisco, bomb e pixo são termos que remetem à prática ilegal. Nesse sentido, como bem assinalou Clifford Geertz (1978), é importante saber distinguir uma “piscadela” de um “tique nervoso”. Os avisos colados nas paredes da loja (imagens 1 e 2), que tratam pichação e graffiti como pares opostos, encenam uma espécie de “piscadela” entre os pichadores/ grafiteiros, pois estes sabem muito bem que as coisas são mais complexas.

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Essa distinção e, ao mesmo tempo, esse trânsito entre as classificações pichação (crime, ilegal…) e graffiti (arte, legal…), em um jogo de visibilidade/invisibilidade, assim como a variedade e mistura de termos (grapixo art, rabisco, bombardeio, pixo…) inscritos em tais artefatos (nos avisos, anúncios, quadros, camisetas…) espalhados pelo interior da loja, também se reproduzem nos muros e paredes da cidade, bem como nas falas dos pichadores/grafiteiros.

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Nas imagens 5, 6 e 7, há inversões. 5 e 6 são pinturas feitas de forma autorizada, legal (graffiti, do ponto de vista da lei), no muro de escolas. Na imagem 5, lê-se, entretanto, o detalhe “So + pixo”, que pode ser traduzido para “sou mais pixo”, quiçá, “prefiro o pixo”. De mesma forma, na imagem 6, vemos um personagem que diz “I love vandal”, ou seja “eu amo vandal”, sendo que vandal, no vocabulário dos pichadores/grafiteiros, é um termo que faz referência à prática ilegal. Já na imagem 7, a inversão se dá no sentido contrário, um stencil (molde vazado) que diz “somos todos grafiteiros” (segundo a definição estatal, aqueles que pintam de forma autorizada), feito de forma não autorizada, ilegal (pichação, do ponto do Estado), na parede de um salão paroquial.

Imagem 8

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Nas imagens 8 e 9, podemos ver que, da parte dos pichadores/grafiteiros, não há uma renúncia total às classificações depreciativas e rotulações que frequentemente lhes são atribuídas. A partir delas são redefinidos os sentidos de se ser praticante da pichação/graffiti e os elementos de distinção social. Na imagem 8, uma pichação, na lateral de um edifício, assinada por um pichador que se coloca como “ladrão de paredes”. Na 9, um que assinou em um muro “poluição visual”. Essas imagens são uma pequena amostra de como se dão os transbordamentos, as inversões e as recombinações das categorias binárias (legal/ilegal, limpo/sujo, certo/ errado, belo/feio, visível/invisível…) do ato universal de classificar. Não se trata simplesmente de pichação (ilegal, sujo, feio, errado, crime…) versus graffiti (legal, limpo, bonito, arte…), mas também de grapixo art, pixo, vandal, arte de rua, roubo de paredes, poluição visual…. Mais do que um ato de significação do mundo, trata-se de uma significação com o mundo, trânsito entre ordenação e desordenação. 62

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Referências: GEERTZ, Clifford. 1978. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar. RANCIÈRE, Jacques. 2005. A Partilha do Sensível. São Paulo: EXO experimental. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Claude Lévi-Strauss, fundador do pós-estruturalismo. Conferência ao Colóquio Lévi-Strauss: un siglo de reflexión, Museo Nacional de Antropología, México, 19 de novembro de 2008.

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Detalhe ou fragmento? Olhar em partes a paisagem urbana no cotidiano da cidade: corte & ruptura imagéticas no registro fotográfico do grafitti Danilo Gustavo Silveira Asp¹

Resumo: Ensaia-se como pensar em partes se traduz no ato de olhar e registrar a paisagem urbana, numa relação ambígua, observada na dicotomia entre detalhes e fragmentos imagéticos. É o jogo entre o corte e a ruptura, entre reconstituição ou reconstrução de dada realidade, a partir de cacos ou estilhaços. Com efeito, o registro fotográfico da arte de rua, como o grafite, permite investigar a anfibologia pertinente a desmontagem ou desconstrução do todo, a partir do clique, que o divide em pedaços. Palavras-chave: Detalhe ou fragmento. Corte e ruptura imagética. Paisagem e arte urbana. Grafite. Walter Benjamin.

Abstract: One rehearses how to think of parts is translated into the act of looking and registering the urban landscape, in an ambiguous relation, observed in the dichotomy between details and fragments of images. It is the play between the cut and the rupture, between reconstitution or reconstruction of a given reality, from shards and shards. Indeed, the photographic record of street art, such as graffiti, allows us to investigate the amphibology pertinent to the disassembly or deconstruction of the whole, from the click, which divides it into pieces. Keywords: Detail or fragment. Landscape & urban art. Graffiti. Walter Benjamin.

1 Universidade Federal do Pará (UFPA), Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPLSA), Laboratório Estudo Linguagem, Imagem e Memória (LELIM). Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/6517145716873221.

