Linguagens visuais: literatura, artes e cultura

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LINGUAGENS VISUAIS LITERATURA. ARTES. CULTURA

HEIDRUN KRIEGER OLINTO KARL ERIK SCHØLLHAMMER DANUSA DEPES PORTAS (orgs.)



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Reitor Pe. Josafá Carlos de Siqueira SJ Vice-Reitor Pe. Álvaro Mendonça Pimentel SJ Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos Prof. José Ricardo Bergmann Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo Vice-Reitor para Assuntos Comunitários Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Prof. Sergio Bruni Decanos Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz (CTCH) Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS) Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC) Prof. Hilton Augusto Koch (CCBS)


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HEIDRUN KRIEGER OLINTO KARL ERIK SCHØLLHAMMER DANUSA DEPES PORTAS (orgs.)


© Editora PUC-Rio Rua Marquês de S. Vicente, 225, Casa da Editora PUC-Rio Gávea – Rio de Janeiro – RJ – CEP 22451-900 Telefone: (21)3527-1760/1838 edpucrio@puc-rio.br www.puc-rio.br/editorapucrio Conselho Gestor Editora PUC-Rio Augusto Sampaio, Danilo Marcondes, Felipe Gomberg, Hilton Augusto Koch, José Ricardo Bergmann, Júlio Cesar Valladão Diniz, Luiz Alencar Reis da Silva Mello, Luiz Roberto Cunha e Sergio Bruni. Revisão de texto: Giovanna Corbucci, Henrique Lopes, Leandro Salgueirinho de Oliveira, Marco Alexandre de Oliveira, Mariana Perelló, Matheus Ribeiro, Rafael Gutiérrez Giraldo e Samyres Amaral Freitas Projeto gráfico de miolo e capa: Flávia da Matta Design Imagem de capa: Laura Erber Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Linguagens visuais: literatura, artes e cultura / Heidrun Krieger Olinto, Karl Erik Schøllhammer, Danusa Depes Portas, organizadores. – Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2018. 400 p.: il.; 23 cm Inclui bibliografia ISBN: 978-85-8006-236-6 1. Arte e literatura. 2. Imagem na literatura. 3. Cultura. I. Olinto, Heidrun Krieger. II. Schøllhammer, Karl Erik. III. Portas, Danusa Depes. CDD: 808.80357 Elaborado por Lizandra Toscano dos Santos – CRB-7/6915 Divisão de Bibliotecas e Documentação – PUC-Rio


SUMÁRIO Literatura, cultura e artes no espaço visual, 07 Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schøllhammer O que é uma imagem?, 17 W.J.T. Mitchell Transvisuality: on visual mattering, 67 Anders Michelsen Marmotas em vista (1849-1864), 93 Bruno Guimarães Martins Imagens mi(g)rantes, 117 Danusa Depes Portas Literatura e fotografia: entre conceito e representação, 151 Elisa Maria Amorim Vieira Ver para ler: Cícero Dias e Mário de Andrade, 161 Eneida Leal Cunha Waly Salomão: entre o olho fóssil e o olho míssil, 177 Frederico Coelho Escrita-imagem-teoria. Encontros, 187 Heidrun Krieger Olinto Tradução intersemiótica, ciborgues e inferência abdutiva, 205 João Queiroz e Pedro Atã Escrevendo realidade: estratégias de presença e inscrição na cultura brasileira e contemporânea, 217 Karl Erik Schøllhammer Afinidade e morfologia em W. G. Sebald, 229 Kelvin Falcão Klein


Lygia Pape: entre a geometria e a etnografia, 243 Luiz Camillo Osorio Nem estética nem cosmética: um debate sobre o cinema contemporâneo a partir da revisão da sua relação com a fome, 253 Miguel Jost O contador de histórias como imagem: sobre vanguarda e tradição nos contos de Walter Benjamin, 269 Patrícia Lavelle Rastros de Babel: do texto às telas da pintura e do cinema, 281 Renato Cordeiro Gomes Ver: desaparecer, 305 Rosana Kohl Bines A “polpa da cor”: a persistência do dispêndio na teoria neoconcreta de Ferreira Gullar, 321 Sérgio B. Martins Gráfica expandida: sobre algunas relaciones entre espacio público, imágenes y textos, 341 Silvia Dolinko Práticas literárias e exercícios do ver: a revolução dos suportes, 355 Vera Lúcia Follain de Figueiredo O olhar e os olhares de um artista brasileiro na Segunda Guerra Mundial: o “Caderno de Guerra” do Pracinha Carlos Scliar, 367 Vinicius Mariano de Carvalho Sobre os autores, 385


O QUE É UMA IMAGEM?

LITERATURA, CULTURA E ARTES NO ESPAÇO VISUAL Heidrun Krieger Olinto Karl Erik Schøllhammer

A expansão incessante de configurações escriturais na literatura em diálogo com as artes visuais demanda um olhar atento a sobrevivências, cruzamentos e projetos inaugurais que imprimem a sua marca nas práticas contemporâneas. Inseridas em contextos históricos sociais, culturais, artísticos e geopolíticos cambiantes, elas perturbam, causam estranheza e fascinação, e desafiam formas de controle ensaiadas pela reflexão crítica. O presente volume, Linguagens visuais. Literatura. Artes. Cultura, inicia-se com a tradução do texto de W. J. T. Mitchell “O que é uma imagem?” – publicado em 1986 com o título original “What is an Image?” – que, referência clássica para os estudos da imagem, destaca-se pela imensa fortuna crítica e repercussão nas últimas décadas. As questões por ele tematizadas, elas próprias herdeiras de tradições de longa duração nos estudos literários e na história da arte, continuam vivas na discussão atual. Os ensaios que compõem a coletânea não se referem necessariamente de modo explícito ao texto de Mitchell, mas permitem reflexões acerca da atmosfera intelectual, cultural e política que motivou as indagações da chamada Virada Icônica1 (iconic turn) e acerca das questões que ainda hoje suscitam e inspiram novas respostas. Neste quadro, emergem pequenos repertórios teóricos, hipóteses criativas, intuições singelas sem consenso que oferecem vislumbres acerca de possíveis 1 Desde o início da década de 1990, Mitchell propõe o termo Pictorial Turn em lugar do Iconic Turn, que para o próprio Mitchell pertencia estreitamente à tradição de Warburg a Panofsky e Gombrich. Mitchell foi, entretanto, o reformulador principal deste conceito de iconologia, identificado com “o que se diz sobre as imagens” e, ao mesmo tempo, com o estudo de “o que as imagens dizem”. Isso aparece já no livro Iconology: Images, Text, Ideology (1986) de onde o ensaio aqui traduzido foi recopilado depois de sua publicação em 1984 no periódico New Literary History, v. 15, n. 3, spring, 1984, p.503-537 Image/Imago/Imagination.

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regimes de visualidade atuantes no espaço literário e artístico atual. Foi nesta expectativa que se realizou, em abril de 2017, o XIV Seminário Internacional de Estudos de Literatura, promovido pelo grupo de pesquisa do CNPq Tendências Contemporâneas nos Estudos de Literatura, vinculado ao Programa de Pós-Graduação Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Desde o primeiro evento, em 1999, dedicado a novas epistemologias, os seminários se caracterizam pela crescente inclusão de tópicos temáticos vinculados aos estudos literários marcados por travessias de fronteiras e intercâmbios crescentes com a comunidade internacional. A reformulação do Programa de Pós-Graduação, em 2011, contribuiu significativamente não só para a ampliação do repertório teórico, mas igualmente para a expansão de práticas de pesquisa e ensino nos estudos comparativos de literatura, que situam a investigação da escrita contemporânea numa perspectiva interartística e transmidiática aberta às dimensões visual, plástica, tátil e auditiva. Neste contexto, o livro Linguagens visuais. Literatura. Artes.Cultura, apresenta um leque de trabalhos interdisciplinares em torno da noção do visual como chave para interpretar e interrogar experiências estéticas contemporâneas na literatura e nas outras artes. Em contraste com o texto seminal de Mitchell, as discussões e propostas reverberam três décadas depois estilos e interesses de conhecimento alterados. Anders Michelsen condensou este espírito no conselho – “but the right question is: what then, what now?” – formulado como convite a revisitar noções de imagem, linguagem e representação e a refletir sobre configurações, permanências, transmutações, lugares, papéis e sentidos do visual e dos regimes de visualidade nas constelações alteradas do século XXI. Neste horizonte, Michelsen abre novas dimensões ao visual além de noções de imagem e representação. O seu projeto teórico, em sintonia com estruturas sistêmicas complexas, distingue-se pela defesa do poder gerativo do visual que, em obras de arte, adquire formas de modelização do mundo. No texto “Transvisuality – On Visual Mattering”, a sua análise da expansão cultural da visualidade em sociedades contemporâneas distancia-se, deste modo, de concepções tradicionais de representação e interpretação, ao identificar a atuação autopoiética do visual como organização estruturante do próprio social. Esta performatividade, entendida como visual mattering e transient mattering, corresponde à dinâmica da visualidade como ato de presentificar o mundo em sua materialidade transiente em constante 8


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movimento. Esta operação co-criadora do mundo, interconectada em redes de práticas culturais plurais de todas as esferas da vida, encontra uma tradução exemplar no conceito de transvisualidade proposto pelo autor. Se por um lado os artigos articulados em torno do visual exibem uma heterogeneidade de preferências epistemológicas, teóricas, metodológicas, éticas, estéticas e de estilos escriturais que espelham a pluralidade criativa de tendências, projetos e interesses em circulação, por outro lado, o pequeno prefixo trans marca presença em todas as contribuições dedicadas às linguagens visuais, operando como espécie de denominador comum em suas distintas formas nominais, verbais e adverbiais e nas múltiplas configurações compósitas que sinalizam movimentos e deslocamentos espaciais e temporais: transitar, transformar, transbordar, transferir, transcrever, transfigurar e transcriar... O olhar sobre uma série de periódicos intitulados Marmotas, folha de moda e variedades, publicados ininterruptamente de 1849 e 1864, motiva Bruno Guimarães Martins a refletir sobre as aproximações entre a experiência do espectador de imagens e o leitor de ficção oitocentista. No ensaio “Marmotas em vista (1849-1864)” ele descreve como a ilusão promovida em dispositivos pré-cinematográficos a partir da imagem técnica bidimensional transfigurou-se, àquele momento, em narrativa ficcional na mídia impressa. Além de circunscrever particularidades da constituição de um circuito comunicativo literário no Brasil, Martins investiga especialmente alusões a um tipo de lanterna mágica, que iluminam novas articulações entre o visual e a escrita, lançando uma luz importante sobre o cenário gráfico, onde foram ensaiados alguns dos primeiros movimentos do narrador de ficção na imprensa brasileira. Circunscrevendo a hibridação dos campos disciplinares e a relação entre o visível e o dizível como problemas-chave, o ensaio VJing de Danusa Depes Portas, “Imagens mi(g)rantes”, distingue transformações que afetam de modo direto as construções metodológicas e epistemológicas das disciplinas, com aporte de princípios do campo heteróclito e múltiplo dos Estudos Visuais, interrogando os desafios transnacionais pendentes de seu desenvolvimento na América Latina. Segundo a autora, o sistema de comunicação impõe-se como força estruturante de novas formas de socialização através de práticas culturais e tecnologia, com amplas consequências para o campo humanístico, oferecendo enfoques inovadores à dinâmica de articulação de formas de vida e de cultura com as tecnologias de imediação. 9


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Elisa Amorim, por seu lado, desloca o olhar para obras de escritores espanhóis e latino-americanos que introduzem a imagem fotográfica em seus textos ou a utilizam como elemento desencadeador da narrativa. No texto “Literatura e fotografia: entre conceito e representação”, ela propõe uma reflexão acerca dos intercâmbios entre literatura e fotografia estabelecidos ao longo dos últimos dois séculos, dando destaque ora a imagens técnicas que funcionam como documento comprovatório ou testemunho de um referente externo, ora à sua subversão pelo texto literário. Na discussão dos múltiplos exemplos destas complexas transposições é dada atenção especial à perspectiva desafiadora do compromisso ético que envolve relações entre a representação da realidade e o testemunho, sem dissimular os limites do diálogo da imagem e do texto com o real. Ponto de partida do ensaio de Eneida Leal Cunha é uma visita à exposição Cícero Dias; um percurso poético (1907-2003), uma retrospectiva de 125 das obras do pintor Cícero Dias, que exibe uma coleção de cartas, fotografias e recortes de jornal, montada para evidenciar tanto a sua proximidade com paisagens, intelectuais e artistas brasileiros, quanto seu trânsito no circuito da arte europeia. Em “Ver para ler: Cícero Dias e Mário de Andrade”, a autora retorna a anotações de viagem, cartas, fotografias, crônicas, poemas e ao livro O Turista aprendiz, do escritor Mário de Andrade, para reconstituir o enredo da amizade e do afeto entre os dois artistas do modernismo brasileiro e, principalmente, para evidenciar como a convivência entre os dois artistas em Pernambuco, entre 1928 e 1929, favoreceu uma familiaridade com a afro-brasilidade até então inacessível ao intelectual paulista negro Mário de Andrade. O próprio estilo poético do ensaio reflexivo da autora, ao transcriar em seu texto a atmosfera apaixonada e delicada que Mário de Andrade imprime a sua leitura das aquarelas do amigo que exigem “uma sensibilidade receptiva enorme, sem nenhuma escravização, intelectual, assombrável e assombrada, é desincumbida de qualquer espécie de lógica verbal”, expõe a sua afinidade com formas de pensar imaginativas e criativas. No ensaio, “Waly Salomão: Entre o olho fóssil e o olho míssil”, Frederico Coelho busca destacar os aspectos visuais presentes na obra do poeta Waly Salomão. Em suas próprias palavras, “trata-se talvez de demonstrar por piscadas velozes e rabos de olhos um pensamento imagético que se esgueira na obra mais ampla de Waly”. Nesta ótica, a sua proposta é feita através de uma escrita que se aproxima da prática poética de Waly. A partir de trabalhos como os 10


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Babilaques, falas públicas e diferentes tipos de escritos, destaca-se a imagem – em suas múltiplas possibilidades e transformações – como energia criativa e atravessamento dos sentidos. A presença de novos interesses e sensibilidades na produção de saberes na esfera dos estudos literários é explorada por Heidrun Krieger Olinto no texto “Escrita-Imagem-Teoria. Encontros”, em atos experimentais que aliam interesses antitéticos do artista e pensador, do poeta e pesquisador, em novas constelações discursivas e imagéticas unindo ciência e arte em espaços além dos domínios tradicionais da literatura. Neste exercício de imaginação teórica, a sedução dos sentidos ofusca a hegemonia do discurso racional pelo acento sobre nexos indissociáveis entre pensamento inteligível e percepção sensível. Esta criatividade, encontrando eco na própria configuração escritural icônica de práticas teóricas, é avaliada em cruzamentos intermidiáticos inesperados e processos de retroalimentação entre poesia, arte visual e teoria, produzindo pelos próprios experimentos formas de pensar transdisciplinares. Na contribuição “Tradução intersemiótica, ciborgues e inferência abdutiva”, os autores João Queiroz e Pedro Atã, introduzem um modelo de tradução intersemiótica, como ferramenta do pensamento para distribuir a criatividade artística. Baseados na teoria do signo de Peirce, eles especulam sobre o papel da inferência abdutiva na geração de novas ideias em domínios artísticos para uma compreensão mais complexa dos próprios processos atuantes na criatividade. Entre as vantagens deste instrumento intelectual ganha destaque o seu potencial de artefato cognitivo, como mecanismo de geração de hipóteses para explicar fatos surpreendentes, à medida que nela atua um forte componente de indeterminação e acaso. Neste âmbito, a inferência abdutiva encontra-se em sintonia com a descoberta e a criatividade, processos não racionais que transcendem ao tratamento lógico. Como as obras de arte e a literatura. Karl Erik Schøllhammer discute no ensaio “Escrevendo realidade – Estratégias de presença e inscrição na cultura brasileira e contemporânea” como atos de escrever no contemporâneo podem ser vistos não apenas como gestos de inscrição e assinatura individual, mas como a própria construção de segredos pseudonímicos fazendo parte da inserção performativa pela representação. Este tipo de documentalidade – a escrita de diários, anotações, opiniões nas mídias sociais etc. – muitas vezes analisada na perspectiva dos estudos da memória e da identidade, na proposta do autor, sustenta a própria realidade social de atos 11


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individuais e de eventos. Nesta ótica, a aparição frequente do “escritor” como caráter ficcional corresponde, ao mesmo tempo, à representação de si com traços autobiográficos, podendo ser analisado como sintoma de uma transformação contemporânea, em que o ato de escrever torna-se parte da emergência da realidade, pertencendo tanto à representação quanto ao afeto da representação sobre a experiência social. Em sua contribuição “Afinidade e morfologia em W. G. Sebald”, partindo de uma consideração geral da obra narrativa do escritor W. G. Sebald, Kelvin Falcão Klein dirige a sua atenção sobre o início, a abertura da ficção. Centrado sobre o seu último romance publicado, Austerlitz, de 2001, ele se propõe a investigar como esse método de ancoragem inicial transcorre tanto na dimensão textual quanto no uso de imagens que emergem intercaladas ao longo de suas narrativas. A partir de um conjunto de imagens que abrem a narrativa em questão, o ensaio procura mostrar como a ficção digressiva de Sebald opera simultaneamente no deslizamento temático (a afinidade) e formal (a morfologia), acarretando trânsitos críticos que atravessam campos de filosofia (Martin Heidegger, Hannah Arendt), de historiografia (Victor Stoichita, Maxime du Camp) e de teorias da arte e da literatura (Walter Benjamin, Giorgio Agamben). Luiz Camillo Osorio analisa a trajetória poética da artista visual Lygia Pape tendo em vista o que poderia ser considerada uma guinada antropológica a partir dos anos 1960, no período seguinte ao Neoconcretismo. No ensaio “Lygia Pape – Entre a geometria e a etnografia”, ele enfatiza uma compreensão da importância de seu contato e sua colaboração, no começo daquela década, com nomes importantes do cinema novo, tais como Glauber Rocha e Paulo Cesar Saraceni, entre outros. A contribuição “Nem estética nem cosmética: um debate sobre o cinema contemporâneo brasileiro a partir da revisão da sua relação com a ‘fome’”, de Miguel Jost, apresenta-se como intervenção crítica no debate acerca da emergência de um novo conjunto de atores do campo audiovisual brasileiro. A partir da análise de um leque de filmes recentes, o autor procura pensar a produção estética destes a partir de uma visão panorâmica do debate sobre a fome, a marginalidade, a pobreza, a criminalidade e de outros desdobramentos e transformações destes tópicos temáticos marcantes da produção cinematográfica brasileira no século XX que permitem explicitar que estamos diante de práticas artísticas que abrem novas perspectivas estéticas e reconfiguram o nosso olhar sobre os espaços denominados periféricos em nosso país. 12


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Em seu artigo “O contador de histórias como imagem: Sobre vanguarda e tradição nos contos de Walter Benjamin”, Patricia Lavelle tematiza a aparição do contador de histórias na obra de Walter Benjamin como imagem. É a partir desta que ela procura pensar a arte de contar, baseada na experiência transmissível da tradição como uma espécie de fantasmagoria em torno da qual nostalgia e ironia se cruzam e entrechocam num horizonte de problematização da apresentação do pensamento que busca em elementos arcaicos uma alternativa vanguardista ao projeto de modernidade baseado na ideia de progresso e na instrumentalização sistemática da linguagem. Na pesquisa “Rastros de Babel: Do texto às telas da pintura e do cinema”, Renato Cordeiro Gomes busca identificar rastros da imagem de Babel, que indicam a sobrevivência e a transcriação do mito bíblico e da representação da Torre pintada por Bruegel, em 1565. A partir dessas duas matrizes Gomes apresenta uma diversidade de imagens das artes plásticas e de narrativas de Kafka e de Murilo Rubião, dentre outros escritores, além do filme Babel (2006), de González Iñárritu, com que constrói uma montagem, que permite analisar a sobrevivência dessa imagem na contemporaneidade. Testa-se, assim, uma possível metodologia com base, sobretudo, nas formulações de Didi-Huberman e Walter Benjamin, que permite relacionar textos e imagens, despertando uma memória na atualidade. Rosana Kohl Bines abre uma nova dimensão à força estético-política de um imaginário visual associado à infância. No texto “Ver: Desaparecer” a sua investigação gira em torno de um trabalho do artista contemporâneo Christian Boltanski na pequena cidade francesa de Vitteaux, onde ele criou um teatrinho de sombras a céu aberto, projetando nas fachadas das casas, quando anoitece, imagens de bruxas, gatos pretos, morcegos, caveiras. Essa coleção de monstros de feição infantil é analisada a partir de diálogos com o pensamento de Walter Benjamin sobre a potência dos encontros repentinos com imagens associadas à infância e seus efeitos de transfiguração. Em particular, a autora ressalta a conexão que o filósofo estabelece entre ver (formas ressurgidas da infância) e desaparecer (o mundo habitual de onde as contemplamos), para sondar como a instalação de Boltanski interfere na paisagem sensível da cidade e enseja novos modos de configurar, sentir e partilhar um ambiente em comum. No ensaio “‘A polpa da cor’: a persistência do dispêndio na teoria neoconcreta de Ferreira Gullar”, Sérgio B. Martins, contraria uma parte significativa dos estudos dedicados ao Neoconcretismo que tende a ignorar a poesia inicial 13


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de Ferreira Gullar, ou então a simplesmente reiterar a narrativa do poeta sobre seu livro A luta corporal (1954) como um livro preocupado majoritariamente com a implosão da linguagem. Em sua argumentação, o livro de Gullar também sustenta uma meditação existencial acerca da temporalidade e da finitude através de imagens de dispêndio material, com peras e maçãs recorrendo em suas páginas como entes dispendendo-se diante da inexorabilidade do tempo. A fruta transforma-se, mais tarde, em metáfora do efeito da cor na produção neoconcreta do pintor Aluísio Carvão, com Gullar sugerindo que a “resistência do objeto” é superada em seus trabalhos pela forma com a qual nossa visão se aloja na “polpa da cor”. Na proposta de Martins, se o dispêndio retornar na teoria neoconcreta sob o manto da fruta, deveria ser revista a associação corriqueira do movimento com uma fenomenologia redentora, de modo a acomodar uma faceta conceitual mais assombrada pela angústia. Sílvia Dolinko, por seu lado, aborda alguns casos que articulam texto e imagem em sua intervenção no espaço público a partir de uma noção gráfica expandida. Neste âmbito, ela focaliza no artigo “Gráfica expandida: Sobre algunas relaciones entre espacio público, imágenes y textos” distintas instâncias geográficas e temporais da modernidade latinoamericana e, em especial, da cena cultural argentina. A partir da obra Swift en Swift, do artista argentino Juan Carlos Romero, a autora analisa como estêncis, revistas e cartazes formam parte das explorações gráficas ampliadas que transformam a definição canônica de gravura. Vera Lúcia Follain de Figueiredo oferece uma análise da requalificação positiva das imagens contra o que se considera uma iconoclastia da crítica, que tem encontrado eco no pensamento teórico contemporâneo. No ensaio “Práticas literárias e exercícios do ver: A revolução dos suportes”, ela mostra como o crescente intercâmbio entre a literatura e os meios audiovisuais, no campo dos estudos literários, e estimulado pelo mercado e pelos avanços da tecnologia digital, vem contribuindo para reforçar a ideia de que haveria, hoje, uma hegemonia do visível, configurando uma cultura da visualidade, em detrimento da textualidade. O ensaio discute esta pressuposição, considerando as transformações na hierarquia cultural ocorridas ao longo do século passado e as alterações nas práticas de leitura geradas pela chamada revolução dos suportes. O último artigo da coletânea, dedicado à investigação de imagens e textos e suas complexas interações e transcrições, desloca o olhar para imagens criadas em campos de batalha da Segunda Guerra Mundial. Como parte de uma pesquisa 14


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mais ampla sobre a participação ativa do Brasil nesta guerra com o envio de mais de 25000 soldados para o front de batalha na Itália, Vinicius Mariano de Carvalho revela de maneira inédita a produção artística de alguns destes soldados refletindo a experiência da guerra. No artigo “Guerra Mundial – O ‘Caderno de Guerra’ do Pracinha Carlos Scliar”, o autor se dedica a uma análise das obras produzidas por Carlos Scliar durante o período em que esteve no front italiano e posteriormente expostas no Brasil sob o título de Caderno de Guerra. As suas investigações sobre a arte na guerra, correlacionando a experiência e expressão de Scliar com um contexto mais abrangente, inauguram um espaço de reflexão no campo das artes, onde a produção das artes plásticas – no caso, pintura e desenhos – na experiência real da guerra por pracinhas da FEB, é praticamente ignorada. Por último, gostaríamos de agradecer a participação entusiasmada de todos os articulistas deste livro ao transformar o evento oral numa publicação que permite estender o diálogo para um público leitor mais amplo. Um agradecimento especial merece Danusa Depes Portas, pesquisadora e pós-doutoranda (com bolsa da FAPERJ) no Programa de Pós-Graduação Literatura, Cultura e Contemporaneidade e integrante do Grupo de Pesquisa do CNPq Tendências Contemporâneas nos Estudos de Literatura, que liderou com dedicação e competência, o grupo de iniciação científica, de mestrado e de doutorado não apenas na organização do evento, mas também na preparação cuidadosa dos originais para a sua publicação. Destacamos a primorosa tradução do texto “What is an Image?”, de W. J. T. Mitchell e a autorização gentil do autor para a sua publicação neste livro. Um agradecimento expressivo devemos, ainda, ao CNPq, à CAPES e à FAPERJ, agências de fomento que, com o seu apoio material em diversos momentos, possibilitaram além da realização do seminário e da sua transformação material neste livro, ainda a participação de três cientistas de universidades estrangeiras – Anders Michelsen do Instituto de Ciência de Arte e Cultura da Universidade de Copenhague (Dinamarca); Silvia Dolinko do Instituto de Altos Estudios Sociales da Universidad Nacional de San Martín (Argentina) e Vinicius Mariano de Carvalho do Brazil Institute do King’s College London (Inglaterra). Sem o apoio integral do Departamento de Letras da PUC-Rio e, de modo particular, do Programa de Pós-Graduação Literatura, Cultura e Contemporaneidade a realização do evento e a publicação não teriam sido possíveis. A todos o nosso muito obrigado. E, aos leitores, desejamos o prazer de continuar o diálogo e de ensaiar novos experimentos transientes. 15



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O QUE É UMA IMAGEM? W. J. T. Mitchell

Nota preliminar sobre a tradução W. J. T. Mitchell é professor titular do Departamento de Filologia e Literatura Inglesa e do Departamento de Arte da Universidade de Chicago, assim como editor da revista Critical Inquiry. Entre suas obras destacam-se os livros Iconology: Image, Text, Ideology (1986), Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representation (1995), a coleção de ensaios What Do Pictures Want? (2005), contemplada em 2006 com o prêmio James Russell Lowell da Modern Language Association, entre outras publicações. Todas elas frutos da pesquisa de um dos mais importantes teóricos contemporâneos da representação visual que oferece uma detalhada explicação do jogo entre o visível e o legível a partir da literatura, das artes visuais e dos meios de comunicação. Publicado originalmente em 1986 e logo influente no âmbito dos Estudos Visuais, Iconology: Image, Text, Ideology é uma dessas obras incontornáveis na luminosa produção de um dos relevantes teóricos desse campo de estudos, que propõe uma iconologia crítica e que ganha aqui contornos de um texto seminal de caráter transdisciplinar sobre a ideia de imagem, uma vez que cada um de seus aportes reluz com o brilho singular de uma das mais poderosas inspirações teóricas das últimas décadas. Mitchell se compromete a explorar a natureza das imagens, comparando-as com palavras, ou, mais precisamente, olhando-as do ponto de vista da linguagem verbal. Iconology é um livro sobre o que as pessoas dizem sobre imagens. Não se preocupa com imagens específicas e as coisas que as pessoas dizem sobre elas, mas fundamentalmente com a maneira como falamos sobre a ideia do imagético, e todas as suas noções relacionadas de retratar, imaginar, perceber, comparar e imitar. É um livro sobre imagens, portanto, que não tem ilustrações, exceto alguns diagramas esquemáticos, um livro sobre a visão escrita como se fosse um autor cego para um leitor cego. Se o livro contém algum insight em imagens reais e materiais, essa imagem é do tipo que pode chegar a um ouvinte cego, vislumbrando o ouvinte, por acaso, a conversa que os oradores com visão têm sobre imagens. A hipótese de Mitchell, expendida no capítulo de abertura 17


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“What is an Image?”, é que tal ouvinte possa ver padrões nessas conversas que seriam invisíveis para o participante com visão. A exposição mais lúcida do assunto que eu já li. A tradução do texto “What is an Image?” acompanhada do excerto da seção de “The Idea of Imagery” envolve muitos desafios. Um deles é a remissão explícita e, por vezes implícita, que Mitchell faz a determinados arcabouços teóricos, tangenciando tais ideias de um ponto de vista singular, desconcertante e esclarecedor. Menciono a notável alusão ao filósofo Ludwig Wittgenstein assinalado textualmente no artigo referido, mas também implícito no título da seção que abre o livro Iconology, de onde essa tradução foi extraída: “The Idea of Imagery”. Nesse quase-aforismo de Mitchell encontram-se inexplícitos os termos de Philosophische Untersuchungen (1953), de Wittgenstein, publicado postumamente: “Eine Vorstellung ist kein Bild, aber ein Bild kann ihr entsprechen.” (§ 301). A sentença Uma ideia não é uma imagem, mas uma imagem pode lhe corresponder converte-se em mote importante de entrada no texto sobre a ideia do imagético e reverte-se em fundamentais operações conceituais seguindo a noção de Bild, a partir do uso comum (e especializado) de termos em inglês como Picture, Image, Imagery. Em vista da dificuldade em verter com precisão esse uso terminológico para o nosso idioma, precisarei realizar uma série de apontamentos para que essa operação e o uso dos termos na tradução para o português fiquem mais evidentes. O Tractatus Logico-Philosophicus (1921), publicado pelo filósofo austríaco Wittgenstein, tinha um objetivo amplo de identificar a relação entre linguagem e realidade a fim de definir os limites da ciência. O Tractatus busca esclarecer as relações de isomorfismo necessárias entre pensamento, linguagem e mundo. A partir da premissa de que os três partilham uma mesma estrutura lógica, Wittgenstein se detém sobre este aspecto e apresenta a sua teoria da proposição como Bild, ou a teoria pictórica da proposição. Importante notar que o termo alemão Bild (“imagem”, “figura”) é ambíguo, podendo designar tanto pintura quanto modelos abstratos. Wittgenstein alega ter herdado o conceito de figura dos dois lados: o primeiro da figura desenhada e, depois, do modelo de um matemático, o que já seria um conceito geral. A palavra Bild faz lembrar o conceito matemático de imagem, referindo-se ao conjunto de elementos que – em uma função sobrejetora, por exemplo – se relacionam ponto a ponto com os elementos do domínio. Um matemático fala em afiguração (Abbildung) em situações em que o pintor já não utilizaria a expressão. 18


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Convém entender a noção de Bild em um contexto geral da tradição filosófica alemã. A noção de Bild, pois, deve muito à matemática, bem como aos modelos de escalas ou maquetes na engenharia; mas o ponto realmente decisivo para o seu aparecimento no Tractatus foi o contato de Wittgenstein com a física de Heinrich Hertz. O físico alemão havia afirmado que a ciência constrói modelos da realidade, de tal modo que as possíveis variações no modelo refletem, de forma exata, as diferentes possibilidades do sistema físico em questão. A imagem – ou modelo – em Hertz significa algo como um esquema lógico-conceitual capaz de representar o mundo. O seu emprego é metafórico e procura evocar a relação de representação ponto a ponto. Uma imagem, assim, poderia ser mais fiel, ou menos fiel, segundo a sua eficiência em descrever e prever com precisão os fenômenos físicos. A partir dessa noção de imagem de Hertz, a natureza mesma do mundo deixa de ser o objeto das investigações físicas e, então, o interesse do físico volta-se apenas a construção de modelos lógicos do mundo. Wittgenstein transformou as breves observações de Hertz acerca da representação científica em uma explicação detalhada sobre as precondições da representação simbólica em geral. A essência da linguagem é afigurar como as coisas estão. Ao explicar as proposições elementares, a teoria pictórica explica a base da representação e da lógica. A teoria pictórica da proposição é, na verdade, a especificação de uma teoria que diz respeito a toda espécie de representação. A teoria pictórica se apresenta completamente consolidada entre os aforismos 2.1 e 2.225 e fornece as condições lógicas essenciais que toda e qualquer representação precisa satisfazer para ser efetivamente representada, sendo, portanto, uma imagem – ou figuração – que liga ponto a ponto os seus elementos aos elementos do que é representado. Ao mostrar brevemente que a palavra Bild foi colhida no contexto da matemática e da física de Hertz, a denominação teoria pictórica da proposição adquire um sentido muito peculiar, e se distancia de uma representação pictórica propriamente dita, que diz respeito a um retrato ou pintura que busca imitar a forma física de um objeto material. A escolha da palavra pictórica, portanto, apenas se justifica a título de coerência, uma vez que ela é bastante adotada pelos comentadores de Wittgenstein. A teoria da proposição como Bild recebe diferentes denominações na bibliografia secundária sobre o Tractatus em língua portuguesa: teoria pictórica da proposição, teoria da figuração e teoria figurativa da proposição. Sendo a primeira denominação a mais vigente entre seus comentadores. Toda essa referência à teoria da proposição como Bild é bastante esclarecedora para o uso terminológico e contrastivo que faz Mitchell de determinadas palavras 19


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que designam imagem em “What is an Image?”. Na fala comum inglesa, picture e image costumam ser utilizadas de forma permutável para denominar representações visuais em superfícies de duas dimensões. E em ocasiões Mitchell também as utiliza assim. Entretanto, em geral, parece ser-lhe produtivo jogar com as distinções entre os termos: a diferença entre um objeto ou conjunto construído e concreto (a estrutura, o suporte, os materiais, os pigmentos, a feitura) e a aparência virtual e fenomênica que proporciona ao espectador, a diferença entre um ato de representação deliberado (“to picture” ou “to depict”) e um ato menos voluntário, ou inclusive passivo ou automático (“dar imagem” ou “imaginar”); a diferença entre um tipo específico de representação visual (a imagem “pictórica”) e o campo complexo da iconicidade (as imagens verbais, acústicas ou mentais). O que se traduz para o português como “imagem” responde a três termos ingleses, picture, image e imagery, com conotações diferentes. Se o primeiro consiste em um objeto ou conjunto construído e concreto, o segundo alude à aparência virtual e fenomênica que proporciona ao espectador, o terceiro ao campo complexo de iconicidade. No entanto, os três termos evocam universos conceituais mais complexos do que seus sentidos em usos comuns. Não fui capaz de encontrar uma solução satisfatória para estabelecer a diferença especialmente entre esses dois termos, picture, image, ao longo da tradução para o português. Imagery foi traduzido por “imagético”. O termo Image por “imagem”. E Picture foi traduzido por “imagem pictórica”, o que me pareceu imprescindível fazê-lo em vista da inspiradora presença de Wittgenstein, que sugere Mitchell, e, por vezes, por “figuração”, quando a presença da teoria pictórica da proposição é franqueada. Não poderia finalizar essas notas sem registrar o meu agradecimento ao prof. W.J.T. Mitchell por me ceder os direitos dessa publicação, assim como a coeditora Béatrice Bourgogne, e a Whitney Rauenhorst da The University of Chicago Press por toda atenção e gentileza nesse processo. Agradeço ainda as importantes indicações na resolução da tradução de termos técnicos e neologismos por parte do prof. Karl Erik Schøllhammer e do prof. Paulo Henriques Britto. Minha gratidão pela inestimável e comovente dedicação dos meus parceiros incansáveis na revisão dessa tradução: Henrique Lopes, Leandro Salgueirinho, Mariana Perelló, Matheus Ribeiro, Samyres Amaral, Seiji Watanabe. Rio de Janeiro, dezembro de 2018. Danusa Depes Portas

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A ideia do imagético Uma coisa é... apreender diretamente uma imagem como imagem; outra coisa é formar ideias acerca da natureza das imagens em geral. Jean-Paul Sartre. L’Imagination, 1936.

Toda tentativa de captar a ideia do imagético está condenada a engalfinhar-se com o problema do pensamento recursivo, dado que a ideia mesma de “ideia” está atrelada à noção do imagético. Ideia vem do verbo grego ver, e, com frequência, aparece vinculada à noção de eidolon, a imagem visível que é fundamental para a ótica e as teorias de percepção antigas. Um modo razoável de se evitar a tentação de pensar sobre as imagens em termos de imagens seria substituir a palavra ideia em todas as discussões acerca do imagético por outro termo como conceito ou noção, ou estipular de início que o termo ideia deve ser entendido como algo bem diferente do imagético ou da imagem pictórica. Esta é a estratégia da tradição platônica, que distingue o eidos do eidolon, entendendo o primeiro como uma realidade “suprassensível” de “formas, tipos ou espécies”, e o último como uma impressão sensível que proporciona uma mera “semelhança” (eikon) ou “semblante” (phantasma) do eidos (PETERS, 1967). Um modo menos prudente, mas, espero, mais imaginativo e produtivo, de lidar com este problema é ceder à tentação de ver as ideias como imagens, e permitir que o problema recursivo se realize plenamente. Isso implica dar atenção ao modo como as imagens (e as ideias) se desdobram: o modo como reproduzimos o ato de registrar uma percepção visual, imaginamos a atividade da imaginação, figuramos a prática da figuração. Estas imagens pictóricas, imagens e figuras desdobradas (às quais me referirei – com a menor frequência possível – como hiper-ícones) são estratégias para ceder e resistir ao mesmo tempo à tentação de ver as ideias como imagens. A caverna de Platão, a tábula rasa de Aristóteles, o quarto escuro de Locke, o hieróglifo de Wittgenstein são todos exemplos de hiper-ícones que, junto com o tropo popular do espelho da natureza, nos proporcionam os modelos para pensar sobre todo tipo de imagens: mentais, verbais, pictóricas e perceptuais. Também nos proporcionam, quero argumentar, cenas nas quais nossas ansiedades sobre as imagens podem expressar-se em uma variedade de discursos iconoclastas, e nas quais podemos racionalizar a pretensão de que, sejam o que for as imagens, as ideias são algo distinto. 21


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O que é uma imagem? Houve momentos em que a pergunta O que é uma imagem? era um assunto urgente. Na Bizâncio dos séculos VIII e IX, por exemplo, qualquer resposta identificaria você imediatamente como partidário de uma das facções na luta entre o imperador e o patriarca: como um iconoclasta radical buscando purificar a igreja da idolatria ou como um iconófilo conservador desejoso de preservar as práticas litúrgicas tradicionais. O conflito sobre a natureza e o uso dos ícones, que, na superfície, parecia uma disputa sobre pontos muito sutis do ritual religioso e sobre o significado dos símbolos, era, na realidade, tal como assinala Jaroslav Pelikan, “um movimento social mascarado” que “utilizava o vocabulário doutrinário para racionalizar um conflito essencialmente político”.1 Na Inglaterra de meados do século XVII, a conexão entre movimentos sociais, causas políticas e a natureza do imagético era, ao contrário, bem pouco dissimulada. Talvez não seja grande exagero dizer que a Guerra Civil inglesa foi travada a partir da questão das imagens, e não apenas da questão das estátuas e de outros símbolos materiais dos rituais religiosos, mas de assuntos menos tangíveis, como o ídolo da monarquia e, mais além, os ídolos da mente que os pensadores da Reforma buscavam purgar de si mesmos e dos outros.2 Se hoje a pergunta sobre as imagens não parece estar tanto em disputa, não é porque elas perderam o seu poder sobre nós, nem menos ainda porque a sua natureza foi compreendida com clareza. É lugar comum à crítica cultural moderna que imagens têm em nosso mundo um poder com o qual nem sonhavam os antigos idólatras.3 E parece igualmente evidente que a questão da natureza 1 Cf. PELIKAN, The Christian Tradition, 1974, v.2, capítulo 3, que oferece uma explicação da controvérsia sobre os iconoclastas no cristianismo oriental. 2 Cf. O capítulo de Christopher Hill “Eikonoklastes and Idolatry”, em Milton and the English Revolution (1977), para uma introdução a esse problema. 3 Susan Sontag dá expressão eloquente a muitos desses lugares comuns em On Photography (1977), um livro que lhe cairia melhor como título Contra a fotografia. Sontag abre sua discussão sobre a fotografia apontando que “a humanidade permanece irregenerável na caverna de Platão, deleitando-se ainda na mera imagem da verdade” (p.3). As imagens fotográficas, conclui Sontag, são ainda mais ameaçadoras que as imagens artesanais que Platão enfrentou porque elas são “poderosos meios para superar a realidade e transformá-la em uma sombra” (p.180). Obras críticas importantes do imagético e da ideologia moderna incluem ensaio de Walter Benjamin “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, em Illuminations (1969), o livro de Daniel J. Boorstin The Image (1961), o ensaio de Roland Barthes, “A retórica da imagem”, em Image/Music/ Text (1977), e o livro Ideology and the Image (1981) de Bill Nichols.

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do imagético só tem sido superada pelo problema da linguagem na evolução da crítica moderna. Se a Linguística teve Saussure e Chomsky, a Iconologia teve Panofsky e Gombrich. Mas a presença desses grandes sintetizadores não deveria ser tomada como um sinal de que os enigmas da linguagem ou do imagético estão, afinal, a ponto de ser resolvidos. A situação é justamente a inversa: a linguagem e o imagético já não são o que prometiam ser para os críticos e filósofos da Ilustração: meios perfeitos e transparentes através dos quais se podia representar a realidade para o entendimento. Para a crítica moderna, a linguagem e o imagético se tornaram enigmas, problemas a explicar, prisões que isolam do mundo o entendimento. Lugar comum dos estudos modernos sobre as imagens é, de fato, a noção de que elas devem ser entendidas como uma espécie de linguagem; em vez de proporcionar uma janela transparente para o mundo, considera-se agora que as imagens são um tipo de signo que apresenta uma aparência de naturalidade e transparência enganosa, que esconde um mecanismo opaco, distorcido e arbitrário de representação, um processo de mistificação ideológica.4 Meu propósito não é nem aprofundar a compreensão teórica da imagem, nem acrescentar uma nova crítica da idolatria moderna à crescente coleção das polêmicas iconoclastas. Meu objetivo é examinar os jogos de linguagem (assim os designaria Wittgenstein) com os quais operamos com a noção de imagem, e sugerir algumas perguntas sobre as formas de vida históricas que sustêm esses jogos. Não me proponho, portanto, a produzir uma definição nova ou melhor da natureza essencial das imagens, ou a examinar imagens pictóricas ou obras de arte específicas. Meu procedimento será, ao contrário, examinar alguns dos modos como usamos a palavra imagem em uma série de discursos institucionalizados – particularmente a Crítica Literária, a História da Arte, a Teologia e a Filosofia – e criticar os modos como cada uma destas disciplinas utiliza, por empréstimo, noções de suas vizinhas sobre o imagético. Meu objetivo é deslindar como nossa compreensão teórica do imagético baseia-se em práticas sociais e culturais, e em uma história fundamental para nossa compreensão não só das imagens, mas também, daquilo que a natureza humana é ou poderia ser. As imagens não são simplesmente um tipo de signo particular, mas algo assim como um ator na 4 Para um compêndio de trabalhos recentes produzidos a partir da noção de que as imagens são um tipo de linguagem, veja The Language of Images (1980), editado por W.J.T. Mitchell.