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INTRODUÇÃO Na geometria da superfície ótica da fotografia, uma parte pode ser definida tanto como fragmento ou detalhe. No cotidiano, ao caminhar pelas ruas e observar a arte urbana, o registro imagético de um pedaço destas, representa detalhe ou fragmento? É de cacos e estilhaços que se trata. Adequado para principiar é considerar os vestígios e suas associações: a ideia de pensar em partes (LISSOVSKY 1995: 15), principalmente à paisagem urbana, dinâmica, permeada por dialética constante. No ensaio a grafiteira Carla Raiol ao expressar sua arte ativista-engajada nos muros de Bragança-Pará, forneceu material que, além de abordar a crítica social pertinente ao feminismo, igualmente, o registro de seu trabalho possibilitou desenvolver debate teórico-estético a respeito do uso da imagem como ferramenta de estudo no campo da antropologia visual a partir da questão proposta por Benjamin: a ambivalência entre detalhe-ou-fragmento. FRAGMENTO CINTILANTE A tradição crítica legou-nos dois modos de pensar a parte em sua relação com o todo. Uma vez que os termos são interdefinidos, a relação entre eles é a de uma divisão. (CALABRESE 1989: 84–92). Por um lado, há o corte, plano — fruto de um desmonte –, constitui-se em detalhe (modelos reconstitutivos; descritivos; análise hipotético-dedutiva; recepção por recolhimento e atenção). Por outro, há a ruptura, rompimento fractal na geometria — espalham-se estilhaços, advindos de uma desconstrução — neste caso, a parte é um fragmento, uma “centelha” (modelos reconstrutivos; explicativos; investigação indutiva; recepção por hábito e distração). O detalhe permite reler o sistema pois dele foi extraído provisoriamente, porém, o fragmento gera análise conjectural, já que o sistema original está ausente. O contexto das imagens diz respeito a um evento organizado pela Prefeitura: 16 Dias de Ativismo pelo Combate à violência contra a Mulher. O conjunto das atividades incluiu passeata, projeções fílmicas, debates, grafitti, e o próprio registro imagético das ações. Note-se que a intervenção, além de autorizada, pois fazia parte da programação oficial, foi financiada pelo executivo municipal, que pagou pelas tintas. Portanto, não era um ato clandestino tampouco se tratava de “vandalismo”. Sem embargo, a polícia foi acionada, e a artista e o fotógrafo foram abordados. É notório que a prática do grafitti passa constantemente por marginalização-criminalização, e que a arte retratada foi concebida sob a marca de questões políticas. Porém o que mais incomodou os policiais foi o ato de cobrir o rosto, haja vista que naquele período, final do ano de 2013, o país perpassara por momentos de crise que engendraram tumultuosos protestos populares, nos quais militantes dos movimentos sociais “mascarados” sofreram repressão oriunda dos enfrentamentos entre a polícia e os manifestantes naquilo que se convencionou chamar de Jornadas de Junho, principiadas pelos atos do “Passe Livre”. 66

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A narrativa visual não expôs o momento de tensão pois obrigou-se o fotógrafo a desligar o equipamento, fato que pode ser observando na diferença de enquadramento nas imagens onde os policiais aparecem, pois foram feitas sem olhar através do visor da câmera. Todavia, após os esclarecimentos — o lenço não era para esconder a identidade, mas para proteger dos espirros de tinta — os agentes da lei retiraram-se e o grafitti foi concluído. Aquele muro não mais existe; e tais observações sobre as intervenções — a artística e a repressora — também podem ser avaliadas pela ótica dual de detalhe-fragmento. No entanto, o episódio permite analisar através do registro imagético, como as ações artístico-políticas nas ruas, revelam o modo como os sujeitos forjam relações com o Estado, marcadas impreterivelmente pela força e poder. Considerando então a foto nº 15, percebe-se o Fragmento Cintilante: uma “colagem de memórias extrapoladas de seus contextos” (BENJAMIN 1984: 204), que “insere-se em uma estrutura cuja organicidade lhe é autônoma; é desarqueologizado, jamais remetendo ao seu hipotético inteiro” (LISSOVSKY 1995: 19). CONSIDERAÇÕES FINAIS Entre os gestos de acionar, ajustar, focar, desligar, disparar, foi cheio de consequências o click, que fixa um acontecimento por período ilimitado de tempo. A máquina comunica ao instante um “choque póstumo”. O instante destaca-se e o acontecimento se cristaliza sob “configuração saturada de tensões.” Aí, a fotografia pode tornar-se mônada (“espelho do mundo”), “transcendendo aquilo que nela é detalhe ou fragmento” (LISSOVSKY 1995: 95). Benjamin define aura [fotográfica] como uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja (LÖWY 1989: 85). As imagens, enquanto espaço do imaginário humano, social e individual, permitem àquele que usufrui, também “roer um pedaço da realidade” (SAMAIN 2003: 48). Mesmo forjada como ferramenta para discutir a epistemologia da prática antropológica, a imagem é um artefato cultural, uma linguagem (BARBOSA; CUNHA 2006: 07), portanto, possibilita aprofundar a investigação etnográfica acerca das relações dialéticas construídas pelo sujeito com os semelhantes, consigo mesmo — memória — e com o espaço que habita e transforma; convive, observa e registra, nestes tempos de civilização da imagem. Referências: BATISTA, Jandré Corrêa. 2010. “A fotografia como discurso: alteridade, etnografia e comunicação”. In: Revista Anagrama, 3(4): 1–15. BARBOSA ,Andréa; CUNHA, Edgar Teodoro da. 2006. Antropologia e imagem. Rio de Janeiro: Zahar. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, pp. 165–192. CALABRESE, Omar. 1989. La Era Neo Barroca. Madrid: Cátedra. LISSOVSKY, Mauricio. 1995. A Fotografia e a Pequena História de Walter Benjamin. Dissertação de Mestrado em Comunicação, Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Escola de Comunicação. Rio de Janeiro. LÖWY, Michel. 1989. Redenção e Utopia. São Paulo: Companhia das Letras. SAMAIN, Etienne. 2003. “Antropologia de uma imagem “sem importância”. In: Ilha, 5(1): 47–64.

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Arte Urbana e Espaços Expectantes: Intervenções clandestinas e projectos comissionados nos terrenos da antiga Lisnave (Almada, Portugal) Ágata Dourado Sequeira¹

Resumo: A relação entre arte urbana, nas suas diferentes expressões, do graffiti à street art, com a ruína e as edificações em situação de abandono é tão antiga como a sua prática. Com este ensaio visual pretendo partir de um contexto muito específico — o dos terrenos da antiga Lisnave em Almada (Portugal) — para ilustrar a coexistência de diferentes formas de criatividade, diferentes práticas e diferentes significados subjacentes à arte urbana, enquanto mundo social em crescente complexificação. Palavras-chave: arte urbana, street art, graffiti, edificado em abandono, ruína, legal/ilegal. Abstract: The relationship between urban art, in its diferente expressive forms, from graffiti to street art, and the ruin and abandoned builings, is as old as the practice itself. With this visual essay I aim to start from a very specific context — the site of the old Lisnave in Almada (Portugal) — to illustrate the coexistence of different forms of creativity, different practices and different meanings that underlie urban art, as a social world that is growing in complexity. Keywords: urban art, street art, graffiti, abandoned buildings, ruins, legal/illegal.

1 https://orcid.org/0000-0002-3615-9457 Investigadora no CICS.NOVA / FCSH-UNL. Doutorada em Sociologia e actualmente desenvolvendo investigação no projecto “TransUrbArts” — Emergent Urban Arts is Lisbon and São Paulo, (IF/01592/2015) — projecto financiado pela FCT/MEC. O CICS. NOVA / FCSH-UNL é também financiado por fundos nacionais através FCT/MEC (UID/SOC/04647/2013).

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A Lisnave foi um estaleiro naval de grandes dimensões — onde existiu, aliás, a dado momento, a maior doca seca do mundo. Situado em Almada, cidade na margem sul do rio Tejo, esteve em actividade de 1967 a 2000, tendo fechado as portas precisamente no último dia do século XX². O impacto desta estrutura na vida económica e social da cidade foi considerável, e o seu fecho um evento traumático para boa parte da população local. Desde o seu encerramento até ao momento presente, a estrutura permanece, já sem os equipamentos e maquinarias, mas com todo o edificado — armazéns, oficinas, estaleiros, cantinas e edifícios de escritórios. E também permanece esse inusitado ex-libris desta cidade, o gigantesco pórtico vermelho de 300 toneladas, como memória de um passado industrial que, apesar dos planos de dinamização imobiliária para esses terrenos, ainda não deu lugar ao que se sucederá. Um espaço expectante, portanto. Visitei os terrenos da antiga Lisnave em Fevereiro de 2018³, com o intuito de ver de perto as diversas intervenções que o conhecido artista urbano Vhils lá tinha feito — e que só são visíveis ao vivo na parte de dentro do recinto. Percorrendo aquelas ruas, edifícios e armazéns vazios de gente, onde vestígios da história social e industrial do espaço são visíveis por todo o lado, pude também observar uma considerável variedade de intervenções, cujos intuitos seguem uma combinatória de transgressão, expressividade, criatividade e intuito artístico. Expressões que vão desde o graffiti, com todos os seus sentidos de subversão e clandestinidade, à arte comissionada e em grande escala de Vhils, passando por murais em spray de artistas diversos, feitos sem autorização, ou intervenções feitas com o intuito de figurar em videoclips de bandas 4. A observação destas intervenções sugeriu-me estar perante um palco onde as várias formas de arte urbana coexistem, nos seus significados, intuitos e contextos de produção. Se no momento presente assistimos a processos de artificação e comodificação das diferentes expressões de arte urbana, que já não se cingem ao acto espontâneo e individual de intervir na parede de uma rua, havendo uma crescente tendência de recurso a trabalhos comissionados por parte das entidades públicas locais e também por entidades privadas e comerciais, bem como o recente fenómeno de uma crescente presença de alguns dos seus artistas em galerias comerciais, ou em museus, marcando o mercado da arte (Bengtsen, 2014, Campos, 2015, Sequeira, 2016, Schacter, 2014). Um espaço como a Lisnave mostra a coexistência de ambos, servindo como palco quer para o graffiti e a street art com intuito de desafio, de transgressão (Campos, 2010) — através da intervenção artística e criativa ilegal, quer para a exibição de intervenções comissionadas por artistas urbanos consagrados. 82