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cena histórica, uma presença ou um personagem dotado de status legendário, uma história que acompanha e participa das histórias que contamos a nós mesmos sobre a nossa própria evolução de criaturas feitas à imagem do seu criador, a criaturas que produzem a si mesmas e seu mundo à sua própria imagem. A família das imagens Duas coisas devem chamar a atenção de todo aquele que busca ganhar uma perspectiva geral dos fenômenos que chamamos de imagético. A primeira é simplesmente a grande variedade de coisas que passam por esse nome. Falamos de pinturas, estátuas, ilusões óticas, mapas, diagramas, sonhos, alucinações, espetáculos, projeções, poemas, padrões, memórias, e inclusive de ideias como imagens, e a diversidade dessa lista parece impossibilitar qualquer compreensão sistemática ou unificada. A segunda coisa que pode nos chamar atenção é que nomear todas estas coisas de imagem não quer dizer que elas tenham necessariamente algo em comum. Seria melhor começarmos considerando as imagens como uma extensa família que vem migrando no tempo e no espaço, e sofrendo, nesse processo, mutações profundas. Porém, se as imagens são uma família, talvez seja possível projetar um sentido de sua genealogia. Se, de saída, em vez de buscarmos uma definição universal do termo, observarmos as situações nas quais as imagens têm se diferenciado umas das outras com base nos limites entre distintos discursos institucionais, obteremos uma árvore genealógica como a seguinte: Imagem Parecido Semelhança Similitude

Gráfica pinturas estátuas desenhos

Ótica espelhos estátuas projeções

Perceptual dados sensoriais "espécies" aparências

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Mental sonhos recordações ideias aparições

Verbal metáforas descrições


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Cada ramo desta árvore genealógica designa um tipo do imagético central para o discurso de algumas disciplinas científicas: o imagético mental corresponde à Psicologia e à Epistemologia; o imagético ótico, à Física; o imagético gráfico, escultural e arquitetônico, à História da Arte; o imagético verbal, à Crítica Literária; as imagens perceptivas ocupam uma espécie de região fronteiriça em que fisiologistas, neurologistas, psicólogos, historiadores da arte e especialistas em ótica colaboram com filósofos e críticos literários. Essa é a região em que habitam uma série de criaturas estranhas que assombram a fronteira entre as interpretações físicas e psicológicas do imagético: as espécies ou formas sensíveis que (de acordo com Aristóteles) emanam dos objetos e imprimem-se como selo nos receptáculos, similares à cera, de nossos sentidos;5 as phantasmata, que são versões ressuscitadas dessas impressões evocadas pela imaginação na ausência dos objetos que as estimularam originalmente; dados sensoriais ou percepções que cumprem um papel análogo na Psicologia Moderna; e, finalmente, essas aparências que (na expressão comum) se interpõem entre nós e a realidade, e aquelas a que tão frequentemente nos referimos com o termo imagem (da imagem que projeta um ator talentoso até as imagens criadas por experts em publicidade e propagandas para produtos e personagens). A história da teoria ótica está cheia dessas agências intermediárias que se interpõem entre nós e os objetos que percebemos. Por vezes, como na doutrina platônica do fogo visual e na teoria atomística dos eídola ou simulacra, elas são entendidas como emanações materiais dos objetos, imagens sutis, mas, ainda assim, substanciais, propagadas pelos objetos que se imprimem à força em nossos sentidos. Por vezes, as espécies são consideradas meras entidades formais, sem substância, propagadas através de um meio imaterial. E algumas teorias inclusive descrevem a transmissão como algo que acontece na direção contrária, de nossos olhos aos objetos. Roger Bacon oferece uma boa síntese dos pressupostos comuns da teoria ótica antiga. Toda causa eficiente atua segundo sua própria força que é exercida sobre a matéria adjacente, assim como a luz [lux] do sol exerce sua força sobre o ar (cuja força difunde a luz [lumen] por todo o mundo a partir da luz [lux] solar). Essa força é chamada semelhança, imagem e espécies, assim como de outras muitas formas[...]. Estas espécies 5 Cf. ARISTÓTELES, De Anima II, 12.424a, 1957, p.137.

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provocam todas as ações que há no mundo, já que atuam nos sentidos, no intelecto e em toda matéria do mundo para a geração de todas as coisas.6

Deveria estar claro, a partir da explicação de Bacon, que a imagem não é simplesmente uma classe particular de signo, mas um princípio fundamental do que Michel Foucault chamaria a ordem das coisas. A imagem é a noção geral, ramificada em diversas semelhanças específicas (convenientia, aemulatio, analogia, simpatia), que reúnem o mundo em um todo sob figuras do conhecimento.7 Presidindo todos estes casos especiais do imagético, portanto, localizo um conceito paterno, a saber, a noção de imagem per se, o fenômeno cujos discursos institucionais apropriados são a Filosofia e a Teologia. Ainda assim, cada uma dessas disciplinas tem produzido uma vasta literatura sobre a função das imagens em seu próprio domínio, uma situação que tende a intimidar qualquer um que tente oferecer um panorama do problema. Há precedentes encorajadores em trabalhos que reúnem diferentes disciplinas comprometidas com o imagético, como os estudos de Gombrich sobre o imagético pictórico em termos de percepção e ótica, ou as pesquisas de Jean Hagstrum sobre as Artes Irmãs, a poesia e a pintura. Em geral, entretanto, as explicações que se ocupam de um determinado tipo de imagem tendem a relegar os outros tipos a um ignorado segundo plano. Se há um estudo unificado do imagético, uma iconologia coerente, ele corre risco de comportar-se, tal como advertiu Panofsky (1955), “não como a etnologia em oposição à etnografia, mas como a astrologia em oposição à astrografia” (p.32). As discussões sobre o imagético poético dependem, em geral, de uma teoria da imagem mental improvisada a partir dos vestígios das noções sobre a mente do século XVII;8 ao mesmo tempo, as discussões sobre o imagético mental dependem de um conhecimento bastante limitado do imagético gráfico, que geralmente procede do pressuposto questionável de que certas classes de imagens (fotografias, imagens em espelhos)

6 Cf. BACON apud LINDBERG. Theories of Vision from Al-Kindi to Kepler, 1976, p.113. 7 Cf. FOUCAULT, The Order of Things: An Archeology of Human Sciences, 1970, capítulo 2. 8 A entrada sobre imagético na Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics (1974) começa com uma definição que poderia ter sido de Locke: “uma imagem é uma reprodução na mente de uma sensação produzida por uma percepção física” (p.363).

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proporcionam uma cópia direta, imediata, do que representam;9 as análises óticas das imagens no espelho ignoram decisivamente a pergunta sobre que tipo de criatura é capaz de usar um espelho; e as discussões sobre as imagens gráficas tendem a evitar, pelo provincianismo da História da Arte, um contato mais intenso com as questões mais amplas da teoria ou da história intelectual. Seria útil, portanto, tentar produzir uma visão de conjunto da imagem que dissipe os limites que estabelecemos entre distintos tipos de imagens, e que critique os pressupostos que cada uma dessas disciplinas produz sobre a natureza das imagens nos campos vizinhos. É claro que não se pode tratar desses tópicos de uma só vez, então a pergunta que se segue é por onde começar. A regra geral é começar com os dados mais básicos e óbvios, para daí se chegar aos mais duvidosos e problemáticos. Poderíamos começar, então, perguntando quais membros da família das imagens são denominados com este nome em sentido restrito, apropriado ou literal, e quais implicam um uso amplo, figurativo ou impróprio do termo. Difícil é resistir à conclusão de que a imagem apropriada seria o tipo de coisa que encontramos no lado esquerdo de nosso diagrama em forma de árvore, as representações gráficas ou óticas que vemos exibidas em um espaço objetivo e publicamente compatível. Talvez queiramos discutir o estatuto de alguns casos especiais e perguntar se as pinturas abstratas ou não representacionais, e os desenhos, diagramas e gráficos ornamentais ou estruturais são entendidos propriamente como imagens. Porém, quaisquer que sejam os casos fronteiriços que tomemos em consideração, parece justo dizer que nós temos uma ideia aproximada do que são as imagens no sentido literal do termo. E, a par desta, uma sensação de que os outros usos da palavra são figurativos e impróprios.

9 Terei mais para dizer sobre a falácia da teoria da cópia da imagem mental no que segue. No momento, pode ser útil apontar que tanto os críticos como os defensores da imagem mental têm incorrido em uma falácia quando serve aos propósitos de seus argumentos. Os proponentes da imagem mental veem a teoria da cópia como uma garantia da eficácia cognitiva das imagens mentais; as verdadeiras ideias são entendidas como cópias fiéis que refletem os objetos que representam. Os oponentes têm utilizado esta doutrina como subterfúgio para ridicularizar as imagens mentais, ou para sustentar que as imagens mentais devem ser muito distintas das imagens reais que (segundo esse argumento) se parecem com o que representam. O livro Imagery (1981), editado por Ned Block, oferece uma boa introdução ao debate entre iconófilos e iconófobos modernos no campo da psicologia. A melhor crítica da teoria da cópia é a que faz Nelson Goodman em Languages of Art (1976).

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As imagens mentais ou verbais à direita de nosso diagrama, por exemplo, só pareceriam ser imagens em um sentido incerto e metafórico. As pessoas podem dizer que experienciam imagens em suas cabeças quando leem ou sonham, mas apenas sustentam tal afirmação; não há modo (assim se argumenta) de checar isso objetivamente. E, ainda, se confiarmos nesses relatos que falam do imagético mental, está claro que isso deve ser diferente das imagens pictóricas reais, materiais. As imagens mentais não parecem ser estáveis e permanentes como as imagens reais, e variam de uma pessoa para outra: se digo verde, é possível que alguns ouvintes vejam verde na tela de sua mente, mas outros podem ver uma palavra, ou absolutamente nada. E as imagens mentais não parecem ser exclusivamente visuais como o são as imagens pictóricas reais; elas implicam todos os sentidos. Além disso, o imagético verbal pode implicar todos os sentidos, ou pode dispensar qualquer componente sensorial, limitando-se por vezes a insinuar uma ideia abstrata recorrente, como justiça, ou graça ou mal. Não é de surpreender que os críticos literários fiquem exaltados quando as pessoas começam a tomar a noção do imagético verbal muito literalmente.10 Não é de estranhar que um dos lances mais importantes da psicologia e da filosofia moderna tenha sido o de desacreditar as noções do imagético mental e do imagético verbal.11 Mais adiante, argumentarei que todas contraposições típicas entre imagens apropriadas e sua prole ilegítima são suspeitas. Espero demonstrar, em oposição ao que em geral se crê, que imagens apropriadas não são estáveis, estáticas ou permanentes em um sentido metafísico; elas não são percebidas pelos observadores do mesmo modo, tal como ocorre com as imagens oníricas; e não são exclusivamente visuais em nenhum sentido relevante, implicando uma apreensão e uma interpretação multissensoriais. As imagens reais, apropriadas, têm mais em comum com suas filhas bastardas do que elas gostariam de admitir. Porém, no momento, tomemos estas propriedades ao pé da letra, e examinemos a genealogia dessas noções ilegítimas: imagens na mente e imagens na linguagem. 10 P.N. Furbank oferece um argumento mais exaustivo contra a noção de imagem literária em Reflection on the Word ‘Image’ (1970). Furbank desmascara todas as noções de imagético mental e verbal como metáforas ilegítimas e argumenta que devemos nos limitar ao sentido natural da palavra ‘imagem’, que significa uma semelhança, uma imagem pictórica ou um simulacro. 11 Entretanto, a noção do imagético mental tem recobrado algo de sua força. Como observa Ned Block, em Imagery (1981), capítulo I, “depois de cinquenta anos de abandono durante o apogeu do condutismo, o imagético mental volta a ser um tema de pesquisa para a psicologia”.

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A imagem mental: uma crítica wittgensteiniana Para o pensamento, as imagens da alma ocupam o lugar das percepções diretas; e quando ele afirma ou nega que elas são boas ou más, ele as evita ou as persegue. Assim a alma nunca pensa sem uma imagem mental. Aristóteles. De Anima III, 7.431b.

A autoridade arraigada de uma noção de trezentos anos de pesquisa e especulação institucionalizada não vai ceder seu lugar sem luta. O imagético mental tem sido uma característica central das teorias da mente pelo menos desde De Anima, de Aristóteles, e segue sendo uma pedra angular da psicanálise, dos estudos experimentais sobre a percepção e das crenças populares sobre a mente.12 O estatuto da representação mental em geral, e da imagem mental em particular, tem sido um dos principais campos de batalha das teorias modernas da mente. Um bom índice da força das duas posições sobre essa questão está no fato de que a mais temida crítica do imagético mental em nosso tempo desenvolveu uma teoria pictórica do significado como princípio básico de seus primeiros trabalhos, e então passou o resto de sua vida lutando contra a influência de sua própria teoria, tentando repelir a noção do imagético mental junto com toda a sua carga metafísica.13 12 Platão compara as imagens da memória com impressões sobre a tabuleta de cera no Teeteto, e sua Teoria das Formas é sempre evocada para apoiar a existência de imagens inatas ou arquetípicas na mente. Os estudos empíricos do imagético mental têm seguido em geral a tradição aristotélica, inaugurada na explicação da percepção que oferece De Anima II, 12.424a: “o sentido é o que recebe as formas sensíveis [eide] sem a matéria, tal como a cera recebe a impressão de um anel de sinete sem o ferro ou o ouro”. Para Aristóteles, a imaginação é a capacidade de reproduzir estas impressões em ausência de estimulação sensorial por parte dos objetos, cuja designação é fantasia (derivada da palavra luz) porque a vista é o sentido mais desenvolvido e serve de modelo para todos os outros. Embora muitos aspectos desse modelo tenham sido questionados, seus pressupostos fundamentais seguiram vigentes até o século XVIII. Hobbes, por exemplo, desacredita a noção aristotélica das espécies visíveis, que desempenha o papel do anel de sinete nas impressões sensoriais, embora aceite a noção de imaginação como sentido em decadência (ver Leviathan, caps. I e II). Locke reconhece a similitude entre suas perspectivas sobre a percepção e as de Aristóteles em seu Examination of P. Malebranche’s Opinion (1706). O primeiro adversário real do imagético mental, o filósofo escocês Thomas Reid, considerava que a doutrina aristotélica de fantasia era o começo (para citar o resumo de Richard Rorty) do “dissenso que nos levou até Hume”. Cf. RORTY, Philosophy and the Mirror of Nature,1979, p.144. 13 Wittgenstein elaborou a teoria pictórica no Tractatus Logicus-Philosophicus (primeira edição

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A maneira de Wittgenstein atacar o imagético mental não é, entretanto, negar diretamente a existência de tais imagens. Ele admite abertamente que é possível que tenhamos imagens mentais associadas ao pensamento ou à fala, mas assinala que não devemos pensá-las como entidades mais privativas, metafísicas e imateriais que as imagens reais. A tática de Wittgenstein (1958) consiste em desmistificar a imagem mental colocando-a bem ali onde podemos vê-la: “As imagens mentais de cores, formas, sons, etc., que exercem um papel na comunicação por meio da linguagem, nós as colocamos na mesma categoria que as manchas de cores que realmente vemos e os sons que realmente escutamos”.14 É difícil, entretanto, entender como podemos dispor as imagens físicas e mentais “na mesma categoria”. Sem dúvida não podemos fazê-lo abrindo a cabeça de alguém para comparar suas imagens pictóricas mentais com as que estão nas nossas paredes. Uma estratégia melhor, e mais afim ao espírito de Wittgenstein, seria examinar os modos como colocamos essas imagens em nossas cabeças em primeiro lugar, para projetar o tipo de mundo em que este gesto faria sentido. A imagem da página seguinte pode funcionar como exemplo. A figura deve ser lida como um palimpsesto que exibe três relações superpostas: 1) entre um objeto real (a vela à esquerda) e uma imagem refletida, projetada ou afigurada desse objeto; 2) entre um objeto real e uma imagem mental em uma mente concebida (como em Aristóteles, Hobbes, Locke ou Hume) como um espelho, uma câmara escura, ou uma superfície para se desenhar ou imprimir; 3) entre uma imagem material e uma imagem mental. (Pode ser de ajuda imaginar o diagrama como três transparências superpostas: a primeira mostrando apenas as duas velas: a da esquerda, real; a da direita, uma imagem; a segunda, adicionando a cabeça humana para mostrar a introjeção mental da vela afigurada ou refletida; a terceira, somando o enquadramento ao redor da vela real para fazê-la espelhar o estatuto imaginário da vela à direita. Presumo, para que fique mais simples, que todas as inversões óticas foram retificadas). O que o diagrama exibe como um todo é a matriz das analogias (particularmente as metáforas oculares) que regem as teorias alemã, 1921) e em geral se considera que a abandonou no trabalho que leva a Philosophical Investigations (1953). Meu argumento será de que a teoria pictórica de Wittgenstein é compatível com sua crítica do imagético mental, e sua preocupação primordial era corrigir as más interpretações da teoria pictórica, particularmente as interpretações que a conectavam com a explicação empirista das imagens perceptuais ou com a noção positivista de uma linguagem ideal. 14 Cf. The Blue and Brown Books, 1958, p.89.

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representacionais da mente. Em particular, ele mostra como as divisões clássicas da metafísica ocidental (mente-matéria, sujeito-objeto) traduzem em um modelo de representação, as relações entre as imagens visuais e os objetos que elas representam. A própria consciência é entendida como uma atividade de produção, reprodução e representação pictórica regida por mecanismos como lentes e superfícies receptivas e agências para imprimir, marcar ou deixar rastros nessas superfícies.

Este modelo está claramente sujeito a uma ampla variedade de objeções: absorve todo tipo de percepção e consciência no paradigma visual ou pictórico; postula uma relação de simetria e similitude absoluta entre a mente e o mundo; e afirma a possibilidade de uma identidade ponto-a-ponto entre objeto e imagem, entre os fenômenos mundanos e sua representação na mente ou em símbolos gráficos. Apresento este modelo graficamente não para sustentar a sua exatidão, mas para tornar visível o modo pelo qual dividimos nosso universo na fala comum, especialmente na fala que toma a experiência sensorial como base de todo conhecimento. O modelo também nos oferece um modo de seguirmos literalmente o conselho de Wittgenstein de pôr as imagens mentais e físicas na mesma categoria, e nos ajuda a ver a reciprocidade e a interdependência destas duas noções. 31


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Permitam-me dizer de modo um pouco diferente. Se a metade do esboço aqui representada como a mente – isto é, minha mente, sua mente, todas as consciências humanas – fosse aniquilada, presumiríamos que o mundo físico continuaria existindo sem maiores problemas. Mas o inverso não aconteceria: se o mundo fosse aniquilado, a consciência não continuaria existindo (nisto, aliás, consiste o engano da simetria do modelo). Entretanto, quando tomamos o modelo como explicação do modo como falamos do imagético, a simetria não é enganosa. Se não houvesse mais mentes, não existiriam mais imagens, mentais ou materiais. O mundo pode não depender da consciência, mas as imagens no (para não mencionar as do) mundo claramente sim. E isso não só porque são necessárias mãos humanas para fazer uma imagem pictórica, ou um espelho ou qualquer outro tipo de simulacro (em certo sentido, os animais são capazes de presentificar imagens quando se camuflam ou quando imitam uns aos outros). Porque uma imagem não pode ser vista per se sem um ardil paradoxal da mente, uma habilidade de ver algo como estando e não estando ao mesmo tempo. Quando um pato responde a um chamariz, ou quando os pássaros picam as uvas das lendárias pinturas de Zêuxis, eles não estão vendo imagens: estão vendo outros patos, ou uvas reais; estão vendo as coisas mesmas, e não imagens das coisas. Mas, se a chave para o reconhecimento das imagens reais e materiais do mundo é nossa curiosa habilidade de dizer está e não está ao mesmo tempo, então devemos nos perguntar por que as imagens mentais deveriam ser consideradas mais ou menos misteriosas que as imagens reais. O problema que os filósofos e as pessoas comuns sempre tiveram com a noção de imagens mentais é que elas parecem ter uma base universal na experiência real e compartilhada (todos sonhamos, visualizamos e somos capazes, em graus diferentes, de re-presentificar sensações concretas a nós mesmos), mas não podemos apontar para elas e dizer Aí está! Essa é uma imagem mental. O mesmo tipo de problema ocorre, no entanto, se tento apontar para uma imagem real e explicar o que ela é para alguém que ainda não sabe o que é uma imagem. Aponto para a pintura de Zêuxis e digo Eis aí uma imagem. E a resposta é: Você quer dizer essa superfície colorida? Ou, Você se refere a essas uvas? Quando dizemos, então, que a mente é como um espelho ou como uma superfície desenhável, estamos postulando, inevitavelmente, a existência de outra mente que desenha ou decifra as imagens pictóricas na primeira. Porém, 32


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deve-se entender que a metáfora é, ao mesmo tempo, reversível: a lousa em branco, física, na parede da sala de aula, o espelho no meu guarda-roupa, a página à minha frente são o que são porque a mente os usa para re(a)presentar o mundo, e a si mesma, para si mesma. Se começarmos a falar como se a mente fosse uma tábula rasa ou uma câmara escura, não vai demorar muito para a página em branco ou a câmara começarem a ter suas próprias mentes, e a se tornarem lugares de consciência por direito próprio.15 Não se quer dizer com isso que a mente seja realmente uma página em branco ou um espelho, mas apenas que estes são modos pelos quais a mente é capaz de projetar a si mesma. Poderia projetar-se de outros modos: como um edifício, uma estátua, um gás ou fluido invisível, um texto, uma narrativa, uma melodia, ou nada em particular. Poderia abdicar de ter uma imagem pictórica de si, recusando toda auto-representação, do mesmo modo como podemos olhar uma pintura, uma estátua ou um espelho e não ver nenhum deles como um objeto representacional. Poderíamos ver os espelhos como objetos verticais brilhantes, ou as pinturas como massas de cor sobre superfícies planas. Não há uma regra de que a mente deve projetar, ou ver imagens pictóricas em si mesma, assim como não há uma regra de que temos que ir a uma galeria de arte, ou que, uma vez nela, devemos observar as pinturas. Se abolimos a noção de que há algo necessário, natural ou automático sobre a formação de imagens mentais e materiais, podemos fazer como sugere Wittgenstein e colocá-las na mesma categoria que os símbolos funcionais, ou, como em nosso modelo, no mesmo espaço lógico.16 Isto não elimina todas as diferenças entre as imagens mentais 15 Esse tipo de reciprocidade entre nossa figura dos signos materiais e a atividade mental é descrita de forma acertada por Aristóteles, em De Anima III, 4.430a, quando diz que “aquilo que a mente pensa está nela no mesmo sentido em que há letras nas tabuletas que não contém escritura”. As ideias, as imagens, o que a mente pensa (ou aquilo “no” que pensa) estão na mente tanto quanto as palavras desta página estão nela antes de serem impressas. 16 Meu argumento aqui se aproxima ao de Jerry Fodor em The Language of Thought (1975). Fodor discute os muitos argumentos decisivos contra a ur-doutrina do imagético mental no Empirismo, concentrando-se em particular na noção de que “os pensamentos são imagens mentais e se referem a seus objetos na medida em que (e só em virtude do fato de que) com eles se parecem” (p.174). Tal como assinala Fodor, o fato de que haja argumentos sólidos contra esta doutrina ele não se opõe a outras hipóteses que não fundamentam sua noção do imagético mental em uma teoria da cópia, mas que consideram as imagens como signos convencionais que devem ser interpretados em um arcabouço cultural. Fodor discute estas questões nas páginas 174 e seguintes.

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e as físicas, mas pode ajudar a desmistificar a qualidade metafísica ou mística desta diferença, e apaziguar nossa suspeita de que as imagens mentais são de algum modo inadequadas ou ilegitimamente modeladas a partir da coisa real. O caminho que vai do modelo original à analogia ilegítima poderia ser percorrido com a mesma facilidade na direção oposta. Assim Wittgenstein (1958) diz que “poderíamos perfeitamente substituir cada processo de imaginar por um processo de mirar um objeto ou qualquer pintura, desenho ou modelagem; e cada processo de falar a si por falar em voz alta ou escrever” (p.4), mas esta substituição também poderia acontecer no sentido oposto (e acontece). Poderíamos substituir com a mesma facilidade o que chamamos de a manipulação física dos signos (pintura, escritura, fala) por locuções como pensar sobre papel, pensar em voz alta, pensar em imagens etc. Um bom modo de tornar clara a relação entre as imagens mentais e as imagens físicas é refletir sobre o modo como acabamos de usar um diagrama para ilustrar a matriz de analogias que conecta teorias da representação com teorias da mente. Somos tentados a dizer que sempre houve, em nossas cabeças, uma versão mental do diagrama, antes que ele aparecesse na página, e que regia o modo pelo qual discutíamos o limite entre as imagens mentais e as imagens físicas. Bem, é possível que houvesse; ou, talvez, que ela só nos tenha ocorrido em certo ponto da discussão, quando começamos a utilizar palavras como fronteira e domínio. Ou talvez ela nunca nos ocorreu enquanto pensávamos essas coisas ou as escrevíamos, e foi só mais tarde, depois de muitas retificações, que ela se apresentou em nossa mente. Significaria isto que o diagrama mental esteve sempre ali como uma espécie de estrutura inconsciente profunda, determinando o nosso uso da palavra imagem? Ou, ele seria uma construção posterior, uma projeção gráfica do espaço lógico implicado em nossas proposições sobre o imagético? Em qualquer caso, não podemos considerar o diagrama como algo mental no sentido de algo privado ou subjetivo; ele é, antes, algo que surgiu na linguagem, e não simplesmente em minha linguagem, mas um modo de falar que herdamos de uma longa tradição de debates sobre mentes e imagens pictóricas. Nosso diagrama poderia ser considerado uma imagem verbal tanto quanto uma imagem mental, o que nos leva a este outro ramo notoriamente ilegítimo na árvore genealógica do imagético: a noção do imagético na linguagem. 34


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Uma breve história do imagético verbal Os pensamentos são as imagens das coisas, assim como as palavras são as imagens das coisas; e todos sabem que imagens e pinturas só são verdadeiras na medida em que constituem representações verdadeiras dos homens e das coisas[...]. Porque os poetas e pintores pensam que é de sua atribuição tomar a semelhança das coisas a partir de sua aparência. Joseph Trapp. Lectures on Poetry, 1711.17 Não é mais necessário para o entendimento de uma proposição imaginar algo em conexão com ela, do que fazer um esboço dela. Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, n. 396.18

Em oposição ao imagético mental, as imagens verbais parecem imunes à acusação de serem entidades metafísicas inescrutáveis, isoladas em um espaço privado e subjetivo. Afinal de contas, os textos e os atos de fala não são simplesmente assuntos de consciência, mas expressões públicas que estão por aí com todos os outros tipos de representações materiais que criamos: pinturas, estátuas, gráficos, mapas etc. Não precisamos dizer que um parágrafo descritivo é exatamente como uma pintura para ver que eles têm funções similares como símbolos públicos que projetam estados das coisas sobre os quais podemos alcançar acordos precários e provisórios. Um dos argumentos mais fortes a favor da pertinência da noção do imagético verbal aparece, ironicamente, na afirmação de Wittgenstein (1961) de que “uma proposição é uma figura [picture] da realidade[...] um modelo da realidade tal como a imaginamos”, entendendo isto não como uma metáfora, mas como uma questão de senso comum: À primeira vista, não parece que a proposição – tal como impressa no papel, por exemplo – seja uma figura da realidade de que ela trata. Tampouco a notação musical

17 Da Lição VIII: “Of the Beauty of Thought in Poetry”. Tradução de William Clarke e William Bowyer. London, 1742. Cf. ELLEDGE, 1961, v. 1, p.230-231. 18 Cf. WITTGENSTEIN, 1953, p.120.

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parece, à primeira vista, uma figura da música, nem nossa escrita fonética (o alfabeto) parece uma figura de nossa fala. Entretanto, estas linguagens sígnicas demonstram ser figuras, no sentido comum mesmo daquilo que representam (Tractatus, 4.01).

Este senso comum acaba por ser precisamente isto: Wittgenstein passa a argumentar que uma proposição é “uma semelhança daquilo de que é significado (Tractatus, 4.012), e sugere que, “para compreendermos o fundamento de uma proposição, devemos considerar a escrita hieroglífica, a qual afigura os fatos que descreve” (Tractatus, 4.106). É importante entender que as figuras que residem na linguagem e, de acordo com Wittgenstein, que ameaçam nos colocar numa armadilha com seus falsos modelos, não são bem o mesmo que as semelhanças e os hieróglifos. As figuras do Tractatus não são forças ocultas ou mecanismos de um processo psicológico. São traduções, isomorfismos, homologias estruturais: estruturas simbólicas que obedecem a um sistema de regras para a tradução. Wittgenstein as denomina por vezes de espaços lógicos, e o fato de que as considere aplicáveis à notação musical, à escritura fonética e inclusive ao sulco de um disco de gramofone indica que não se deve confundi-las com imagens gráficas em stricto sensu. A noção de Wittgenstein do imagético verbal poderia ser ilustrada, como vimos, pelo modelo que exibe as relações entre o imagético mental e o imagético material em modelos empíricos de percepção. Não é que este modelo corresponda a alguma imagem mental que necessariamente formamos à medida que pensamos sobre este tópico. Mas este modelo projeta no espaço gráfico o espaço lógico determinado por um conjunto típico de proposições empiristas. E, no entanto, toda a questão sobre se é correto denominar imagem as imagens verbais nos provoca o que Wittgenstein chamaria de câimbra mental, porque a distinção que ela propõe entre expressões literais e figurativas está enredada, no discurso literário, com a noção, que queremos explicar, de imagem verbal. Em geral, os críticos literários veem a linguagem literal como uma forma de expressão monótona, sem adornos e des-afigurada, isenta de imagens verbais e figuras retóricas. A linguagem figurada, por outro lado, consiste naquilo a que em geral aludimos quando falamos do imagético verbal.19 Em outras palavras, a expressão imagético verbal 19 Este é o segundo significado do imagético verbal (depois de “imagens produzidas na mente pela linguagem”) que oferece Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics, 1974, p.363.

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parece ser uma metáfora para as metáforas mesmas. Não surpreende que muitos críticos literários tenham sugerido abolir o termo do uso crítico. Antes que o termo seja aposentado, no entanto, deveríamos submetê-lo a uma reflexão crítica e histórica. Poderíamos começar assinalando que a noção de imagético verbal designa dois tipos muito distintos, talvez antitéticos, de práticas linguísticas. Por um lado, falamos de imagético verbal quando queremos aludir à linguagem metafórica, figurativa ou ornamentada, uma técnica que desvia a atenção do assunto literal da enunciação em direção a outra coisa. Mas também falamos de imagético verbal à maneira de Wittgenstein, como o modo pelo qual uma proposição, “como um tableau vivant[...] apresenta um estado de coisas [Sachverhalt]” (Tractatus, 4.0311). Esta perspectiva do imagético verbal encara-o como o sentido literal de uma proposição, esse estado de coisas que, se existisse no mundo real, tornaria verdadeira a proposição. Quem formulou mais claramente esta versão do imagético verbal na teoria poética moderna foi Hugh Kenner (1959), que afirma que uma imagem verbal é simplesmente o que as palavras nomeiam realmente, uma definição que conduz a uma visão da linguagem poética como expressão literal, não metafórica.20 A noção modernista de Kenner das imagens verbais como objetos simples e concretos tem amplo precedente num corpo de pressupostos comuns sobre a linguagem que retroage pelo menos ao século XVII.21 Refiro-me ao pressuposto de que o que as palavras significam são as imagens mentais que foram impressas em nós como resultado de nossa experiência dos objetos. Por este motivo, devemos pensar numa palavra (como homem, por exemplo) como uma imagem verbal duplamente afastada do original que representa. Uma palavra é uma imagem de uma ideia, e uma ideia é uma imagem de uma coisa, uma cadeia de representação que pode ser afigurada pela adição de outro elo com o esboço do modelo empírico de cognição:

20 Cf. The Art of Poetry, 1959, p.38. A estratégia usual diante dos dois significados do imagético verbal é confundi-los em um, como faz C. Day-Lewis, em Poetic Image (1947), quando fala em uma sentença do imagético poético como “um epíteto, uma metáfora, um símile” (p.18), e como uma passagem “puramente descritiva” (p.18). 21 Me apoio aqui em importante artigo de Ray Frazer, “The Origin of the Term ‘Image’” (1960).

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Figurei o homem real (ou a impressão original dele) com mais detalhes pictóricos que o boneco de palitos que representa a imagem mental ou ideia. Tal contraste poderia ser utilizado para ilustrar a distinção que propõe Hume entre impressões e ideias em termos de força e vivacidade, termos empregados no vocabulário da representação pictórica para diferenciar pinturas reais ou vívidas de pinturas amaneiradas, abstratas ou esquemáticas. Hume segue Hobbes e Locke em seu uso de metáforas pictóricas para descrever a cadeia de conhecimentos e significações: as ideias são imagens débeis ou sensações de deterioração que se conectam com as palavras por meio de associações convencionais. Hume (1748) considera que o método apropriado para clarificar o significado das palavras, especialmente os termos abstratos, é remontar a cadeia de ideias até sua origem: Quando chegamos a suspeitar que um determinado termo filosófico está sendo usado sem um significado ou ideia de fundo (como acontece tantas vezes), devemos apenas nos perguntar: de que impressão derivou essa suposta ideia? (HUME, 1955, p.30).

As consequências poéticas desse tipo de teoria da linguagem são, obviamente, um pictorialismo absoluto, uma compreensão da arte da linguagem como a arte de reviver as impressões originais dos sentidos. Talvez tenha sido Addison (1712) quem expressou com maior eloquência a confiança nesta arte: As palavras, quando são bem escolhidas, têm uma força tão grande que uma descrição geralmente nos dá ideias mais vivas que a visão das coisas mesmas. O leitor sente que uma cena tem cores mais fortes e mais vivas em sua imaginação 38


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quando ela brota das palavras, mais do que quando ele faz um exame real da cena que essas palavras descrevem. Neste caso, o poeta parece capturar o melhor da natureza. De fato, ele toma a paisagem como tal, mas lhe dá traços mais vigorosos, intensifica sua beleza, e assim anima toda a composição, de modo que as imagens que fluem dos próprios objetos aparecem débeis e apagadas em comparação com aquelas que vêm das expressões (ADDISON, 1961, p.60).

Para Addison e outros críticos do século XVIII, a imagem verbal não é um conceito metafórico nem um termo para designar (literalmente) metáforas, figuras ou outros ornamentos da linguagem ordinária. A imagem verbal (usualmente reduzida como descrição) é a pedra angular de toda linguagem. As descrições meticulosas e precisas produzem imagens que vêm das expressões verbais mais vividamente que as imagens que fluem dos próprios objetos. Na teoria de Addison da leitura e da escrita, as espécies, que, segundo Aristóteles, fluíam dos objetos para imprimir-se em nossos sentidos, transformam-se em propriedades das palavras mesmas. Esta perspectiva sobre a poesia e sobre a linguagem em geral como processos de produção e reprodução pictóricas foi acompanhada por um declínio do prestígio das figuras e tropos retóricos na teoria literária inglesa dos séculos XVII e XVIII. A noção de imagem substituiu aquela de figura, que começou a ser considerada uma marca da linguagem ornamentada que saiu de moda. O estilo literário do imagético verbal é simples e claro, um estilo que se estende aos objetos, representando-os (como reivindica Addison) mais vivamente do que os objetos podem representar a si mesmos. Isso em contraste com o ornamento enganoso da retórica, agora considerada uma simples questão de relações entre signos. Quando as figuras retóricas são mencionadas, ora são descartadas como excessos artificiais de uma era pré-racional e pré-científica, ora são definidas de maneira que as acomodam à hegemonia da imagem verbal. Metáforas são redefinidas como breves descrições; “alusões e símiles são descrições colocadas em um ponto de vista contraditórios[...] e hipérbole geralmente não é mais que uma descrição levada além dos limites da probabilidade” (NEWBERRY, 1762, p.43). Mesmo as abstrações são tratadas como objetos visuais, pictóricos, projetados nas imagens verbais da personificação.22 22 Cf. O que diz Wasserman (1950) em “Inherent Values of Eighteenth-Century Personification”.

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Nas poéticas romântica e moderna, a imagem verbal manteve seu domínio da compreensão da linguagem literária, e a aplicação confusa do termo na expressão literal e figurativa continuou encorajando um amontoado de noções como as de descrição, substantivos concretos, tropos, termos sensoriais, e inclusive motivos semânticos, sintáticos e fonéticos recorrentes sob o rótulo de imagético. Entretanto, para poder realizar todo esse trabalho, a noção do imagético teve que ser sublimada e mistificada. Os escritores românticos normalmente assimilavam o imagético mental, verbal e pictórico dentro do processo misterioso da imaginação, o qual era comumente definido em contraste à mera rememoração das imagens pictóricas mentais, à mera descrição de cenas externas, e (em pintura) à mera afiguração das coisas visíveis externas, em oposição ao espírito, à sensação ou à poesia de uma cena.23 Em outras palavras, sob a tutela da imaginação, a noção do imagético foi partida em dois, e produziu-se uma distinção entre a imagem pictórica ou gráfica, que seria uma forma inferior – externa, mecânica, morta, e muitas vezes associada com o modelo empirista de percepção –, e uma imagem superior, que seria interna, orgânica e vivente. Apesar da afirmação de M.H. Abrams de que as figuras de expressão (como a lâmpada) substituem as figuras da mímesis (o espelho), o vocabulário do imagético e do registro de uma percepção visual que continua dominando as discussões sobre a arte verbal no século XIX. Na poética romântica, entretanto, a imagem é aprimorada e abstraída em noções como o esquematismo kantiano, o símbolo coleridgeano e a imagem não representacional da forma pura ou estrutura transcendental. Esta imagem sublimada e abstrata desloca e subsome a noção empirista da imagem verbal como uma representação clara da realidade material, do mesmo modo como, outrora, esta imagem pictórica subsumira as figuras da retórica.24 Esta progressiva sublimação da imagem alcança sua culminância lógica quando o poema ou o texto em sua totalidade são vistos como uma imagem ou ícone verbal e quando esta imagem é definida, não como uma semelhança ou impressão pictórica, mas como uma estrutura sincrônica em seu espaço 23 Os estudos clássicos sobre esta sublimação são de Frank Kermode, em The Romantic Image (1957), e de M. H. Abrams, em The Mirror and the Lamp (1953). 24 Cf. Meu ensaio “Diagrammatology”, em Critical Inquiry 7:3 (1981), para uma discussão do interesse de Wordsworth na geometria e de sua tendência a evocar imagens poéticas evanescentes ou apagadas.

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metafórico (aquele que, em palavras de Pound, apresenta um complexo intelectual e emocional em um instante de tempo). A ênfase que os Imagistas davam às descrições concretas e particulares em seus poemas consiste em um resíduo da noção setecentista que vimos em Addison de que a poesia busca superar em vivacidade e imediatez as imagens que fluem dos próprios objetos (o nada de ideias exceto nas coisas de W. Carlos Williams parece ser outra versão desta ideia). Mas a típica ênfase modernista recai na imagem como uma espécie de estrutura cristalina, um padrão dinâmico da energia intelectual e emocional encarnada por um poema. A crítica formalista é tanto uma poética como uma hermenêutica para esta classe de imagem verbal, mostrando-nos como os poemas contêm sua energia em matrizes de tensão arquitetônica, e demonstrando a congruência destas matrizes com o conteúdo proposicional do poema. Com a imagem modernista como forma ou estrutura pura, volto no meu ponto inicial neste tour da imagem verbal, de volta à afirmação do jovem Wittgenstein de que a imagem verbal realmente importante é a imagem pictórica no espaço lógico projetado por uma proposição. Os positivistas lógicos, entretanto, tomaram equivocadamente esta imagem pictórica como uma espécie de janela não mediada para a realidade, a realização do século XVII de uma linguagem perfeitamente transparente que daria acesso direto aos objetos e às ideias.25 Wittgenstein passou grande parte de sua carreira tentando corrigir este erro de leitura, insistindo em que as imagens pictóricas na linguagem não são cópias não mediadas de qualquer realidade. As imagens pictóricas que parecem habitar nossa linguagem, estejam elas projetadas no olho da mente ou no papel, são signos artificiais e convencionais tanto como as proposições com as quais estão associadas. O estatuto dessas imagens pictóricas é como o de um diagrama geométrico em relação a uma equação algébrica.26 É por isso que Wittgenstein sugere que devemos desmistificar a noção do imagético mental, substituindo-a 25 Costuma-se associar o início dessa confusão com um dos primeiros leitores do Tractatus, Bertrand Russel, cuja introdução de 1922 prepara a cena de sua recepção: “O Sr. Wittgenstein se ocupa das condições de uma linguagem logicamente perfeita; não que haja uma linguagem logicamente perfeita, ou que acreditamos sermos capazes, aqui e agora, de construir uma linguagem perfeita, mas que a inteira função da linguagem é ter significado, e só cumpre essa função na medida em que se aproxima da linguagem ideal que postulamos” (Tractatus, X). 26 Nesse sentido, as imagens pictóricas de Wittgenstein se assemelham aos ícones de C. S. Peirce. Veja o que diz Peirce em “The Icon, Index and Symbol”, em Collected Papers (1931 -1958), sobre a iconicidade de diagramas e as equações algébricas.

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por seu equivalente material (substituam todo o processo de imaginar pelo processo de olhar um objeto ou pelo de pintar, desenhar ou modelar). É por isso que o pensar, para Wittgenstein, não consiste em um processo privado e obscuro, mas na atividade de trabalhar com signos, tanto verbais como pictóricos.27 A força da crítica de Wittgenstein à imagem mental e verbal pode ser ilustrada ao mostrar, na epistemologia empírica, um novo modo de ler as conexões entre palavra, ideia e imagem na imagem pictórica:

Tentem ler este quadro, agora, não como um movimento do mundo para a mente e daí para a linguagem, mas como um movimento de um tipo de signo a outro, como uma história ilustrada do desenvolvimento dos sistemas de escrita. A progressão vai agora da imagem pictórica até um pictograma relativamente esquemático e daí à expressão por meio dos signos fonéticos, uma sequência que pode ser melhor detalhada pela inclusão de um novo signo intermediário, o hieróglifo ou ideograma (lembrem aqui da sugestão de Wittgenstein no Tractatus de que uma proposição é como uma escrita hieroglífica que afigura os fatos que descreve):

27 Cf. WITTGENSTEIN, The Blue and Brown Books, 1958, p.4-6.

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O que o hieróglifo mostra é o deslocamento da imagem original por uma figura de linguagem; tecnicamente, uma sinédoque ou uma metonímia. Se lemos o círculo e a flecha como imagens pictóricas de um corpo e de um falo, logo o símbolo é sinedóquico, apresentando a parte pelo todo; se o entendemos como um escudo e uma lança, então ele é metonímico, substituindo objetos associados pela coisa mesma. Esta espécie de substituição pode, evidentemente, operar também por meio de jogos verbais-visuais, de modo que o nome da coisa projetada é associado com outra coisa cujo nome soe similar, como neste pictograma familiar:

Estas ilustrações deveriam sugerir um outro sentido literal da noção do imagético verbal (claramente, o mais literal de todos no que ele denota a linguagem escrita, a tradução da fala em um código visível). Quando a linguagem é escrita, ela se liga a figuras e imagens pictóricas, materiais e gráficas, que são abreviadas ou condensadas de distintos modos para formar a escrita alfabética. Mas as figuras da escrita e do desenho, desde o princípio estão separadas das figuras de linguagem, das maneiras de falar. A imagem pictórica de uma águia nos petróglifos dos índios do noroeste pode ser a assinatura de um guerreiro, o emblema de uma tribo, um símbolo de coragem, ou simplesmente a imagem pictórica de uma águia. O significado da imagem pictórica não se declara por meio de uma referência simples e direta ao objeto que afigura. Pode afigurar uma ideia, uma pessoa, uma imagem sonora (no caso de um pictograma como o que acabamos de ver), ou uma coisa. Para saber como lê-la, devemos saber como ela fala, o que é apropriado dizer sobre ela e em seu nome. A ideia de uma imagem pictórica falante, que frequentemente se invoca para descrever, por um lado, certos tipos de presença ou intensidade poética e, por outro, a eloquência pictórica, não é meramente uma figura para falar de certos efeitos especiais nas artes, mas que aparece na origem comum da escritura e da pintura. Se a figura do pictograma ou hieróglifo exige um observador que saiba o que dizer, ela também tem um modo de dar forma às coisas que podem ser ditas. Consideremos a ambiguidade do emblema/assinatura/ideograma do 43


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petróglifo águia. Se o guerreiro é uma águia ou como uma águia, ou (o que é mais provável) se é a Águia ele mesmo que vai para a batalha, e volta para nos contar sua história, podemos esperar que a imagem pictórica seja estendida. A Águia, sem dúvida, verá o seu inimigo de longe e se lançará sobre ele inadvertidamente. A imagem verbal da Águia é um complexo de fala, afiguração e escritura que não só descreve o que faz, mas que prediz e modela o que pode fazer e o que fará. É sua letra, uma assinatura que é tanto verbal como pictórica, tanto uma narração de suas ações como uma síntese daquilo que é. A figura do hieróglifo tem uma história que corre paralela às histórias da imagem verbal e mental. As elaboradas figuras da retóricas e alegorias, que foram abandonadas como excessos supersticiosos ou góticos pelos críticos do século XVII, foram frequentemente comparadas com hieróglifos. Shaftesbury (1711) as denominou imitações falsas, emblemas mágicos, místicos, monásticos e góticos, e as contrapôs a uma clara e verdadeira escritura-espelho, que daria foco ao assunto do escritor e não a seus espirituosos artifícios.28 Mas houve um modo de se redimir os hieróglifos para a era moderna e ilustrada, o qual consistiu em separá-lo de sua associação com a magia e o mistério, em vê-los como modelos de uma linguagem nova e científica que garantiria uma comunicação perfeita e um acesso aguçado à realidade objetiva. Esta esperança de linguagem universal e científica foi associada, por Vico e por Leibniz, com a invenção de um novo sistema de hieróglifos baseado na matemática. A imagem pictórica, neste momento, estava sendo psicologizada, ao mesmo tempo que lhe davam um papel privilegiado de mediadora entre palavras e coisas na epistemologia do empirismo e nas teorias literárias baseadas no modelo do espelho. Os próprios hieróglifos egípcios foram submetidos a uma interpretação revisionista e anti-hermética (mais notavelmente a do bispo Warburton no século XVIII) que tratava os antigos símbolos como signos transparentes e universalmente legíveis que foram ocultados pela passagem do tempo.29 28 Cf. Characteristics of Men, Manners, Opinions, Times (1711). In: ELLEDGE, 1961, p.180, v.1. As observações de Shaftesbury sobre os hieróglifos aparecem em RAND, Benjamin (ed.). Second Characteres, or the Language of Forms, 1914, p.91. 29 Esta interpretação anti-hermenêutica dos hieróglifos aparece em “Divine Legation of Moses Demonstrated.”, de WilliamWarburton, em Works of [...] William Warburton (1811), editado por Richard Hurd.

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A imagem verbal como hieróglifo recuperou grande parte de sua sublimidade e mistério na poética do romantismo, como era de se esperar, e teve um papel central no modernismo também. Como marcos deste papel, podemos tomar o uso que fez Wittgenstein do hieróglifo como modelo para a teoria pictórica da linguagem e a fascinação de Ezra Pound com a escritura ideográfica chinesa como modelo para a imagem poética. E, mais recentemente, vimos a figura do hieróglifo ser tomada na crítica pós-moderna, como, por exemplo, na noção de gramatologia de Jacques Derrida, uma ciência da escritura que retira a linguagem falada de seu lugar dominante nos estudos da linguagem e da comunicação, substituindo-a pela noção geral de graphein ou gramme, marca, traço, letra ou o outro sinal gráfico que faz da “linguagem[...] uma possibilidade fundada sobre a possibilidade geral da escritura” (1976, p.52). Derrida restitui a antiga figura do mundo como um texto (uma figura que, na poética Renascentista, fez da natureza um sistema de hieróglifos), mas com uma nova torção. Uma vez que o autor de tal texto já não está mais entre nós, ou perdeu sua autoridade, não existe fundamento para o signo, não há forma de deter a interminável cadeia de significação. Tal compreensão pode nos levar a uma percepção de mise en abyme, um nauseante vazio de significantes em que a única estratégia apropriada parece ser um abandono niilista ao livre jogo e à vontade arbitrária. Ou pode nos levar à percepção de que nossos signos, e, portanto, nosso mundo, são um produto da ação e do entendimento humano; e de que, ainda que nossos modos de conhecimento e representação sejam arbitrários e convencionais, eles são constituintes das formas de vida, das práticas e das tradições no interior das quais devemos fazer opções epistemológicas, éticas e políticas. A resposta de Derrida à pergunta O que é uma imagem? seria sem dúvida: Nada mais que outro tipo de escritura, um tipo de signo gráfico que se dissimula como uma transcrição direta do que representa, ou da maneira como as coisas parecem, ou do que elas são essencialmente. Este tipo de desconfiança da imagem só parece apropriada em um tempo em que, mais do que as cenas reproduzidas na vida cotidiana e nas várias representações midiáticas, a própria perspectiva da janela parece exigir uma vigilância interpretativa constante. Tudo – a natureza, a política, o sexo, as outras pessoas – se apresenta agora como uma imagem, pré-inscrita com uma inautenticidade equivalente às “espécies” aristotélicas sob uma nuvem de suspeita. A pergunta, para nós, parece ser não apenas O que é uma imagem?, mas Como nós transformamos as imagens, e a imaginação que as produz, em forças dignas de confiança e respeito?. 45


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Um modo de responder a esta pergunta tem sido descartar por completo as noções de imaginação e representação mental como miragem cartesiana. O conceito de imagens mentais e verbais, e toda sua maquinaria cênica de espelhos e superfícies para a escritura, a impressão e o desenho; tudo isso tal como propõe Richard Rorty tem que ser abandonado enquanto a maquinaria de um paradigma antiquado, a confusão de filosofia com psicologia que tem dominado o pensamento ocidental sob o nome de epistemologia nos últimos trezentos anos.30 Este é um dos pontos centrais do behaviorismo, com o qual estou de acordo na medida em que ele se opõe à noção de que o conhecimento é uma cópia ou uma imagem da realidade impressa na mente. Está claro que o conhecimento será melhor compreendido como uma questão de práticas sociais, disputas e acordos, e não como a propriedade de algum modo particular de representação natural ou não mediada. E, no entanto, há algo de curiosamente anacrônico no ataque moderno contra a noção de imagens mentais como representações privilegiadas, quando o ponto principal de todos os estudos modernos das imagens materiais tem sido precisamente a abolição de tais privilégios. É difícil desbancar uma teoria pictórica da linguagem quando já não existe uma teoria pictórica das próprias imagens pictóricas.31 A solução para nossas dificuldades, então, não consistiria em abandonar as teorias representacionais da mente ou da linguagem. Isso seria tão fútil como todas as tentativas iconoclastas de purgar do mundo as imagens. O que podemos fazer, ao contrário, é retraçar os passos por meio dos quais a noção de imagem como figura transparente ou representação privilegiada começou a dominar nossas noções da mente e da linguagem. Se pudermos entender como as imagens alcançaram o seu atual poder, talvez possamos nos encontrar em condições de nos reapropriar da imaginação que as produz. A imagem como semelhança Procedi até agora sob o pressuposto de que o sentido literal da palavra imagem é o de representação gráfica ou pictórica, um objeto concreto e 30 Esta resposta tem sido popular ao menos desde o ataque de Thomas Reid contra o conceito de ideia como imagem mental de Hume. Na discussão que segue tomei como base a crítica que faz Richard Rorty em Philosophy and the Mirror of Nature (1979). 31 Nesse ponto faço eco com o argumento de Colin Murray Turbayne em “Visual Language from the Verbal Model” (1969).

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material; e de que noções como as do imagético mental, verbal ou perceptual são derivações impróprias deste sentido literal, extensões figurativas do pictórico a regiões nas quais as imagens pictóricas não podem meter a colher. Agora é o momento de reconhecer que toda esta história poderia ser contada de outro modo, do ponto de vista de uma tradição que entende a palavra imagem, em sentido literal, como uma noção definitivamente não pictórica ou, inclusive, anti-pictórica. Esta é a tradição que começa com o relato da criação do homem à imagem e semelhança de Deus. As palavras que agora traduzimos como imagem (tselem em hebraico, eikon em grego, imago em latim) são adequadamente compreendidas, e os comentadores nunca se cansam de nos recordar, não como qualquer imagem pictórica material, mas como uma semelhança abstrata, geral e espiritual.32 O complemento comum à palavra imagem, da locução e semelhança (demuth em hebraico, homoioos em grego, similitude em latim), deve-se entender não como um acréscimo de informação, mas como prevenção contra uma possível confusão: deve-se entender imagem não como imagem pictórica mas como semelhança, como uma questão de similitude espiritual. Não nos deveria causar surpresa que uma tradição religiosa obcecada com os tabus contra os ídolos e a idolatria queira enfatizar o sentido espiritual e imaterial das imagens. O comentário de um estudioso do Talmud como Maimônides (1135-1204) nos ajuda a ver os termos exatos em que se entendia este sentido espiritual: “o termo imagem se aplica à forma natural, quer dizer, à noção em virtude da qual uma coisa se constitui como uma substância e se torna o que é. Seria a realidade verdadeira da coisa na medida em que esta última é este ser particular” (MAIMÔNIDES, 1963, p.22). Deve-se enfatizar que para Maimônides esta imagem (tselem) é literalmente a realidade essencial de uma coisa, e é somente por obra de uma espécie de corrupção que ela passa a ser associada com coisas corporais como os ídolos: “os ídolos são chamados de imagens por 32 Cf. CLARKE, The Holy Bible with Commentary and Critical Notes by Adam Clarke (1811), v. 1. O comentário de Clarke oferece uma glosa típica da Gênese 1:26, dividindo a proclamação de Deus Façamos o homem a nossa imagem, a nossa semelhança em duas partes: “O que é dito ao começo [Façamos o homem] se refere somente ao corpo do homem; o que é dito depois [a nossa imagem, a nossa semelhança] se refere a sua alma. Esta foi feita à imagem e semelhança de Deus. Agora, como o Ser Divino é infinito não está limitado em partes, nem é definível por paixões; portanto, não pode ter imagem corporal a partir da qual cria o corpo do homem. A imagem e semelhança devem ser necessariamente intelectuais”.

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se considerar que o que se buscava neles subsistia nelas, e não em sua forma ou configuração” (p.22). A imagem verdadeira, literal, é a imagem mental ou espiritual; a imagem imprópria, derivativa e figurativa é a forma material percebida por nossos sentidos, especialmente o olho.33 Seja como for, esta é uma declaração radical da perspectiva segundo a qual uma imagem é uma semelhança, não uma imagem pictórica. Inclusive Maimônides admite que, no uso prático, uma imagem consiste em um termo equivocado ou antibólico que pode referir-se a uma forma específica (isto é, à identidade ou espécie de uma coisa) ou a uma forma artificial (sua forma corporal)34. Mas ele é muito claro a respeito da diferença entre os dois significados, e muito seguro sobre qual seria original e autêntico, e qual derivaria de uma aplicação incorreta. Quero sugerir que sua tendência a privilegiar a versão abstrata e ideal da imagem sintetiza tanto o pensamento judeu como o cristão sobre essa questão.35 Essa ideia de um significado original espiritual de uma palavra, e uma aplicação posterior, derivada, pode ser de difícil compreensão para nós, sobretudo porque nosso entendimento da história das palavras se orientou pela epistemologia empírica que descrevi anteriormente: tendemos a pensar que a aplicação material e mais concreta de uma palavra contém 33 Cf. AUGUSTINE, Saint. The Confessions. Cambridge: Harvard University Press, 1977, Book VII. A análise que faz S. Agostinho da idolatria enquanto subordinação da verdadeira imagem espiritual à falsa imagem material: “esse povo[...] adorava a cabeça de uma besta de quatro patas em vez de adorar a ti, voltando em seus corações o Egito, e inclinando tua imagem (sua alma) diante da imagem de um bezerro que come feno”. 34 A forma específica de Maimônides pode contrastar-se com o uso que faz Aristóteles do termo espécies, em seu sentido literal, material e especular, enquanto a imagem propagada por um corpo e impressa em nossos sentidos. As espécies de Aristóteles são as formas artificiais de Maimônides. 35 Um bom sinal do poder da noção essencialista da imagem como portadora da presença interna daquilo que representa é o fato de que este pressuposto foi compartilhado tanto pelos iconoclastas como por iconófilos na batalha sobre as imagens religiosas em Bizâncio do século VIII e IX (Nesse ponto há uma chamativa similitude com a tendência dos iconófobos e iconódulos da psicologia moderna a estar de acordo com as teorias da semelhança natural da imagem). Os dois lados do debate consideravam que a Eucaristia, por exemplo, era um “dos signos verdadeiros e presentes do corpo e do sangue de Cristo”, e, portanto, “digno de adoração”, citado por Pelikan, em The Liturgy of Basil, 1974, v. 2, p.94. A “questão entre eles”, aponta Pelikan, “não era[...] a natureza da presença eucarística, mas suas implicações para a definição da imagem e para o uso das imagens. Devia estender-se a presença eucarística a um princípio geral sobre a mediação sacramental do poder divino através dos objetos materiais? Ou era um princípio exclusivo que descartava toda extensão da graça a outros meios, como as imagens?”(p.94).

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seu sentido original e primitivo porque temos um modelo segundo o qual as palavras derivam das coisas por meio das imagens. Este modelo tem a sua maior força em nossa compreensão da palavra imagem. Então, o que seria exatamente esta semelhança espiritual que não deve ser confundida com qualquer imagem material? Devemos notar em primeiro lugar que ela parece incluir uma presunção de diferença. Dizer que uma árvore, ou um membro de uma espécie de árvore, é como outra não equivale a advogar que elas são idênticas, mas que são similares em alguns aspectos e não em outros. Normalmente, entretanto, não dizemos que toda semelhança é uma imagem. Uma árvore é como outra, mas não dizemos que uma é a imagem da outra. A palavra imagem só aparece em relação a esta classe de semelhanças quando tentamos construir uma teoria sobre o modo como percebemos a similitude entre uma árvore e outra. Esta explicação recorrerá tradicionalmente a um objeto intermediário ou transcendental (uma ideia, forma ou imagem mental) que proporciona um mecanismo para explicar como surgem nossas categorias. A origem das espécies, então, não é simplesmente uma questão de evolução biológica, mas dos mecanismos da consciência tal como descritos nos modelos representacionais da mente. Mas devemos apontar que estes objetos ideais – formas, espécies ou imagens – não precisam ser entendidos como imagens pictóricas ou impressões. Estes tipos de imagens também podem ser entendidos como listas de predicados que enumeram as características de uma classe de objetos, como por exemplo: árvore 1) objeto alto e vertical; 2) copa verde frondosa; 3) enraizada no solo. Não há possibilidade de confundir este grupo de proposições com uma imagem pictórica de uma árvore, mas me permito sugerir que é isso o que queremos dizer quando falamos de uma imagem que não é (apenas) uma imagem pictórica. Podemos usar as palavras modelo ou esquema ou ainda definição para explicar o que queremos dizer quando falamos de uma imagem que não é (apenas) uma imagem pictórica.36 A imagem como semelhança, então, pode ser 36 Cf. DENNETT, “The Nature of Images and the Introspective Trap”, In: BLOCK, Imagery, 1981. Esta interpretação verbal ou descritiva da imagem é invocada geralmente pelos iconófobos da psicologia cognitiva como Daniel Dennett. “Todo o imagético mental”, sustém Dennett, enfatizando as aspas, “incluindo o que vemos e o que alucinamos, é descritivo”. Dennett sugere que a cognição é mais parecida a escrever e a ler do que a pintar ou a mirar imagens pictóricas: “A analogia com a escritura tem seus inconvenientes mas segue sendo um bom antídoto contra a analogia pictórica. Quando

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entendida como uma série de predicados que enumeram similitudes e diferenças.37 Mas se isso é tudo o que esta classe de imagem espiritual implica, devemos nos perguntar por que se adotou, em alguns momentos, o nome de imagem, que a confundiu com a representação pictórica. Encorajar este uso certamente não serviu aos interesses dos inimigos da idolatria; pode-se conjeturar que a terminologia da imagem foi o resultado de uma espécie de deriva metafórica, a busca de uma analogia concreta que se literalizou sob a pressão de tendências idólatras entre povos vizinhos e entre os próprios israelitas. A confusão entre semelhança e imagens pictóricas poderia também ser útil a uma casta sacerdotal preocupada com a educação dos leigos iletrados. O sacerdote saberia que a verdadeira imagem não está em nenhum objeto material, mas cifrada na compreensão espiritual; isto é, verbal e textual, enquanto uma imagem exterior podia ser dada às pessoas para satisfazer seus sentidos e estimular sua devoção.38 A distinção entre percebemos algo no ambiente, não somos conscientes de imediato de cada pontinho de cor, mas do que se destaca na cena, um comentário editado das coisas que nos interessam” (p.54-55). A análise de Dennett me parece irrepreensível mas está mal endereçada. Poderia aplicar sua análise da escritura com a mesma facilidade da construção e percepção de imagens reais, gráficas, e as imagens mentais; a consciência imediata que em geral se atribui à cognição pictórica não é mais que um subterfúgio. Vemos as imagens gráficas, como tudo o mais, seletivamente e com o tempo (o que não significa negar que há hábitos e convenções especiais para a observação de diferentes tipos de imagens). A afirmação de Dennett de que as imagens mentais não são como as imagens reais só pode sustentar-se por meio de uma caracterização duvidosa das imagens reais como coisas que implicam uma cognição holística e instantânea, e que excluem toda temporalidade, e de uma insistência em que as imagens reais, à diferença das mentais, “devem parecer-se com o que representam” (p.52). 37 Esta noção da imagem como uma questão de palavras tem seu precedente teológico na afirmação de que a imagem espiritual, a imago dei, é não só a alma ou o espírito do homem, mas também a palavra de Deus. Em sequência, o comentário de Clemente de Alexandria sobre esta questão: “Porque a imagem de Deus é Sua Palavra (e a Palavra divina, a luz que é o arquétipo da luz, é uma criatura genuína do Espírito)”; e uma imagem da palavra é o homem verdadeiro, isto é, o espírito no homem, de quem por essa razão se diz que tem sido criado à imagem de Deus e à Sua semelhança, porque graças a seu coração compreensivo ele é como a Palavra ou Razão divina, e assim é razoável. Mas as estátuas com forma humana, sendo imagens de barro do homem visível e terreno, e distantes da verdade, demonstram ser apenas uma impressão temporal sobre a matéria”. Clemente de Alexandria chama estátuas como as de Zeus Olímpico “uma imagem de uma imagem”. Cf. Clement of Alexandria, Exhortation to the Greeks, 1979, p.215. 38 Veja na nota precedente a afirmação de Clemente de Alexandria de que a verdadeira imagem é a palavra de Deus. Os iconófilos eram bastante habilidosos em realizar distinções sutis para preservar o uso popular e estendido das imagens e para responder à acusação de que praticavam a idolatria (muito forte a julgar pelas aparências). Eram estabelecidas distinções entre as imagens utilizadas para a adoração e a veneração e as imagens utilizadas com propósitos educativos (a

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imagem espiritual e material, interior e exterior, nunca foi uma simples questão de doutrina teológica, mas foi sempre uma questão política, do poder das castas sacerdotais à luta entre movimentos conservadores e reformistas (os iconófilos e iconoclastas), passando pela preservação da identidade nacional (a luta dos israelitas para expurgar a idolatria). A tensão entre os atrativos da semelhança espiritual e da imagem material jamais foi expressa de modo mais comovente que no tratamento, por Milton, de Adão e Eva como imago dei no quarto livro do Paraíso perdido: Mas dois o atraem mais, firmes e altivos, Qual divindades e detalhe mais nobre. Em sua majestade pareciam senhores de tudo E de seu glorioso Autor a imagem. Na mirada divinal lhes resplandece A verdade, a sapiência, a santidade severa e pura, Severa, mas disposta em verdadeira liberdade filial.39

Milton deliberadamente confunde o sentido visual e pictórico da imagem com um entendimento invisível, espiritual e verbal da mesma40. Tudo decorre da função equivocada da palavra-chave miradas (looks), que pode referir-se à Eucaristia, a cruz, as estátuas dos santos, e as diferentes cenas da Eucaristia exemplificam esta escala descendente da aura sagrada atribuída ao imagético). O apelo dos iconoclastas aos textos bíblicos que proibiam o uso de ídolos foi usado contra eles de acordo com uma lógica de culpado por associação: dado que estas proibições só eram tomadas literalmente e praticadas com fidelidade por judeus e mulçumanos, os iconoclastas podiam ser caracterizados como conspiradores heréticos contra tradições cristãs imemoriais. Pelikan (1974) discute com mais profundidade estas estratégias no capítulo 3, do v.2 de seu livro já citado. 39 Two of far nobler shape erect and tall, Godlike erect, with native honour clad In naked majesty seemed lords of all And worthy seemed, for in their looks divine The image of their glorious Maker shone, Truth, Wisdom, Sanctitude severe and pure, Severe, but in true filial freedom plac’d (P.L. 4: 288-293) 40 Para uma interpretação do uso da ambiguidade no projeto geral do Paraíso perdido (Paradise Lost). Cf. YU, Anthony C. “Life in the Garden: Freedom and the Image of God”, 1980.

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aparência exterior de Adão e Eva, a seu talhe mais nobre, sua nudez e firmeza, ou ao sentido menos tangível de miradas (looks) como a qualidade dos olhares, o caráter de suas expressões. Esta qualidade não é uma imagem visual que parece uma outra coisa; é mais como a luz por meio da qual se pode ver uma imagem, uma questão mais de resplandescência que de reflexo. E, para explicar como essa imagem brilhava em suas miradas divinas, Milton deve recorrer a uma série de predicados, a uma lista de atributos espirituais abstratos que Adão e Eva têm em comum com Deus, a verdade, a sapiência, a santidade severa e pura, junto com uma diferença qualificativa para sublinhar que o homem não é idêntico a Deus: severa, mas disposta em verdadeira liberdade filial: Deus, em sua solidão perfeita, não tem necessidade de relações filiais, mas, para que sua imagem seja aperfeiçoada na humanidade, a relação social e sexual do homem e da mulher deve estar instituída em verdadeira liberdade filial.41 Mas, então, o homem é criado à imagem de Deus no sentido de que se aparenta com Deus, ou no sentido de que podemos dizer coisas similares sobre o homem e sobre Deus? Milton pretende sustentar as duas possibilidades, desejo que podemos associar a seu materialismo pouco ortodoxo, ou, talvez, mais fundamentalmente, a uma transformação histórica no conceito do imagético que tendia a identificar a noção de semelhança espiritual (em particular, a alma racional que faz do homem uma imagem de Deus) com certa espécie de imagem material. A poesia de Milton é o cenário de uma luta entre a desconfiança iconoclasta da imagem exterior e a fascinação inconofílica com seu poder, uma luta que se manifesta em seu procedimento de fazer proliferar imagens visuais para evitar que seus leitores deem foco a qualquer imagem pictórica ou cena em particular. Para ver como foi preparado o cenário desta luta, é necessário que observemos mais de perto a revolução que identificou as imagens pictóricas ou formas artificiais com as imagens como semelhanças (as formas específicas de Maimônides).

41 O enfoque que propõe Milton da relação e da queda em desgraça de Adão e Eva pode ser entendido com precisão em termos da dialética entre imagem interna e imagem externa, iconoclastia e iconofilia. Eva era a criatura da imagem interna, espiritual; Adão é o ser verbal, intelectual, que se opõe ao silêncio e a passividade de Eva. Eva é culpada de uma idolatria narcisista, e Satanás a tenta ao tratá-la como uma Deusa. Adão faz de Eva a deusa de sua idolatria. O objetivo de Milton, entretanto, não é simplesmente denegrir a imagem exterior, sensível, mas afirmar sua necessidade na imagem humana de Deus, e dramatizar seu atrativo trágico e inelutável.

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A tirania da imagem pictórica A revolução em que aqui penso foi, é claro, a invenção da perspectiva artificial, primeiramente sistematizada por Alberti em 1435. O efeito dessa invenção foi o de convencer uma civilização inteira de que ela possuía um método de representação infalível, um sistema para a produção automática e mecânica de verdades sobre os mundos materiais e mentais. O melhor índice da hegemonia da perspectiva artificial é o modo como ela nega a sua própria artificialidade e pretende ser uma representação natural do modo como as coisas parecem; do modo como vemos, ou (numa frase que coloca Maimônides de ponta-cabeça) do modo como as coisas são realmente. Ajudada pelo domínio político e econômico da Europa ocidental, a perspectiva artificial conquistou o mundo da representação sob o estandarte da razão, da ciência e da objetividade. A enorme quantidade de manifestações contrárias, por artistas, de que há outros modos de registrar o que vemos realmente, não foi capaz de balançar a convicção de que essas imagens pictóricas têm uma espécie de identidade com a visão humana natural e o espaço externo objetivo. E a invenção de uma máquina (a câmera) construída para produzir esse tipo de imagem, ironicamente, não fez senão reforçar a convicção de que esse é o modo natural de representação. Evidentemente o natural é aquilo que uma máquina que construímos pode fazer por nós. Mesmo E.H.Gombrich, que tanto fez para revelar o caráter histórico e convencional desse sistema, parece incapaz de romper o encanto de cientificismo que o ronda, e frequentemente retrocede a uma perspectiva na qual o ilusionismo pictórico proporciona as chaves para as fechaduras de nossos sentidos, frase que ignora a sua própria advertência de que nossos sentidos são janelas através das quais olha a nossa imaginação, aculturada e voluntariosa, e não uma porta que se abre com uma única chave mestra.42 O modo cientificista como Gombrich compreende a perspectiva artificial é especialmente vulnerável quando é formulado em afirmações a-históricas e sócio-biológicas, segundo as quais nossos sentidos ditam certos modos privilegiados de representação. Isto soa mais plausível, entretanto, quando apresentado na terminologia sofisticada da teoria da informação e das interpretações popperianas do descobrimento científico. Gombrich parece poupar a imaginação voluntariosa, tratando a perspectiva não como um cânone fixo de representação, mas como um método flexível 42 Cf. Art and Illusion, 1956, p.359.

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de tentativa e erro no qual os esquemas pictóricos se assemelham a hipóteses científicas confrontadas aos fatos da visão. A produção de hipóteses pictóricas esquemáticas é para Gombrich sempre anterior ao seu emparelhamento com o mundo visível.43 O único problema com esta formulação é que não existe nenhum mundo visível neutro e unívoco com o qual emparelhar as coisas, nem fatos não mediados sobre o que, ou como, nós vemos. O próprio Gombrich foi o expoente mais loquaz da afirmação de que não há visão sem propósito, de que o olho inocente é cego.44 Mas, se a visão é um produto da experiência e da aculturação incluindo a experiência de produzir imagens pictóricas, então o que emparelhamos com as representações pictóricas não é uma realidade nua, mas um mundo já envergado em nossos sistemas de representação. Neste ponto, é importante se proteger de mal entendidos. Não estou argumentando a favor de um relativismo superficial que abandone padrões de verdade ou a possibilidade do conhecimento válido. Estou defendendo um relativismo duro e rigoroso que considere o conhecimento como um produto social, uma questão de diálogo entre diferentes versões do mundo, incluindo diferentes linguagens, ideologias e modos de representação. A noção de que há um método científico tão flexível e amplo que possa conter todas estas diferenças e decidir entre elas é uma ideologia útil para cientistas e para um sistema social comprometido com a autoridade da ciência, mas me parece equivocada tanto na teoria como na prática. A ciência, tal como tem sustentado Paul Feyerabend, não é um procedimento ordenado para se construir hipóteses e “falseá-las” diante de fatos independentes e neutros; ela é um processo tumultuoso e altamente político pelo qual fatos auferem a sua autoridade como partes constitutivas de um modelo de mundo que veio a parecer natural.45 O processo científico é tanto uma questão 43 Cf. Art and Illusion, 1956, p.116. 44 Gombrich também tem sido um dos porta-vozes destacados da abordagem linguística do imagético. Nunca se cansa de dizer a nós que a visão, a figuração, a pintura e a observação nua são atividades muito parecidas com a leitura e a escritura. E, no entanto, recentemente se tem distanciado de maneira firme dessa analogia para pender para uma interpretação naturalista e científica segundo a qual tipos de imagens contêm garantias epistemológicas inerentes. Veja, por exemplo, sua distinção entre imagens “feitas pelo homem”, “feitas a máquina” ou “científicas” em “Standards of Truth: The Arrested Image and the Moving Eye” (MITCHELL, 1980, p.181-217). O capítulo 3 desse livro, The Language of Images, oferece uma discussão mais completa dos complexos giros de Gombrich em torno da questão das interpretações naturais e linguísticas do imagético. 45 Cf. FEYERABEND, Against Method, 1978.

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de retórica, intuição e contra-indução (isto é, a adoção de pressupostos que contradizem os fatos evidentes) como o é de observação metódica e compilação de informações. Os maiores descobrimentos científicos frequentemente se seguiram a decisões de se ignorar os fatos evidentes e de se buscar uma explicação que desse conta de uma situação que nunca poderia ser observada. O experimento, como assinala Feyerabend (1978), não é a simples observação passiva, mas “a invenção de uma nova espécie de experiência” (p.92), propiciada pela vontade de deixar que “a razão[...] afirme o que a experiência sensível parecia contradizer” (p.101). O princípio da contra-indução, de ignorar os fatos evidentes e visíveis para se produzir uma nova espécie de experiência, tem uma contrapartida direta no mundo da produção de imagens, a saber: o artista visual, mesmo aquele que trabalha na tradição do que se conhece como realismo ou ilusionismo, se preocupa tanto com o mundo invisível como com o visível. Não podemos entender uma imagem pictórica a menos que captemos os modos pelos quais ela mostra o que não se pode ver. Uma coisa que não pode ser vista em uma imagem pictórica ilusionista, ou que tende a se esconder, é precisamente a sua própria artificialidade. Todo o sistema de pressupostos sobre a racionalidade inata da mente e o caráter matemático do espaço é como a gramática que nos permite produzir ou reconhecer uma proposição. Tal como afirmou Wittgenstein: uma imagem pictórica não pode afigurar sua forma pictórica: apresenta-a, assim como uma oração não pode descrever sua forma lógica, podemos apenas empregá-la para descrever uma outra coisa (Tractatus, 2.172). Esta ideia de figurar o invisível pode parecer menos paradoxal se recordarmos que os pintores sempre pretenderam nos apresentar mais do que encontra o olho, geralmente sob a rubrica de termos como expressão. E, como vimos em nossa breve revisão do antigo conceito de imagem como semelhança espiritual, sempre houve uma percepção, um sentido primordial de fato, segundo o qual as imagens deveriam ser entendidas como algo interior e invisível. Parte da força do ilusionismo perspectivista residia em sua aparente capacidade de revelar não só o mundo exterior e visível, mas também a natureza mesma da alma racional cuja visão representava.46 Não surpreende que a categoria de imagens realistas, ilusionistas ou naturalistas tenha se convertido no foco de uma idolatria moderna e secular, vinculada com a 46 Tal como diz Joel Snyder, “para um admirador da pintura do Renascimento precoce o espetáculo destas pinturas deve ter sido extraordinário, algo perto de observar a alma”. Cf. “Picture Vision”. In: MITCHELL, 1980, p.246.

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ideologia da ciência e do racionalismo ocidentais, e que a hegemonia destas imagens tenha gerado reações iconoclastas na arte, na psicologia, na filosofia e na poética. O milagre real tem sido a exitosa resistência dos artistas visuais a esta idolatria, sua insistência em nos mostrar, com os recursos que conseguem reunir, mais do que o olho pode ver. Figurando o invisível Às vezes, o melhor modo de desmitificar um milagre, especialmente quando este se cristalizou em um mistério, é olhá-lo com os olhos incólumes de um descrente. A noção de que a pintura é capaz de expressar uma essência invisível causou pouca impressão no olhar cético de Mark Twain. De pé, diante do quadro, eis o que ele teve para dizer do famoso retrato de Beatrice Cenci pintado por Guido Reni: Num quadro histórico, uma boa e clara legenda tem, a título de valor informativo, peso equivalente a uma tonelada de atitudes e expressões significativas. Em Roma, pessoas de sentimentos finos e indulgentes param e choram diante do quadro célebre “Beatrice Cenci no Dia Anterior à sua Execução”. Isso mostra o que pode fazer uma legenda. Se não conhecessem a pintura, contemplariam-na sem maior emoção e diriam: Jovem Encatarrada; Jovem com a Cabeça em um Saco (TWAIN, 1923, s/p.).

A resposta cética de Twain às coisas mais delicadas na arte é o eco de uma crítica mais sofisticada dos limites da expressão pictórica. Em seu Laocoonte (1873), Lessing argumentou que a expressão, seja de pessoas, ideias ou desenvolvimentos narrativos é imprópria, ou, no melhor dos casos, de importância secundária para a pintura. O artista do conjunto escultórico de Laocoonte mostrou os rostos em uma espécie de repouso não pela influência de alguma doutrina estóica que exigisse a supressão da dor, mas porque o fim mesmo da escultura (e de todas as artes visuais) é a reprodução da beleza física. Toda expressão das fortes emoções atribuídas a Laocoonte na poesia grega equivaleria a deformar o equilíbrio harmônico da estátua e desviá-la de seu fim principal. Lessing de modo similar, argumentava que a pintura era incapaz de contar histórias porque sua imitação era mais estática do que progressiva, e que ela não deveria tentar articular ideias, pois estas se expressavam com mais propriedade na linguagem do que no imagético. A intenção de expressar ideias universais de 56


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forma pictórica, adverte Lessing, não produziria outra coisa senão as formas grotescas da alegoria; o que, em última instância, poderia levar a pintura a abandonar sua esfera própria e a degenerar em um método de escritura arbitrário (o pictograma ou o hieróglifo).47 Se descontarmos a óbvia hostilidade dos comentários de Twain e Lessing sobre a pobreza da expressão pictórica, encontramos uma explicação bastante clara do que se entende por pintar o invisível. A expressão é equivalente ao hábil plantio de certas pistas em um quadro, que nos permitem a realizar um ato de ventriloquia, um ato que dota a pintura de eloquência e, particularmente, de uma eloquência visual e não-verbal. Uma pintura pode articular ideias abstratas por meio do imagético alegórico, prática que, como aponta Lessing, se aproxima dos procedimentos de notação dos sistemas de escritura. A imagem de uma águia pode afigurar um predador emplumado, mas expressa a ideia de sabedoria, e funciona então como um hieróglifo. Ou podemos entender a expressão em termos dramáticos ou de oratória, tal como o fizeram os humanistas do Renascimento, que formularam uma retórica da pintura histórica completa com uma linguagem da expressão facial e do gesto, uma linguagem suficientemente rica para nos permitir verbalizar o que as figuras afiguradas pensam, sentem ou dizem. E a expressão não tem por que limitar-se aos predicados que podemos atar aos objetos registrados de uma percepção visual: o cenário, a disposição na composição e o esquema cromático também podem ter carga expressiva, de modo que podemos falar de estados de ânimo e atmosferas emocionais cujos correlatos verbais apropriados seriam algo da ordem de um poema lírico. Sem dúvida, o aspecto expressivo do imagético pode tornar-se uma presença tão predominante que a imagem se converte em algo totalmente abstrato e ornamental, que não representa nem figura nem espaço, apresenta simplesmente os seus próprios elementos materiais e formais. À primeira vista, pode parecer que a imagem abstrata escapou ao reino da representação e da eloquência verbal, deixando para trás a mímesis figurativa ou aspectos literários como a narrativa e a alegoria. Mas a pintura expressionista abstrata é, para usar a sentença de Tom Wolfe (mas não a sua atitude derrogatória), uma palavra pintada, um código pictórico a exigir uma defesa verbal tão elaborada como a requisitada 47 Cf. LESSING, 1969, capítulo X.

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por qualquer outro modo tradicional de pintar, a metafísica Ersatz da teoria da arte.48 As manchas de cores e as pinceladas sobre a tela se transformam, no contexto apropriado (isto é, na presença do ventríloquo apropriado), em afirmações sobre a natureza do espaço, da percepção e da representação. Se pareço adotar a atitude irônica de Twain em face das pretensões da expressão pictórica, não é porque eu pense que a expressão seria impossível ou ilusória, mas porque nossa compreensão dela, muito frequentemente, é obscurecida pela mística da representação natural que obstrui nossa compreensão da representação mimética. Twain disse que a legenda vale mais, como informação, que uma tonelada de expressões significativas. Mas talvez devêssemos perguntar a Twain quanto valeria a legenda, em termos de informação ou de qualquer outra coisa, sem a pintura de Guido Reni, ou sem toda a tradição de representação da história dos Cenci em imagens pictóricas, dramáticas ou literárias. A pintura é uma confluência de tradições pictóricas e verbais, nenhuma das quais é evidente para os olhos inocentes de Twain, e por isso ele mal pode ver o que ela é e muito menos reagir a ela. O ceticismo de Twain e Lessing a respeito da expressão pictórica é útil na medida em que revela o caráter necessariamente verbal da imaginação do invisível. É enganoso no que condena como impróprio ou não natural este suplemento verbal da imagem. Os dispositivos de representação que permitem às pessoas de sentimentos finos e indulgentes reagirem diante da pintura de Reni podem ser sinais arbitrários e convencionais que dependem do nosso conhecimento prévio da história. Mas os mecanismos de representação que permitem a Twain ver uma Jovem Encatarrada; Jovem com a Cabeça em um Saco, embora mais fáceis de aprender, não são menos convencionais, nem estão menos vinculados à linguagem. Imagem e palavra O reconhecimento de que as imagens pictóricas são inevitavelmente convencionais e contaminadas pela linguagem não tem por que nos lançar em um abismo de significantes infinitamente regressivos. O que isso implica para o estudo da 48 Cf. WOLFE, Tom. The Painted Word, 1975. Do mesmo modo que Twain e Lessing, Wolfe considera que a dependência da pintura a respeito dos contextos verbais é algo inerentemente apropriado. Minha perspectiva é de que isto seria inevitável, que a propriedade é uma questão separada que somente pode ser resolvida na aplicação do juízo estético a imagens particulares.

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arte é simplesmente que algo como a noção renascentista de ut pictura poesis e a irmandade das artes sempre nos acompanha. A dialética da palavra e da imagem parece ser uma constante no tecido de signos que uma cultura urde ao seu redor. O que varia é a exata natureza do tecido, a relação entre urdidura e trama. A história da cultura é, em parte, a história de uma prolongada luta pela supremacia entre signos pictóricos e linguísticos, cada lado reivindicando para si certos direitos de propriedade sobre uma natureza a que só um deles teria acesso. Por momentos, esta luta parece resolver-se em uma relação de livre intercâmbio ao longo de fronteiras abertas; em outros momentos (como no Laocoonte de Lessing), as fronteiras estão fechadas e declara-se uma paz apartada. Entre as versões mais interessantes e complexas desta luta, está o que podemos chamar de relação de subversão, em que imagético ou linguagem olham dentro de si mesmas e ali encontram, à espreita, o seu elemento oposto. A filosofia da linguagem, desde o nascimento do empirismo, perseguiu uma versão desta relação: a suspeita de que, sob as palavras, sob as ideias, a referência definitiva na mente é a imagem, a impressão da experiência externa impressa, pintada ou refletida na superfície da consciência. Foi esta imagem subversiva que Wittgenstein expulsou da linguagem, aquela que os behavioristas tentaram eliminar da psicologia, e que os teóricos da arte contemporânea têm tentado banir da própria representação pictórica. A imagem pictórica moderna, como a antiga noção de semelhança, afinal se revela linguística em seu funcionamento interno. Por que temos essa compulsão de conceber a relação entre palavras e imagens em termos políticos, como uma luta pelo território, uma competição entre ideologias rivais? Tento sugerir algumas respostas detalhadas a esta pergunta nos capítulos de Iconology, mas por ora ofereço uma resposta curta: a relação entre palavras e imagens reflete, no interior do reino da representação, da significação e da comunicação, as relações que postulamos entre os símbolos e o mundo, os signos e seus significados. Imaginamos que o abismo entre palavras e imagens é tão profundo como o que existe entre palavras e coisas, entre cultura e natureza no sentido mais amplo desses termos. A imagem é o signo que simula não ser um signo, fazendo-se passar por ela (ou, para o crente, de fato atingindo) imediatez natural e presença. A palavra é seu outro, uma produção artificial e arbitrária da vontade humana que perturba a presença natural introduzindo elementos não naturais no mundo: o tempo, a consciência, a história e a intervenção alienante da mediação simbólica. Versões desta distância reaparecem 59


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nas distinções que aplicamos a cada tipo de signo. Existe a imagem natural e mimética, que parece ou captura aquilo que representa, e sua rival pictórica, a imagem artificial e expressiva que não pode se parecer com aquilo que representa porque tal coisa só pode ser transmitida por palavras. Existe a palavra que consiste na imagem natural daquilo que ela significa (como a onomatopeia) e a palavra como significante arbitrário. Existe a separação, na linguagem escrita, entre a escritura natural, construída com imagens pictóricas de objetos, e os signos arbitrários dos hieróglifos e do alfabeto fonético. O que fazer diante dessa contenda entre os interesses da representação verbal e os da representação pictórica? Proponho historicizá-la e tratá-la não como uma questão de acordo pacífico conforme os termos de uma teoria dos signos exaustiva, mas como uma luta que leva as contradições fundamentais de nossa cultura até o coração do próprio discurso teórico. A questão, então, não é de suturar a fenda entre palavras e imagens, mas de ver a quais interesses e forças ela serve. Evidentemente, só se pode manter tal perspectiva por uma visão que comece sendo cética quanto à justeza de qualquer teoria particular da relação entre palavras e imagens, e que também preserve uma convicção intuitiva de que existe uma diferença que é fundamental. Parece-me que Lessing, por exemplo, está totalmente correto quando considera que a poesia e a pintura são modos de representação radicalmente diferentes, mas que seu erro (no qual a teoria ainda participa) é a reificação desta diferença em termos de oposições análogas como natureza e cultura, espaço e tempo. Que espécies de analogias seriam menos reificadas, menos mistificadas, mais apropriadas como base para uma crítica histórica da diferença entre palavra-imagem? Um modelo poderia ser a relação entre duas linguagens diferentes que possuem uma longa história de interação e tradução mútua. E, esta analogia, é claro, está longe de ser perfeita. Imediatamente, ela faz pesar a balança para o lado da linguagem e minimiza as dificuldades que aparecem quando queremos estabelecer conexões entre palavras e imagens. Sabemos conectar as literaturas inglesa e francesa com mais precisão do que sabemos relacionar a literatura e a pintura inglesa. A outra analogia que se oferece é a relação entre álgebra e geometria: a primeira trabalha com signos fonéticos arbitrários que lê progressivamente; a outra exibe figuras igualmente arbitrárias no espaço. A atração desta analogia é ver como se dá a relação entre palavra e imagem em um texto ilustrado, e como a relação entre os dois modos é uma relação complexa 60


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de tradução, interpretação, ilustração e ornamentação mútua. O problema com a analogia consiste em ser perfeita demais: parece sustentar um ideal impossível de tradução sistemática e regulada entre palavra e imagem. Por vezes, no entanto, um ideal impossível pode ser útil, na medida em que reconhecemos sua impossibilidade. A vantagem do modelo matemático é a de implicar a complementariedade interpretativa e representacional da palavra e da imagem, o modo como a compreensão de uma parece atrair inevitavelmente a outra. Na época moderna, a direção principal desta atração pareceria ir da imagem, concebida como um conteúdo ou material superficial e manifesto, à palavra, concebida como um significado latente e oculto espreitando por trás da superfície pictórica. Na Interpretação dos sonhos, Freud (1965) comenta sobre a incapacidade dos sonhos de expressarem conexões lógicas e verbais e pensamentos oníricos latentes comparando o material psíquico daquilo de que é feito os sonhos com o material das artes visuais: As artes plásticas da pintura e da escultura laboram, de fato, sob uma limitação similar quando comparadas à poesia, a qual pode fazer uso do discurso; e aqui, uma vez mais, a razão da incapacidade delas reside na natureza do material que estas duas formas de arte manipulam em seus esforços para expressar alguma coisa. Antes que a pintura se familiarizasse com as leis da expressão que a governam, ela fez tentativas de superar essa desvantagem. Em pinturas antigas, pequenas legendas vinham suspensas nas bocas das pessoas representadas, contendo, em caracteres escritos, os discursos que os artistas desesperavam por representar pictoricamente (FREUD, 1965, p.347).