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Carlos Fortuna associa a ruína à «expressão alegórica da conflitualidade urbana de todos os tempos» (Fortuna e Leite, 2013:112), considerando-a parte marcante e inerente das grandes cidades. As ruínas, marcantes «traços de uma história social suspensa» (Fortuna e Meneguello, 2013:234), na sua «dignidade feita de silêncios» (Silva, 2014:17) — testemunham o passado das cidades e também o seu presente, no que refere nomeadamente às questões em torno da gestão política e econômica do espaço urbano. A relação entre o graffiti e a street art e as ruínas ou os espaços urbanos em situação de abandono ou degradação, é tão antiga quanto próxima. Não só porque numa primeira instância constituem telas pouco vigiadas e de potencial visibilidade (in loco ou virtual), sendo que ao mesmo tempo podem suscitar uma vontade de expressão por parte dos intervenientes em relação ao meio urbano onde vivem. Não indiferente a estas questões será também um certo fascínio por estas estruturas, menos qualificável mas igualmente possível em tantos que fazem da experiência urbana uma prática expressiva. A arte urbana, a relação entre o artista, o observador e a cidade (Waclawek, 2011) contribuem para a construção do espaço público urbano, na medida em que, ao ocupar estruturas físicas urbanas, desloca as fronteiras do privado e do público, como também pode constituir fonte de estímulo de diálogo e discursos sobre o espaço público urbano (op.cit). A este fenómeno não é indiferente um certo carácter de resistência e de desafio quando há uma apropriação dos elementos urbanos (Caeiro, 2014). É nesse sentido que a ocupação de fachadas e estruturas degradadas por intervenções criativas pode constituir uma acção expressiva, um questionamento sobre os destinos da cidade e sobre os poderes que a controlam, além de um estímulo ao discurso e diálogo sobre estas questões e sobre os papéis que os cidadãos podem ter nesses destinos. Mais do que um questionamento, há neste assinalar de espaços urbanos por elementos artísticos um efeito inerente (e porventura inesperado) de proposta de acção sobre o espaço público, pelos seus cidadãos, já que produzir arte nas ruas é em si uma forma de contestar determinados usos e noções de espaço público (Sequeira, 2016a). Mesmo que essas intervenções não sejam necessariamente visíveis in loco ao comum dos transeuntes urbanos — como é o caso das que existem nos terrenos da antiga Lisnave. Actualmente a questão da ‘visibilidade’ da arte urbana tem também um componente virtual fortíssimo. O desafio e a transgressão inerentes ao acto de intervir num espaço como este, privado, mas sentido como ‘público’ no sentido em que faz parte da história recente da cidade — e por isso emocionalmente apropriado por tantos — Vol. 03 num.05 - 2018 - Arte Urbana - p. 80 - 95

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completam-se com a documentação das intervenções para consumo em redes sociais (Sequeira, 2016b). Foi também essa a lógica inerente às intervenções de Vhils, a de elaborar peças para serem sobretudo acedidas virtualmente, não já sob a égide da transgressão, mas da comissão. Finalizando, pode-se dizer que são o “direito à cidade” (Lefebvre, 2012), a ‘transgressão’ e a ‘comodificação’ — os eixos aparentes do momento que o mundo da arte urbana parece atravessar, e que parecem coexistir neste espaço expectante e singular que são os terrenos da antiga Lisnave na Margueira, em Almada.