Para Freud a psicanálise é uma ciência das leias de expressão que governa a interpretação da imagem muda. Seja porque a imagem aparece projetada nos sonhos ou nas cenas da vida cotidiana, a análise proporciona um método pra extrair a mensagem verbal oculta da superfície pictórica enganosa e inarticulada. Mas devemos lembrar também que há toda uma tradição contrária, que pensa a interpretação como seguindo direção oposta, de uma superfície verbal à visão que se esconde por trás dela, da proposição à figura no espaço lógico que lhe confere sentido, da recitação linear do texto às estruturas ou formas que controlam sua ordem. O reconhecimento de que estas imagens pictóricas que Wittgenstein descobriu na linguagem não são mais naturais, automáticas ou necessárias do que quaisquer outros tipos de imagens que produzimos pode nos ajudar a fazer uso 61


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delas de modo menos mistificado. Entre estes usos se destacaria, de um lado, um renovado respeito pela eloquência das imagens e, de outro, uma renovada fé na clarividência da linguagem, uma percepção de que o discurso projeta, sim, mundos e estados de coisas que podem ser reproduzidos concretamente e confrontados com outras representações. Talvez a redenção da imaginação esteja na aceitação do fato de que criamos grande parte de nosso mundo a partir do diálogo entre representações verbais e representações pictóricas, e de que nossa tarefa não consiste em renunciar a este diálogo em prol de um ataque direto à natureza, mas em ver que a natureza (já) conforma ambos os lados da conversa. Referências bibliográficas ADDISON, Joseph. The Spectator, n. 416, 1712 (The Pleasures of the Imagination, v. 6). In: ELLEDGE, Scott (ed.). Eighteenth Century Critical Essays. Ithaca, New York: Cornell University Press, 1961 ALEXANDRIA, Clement of. Exhortation to the Greeks. Translation by G. W. Butterworth. Loeb Classical Library, Cambridge: Harvard University Press, 1979. ARISTÓTELES. De Anima II. Translation by W.S. Hett. Cambridge: Harvard University Press, 1957. AUGUSTINE, Saint. (ed.). The Confessions. Book VII. Translation by William Watts. Cambridge: Harvard University Press, 1977. BARTHES, Roland. The Rhetoric of the Image. In:____. Image/Music/Text. Translation by Stephen Heath. New York: Hill & Wang, 1977, p.32-51. BENJAMIN, Walter. The Work of Art in the Age of Mechanic Reproduction. In: ARENDT, Hannah (ed.). Illuminations. New York: Shocken Books, 1969, p.217-251. BLOCK, Ned Joel (ed.). Imagery. Cambridge, MA: MIT Press, 1981. BOORSTIN, Daniel J. The Image. New York: Harper & Row, 1961. CLARKE, Adam. The Holy Bible...with Commentary and Critical Notes by Adam Clarke. New York: Ezra Sargeant, v. 1, 1811. DAY-LEWIS, Cecil. Poetic Image. London: Jonathan Cape, 1947. DENNETT, Daniel. The Nature of Images and the Introspective Trap. In: 62


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TRANSVISUALITY: ON VISUAL MATTERING 1 Anders Michelsen

As we know from the idiom, a picture is worth a thousand words. But what does that mean? What does it mean that the picture, allegedly by its visual nature, can be worth more? And more than words? Nevertheless, it is fair to argue that this kind of conundrum has been a driving force in the approach to the visual since the beginning of depiction. Fascination with the visual, what it is, what it can do, whether it can be trusted – for instance, in the shape of pictures – has proceeded along with hesitation. The visual brings something into the foreground, it appears, but at the cost of scepticism. A main issue seems to be the problem of intelligibility, of understanding what the visual is, of what is evoked: the recurring and classic theme of aliquid stat pro aliquo (i.e. something stands for something else). For instance, in painterly depiction, this theme has been reinforced by a long association between imagery and a certain craft of picture making, opening a long history of interpretation of painting, print, and murals, from Sandro Botticelli’s The Birth of Venus (1480s) and Francis Bacon’s triptychs (1944-1986) to Cindy Sherman’s photography from the 1970s onwards. Or, in a different sense, it is present in a recurring scepticism with regard to the status of such depiction, reinforced over centuries 1 A warm thanks to Heidrun Krieger Olinto and Karl Erik Schøllhammer, in addition to the team of Visual Studies and Literature (Estudos Visuais e a Literatura) at the XIV International Seminar of Literary Studies (XIV Seminário Internacional de Estudos de Literatura), PUC-RIO 2017, as well as to Isabel Capeloa Gill and The Lisbon Summer School for the Study of Culture, at which an early version of this paper was presented during the event ‘Transvisuality’, 2016, as well as to Frauke Wiegand, University of Copenhagen (UCPH). The paper develops ideas put forward in the two collections on ‘transvisuality’ (see references in this article) from Liverpool University Press, including a forthcoming third volume, Purposive Action: Design and Branding of visuality, due in 2018, as well as the monograph Trans Visual, Leiden & Boston: Brill Academic Publishers, 2019.

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by waves of cultural, religious and philosophical iconoclasm, from Plato’s founding cave allegory in The Republic (380 BC) to Martin Heidegger’s shrewd text The Age of the World Picture (1977). The idea of transvisuality seeks to develop a new approach to the visual beyond the issue of aliquid statpro aliquo. It aims at developing a practice-based theory of visual expression as a kind of doing, which allows one to focus on the very transience coming hesitantly to the fore when saying a picture is worth a thousand words. The idea of transvisuality approaches the visual as productive, in the sense that it adds constructively to the world. The visual is not predominantly an issue of aliquid statpro aliquo, but a conveyer of something that is thus creative by its own means. It is something that cannot really be grasped if we keep to the mutual grappling (DELEUZE, 2006, p.57) of the visible and the sayable which informs our idiom, whether one needs the other or not, that is, the visible understood in light of the sayable, in words, or conveying something much different than a sign of language. Plato’s cave allegory is a case in point. This famous parable is one origin of aliquid statpro aliquo and has continued to impact our assertions to the present day, to such an extent, in fact, that one often overlooks that it says something very interesting about what the visual creates. Prisoners are chained in the depths of a cave. In this position, they are forced to see shadows appearing on the wall in front fabricated by somebody holding items up before a fire; shadows of men passing along the wall carrying all sorts of vessels, and statues and figures of animals made of wood and stone and various materials.2 The pictures on the wall are illusions of the real, and the set up – the image-machine – is infused with manipulation, provoking a perpetual crisis of intelligibility. In Plato’s description, the remedy is the opposite of the machine, to ascend into the light of truth outside the cave, and short circuit the projection of images, which in subsequent thought will take many forms, by entering, for instance, the visual into a word of creation. But Plato’s cave is also a doing which brings about the visual: a model for visualizing as practice. The puppeteers are practitioners and what they bring forward 2 Here quoted from Plato, The Republic, translated by Benjamin Jowett, Book VII. The Internet Classics Archive http://classics.mit.edu/Plato/republic.8.vii.html. Accessed: 5/9 2018: 18.49.

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is a creation – one wonders if the prisoners are, in fact, not well entertained despite Plato’s contempt and worry! Put differently: the spectacle follows not from untruth but from a flux of what is happening in the cave: the materiality of the situation, we might say, from what Gilles Deleuze in his critique of Plato’s simulacrum called “subtle, fluid and tenuous elements” (DELEUZE, 1990, p.273). The idea of transvisuality is interested in such elements: the visual as something producing results beyond itself, something that has the quality or state of being transient .3 Transience must be understood in terms of practice, that is, of acting otherwise, as in the cave allegory, just as much as representing otherwise, the cornerstone of the Western approach to the visual, which is caught in the scepticism of Platonic puppetry. The idea of transvisuality asserts for the visual a new transient matter, deeply committed to practices that create and recreate the world, with Deleuze’s terms, subtle, fluid and tenuous elements: what Cornelius Castoriadis describes as “emergence, continued creation, incompletion […] that is never filled out but rather transforms itself into another incompletion” (CASTORIADIS, 1997, p.284). By doing so it also suggests an answer to the founding paradox of visual culture studies, that “our culture (is) increasingly a visual one” (STURKEN; CARTWRIGHT, 2001, p.1) 4 without such studies suggesting how or why it can be so. Issues of transience in visual culture – inner and outer? To start from a standpoint of practice, we may argue that visual culture studies do not only follow the academic agenda of a pictorial turn (MITCHELL, 1994) over the past decades, seeking systems of meaning in visual representation as the “inextricable weaving together of representation and discourse, the imbrication of visual and verbal experience” (p.83) as W.J.T. Mitchell argues in the 1990s. They also follow, perhaps most importantly, a massive propensity emerging with a new spectaclism that affects society and culture with a multitude of visual dynamics: a world more reliant on the visual, on spectacle, on social relations between people mediated by images in a multitude of ways, as famously 3 ‘Transient’. Merriam-Webster. https://www.merriam-webster.com/dictionary/transient. Accessed: 12/08 2017:13.11. 4 See also MIRZOEFF, Nicholas. An Introduction to Visual Culture, New York: Routledge, 1999 and ROSE, Gillian. Visual Methodologies. An Introduction to the Interpretation of Visual Materials. London: Sage Publications, 2001.

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argued by Guy Debord (2014) in the 1960s and discussed by observers such as Béla Balázs and Walter Benjamin with prescience much earlier. Equally important, this aspect is at a radical distance from many, if not all, earlier and more restrained conjectures of the visual. It resonates with the assertions of Cornelius Castoriadis when he argues that the visual is inherently related to a new form of social creativity and its multiple emerging practices: We would miss, on the one hand and above all, the fundamental fact that there is nothing visible that is fully given and completely made in which the seer could insert herself, any more, indeed, that there is a “representational picture”, but rather emergence, continued creation, incompletion […] that is never filled out but rather transforms itself into another incompletion (CASTORIADIS, 1997, p.284).

The issue of spectacle goes much further than Debord’s radical scepticism to raise a profound question of not only what a world relying more on the visual may amount to (in contrast to, for instance, a predominance of language, or quite differently, of economy, ethnicity, demography, biology, or any other modern assertion of determination), but also a question of what can be assumed to be visual at all. If the visual is pervading the world, can it still be grasped by the attempt to determine a notion of picture – in a further sense by the delimitations of aliquid stat pro aliquo? Since their inception as an academic topic in the late 1980s, visual culture studies have remained part of postmodern, critical discourse on representation concerned with aliquid statpro aliquo, including current approaches to what in general is called image science [Bildwissenschaft] (BELTING, 2011; BREDEKAMP, 2003), or ideas such as an ecology of images (MANGHANI, 2013, p.29-30) as well as the long overdue critical efforts at rewriting the biased (Western and male) history of the visual that have been pioneered in visual culture studies by the work of scholars such as Nicholas Mirzoeff. However, the question I want to ask is whether the longstanding idea of the visual as predominantly an issue of aliquid statpro aliquo – as in Plato’s cave allegory – has become a special case of a quite different problem. If we keep to the lingering modern dichotomy of inner and outer at the basis of the allegory – in the cave, out of the cave, etc. –, of seeing and seen, of spectator and image, of image and imagining, of aliquid vis-a-vis aliquo, as it were, of representation and represented, visual culture appears along with a serious dispersal. 70


TRANSVISUALITY

At one end of the dichotomy we see widespread suggestions of an inner dispersal in neurobiology, which renders anything inner or mindful diffuse, when observing that only a part of human vision takes place in the eye, i.e., in the ocular apparatus. The manifest vision we take for granted when we wake up in the morning seeing regresses into organisations of matter in the nervous system that have little to do with anything we directly see.5 Ironically, such an inner dispersal is radically complemented in present debates on visual culture by an outer dispersal: a surge of cultural, anthropological and social matters with regard to the visual as representation, as a visuality, for instance, that determines “how we are able, allowed, or made to see” (FOSTER, 1988, p.9). What is left of the visual? However, after such moves towards what Martin Jay termed “ocular-eccentricity” (1993, p.591) we need to ask: what is left of the visual and how does this question relate to an assumption of the visual as emergence, continued creation, incompletion? We seem to be at a strange moment, moving beyond bodies and languages, as Alain Badiou asserts in the introduction to Logic of Worlds (2009), for instance, the languages assumed to effect visualities of how we are able, allowed, or made to see or the bodies which, in our context, in some capacity, have the quality of inner and outer. But the right question is: what then, what now? The visual seems everywhere present but the challenges that transpire do not necessarily seem spectacular in the sense of Debord and many others. Rather, they point to a compossible world filled with practices (or what Bruno Latour would term endless actor-networks), so to speak, which seems quite different from modern beliefs of what amount to a world and a society, for instance, in a Kantian, Hobbesian, or Marxist conjecture. This is why I want to suggest that we need to think the visual in a different way and thereby revisit notions like picture, language, representation – the 5 See also VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor. The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience. Cambridge, MA: MIT Press, 1991. The growing research into the functioning of neurobiology is not only contributing to an exploration of the organic underpinnings of the alleged ‘ocularcentric’ approach to the visual, but to how the visual is about embodied and complex issues of neurobiology. For a recent overview see: STONE, James. Vision and Brain. How we Perceive the World. Cambridge, MA: MIT Press, 2012.

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entire conundrum of aliquid vis-a-vis aliquo – and all the terms important to the Western genealogy of the visual and its fixations on relatively well-defined artefacts such as visual art, or in the past century, film.6 I want to query what happens if we conjecture the visual as a sort of matter beyond inner and outer, appearing, let’s say, in the famed “middle-region” (FOUCAULT, 1971, p.21) of structured signification yet not relying on the signifying structures derived in some capacity from language (in the sense developed in structuralism from the mid-20th century onwards, by Claude Lévy-Strauss, Jacques Lacan, Roland Barthes and others) – for instance, in Foucauldian notions such as code and discourse. My approach to this will be to take core elements of classic structuralism and attach them to a different kind of systemic meaning which resides in the practice of visual mattering, building on, for instance, the structuralist notions of positionality, difference and serialiy put forward by Gilles Deleuze in his famous portrait of structuralism as “a third order, a third regime: that of the symbolic” (DELEUZE, 2004, p.171); the utterly momentous move which has established language as a pervasive system for querying culture as involved with the genealogy of modern linguistics and semiotics. Let me use my participatory action research into the design of telepsychiatric systems in Somaliland, in The Horn of Africa, as an example.7 Think – for the next 10 seconds – about all the possible implications of every visual moment involved in smart phone use with the 7.4 billion inhabitants of the globe, or, to make it a little easier, the 1 billion inhabitants of India, or in my case, the mere 3.5 million inhabitants of Somaliland, in their capacity of – in Deleuze’s words – positionality, differentials and series. What is the meaning of

6 See MICHELSEN Anders. Nothing Outside of Discourse? On the Creative Dimension of Visuality. Leitmotiv Numero 5/2005-2006. Art in the Age of Visual Culture and the Image. LED on LINE – Edizioni Universitaire di Lettere Economia Diritto – Milano. http://www.ledonline. it/leitmotiv/ 2006 7 See MICHELSEN Anders. Medicoscapes: notes on effects of media ubiquity – The Somaliland Telemedical System for Psychiatry. Digital Creativity, vol. 23, nr. 3-4, 2012. For a short introduction to the project operated by the now defunct NGO PeaceWare Somaliland 20102011 and today by SHIFAT, Hargeisa (https://www.shifat.org/). See also: http://globalhealth. ku.dk/news/news_2009-2011/the_mirror_doctors_the_somaliland_telemedical_system_for_ psychiatry/. Accessed: 12/8 2017:17.49.

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such a dynamic? What are the implications of such an idea in a world of almost endless practice of the visual? How many times every day, in very simple, or for that matter, utterly complex terms, does the visual move into the centre of events, only to become something distant, or linger somewhere unclear, only to reappear with a vengeance? How does the visual traverse the world as a space, a system, a perception, or a discourse, in multiple other realms, in different organisational modi, some very large, some very small? This problem surely escapes the modern dichotomy of inner and outer, but it also escapes the notion of representation, of aliquid vis-a-vis aliquo, however complex and well thought, I want to argue. It involves what I will term mattering, absorbing, processing and changing a host of entities, from the neurobiology of the seeing brain observing something, to the discourses constructing endless practices of looking throughout the day. If we can follow such a perspective of mattering, we will find a continuous transience, in which the visual renders a dimension of the world involving any and all possible dynamics, composing and co-composing matters of a highly varied nature. This will be my initial approach to the rhetorical question of what is left of the visual (see argument above)? What is left, I propose, is an issue of transient matter, but not in the sense of material, or object, or thing. The visual can be conjectured as a novel kind of stuff, as a mattering involving both softer and harder matters, perhaps in Bruno Latour’s sense of matters of concern (2005, p.87)8, that is, matters that concern not because of facticity, positivity, representation, or critical discourse, but because of a new transient mutuality between concern and matter. Matters of concern: mattering of the visual? When a herdswoman in Somaliland is using her smart phone to see daily prices of camels, or goats, in the Horn of Africa, there are matters of concerns deeply interspersed with the visual in a capacity of emergence, continued creation and incompletion that we may pinpoint with Deleuze’s notions of positionality, differentials and series. She may merely glance briefly at her screen, to see what she suspected or did not expect. She may study further and go into detail and 8 See LATOUR, Bruno. Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern. Critical Inquiry, 30, winter, 2004.

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keep the memory as a mental image, or so many other materializations, that is, matterings, of what began as a signal transfer to a phone, which is, in fact, yet another matter. The positionality of the woman seeing or the phone visualizing back at her, the differentials of seeing on the phone in these particulars, and the seriality of constantly moving from one to the other, makes up a particular matter of in fact huge concerns – just turn off the screen and the global system condensing on the screen of her phone disappears in a split second. When a mentally ill person in the Somaliland desert, chained to an Acacia tree for years and tormented by a constant fear of hyenas, is finally seen by the mirror doctors (the sick Somalis’ witty name for the doctors) Dr. Yakoub and Dr. Jama from PeaceWare Somaliland,9 who are materializing out of Stockholm and Frederiksstad by means of a telepsychiatric use of a Skype application, positionality, differentials and series are directly involved with neurobiology, and the sick person is medicated. The positionality of the ill person seeing Dr. Yakoub seeing the patient, the ongoing differential interaction between a video image of the doctor observing the reaction of the ill person and vice-versa, engenders a series of movements, within matters, from one to the other, and this constitutes the visual, practiced as a matter of positionality, differentials and series. This article will discuss this further through a broad inspiration from the current interest in new ideas of materialism, from vibrant matter (BENNETT, 2004) and self-organisations of the physical (DELANDA, 1992), to John Protevi’s proposition of geophilosophy, Timothy Morton’s debates on object oriented ontology (OOO) and hyperobjects, the social life of things (APPADURAI, 1988) and material culture (MILLER, 1987) and stuff (MILLER, 2010).10 It will 9 See ABDI, Yakoub; ELMI, Jama. Skype based telepsychiatry: a pilot case in Somaliland. Medicine. Conflict and Survival, 27 (3) 2011; MICHELSEN, Anders. Medicoscapes: notes on effects of media ubiquity – The Somaliland Telemedical System for Psychiatry. 10 These positions are merely indication of a much more general problematic also involving a new sensibility in the humanities for the changes in climate. See MORTON, Timothy. Hyperobjects: Philosophy and Ecology After the End of the World. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013; SHAVIRO, Steven. The Universe of Things: On Speculative Realism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014; or the work of John Protevi on ‘geophilosophy’, inspired by systems theory and mathematics: PROTEVI, John. The Geophilosophies of Deleuze And Guattari. Delivered at the November 2001 meeting of SEDAAG (http://www.protevi.com/john/SEDAAG.pdf. Accessed 14/5 2014: 12.11. See also older debates on the artificial, for instance, MANZINI,

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indicate such mattering by developing Maurice Merleau-Ponty’s radical idea of a dimension of the flesh of the visible and the invisible (MERLEAU-PONTY, 1968), first published in French in 1964. Merleau-Ponty’s idea has until now most often been approached in terms of philosophy or phenomenology, or recently, aesthetics and cognitive science,11 but it is possible to discern a more radical idea of mattering in his way of thinking. The article will try to do this in three steps: 1. First, it will revisit Michel Foucault’s canonical analysis of Diego Velázquez’s painting Las Meninas (1656) as a model for decentering ocularcentrism in transient visual structurings and read it by implication as a topology inflected with matter. 2. Second, it will indicate an outline of mattered visual meaning, by drawing on Maurice Merleau-Ponty’s notion of the flesh in The Visible and the Invisible (1968). 3. Finally, and very briefly, it will conclude with a remark on the possible, consequential, highly dynamic – transient – stuff’ of the visual, as an outline of a dimension traversed by the emergence of practicing organisations. Foucault’s Las Meninas – matters of symbolic space? One privileged entry to visual mattering can be found in arguably one of the most important founding texts of visual culture studies, Michel Foucault’s “Las Meninas” from 1967. This text famously balances a focus on the visual with a comprehensive take on practices of looking. But, most importantly, under the key battle cry of a “reciprocal visibility embrac[ing] a whole complex network of uncertainties, exchanges, and feints” (FOUCAULT, 1970, p.4), Foucault reconsiders the visual as something beyond any naive idea of Ezio. Artefacts. Vers une nouvelle écologie de l’environnement artificiel. Paris: Les Essais, Centre Georges Pompidou, 1991. Manuel Delanda’s work is seminal to this movement and can be read from its inception in, for example, DELANDA, Manuel, Nonorganic Life. In: KWINTER, Sanford; CRARY, Jonathan (eds.) Incorporations. Zone Books, Zone 6 (Book 6), 1992. 11 See for instance, JOHNSON, Galen (ed.). The Merleau-Ponty Aesthetics Reader: Philosophy and Painting. Evanston: Princeton University Press, 1993; PETITOT, Jean et al. (eds.). Naturalizing Phenomenology: Issues in Contemporary Phenomenology and Cognitive Science. Stanford: Stanford University Press, 1999; NOË, Alva et al. (eds.). Vision and Mind: Selected Readings in the Philosophy of Perception. Cambridge, MA: Cambridge University Press, 2002; TAYLOR, Carmen et al. (eds). The Cambridge Companion to Merleau-Ponty. Cambridge, MA: Cambridge University Press, 2004.

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depiction. The format of the painting seems to engender a transience and thereby open a whole complex network resulting in a vertiginous system of lines which never leave the image or the viewer yet transport it, by their transience, into different concerns: what we may well call a topology of visually sensible mattering, being neither in “real spatial expanse”, nor in “imaginary extensions” (DELEUZE, 2004, p.173), in Deleuze’s terms from “How Do we Recognize Structuralism” (1973). What is today most interesting is how Foucault’s text gets caught by the transience that it itself invokes to the point of going beyond the symbolic certitude on which Deleuze, Foucault and many others rested their case in the 1960s and afterwards: the core of the argument for discursive knowledge masterly invoked by Foucault in his subsequent book, The Archaeology of Knowledge (1969). Put differently, Foucault, whether deliberately or not, radicalises the idea of the visual by constantly playing on the transience of the symbolic, the uncertainties, exchanges, and feints that propel the breakdown of depiction in favour of the vertiginous system of lines opening the middle region. “Las Meninas”, it can be readily acknowledged, owes much to the structuralist concerns of the 1940s, 1950s and 1960s: Jacques Lacan and his theory of the gaze, Claude LéviStrauss’s focus on structure and relationality, Gilles Deleuze’s book on chance and structure, Nietzsche and Philosophy, first published in French in 1965, and in particular, the spectre of Maurice Merleau-Ponty, who I want to evoke next. To put it plainly: Is there another notion of the visual in place in Foucault’s work, beyond the vertiginous system of lines that evoke code? Is this visual also a structured form of the sensible and the sentient, that is, the visual as sensed, without which Foucault’s famous analysis would not go far, even though he relegates this to being an effect of coding? Is there, then, a question of meaning practiced in another way that is not predicated on assumptions of language, and that is in Foucault’s terminology referred to as code, often in general denominated as discourse? The dimension of transvisuality: a topology? Is the focus on an interacting vertiginous system of lines in between the painting, its maker and the beholder in fact also transient beyond Foucault’s rendering of the symbolic? Are the “fundamental codes of a culture” emphasized by 76


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Foucault, “those governing its language, its schemas of perception, its exchanges, its techniques, its values, the hierarchy of its practices” (1970, p.20) open to a transience? That is, are they open to a transience of visual mattering which much later will be termed an issue of non-representation, as Nigel Thrift argues, of “situated, pre-linguistic, embodied, states that give intelligibility (but not necessarily meaning) to human action” (1996, p.9), or of “non-representational models of the world […] in which basic terms and objects are forged in a manifold of actions and interactions” (p.6)? Is the meaning emerging from reciprocal visibility embrac[ing] a whole complex network of uncertainties, exchanges, and feints not a coded – predominantly languaged issue – but a sentient one in a different sense? I suggest reading Foucault’s “Las Meninas” as transient visual mattering, in order to see how aspects of his structuralism may fuel a non-representational dimension of transvisuality which is beyond Foucault’s own emphasis on code and its absolutely crucial showdown with any form of naive ocularcentric seeing. In other words, I would like to imbue Foucauldian coding with a dimension that points to a revision of the critique of discourse which Deleuze describes in the book Foucault (1986) as the relation between the visible and the sayable, in favour of non-representational models of the world (THRIFT, 1996). In Foucault, Deleuze talks about the compound of relations between forces,12 evolving in statements and historical formations13 made from “things and words, from seeing and speaking, from the visible and the sayable, from bands 12 ‘Foucault’s general principle is that every form is a compound of relations between forces. Given these questions, our first question is with what forces from the outside they enter into a relation, and what form is created as a result. These may be forces within man: the force to imagine, remember, conceive, wish, and so on. One might object that such forces already presuppose man; but in terms of form this is not true. The forces within man presuppose only places, points of industry, a region of the existent. In the same way forces within an animal (mobility, irritability, and so on) do not presuppose any determined form’ (DELEUZE, 2006, p.102). 13 “As statements are inseparabe from systems, so visibilites are inseparable from machines”, (DELEUZE, 2006, p.50) “Therefore there is a ‘there is’ of light, a being of light, or a light-being, just as there is a language-being. Each of them is an absolute and yet historical, since each is inseparable from the way in which it falls into a formation or corpus. The one makes visibilities visible or perceptible, just as the other made statements articulable, sayable or readable.” (p.50). “[...] each historical formation sees and reveals all it can within the conditions laid down for visibility. Just as it says all it can within the conditions relating to statements” (p.51) “[...] each historical formation sees and reveals all it can within the conditions laid down for visibility. Just as it says all it can within the conditions relating to statements.” (p.51).

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of visibility and fields of readability, from contents and expressions” (2006, p.41). However, he emphasizes without hesitation that the sayable is always the articulation in the final sense: Between the visible and the articulable we must maintain all the following aspects at the same time: the heterogeneity of the two forms, their difference in nature or anisomorphism: a mutual presupposition between the two, a mutual grappling and capture; the well-determined primacy of the one over the other [my italics]. (DELEUZE, 2006, p.57).

But what happens if we can discover a manifold of actions and interactions that will change the compound of relations between these allegedly basic forces of the visible and the sayable, their mutual grappling and capture (DELEUZE, 2006), the well-determined primacy of the one over the other? This could perhaps occur in what Gilbert Simondon – a French philosopher at the fringe of structuralism (yet one of the few contemporaries to whom Deleuze cared to refer) (DELEUZE, 2001, p.12) – with great ingenuity termed transduction: the idea of a dynamic transience across Being, first published in French in 1989 – here quoted from Simondon (2009).14 In other words, transduction is something, “by which an activity propagates itself from one element to the next, within a given domain, and founds this propagation on the structuration of the domain that is realized from place to place” (SIMONDON, 2009, p.10), leading to what he further termed a dephase (phase-shift): “it can dephase itself in relation to itself; it can overflow out of itself from one part to another, beginning from its centre [my italics]” (p.10) argues Simondon. This abstract notion can be approached quite practically, I think. Take the example of our Somali herdswoman, checking camel prices on her smart phone. How could we describe the transient matters involved in this procedure as transduction, spanning from, let’s say, the semideserts dephase into the feeding of animals by the ocularcentric organisation of the herd and the woman, to the huge economical transactions visually figured in layered diagrams of camel exports to the race stable of the Emir of Dubai, and the income from that, 14 The term ‘transduction’ plays an important role in Gilbert Simondon’s postwar work on the problem of ontogenesis. Cf. SIMONDON, 2009.

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further dephasing into, let’s say, computer games purchased for this divorced woman’s five children, overcoded from a distance by the racist imagery of movies such as Ridley Scott’s Black Hawk Down (2001) figuring in the computer game Call of Duty: Modern Warfare 3 (2011), filled with interactive scenarios of alleged war in the Horn of Africa?15 We could find in this example not only aspects and fragments of something visual, but positionalities, differentials and series of smaller and larger events, which make up matters of concern, within the visual, by practising the visual, by involving the visual, visual organisations that dephase in order to become yet other visual organisations, dephasing into all sorts matters, from the vibrant herd, constantly moving in front of the eyes of the observing woman, to the woman talking with her brother in Rio de Janeiro in a Skype video call a moment later; transient matter permeating, and in this sense, pervading or appearing across the world while she is shouting to the children to keep the sound of the computer game down so she can hear what her brother is saying. In the end, so to speak, we might see not images, stills or moving, with sound or silent, not representations or codings, but matterings of possible, multiple, flexible, mutable and transformative stuff in which the user enters by practice and may stay for any amount of time, from the matter of neurobiology enabling our Somaliland herdswoman (and her livestock for that matter) to see anything at all, since she is not blind, to the matter of neoimperialist cultural products such as Black Hawk Down playing out Western stereotypes of what a Somali is. And we may go a bit further, when the woman suddenly receives her daily SMS with a quote from the Holy Quran. She knows it by heart and thus does not really read it but sees it through her inner eye as an amalgamated visual symbol of a page with certain forms and implications. The quote from the Holy Quran stands out as visualized, or imagined, configuring her as an Islamic woman taking part in the multiple and emergent practices of Islam in the Horn of Africa, which involve “things and words, […] seeing and speaking, […] the visible and the sayable, […] bands of visibility and fields of readability, 15 See also BOS, Daniel. Answering the Call of Duty: The popular geopolitics of military-themed videogames. https://theses.ncl.ac.uk/dspace/bitstream/10443/3199/1/Bos%2C%20 D.%202016.pdf. Accessed: 04/09 2017:12.24.

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[…] contents and expressions” (DELEUZE, 2006, p.41) that emerge, in fact, everywhere where Islam appears to matter. We might see all of it, in every detail: a transience, an overflowing “out of itself from one part to another, beginning from its centre” (SIMONDON, 2009, p.10). Borges’ enumeration In the preface to The Order of Things, Foucault famously invokes the “monstrous quality that runs through Borges’enumeration” (FOUCAULT, 1970, p.26) of a certain Chinese encyclopedia, in order to assert that a principal uncertainty of classification, and consequently of science, dissolves the common ground of classification: in other words, as Foucault argues, “the common ground on which such meetings are possible has itself been destroyed. What is impossible is not the propinquity of the things listed, but the very site on which their propinquity would be possible” (p.xxi). Foucault clarifies from the beginning that he aims at an analysis beyond the painterly depiction in Las Meninas (1656) and the traditional assumptions related to it. He is not interested in the painter, motive or spectator or their historical and formal affiliations. The painting is relevant only insofar as it opens itself to the fundamental codes of a culture – those governing its language, its schemas of perception, its exchanges, its techniques, its values, the hierarchy of its practices (p.20). Foucault furthermore identifies this as the order of representation, the spectacle (p.4), which is ultimately: Doubly invisible: first, because it is not represented within the space of the painting, and, second, because it is situated precisely in that blind point, in that essential hiding-place into which our gaze disappears from ourselves at the moment of our actual looking. (FOUCAULT, 1970, p.4).

Of particular importance to Foucault, inspired by Jacques Lacan’s famous notion of the mirror stage, is the mirror lurking in the background of the image. The mirror takes on the role of a transducer, we may argue, from which dephasings can find a position: first, the mirror sets in motion a movement beyond the painter, motive and spectator. Then, the mirror argues for a certain non-origin of them: We are observing ourselves being observed by the painter, and made visible to his eyes by the same light that enables us to see him. And just as we are about to 80


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apprehend ourselves, transcribed by his hand as though in a mirror, we find that we can in fact apprehend nothing of that mirror but its lustreless back (p.6).

The mirror is key. “The mirror, by making visible, beyond even the walls of the studio itself, what is happening in front of the picture, creates, in its sagittal dimension, an oscillation between the interior and the exterior” (p.11). This leads to a delicate description of positionality, difference and seriality that is quite similar to Deleuze’s argument in “How Do we Recognize Structuralism”. But what is the matter of this painting in terms of position, difference and series? And what is the role of the Borgesian parable? May we discover yet another issue here? Is the matter of the painting also uncertain with regard to code, does it inflect with another dimension, visualized not by Borges’ example as a sample of monstrosity in terms of coded enumeration and the symbolic, but by the symbolic as a lever of transient non-representation? Could we argue, after all, that this is exactly the point of Borges’ enumeration: that it is monstrous because it brings visual things together as stuff, and that transience does not only pertain to the alleged well-determined primacy of the sayable but also comes to the fore in the heaped up, pell-mell order of a visual dimension that disturbs coding? Is the enumeration, out of the transducing mirror, a dephase itself in relation to itself? Can it dephase itself, overflow out of itself from one part to another, beginning from its centre? Can the enumeration also become a state of overflow in its quality of things listed as stuff, as it were, out of stuff, that is, as visual stuff out of visual stuff? One wonders whether Foucault is merely describing one particular model. If one follows Foucault beyond the sagittal field of the mirror – “the median plane of the body or any plane parallel to it” (the definition of sagittal in Merriam Webster)16, it appears as a certain propinquity in the sense of positionalities, differentials and series, in the sense of bits and pieces of a continuous non-representational visible. From visuality to transvisuality This, I want to argue, is where the transience masterly evoked by Foucault points to a dimension which is not languaged structure: not visuality, but a 16 https://www.merriam-webster.com/dictionary/sagittal. Accessed: 22/8 2017:08.48.

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space in which transvisuality redefines the compound of relations identified by Deleuze as a dephasing compossibility. After all, Deleuze writes in “How Do we Recognize Structuralism” about structure being neither in real space, nor in imaginary, figurative space, but becoming a topology in a new domain: “It is not a matter of a location in a real spatial expanse, nor of sites in imaginary extensions, but rather of places and sites in a properly structural space, that is, a topological space [my italics]” (2004, p.174). In fact, there is nothing – let’s say – iconographic, nothing pictorial in Foucault’s analysis. In other words, all entities discussed are only there because of a topology. The painting has been rendered a flux which only crystallizes in the “reciprocal visibility embrac[ing] a whole complex network of uncertainties, exchanges, and feints” (FOUCAULT, 1992, p.4) which almost by definition points to a dephase. At least two issues follow from such a definition of topology: What do the terms real and imaginary denote for Deleuze, beyond a mere contrast set up to evoke an idea of structure? And what kind of topology is Deleuze evoking in terms of this lack of the real and the imaginary? Could this topology be a matter of the visible, because all things, so to speak, which Foucault brings together by relational lines, are in fact relying on the visibility of every bit and piece? To my mind, this is what Frauke Wiegand and myself have termed a “fullness, inclusion and comprehension” (KRISTENSEN; MICHELSEN; WIEGAND, 2013, p.4) leading from visuality to transvisuality, which brings structure into a dimension that has traditionally relied on experience, on ocularcentrism, on art history and its iconologies, on the phenomenology that Foucault and Deleuze both battle against: the many and varied attempts to advance what Claude Lévy-Strauss called a model, which is subsequently radicalized, developed and criticized in the many different ways that today fit under the heading of, for instance, poststructuralism (LÉVI-STRAUSS, 1963, p.279). We have tried to introduce this idea by expanding on the notions of structure put forward by Jean Piaget in his classic definition of structuralism, from 1968, as wholeness, transformation and self-regulation; a system of transformations, which leave “the structure […] preserved or enriched by the interplay of its transformation laws, which never yield results external to the system nor employ elements that are external to it” (1971, p.5), thus introducing a visible dimension beyond naive 82


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seeing, as well as beyond the blockade of Downcast Eyes (JAY, 1993) that permeates structuralist approaches to the visible. We have suggested three developed notions for a first grasp on transvisuality in the sense of concerned matter indicated above: wholeness, inclusion and comprehension of the visible (see further below). The structuralist delineation of the Piagetian argument (admittedly wholly on the side of law, e.g. linguistic law, in structuralism) is of course only of use here if it can be involved with the dephasing opened up by my reading of Foucault and Deleuze, that is: with a kind of practiced matter. We need to explore further the issues that Deleuze defines as positionality, differentials and series but within a topology emerging out of wholeness, inclusion and comprehension of the visible (see further below), in the sense of what Thrift calls “situated, pre-linguistic, embodied, states that give intelligibility (but not necessarily meaning) to human action” (THRIFT, 1996, p.9). Allow me to paraphrase the introductions to the two first collections on transvisuality (KRISTENSEN; MICHELSEN; WIEGAND, 2013, 2015). First, the visual develops fullness: it confers to a dimension of transvisuality a wholeness in terms of dephased matter, something appearing fully from something else, i.e., an “emergence, continued creation, incompletion” (CASTORIADIS, 1997, p.284) under certain conditions – now the mirror, now the Infanta, now the frame –, positionalities, differentials and series that render a full organisation because of visual mattering that is full in the sense of a dimensional visible. In Foucault’s enumeration of Las Meninas, the comprehension of the multifaceted array of lines, one is tempted to argue, comes together and attains a fullness and an independence from the spectacle, organising the instances that were traditionally allowed to stand out, the aliquid statpro aliquo of the painter, the motive and the beholder – the whole gamut of ocularcentrism, art and history, so to speak, in a traversing of matter, from the synaptic depth of any living organism happening to behold, whether a fly on the surface of the painting or a visitor in the Museo del Prado, to the stuff of the canvas which carries particles of paint tormented by years of aging despite the conserver’s constant fight for art history. Put differently, these matters do not necessarily, if at all, escape the visible; rather, and importantly, they entangle it with all sorts of matters, which constantly change concerns at any point of the venture. Second, the visual offers inclusion in terms of dephase, something appearing fully from something else: it confers to a dimension of transvisuality a potential 83


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for transforming organisations because of visual mattering which allows for an intertwining with other forms of meaning – now the mirror, now the Infanta, now the frame; now the fly, now the visitor – positionalities, differentials and series that render inclusive, because of visual mattering; the visible entities stringed together by the Foucauldian topology of the symbolic which actually evolve by relating, involving, including and merging into emergent dimensions of the visual organising in so many ways (FOUCAULT, 1992, p.4). Foucault’s enumeration underscores how everything is to be included in everything else, so to speak, as a principled transience, not only by emphasizing “uncertainties, exchanges, and feints” (p.4), but by showing how they come together in patterns able to absorb and redefine any single thing, from history to the act of beholding, not beyond the visible, however, but rather on the inside of a dimension which can be organized. Third, the visual evolves a comprehension in terms of dephase, something appearing fully from something else: it confers to a dimension of transvisuality the virtuality of self-regulation because of visual mattering, i.e. an “emergence, continued creation, incompletion” (CASTORIADIS, 1997, p.284), which dimensionally allows for transience under certain conditions – now the mirror, now the Infanta, now the frame, that is, positionalities, differentials and series that render transience. How can the almost vertiginous process that Foucault’s analysis brings forward actually stabilise without losing its dynamic? How can it escape the real and the imaginary in order to develop positionality, differentials and series in the middle region? How is the model he indicates – in the spirit of Lévi-Strauss (but radicalised by Foucault’s famous nominalism) – actually relevant for the painting? Put differently, how does this model make sense to anyone, and how is this structure actually grounded in the spectacle of the painting? Why is it not merely a hyperabstract formula as in Euclidean geometry, or why does it, so to speak, fold with the world? Why are we not talking about a chemical formula or an algorithm, but a painting; a painting which makes sense precisely because of the symbolism that emerges in its concerned mattering, a painting which without Foucault’s analysis would not make sense, since the analysis does not erase it? Actually, and as we know, it is Man who is famously to be erased according to Foucault, but in favour of what (leaving what behind)? The posthuman matter of the visual, perhaps. If we look away from Foucault (the author), the analysis is in the end set 84


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up as a structuralism that you cannot really escape; a structure in which you will lose your observer’s vantage point, you will enter and lose yourself by being exposed in matter, in positionalities, differentials and series, in the topology of a certain model. But where is the model when it comes to Las Meninas (1656)? After the text “Las Meninas” (FOUCAULT, 1970), we may argue, it has become matter: beholding matter dephase into matter, matter in matter, and its possible enumerations becomes a concern beyond the nominalism of Foucault, a question of visibly taking part, of entering and losing oneself in a full, inclusive and comprehensive matter, or in tactics or strategies of visual mattering. Merleau-Ponty I: gestalting the world I will be more concise with regard to the next two points. But, as stated, I think it is indeed interesting to develop the topology emerging out of the dephase described above by invoking Merleau-Ponty’s chiasm of mattering in the posthumous work The Visible and the Invisible (1968). Before I get there, let me make one remark, however, about his first book, The Structure of Behavior (1983) published in French in 1942, specifically the chapter on “the physical order; the vital order; the human order” (MERLEAU-PONTY, 1983, p.129), which is nowhere more interesting than when it indicates an emergent dephase of matters (and we should remember that, however unlikely in light of the conservative domestication of Merleau-Ponty’s thought by academic phenomenology, Simondon saw himself, like Castoriadis, as one of the closest students of Merleau-Ponty, and rightly so).17 Here, in one of the first substantial statements of Merleau-Ponty, we find an issue of order that would follow his thinking right up to the notion of the chiasm and the flesh in The Visible and the Invisible. Put differently, Merleau-Ponty is from day one in the 1940s pursuing an idea that will later in his work in the early 1960s become the chiasm and the flesh: a domain, one rapidly realizes, that is unlimited (p.140), as he proclaimed. The physical, the vital and the human are primarily interesting because of the aforementioned dephasing, from the physical to the vital, from the vital to the human, from one to the other, and so on, resulting in transient mattering. 17 See BARTHELEMY, Jean-Hughes. Penser l’individuation. Simondon et la philosophie de la nature. Paris: L’Harmattan, 2005.

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They may be related as orders that make transience possible (one has to read the term form correctly in the quote below, not as formalism, but as something that happens, something that configures, in-for-mation, or in-for-matterization, in which organisations take on their own matter, or practiced matter, so to speak): It is here that the notion of form would permit a truly new solution. Equally applicable to the three fields which have just been defined, it would integrate them as three types of structures by surpassing the antimonies of materialism and mentalism, of materialism and vitalism. Quantity, order and value or signification, which pass respectively for the properties of matter, life and mind, would no longer be but the dominant characteristic in the order considered and would become universally applicable categories (MERLEAU-PONTY, 1983, p.131).

Merleau-Ponty II: fleshing out the visible and the invisible The direct aim in Merleau-Ponty’s late work will be to posit the ideas of the visible as chiasm and flesh, that is, in our context, as mattering. Again, we should note that the visible is – like the analysis of the structure of behaviour – an event, but one that is fortunate for us. When reading The Visible and the Invisible (1968) for our purposes, we must remember Merleau-Ponty’s initial argument for thinking issues: In a locus where they have not yet been distinguished, in experiences that have not yet been ‘worked over’, that offer us all at once, pell-mell, both ‘subject’ and ‘object’, both existence and essence, and hence give philosophy resources to redefine them (MERLEAU-PONTY, 1968, p.130).

And he goes on to say that “[s]eeing, speaking, even thinking […] are experiences of this kind, both irrecusable and enigmatic” (p.130). What we find in Merleau-Ponty’s notions of flesh and chiasm is a query of order, in between and beyond the physical, vital and human; something which can be taken as a transient form of mattered meaning, inflecting with codes but also unfolding a non-representational order, as Thrift ponders (1996). We find here the same approach as the one characterizing The Structure of Behavior (1983), but in a radicalized sense, with no old distinctions between the physical, vital and human. They become intertwined, as in the title of the 86


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final chapter of The Visible and the Invisible, and by intertwining one should understand a topological quality, an emergence into a dimension where relationality renders transience, not in the sense of Deleuze’s “third order, […] third regime” (DELEUZE, 2004, p.71), but in a fleshed, meshy, mattering way, in the sense given by Simondon, of something which may be physical, may be vital, may be human, may be ocularcentric (but only under certain conditions), may be embodied (but only under certain conditions), may be imaginary (but only under certain conditions), may be neurobiological (but only under certain conditions), may be discursive (but only under certain conditions), and so on, as Merleau-Ponty writes in a working note in The Visible and the Invisible: “every relation with being is simultaneously a taking and a being taken, the hold is held, it is inscribed and inscribed in the same being that it takes hold of” (MERLEAU-PONTY, 1968, p.266). I would like to submit two central quotes from this chapter, to be brief and precise. The first probes what the flesh can be said to be and attempts an answer by a deliberate invocation of pre-Socratic thinking that, as I read it, is at least a kind of non-representation in tendency: To designate it, we should need the old term ‘element’, in the sense it was used to speak of water, air, earth, and fire, that is, in the sense of a general thing, midway between the spatio-temporal individual and the idea, a sort of incarnate principle that brings a style of being wherever there is a fragment of being. The flesh is in this sense an ‘element’ of Being. Not a fact or a sum of facts, and yet adherent to location and to the now. Much more: the inauguration of the where and the when, the possibility and exigency for the fact; in a word: facticity, what makes the fact. (MERLEAU-PONTY, 1968, p.139-140).

“Facticity, what makes the fact” should be read carefully: the transient character of the element points to a dimension in matter – a style of being wherever there is a fragment of being – the inauguration of the where and the when. Furthermore, as he argues later in a continutation of what might be implied by such a facticity, “the flesh (of the world or my own) is not contingency, chaos, but a texture that returns to itself and conforms to itself ” (1968, p.146). And we must not forget that we are still talking about the visible, which is 87


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producing something manifest, that is, factual, but only on this condition. It is a practice we may say, that here cut across the physical, the vital and the human, that cut across the real and the imaginary which Deleuze delegitimizes in his definition of “a third order, a third regime” (DELEUZE, 2004, p.171): the transience of something visible, like fish swimming in the sea, moving through water in order to move through more water, or lying still in order to be moved by the water, or moving in order to move with, or against, the water, while beginning to move towards prey or hide; implying how transvisuality may work. The second probes the meaning that can be attributed to the flesh and attempts an answer by arguing for a topological distribution of the visible: With the first vision, the first contact, the first pleasure, there is initiation, that is, not the positing of a content, but the opening of a dimension that can never again be closed, the establishment of a level in terms of which every other experience will henceforth be situated. The idea is this level, this dimension. It is therefore not a de facto invisible, like an object hidden behind another, and not an absolute invisible, which would have nothing to do with the visible. Rather it is the invisible of this world, that which inhabits this world, sustains it, and renders it visible, its own and interior possibility, the Being of this being (MERLEAU-PONTY, 1968, p.151).

“The invisible of this world, that which inhabits this world, sustains it, and renders it visible, its own and interior possibility, the Being of this being” (p.151), may in immediate terms seem heavily burdened by the existentialism, experientalism and phenomenology of the 1940s and 1950s. I want to argue, however, that it can be approached in a different way, as a dimension of transvisuality. It may be seen in the sense of a fleshy, meshy, mattered concern that becomes filled with meaning by something clinging to every small part of it, invoking something like for instance a Möbius tape kind of meaning (to use a well-known form of topology) across the first, second and third orders and resting with the conjecture of The Visible and The Invisible. Furthermore, this dephase opens a transient dimension for other entities, like language, as Merleau-Ponty himself makes clear, “as there is a reversibility of the seeing and the visible and as at the point where the two metamorphoses cross what we call perception is born, so also there is a reversibility of the speech and what it signifies” (p.154). 88


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And on top of or within this we may, so to speak, continue our story of the Somali woman and her visual culture in a constantly emerging, creative, continuous incompletion of a visual dimension, which strangely seems to evoke our own life when we wake up in the morning, because no morning is ever the same, whether in terms of seeing or anything else. Stuff of the visual? If this holds a grain of relevance, I would like to argue, I think we have found a way to talk about the visual as a highly transient and dynamic yet clearly organised stuff, as previously mentioned. It is stuff which proceeds by concerned mattering and opens itself to neurobiology on the one hand, and to critical discourse on the other, to both of the two dispersals of the visual enlightenment I invoked in order to frame this article: a new dimension which organises the world, from the selfie the Somali woman will take for her own pleasure when in Hargeisa or Burao to sell her camels, while gazing at a picture of her children gaming with the affection that only a parent can show, remembering how they were together last night. In the introduction to L’individuation psychique et collective (1989), Simondon defines transduction this way: By transduction we mean an operation – physical, biological, mental, social – by which an activity propagates itself from one element to the next, within a given domain, and found this propagation on the structuration of the domain that is realized from place to place: each area of the constituted structure serves as the principle and the model for the next area, as a primer for its constitution, to the extent that the modification expands progressively at the same time as the structuring operation (SIMONDON, 2009, p.11).

Is this one of the ways we may discover the highly transient and dynamic matter we have been seeking? To fashion the visual – visual culture – as transient mattering, as practiced stuff in the sense of a flesh, is to open to the visual as a new dimension. As Frauke Wiegand and myself have written in the introductions to the two recently published collections on the topic: Etymologically, the prefix “trans” can be defined as meaning “across, beyond, to go beyond, to go through”; it can refer to the act or state of going over, writing over, 89


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as in transcribe, to carry over into as in translate, to climb beyond, as in transcend, to convey across, as in transport. Visuality, a visual object or organization traverses in all these ways; it is transverse, the ‘trans-’ in transvisuality implies an act of translating as in taking across, an act of change as in transform; finally, it signals an overcoming of the limits of a given organization or figuration (KRISTENSEN; MICHELSEN; WIEGAND, 2015, p.2).

I hope in this article to indicate that this is not only a play of words (like an article is, in a sense) but that it should also be a matter of concern because it opens up to a different idea of what is commonality (for humans and others). What I have been arguing for is also a new compossible commonality that allows for something visual to play a more important and also more concerned role, yet also to change our idea of what can be said to be social in the 21st century, for us as well as for Somalis, in addition to everyone and everything else in need of a truly cosmopolitan world. References APPADURAI, Arjun (ed.). The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge, MA: Cambridge University Press, 1988. BADIOU, Alain. Logics of Worlds. Being and Event II. London: Continuum, 2009. BELTING, Hans. An Anthropology of Images. Picture. Medium. Body. Princeton: Princeton University Press, 2011. BENNETT, Jane. The Force of Things: Steps toward an Ecology of Matter. Political Theory, v. 32, n. 3, june, 2004, p.347-372. BREDEKAMP, Horst. A Neglected Tradition? Art History as “Bildwissenschaft”. Critical Inquiry, Image Studies. Theory and Practice, v. 29, n. 3, spring, 2003, p.418-428. CASTORIADIS, Cornelius. Merleau-Ponty and the Weight of the Ontological Tradition. In: CURTIS, D.A. (ed.). World in Fragments. Writings on Politics, Society, Psychoanalysis, and the Imagination. Stanford: Stanford University Press, 1997. DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. Bureau of Public Secrets, 2014. http://www.bopsecrets.org/SI/debord/. Acessed: 30/9/2018. 90


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MARMOTAS EM VISTA (1849-1864) Bruno Guimarães Martins

Eu gostaria de ter de volta os dioramas com sua magia imensa e grosseira a me impor uma ilusão útil. Prefiro olhar alguns cenários de teatro, nos quais encontro, tratados habilmente em trágica concisão, os meus mais caros sonhos. Estas coisas, porquanto absolutamente falsas, estão por isso mesmo infinitamente mais próximas da verdade [...]. Charles Baudelaire. Salão de 1859, II. A Paisagem.

Técnica e imaginação Em Mídias óticas (2016), Friedrich Kittler sugere uma investigação da cultura a partir da história técnica das mídias que, diferentemente de serem simples respostas a transformações contextuais, são descritas a partir de intrincadas relações contingentes em uma longa linhagem de dispositivos “óticos” dedicados à produção, ao registro e à transmissão de imagens. O amplo espectro temporal observado remonta à arqueologia da câmera obscura para descrever o desenvolvimento de um sistema midiático relativamente autônomo onde as inovações técnicas relacionamse entre si, permitindo à narrativa histórica alinhavar fenômenos aparentemente distintos tais como a perspectiva linear, a impressão de livros, a literatura romântica, o filme. Tal panorama permite relacionar transformações nas mídias técnicas e modelos para o imaginário e a autoconsciência da existência humana, em especial no que já foi chamado de cascatas de modernidade (GUMBRECHT, 1998). Ao explorar matizes epistemológicas e existenciais de seus pressupostos teóricos, sem deixar de lado o princípio industrial-militar que impulsionou a 93


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materialização das inovações técnicas, o historiador estabelece uma intuição relevante para o presente artigo: “o interesse fundamental das artes e das mídias é enganar um órgão sensorial.” (GUMBRECHT, 2016, p.43). Como exemplo emblemático desta ilusão midiática apresenta-se o padrão técnico para registro e produção do filme, 24 imagens (quadros) individuais por segundo, pois é esta a velocidade capaz de enganar a percepção do olho humano. Inserindo-se no debate acadêmico aglutinado em torno da noção de simulação, o historiador destaca a coincidência entre midiatização e realidade (p.43) a partir da qual desdobra seu conceito de mídia e cuja potência se revela em sua qualidade de processar e registrar o que trai e escapa à capacidade de percepção humana: “Mídias se tornam modelos privilegiados para a formação da nossa chamada autoconsciência justamente pelo fato de terem o objetivo declarado de enganar e trair esta autoconsciência.” (p.40). As hipóteses desenvolvidas por Kittler avançam ao identificar alguns dos impasses resultantes do embate entre os movimentos históricos conhecidos como reforma e contrarreforma, entre a disseminação de impressos protestantes e o exagero místico-performático das imagens no teatro jesuíta. De acordo com o autor, restou desta guerra midiática de linguagens e propaganda uma oposição entre razão iluminista e superstição, cujo efeito contraditório, por um lado, mitigou a crença na capacidade reveladora da mágica e da ilusão, e, por outro, despertou o desejo massivo pelo ilusionismo: “[...] o apetite insaciado por imagens animadas gerou outra mídia, capaz de saciá-lo pelo menos no âmbito imaginário até a invenção do filme: a literatura romântica.” (KITTLER, 2016, p.140). É justamente como parte significativa de um contexto histórico quando surgem no Brasil textos que podem ser qualificados como literatura romântica que pretendemos observar “vistas” e figuras encontradas nas “Marmotas”, folha de moda e variedades publicada ininterruptamente de 1849 a 1864 pelo pioneiro editor Francisco de Paula Brito. No artigo que ora apresentamos, muito nos interessa a imaginação visual que margeava os primeiros ensaios de um narrador de ficção da literatura brasileira na mídia impressa oitocentista. Trata-se então de descrever alguns aspectos do espaço gráfico onde este desejo ilusionista foi remodelado em escrita literária. Dessa forma justifica-se olhar para esta série de periódicos intitulados Marmotas, pois referem-se a um dispositivo pré-cinematográfico, espécie de lanterna mágica, onde a experiência ilusória do espectador de imagens mecânicas transfigurou-se à imaginação do leitor da página impressa. 94


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Imagem 1 – Dois espectadores em torno de uma marmota. Xilogravura reproduzida no cabeçalho de A Marmota, 1861, Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.

O furo da leitura Nativas em regiões montanhosas de clima frio, as marmotas são roedores quadrúpedes capazes de cavar túneis e se orientar em sua escuridão. Na Europa, em meados do século XVIII, um século antes do surgimento da fotografia, os animais foram utilizados como mascotes para promover o espetáculo oferecido por ambulantes. Infelizmente não encontramos registros da presença destes mascotes nos espetáculos apresentados na antiga corte portuguesa, no entanto, os animais certamente emprestaram o nome ao dispositivo ótico e, posteriormente, a diversos periódicos da época:

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As projeções e os brinquedos óticos criaram um novo ofício, o do lanternista ambulante, que perambulava com a lanterna mágica ou a caixa de imagens. Era um ofício miserável, de pouquíssimo ganho. Os lanternistas iam de vilarejo a vilarejo, com suas caixas amarradas às costas, por vezes acompanhados de um macaco ou de uma “marmota viva”. Erravam pelas ruas gritando o programa: "Curiosidade: a cidade de Constantinopla". Esperavam que uma janela ou porta se abrisse, que um burguês lhes fizesse sinal. Paravam então na casa do cliente [...], estendiam uma tela branca, acendiam a lanterna – ou posicionavam a caixa óptica – e o espetáculo tinha início. Frequentemente um auxiliar encarregava-se do acompanhamento musical, com uma sanfona ou realejo (MANNONI, 2003, p.97).

Em feiras de rua, espectadores curiosos espiavam o interior destas caixas óticas portáteis para enxergar vistas, paisagens, panoramas, cenas de batalhas e cenas religiosas que, ao serem apresentadas envoltas em escuridão, aumentadas por lentes e, muitas vezes, acompanhadas por música, criavam uma ambiência propícia para que a experiência da ilusão: [...] eram pequenas caixas transportáveis, muitas vezes presas às costas dos saltimbancos, com furos para um ou, às vezes, dois olhos. Pagava-se uma pequena quantia pelo privilégio de dar uma olhada no interior desta caixa [...] recebendo em troca a vista de imagens que se alternavam mecanicamente. Modelos mais sofisticados [...] permitiam até a instalação de palcos em miniatura, nos quais os cenários e as figuras se movimentavam independentemente uns dos outros, de forma a criar a ilusão de uma trama rudimentar (KITTLER, 2016, p.108-109).

Vejamos o que nos descreve o verbete “Marmota” em um dicionário que circulava à época: “Caixa onde se põem estampas de países, e um espelho, onde elas se pintam, e olha-se por uma lente de aumentar a vista, para ver acrescentadas as figuras das estampas.” (MORAIS SILVA, 1813, p.271). Se a relação com o aparelho foi apagada em verbetes contemporâneos, resistiram ao menos dois sinônimos – espantalho e fantasma – que nos remetem ao seu aspecto mecânico e ilusório. Em uma folha intitulada simplesmente Marmota, publicada no Rio de Janeiro em 1833, não encontramos uma única figura, 96


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entretanto, os vestígios da experiência visual encontram-se gravada nos dizeres de seu cabeçalho: “Ora cheguem-se, cheguem-se meus senhores, venham ver coisas admiráveis por pouco dinheiro.” (Marmota, nº1, 1833, p.1.). Antes de prosseguir, façamos uma brevíssima contextualização da produção e circulação de imagens no Brasil oitocentista. Às margens do contexto europeu, é relevante lembrar que foi somente na primeira metade do século XIX quando surgiram no Brasil condições mínimas para a consolidação de um sistema comunicativo impresso com o estabelecimento de tipografias, escolas, bibliotecas, livrarias etc.1 Não é difícil de imaginar que as raras imagens que circulavam pouco diziam de uma realidade local, uma vez que eram impressas alhures. As dificuldades para a impressão de figuras somente seriam superadas com a proliferação de ateliês de gravura na segunda metade do século XIX, quando letras e imagens gravadas pelo buril ou desenhadas sobre a pedra calcária, ganharam a paisagem urbana através de uma diversificada gráfica efêmera. A imagem bidimensional impressa foi disseminada por meio de gravuras em metal, pedra e madeira, servindo não só para ornamentar e ilustrar periódicos, mas também nos jogos de cartas e no humor das caricaturas, nos rótulos, embalagens, recibos, apólices, cartões de visita etc. Temos então que estas imagens, marcadas pela gestualidade do artesão ou do artista, convocavam a atenção para aspectos superficiais e pragmáticos, diferentemente dos sentidos de ordem e profundidade geralmente identificados com o impresso. Além disso, escassez e inadequação revestiram a recepção destas imagens de um certo aspecto místico, aproximandoas da experiência do espectador que se iludia diante dos populares dispositivos óticos, como podemos conferir em relato da época: Em 1835, na década em que o Rio de Janeiro se encheu de cosmoramas, em permanente e rumorosa rivalidade, o proprietário do ‘Diorama’ da Rua do Ouvidor, 212, declarou no Jornal de 20 de junho que o seu espetáculo apresentava vistas exatamente iguais às que estavam causando admiração no Palais Royal de Paris. No 1 “Só por volta de 1840 o Brasil do Rio de Janeiro, sede da monarquia, passa a exibir alguns dos traços necessários para a formação e fortalecimento de uma sociedade leitora: estavam presentes os mecanismos mínimos para produção e circulação da literatura como tipografias, livrarias, bibliotecas; a escolarização era precária, mas manifestava-se o movimento visando à melhoria do sistema.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p.18).

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entanto, continuava, "proprietários de marmotas e lanternas mágicas, conhecidas sob os pomposos nomes de cosmoramas e panoramas, têm despertado a curiosidade dos habitantes desta corte, dando-lhes assim uma ideia bem pouco lisonjeira destes espetáculos", pois mostravam "através de vidros [...] pinturas inexatas, toscas estampas e até mesmo papéis de forrar salas." (FERREIRA, 1994, p.448-449).

Independentemente da qualidade, as imagens se apresentavam aos espectadores com um poderoso efeito ilusório que foi espelhado em periódicos como as Marmotas, conformando um habitat propício para que a ficção literária estimulasse a imaginação romântica de seus leitores. O espectador-leitor inebriava-se com diversidade de narrativas que habitavam a página impressa, assim como já foi apontado por Flora Süssekind ao descrever o cenário gráfico onde surgiu o narrador de ficção nas décadas de 1930 e 1940 do século XIX: [...] é nas folhas e seções de variedades, em meio a charadas, relatos de viagens, estudos científicos, estampas de plantas, animais ou monumentos, pequenas biografias, anedotas e histórias exemplares, que de fato se ensaia, sob a forma de crônica, estudo moral, novela histórica, e com telão de fundo em cores locais, uma prosa de ficção brasileira (SÜSSEKIND, 1990, p.82).

A importância da experiência de ilusão visual para os letrados pode ser demonstrada pelos muitos títulos de revistas e periódicos oitocentistas, tais como a já mencionada Marmota (1833), A lanterna mágica (1844), O Cosmorama da Bahia (1849), A Marmota Pernambucana (1850), A verdadeira Marmota (1851), O Panorama (1852), para ficar apenas em alguns exemplos. Foi esta fascinação pela experiência de espiar os teatrinhos mecânicos o que inspirou a longeva sequência de Marmotas publicada por Paula Brito, A Marmota na Corte (1849-1852), Marmota Fluminense (1852-1857) e A Marmota (1857-1864). Em contraponto aos sisudos periódicos direcionados ao bacharel e ao homem de negócios, cujas colunas eram preenchidas por debates políticos, discursos jurídicos, especulações científicas, erudição histórica e informações comerciais; as folhas de variedades atendiam aos interesses de um novo público leitor composto por jovens estudantes e mulheres, constituindo um espaço gráfico

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permeável a formas textuais e imagens menos “sérias”, como jogos tipográficos, glosas, figurinos de moda, assim como articulações discursivas “literárias”, cartas, poemas, folhetins, novelas, romances etc. Em seu primeiro número de A Marmota na Corte anunciou a relação do entretenimento com o novo público leitor: “O nosso plano é reformar abusos, recrear leitores, e ganhar estimação das simpáticas meninas que honrarem a Marmota com as suas mãozinhas macias e acetinadas.” (nº 1, 1849, p.2). Vistas: da ilusão à página Nos primeiros números de A Marmota na Corte, publicada de 1849 a 1862, as “vistas” redigidas pelo prolífico jornalista baiano Próspero Diniz eram anunciadas como a principal atração da folha. Tais “vistas” são exemplares para compreender a transfiguração da experiência do espectador para o leitor, ou seja, não mais diante de imagens apresentadas pelo teatro ou projetadas por marmotas, cosmoramas e similares, mas através da leitura das páginas das marmotas impressas abriam-se para o leitor janelas onde poderia observar temas sérios ou jocosos, do discurso político à poesia romântica: Procuro sempre meios de apresentar a folhinha variada como um teatrinho agradável; vistas sérias, vistas jocosas, vistas críticas, vistas científicas e vistas poéticas, que são as mais eficazes para as moléstias do peito, que atacam muito a mocidade no tempo presente (A Marmota na Corte, nº 1, 1849, p.2).

As vistas exploravam habilmente a ambiguidade entre a experiência visual e imaginação por meio de um narrador capaz de oscilar entre diversas temáticas e perspectivas. Além disso, replicavam o efeito de poliperspectiva no qual o leitor mergulhava ao deparar-se com a verdadeira miscelânea discursiva nas páginas impressas. De forma similar a outros periódicos da época, nas vistas publicadas n’A Marmota na Corte temáticas distintas e contraditórias, supostamente inconciliáveis, coabitavam os mesmos espaços promovendo deslocamentos diversos.

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Imagem 2 - A Marmota na Corte, nº 5, 7 de setembro de 1849. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.

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Dessa forma, enquanto uma vista tratava de ufanar os avanços tecnológicos do Império – “Vista progressiva brasileira” –, em um número subsequente, uma outra apontava justamente o contrário – “Vista do atraso e lamentável falta de indústria”. Por meio do artifício das vistas, projetadas para o leitor de A Marmota na Corte, tornou-se possível conciliar antinomias dentro de uma mesma unidade narrativa como, por exemplo, em uma “Vista científica e recreativa” e em outra “Vista analítica, verdadeira e divertida”. Importante destacar a recorrência de uma retórica cômica, o que permitia ao narrador acomodar contrastes, diferenças e deslocamentos, como podemos perceber com matizes metalinguísticas e autocríticas na abertura destas “Vistas Políticas”: Antigamente entre os sábios Gregos, Romanos e de outros povos, era raríssimo haver um bom economista político, e só discorriam nesta matéria os homens que com mais idade tinham estudado as leis, e praticado os maiores empregos políticos; mas hoje, graças ao século dos vapores, aparecem sábios tão repentinos, e abreviados, como as pipocas que se formam com pequeno calor! A cada canto se encontram políticos formando discussões, interpretando leis asnaticamente, dizendo centenas de parvoíces, e campando de grandes reformadores; falam todos de política: o lojista, que mal sabe medir côvados de chita, expende atravancadamente suas ideias, persuadido de que está brilhando; o taverneiro tosco, e asselvajado, que apenas tem lido no toucinho e na manteiga, também dá a sua penada, e diz muito ufano – eu cá entendo assim; o carpinteiro, o sapateiro e até os rapazes das esquinas todos, todos se metem na política, e enfim, para mais admiração, até algumas senhoras, que d’antes só se ocupavam em falar de modas, casamentos e romances, hoje em dia deu-lhes a mania para politicarem, e tomarem partidos por este ou aquele sistema! As gazetas, isso é uma lástima!... com raríssimas exceções, andam pejadas de mentiras (A Marmota na Corte, nº 5, p.1).

Paisagens imaginadas nas vistas, muitas vezes conduziam os leitores por percursos peripatéticos cuja composição não dispensava as reminiscências do narrador como em “Vista da Praça”, “Vista do Passeio Público” ou “Vista Pitoresca”. Por sua vez, em “Vista agradável!”, desvios metalinguísticos explicitavam a posição do leitor seduzindo-o de forma bem humorada para as ilusões de integridade e extensão

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territorial do Império que poderia se realizar em uma comunidade leitora: “O redator tem Grandes Vistas a respeito da continuação da Marmota, baseado no geral acolhimento que do público recebe todos os dias, e de todas as províncias do Império.” (A Marmota na Corte, nº 21, 1849, s/p.). Ainda é importante destacar o notável deslocamento promovido pela leitura destas “Vistas alheias: As pulgas” que metamorfoseia o leitor em inseto: “A quantos tenho eu ouvido dizer: – Quem me dera ser pulga!... Se eu o fosse passaria a vida folgada, teria minha cama no delicado seio das belas, ouviria seus segredinhos e suspiros e saberia muita coisa boa!” (A Marmota na Corte, nº12, 1849, p.2). Ao explicitar contradições temáticas e alimentar deslocamentos variados – espaciais, temporais, subjetivos – as vistas imprimiram nas páginas cenas projetadas cujos recursos narrativos implicavam o próprio leitor nas ilusões que experimentava. Neste sentido, as vistas contribuíram para criar condições para o desenvolvimento de um leitor autoconsciente, pois muitos deslocamentos experimentados revelavam artimanhas que relacionavam a ilusão que se apresentava ao narrador, à narrativa, à linguagem, ao impresso e ao próprio leitor. A “Vista séria” publicada no primeiro número de A Marmota na Corte honrou seu título ao descrever longamente o beija-mão ao Imperador Pedro II, certamente interessada em acenar àquele que era o maior mecenas da época; em sentido contrário, alguns números depois, surgiu um espaço intitulado “Império da Marmota – Parte Oficial” que dedicou-se a satirizar as pomposas formalidades da burocracia criando um inusitado império da marmota. Este espaço despertou ao menos duas dimensões da imaginação crítica. Em primeiro lugar, mimetizava o discurso imperial destacando sua dependência de uma certa formalização que ali mostrava-se preenchida por um conteúdo cômico, como, por exemplo podemos perceber no trecho abaixo com a substituição de “Vereadores” por “Varejadores”, aludindo mais uma vez a um inseto pouco agradável, a mosca varejeira. Tornava-se explícito que a formalidade do discurso dependia, ao menos parcialmente, da mecânica do próprio meio de comunicação, pois a gralha tipográfica intencional clamava a atenção do leitor para o dispositivo que tinha em mãos. O Império da Marmota também permitiu, em segundo lugar, que ali fossem indiretamente endereçadas críticas ao verdadeiro Império:

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IMPÉRIO DA MARMOTA – Parte oficial Tendo de ir ao mar no dia 16 do corrente a nova Corveta por nome Theodolinda, há pouco acabada no Arsenal da Marinha, e sendo provável que Sua Majestade queira assistir a este pomposo ato; é mister que vmcs. sem demora mandem tapar um enorme buraco que existe no meio da rua, bem defronte do referido Arsenal, a fim de que algum dos camaristas, ou pessoas que acompanham, não caiam dentro do sobredito buraco, o que causaria sem dúvida um sentimento profundo na população. Deus guarde a vmcs. Palácio do governo da Marmota, aos 9 de outubro de 1849. Srs. Presidente e mais Varejadores da Câmara Municipal. O Dr. Próspero Diniz. (A Marmota na Corte, nº 11, 1849, p.1).

Foi também neste espaço reservado ao império cômico das ilusões onde alguns devaneios românticos seriam contrastados com a realidade cotidiana, desdobrando-se uma reflexão estilística que questionava uma pedagogia moral romântica a partir de um jocoso realismo, como este exemplo que versa sobre uma temática onipresentes à literatura da época: as relações matrimoniais. IMPÉRIO DA MARMOTA. – Parte Oficial Chegando ao conhecimento deste governo que em certos dias, à tarde, costumam passar publicamente pelas ruas desta cidade carroças cheias de chifres, instrumentos estes considerados indecorosos, entre a gente honesta; julga de urgente necessidade que, quanto antes, Vosmicês ordenem aos condutores de tais chifres que cubram as carroças com panos, ou outra qualquer coisa que prive tal vista corrupta; tornandose este abuso até prejudicial a certos moradores das ruas por onde eles transitam, porque tomarão por sátira a passagem de tais objetos por suas portas. Deus me guarde de Vosmicês. Palácio da Marmota, 14 de novembro de 1849. Sr. Presidente e mais varejadores da câmara municipal, O Dr. Próspero Diniz, corregedor geral. (A Marmota na Corte, nº 22, 1849, s/p.).

A metáfora dos chifres ganhou uma pequena vinheta xilográfica para ilustrar um soneto satírico “oferecido ao 1o boi absoluto desta praça” (A Marmota na Corte 98, 1850, s/p.). Assinado pelo pseudônimo mão de gato, os versos dedicavam-se a troçar de algum marido traído que frequentava eventos culturais então populares, dentre os quais as corridas de touros. 103


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Imagem 3 – Soneto Oferecido ao 1o Boi Absoluto desta Praça. A Marmota na Corte, nº 98, 4 de outubro de 1850. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.

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Duas xilogravuras reproduzidas n’A Marmota na Corte, o “anão mineiro” (Imagem 4) e a “negrinha-monstro” (Imagem 5) confirmam as aproximações entre espectador e leitor. Os registros impressos da exibição do nanismo e da obesidade infantil, denotam que o fascínio diante destes espetáculos bizarros, ao menos parcialmente, devia-se a um efeito surpresa que ocorria quando o espectador constatava que deformação corporal não se espelhava em deformação espiritual. É o que podemos deduzi ao ler as linhas que acompanhavam a gravura do “anão mineiro”: “um homem que vale a pena ser visto, pela presença de espírito” (A Marmota na Corte, n°198, 1851, s/p.). Elaboração semelhante acompanhou os relatos sobre a “negrinha-monstro”, assim como revela o anúncio de sua exibição: Consta-nos que se acha na casa n. 150, da rua do Ouvidor, a maior monstruosidade que se pode dar no corpo humano! Uma negrinha, de 7 anos, e de tamanho correspondente à sua idade, é tão gorda que os braços são mais grossos do que a cintura de qualquer homem, e as coxas bem que iguais, mais parecem dois barris do que membros inferiores! Toda ela, porém, é proporcionada, e arranjada pela natureza com graça; fala bem, come pouco (mas do bom), e anda de modo que parece um João Paulino a cambalhotar!.. Digam agora os sábios da escritura Que segredos são estes da Natura!.. (A Marmota na Corte, nº112, 1850, s/p.)

Imagem 4 – O anão mineiro. A Marmota na Corte, nº198, 3 de outubro de 1851. Imagem 5 – A negrinha-monstro. A Marmota na Corte, nº125, 21 de janeiro de 1851. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.

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Após sua morte prematura, a gravura da negrinha-monstro foi encomendada para ser impressa ao lado de versos escritos por Paula Brito, que certamente a conhecera e sensibilizou-se com a trágica história da criança escrava. O longo poema destacou a assimetria entre imagem corporal e a interioridade espiritual que alimentou os olhares de curiosos pagantes: “Por este debuxo é fácil / Ajuizar quem quiser, / Que o ser monstro não tirava / D’a negrinha ser mulher” (A Marmota na Corte, n°127, 1851, s/p.). À época uma ária foi composta e encenada em sua homenagem e, quase trinta anos depois de sua morte, Machado de Assis, mencionaria em suas crônicas o triste espetáculo ao descrever um espetáculo similar: Quanto ao homúnculo sem braços, é um anão da Libéria, achado em um saco de café da mesma origem. O grão de café é tamanho e o anão é tamanino, que facilmente puderam entrar no mesmo saco. Mostra as suas habilidades em uma casa da rua do Ouvidor, ao som de um piano, que, ouvido cá de fora, parece tocado pelos pés do próprio anão; e, em tal hipótese, descontado a coriza de que o instrumento padece, não se pode negar que a execução é admirável. O anão, dizem que trabalha, come e escreve com os pés; e, por que não faz essas coisas de graça, pode-se dizer, sem metáfora, que mete os pés nas algibeiras do espectador. Custa quinhentos réis. A negrinha-monstro, uma virago célebre, que há uns vinte anos esteve em exposição naquela mesma rua, custava dois mil réis. É instrutiva a comparação dos dois preços; quer dizer que o progresso econômico vai tornando o aleijão acessível a todas as bolsas. Quasímodo não custaria hoje mais de cinco tostões, e Polifemo talvez se mostrasse por simples amor da arte (ASSIS, 1878, s/p.).

Figurino, caricatura, retrato Alguns meses antes de romper com Próspero Diniz, autor das vistas a quem acusou negligência com suas obrigações contratuais, o editor Paula Brito anunciou como novidade a distribuição de gravuras com figurinos de moda: “Nunca foi do programa da Marmota dar figurinos a seus assinantes; este ano, porém, anunciou-se que entre valsas, modinhas, lundus romances, etc., se daria também figurinos e riscos de bordados.” (A Marmota na Corte, n°236, 1852, s/p.). Em réplica a provocações do antigo sócio, o editor fez questão de apagar a importância das vistas revelando que o sucesso da nova Marmota Fluminense 106


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deveria ser atribuído à “[impressão de] músicas e figurinos... que é hoje [1852] do que o público mais gosta” (Marmota Fluminense, n°260, 1852, s/p.). Inicialmente, diante da impossibilidade técnica, as gravuras eram importadas, o que implicava em custos altos e outras dificuldades, como atender ao imperativo de novidade da moda diante do transporte transatlântico, além, é claro, de diferenças climáticas e culturais com a Europa. Se algumas partituras impressas apresentavam lundus e modinhas brasileiras, não encontramos quaisquer figurinos de moda com característica similar. Entretanto, uma notável transformação pode ser percebida ao longo da publicação dos figurinos (Imagem 6). Os primeiros figurinos avulsos circularam acompanhados de longos textos intitulados “Explicação da gravura” que tinham por objetivo informar a leitoras interessadas em reproduzir os modelos detalhes de materiais ou instruções de uso que não poderiam ser deduzidos a partir da imagem gravada. Por dentro, o enfeite é de cetim franzido, e ornado de pequeninas flores, ficando a cor do cetim ao gosto da modista, sempre em harmonia com a beleza e a expressão do rosto. [...] O vestido é de riscado escocês. Esta dama tem no braço um pardessus (sobretudo) de veludo, com franjas (isto é só próprio para saídas dos teatros ou bailes)... O lenço é de cambraia, com renda, o mais fino possível. [...] Cumpre notar que o veludo está no furor da moda para tudo! Se a dama enfeita a cabeça com flores, são estas ou de veludo, ou com folhagem de veludo; se orna o chapéu, o veludo aparece em todos os enfeites que o guarnecem, tanto interior como exteriormente; se o vestido é de baile, e tem apanhados na saia, aí representa o veludo, ou em guarnições ou nas flores com que a modista se quer enfeitar, se é amante de Flora. Enfim, veludo sempre, e sempre veludo!.. (A Marmota na Corte, n°236, 1852).

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Imagem 6 – Figurino de moda. Marmota na Corte, nº236, 17/2/1852. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.

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É notável que a extensão dos textos que acompanhavam os figurinos reduziuse progressivamente até sua completa eliminação. Pouco mais de um ano depois da primeira explicação lemos a seguinte nota: “Distribuímos hoje aos nossos assinantes o 2.º figurino do corrente mês. Não fazemos a descrição dele, porque queremos dar às amáveis modistas o trabalho de os examinar; e o prazer de entrarem umas com outras em discussão.” (Marmota Fluminense, n°360, 1853, s/p.). Talvez a inadequação dos figurinos à realidade local tenha eliminado suas apropriações mais pragmáticas pelas modistas, tornando-se apenas figuras que não serviam para figurino. Atraentes em um primeiro momento, a despeito de sua rápida proliferação, as estampas importadas logo se revelariam uma ilusão imprópria devido ao clima e os hábitos dos trópicos, impondo a adaptação como necessidade. Como se sabe, os figurinos, que aqui recebemos, não são os que regulam as modas de Paris, porque lá, como aqui, cada um se veste como quer, ou como pode – tudo é moda. Dado mesmo o desconto de que a moda dos seis meses de inverno em França não nos pode servir, porque são os seis meses de verão no Brasil; aparecendo semanalmente dez ou doze figurinos com alterações, seria impossível haver quem acompanhasse tão extravagantes novidades. Hoje tem as nossas amáveis leitores três jornais que distribuem figurinos – o Correio das Modas, o Jornal das Senhoras, e a Marmota Fluminense; – ora, perguntamos nós: há alguma Senhora que traje atualmente como indicam esses figurinos? Certamente que não. (...) os figurinos servem para regular os feitios, tanto do trajar dos homens, como das Senhoras, e nada mais (Marmota Fluminense, n°537, 1855, s/p., grifos meus).

Assim como o narrador das vistas compunha paisagens como bem lhe aprouvesse, pinçando elementos daqui e dali, também as leitoras poderiam se apropriar de um detalhe daqui e outro dali, descartando descrições mais integras e precisas. Em 1852, oficialmente autorizado a produzir impressos para o Império, Paula Brito amealhou recursos junto a acionistas para adquirir equipamentos litográficos e uma estamparia. Dessa forma, tornou-se possível imprimir imagens originais, relacionadas a atualidades da corte como, por exemplo, a série de três caricaturas que ilustraram um ruidoso conflito diplomático 109


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conhecido como a guerra dos chouriços.2 Neste curioso episódio, a Coroa Portuguesa fora acusada de exportar para a ex-colônia embutidos produzidos com carne humana. A mais conhecida destas gravuras, O horror que causa um chouriço, além de ser vendida de forma avulsa circulou encartada na Marmota Fluminense (Imagem 7). O episódio pode ser explicado parcialmente pelo forte anti-lusitanismo então em voga, e teve sua origem na reprodução de um suposto ofício diplomático na imprensa. De fato, o chouriço de carne humana era uma peta, ou seja, uma mentira disseminada com vistas a iludir leitores e a própria imprensa. A desconfiança mútua iniciou uma guerra comercial e demonstrou ser uma hábil manipulação midiática que promoveu uma manobra diplomática que tinha por objetivo convencer a Coroa Portuguesa a reprimir a produção de moedas falsas, demonstrando a utilidade e eficácia para um efeito ilusório produzido pela fantasiosa retórica ficcional. Vejamos os versos que acompanhavam a imagem: Em fantasma transformado, Por ser de carne de gente, Onde o chouriço aparece Deita a fugir toda a gente. A questão dos diplomatas Foi causa de tudo isso: Veja-se agora entre o povo O horror que causa um chouriço! (Marmota Fluminense, n°392, 1853, s/p.).

2 Pouco mencionada, a Guerra dos Chouriços foi recontada por Raimundo Magalhães Júnior em uma série de anedotas cotidianas apresentadas em “O império em chinelos”: “[...] numa fábrica de chouriços, na Aldeia Galega, tinha sido descoberta toda a espécie de falsificações na manufatura deles, ajuntando-se-lhe à carne de porco, de que são compostos, carne de cão, gato, cabrito, cavalo, e de outros animais mortos por doença e cansaço [...] Desconfia-se que até carne humana se lhe juntava!” (1957, p.62).

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Imagem 7 – O horror que causa um chouriço. Marmota Fluminense, nº 392, 16/8/1853. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.

No mesmo ano em que a imagem do fantasmagórico chouriço humano divertiu seus leitores, a Marmota Fluminense anunciou a distribuição do retrato de um inusitado herói negro que surgira para salvar vítimas de um trágico naufrágio: O PRETO SIMÃO A cor não faz o Herói, não, são seus feitos! O desgraçado acontecimento do naufrágio do Vapor Pernambucana fez aparecer, em 1853, um Herói, um Preto, que cheio de coragem e amor pela humanidade lançando-se ao mar, não uma, mas muitas vezes, e arriscando cada uma delas a vida, foi assim salvando a de quantos passageiros nele, e só nele tinham fitos os olhos! Isto é tanto louvável quanto sendo ele Preto, todos aqueles a quem salvava eram Brancos, entrando neste número senhoras casadas, moças donzelas, e crianças, a quem ele respeitava, e animava cheio de confiança em si! Cansado já da luta, 111


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sentindo enfraquecida as pernas, do resfrio do mar, estendeu-as uma vez sobre a praia, e esfregando-as com areia, pode assim restabelecer a circulação do sangue, e conseguir seus desejos, até onde puderam chegar suas forças, e lhe permitiram as circunstâncias!... [...] Honra aos jornais, que disto se tem ocupado com empenho. Daremos, com o próximo número, o retrato deste Herói (Marmota Fluminense, n°416, 1853).

Assim como revelou Rafael Cardoso (2008), a história do retrato inverteu uma certa hierarquia na lógica de produção das imagens, uma vez que a pintura não teve o seu devido acabamento e serviu apenas para que a litografia fosse produzida. O hábil pintor José Correia de Lima esboçou os traços do marinheiro para servir de modelo ao litógrafo Louis Thérier. Do naufrágio à primeira circulação da gravura, passou-se menos de um mês, sendo estabelecido um ritmo industrial para a produção da imagem impressa do acontecimento. Semelhanças na composição e no enquadramento entre a pintura e a litografia não devem apagar suas significativas diferenças. Na adaptação para a gravura, o marinheiro teve a cabeleira amansada e o colo musculoso coberto por uma elegante casaca, além disso, sua baixa patente foi ocultada no título gravado: Simão, herói do vapor brasileiro Pernambucana (1853) (Imagem 8). Para elevar o subalterno marinheiro negro a herói e exaltar sua virtude, como pretendeu Paula Brito,3 foram necessários artifícios que podemos chamar de ilusionistas. Se as xilogravuras do “anão mineiro” e da “negrinha monstro” apresentavam uma certa simplicidade e dependiam de textos que pudessem associar qualidades intelectuais e humanas aos seus corpos deformados, no retrato projetado para os leitores da marmota a imagem foi habilmente adaptada para que o corpo negro pudesse ser associado à aura de herói e percebido em sua “virtude”. Para tanto foi necessário subtraí-lo do seu contexto original para inseri-lo no espaço abstrato da estampa, além, é claro, de vesti-lo com um típico figurino urbano e letrado induzindo a percepção dos leitores em direção à sua virtude espiritual e desviando-os de traços que pudessem lembra-los da realidade 3 Em “Simão, o herói da Pernambucana”, depois de narrar os detalhes do naufrágio na forma de quadrinhas, Paula Brito conclui: “Ninguém a SIMÃO despreze / Ninguém lhe negue o louvor: / SIMÃO fez atos divinos; / – A virtude não tem cor. –” (it Marmota Fluminense, nº419, 1853).

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braçal que o marcava. Certamente esta fascinante imagem permite outras perspectivas analíticas, especialmente se imaginarmos sua percepção por nãoleitores, no entanto, isso é assunto para outro artigo. Importante dizer que foram encontrados anúncios de diversas reimpressões da gravura, mesmo cinco anos depois da primeira circulação.4

4 Dois números após a distribuição do retrato aos assinantes, encontramos o seguinte anúncio: “Retratos do Preto Simão vendem-se a 1$000 rs no escritório desta tipografia, praça da Constituição nº 64, e na – loja do canto – nº 78. (Marmota Fluminense, nº 419, 1853). Cinco anos depois, junto a anúncios de obras literárias e outros impressos lemos: “Retrato do Preto Simão - 1$000”. (A Marmota, nº 946, 1858).