2 https://www.publico.pt/2000/12/31/jornal/o-fim-do-grande-estaleiro-153120 3 Aproveito para agradecer a autorização do Senhor Arquitecto Luís Azevedo Machado, Diretor Adjunto do Conselho de Administração — Margueira SGFII, S.A., que me permitiu aceder às instalações, tornando possível a recolha fotográfica aqui presente. 4 Como os graffiti de subtracção de Vhils para as bandas U2 e Buraka Som Sistema, ou a pintura em spray do símbolo da banda de metal Moonspell. Referências: BENGTSEN, Peter. 2014. The street art world. Almendros de Granada Press. CAEIRO, Mário. 2014. Arte na Cidade: História Contemporânea, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores. CAMPOS, Ricardo. 2015. ‘Graffiti, street art and the aestheticization of transgression’, Social Analysis 59 (3), pp. 17–40. CAMPOS, Ricardo. 2010. Porque pintamos a cidade? Uma abordagem etnográfica ao graffiti urbano, Lisboa: Fim de Século. FORTUNA, Carlos e LEITE, Rogério Proença (org.). 2013. Diálogos Urbanos: Territórios, Culturas, Patrimónios, Coimbra, Almedina / CES. FORTUNA, Carlos e MENEGUELLO, Cristina. 2013. ‘Escombros da Cultura: O Cine-Éden e o Teatro Sousa Bastos’, in Fortuna, Carlos e Leite, Rogério Proença (org.), Diálogos Urbanos: Territórios, Culturas, Patrimónios, Coimbra, Almedina / CES, pp.233–258. LEFEBVRE, Henri. 2012. O Direito à Cidade, Lisboa, Letra Livre. SCHACTER, Rafael. 2014. ‘The ugly truth: Street Art, Graffiti and the Creative City’, in Art & the Public Sphere, 3 (2) pp. 161–176. SEQUEIRA, Ágata. 2016a. ‘Ephemeral Art in Impermanent Spaces: The effects of street art in the social construction of public space’, in Guerra, P.; Costa, P.; Neves, P. S. (eds.), Urban Interventions: Street Art and Public Space, Lisbon: Urban Creativity (internacional). ISBN 978–989– 97712–6–0 SEQUEIRA, Ágata. 2016b. ‘A cidade é o habitat da arte’: Street art e a construção de espaço público em Lisboa, Tese de Doutoramento em Sociologia, Lisboa, ISCTE-IUL. SILVA, Gastão de Brito e. 2014. Portugal em Ruínas, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos. WACLAWEK, Anna. 2011. Graffiti and Street Art, London: Thames & Hudson.

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Todas as fotografias presentes neste ensaio visual são da autoria de Miguel Almada.

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Pixo-narrativas e estética da fachada Adauany Zimovski¹

Resumo: O presente ensaio fotográfico foi realizado num percurso pelas ruas centrais de Jacareí, município localizado a 90km da cidade de São Paulo. A constatação da presença massiva da pixação nas superfícies urbanas pode revelar-se como a possibilidade de uma outra leitura desse importante fenômeno urbano. Palavras-chave: pixação, Jacareí-SP, discurso, estética da fachada Abstract: This photographic essay was carried out along the central streets of Jacareí, a municipality located 90km from the city of São Paulo. The observation of the massive presence of the pixação in the urban surfaces reveals the possibility of another reading of this important urban phenomenon. Keywords: pixação, Jacareí-SP, discourse, aesthetics of the façade

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil (Mestra em História, Teoria e Crítica de Arte pelo PPGAV-UFRGS). http://lattes.cnpq.br/4237105909618056

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A s formas e condutas codificadas da pixação são muitas vezes indicadas como uma das causas da sua repulsa pela sociedade, pois é algo que não conseguimos ler, ou seja, um código que não dominamos, não partilhamos dos significados dessas inscrições. A partir desta perspectiva, somos não-alfabetizados. Por essa razão, muitas pesquisas em diferentes campos (antropologia, sociologia, psicanálise, artes visuais, entre outros) oferecem elementos que possibilitam uma aproximação à essa alteridade. A pixação, como toda escrita manuscrita, é o testemunho de uma narrativa singular de quem a escreve, ou seja, é a escritura de uma subjetividade coletiva fundamentalmente urbana. Dessa forma o discurso ganha vigor ao evidenciar o local da fala, enaltecendo suas formas próprias e até mesmo uma grafia própria (pixação com “x”)², operando pequenas mudanças linguísticas conforme os usos práticos e cotidianos da língua, uma espécie de escrita vernacular. Segundo Michel Foucault, em todas as sociedades a produção do discurso é “controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2003, p. 9). O imaginário da pixação estabelece um contraponto aos discursos hegemônicos sobre a marginalidade, que devido a sua amplitude e legitimação são considerados “oficiais”. A psicanalista Ludmilla Zago constrói um interessante paralelo ao associar essa atividade tão extrema ao conceito de parresia³, citando Foucault que, por sua vez, retoma o termo da Grécia antiga. Para ele, “a parresia deve ser procurada do lado do efeito que seu próprio dizer-a-verdade pode produzir no locutor” (FOUCAULT, 2010, p. 56). Assim, o discurso da pixação envolveria inevitavelmente um risco ao seu enunciador para além do risco que ele próprio se impõe (o risco de ser preso, de cair). Logo, para Zago, a dificuldade de assimilação do pixo na convivência da cidade se dá pela sua honestidade inconveniente, uma “coragem [de dizer a verdade] que não pretende convencer nem ensinar”4 . Marcia Tiburi elabora a ideia de uma estética da fachada, conceito que permeia seu pensamento em torno da pixação e diz respeito a um jogo de aparências que alterna opacidade e visualidade no contexto da construção de uma visão de mundo — e simultaneamente de um mundo visual:

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“Não é possível negar o direito ao muro branco ou liso em uma sociedade democrática, na qual está sempre em jogo a convivência das diferenças. O direito ao muro branco é efeito da democracia. Mas a questão é bem mais séria do que a sustentação de uma aparência ou de um padrão do gosto. [A pixação] é efeito do mutismo nascido no cerne da democracia e por ela negado ao fingir a inexistência de combates intestinos e velados. A pixação é, neste sentido, a assinatura compulsiva de um direito à cidade. (TIBURI, 2010)

A estética da fachada explica como a porção superficial da propriedade privada carrega em si a eloquência e a lógica do poder simbólico. É nesse “lugar”, ou seja, o lugar transformado em conceito, que se desenvolve a ideia de que o cinza ou o branco sejam neutros. No entanto, a “neutralidade” é um dado em si que produz à sua maneira um discurso sobre o qual a pixação exerce uma espécie de horror vacui, o temor ao espaço “em branco”. É também uma forma de ruinenlust, conceito usado para explicar uma relação de prazer diante de ruínas. A ruína é a urbanidade selvagem, cuja deterioração é seu apelo erótico. Ao leitor da pixação fica implícito o convite a ver além dessa escrita-código, a resgatar, através de suas frestas, uma reflexão sobre o perecível e a obsessão pela manutenção contidas na estética da fachada.

2 Escrita com “x”, pixação designa um tipo de intervenção nativa de São Paulo. Esta grafia é utilizada por seus praticantes, cuja principal característica é o alfabeto codificado e estilizado. A forma dicionarizada, escrita com “ch” se refere ao ato de escrever ou rabiscar dizeres de qualquer espécie e apresenta geralmente a literalidade ou legibilidade. 3 Segundo Foucault, parresia é frequentemente traduzida por ‘fala franca’, ‘liberdade de palavra’, sendo que um dos significados originais da palavra é ‘dizer tudo’ (FOUCAULT, 2010, p. 42). 4 Seminário “Juventude e Pixação — Marcar/Ser marcado”, realizado pelo Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, em julho de 2013. Disponível em: https://www.mixcloud.com/paraleila/pixo-al%C3%A9m-do-bem-e-do-mal-por-ludmilla-zago/. Acesso em: 07 nov. 2017. Referências: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2003. __________. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982–1983). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. TIBURI, Marcia. Pensamento PiXação. In: Revista Cult, nº 135, 2010. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/pensamento-pixacao/. Acesso em: 13 nov. 2017.

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Mulheres e graffiti: construindo imagens nas ruas de Belém do Pará Thayanne Tavares Freitas¹

Resumo: Este ensaio fotográfico traz alguns momentos etnográficos de mulheres grafitando em Belém do Pará, região Amazônica. Nas imagens busco protagonizar a participação destas mulheres na cena do graffiti no norte do Brasil, relacionando o estar na rua como forma de reivindicação de uma comunicação imagética por meio do graffiti. A hostilidade encontrada na rua, muitas vezes provocada pela presença de minorias, é mais tensionada quando está atrelada a uma arte marginalizada como o graffiti. Palavras-chave: graffiti; mulheres; Amazônia; reivindicação; espaço; visibilidade. Abstract: This photographic essay brings some ethnographic moments of women graffiti in Belém do Pará, Amazon region. In the images I seek to lead the participation of these women in the graffiti scene in the north of Brazil, relating the being on the street as a way of claiming an image communication through graffiti. The hostility found in the street, often provoked by the presence of minorities, is more tense when it is tied to a marginalized art such as graffiti. Keywords: graffiti; women; Amazon; claim; space; visibility.

1Doutoranda em Antropologia pelo PPGAS/UFRGS Bolsista CNPQ Lattes: http://lattes.cnpq.br/1393601607851756