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Reflexos e reflexão Será que o fascínio ilusório das vistas faria com que o leitor-espectador virasse suas costas para a realidade que o circundava, como se apresenta, na primeira imagem deste artigo, o homem que espia pelo buraco da marmota? Talvez. Porém, na mesma imagem podemos ver um segundo espectador que aguarda sua vez para espiar. Este último parece realizar a mediação entre a imagem que se apresentam e o próprio leitor que, assim como ele, observa uma cena de observação. Como no célebre jogo de espelhos pintado dois séculos antes por Velásquez, a imagem de uma marmota e seus dois espectadores simultaneamente apresenta e implica o leitor no gesto de observação. Se, por um lado, ao se dispor à ilusão, o leitorespectador era capaz de experimentar novas perspectivas e incrementar a sua capacidade de percepção e imaginação, por outro, desenvolvia uma consciência reflexiva ao deparar com artifícios explícitos que repetiam ao iludido leitor que ele participava ativamente da ilusão produzida. Assim como notou Paula Brito, editor das Marmotas, além de atrair a atenção, se alguma luz era projetada por meio de vistas e imagens, tinha por efeito aproximar o leitor-espectador de sua própria realidade cotidiana e pragmática: Como agora ninguém lê Neste século ilustrado Sem, por algum incentivo, a tanto ser obrigado De sorte que é necessário Das coisas ver a figura Para no escrito buscar-se o útil que se procura (BRITO apud VELOSO, 2011, p.77).

Referências bibliográficas A MARMOTA NA CORTE, n. 236, 17 fev. 1852. A MARMOTA NA CORTE, n. 198, 3 out. 1851. A MARMOTA NA CORTE, n. 127, 28 jan. 1851. A MARMOTA NA CORTE, n.112, 22 nov. 1850. 114


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A MARMOTA NA CORTE, n. 98, 4 out.1850. A MARMOTA NA CORTE, n. 22, 20 nov. 1849. A MARMOTA NA CORTE, n. 21, 16 nov. 1849. A MARMOTA NA CORTE, n. 12, 16 out. 1849. A MARMOTA NA CORTE, n. 6, 25 set. 1849. A MARMOTA NA CORTE, n. 1, 7 set. 1849. ASSIS, Machado de. O Cruzeiro, Notas Semanais, 23 jun. 1878. Acesso em: 2013/2017. Disponível em: http://www.cronicas.uerj.br/. ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. Do gráfico ao fotográfico: a presença da fotografia nos impressos. In: CARDOSO, Rafael (org.). O design brasileiro antes do design. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p.60-95. BRIZUELA, Natalia. Fotografia e Império: Paisagens para um Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, IMS, 2012. LIMA, José Correia. Retrato do intrépido marinheiro Simão. In: CARDOSO, Rafael. A arte brasileira em 25 quadros. Rio de Janeiro: Record, 2008. CARDOSO, Rafael. O início do design de livros no Brasil. In: ____ (org.). O design brasileiro antes do design: Aspectos da história gráfica, 1870-1960. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p.160-195. FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e letra: Introdução à bibliologia brasileira: A imagem gravada. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998. KITTLER, Friedrich. Mídias óticas: Curso em Berlim, 1999. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016. KOSSOY, Boris. Hercules Florence: A descoberta isolada da fotografia no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade São Paulo, 2006. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1998. 115


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IMAGENS MI(G)RANTES1 Danusa Depes Portas .

Imagina uma imagem composta à imagem e semelhança da imagem

As imagens hoje constituem um ponto singular de fricção e desassossego que atravessa transversalmente uma grande variedade de campos de pesquisa, do âmbito acadêmico aos fast-thinkers. O modo mais simples de explicar tudo isso é dizer que, no que se costuma chamar a era do espetáculo (Debord), da vigilância (Foucault) e da fabricação expandida de imagens, ainda não sabemos o que são as imagens, qual a sua relação com a linguagem e como elas operam sobre os observadores e sobre o mundo, como se deve entender sua história e o que se deve fazer com (ou a respeito de) elas. O envolvimento contemporâneo com a pergunta a respeito da imagem resulta na construção de um novo campo interdisciplinar de investigação em disputa. Os Estudos Visuais ou o conceito de Cultura Visual não encerram o 1 Este ensaio é acompanhado de material audiovisual acessados por tecnologia QR Code. Baixe gratuitamente em seu celular ou tablet um aplicativo de leitura. Trata-se de uma espécie de ensaio VJing na cena de reconhecimento da crítica. A presença da performance audiovisual hoje vem sendo restabelecida com crescente emprego das projeções de imagem em tempo real. Ao manipular imagens ao vivo com o uso de hardwares e softwares especializados para o tratamento de imagem, as performances dos VJs trazem ao palco algo que sempre existiu desde a ancestralidade do cinema vivo.

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mesmo sentido para os autores que têm investigado o tema e sua problemática. Uma definição abarcante pode ser configurada de modo que aproxime o conceito de cultura visual da diversidade do mundo das imagens, das representações visuais, dos processos de visualização e dos modelos de visualidade. A institucionalização do campo de estudo, a emergência do conceito de cultura visual e a projeção do campo dos Estudos Visuais representam o reconhecimento de novas possibilidades para os estudos da imagem e da arte, lançando a visualidade em foco. Podemos, pois, inferir que o campo dos Estudos Visuais propõe perguntas que não foram formuladas pela História da Arte e podem caracterizar uma nova historiografia de marca interdisciplinar. A substituição de um programa universalista de História da Arte por uma multiplicidade dispersa de histórias das imagens, e o consequente reconhecimento da abertura de um campo disciplinar de objetos de estudo – de experiência – consideravelmente vasto e adequadamente descritível em termos de cultura visual, do qual as produções artísticas apenas configuram uma parte, constitui sem dúvida um acontecimento crucial para a totalidade das práticas que produzem visualidade – e para as disciplinas que se ocupam de seu estudo. A incapacidade de separar o estudo da arte do estudo de outros tipos de imagens é uma crítica comum ao novo campo da pesquisa acadêmica dos Estudos Visuais. Em uma expressiva consulta proposta a pesquisadores que responderam ao visual culture questionnaire, entre os anos de 2001-2005, Margaret Dikovtskaya, no Visual Culture: the Study of the Visual after the Cultural Turn (2005), identifica três grupos dominantes no campo dos Estudos Visuais: o primeiro considera a cultura visual como a expansão própria à História da Arte; o segundo vê o campo como independente da História da Arte e entende que ele seria estudado mais apropriadamente com as tecnologias da visão relacionadas à era digital e virtual; por último, um terceiro grupo entende a cultura visual como um campo que desafia a tradicional disciplina da História da Arte. A disputa por definições de termos nesse campo de estudos não é consensual, assim como a delimitação de seu objeto. O questionamento de um conceito de arte autônoma, portanto, totalmente diferenciado da constelação expandida das práticas de produção visual – algo que deveria ser considerado como uma consequência imediata –, nunca será um evento trivial, e isso não só para o reduto particular da comunidade artística mainstream, mas também para grande parte do complexo tecido social na disseminação de formações culturais que hoje coexistem. Se agregarmos a isso a 118


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fabulosa potência de seu papel – o da cultura visual – nas sociedades contemporâneas, devido às possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias (não apenas em termos de produção, mas, sobretudo, diante da multiplicação até limites inimagináveis de seus potenciais de distribuição e, como efeito, condicionamento dos modos de vida), podemos dizer com segurança que estamos diante de um horizonte de transformações muito importantes no campo das práticas que produzem o significado cultural através da visualidade (bem como no tocante às disciplinas que pretendem o seu estudo e interpretação). Transformações que afetam de forma direta e imediata as construções metodológicas e epistemológicas das próprias disciplinas – talvez irreversivelmente transdisciplinares – e que, consequentemente, devem, em primeira instância, ser transferidas para as organizações acadêmicas que articulam sua produção e transmissão. Além disso, elas afetam também e igualmente a própria significação dos objetos e as formas como a sua recepção social pode dar-se. Há por isso uma grande amplitude de dimensões envolvidas neste comovente debate rastreado pela seminal Revista de Estudios Visuales: das propriamente estéticas e críticas às relativas à função antropológica da imagem nas sociedades atuais; da renovação aprofundada das metodologias analíticas – e a irrupção dos Estudos Culturais no campo da visualidade é um fato tão inevitável ​​quanto irreversível – até a necessária reorganização acadêmico-universitária dos Estudos Visuais; do debate sobre as dimensões formadoras da cultura visual até a discussão de suas implicações sociais e políticas; da reflexão sobre o papel da visualidade na organização dos espaços de vigilância e articulação das formações de poder nas sociedades de controle até o debate sobre a sua função como criadora de riqueza nas estruturas produtivas das novas sociedades do conhecimento; da reflexão sobre a importância da visualidade em termos de construção da identidade – nos processos de individuação e socialização – e da sujeição, até a reflexão sobre a mudança do paradigma cultural e filosófico que poderia levar a um giro que deslocasse o centro de sua ontologia do logos até a imagem, na aparição inquietante e sugestiva de um novo e pregnante imagocentrismo (BREA, 2003). São muitas, e muito ricas e complexas, as dimensões que este debate pode abarcar, e a intenção aqui não pode ser outra senão a de simplesmente abrí-lo, apresentando alguns dos princípios desse campo heteróclito e múltiplo que tem sinalizado sua emergência no contexto internacional. Tal proposta corresponde ao desejo de dar respostas a diferentes questões formuladas no campo da História 119


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da Arte, Estética, Teoria Cinematográfica, Literatura, Antropologia ou Mídia, como, por exemplo: quais seriam as formas de fornecer uma perspectiva analítica e crítica da cultura visual; ou como circunscrever e colocar limites conceituais a um campo expandido como este. Um dos primeiros teóricos na abordagem do tema, W.J.T. Mitchell, no artigo “Interdisciplinarity and Visual Culture” (1995), considera a cultura visual como um campo interdisciplinar, um lugar de convergência e conservação através de diferentes linhas disciplinares. O próprio Mitchell, em Picture Theory (1994), apresenta uma noção que acredito ser fundamental para o desenvolvimento dos Estudos Visuais, nesse sentido. Depois de questionar o giro linguístico (linguistic turn) – tal como exposto na década de 1950 –, por ver nestes modelos de textualidade uma língua franca que reduzia o estudo da Arte e também das formas culturais e sociais a uma questão de discurso e linguagem, Mitchell sugere um giro pictórico (pictorial turn), a saber, um giro que propõe uma transformação da História da Arte em uma história das imagens dando ênfase no lado social do visual, bem como nos processos cotidianos de se olhar os outros e ser visto por eles.2 O trabalho do artista brasileiro Paulo Nazareth que abre esse ensaio, da série Notícias de América (2011), é uma forma de dar imagem ao que Mitchell chama um giro pictórico na nossa cultura contemporânea, no sentido de que vivemos em um mundo de imagens no qual não há nada fora da imagem. Mitchell concebeu uma teoria da visualidade que aborda a circunstância da percepção não só do ponto de vista fisiológico, mas também na sua dimensão cultural. O que deve ficar claro é que não se trata de um retorno a uma mímesis ingênua, a teorias de representação como cópia ou correspondência, nem de uma renovação da metafísica da presença pictórica. Trata-se de um redescobrimento pós-linguístico da imagem como um complexo jogo entre a visualidade, 2 Richard Rorty descreve a história da filosofia como uma série de giros na qual um novo conjunto de problemas aparece e os antigos começam a desaparecer. A última etapa na história da filosofia de Rorty é o que ele designa linguistic turn, um processo com complexas repercussões em outras disciplinas das ciências humanas. A Linguística, a Semiótica, a Retórica, e vários outros modelos de textualidade tornaram-se uma língua franca da reflexão crítica sobre a arte, as mídias e demais formas culturais. A sociedade é um texto. A natureza e suas representações científicas são discursos. Até o subconsciente foi estruturado como linguagem. O que pretendia Rorty era tirar a filosofia de sua obsessão pela epistemologia e, em particular, de sua obsessão com o modelo da imagem como uma figura de transparência e realismo representacional. Para ele, o espelho seria a tentação do cientificismo e do positivismo. Cf. RORTY, Richard apud MITCHELL, 1994, p.19.

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os apparatus, as instituições, os discursos, os corpos e a figuralidade. É a compreensão de que a atividade do espectador (a visão, o olhar, o entrever, as práticas de observação, vigilância e prazer visual) pode constituir um problema tão profundo como as várias formas de leituras (decifração, decodificação, interpretação etc.) e pode ser que não seja exequível explicar a experiência visual, ou o alfabetismo visual, com base somente em um modelo textual.3 O mais relevante é a apreciação de que, ainda que o problema da representação pictórica sempre esteve conosco, agora a sua pressão, com uma força sem precedentes, resulta inescapável em todos os níveis da cultura, da mais refinada especulação filosófica às mais vulgares produções dos meios massivos. As estratégias tradicionais de contenção já não parecem servir e a necessidade de uma crítica global da cultura visual parece inevitável (MITCHELL, 1994, p.16). A visão, como mediadora das relações sociais, seria, segundo essa proposição, tão importante quanto a linguagem, não podendo, assim, ser reduzida à linguagem, ao signo ou ao discurso. Paradigmaticamente, o “sujeito” é um espectador, o “objeto” de uma imagem visual. A visão, o espaço, as imagens do mundo e as imagens da arte se juntam para compor um grande tecido de formas simbólicas que sintetizam o Kunstwollen (Alois Riegl) de cada período histórico.4 3 Essa versão negativa do giro pictural já estava latente na compreensão de que a semiótica construída sobre o modelo do signo linguístico poderia não ser capaz de lidar com o ícone, o signo da semelhança, exatamente porque, como argumenta o historiador da arte Hubert Damisch, o ícone não é necessariamente um signo. Cf. DAMISCH, Hubert apud MITCHELL, 1994, p.16 4 O conceito de Kunstwollen (vontade da arte) foi proposto pelo historiador da arte austríaco Alois Riegl, que o entende como uma força do espírito humano que faz nascer afinidades formais dentro de uma mesma época, em todas as suas manifestações culturais. Esta vontade artística e suas variações são condicionadas pela visão de mundo (Weltanschauung), fruto da religião e do pensamento científico fundamental. Riegl passa, então, a interpretar a história da arte como uma história do espírito da arte, a sucessão de estilos e a sobreposição destes sobre a consciência cultural em voga. O que interessa captar, de acordo com o ponto de vista riegliano, seria a arte a partir de sua relação com uma concepção de mundo não necessariamente materialista ou dialética. Em vez disso, Kunstwollen atribui à arte uma autonomia relativa à história material, coincidindo, tão somente, com as manifestações concretas do espírito. A história da arte, portanto, é entendida pela variação dos estilos, em função de estruturas simbólicas, de seu uso dentro da coletividade, ou de sua função estética ligada à questão do conhecimento. As obras de Erwin Panofski e Ernst Cassirer, de alguma maneira, vêm na esteira do pensamento de Riegl. Pode-se, inclusive, afirmar que a semiótica aplicada às artes também toma esse viés, por meio da investigação das estruturas significantes do pensamento e da linguagem associada ao estudo de estilos na arte.

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O nome disciplinar desse contexto é Iconologia, o estudo de um campo geral de imagens e de sua relação com o discurso. Essa abordagem nos teria levado ao problema das metalinguagens, os discursos de segunda ordem que tentam refletir sobre os discursos de primeira ordem. Entretanto, se se quer que o giro pictórico cumpra a sua ambição de elaborar uma iconologia crítica, parece evidente que será necessário desfazer esse tecido, e não seguir elaborando-o. Vale lembrar, a propósito, duas assertivas que se coadunam. Na primeira delas, o historiador e crítico de arte Hal Foster, em sua contribuição para a edição da revista October, “The Archive Without Museums” (1996), propõe que tal abordagem de imagens implica um movimento da noção de “arte para a de visual” e da noção de “história para a de cultura”. Cuidando desse primeiro par, Foster afirma que a cultura visual participa do que ele chama de giro etnográfico. O que significa isso? Ao assumir que a posição (o ponto de vista) importa na produção do discurso, tal conhecimento é conjugado pelos interesses dos responsáveis pela ​​ sua articulação. Além disso, o autor defende que a cultura visual corre o risco de comprometer as concepções de história tradicional. Ou seja, Foster opõe a diacronia à sincronia, alegando que a última ganha em detrimento da primeira. Assumir a espacialidade da cultura, a multiplicidade de abordagens que a anima, parece algo incompatível com a cronologia. O conceito de história então é substituído pelo de cultura, e o de arte pelo de visual, jogando ao mesmo tempo com a virtualidade implícita no visual e com a materialidade própria ao termo cultura. Voltaremos a esse ponto adiante. Nesse sentido, Foster subscreve, ainda, que a imagem é para os Estudos Visuais o que seria o texto para o discurso crítico pós-estruturalista. Importante notar que o estruturalismo e o pós-estruturalismo francês resolveram o problema entre texto e imagem através da universalização da textualidade, como contra-argumenta o historiador Martin Jay, em Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought (1994), sinalizando uma fobia generalizada do visual no pensamento francês contemporâneo, marcado pela clara submissão do visual à palavra. Logo, na medida em que toda imagem é texto, toda a complexidade inerente à semiótica da visualidade se dissolve em signo e mensagem. A título de exemplo, em Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines (1966), Foucault assevera que le rapport du langage à la peinture est un rapport infini (p.25). Entretanto, 122


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adverte: Ils sont irréductibles l’un à l'autre: on a beau dire ce qu’un voit ne loge jamais dans ce qu’on dit, et on a beau faire voir, par des images, des métaphores, des comparaisons, ce qu’on est en train de dire, le lieu oú elles resplendissent n’est pas celui que déploient les yeux (p.25).5 Ver e dizer constituem uma não-relação. Essa evidente incomunicabilidade da linguagem destaca a ambição imperativa de textualização do mundo pelo discurso (pós)estruturalista. A análise está exigindo o seu próprio modo de análise, propõe Jay (1994); o que implica a consideração dos aspectos históricos e culturais para se entender a construção do olhar e trazer nova atenção às técnicas da observação, às metáforas do visual e às práticas visuais. Jay, em “Scopic Regimes of Modernity”, que compõe uma coletânea seminal organizada por Hal Foster, Vision and Visuality (1988),6 havia estabelecido uma distinção entre as subculturas visuais. Essa discriminação nos permite entender as múltiplas implicações da visão, mostrando-nos visualidades competitivas, designadas de regimes escópicos, a partir de um termo usado originariamente pelo teórico do cinema Christian Metz. Jay define três regimes escópicos diferentes na Modernidade: o perspectivismo cartesiano, o descritivismo flamengo e a visão do barroco. Eles operam como paradigmas interpretativos e nos permitiriam encontrar modelos visuais para refletir as características das mudanças nas condições representativas. A segunda assertiva oferece o notável empreendimento de desatar o nó górdio. O espectador das grandes narrativas da História da Arte é problematizado pela reflexão do teórico de arte Jonathan Crary, inicialmente no ensaio “Modernizing Vision”, que integra Vision and Visuality (1988), e, posteriormente, em seu livro Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the 19th Century (1990). Segundo Crary, o observador do século XVII e XVIII era uma figura incorpórea cuja experiência visual fundava-se no modelo das 5 A relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita [...] São irredutíveis uma à outra: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam. (Tradução minha). 6 Em 1987, realiza-se na Dia Art Foundation uma série de debates críticos através da coordenação de seis discussões semanais sobre diversos temas culturais, organizadas por Hal Foster, de que participam Martin Jay, Jonathan Crary, Rosalind Krauss, Norman Bryson, Jacqueline Rose, e que resulta na edição de Vision and Visuality.

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relações incorpóreas da câmara escura. No século XIX, esse observador adquire um corpo. Os fenômenos psicofisiológicos, como as imagens retinianas, substituem os paradigmas da ótica física. Novos apparatus óticos surgem de uma abstração e reconstrução radical da experiência ótica. Tal influxo avoluma-se rapidamente até converter-se em uma transformação demolidora na forma de conceber o observador, ou seja, um conjunto hegemônico de discursos e práticas em que a visão toma forma. A partir de um modelo dominante do observador no século XIX, Crary identifica a historização da visão e da atividade do espectador, alegando que estamos em meio a uma transformação na natureza da visualidade, quiçá mais profunda que a ruptura que separa a imagery medieval da perspectiva renascentista. Tais alegações esclarecem as razões por que Hal Foster postula termos como visão e visualidade no debate crítico seminal, em 1987, na Dia Art Foundation. Na perspectiva compósita de pesquisadores presentes no debate, a visibilidade é considerada como um fato social, o que indica a investigação de técnicas históricas e determinações discursivas da visão. Isto é, o visual demarcando a diferença entre a visão – como um mecanismo da vista – e a visualidade constituída por técnicas do ver historicamente construídas, ou, inclusive, a visão – como os dados objetivos de vista e visualidade – considerada a partir de determinações discursivas de um grupo ou sociedade. Portanto, em vez de reduzir a análise do visual a um único conjunto de princípios, me parece que o objetivo do estudo acadêmico de imagens seria então o reconhecimento de sua heterogeneidade, das diferentes circunstâncias de sua produção e da variedade de funções culturais e sociais às quais serve. O que a discussão crítica transcrita para Vision and Visuality (1988) deixa claro é o fato de que tanto a parafernália interpretativa como as estratégias heurísticas usadas para elucidar diferentes tradições de produção visual são radicalmente distintas umas das outras, e que cada forma de pesquisa tem muito a ganhar no contato com as demais, como uma tentativa de dar flexibilidade útil a um campo que ainda não encontrou seu lugar historicamente. Esse aspecto heteróclito pressupõe que os Estudos Visuais ignoram as garantias estabelecidas por acadêmicos interessados em ​​ preservar a autonomia que está intrinsecamente ligada ao código linguístico e outros códigos que caracterizam uma cultura particular em um determinado momento histórico. 124


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Em vista disso, o conceito de autonomia da arte é substituído, nos debates iniciais, pelo de intertextualidade. A questão sobre a autonomia do visual e seus limites surge de modo que a visão deve ser tratada como uma matriz que inclui outros sentidos. É assim que Mitchell condena a separação do verbal e do visual e argumenta que a tensão entre texto e imagem seria insuperável. A argumentação aqui se alinha ao princípio de que a interação entre imagem e texto é constitutiva da representação como tal, apresentada em seu livro Picture Theory (1994): all media are mixed media, and all representations are heterogeneous; there are no purely visual or verbal arts, though the impulse to purify media is one of the central utopian gestures of modernism (p.5)7 Ao defender o diálogo permanente entre representações verbais e pictóricas, ele enfatiza que as representações visuais são vistas como parte de um conjunto de práticas e discursos entrelaçados. Mitchell considera ainda que a condição do espectador e as formas de leitura da imagem e da experiência visual não podem ser explicadas apenas pelo modelo da textualidade – corroborando os argumentos de Foster, Jay e Crary –, o que torna inevitável a necessidade de uma crítica global da cultura visual. Em Iconology: Image, Text, Ideology (1986), Mitchell se pergunta como são as imagens, em que se distanciam das palavras e por que seria importante pelo menos propor estas perguntas. A pergunta sobre a natureza da imagem não subsiste sem uma reflexão extensa sobre os textos, sobretudo a forma pela qual os textos atuam como imagens ou incorporam a prática pictórica e vice-versa – uma iconologia aplicada. Em Picture Theory (1994), o autor retoma essas mesmas questões a respeito dos objetos representacionais concretos nos quais aparecem as imagens: imagery, image, picture. O vocábulo image diz respeito à formação de imagens mentais, figuras ou imagens das coisas, ou de tais imagens coletivamente. Já o termo picture alude ao ato da representação, ao passo que o termo imagery refere-se à iconicidade. A noção de uma picture theory sugere uma intenção de controlar o campo de representações visuais com o discurso verbal. Entretanto, suponhamos que invertêssemos as relações de poder entre o discurso e o campo e tratássemos de dar imagem à teoria. Picture Theory é um livro que começa com a pergunta sobre 7 Todos os meios são meios mistos e todas as representações são heterogêneas; não há artes puramente visuais ou verbais, embora o impulso de purificar o meio seja um dos principais gestos utópicos do modernismo. (Tradução minha).

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como imaginar a teoria, na ambivalência de olhar as imagens na teoria e da própria teoria como uma forma de dar imagem a ela. Pode-se, pois, reafirmar que o giro pictórico implica um estudo da imagem como uma interação complexa entre visualidade, apparatus, instituições, discursos, corpos e figuração. Cada um desses termos indica um conjunto complexo de práticas subjacentes que tornam possível a imagem e sua capacidade de atribuir significado. A visibilidade refere-se ao registro visual em que a imagem e o significado visual operam. O apparatus diz respeito ao domínio dos meios de expressão que condicionam a produção e a circulação, tal como a reprodução eletrônica nos nossos dias. Ao reportar-se às instituições, é interessante observar as relações sociais organizadas em torno da produção da imagem e de sua circulação, os corpos; assim também recordamos a necessidade de considerar a presença do observador, do espectador, como um outro necessário nos circuitos da promoção do significado visual, e que alguém conduz o controle da imagem. Entretanto, o giro pictórico não é uma resposta a nada. É apenas uma maneira de começar a questão. Uma maneira de lidar com esse problema seria abandonar a ideia de uma metalinguagem ou discurso que pudesse controlar nossa forma de entender as imagens, para explorar a forma pela qual as imagens tratam de representar a si mesmas. Uma iconologia em um sentido muito diferente da tradicional, a saber, imagens discursivas, um controle do ícone pelo logos, em que certas imagens e semelhanças persistentes esgueiram-se nesse discurso (retórico, literário, ou, inclusive, menos convincentemente, científico), fazendo-o totalizar imagens do mundo e visões do mundo. Não obstante, recordo dois dos argumentos fundamentais de Iconology: Image, Text, Ideology (1986). O primeiro concerne ao gesto mais importante para reconstruir a iconologia, que, segundo Mitchell, seria abandonar o desejo de chegar a uma teoria científica e encenar o encontro entre o ícone e o logos em relação a temas como o paragone da pintura e da literatura na tradição das Artes Irmãs. Tal gesto, levaria além dos estudos comparativos da arte verbal e visual, a uma construção do humano constituído tanto pela linguagem como pela imagem. Um argumento básico de seu livro é o de que o nome mesmo dessa ciência das imagens está marcado pelas cicatrizes de uma antiga divisão e de um paradoxo fundamental, que não pode ser apagado no seu interior. Mitchell já anuncia tal argumento em um trecho das páginas iniciais de Iconology (p.8): 126


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O outro gesto chave para reviver a iconologia, aparece no último capítulo de Iconology através das figuras constitutivas (a câmara escura e o fetiche) da dissertação de Marx sobre a ideologia e a mercadoria. Então, Mitchell expande essa reflexão em Picture Theory (1994, p.24-5), um livro que começa com a pergunta sobre como imaginar a teoria, passando do apparatus da ideologia (especialmente suas figuras de conjuntos óticos) a suas figuras teatrais, o que ele caracteriza como a cena do reconhecimento da crítica. Mitchell trata das condições de surgimento e funcionamento das imagens, partindo do postulado de que agora estamos dentro de uma imensa zona-imagem, e não mais diante das imagens. As diferenças entre imagens e 8

8 Parece evidente que a questão da natureza do imagético só tem sido superada pelo problema da linguagem na evolução da crítica moderna. Se a linguística teve Saussure e Chomsky, a iconologia teve Panofsky e Gombrich. Mas a presença desses grandes sintetizadores não deveria ser tomada como um sinal de que os enigmas da linguagem ou do imagético estão, afinal, a ponto de serem resolvidos. A situação é justamente a inversa: a linguagem e o imagético já não são o que prometiam ser para os críticos e filósofos da Ilustração: meios perfeitos e transparentes através dos quais se podia representar a realidade para o entendimento. Para a crítica moderna, a linguagem e o imagético se tornaram enigmas, problemas a explicar, prisões que isolam do mundo o entendimento. Lugar comum dos estudos modernos sobre as imagens é, de fato, a noção de que elas devem ser entendidas como uma espécie de linguagem; em vez de proporcionar uma janela transparente para o mundo, considera-se agora que as imagens são um tipo de signo que apresenta uma aparência de naturalidade e transparência enganosa, que esconde um mecanismo opaco, distorcido e arbitrário de representação, um processo de mistificação ideológica. [...] Meu objetivo é deslindar como nossa compreensão teórica do imagético baseia-se em práticas sociais e culturais, e em uma história fundamental para nossa compreensão não só das imagens, mas, também, daquilo que a natureza humana é ou poderia ser. As imagens não são simplesmente um tipo de signo particular, mas algo assim como um ator na cena histórica, uma presença ou um personagem dotado de status legendário, uma história que acompanha e participa das histórias que contamos a nós mesmos sobre a nossa própria evolução de criaturas feitas à imagem do seu criador, a criaturas que produzem a si mesmas e seu mundo à sua própria imagem. (Tradução minha, grifo meu).

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linguagem não são meramente formais: na prática estão relacionadas com coisas como o eu (que fala) e o outro (que é visto); entre dizer e mostrar; entre o testemunho de ouvido e os testemunhos oculares; entre as palavras (escutadas, citadas, inscritas) e os objetos ou ações (vistas, figuradas, descritas); entre os canais sensoriais, as tradições de representações e os modos de experiência. Tudo isso poderíamos denominar, seguindo Michel de Certeau (1986), uma heterologia da representação. Os artefatos culturais na era do visual não são um espetáculo a mais, mas propõem sistematicamente um exercício de détourage e montage, traduzindo-se na maneira como nossa cultura funciona por transplantes, enxertos e descontextualizações, na vertigem do não-referenciado, da cultura selvagem do mashup, glitch art etc.9 Tal como o Selector dos primeiros tempos do hip-hop mixava dois discos com o crossfader da mesa de mixagem, será fundamental pensar a teoria, então, como o local de um scratching permanente. Essa imagem crítica ou cena pós-crítica reivindica o preceito inicial de que a especificidade dos meios se desintegra, em que a própria noção de meio e mediação já implica per se uma mistura de elementos sensoriais, perceptivos e semióticos. Isso nos levaria a um novo conceito dos meios, deixando para trás os estereótipos reificados dos meios visuais e verbais, produzindo uma perspectiva mais matizada dos tipos de meios. Disso resulta que cada meio pode aninhar-se em outro, e isso inclui o momento em que o meio aninha-se dentro de si mesmo, em uma forma de autorreferência. Também há outro fenômeno designado trançado que é produzido quando um canal sensorial ou uma função semiótica vai se tecendo com outra de tal modo que de algum modo não deixa costuras; isso se dá de modo mais notável nas técnicas cinematográficas do som sincronizado. A noção de costura ou o conceito de sutura que os teóricos do cinema têm empregado para unir cortes descontínuos em um relato aparentemente interrompido funciona também quando o som e a visão se fundem em uma percepção cinematográfica.10 A forma específica dessa heterogeneidade se aproxima 9 Assinalo dois exemplos eloquentes, entre outros, desse fenômeno na cultura contemporânea. Refiro-me a Welcome To Heartbreak (https://www.youtube.com/watch?v=wMH0e8kIZtE), dirigido pelo videoartista iraniano Nabil Elderkin, fazendo uso estético do efeito datamoshing, e a Hell’s club (https://www.youtube.com/watch?v=QajyNRnyPMs), um mashup do realizador e montador Antonio Maria da Silva. 10 Aqui estou adaptando o conceito de sutura tal como é desenvolvido pela teoria psicanalítica do cinema. A sutura poderia ser descrita, nas palavras de Lacan (1988), como a junção do imaginário e do simbólico, o processo a partir do qual o sujeito (o eu) é constituído como divisão e

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muito na formulação de Mitchell (1994) do problema da imagem|texto. Não é de estranhar que a ênfase da teoria cinematográfica coloque a sutura das sequências de imagens e a construção do sujeito como espectador. Diante da questão da imagem|texto seria sugestivo estender a ideia de sutura para incluir o sujeito como leitor e ouvinte e espectador etc. Portanto, o problema da imagem|texto, ou seja, a heterogeneidade de estruturas representativas dentro do campo do visível e do legível, nos leva a um ponto de partida bem diferente.11 Metaimagem Gostaria de considerar a imagem um operador. Quero dizer, as imagens são simultaneamente operadoras e operações. Essa noção de imagem serve como um fio de transmissão que conecta as teorias da arte, da linguagem, da mente com as concepções do valor social, cultural, político. A imagem é duas coisas em uma: ao mesmo tempo operadora em uma relação e objeto produzido por essa relação. Importante esclarecer que a autorreferência da imagem não é uma característica exclusivamente formal e interna que distingue uma imagem de outras, mas um elemento funcional e pragmático, uma questão de uso e contexto. Portanto, qualquer imagem que se utilize para refletir sobre a natureza das imagens seria, seguindo a Mitchell (1994), uma metaimagem (metapicture). As metaimagens olham as imagens (pictures) enquanto teoria, como reflexões de segunda ordem sobre as práticas de representação visual; perguntam o que as imagens nos dizem quando teorizam (ou representam) a si mesmas. Poderíamos dizer que o autoconhecimento é só um tropo quando se trata de imagens que, depois de tudo, são, tão somente, linhas, formas e cores sobre uma superfície plana. como unidade. O eu é o índice mesmo da sutura. A teoria cinematográfica adaptou a ideia de sutura para descrever a construção da posição do espectador no cinema (eu|olho) e para analisar as características específicas do discurso cinematográfico. A sutura poderia ser descrita como aquilo que preenche os espaços entre as imagens e os planos, construindo um sentido subjetivo de continuidade e posicionamento ausentes. O plano-contraplano, com seu jogo entre posições do espectador e suas identificações com o eu e o outro, é, deste modo, a figura paradigmática da sutura no cinema. Na raiz dessa ideia tanto na psicanálise quanto na teoria do cinema encontramos a figura de um campo heterogêneo de (auto)representações e o processo diante do qual suas disjunções ficam ao mesmo tempo ocultas e reveladas. 11 Mitchell (1994) usa a convenção tipográfica da barra diagonal para designar a imagem|texto como uma fenda, cisão ou ruptura problemática na representação. O termo imagemtexto designa obras (ou conceitos) compostas, sintéticas, que combinam o texto e a imagem. Imagem-texto, com um traço, designa relações entre o visual e o verbal.

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Mas também sabemos que as imagens têm sido mais que isso; também tem sido ídolos, fetiches, espelhos mágicos: objetos que não só parecem ter presença, mas também vida própria, que nos falam e nos devolvem seu olhar. É por isso que utilizar as metaimagens como instrumentos para entender as imagens parece pôr sob suspeita, inevitavelmente, o autoconhecimento do observador. Até certo ponto, esta capacidade de desestabilizar a identidade é um problema fenomenológico, uma transação entre imagens e observadores que são ativados graças aos efeitos estruturais internos de múltipla estabilidade. Poderíamos chamar a isto a “selvageria” da metaimagem, sua resistência à domesticação. Entretanto, a questão dos efeitos e da identidade não só reside no encontro entre a imagem e o olho: também implica o status da metaimagem no campo cultural mais amplo, sua forma de se posicionar ante as disciplinas, os discursos e as instituições. As metaimagens são notadamente migratórias, se movem da cultura popular à Ciência, à Filosofia e à História da Arte, passando de uma posição marginal, como ilustrações ou ornamentos à outra, central e canônica. Não somente ilustram teorias sobre a confecção de imagens e da visão, mostram-nos o que é a visão e dão imagem à teoria.

Esse trabalho, Cher, Chair, Share (Hello Joseph) (2011), do artista conceitual multidisciplinar alemão Ole Ukena, é uma metaimagem, uma imagem autorreferencial de uma imagem que versa sobre si mesma, em sentido estrito e formal. Isso não impede que ela aborde muitas outras coisas, ou, inclusive, de forma mais primordial, que ponha em causa a questão fundamental de referência, a qual determina o que é uma imagem constituindo a si mesma em termos de autorreferencialidade. Talvez o que esteja em questão mais claramente é a estrutura de dentro e fora, da representação de primeira e segunda ordem em que se baseia o conceito de meta. Para estabilizar uma metaimagem, 130


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ou qualquer discurso de segunda ordem, para separá-la da linguagem-objeto de primeira ordem que descreve, é necessária uma imagem de espaços e níveis concêntricos e aninhados. Assim, a maioria das metaimagens mostra uma imagem-dentro-de-uma-imagem simplesmente como mais um dos muitos objetos representados, em mise en abyme. A regressão infinita da simulação, da duplicação e da repetição não desfaz a fronteira entre os níveis, exceto o ponto de fuga; há n níveis de representação aninhados, cada um deles diferenciando-se claramente com o exterior e um interior. Por que todas essas metaimagens se tornam tão centrais agora? Por que a sensação de que a imagem|texto aparece na crítica contemporânea como um a priori histórico? Que consequências têm essas (meta)imagens para a questão do método nos estudos das imagens e dos textos? Mitchell oferece a figura da imagem|texto como uma pedra angular com a qual franquear a heterogeneidade dos meios e das representações específicas. No entanto, seu objetivo não é deter-se na descrição formal, mas perguntar-se qual pode ser a função de formas específicas de heterogeneidade. Tanto as perguntas formais como as funcionais demandam respostas históricas. As metaimagens tornam visível a impossibilidade de uma metalinguagem stricto sensu, uma representação de segunda ordem que esteja à margem de seu objetivo de primeira ordem. Também revela a inextricável superposição da representação e do discurso, a forma na qual a experiência visual e a verbal estão entretecidas. Se, como pensava Foucault (1966), a relação do visível com o legível é infinita, isto é, se palavra e imagem são simplesmente dois nomes insatisfatórios para referir-se a uma dialética instável que constantemente muda sua situação nas práticas de representação, rompendo tanto seus limites (enquadramentos) picturais como discursivos e pondo em interdição as premissas que sustêm a separação das disciplinas verbais e das visuais, então as imagens teóricas podem resultar úteis, sobretudo, como exercícios in-disciplinares. O problema da imagemtexto (já a entendemos aqui como composto, como forma sintética ou como um oco ou fissura na representação) pode ser que seja só um sintoma da impossibilidade de uma teoria das imagens ou de uma ciência da representação. Digo, a representação como um campo dialético de forças, em vez de uma mensagem determinada ou um signo referencial; seguindo a estratégia de Foucault, que consiste em manter aberta a brecha entre a linguagem e a imagem. 131


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É fácil, portanto, deixar-se convencer pela sugestão de Deleuze (1988) de que a antinomia da palavra e da imagem é algo assim como um a priori histórico, que aparece como uma erva daninha difícil de controlar cada vez que se tenta estabilizar e unificar o campo da representação e do discurso sob um só código mestre (mímesis, semiosis, comunicação etc.). Uma resposta tradicional a esse problema nos estudos (acadêmicos) das artes representacionais tem sido o método comparativo. A tradição crítica das Artes Irmãs, e a pedagogia da literatura e artes visuais, têm sido o modelo dominante nos estudos interdisciplinares da representação verbal e visual. Em formas mais ambiciosas, a comparação interartística tem demonstrado a existência de analogias formais que se estendem através das artes, revelando homologias estruturais entre textos e imagens unidos por um estilo histórico dominante, como o Barroco, o Clássico ou o Moderno. Em suas versões mais cautelosas, tem se conformado em traçar o papel de comparações específicas entre as artes visuais e verbais na Poética e na Retórica, e em examinar as consequências nas práticas artística e literária. A despeito de tais métodos estarem associados, sobretudo, à obra de estudiosos da literatura que flertam com as artes visuais, também se tornaram um lugar abscôndito na História da Arte, onde a legitimação acadêmica do campo em algumas ocasiões tem se apoiado na ideia de que a História da Arte proporciona um análogo visual para os Estudos Literários. A estrutura corporativa e departamental das universidades reforça a sensação de que os meios visuais e verbais têm que ser entendidos como algo diferente e separado, duas esferas paralelas que convergem somente em um nível alto de abstração: a Estética, as Humanidades etc. Considerando-as cerne de sua tradição e sua estruturação institucional, não é de estranhar que o método comparativo tem figurado como a única forma sistemática de falar sobre as relações entre texto e imagem. A comparação é o tropo ideal para figurar a ação a distância entre diferentes sistemas. Importante ainda não desprezar o fato de que na pesquisa acadêmica geralmente se entende que encher uma grade conhecida com detalhes novos (mas que não representam nenhum desafio) supõe um avanço do conhecimento, em que a prática da comparação interarte ou intersemiótica parece uma opinião profissional segura. Trata-se de um acréscimo para esses momentos em que sobram pressupostos e um certo valor de sobrevivência em tempos de entrincheiramento. No melhor dos casos, o método comparativo pode oferecer o estabelecimento de diferenças e similitudes tanto entre vários tipos de objetos 132


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culturais como entre as linguagens críticas que lhes são aplicáveis. Também tem a vantagem da tradição: não há dúvida de que a Poética, a Retórica, a Semiótica e a Estética estão cheias de tropos de comparação interartísticas e que estas figuras, como quaisquer outras, merecem uma análise.12 Entretanto, tal análise deverá reconhecer três limitações básicas do método comparativo. A primeira limitação é a pressuposição de um conceito unificador e homogêneo (o signo, a obra de arte, a semiose, o significado, a representação etc.) e da ciência a que está associado, que faz com que as proposições comparativas|distintivas sejam possíveis, ou, inclusive, inevitáveis. A segunda é a estratégia de comparação|contraste sistemático, que ignora qualquer outra forma de relação, eliminando a possibilidade de justaposição metonímica, de incomensurabilidade e de formas de alteridade não mediadas e não negociáveis. A terceira é o historicismo ritualista, que sempre serve para confirmar uma sequência dominante de períodos históricos, uma narrativa mestra canônica que conduz até o momento presente e que parece incapaz de registrar histórias alternativas, contra-memórias ou práticas de resistência. Em resumo, a comparação interartes adoece de comparação, de artisticidade e da incapacidade para fazer senão confirmar as versões recebidas da história cultural. A comparação intersemiótica apresenta o mesmo problema, substituindo a artisticidade pelo cientificismo. Todavia, o impulso de comparar interatisticamente não pode ser, de todo, absurdo. Deve corresponder a algum tipo de desejo crítico autêntico, conectando diferentes aspectos e dimensões da experiência cultural. O desafio consiste em re-(d)escrever a problemática imagem|texto que subjaz ao método comparativo e em identificar atividades críticas que possam facilitar um sentido de conexão enquanto se enfrentam as tendências homogeneizantes e inestéticas das estratégias comparatistas e das ciências semióticas. E, igualmente, em agregar a esse desafio as questões pedagógicas. De como ensinamos História da Arte quando a diferença e a identidade da arte são justamente o que não podemos dar por certo. O que esperamos de um curso, um currículo e uma disciplina que conectam e cruzam as fronteiras mutantes entre a representação verbal e a visual, se o problema não é o Modernismo nem o Barroco, mas o problema da imagem|texto, isto é, a heterogeneidade de estruturas representativas dentro do campo do visível e do legível? 12 Para uma apreciação mais detalhada, sugiro as análises de Mitchell que não somente inspiram minhas notas, mas também estão presentes nessa edição.