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Mulheres no graffiti. Como ainda existem dúvidas sobre a sua participação na arte urbana? Compreendendo o graffiti a partir da sua ligação direta com o movimento Hip Hop, a participação de mulheres, mesmo que em condição minoritária, está contida em diversas pesquisas como Magro (2003), Ganz (2006), Macdonald (2006), Silva (2008), Moreno (2011), Herse (2012) e daí por diante. A permanência destas mulheres em uma atividade artística repleta de desafios, como é o graffiti, traz múltiplas dificuldades. Esse contexto se mostra hostil pela tentativa de ocupação dos espaços públicos e por essa arte ser vista com estigma, como periférica e muitas vezes ilegal juridicamente (exceto nos casos em que os muros são cedidos pelos proprietários). Quando mulheres conseguem romper com os estereótipos e preconceitos que surgem, nesta busca de visibilidade e reconhecimento, é possível ampliar a perspectiva de constituição do que seria o graffiti. Pude compreender melhor o assunto no final de 2014, quando participei de uma oficina de graffiti oferecida por uma grafiteira paraense, em que o principal objetivo era formar novas mulheres grafiteiras e que o ato de pintar fosse duplamente político. De início, uma mulher chegar a pintar o seu primeiro muro, possivelmente tenha passado anteriormente por múltiplas situações que a fizessem desistir, como: a associação da mulher a um espaço privado em que a rua fica cada vez mais distante de se ocupar; uma suposta fragilidade contida neste corpo feminino; algumas questões que envolvem a compra de material e em outros casos mais específicos a maternidade, e a condição de cuidadora exclusiva de seu filho. Segundo, após essa miscelânea de desafios, quando finalmente essa mulher chega nos muros, ela precisa provar para muitos que o lugar dela também é estar na rua podendo construir uma nova relação com esse espaço, comunicando-se imageticamente por meio desta vivência. Quando Michelle Cunha trouxe a proposta da oficina, era uma mulher atraindo outras mulheres para essa nova forma de vivenciar e se relacionar com esse espaço urbano. E não só isso, mas comunicar lutas muitas vezes silenciadas. Neste sentido, trago nesta sequência de imagens a vivência dessas mulheres que muitas vezes retratam a si próprias nos muros da cidade de Belém do Pará. Nas imagens a seguir aparecem as artistas: Ka Miranda, Ster, Juh e Luan (Freedas Crew), Camila (ex integrante das Freedas Crew), Michelle Cunha, Tica Loss (grafiteira de Porto Alegre), Daniella e Heloisa (Vida Loka Crew), Mina Ribeiro, Kah (grafiteira de Manaus) e artistas participantes do evento Motyrô: manas no muro. 112

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Referências: Ganz, N. 2006. Graffiti woman: graffiti and street art from five continents. London: Thames & Hudson. Herse, L. F. H. 2012. Aproximaciones al análisis sobre graffiti e género en México. Revista de Estudios Urbanos y Ciencias Sociales 2(2): 133–141 Machado, T. P. A. 2011. Graffiti girl: contributos para uma identidade feminina no contexto da produção de graffiti e de street art em Portugual. Dissertação de Mestrado. Mestrado em Design da Imagem, Universidade do Porto, Porto. Macdonald, N. 2006. The Feminine Touch: The highs and lows of the female graffiti experience. In: Graffiti Woman. Editado por Nicholas Ganz, pp. 12–13. London: Thames & Hudson. Magnani, J. G. C. 2002. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais 17(49):11–29. Magro, V. M. 2003. Meninas do graffiti: educação, adolescência, identidade e gênero nas culturas juvenis contemporâneas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de Campinas, Campinas. Moreno, M. 2011. Mulheres no muro: grafites e grafiteiras em Salvador. Dissertação de Mestrado. Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Silva, V. 2008. As escritoras de grafite de Porto Alegre: um estudo sobre as possibilidades de formação de identidade através da arte. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação

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Mapeando graffiti: uma experiência pedagógica Fabricio Barreto¹

Resumo: O ensaio que segue integra minha pesquisa de dissertação, cujo objeto é o graffiti da região portuária de Pelotas/RS, área antiga da cidade que hospedou um imponente pólo industrial. Hoje, parte dos prédios das fábricas estão em ruínas e a aparência de abandono e degradação tornou-se ambiente de prática do graffiti. Sob a perspectiva desta arte urbana e assumindo a caminhada como técnica de apreensão da cidade, apresento pressupostos e desenvolvimento de oficina realizada com alunos do ensino fundamental. Palavras-chave: Graffiti. Percepção. Caminhada. Paisagem Urbana. Educação.

Mapping graffiti: a pedagogical experience Abstract: The test that follows incorporates my dissertation research, whose object is the graffiti of the port region of Pelotas/RS, ancient area of the city that hosted an impressive industrial pole. Today, part of the plant buildings are in ruins and the appearance of abandonment and degradation became graffiti practice environment. From the perspective of this urban art and taking the walk as a technique of seizure of the city, I introduce assumptions and development workshop conducted with students of basic education. Keywords: Graffiti. Perception. Walking. Urban landscape. Education.

1 Mestrando no Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGAnt) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). CV lattes: http://lattes.cnpq.br/3082951793368318

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Conhecer a cidade é apropriar-se de parte de um conhecimento do mundo, dos saberes e fazeres dos habitantes em suas experiências e práticas cotidianas que o etnógrafo compartilha em sua meta-observação, desvendando a lógica de situar seu próprio ser em relação ao ser do Outro que se desloca na cidade. (ECKERT&ROCHA, 2013:22)

Segundo Tim Ingold (2005), o mapear assemelha-se a conhecer na medida que as pessoas se movem de um lugar para outro em uma região. Isso não significa que o conhecimento seja parecido com um mapa, ou que mapear seja o mesmo que elaborar um mapa. O mapa é a forma visível que expressa uma determinada maneira de relacionamento dos indivíduos com o espaço geográfico, nos oferecendo uma representação pré-objetiva das coisas no espaço independente de algum ponto de vista particular. Enquanto o mapa tem a marca do espaço institucionalizado com suas normas que regulam os acessos e as práticas sociais, o mapear se constitui no caminho. O desafio aqui é não suprimir o conhecimento gerado pelo movimento de lugar para lugar, eliminando as práticas e itinerários que contribuíram para sua produção. Pelo contrário, o propósito é trazer à tona o vivenciado, os movimentos de idas e vindas pelos quais desenvolvemos o conhecimento de um ambiente e coisas, estabelecendo conexões e equivalências entre lugares. Busco chamar a atenção para o fato de que conhecer requer movimento. Uma escultura, por exemplo, exige ser vista em movimento, por alguém que percorra seu entorno. Como aponta Peixoto, é a partir de uma “dialética de andar e olhar que se constitui a experiência escultórica” (2003:179), uma experiência corporal que nos possibilita assimilar a cidade, seja pela visão, pelo tato, pelo contato, pelos pés. “O pitoresco pressupõe um caminhante, alguém que constrói sua percepção a partir do movimento, não do olhar” (PEIXOTO, 2003:179). Portanto, percebemos enquanto nos movemos e não apenas nos intervalos entre movimentos. Santaella nos diz que “a proposta de Merleau-Ponty (1994:48) é considerar a percepção como o primeiro acesso que temos às coisas e como fundamento de todo conhecimento” (2012:18), logo, conhecemos enquanto nos movemos. Esta afirmação está baseada no fato de que a observação não consiste em ter um ponto de vista fixo sobre o objeto, mas em variar o ponto de vista mantendo fixo o objeto. “Percepções no mundo real não envolvem um observador estacionário, […], mas um observador ativo que constantemente movimenta seus olhos, cabeça e corpo com relação ao ambiente” (SANTAELLA, 2012:59). São vários pontos de vista simultâneos: mais atrás, adiante, mais à frente, do outro lado, mais acima. “Essa visão [ou percepção] ambulatória ocorre ao longo daquilo que Gibson (1979:195–197) chama de ‘trilha de observação’” (INGOLD, 2005:86). Assim, a escultura não é vista de alguma parte, mas de parte nenhuma, ou melhor, de toda parte. A partir dessas considerações, é possível 128

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afirmar que conhecemos enquanto caminhamos, e não antes de caminhar. Portanto, para assimilarmos a cidade e, consequentemente, os graffitis, é necessário vivenciarmos ambos através da caminhada. Estas diretrizes orientaram a realização da oficina que tive a oportunidade de ministrar para alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental Dr. Francisco Simões, em Pelotas/RS. A atividade se desenvolveu em torno de caminhada, previamente roteirizada, para visualização do graffiti na região portuária pelotense. O propósito da atividade visava oportunizar aos participantes a identificação de técnicas e diferenciação de traços do graffiti, constituindo uma base para assimilação da dinâmica que envolve a aplicação de inscrições urbanas nas superfícies da cidade. O graffiti é formado por códigos que muitas vezes são incompreendidos por aqueles que não estão envolvidos com a prática. A leitura de escritas urbanas requer aprendizado e treino do olhar para reconhecimento das grafias desta arte de rua. A caminhada, portanto, foi seguida de informações que instrumentalizaram a apreensão e assimilação destas inscrições. Antes de iniciarmos a atividade, cada aluno recebeu um mapa da região que iríamos percorrer, sobre o qual, foram incentivados a realizar marcações durante a caminhada. O percurso era de aproximadamente 4km com previsão de 2h de duração. O ritmo de caminhada deveria permitir uma observação contínua seguindo o fluxo do andar e parar. Uma caminhada sistemática, intensa, que se deixasse impregnar pelos estímulos sensoriais durante o percurso. Segundo Michel de Certeau (1998), o ato de caminhar está para o sistema urbano assim como a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos. Caminhar, portanto, implica em três efeitos enunciativos: a apropriação do sistema topográfico (como a apropriação de uma língua), a realização espacial do lugar (como a realização sonora da palavra) e a relação entre posições diferentes (enunciação verbal como alocução, põe em jogo contratos entre colocutores). Neste sentido, Certeau encontra uma primeira definição para o ato de caminhar como espaço de enunciação e, com isso, sugere uma retórica da caminhada. O que inicialmente era a planificação de uma mera representação espacial em forma de mapa, ganhou outros contornos, nuances e significados. Referências: CERTEAU, Michel de. 1998. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Ed. Vozes. 3ªed. Petrópolis. ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho. 2013. Etnografia de rua: estudos de antropologia urbana. Porto Alegre, Ed. UFRGS. GIBSON, James. 1979. The ecological approach to visual perception. Boston: Houghton Mifflin. INGOLD, Tim. 2005. “Jornada ao longo de um caminho de vida — Mapas, descobridor-caminho e navegação”. Religião e Sociedade, 25(1):76– 110. MERLEAU-PONTY, Maurice. 1994. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes. PEIXOTO, Nelson Brissac. 2003. Paisagens Urbanas. São Paulo: editora SENAC São Paulo. SANTAELLA, Lucia. 2012. Percepção: fenomenologia, ecologia, semiótica. São Paulo: Cengage.

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