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Necessário seria estudar o conjunto de relações entre meios, e as relações podem consistir em muitas coisas mais que a similitude, a semelhança ou a analogia. A pergunta de formulação necessária ante essa relação imagem-texto não é qual é a diferença (ou similitude) entre as palavras e as imagens?, mas que efeito têm estas diferenças (ou similitudes)? Melhor: por que é importante a forma em que as palavras e as imagens se justapõem, se misturam ou se separam? Se todos os meios são mistos, combinando diferentes códigos, convenções discursivas, canais e modos sensoriais e cognitivos – a exemplo da escritura, em sua forma física e gráfica, que se constitui pela sutura indissociável do visual e do verbal, a imagemtexto encarnada –, a diferença da noção de texto e de imagem não evoca somente uma questão formal. Invoca a disparidade entre uma cultura da leitura e outra do espectador que incide nas formas de sociabilidade e subjetividade, nos tipos de indivíduos e instituições formados pela cultura. Importante notar que o ponto de partida dos Estudos Visuais é a convicção de que a denominação de visuais não poderia nunca ser tomada como delimitação epistêmico-fenomenológica de uma categoria de objetos de presumida natureza essencialmente visual, mas, ao contrário, como resultado – e, ainda, como agenciamento – de uma produção predominantemente cultural. Não há eventos – ou objetos, ou fenômenos, nem sequer meios – de visualidade puros, mas atos de ver extremamente complexos que resultam da cristalização e do amálgama de um espesso trançado de operações (textuais, mentais, imaginárias, sensoriais, mnemônicas, midiáticas, técnicas, burocráticas, institucionais) e um não menos espesso trançado de interesses de representação em disputa: interesses de raça, gênero, classe, diferença cultural, grupos de crenças ou afinidades etc. Então, todo ver é o resultado de uma construção cultural sobre o reconhecimento do caráter necessariamente condicionado, construído e híbrido – e, por isso, politicamente conotado – dos atos de ver: não só o mais ativo olhar e tomar conhecimento e aquisição cognitiva do visto, mas todo o amplo repertório de modos de fazer relacionados com o ver e o ser visto, o olhar e o ser olhado, o vigiar e o ser vigiado, o produzir as imagens e disseminá-las ou contemplá-las e percebê-las, e a articulação de relações de poder, dominação, privilégio, submetimento e controle que tudo isso implica. A importância desses atos de ver – e da visualidade assim considerada, como prática notadamente política e cultural – depende justamente da força performativa implicada neles, em seu magnífico poder de produção de realidade; 134


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tomando por base o grande potencial de gerar efeitos de subjetivação e socialização que os processos de identificação|diferenciação com os imaginários circulantes (hegemônicos, minoritários, contra-hegemônicos) engendram. Acredito ser esse o princípio do qual decorre a estratégia desses estudos e a necessidade de abordagem da perspectiva na urgência de desenvolver um equipamento analítico amplificado – uma ferramenta conceitual indisciplinadamente transdisciplinar – que seja capaz de confrontar criticamente a análise dos efeitos performativos que, das práticas do ver, decorrem em termos de produção de imaginários; e isso tendo em conta o severo impacto político que tal produção de imaginário implica, por seu efeito decisivo como formas possíveis do reconhecimento identitário – e, consequentemente, enquanto produção histórica e concreta de formas determinadas de subjetivação e sociabilidade. Menciono dois cenários – dois planos de consistência – muito precisos no qual fixar e realizar o trabalho meticuloso de desmontagem e limpeza de terreno. O primeiro cenário se refere aos processos de subjetivação e ao papel que eles desempenham na produção e no consumo de imaginário – como registro de plasmação, ou imprintação do escópico, na compreensão ativa de toda a dinâmica processual sob a qual a constituição do eu e seus imaginários se opera em processos complexos de produção e consumo em relação à visualidade cultural, e contra os quais são geridos em contínuas tensões de identificação e diferença. No segundo, os cenários abertos aqui seriam então o que se refere a esses processos de socialização, aos potenciais de articulação de formações de comunidade que possuam relação com os imaginários – relação gerida no discurso dos atos de ver. Tais arquiteturas abstratas, em suas concreções materializadas como articulações históricas efetivas, que determinam ao mesmo tempo o que é visível e o que é cognoscível, funcionam, além disso, politicamente. Em outros termos, de acordo com uma distribuição dissimétrica de posições de poder em relação ao próprio exercício do ver. Nesse sentido, o diálogo do observador com suas metaimagens não ocorre em um terreno incorpóreo à margem da história; elas estão inscritas em discursos, disciplinas e regimes de conhecimento específicos. As metaimagens podem ser usadas como objetos rituais em uma prática cultural, ou como exemplos e ilustrações no modelo antropológico de tal prática. Quiçá o mais provável seja sua capacidade de mover-se através das fronteiras de discursos 135


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populares e profissionais. A metaimagem é um apparatus cultural móvel, o qual pode desempenhar um papel secundário como ilustração ou um papel primário como uma espécie de imagem-sumário que encapsula toda uma épistémè. Veja a metaimagem do artista contemporâneo guatemalteco Luis González Palma, da série Moebius (1991), que coloca em cena a hybris do ponto zero ao assumir que a posição ou o ponto de vista importa na produção do que é visível e legível.13 El Angel-Moebius declara que esse conhecimento é conjugado pelos interesses dos responsáveis (históricos) ​​ pela sua articulação e sugere uma contra-visualidade: It is a subversive operation hidden by and within a limpid discourse, a Trojan horse, a panoptical fiction, using clarity for introducting an otherness into our épistémè (CERTEAU, 1986, p.192).14 A necessidade de narrar parte da história que não foi contada requer uma transformação na geografia da razão e do conhecimento, ou, nos termos de Walter Mignolo (2014), uma desobediência epistêmica.

Sabemos que a relação do passado com o presente é puramente temporal. El Angel-Moebius parece induzir que a relação do passado com o agora é, ao contrário, de caráter dialético: não é de natureza temporal, mas de natureza pictórica. O trabalho visual de González Palma renderiza o visível e o legível. O tempo do visual persegue a produção cultural contemporânea de uma forma nova e inquietante. Quer seja na História ou na Antropologia, na História da Arte ou nos Estudos Visuais, o trabalho de interpretação se confronta com 13 Produzido a partir do ponto zero de observação, a linguagem científica é vista pela Ilustração como a forma mais pura da estrutura universal da razão. A linguagem universal não tem um lugar específico no mapa, consiste em uma plataforma neutra de observação a partir da qual o mundo pode ser nomeado em sua essência. Cf. CASTRO-GÓMEZ, 2010. 14 É uma operação subversiva escondida no interior de um discurso límpido, um cavalo de Troia, uma ficção panóptica, que utiliza a claridade para insertar uma alteridade em nossa épistémè. (Tradução minha).

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a necessidade de analisar o tempo de novo. Se a progressão hegeliana viu no seu momento o Renascimento como o grande precursor dos triunfos da Modernidade, a atualidade olha para trás, para esse período enceguecido por sua própria importância e obcecado somente com a exaltação do novo. A espiral de sinônimos para referir-se à atualidade – modernismo, pós-modernismo, pós-colonialismo, a contemporaneidade e o contemporâneo – revela, entretanto, a confusão que ronda a sua ideia de tempo. As consequências filosóficas e psicológicas da negociação das narrativas culturais herdadas dos séculos XIX e XX – baseadas em noções cronológicas e simultaneamente teleológicas do desenvolvimento histórico – são atualmente mais claras do que nunca (MOXEY, 2016). Mais que anular a necessidade de caracterizar algo tão fugaz e efêmero como o tempo, uma consciência da heterocronicidade – o variado significado do tempo em diferentes contextos culturais –, urge a busca de ideias adequadas para a compreensão da multiplicidade do tempo. E, partindo dessa interrogante, problematizar e criar distinções na textura do tempo. Que o tempo passado se defina em termos de tempo presente é um lugar comum, mas indica uma mudança de sentido quando levamos em conta o encontro anacrônico com outros horizontes históricos. A natureza da diferença de tempo (heterocronia) das culturas do mundo, incluindo suas incoerências e incomensurabilidades, só pode ser articulada fazendo referência a algum denominador comum. No contexto atual, o sistema de tempo dominante é o instaurado durante o período colonial, a saber, na retórica da modernidade, na lógica da colonialidade. E com ele as hierarquias estéticas da modernidade, da colonialidade do ver, da racialização epistêmica, das tecnologias visuais do capitalismo, da função retórica da cena canibal e as consequências geo-epistemológicas do assim chamado descobrimento do Novo Mundo. Da perspectiva europeia, a Modernidade se refere a um período da história que remonta ao Renascimento europeu e ao descobrimento da América ou à Ilustração europeia. Da perspectiva do outro lado, o das colônias portuguesas e espanholas da América do Sul, a ideia proposta pelos acadêmicos e intelectuais é a de que o progresso da Modernidade caminha de mãos dadas com a violência da colonialidade. Enquanto conceito, o de América é inseparável da ideia de Modernidade, ambos são a representação dos projetos imperiais e dos desígnios para o mundo criados e implementados por atores e instituições europeias. 137


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Se a América colonial era um cadinho de modernidade, é porque foi um fabuloso laboratório de imagens. A imagem constitui um dos mecanismos fundamentais de ocidentalização. A tese central é a de que, na América, durante os séculos XV e XVI, experimentou-se e produziu-se uma série de dispositivos de dominação articulados em rede que alcançou o seu aperfeiçoamento na época clássica da Ilustração, durante o século XVII. O ocularcentrismo militar-cartográfico, o saber proto-etnográfico eurocentrado e a gênese do sistema mercantil moderno-colonial produziram uma complexa epistemologia visual que estruturou, por um lado, uma ordem de descorporificação e invisibilidade que permitiu a universalização do olhar imperial e, por outro, uma ordem de corporificação e visibilidade que outorgou a racialização do corpo indígena através do tropo canibal. Essa colonialidade segue encarnando-se em regimes visuais, em suas tecnologias e nas políticas coloniais de discriminação. Nesse sentido, o visual conforma um tipo de economia da percepção. Um dos incrementos em destaque na metaimagem El Angel-Moebius relaciona o ocularcentrismo do aparato moderno-colonial e o ocultamento do sujeito que observa. A partir desse ocultamento, operaria o estereótipo do racismo, composto por uma evidência cartográfica e outra etnográfica. Ambas configuram o outro como o que, dentro, é necessário enquanto espoliado e, ao mesmo tempo, como aquele que está no fora absoluto porque não é civilizado. González Palma rastreia a emergência da contra-visualidade em corpos marcados pela ferida colonial: corpos-políticos a partir dos quais visualizamos.15 Entender o visual como regime nos permite, além disso, pensar em um processo de conhecimento. A noção de regime implica reconhecer que, entre uma forma de representação e os contextos de percepção, há uma relação estreita, que determina não só o caráter de uma prática cultural ou artística, mas processos perceptivos, de recepção, que ativam, encapsulam ou tencionam tais práticas. Um regime visual estaria conformado por dispositivos de visualidade, que seriam as condições constitutivas que marcam a subjetivação, a adesão e inclusive a resistência à realidade. A visualidade é o momento em si do visual. O outro dispositivo do regime visual é conformado pelas estratégias de visibilidade de uma mesmidade individual ou coletiva. Não somente vemos ou olhamos, mas 15 A ferida colonial, seja física ou psicológica, é uma consequência do racismo, o discurso hegemônico que coloca em questão a humanidade de todos os que não pertencem ao mesmo locus de enunciação (e à mesma geopolítica do conhecimento) de quem cria os parâmetros de classificação e se outorga a si mesmo o direito de classificar. Cf. MIGNOLO, 2007.

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fazemos notar nossa existência ou não-existência. A visibilidade é o mecanismo pelo qual ocupamos um espaço e damos um lugar hierarquizado à nossa própria existência e à existência dos demais. A visibilidade é o momento em que, junto à imagem, tomamos posição e espaço social. Essa estratégia de desmontagem descolonial supõe questionar a aliança naturalizada entre modernidade e racionalidade, e sua consequência estruturante. Quer dizer, configurando a ideia cartesiana de sujeito-objeto e, então, de autoria e especificidade de campo. A desmontagem supõe entender os regimes coloniais visuais como regimes coloniais de representação. A desmontagem urge como estratégia de intervenção crítica que dê conta não só da engrenagem do regime visual na funcionalidade do capitalismo cultural, mas que permita localizar matrizes de percepção que fundem suas raízes nos processos coloniais, uma vez que o capitalismo cognitivo, que tem no conhecimento e na comunicação sua principal força produtiva, é uma maneira de continuar a colonialidade por meios que afiançam a exploração colonial do conhecimento das regiões não-ocidentais – através de sua lógica de visibilização construída a partir de regimes escópicos e dos dispositivos audiovisuais.

Para demonstrar o padrão de poder sobre o qual se estabelecem os atuais intercâmbios migratórios, econômicos e simbólicos na região cultural euro-latino americana de nossos dias – o lugar em que acontecem as batalhas cognitivas, afetivas, corporativas e geo-estéticas do mundo transatlântico pós-colonial –, é necessário estabelecer primeiro uma clara correlação entre os seguintes elementos: a origem eurocêntrica do saber etnográfico, o peso das retóricas cartográficas imperiais no processo de consolidação das hierarquias etno-raciais, e o racismo epistemológico enquanto elemento constitutivo da formação e das metamorfoses do sistema capitalista moderno|colonial. Em consequência, como enfatiza Joaquín Barriendos (2011), a colonialidade do ver consiste em uma série 139


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de inconsistências, derivações e reformulações heterárquicas do dito modelo de poder, as quais interconectam, em sua descontinuidade, o século XV com o século XXI. Render(ing) imagem|texto Os Estudos Visuais e a Crítica Cultural têm posto na agenda a importância de considerar as imagens em um campo ampliado de produção, circulação, consumo, nas relações geopolíticas em que tal assimetria cultural a nível internacional é a norma. Para qualquer estudo do visual, os rastros e os vestígios da existência do tempo se encontram nos artefatos culturais. A muitos desses objetos, senão a todos, foi designado durante muito tempo uma presença estética e ontológica que os impede de aninhar-se firme dentro dos sistemas epistemológicos. Eles sugerem de modo excessivo algo totalmente compreensível, algo que a linguagem não pode capturar. Ainda que as imagens sirvam como registros da hora e do lugar de sua criação, também apelam aos sentidos e possuem uma força afetiva que lhes permite atrair a tensão em localizações temporais e culturais muito distantes do horizonte em que foram criadas. Sob o argumento de que as imagens chamam a atenção e exigem uma atitude responsiva, vários pensadores recentes têm desenvolvido o conceito de anacronismo como forma de descrever o processo de mediação que se produz entre os artefatos que demandam respostas afetivas e, ao mesmo tempo, alimentam o desejo do crítico contemporâneo de gerar sentido. Desta forma, a textura do passado se alinha com a recepção da obra no presente e se entretece considerando a espessura do tempo. A imagem consiste nessa noção precisamente destinada a compreender como os tempos se tornam visíveis.

Que consequências supõem que a visualidade na América Latina seja pensada, ensinada e reproduzida sem uma leitura crítica (e descolonial) dos processos de racionalização dos sujeitos e das subjetividades enquanto agentes políticos? 140


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Não a troco de nada, os sujeitos ilustrados – homens e não mulheres, brancos e não indígenas, ricos e não pobres – se ocupam das mulheres em primeira instância para teorizar a diferença e, em seguida, a raça, como um problema visual nas representações. Em vista disso, seguindo a sugestão de Cristian León (2012), um dos desafios pendentes para os Estudos Visuais que se encontram em desenvolvimento na América Latina é justamente a construção de um lugar de enunciação que lhe permita situar histórica e geopoliticamente seus conhecimentos. Os processos de visualidade em nosso subcontinente propõem singularidades históricas, culturais e epistêmicas que não foram abordadas em toda sua complexidade; quando muito nas gramáticas transculturais da globalização e nos discursos interculturalistas da pós-colonialidade. A colonialidade do ver é constitutiva da Modernidade e, em consequência, opera como um modelo heterárquico de dominação,16 determinante para todas as instâncias da vida contemporânea. Compreender a coexistência desses dois grandes paradigmas, a saber, modernidade colonialidade, equivale a entender de que maneira ocorre a transformação na geografia e na geopolítica do conhecimento. Reconhecer, igualmente, como operam esses dois conceitos intrincados, a modernidade e a colonialidade, enquanto duas caras de uma mesma realidade, para dar a ideia de “América” no século XVI e a América Latina no século XIX. Há duas instituições extremamente importantes que reatualizam a modernidade|colonialidade com novas funções: o Museu e a Estética Moderna. Como são refuncionalizadas essas instituições a partir da matriz da colonialidade do ver? O Museu e a Estética como dois grandes mundos, cada um com suas próprias características e agências, são o mesmo tipo de instituição. Elas compreendem padrões de poder e hierarquias estéticas as quais são incorporadas, e tomam corpo (no sentido estrito da palavra) em instituições como o Museu e o Centro de Arte, mas, também, a Universidade ou o Arquivo. A pesquisa que venho desenvolvendo tenta, de fato, entender como é que certas hierarquias estéticas atravessam e põem em operação a matriz colonial do poder, do saber, do ser e do ver nesses três espaços: na Universidade – isto é, nos saberes acadêmicos e nas relações geo-epistemológicas –, no Arquivo – na ordem dos discursos, em como as políticas dos 16 Uma enredada articulação de múltiplas hierarquias em que a subjetividade e o imaginário social são constituintes das estruturas do sistema-mundo, ou seja, de uma estrutura histórico-heterogênea. Cf. QUIJANO; WALLERSTEIN, 1976.

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arquivos e da acumulação de documentos comportam formas de invisibilidade, inferiorização e racialização da diferença – e no Museu – concretamente, nos dispositivos de exibição e nas políticas de aquisição, conservação e catalogação de obras de arte. Em suma, o que tento pensar é de que modo hierarquias estéticas da modernidade | colonialidade se manifestam e recombinam no atual sistema da arte e como se inscrevem e mudam no interior dessas três instituições. Temos essas três instituições concretas e, por outro lado, temos o saber da filosofia ocidental que legitima essas instituições: a Estética. Como pensar então o vínculo entre a matriz colonial da modernidade e a Estética. Mais do que a Estética, como um ramo da filosofia, ou como disciplina, me interessa o pensamento estético enquanto épistémè, isto é, enquanto discurso geo-epistemológico e historiograficamente situado. Meu interesse é o de trabalhar com o pensamento estético em sua interação com outro conceito que também caiu em descrédito e que hoje reaparece muito vinculado aos estudos pós-coloniais: a geopolítica. Devido a sua identificação no período do entre-guerras com o fascismo e com a Alemanha nazista, a geopolítica é uma ferramenta incômoda que requer igualmente uma reformulação: trata-se de repensá-la na longa duração da modernidade|colonialidade. Estes dois elementos reinventados, o pensamento estético e a geopolítica, são chamados a servir como ferramentas para se pensar as relações entre capitalismo cognitivo e colonialidade global. É pensar a relação entre a maneira como tem sido difundido o pensamento estético eurocêntrico a partir de certas localizações epistêmicas até o resto do mundo e o modo pelo qual tem sido consolidada a imaginação geopolítica da modernidade|colonialidade. Desse ponto de vista, analisar os novos regionalismos culturais e a maneira como eles articulam novos desenhos geopolíticos do mundo e novas hierarquias simbólicas, fenômenos que são consequências imediatas da matriz de colonialidade do ver. Um fenômeno concreto disso seria o revisionismo geopolítico dos Museus Ocidentais de Arte, ou, a tendência de certos Museus progressistas de revisar o mapa (simbólico, econômico, político etc.) do que chamamos suas coleções e seus projetos curatoriais. Uma vez que estes Museus têm descoberto (ou melhor, têm sido obrigados a desvelar) que o desenho geo-estético de suas coleções é absolutamente ocidentalista e colonizador, eles têm assumido a tarefa de corrigi-lo por meio de uma política mais inclusiva e abarcadora. Esse revisionismo, apesar de suas boas intenções, gera uma série de impulsos para dar voz, lugar e representação visual àqueles espaços geográficos 142


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outros que a Modernidade eurocêntrica havia deixado de fora. E esse dar visibilidade à alteridade para que se expresse é extremamente problemático. A questão que se coloca é até que ponto consegue valorizar e por que se torna ineficiente na hora de descolonizar os imaginários geopolíticos. Interessa saber o que move esses Museus a empreenderem essa tarefa revisionista e até que ponto a matriz de colonialidade de poder está também inserida nas novas políticas museográficas progressistas. A pesquisa acerca dos imaginários museográficos guiados pelo global|pós-colonial inscreve-se no que Barriendos (2006) chama de estudos geo-estéticos. Portanto, mais que simplesmente aprender ou desaprender, o que necessitamos é aprender a desaprender as formas nas quais miramos; necessitamos reinventar a maneira como nos implicamos com o conhecimento e concebemos as pedagogias da mirada e da formação estética. A colonialidade do ver tem uma clara relação com os processos de educação dos quais participam sem dúvida a transmissão e a reprodução da colonialidade do saber. Em muitos países da América Latina o reconhecimento do plurilinguismo e da diversidade cultural tem sido entendida como condição sine qua non para a consecução de verdadeiros estados nacionais pluriculturais. O mesmo ocorre com o reconhecimento da diversidade visual das culturas. As culturas visuais são sempre diversas, deveríamos nos referir a elas sempre no plural. Acredito que vivemos um tipo de analfabetismo visual em plena era da iconofilia eletrônica.

Esse analfabetismo visual é inseminado por padrões de colonialidade inscritos de alguma forma nas práticas educativas. A forma como se ensina a História da Arte não é senão a comprovação de que tal inseminação é constitutiva da inseminação estética da subjetividade. A História da Arte assume acriticamente a colonialidade do olhar ao reproduzir os universais de beleza, excepcionalidade, mestria e genialidade sem se perguntar se tais conceitos são válidos ou não para todas as culturas visuais. Por outro lado, acredito que deveríamos indagar 143


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sobre o futuro do diálogo entre culturas visuais diferenciadas, quer dizer, deveríamos tentar apreender outras formas de ver e tentar desaprender o modo como olhamos, valendo-nos do encontro e do reconhecimento da alteridade. O diálogo interepistêmico a que se refere a teoria descolonial deve ser também um diálogo visual interepistêmico, já que nem todas as culturas dão o mesmo valor ao que se vê, ao que se pode ver, ao que se oferece à vista, ao que se oculta ou ao que passa despercebido. Existem, pois, diferentes ontologias da presença e da ausência, diferentes fenomenologias do ser, diferentes metafísicas e diferentes formas de lidar com a metafísica ocidental que não têm por que serem consideradas metafísicas vernaculares. Disso nos fala com todo rigor a proposta de transmodernidade do filósofo Enrique Dussel (2015). Todo esse requinte da complexa aprendizagem de desaprender certas inércias ancoradas na colonialidade do ver, como bem o tem assinalado Barriendos. Se existe toda uma instância estritamente educativa na qual é necessário avançar, é importante que ultrapassemos a escolarização oficial e passemos a propor formas alternativas, coletivas e não dominantes de aprendizagem e desaprendizagem; precisamos desnaturalizar as formas pelas quais opera o olhar; precisamos pôr em evidência a racialização, a inferiorização e a discriminação visual da diferença; necessitamos repensar como operam os referentes visuais cotidianos, como a sinalização nas ruas, a iconografia do Estado, a cultura visual midiática, a moda etc., mas também como participamos todos ativamente em sua reprodução permanente, seja como consumidores, mediadores ou como produtores; necessitamos situar também o nível estritamente corporal e performativo da visualidade e das práticas visuais intersubjetivas (a construção simbólica, política e afetiva dos sujeitos); precisamos trabalhar também a forma como são construídos os discursos visuais e a forma pela qual eles se tornam estratégias de agenciamento social. Precisamos pensar corpo-politicamente a visualidade, rastreando a matriz de colonialidade do ver em todos os níveis da vida pública e privada. No entanto, sinto-me incapaz de propor algo como um programa de trabalho homogêneo para América Latina. A dimensão regional dos Estudos Visuais na América Latina deve partir justamente do reconhecimento das diferentes densidades e peculiaridades do ocidentalismo e do colonialismo interno. O certo é que, a nível institucional, assistimos à eclosão de programas sobre Estudos Visuais nas universidades da América Latina, justamente agora que, em outros países, a tendência é a sua fusão com outros programas ou departamentos ainda 144


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mais midiáticos, como podem ser as novas tecnologias ou os estudos curatoriais. O que deveria ser um ponto de partida inevitável é a não incorporação do discurso e das batalhas interdepartamentais de outros cenários europeus ou anglo-saxões ao contexto latino-americano. Precisamos pensar quais são as conjunturas do estudo da visualidade relevantes para a América Latina em vez de incorporar as problemáticas interdepartamentais entre a História da Arte, a Filosofia, a Sociologia das Imagens, a Iconologia, a Antropologia da Imagem etc., já que estas diatribes não correspondem à realidade local do mundo acadêmico latino-americano. O modo peculiar como são entendidos os estudos culturais na região é a ausência de estudos pós-coloniais tal e como estes se desenvolvem na Inglaterra, na Índia, em Singapura ou na África do Sul. São esses tipos de peculiaridades que nos obrigam a pensar em programas de estudos de cultura visual adequados às problemáticas da América Latina. É nesse reconhecimento que acredito que problemas como o da racialização dos sujeitos subalternos e sua conexão com as hierarquias estéticas da modernidade|colonialidade deveriam ser constitutivos de qualquer programa de Estudos Visuais pensado a partir da América Latina. A construção de alteridade epistemicamente inferiorizada e geograficamente descentrada é um problema que atravessa toda a visualidade transatlântica desde o século XVI até o século XXI, prova disso é a negação da humanidade dos índios do Novo Mundo, a naturalização dos escravos negros em território americano, as exposições universais, os movimentos criollos liberais, as revoluções raciais como a do Haiti em 1804, ou a deportação de trabalhadores não documentados na fortaleza da Europa atual. Todos esses fenômenos se conectam de uma maneira ou de outra com os padrões de inviabilização do sujeito político e, deste modo, acredito que deveríamos figurar nos programas sobre a visualidade na/a partir da América Latina. Assim, uma das conclusões de pensar a imaginação geopolítica da modernidade a partir do raio de ação da colonialidade é que tanto o sul como o norte, o centro e a periferia, o hegemônico e o subalterno são lugares epistêmicos traçados pelas matrizes da colonialidade do saber, do poder, do ser, do ver. Isto é, são lugares geográficos e também lugares simbólicos móveis, já que o que se acredita ser o norte ou o sul a partir de certo lugar, deixa de sê-lo se se pensa a partir de outro lugar ou momento; o lugar da enunciação é fundamental. Se, por exemplo, transportarmos estes imaginários ao terreno do desenvolvimento econômico e cultural, reaparecem uma e outra vez desenhos geo-estéticos da 145


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modernidade|colonialidade. Pensar-se a partir do sul quer dizer pensar-se a partir de um sul tático, um sul móvel, um sul determinado por padrões geoculturais, geopolíticos, geo-identitários, não constrangido pela geografia física. O sul é sempre um posicionamento mais político que geográfico. Imagens mi(g)rantes surgiu de (e para pensar a partir de) estas conjunturas. Tenho me posicionado sempre contra todo americanismo e automarginalização, o que me interessa, antes, são as flutuações de capitais simbólicos no espaço euro-latino americano. Ou assumir que o sul é um sul descentrado. A ideia de não converter o sul em uma essencialização ou substancialização geo-identitária é a chave na hora de pensar-me fazendo parte do processo de des-ocidentalização das imagens (estéticas). Diria que é essa consciência – ou autoimplicação crítica – que força e dá conta da articulação que tento explicitar: o tratamento das questões de método – questões epistêmico-críticas, de reflexão sobre o objeto, sobre a própria arquitetura disciplinar, sobre a gênese e a herança do campo em sua relação com a transformação recente da História da Arte ou da Estética. Em outros termos, a discussão sobre se seria melhor categorizar de disciplinar ou interdisciplinar, ou, quem sabe, transdisciplinar – inclusive indisciplinar, sem dúvida a minha favorita –, teve, por parte do espanhol Miguel A. Hernandez, a contribuição mais sugestiva que escutei até hoje para os Estudos Visuais: a de conceituar sua arquitetura como end-disciplinar, uma estrutura de campo de problemas que se define precisamente no marco de um fim das disciplinas.

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O QUE É UMA IMAGEM?

LITERATURA E FOTOGRAFIA: ENTRE CONCEITO E REPRESENTAÇÃO Elisa Maria Amorim Vieira

Começo esta breve reflexão acerca dos diálogos que a literatura e a fotografia têm estabelecido ao longo dos últimos dois séculos, lembrando o menosprezo e a desconfiança com que a nova técnica de produção de imagens foi saudada por Charles Baudelaire, no famoso texto que escreveu sobre o Salão da Academia de Belas Artes da França, de 1859. Nessa ocasião, o poeta não escondeu seu profundo rechaço por aquilo que considerava como uma aberração e objeto de fanatismo das multidões. Em sua opinião, o mecanismo que prometia reproduzir a natureza tal como ela era não seria mais do que um refúgio de pintores fracassados e corrupção da verdadeira arte. Entre as funções que o poeta atribuiu à fotografia estava a de enriquecer rapidamente o álbum do viajante, auxiliando as memórias fracas, além de apoiar as pesquisas científicas e salvar do esquecimento tudo aquilo que estivesse ameaçado de desaparição: ruínas, livros, manuscritos, etc. A nova técnica, incapaz – em sua opinião − de produzir fantasia e exercer qualquer função criativa, estaria condenada a ser uma ferramenta das ciências ou simples diversão, mas jamais um instrumento da arte. Apesar de toda a aversão expressa nessas considerações, é bastante conhecida a atração de Baudelaire pelos retratos. Por outro lado, o fato de ter-se deixado retratar inúmeras vezes pelos grandes fotógrafos do seu tempo, entre eles Félix Nadar, não significava que tivesse deixado de considerar a fotografia como a responsável pela decadência do gosto francês. Essa discussão, que tinha como parâmetro as chamadas belas artes, especialmente a pintura, tomará novos rumos no início do século XX. A princípio, a fotografia adotara os modelos estéticos da pintura, almejando muitas vezes alcançar e merecer um pouco do prestígio de uma expressão artística consolidada. Essa submissão foi responsável por uma longa produção de fotografias que buscavam se assemelhar a pinturas, dando origem, no final da década de 1880, ao 151


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movimento picturialista, que foi acompanhado por intensos debates em torno da natureza e especificidades dos dois campos de produção de imagens. No ensaio intitulado “Fotografia versus pintura” (1926), Ossip Brik, crítico formalista russo, afirmava que “a fotografia vai deixando a pintura de lado. A pintura resiste e está decidida a não se render”1(BRIK, 2007, p.121).1 Ao descrever a batalha entre os dois meios, Brik ressalta a disputa pelo lugar que cada um ocupava na vida cotidiana: enquanto os fotógrafos erguiam a bandeira da precisão, rapidez e baixo custo, os pintores, conscientes do perigo que significava a enorme vantagem da fotografia, especialmente no campo do retrato, preparavam o contra-ataque. Este veio com um argumento demolidor: a fotografia não tinha cores; a pintura sim, o que significava que a pintura era mais precisa e, portanto, insubstituível. Não obstante, Ossip Brik contra argumentava que a reprodução das cores da natureza realizada pela pintura era imprecisa e que a fotografia, ao não reproduzir as cores (ainda), teria a vantagem de não as falsificar. Como solução para o impasse, atribuía à pintura a criação de imagens e não a cópia pura e simples da natureza: “O que importa o aspecto de um objeto? Deixemos que os observadores e os fotógrafos se ocupem disso; nós, os pintores, criamos imagens nas quais a natureza não é o sujeito, mas simplesmente um impulso inicial para outras ideias.”2(BRIK, 2007, p.121).2 Seria, então, possível concluir que a fotografia, ao assumir seu papel de reprodutora do real, estaria proporcionando à pintura a possibilidade de desenvolver sua vocação mais verdadeira e profunda, qual seja, a de criar imagens e não simplesmente copiar as coisas do mundo.3 Participando provavelmente dessa percepção majoritária da fotografia como testemunho do real, o escritor espanhol Benito Pérez Galdós, na segunda metade do século XIX, se tornou um grande colecionador de fotos. Autor de obras canônicas do realismo espanhol, como Fortunata y Jacinta (1887), Galdós utilizava o desenho como técnica auxiliar no processo de criação de seus personagens, chegando a ter diversos álbuns feitos por ele mesmo. As imagens capturadas pela 1 Todas as traduções deste texto são próprias. Na edição em espanhol: “la fotografia va dejando de lado a la pintura. La pintura se resiste y está decidia a no rendirse”. 2 Na versão em espanhol: “¿Qué importa el aspecto de un objeto? Dejemos a los observadores y a los fotógrafos que se ocupen de ello; nosotros, los pintores, creamos imágenes en las cuales la naturaleza no es un sujeto, sino simplemente un impulso inicial para otras ideas”. 3 Utilizei o ensaio de Ossip Brik no texto intitulado “Retratos e memórias dos esquecidos”, para discutir a produção de fotopinturas no interior do Brasil, ao longo do século XX.

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câmara fotográfica certamente foram vistas pelo escritor realista como um poderoso instrumento de observação e análise do universo social do seu tempo. Somente após o advento das vanguardas, as ilusões em torno da fidelidade e objetividade da fotografia começariam a ser colocadas em questão. Pierre Bourdieu, após citar a definição de fotografia dada pela Enciclopédia Francesa, segundo a qual “a placa fotográfica não interpreta nada, somente registra” (BOURDIEU, 2003, p.135),4 chama a atenção para “a falsa evidência dos preconceitos” (p.135),5 questionando essa suposta relação visceral da fotografia com o real. Segundo Bourdieu, Se a fotografia é considerada um registro perfeitamente realista e objetivo do mundo visível é porque lhe foi atribuído (desde sua origem) uns usos sociais considerados “realistas” e “objetivos”. E se, imediatamente, foi apresentada com a aparência de uma “linguagem sem código nem sintaxe”, ou seja, de uma “linguagem natural”, é porque, fundamentalmente, a seleção que opera no mundo visível está absolutamente de acordo, em sua lógica, com a representação do mundo que foi imposta na Europa depois do século XV (BOURDIEU, 2003, p.136).6

O que o sociólogo francês argumenta, citando Pierre Francastel, é que a fotografia fez aparecer não o funcionamento real da visão, mas, ao contrário, seu caráter sistemático. Nessa formulação, sobressai a ideia de que as fotografias são feitas de acordo com a visão artística clássica. Desconstruindo ainda mais a aparência de verdade das imagens realizadas mecanicamente, Bourdieu observa que, uma vez que esta imagem está determinada pelo que capta uma única objetiva, “a visão que a câmera dá é a do Cíclope, não a do homem” (BOURDIEU, 2003, p.136).7 Além disso, sabe-se que eliminamos da imagem tudo aquilo que não coincide 4 A edição aqui utilizada do livro de Bourdieu é a tradução para o espanhol da Editora Gustavo Gili. Na versão em espanhol, lê-se: “la placa fotográfica no interpreta nada, solamente registra”. 5 Na versão em espanhol: “la falsa evidencia de los prejuicios”. 6 Na versão em espanhol: “Si la fotografia se considera un registro perfectamente realista y objetivo del mundo visible es porque se le han atribuido (desde su origen) usos sociales considerados “realistas” y “objetivos”. Y si, inmediatamente, se ha propuesto con las apariencias de un “lenguaje sin código ni sintaxis”, en definitiva, de un “lenguaje natural”, es porque, fundamentalmente, la selección que opera en el mundo visible está absolutamente de acuerdo, en su lógica, con la representación del mundo que se impuso en Europa después del quatrocento”. 7 Tradução própria. Na versão em español: “La visión que da la cámara es la del Cíclope, no la del hombre”.

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com a visão considerada medianamente artística. Por sua vez, Jonathan Crary, ao analisar os meios materiais que levaram a uma nova concepção da visão no século XIX – novos aparatos ópticos, entre eles, o estereoscópio −, afirma, contrariando a visão de Bourdieu a respeito da manutenção da visão artística clássica, que: No início do século XIX, a ruptura com os modelos clássicos de visão foi muito mais do que uma simples mudança na aparência das imagens e das obras de arte, ou nas convenções de representação. Ao contrário, ela foi inseparável de uma vasta reorganização do conhecimento e das práticas sociais que, de inúmeras maneiras, modificaram as capacidades produtivas, cognitivas e desejantes do sujeito humano. (CRARY, 2015, p.13).

Crary busca demonstrar a reorganização da visão na primeira metade do século XIX e a constituição de um novo tipo de observador. Nesse sentido, para o pesquisador norte-americano, seria preciso abandonar a ideia de que os desenvolvimentos técnicos alcançados nesse período nada mais fizeram do que desdobrar um modo de visão de base renascentista, sendo a fotografia e o cinema “exemplos mais recentes de um desdobramento contínuo do espaço e da percepção em perspectiva” (CRARY, 2015, p.13). Além disso, argumenta que é preciso reconsiderar a relação entre essas novas tecnologias, sua propalada capacidade de reproduzir o real, e o realismo oitocentista, uma vez que um dos instrumentos mais disseminados naquele período – o estereoscópio – estava baseado em uma abstração e numa reconstrução radical da experiência óptica. De todas as formas, essas novas tecnologias passam a operar cada vez mais com materiais da vida, o que, no imaginário coletivo, fará com que seus produtos sejam vistos como discursos da verdade, testemunhos do real, documentos e instrumentos de rememoração. Como observa Natalia Brizuela, o afã de arquivar, colecionar e organizar que imperava no século XIX encontrou no talento para a documentação oferecido pela fotografia, supostamente livre de toda intervenção subjetiva, um de seus instrumentos preferidos (BRIZUELA, 2014, p.36). Não surpreende, portanto, que Galdós tenha chegado a organizar um arquivo de mais de três mil fotografias. As relações que podem ser observadas entre sua obra literária e a fotografia panorâmica da época, por exemplo, são especialmente contundentes, podendo ser inseridas na dialética da foto e do texto realista como operações de codificação das aparências. 154


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É amplamente conhecida a afirmação de Roland Barthes, verdadeiro estigma, segundo a qual a fotografia é contingência pura, sempre representação de alguma coisa. “Ao contrário do texto que, pela ação repentina de uma única palavra, pode fazer uma frase passar da descrição à reflexão, ela fornece esses detalhes que constituem o próprio material do saber etnológico.” (BARTHES, 1984, p.49). Nesse sentido, o talento da imagem fotográfica para a documentação e o arquivamento passa a ser amplamente utilizado como evidência do real em textos jornalísticos e científicos, e encontra em textos literários de caráter testemunhal, como os da escritora mexicana Elena Poniatowska, outra possibilidade de expressão e circulação. Autora de obras relevantes para o contexto da literatura latino-americana contemporânea, como La noche de Tlatelolco (1971), Poniatowska utiliza a fotografia em diversos textos, sempre como rastro de um referente externo, como índice que se conecta por contiguidade a esse referente. Como observa a pesquisadora Alejandra Torres, em seu projeto de escritura, Elena Poniatowska enfrenta o poder hegemônico, como no caso de La noche de Tlatelolco, em que o texto denuncia a matança estudantil, assumindo uma postura estética e política (TORRES, 2010, p.28). Nessa obra, as fotografias, quase sempre acompanhadas de legendas, se encontram separadas do resto do texto, antes mesmo do Prólogo. Pode-se observar como esse tipo de organização claramente apela ao poder referencial da imagem, ao optar por começar pela separata de fotografias que, neste caso, funcionam como documento comprovatório da intervenção violenta do exército na manifestação dos estudantes, em dois de outubro de 1968, na Cidade do México. A fotografia, que, no caso de La noche de Tlatelolco, surge no texto como materialidade e em sua função testemunhal, poderá também estabelecer outras formas de interação com a escrita, distanciando-se do caráter indicial e apresentando-se muitas vezes como elemento desestabilizador da narrativa ou parte constitutiva do discurso poético. A partir de 1950, de acordo com Rosalind Krauss, a fotografia se torna o locus privilegiado da perda da especificidade dos meios, signo do post-medium condition no qual vivemos. A imagem fotográfica, explica Natalia Brizuela, deixa de representar o mundo e passa a apresentar mundos de ficção, começando a ser utilizada em experiências conceituais, o que a obriga a deixar de lado sua epistemologia documental, embora sem nunca poder abandonar totalmente esse poder 155


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representativo. Desse modo, passa a funcionar como um veículo privilegiado da passagem para outros meios, para outras artes (BRIZUELA, 2014, p.43-44). Essa indeterminação que começa a vigorar a partir da segunda metade do século XX será fundamental para aprofundar os diálogos entre texto e imagem que, a partir de agora, terão implicações no próprio âmbito da ficção. O outro exemplo que gostaria de mencionar, também pertencente ao contexto literário latino-americano, é bastante conhecido, mas pela sua relevância para esta discussão, será feita uma breve referência. Trata-se do conto “Las babas del diablo”, de Julio Cortázar. Nessa narrativa, escrita em primeira pessoa, acompanhamos o personagem de Michel, fotógrafo e tradutor franco-chileno que nos conta um fragmento de sua vida [e morte]: seu passeio, numa manhã de domingo, até a ilha de Saint-Louis, em Paris; a presença de um casal na ponta da ilha; o estranhamento e o desejo de tirar uma foto da cena; a briga que se segue ao ato de fotografar; a posterior ampliação da foto e, a partir daí, as conjecturas acerca do que estava acontecendo naquele momento. Como se sabe, a fotografia paralisa o tempo, seleciona um fragmento da realidade que, ao ser ampliada, pode revelar muito mais que a simples visão. Em sua conferência intitulada “Algunos aspectos del cuento”, proferida em Cuba, em 1962, na qual, o escritor argentino estabeleceu uma comparação entre romance e cinema e entre fotografia e conto, observou ainda que a fotografia opera em um aparente paradoxo: “o de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal maneira que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abarcado pela câmara.” (CORTÁZAR, 1971, p.10).8 Ao ampliar a foto que havia tirado em Saint-Louis, Michel se detém diante da recordação petrificada para analisá-la e recriá-la em profundidade. A origem desse conto, por sua vez, é uma foto. Como explica o fotógrafo e teórico Joan Fontcuberta, em 1959, o fotógrafo chileno Sergio Larrain tirou uma foto de um casal de namorados que passeava por Saint-Louis e a mostrou a seu amigo Julio Cortázar, que a achou bastante sugestiva. Foi justamente a partir dessa fotografia que Cortázar se inspirou para escrever “Las babas del diablo”. 8 Tradução própria. No original: “la de recortar un fragmento de la realidad, fijándolo determinados límites, pero de manera tal que ese recorte actúe como una explosión que abre de par en par una realidad mucho más amplia, como una visión dinámica que trasciende espiritualmente el campo abarcado por la cámara”.

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Por sua vez, o diretor italiano Miguelangelo Antonioni, em 1966, realizou uma transposição do conto de Cortázar em seu filme Blow-up. Nesse, o personagem é um fotógrafo de moda que, em um momento de lazer, decide fotografar um parque em que havia um casal de namorados. A mulher fotografada, assim como no conto, exige que ele lhe dê o filme, mas Thomas foge. Ao ampliar a sequência de fotos em seu laboratório, o personagem descobre o que parece ser uma pistola e, depois, um corpo estendido em meio aos arbustos. Ao anoitecer, ele volta ao parque sem a câmera e descobre o corpo. No entanto, ao retornar ao mesmo local na manhã seguinte, já não o encontra e fica em dúvida sobre se realmente o havia visto. Tanto o filme quanto o conto sugerem, dentre outras questões, uma reflexão em torno da capacidade da fotografia de atestar a realidade ou criar ficções. Fontcuberta, que define seu trabalho fotográfico como uma tentativa de induzir o espectador ao engano, serve-se agora do filme de Antonioni para criar um projeto intitulado Blow up Blow up, que significa ampliar a ampliação. Como vimos inicialmente, uma foto deu origem a um conto, que foi trasladado a um filme. A proposta do fotógrafo catalão seria, então, a de retornar à fotografia. Para isso, Fontcuberta escolhe a sequência mais instigante do filme − justamente a da ampliação −, leva o fotograma ao laboratório, coloca-o no ampliador e continua de onde Thomas, o fotógrafo do filme, havia parado. O resultado é uma instalação de fotografias de grandes dimensões, onde, segundo o fotógrafo, se apresenta um paradoxo: nelas, já não se vê nada. “Ultrapassando um certo umbral – afirma Fontcuberta −, uma escala de interpretação, a percepção se perde. Chegamos ao grau zero da imagem, mas em compensação isso nos permite outra coisa interessante: o que acontece é o descobrimento da própria imagem.”9(FONTCUBERTA, 2009, s/p.).9,10 Nesse ponto, chega-se não à representação, mas ao suporte físico, às impurezas do suporte: os arranhões, a poeira, tudo aquilo que os fotógrafos consideram ruídos, elementos que perturbam a transmissão das imagens (FONTCUBERTA, 2009). As silhuetas amorfas que restam dessa operação de ampliação excessiva já não revelam nenhum aspecto oculto da realidade, mas puras abstrações nas quais se pode projetar qualquer significado. Após o experimento com os fotogramas de 9 Tradução própria. 10 Conferência de Joan Fontcuberta, proferida no Museu Thyssen-Bornemisza, Madri, em 30 de janeiro de 2009. Disponível em: http://www.revistadearte.com/2009/03/03/blow-up-blow-up-segun-joan-fontcuberta/. Acesso em: 03/04/2017.

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Antonioni, Fontcuberta pregunta: “De que estão feitas as imagens? Qual é seu material básico, sua metafísica? A resposta nos reenvia não mais a um corpo inerte que simula a morte, mas ao próprio cadáver da representação... Por mais real que pareça, qualquer imagem contém uma ameaça de uma falsidade inevitável.” (s/p.).11 Chegamos, assim, às sobras que podem vir a ser geradoras, propulsoras de novas ficções. Não apenas rastros de um referente externo, mas restos de imagens que remetem à própria imagem. Por último, gostaria de fazer referência a mais um exemplo dessa interação entre fotografia e literatura: o conto, ou capítulo, intitulado “Jóvenes y verdes”, de Obabakoak, de Bernardo Atxaga, livro publicado originalmente em basco, em 1988, e posteriormente traduzido ao espanhol pelo próprio autor. Nesse texto, o personagem de um escritor recorda as circunstâncias que tiveram origem em uma fotografia de infância: sua primeira foto coletiva, a da escola primária, que, ao ser contemplada muitos anos depois, provoca indagações acerca do presente, assim como sobre o destino dos personagens que a integram, chamando a atenção para as ausências que se tornam índices de uma história silenciosa: E o retrato falava, por exemplo, de dor, e nos pedia que nos fixássemos naquelas duas irmãs, Ana e Maria, detidas para sempre no quadrado número dois do Grande Tabuleiro; ou que pensássemos no destino de José Arregui, aquele colega nosso que, de menino sorridente no meio da escadaria de pedra, passou a ser um homem torturado, e depois morto, na delegacia (ATXAGA, 2015, s/p.).12

A citação confirma a afirmação de John Berger, segundo a qual o verdadeiro conteúdo da fotografia é invisível, muito embora essa seja uma foto apenas referida no texto de Atxaga. O jogo da ampliação presente em “Las babas del diablo” e em Blow up chama a atenção para essa suposta invisibilidade. Possivelmente a mesma estratégia também se faz presente no conto de Atxaga, como se buscará demonstrar adiante. 11 Conferência de Joan Fontcuberta, proferida no Museu Thyssen-Bornemisza, Madri, em 30 de janeiro de 2009. Disponível em: http://www.revistadearte.com/2009/03/03/blow-up-blow-up-segun-joan-fontcuberta/ Acesso: 03/04/2017. 12 Tradução própria. No original: “Y el retrato hablaba, por ejemplo, de dolor, y nos pedía que nos fijáramos en aquellas dos hermanas, Ana y María, detenidas para siempre en la casilla número doce del Gran Tablero; o que pensáramos, si no, en el destino de José Arregui, aquel compañero nuestro que, de ser un niño sonriente en medio de la escalera de piedra, había pasado a ser un hombre torturado, y luego muerto, en una comisaría”.

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LITERATURA E FOTOGRAFIA

Voltando ao relato, um colega de trabalho do personagem-escritor, estudante de fotografia, oferece-lhe uma ampliação cinco ou seis vezes maior daquele retrato: “Foi, então, uma vez que meu companheiro havia terminado o trabalho, quando a velha foto falou de verdade e revelou seu segredo.” (ATXAGA, 2015, s/p.).13 Com a ampliação, o personagem descobre um detalhe que lhe havia passado inadvertido. Esse detalhe, que antes não era mais do que uma mancha, obriga-o a seguir o rastro de alguns fatos surpreendentes. Analisando a foto, fixa-se no braço direito de um colega chamado Ismael, considerado o mais endiabrado da turma. A princípio não distingue o que o menino tinha na mão, mas, com a ajuda de uma lupa, o personagem se dá conta de que era um lagarto. Ismael certamente queria assustar o colega da frente. Essa constatação junta-se às lembranças do medo que as crianças de Obaba tinham dos lagartos, causado pelo mito de que esses animais comiam cérebro humano. A suposta vítima de Ismael chamava-se Albino María, um dos meninos mais inteligentes da turma, que, pouco tempo depois do episódio da foto, enlouqueceu. A partir daí o escritor começa uma investigação em torno da possibilidade de que o lagarto que Ismael tinha na mão tivesse entrado no ouvido de Albino María, suspeitando de uma possível relação entre isso e os problemas mentais que a criança havia passado a apresentar. Essas suposições do narrador-personagem, que não necessariamente chegarão a uma conclusão, são o elemento central do relato e nos propõem questões bastante análogas às apresentadas pelo conto de Cortázar e o filme de Antonioni: as ampliações fazem com que o que estava invisível venha à superfície, mostrando as muitas camadas que constituem toda imagem (e todo texto), gerando menos certezas que ficções, fabulações. A descoberta do personagem de Atxaga, o suposto lagarto que teria comido o cérebro de Albino María, aponta para a história subterrânea que constitui o texto literário, levando ao desvelamento de sua construção. De forma análoga, a ampliação da ampliação levada a cabo por Fontcuberta nos remete à própria imagem. Acredito que as obras aqui apresentadas demonstram o potencial criativo e crítico da interação entre fotografia e literatura. Se o texto literário subverte o caráter testemunhal da imagem técnica, levando-a a rebelar-se contra os limites que lhe haviam sido historicamente impostos; esta, por 13 Tradução própria. No original: “Fue entonces, una vez que mi compañero hubo terminado su trabajo, cuando la vieja foto habló de verdad y reveló su secreto”.

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sua vez, induz a literatura a experimentar novos materiais, a expandir-se e ampliar essas fecundas zonas de contato. Por outro lado, exemplos como os de La noche de Tlatelolco, voltam a abrir espaço para a discussão em torno da representação da realidade e do testemunho, vistos agora desde a perspectiva desafiadora do compromisso ético, que sem dissimular os limites e a complexidade do diálogo da imagem e do texto com o real, afirmam sua premência e necessidade.

Referências bibliográficas ATXAGA, Bernardo. Obabakoak. Traducción de Bernardo Atxaga. Alfaguara, 2015. [Edición digital]. BAUDELAIRE, Charles. El público moderno y la fotografía. Disponível em: http://sientateyobserva.com/2012/01/12/charles-baudelaire-el-publico-moderno-yla-fotografia/. Acesso em: 10/08/2016. BOURDIEU, Pierre. Un arte médio: ensayo sobre los usos sociales de la fotografía. Traducción de Tununa Mercado. Barcelona: Gustavo Gili, 2003. BRIK, Ossip. Retratos e memórias dos esquecidos. In: BERND, Zilá; SANTOS, Nádia Maria Weber (orgs.). Memória social: pesquisas e temas emergentes. Niterói: UnilaSalle, 2016. BRIZUELA, Natalia. Depois da literatura: uma literatura fora de si. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. CORTÁZAR, Julio. Las babas del diablo. In:_____ Las armas secretas. Madrid: Cátedra, 1997, p.77-97. CORTÁZAR, Julio. Algunos aspectos del cuento. Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid: Instituto de Cultura Hispánica, mar. 1971, p.403-416. CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Tradução de Verrah Chamma. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. FONTCUBERTA, Joan (ed.). Estética fotográfica: una selección de textos. Barcelona: Gustavo Gili, 2003. FONTCUBERTA, Joan. Conferência. Disponível em: http://www.revistadearte. com/2009/03/03/blow-up-blow-up-segun-joan-fontcuberta/. Acessoem:03/04/2017. KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili, 2002. 160


VER PARA LER: CÍCERO DIAS E MÁRIO DE ANDRADE Eneida Leal Cunha

Em vez de alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, seus esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram. O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe são essenciais. Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa desse modo, um lugar entre os despropósitos. Theodor Adorno. Notas de literatura I, 2003.

A retrospectiva Cícero Dias; um percurso poético (1907-2003), patrocinada pelo Banco do Brasil com o aval do Ministério da Cultura e curadoria de Denise Mattar e Sylvia Dias, filha do pintor, expõe de forma didática e fartamente contextualizada 125 obras, um panorama de toda a produção do pintor montado para evidenciar tanto a sua proximidade com paisagens, intelectuais e artistas brasileiros quanto seu trânsito no circuito de arte europeu, inclusive durante a ocupação de Paris em 1940, daí a abundância na mostra de cartas, fotografias, recortes de jornais. As imagens e minhas anotações aqui poderiam constituir mais uma das intermináveis (e necessárias) revisões ou advertências ao pé da página da história instituída do Modernismo Brasileiro, pelo o seu centramento em um pequeno grupo de artistas de São Paulo em diálogo com o mundo, o Rio de Janeiro e às vezes com o Brasil a fora, nas suas viagens de aventuras e descobrimentos. Mas não é. A melhor historiografia e a crítica consolidada do modernismo não 161


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omitem as amizades e os intercâmbios entre linguagens, imaginações e indivíduos. E Cícero Dias não é mais um artista do norte preterido, mesmo porque Mário de Andrade não o permitiu. Mas Cícero Dias e suas aquarelas, até a exposição recente, não eram, para mim, mais do que um quadro mal lembrado em alguma parede de museu. Era uma sombra ou como uma sombra, o que resta de uma forma, uma pessoa ou uma coisa, sobre a qual a luz forte incide. As sombras são sempre um resto que podemos não ver. Como uma sombra que tomasse cor e corpo – o que falta às sombras, a materialidade das cores e dos corpos – as aquarelas de Cícero Dias, especialmente as aquarelas que datam das décadas de 1920 e 1930, foram vistas por mim no CCBB em Brasília,1 como a iminência de um atropelamento. Como percorrendo certas instalações contemporâneas que atravessamos nos museus e galerias, obras que demandam atenção aos obstáculos do percurso sob pena de tombarmos ou fazê-las tombar, fiz uma espécie de visita guiada pelas setas nos estreitos corredores cobertos de quadros. Porque a obra a expor é vasta, e o espaço disponível para a mostra do CCBB-DF é curto; constituiu-se ali um labirinto. O meu atropelamento, entretanto, não foi da mesma ordem do relatado por Manuel Bandeira, em crônica dos anos de 1940: O Rio não deve ter esquecido aquele estranho rapaz que um dia expôs na sala térrea do derrubado edifício da Policlínica, à Avenida Rio Branco, uma abracadante coleção de aquarelas, diante das quais o visitante incauto era desde logo tomado por uma impressão de atropelamento [...] (BANDEIRA, 1957, p.69).

Entre as primeiras imagens da exposição atual, está emoldurada a carta a Mário de Andrade de 27 de junho de 1928, no calor da hora, em que Bandeira já advertira: 1 Nota (prévia) ao leitor: tanto o controle dos direitos sobre a obra de Cícero Dias quanto os custos da reprodução qualificada das aquarelas em material impresso impedem a reprodução das imagens que compõem este artigo, mas será indicado ao leitor um endereço (um site) onde elas – e outras – poderão ser contempladas com vagar. Espero que essa forma um tanto trabalhosa de me acompanhar possa, em contrapartida, transmutar a limitação técnica, que impede o ler e ver na mesma superfície, em abertura para composição de novos arranjos visuais que rearticulem Cicero Dias e Mário de Andrade.

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A novidade aqui é a exposição de um rapaz de Pernambuco que vive no Rio – Cícero Dias. Uma arte profundamente sarcástica e deformadora: por exemplo, uma entrada da Barra com o fio de um carrinho elétrico do Pão de Açúcar preso na outra extremidade ao galo da torre da igrejinha da Glória, e a janelinha toda torta. Acho muita imaginação e verve nele. Entre os que entendem e pintam, está cotado. No meio modernista, claro. Assim como o Goeldi, o Di e o Nery gostaram muito (MORAES, 2000, p.393).

O atropelamento ali pode ser lido como uma irrupção, a inesperada visão da cidade do Rio de Janeiro2 em desordem pictórica e imaginária, bem sinalizados na aquarela que o poeta descreve ao amigo. Trata-se de uma imagem onde tudo, à exceção da solidez inclinada do Pão de Açúcar ao fundo, está equalizado pela proximidade e por incongruências dimensionais (casas, ruas, bichos, homens, arvores); onde também tudo parece sacolejar ou ter sido sacolejado, como se despejado na tela pelo poema “O bonde” de Oswald de Andrade, bonde que, aliás, está também ali na aquarela, atravessado no centro da paisagem desordenada e instável, desequilibrada, da cidade grande – provavelmente uma visão real, precisa e fascinante aos olhos perplexos do quase ainda menino de engenho Cícero Dias. Cícero Dias, quando expôs pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1928, tinha 21 anos e estava na cidade desde os 13 para estudar arquitetura e pintura na Escola Nacional de Belas Artes. Suas aquarelas são, com frequência, relacionadas ao “primitivismo” e ao “surrealismo”, não por filiação direta, mas pelo insólito das imagens de corporalidades delirantes, por vezes em levitação poética, como em Aurora mulher (1928),3 outras acintosamente cravadas no chão, como em Os senhores das terras, aquarela da década de 1920, na qual troncos decepados e bustos solenes aparecem plantados no chão. Provavelmente, ainda falte hoje aos críticos da obra de Cícero Dias uma inventividade emocionada, capaz de fazer uma designação mais precisa e ao mesmo tempo mais fluida, mais leve e mais sensível, como se lê nas palavras de Mário de Andrade que apresentaram o pintor a São Paulo um ano mais tarde, em 1929, ao largo da nomenclatura classificatória: 2 Cena Imaginária com Pão de Açúcar (1928), aquarela sobre papel, pode ser vista em http:// culturabancodobrasil.com.br/portal/wp-content/uploads/2017/08/catalogo-CDias-Web.pdf. Acesso em: 20/08/2017. 3 Aurora Mulher (1928), aquarela sobre papel, pode ser vista em http://www.artnet.com/artists/ c%C3%ADcero-dias/aurora-mulher-YzdmY3cZT7XqnP3Y1AaoWA2. Acesso em: 20/08/2017.

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Eu não sei se pode interessar aos meus leitores saber que o desenhista pernambucano Cícero Dias está em São Paulo nos vendo. Pouco ou nada o leitor sabe sobre este artista delicioso. E se visse os desenhos e aquarelas dele, na certa que oitenta por cento dos leitores pensaria: “É um maluco”. É... Ainda vivemos convencidos de que são malucos todos os que escapolem do senso comum... [...] Cícero Dias é uma acuidade exacerbada. Ele conta essas coisas interiores, esses apelos, sonhos, sublimações, sequestros. Os desenhos dele formam por isso um “outro mundo” comoventíssimo, em que as representações atingem, às vezes, uma simplificação tão deslumbrante que perdem toda a caracterização sensível (ANDRADE, 2015, p.442).

Dez anos mais tarde, quando Cícero Dias já estava morando na Europa, Mário de Andrade, apesar dos torneios iniciais e habituais do decoro, aceitou o convite para escrever sobre “Cícero Dias e as danças do Nordeste” (2000), para a revista Arquivos, pois, como diz lá, “[h]á vaidades a que é muito difícil resistir...” (ANDRADE, 2000, p.50). [...] não é possível organizar, ou melhor, reorganizar essas aquarelas para nosso prazer e nosso conhecimento, sob princípios normativos de qualquer concepção estética preliminar. Estão, nesse sentido, muito próximas do sonho. Possuem o desarrazoado e o desordenado aparentes do sonho. E da mesma forma que este, as aquarelas de Cícero Dias exigem da gente uma total passividade crítica e uma atividade psicológica quase feroz de tamanha. Quero dizer: uma sensibilidade receptiva enorme, desarvorada, sem nenhuma escravização intelectual, assombrável e assombrada, já desincumbida de qualquer espécie de lógica verbal. A pessoa do observador deve estar num tal ou qual estado de medo - o que não implica evidentemente nenhuma espécie ativa de temor. E então essas aquarelas nos aproximam duma alma... que não é deste mundo; e a gente se purifica prodigiosamente ao seu convívio, num relacionamento muito íntimo, que quer bem, nesse bem-querer que sempre se arreia de visões inconsoláveis (p.51-52).

Das primeiras aquarelas de Cicero Dias, aquelas pintadas nos anos de 1920, saltaram aos meus olhos, paradoxalmente, o modernismo que tanto conhecemos e, ao mesmo tempo, a intuição de algo que sempre esteve ali, mas conhecemos menos, alguma coisa desacomodada no conjunto das visões familiares se destacava e fazia um forte apelo para re-imaginar o conhecido. 164


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Este foi o atropelamento efetivo, a parada no meio no corredor da galeria, a captura: as imagens de Cícero Dias me levaram de volta ao que está indicado no título, a outros artistas do modernismo que partilham a sua trajetória, entre eles de forma muito especial o turista aprendiz Mário de Andrade, que viajou por Pernambuco no final dos anos vinte. Nunca antes havia lido o título da coleção dos registros das viagens etnográficas do escritor – O turista aprendiz – como designação efetiva e afetiva, no sentido próprio e palpável vislumbrado ali, entre os quadros e os traços da sua intimidade com pintor. Retornei ao diário4 da viagem de pesquisa ao nordeste entre novembro de 1928 e fevereiro do ano seguinte para desenhar um mapa de afetos e descobertas partilhados por Mário de Andrade e o seu amigo mais novo, o jovem pintor pernambucano que o recebeu em Recife e transformou a sóbria incursão etnográfica do musicólogo e intelectual paulista numa ampla festa dos sentidos. Reli as anotações de Mário de Andrade: 8 [de fevereiro] Recife às 12 horas. Me hospedo no Glória Hotel e vou almoçar Ascenso e Stella. Começam me apertando pra fazer conferência na Cultura Artística mas não farei. Janto com Ascenso e andei procurando um Maracatu que não achamos. Mas pelas vinte e duas horas, achado o Cícero Dias, caímos todos no frevo do Vassouras. Loucura e formidável porre de éter. 9 [de fevereiro] Acordo bem disposto. Cícero passa pelo meu quarto às 9. Depois passa o José Pinto, irmão do Adamastor, de Natal. Preparativos pra noite que, sob o ponto de vista da “frevolência” recifense, gorou. [...] Pelas 22 Cícero, Ascenso, amigo do Cícero estão num porre formidável de éter. José Pinto e eu vamos no meu quarto de hotel tomar coca (ANDRADE, 2015, p.241). 4 O diário está no dossiê do manuscrito O turista aprendiz, “autógrafo a lápis-tinta e a tinta preta, em 28 fólios de fichário de bolso, a letra miúda aproveitando ao máximo o espaço”. As “Notas de viagem ao nordeste” reúnem os registros de 28 de novembro de 1928 a 24 de fevereiro de 1929. Essa documentação integra o exemplar da edição comemorativa de O turista aprendiz publicada em 2015 pelo IPHAN, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) e a Fundação Vale, acompanhada do CD-Rom com o diário do fotógrafo Mário de Andrade, formado por imagens e legendas que também narram as duas viagens.

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Em resumo, temos, nas notas do dia a dia recifense, a adesão animada à festa dos sentidos, com Cícero Dias, carnaval, éter, sedol e cocaína, em contraposição ao compromisso (descartado) com a Cultura Artística. O carnaval ou a entrega ao carnaval fora de casa não foi experiência nova para Mário de Andrade, sabemos do “Carnaval carioca” (1923) de cinco anos antes, que além de registro biográfico é um belo e longo poema. A diferença está entre o amigo de 1923 no Rio de Janeiro, recolhido em Petrópolis para fugir da festa, e o amigo mais novo em Recife que o conduz na festa. A Manuel Bandeira, o amigo mais velho que o esperou em vão, Mário escreveu ainda imerso na experiência superlativa: Carnaval!… Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. […] Meu cérebro acanhado, brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegria, que sei lá!, nunca seria capaz de imaginar um Carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o paulistamente. […] E aí está porque não fui visitar-te. Estou perdoado (MORAES, 2000, p.84-85).

A aquarela Bagunça,5 do mesmo ano de 1928, não me parece diretamente alusiva ao carnaval em Recife, até porque ao fundo há uma silhueta preta que evoca topografia carioca. Mas, nela vemos, inapelavelmente, na bem delimitada faixa colorida que atravessa de cima a baixo a parte central da tela, em desenho sem profundidade, uma rua entre fileiras de casas e escadas, mulheres nuas, corpos marcadamente populares ou infantis e outros sobriamente vestidos, todos, entretanto, em dançante e esfuziante desordem. A aquarela nos chega aos olhos como colagem de inúmeros elementos distorcidos ou contorcidos, mas reconhecíveis todos no imaginário social brasileiro. Principalmente, pela justaposição, contorção e imprevisto das figuras, vi a aquarela exposta e a retomo como imagem carnavalizada da cidade e, destacadamente, como signo do enredo que estou buscando reconstituir aqui, como uma visão do desarranjo alegre e vitalizado que a proximidade de Cícero Dias produz no “cérebro acanhado, brumoso de paulista” (palavras dele), de Mário de Andrade. 5 Disponível em: http://www.artnet.com/artists/c%C3%ADcero-dias/bagunca-jOPKPN2gtYEtsmnOyEZ06w2. Acesso em: 20/08/2017.

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A viagem ao Nordeste para conhecer e documentar a riqueza “popular” – no sentido mais amplo que quisermos dar a este termo –, foi em boa parte ciceroneada por Cícero Dias, pelo amigo mais novo habituado a transitar entre o engenho Batateira (onde Mário de Andrade se hospedou) e a cidade velha do Recife, com o à-vontade próprio aos filhos da casa grande, conforme nos foram apresentados por José Lins do Rego, Jorge Amado, Gilberto Freyre e outros escritores, poetas e pintores da mesma estirpe senhorial nordestina. A intimidade com o sinhozinho indomado, irreverente, boêmio e artista, dado a frequentar as zonas menos nobres da cidade e os corpos suados e escuros nas plantações de cana, provavelmente fez com que à viagem etnográfica se acrescentasse um outro percurso, paralelo, como viagem de formação mais íntima, de abertura dos olhos, dos sentidos e do corpo a diferentes planos de sensibilidade e de conhecimento das gentes do Brasil. O colorido forte, as distorções oníricas dos corpos nus, o intenso erotismo, as imprevistas concreções do desejo que compõem as aquarelas de Cícero Dias, como Aurora mulher, Cena de violão mulher e soldado (1928), Gamboa do Carmo no Recife (1929), O sonho (1931),6 todas do final dos anos vinte, também me fizeram retornar, por seu flagrante contraste, às fotografias do vasto acervo de imagens em preto&branco que resultou dessa viagem de Mário de Andrade ao nordeste. Como as reproduções abaixo,7 o diário do fotógrafo contém predominantemente registros feitos com intuito documental claro, nos quais, eventualmente, pode-se cortar uma figura humana para exibir de perto um pequeno instrumento musical, por exemplo, e de modo geral são imagens com enquadramento precário e foco às vezes incerto. Nelas, a habilidade do fotógrafo pode se desencontrar da sua minuciosa atenção aos detalhes recortados pela sensibilidade etnográfica ou pelo entusiasmo amoroso com o diverso.

6 Disponíveis em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1787/cicero-dias. Acesso em: 20/08/2017. 7 “Os diários do fotógrafo” e um CD-ROM homônimo, encartado na segunda capa, integram a edição comemorativa de O turista aprendiz, em 2015, aos 70 anos da morte de Mário de Andrade. O livro está disponível online, mas as imagens paradoxalmente não, pelo menos até a data desta publicação.

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Imagem 1 – Recife, 11 dezembro, 1928. Fonte: ANDRADE (2015)

Imagem 2 – Cargueiros na estação de Baldhun. Fonte: ANDRADE (2015)

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Imagem 3 – Bom Passar. Fonte: ANDRADE (2015)

Nas três imagens, há em comum a eleição do mundo de trabalho, da pobreza, da paisagem arruinada na velha cidade colonial, da convivência das mulas de carga com os trilhos da Great Western, sintomáticas escolhas fundadas em contrastes, feitas pelo intelectual aprendiz do Brasil vindo da urbanidade paulista, moderna e pulsante. A última fotografia acima pertence a um conjunto numeroso dentro da coleção, das imagens que flagram a escureza dos corpos, especialmente de corpos masculinos precariamente vestidos e em ação, sempre em destaque contra horizontes amplos, os músculos tensionados pela força do trabalho. Trazê-las, aqui, compartilhando as páginas com as gravuras do pintor, é uma estratégia para apontar, na larga diferença dos suportes e dos olhares sobre a paisagem e os corpos, a combinatória de pulsões e de afetos que estou tentando compor (ou destrinchar). Além do contraste óbvio entre a fotografia e as aquarelas, tem-se, digamos assim, de um lado, o descontrole, a decomposição das formas e a dispersão onírica e erótica afirmativa das visões-aquarelas de Cícero Dias e, de outro, na maioria das fotos capturadas por Mário de Andrade, o olho etnográfico que monta e autoriza a coleção de registros, o seu gesto de recolher imagens como apropriação lúcida de recortes e documentos do Brasil por conhecer. 169


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Foi esta conjunção de imagens diversas e extremadas, em presença e em ausência, que atropelou minha visita à exposição da obra de Cícero Dias; e estou tentando reconstituir de modo a poder formular e sustentar uma pergunta longa: Que efeitos de vida e escrita teve o convívio entre o jovem artista Cícero Dias e o intelectual e poeta Mário de Andrade, entre o neto do senhor do engenho Batateira, senhor do território, da paisagem, das mulheres nuas, dos caboclos cantadores, dos batuques nos catimbós e da herança cultural e o intelectual negro-mestiço paulista, nascido, criado e formado do lado de fora da casa-grande, no exterior da herança senhorial autorizativa mas também no exterior da herança mais palpável e mais sonora das senzalas, ávido por, ao menos, conhecê-las e documentá-las? O encontro em Recife, as viagens por várias cidades do Nordeste, os outros muitos encontros no Rio de Janeiro nos anos seguintes e os reencontros plasmados nos traços da escrita ou das aquarelas compõem mais uma das infindáveis narrativas de afeto e amizade que integram as histórias do Modernismo brasileiro. Importa mais neste final de rememoração do encontro de 1928 e início de 1929 em Pernambuco, a partir de seus rastros visuais e textuais, contemplar o seu talvez mais delicado fruto, os “Poemas da negra” (1930) publicados por Mário de Andrade após a viagem e devidamente dedicados a Cícero Dias. Poema I Não sei por que espírito antigo Ficamos assim impossíveis... A Lua chapeia os mangues Donde sai um favor de silêncio E de maré. És uma sombra que apalpo Que nem um cortejo de castas rainhas. Meus olhos vadiam nas lágrimas. Te vejo coberta de estrelas, Coberta de estrelas, Meu amor! Tua calma agrava o silêncio dos mangues (ANDRADE, 1993, p.247). 170


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No conjunto de doze pequenos poemas, como no poema inicial acima, Mário de Andrade exercita em palavras a mesma intangível, difusa e insidiosa sensualidade que, segundo ele próprio descreveu em 1940, extravasa das figurações pintadas pelo amigo. Também diante dos sussurrados e tateantes versos dedicados simultaneamente à negra e a Cícero Dias, versos em que se amalgamam esses três seres e muitos mais, numa erótica de multivalência e desidentificação, podem o leitor, a leitora e a leitura retornar, retomar e amparar-se nos termos de que se valeu o intelectual-crítico para abraçar – no sentido de acolher e compreender – as aquarelas do amigo, como foi transcrito anteriormente. Podemos parodiá-lo, pois também não é possível nos apropriarmos dos versos dos poemas da negra para nosso prazer e nosso conhecimento sob princípios de qualquer concepção estética prévia ou sob o crivo de inteligibilidade fundada na descontinuidade entre os seres, entre os corpos, entre a paisagem e os corpos, entre o masculino e o feminino, entre o desejo e o delírio, quando estes se dão interpenetrados e simultâneos. Como disse Mário de Andrade a propósito das aquarelas do amigo, “[e]stão, nesse sentido, muito próximas do sonho. Possuem o desarrazoado e o desordenado aparentes do sonho. E da mesma forma que este [...] exigem da gente uma total passividade crítica e [...] uma sensibilidade receptiva enorme, desarvorada, sem nenhuma escravização intelectual, assombrável e assombrada, já desincumbida de qualquer espécie de lógica verbal.” (ANDRADE, 2000, p.51-52). Nos poemas dedicados à negra e a Cícero Dias, os corpos alheios impossíveis se imiscuem ou brotam do corpo próprio em análoga conjunção contorcida de formas plasmada pelo pintor nas aquarelas de então, como Aurora Mulher e Repouso (1920) ou, mais expressivamente, em aquarelas posteriores que podem ser apreciadas como lances seguintes de Cícero Dias na reciprocidade das concreções imaginárias, entre ambos, como em O sonho,8 de 1931. O ritmo lento e regular dos versos dos poemas, que ecoam o compasso dos rituais religiosos afro-brasileiros conhecidos no Nordeste, e a suavidade do gesto corporal difusamente esboçado ou do gesto verbal reticente, sempre enigmático – como as inquietantes e envolventes composições de Cícero Dias – combinam experiências e imaginações nordestinas. Mediada por todo 8 Disponível em: http://www.infoartsp.com.br/noticias/texto-critico-exposicao-cicero-dias-no-ccbb. Acesso em: 20/07/2017.

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o visto, vivido e desejado na demorada viagem pelo Nordeste, fermentada naquele mundo açucareiro múltiplo, tenso, contraditório e por apreender, desabrocha no poema a alteridade ostensiva e recalcada do próprio corpo, a negritude alheia e também sua, a feminilidade sua e alheia, a masculinidade sua e alheia, como um enlace amoroso pleno e insistentemente suave com a própria corporeidade. Poema III Você é tão suave, Vossos lábios suaves Vagam no meu rosto, Fecham meu olhar. Sol-posto. É a escureza suave Que vem de você, Que se dissolve em mim. Que sono... Eu imaginava Duros vossos lábios, Mas você me ensina A volta ao bem (ANDRADE, 1993, p.248).

Talvez apenas ao homem Mário de Andrade, também negro e também mulher, tenha sido dado, no cânone e no projeto estético e político-cultural dos modernistas brasileiros, alcançar com potência poética e íntima fraternidade o sempre impossível outro, seu exterior constitutivo. Possibilidade extraordinária alcançada, paradoxalmente, com o favor amoroso de um jovem branco e herdeiro senhorial – o jovem pintor também admirado afetuosamente por Gilberto Freyre, que ilustrou a sua primeira edição de Casa Grande e Senzala em 1933. Se colocados ao lado da pintura A Negra (1924), de Tarsila do Amaral, com sua monumentalidade e solene, hierática, sígnica e distante, ou ao lado do poema “Essa Nega Fulô” (1947), de Jorge de Lima, que repete o roteiro de violências 172


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entre a casa grande e a senzala e exibe a mulher negra “nuinha” para seu castigo e gáudio do senhor, evidencia-se como – e o quanto – “Os poemas da negra” e Mário de Andrade partilham, de outro modo ou com outra forma, a herança. Em sua extrema delicadeza os versos buscam conexão com o patrimônio duplamente interditado, com a leveza própria do desamparo dos que tiveram que se constituir em descontinuidade – nem na casa grande nem na senzala, nem racialmente branco nem etnicamente negro, masculino e feminino. A negritude que se esboça e se esconde nos versos é o patrimônio que precisou buscar, recompor, reinventar para si. O afeto pelo rapaz que o acompanhou nessa aventura é duradouro. Rio de Janeiro, 29 de novembro, 10 horas Estou lavando o rosto depois da barba e Cícero Dias entra no meu quarto. Achei graça na timidez dele. “Venha logo pro Rio que preciso dar um grande abraço em você”... Assim ele escrevia repetido em várias cartas. Porém o abraço nosso foi difícil. [...] Cícero Dias entrou, ficou muito desapontado. Afinal nos abraçamos e retomamos a existência das nossas cartas. Inteiramente está claro que inda não porque o Cícero Dias das cartas era um bocado mais magro e mais alto. Lembro-me também que sentava duma vez só. Este Cícero Dias sem cartas é diferente sobretudo nisso: anda e senta aos pedaços. Todo ele é aos pedaços aliás, menos a arte. Por enquanto há mesmo um contraste orgânico entre a arte e o ser Cícero Dias. É quase ainda o que a gente chama de “meninão”. Nem sei se passou da casa dos vinte. E como entidade ele exprime bem essa curteza de anos vividos. Mas na arte não [...] (ANDRADE, 2015, p.250-251).

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Imagem 4 - Carta de Cícero Dias a Mário de Andrade (1930) Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural (2018)

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Referências bibliográficas ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz / Mário de Andrade. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo. Colab. Leandro Raniero Fernandes. Brasília: Iphan, 2015. ANDRADE, Mário de. Cícero Dias e as danças do nordeste (Documento). Teresa, n.1, agosto 2000, p.47-67. ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993. MORAES, Marcos Antonio de (org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp, 2002. BANDEIRA, Manuel. Flauta de papel. Rio de Janeiro: Alvorada Edições de Arte, 1957. DIAS, Cícero. CARTA de Cicero Dias para Mário de Andrade. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra35692/carta-de-cicero-diaspara-mario-de-andrade. Acesso em: 24/11/2018. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7. DIAS, Cícero. Eu vi o mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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WALY SALOMÃO: ENTRE O OLHO FÓSSIL E O OLHO MÍSSIL Frederico Coelho

Pelo açougue também se chega a Mondrian. Haroldo de Campos

1 Não se trata neste ensaio de buscar na obra do poeta baiano Waly Salomão aspectos visuais. Nem se trata de mostrar que entre as duas máximas do olhar e do tempo – o “olho fóssil” e o “olho míssil”, expressões do próprio poeta – encontram-se os limites de uma perspectiva cronológica da história. Waly apresenta uma trajetória intelectual que reivindica estrategicamente a sua face acronológica. Escapar do fóssil é escapar da semiótica da história da cultura e dos seus modos de esquadrinhar vidas e obras por décadas e escolas. Como no poema que abre o livro Gigolô de bibelôs (SALOMÃO,1983) e traz a máxima fóssil/míssil, trata-se aqui de investigar um OU e se preservar de seu óbvio movimento pendular entre polos discursivos. Superar o tique e taque do “ou um ou outro” que sempre aponta para um dos lados, incessantemente. Este ensaio se instala exatamente na ideia de que, em algum micromomento – o faixo de luz do meio dia nietzschiano –, se vive os dois: fóssil E míssil. Ao requisitar a multiplicidade do E no título deste ensaio, estou justamente criando uma imagem do estilo do poeta - aquela que frita o peixe do porvir e olha o gato da história. Trata-se talvez de demonstrar por piscadas velozes e rabos de olhos um pensamento imagético que se esgueira na obra mais ampla de Waly. Do texto em estilo Cinemex (1972) ao corte e cola da Groovy Promotion (1972). Das fotos-poemas dos Babilaques (1977) aos cartazes-salva-vidas FA-TAL e VIOLETO nos shows de Gal Costa em 1971. 177


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2 Um poeta se faz de versos, mas também se faz de imagens do delírio da língua. Ou melhor, NO delírio da língua. Imagens que retiram os olhos de quem lê e o ouvido de quem ouve do campo corrente da palavra esquadrinhada em verticais e horizontais e arremessam os sentidos para uma fissura. Criar brocas no muro do mundo, diz Waly. Deixar marcas que atravessam corpos e mentes e criam, lá onde não se sabe ao certo o que ancora, a velocidade do míssil a partir da perenidade do fóssil. 3 Em uma fala batizada de “Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença”, feita em 2002 por ocasião do seminário “Anos 70: trajetórias” (Itaú Cultural, 2005, p.77), Waly não deixa dúvida: quer ser sempre míssil, nunca fóssil. Assim, fica claro que o par fóssil/míssil não seria uma aposta de simultaneidade – como o moderno baudelairiano que traz, como uma ostra do futuro, a pérola certa do passado. Para Waly, o futuro é fluxo meândrico, que tudo atravessa em direção ao que está encapsulado na frente do presente. Na sua visão crítica, a história é um pesadelo se pensada como bola de ferro. Ao mesmo tempo, nesse contradiscurso, também afirma que “o modo que trabalho o mundo parte da ambiguidade” (p.75). Por fim, ainda nessa fala riquíssima – talvez a última grande fala pública de Waly que foi registrada – ele nos lembra que um dos motores do artista deve ser “suportar a vaziez e aguentar o período de abandono do déja vu” (p.78). Abandonar o que já esteve, mesmo que breve e como fantasma, dentro dos olhos. Há de se superar o já visto, há de se atravessar o rio de fogo do que o olho já digeriu, já traduziu, já recortou, já ruminou e, por fim, repete. O olho míssil, assim, é o agente que transforma o visto em fóssil. Transformar o fóssil (elemento chave para combustíveis industriais) em míssil. Não ver de novo, ver sempre o novo, mesmo que seja o mesmo, mesmo que seja o de sempre: ver a vaziez. 4 Foi um artista visual, seu irmão de armas e amores Hélio Oiticica, quem VIU nos textos seminais de Waly Salomão um livro de poesia. Era ainda 1970, e o poeta mostrava seus versos para muitos sem retorno algum. Oiticica viu o livro de Waly, diagramou, propulsionou o míssil com combustível que queimou até 178


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seu fim prematuro em 2003. Sua relação com as artes por meio de e além de Oiticica fez com que sua escrita densa e polifônica ganhasse o mundo. Foi para ele que Waly criou sua Groovy Promotion, recortes de notícias espetaculares sobre esquadrões da morte e eventos sanguinários das manchetes policiais populares.1 O poeta os recortava, destacava textos de imagens, os colocava em envelopes e os enviava para Oiticica, que vivia então na “Manhattan Brutalista”. O artista delirava com as imagens e os enunciados trocados, sugerindo uma poética do vazio, uma prosa-pacote que engendrava novas escritas e imagens. Oiticica chegou a situar os textos de Waly numa imagem plástica clássica do século XX: a escultura brancusiana que absorve o pedestal. (SALOMÃO, 2002, p.203). Anos depois, foi também perto de Oiticica que Waly inicia a criação de seus Babilaques, dispositivos poético-visuais cujas pranchas trazem fotos de páginas de cadernos com grafismos e imagens recortadas, deslocadas, rasuradas em sua estabilidade retiniana. Eles consistem em uma série de vinte fotografias realizada entre 1975 e 1977 em Nova Iorque, Rio de Janeiro e Salvador. Em texto dedicado aos trabalhos, Luciano Figueiredo, designer, poeta visual, cenógrafo, parceiro de primeira hora nas naves loucas e nos mísseis disparados mais a torto do que a direito, afirma sem rodeios a evidência de uma poesia “muito ligada não só à pintura”, mas “também à escultura” (FIGUEIREDO, 2007, p.11). Era no amálgama do E, no atrito produtivo dos meios em trânsito, que Waly esburacava os muros do mundo, criava imagens tão sugestivas quanto o rosto sobre o buraco negro ou o muro crivado de balas de uma Escola Municipal no Rio de Janeiro. Nessa experiência de palavra e imagem, Waly traçava a plasticidade das letras e cores – criador de sons e luzes e planos e espaços – e sua companheira Marta Braga era o olho que as fotografava. Para os Babilaques, o entorno da imagem formada pela folha de blocos e cadernos era vital. Não se tratava de um mergulho no suporte, de uma imagética interna da superfície de papel, mas sim da criação de um campo de força ao redor da folha-tela. Suas fotos montam, junto com os títulos, as caligrafias e os poemas, um intricado jogo de referentes em que o próprio poeta situou na linhagem “Apollinaire, Jean Arp, Jean Luc-Godard” (SALOMÃO, 2007, p.61). Incluiu também nessa família 1 Para um estudo mais aprofundado da relação entre Waly Salomão e Hélio Oiticica e o tema da Groovy Promotion, ver COELHO, Frederico. Groovy Promotion: Waly Salomão, Hélio Oiticica, literatura e amizade. In: OLINTO, Heidrun Krieger e SCHØLLHAMMER, Karl Erik (orgs.). Literatura e espaços afetivos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p.94-102.

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por contágio os futuristas italianos e russos. Desbravadores do padrão gráfico e da geometria radical nas artes, Waly cita um poeta desenhista, um pintor, escultor e criador de colagens que também escrevia poesia e um cineasta que fez de cada fotograma um poema na iminência de explodir para fora da tela. Eis aí a matilha Babilaque que Waly invoca para ampliar o olhar de sua experiência polissêmica. Luciano Figueiredo nos lembra ainda, para selar essa contaminação do poeta pela imagem, da participação de Waly na Ex-Posição (1972), projeto de Carlos Vergara realizado no MAM em 1972, Vergara exibe uma série de trabalhos de não-artistas, nomes que, em sua maioria, nunca tinham participado ativamente do circuito das artes visuais. Waly estava lá, com a palma da mão fotografada por Bina Fonyat, afirmando em um poema-carimbo que conhecia a cidade com a palma da minha mão cujos traços desconheço. Para Waly, e isso é fundamental de se colocar aqui, os Babilaques eram “Performance poético-visual”. Fiel às ideias de polissemia e amálgama, ele amarra em nó cego o aspecto performático-delirante do corpo ao aspecto dominante do texto e da imagem. Códigos que remetem tanto ao sensorial quanto ao visual, arrancando a marcação moderna do poema espacializado na sua pureza em forma de folha de papel. Há uma sujeira necessária nessas fotos de caligrafias ao mesmo tempo selvagens e estilosas. Brocas nos muros do mundo em multilinguagem. Daí a negação de ser parte da historia engessada da poesia marginal dos anos 70. Daí sua resistência a ser visto como fóssil, pois nunca fez parte do poemão anunciado por Cacaso para falar da geração dos anos 1970, apesar de saber exatamente o quinhão que lhe cabia reivindicar. 5 A palavra especializada já era, para Waly, aquilo que ele fazia com a música. Suas letras, gravadas então por jovens que seriam mestres – como Gal Costa, Jards Macalé ou Maria Bethânia –, eram um gesto performático de o texto se tornar corpo. De ele se espalhar através de um corpo em voz e imagem para múltiplas escutas em ecos permanentes de seus versos. Ficar na boca do público é ser míssil. Ele sabia que naquele período, mais do que nunca, a voz era atrelada inexoravelmente a uma imagem performática desse corpo em canto. No mesmo texto em que ele cunha o termo “Performance poético-visual”, Waly reivindicou para esse momento uma “musicalidade poético visual” (SALOMÃO, 2007, p.21). 180


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Performance e música, no fim das contas, podem colidir em um mesmo espaço de fruição sensorial das palavras e das imagens poéticas. Ainda com Waly, temos a prova de que palavra e imagem não cessam na bidimensionalidade da página ou da foto e saltam em direção a uma incerteza fundamental. Cito o texto de 1979: Uma foto de um pedaço de fruta dentro de uma lata vazia não pretende ser uma forma insólita de “natureza-morta”, mas instaura um discurso, uma fala, um canto, uma música, cines imaginários (SALOMÃO, 1979, p.21).

6 Cines imaginários. O cinema foi a primeira porta de entrada de Waly na imprensa carioca. Ao lado do amigo Torquato Neto, publicava no suplemento cultural do Correio da Manhã a coluna “Super frente Super oito” e adiantava o relógio dos dispositivos imagéticos do seu tempo. A portabilidade da câmera super oito e a sua capacidade de captar a ação em movimento de forma precária, porém perene, torna-se para o poeta um caminho e uma linguagem que seriam indissociáveis de sua prática artística. Em Me segura que vou dar um troço (1972), a imagem oscila nos versos e títulos. Logo na primeira página, no primeiro poema (“Apontamentos do Pav Dois”), a palavra escolhida para sintetizar uma cena é a repetição do jargão maquínico-malandro CINEMEX. Um exemplo de uma cena CINEMEX: “Alguém fantasiado de javali feroz ataca uma pessoa diante do mar. como numa dança de Bumba”. (SALOMÃO, 2002, p.60). A seguir, o título do segundo poema assume a tradição do Self-portrait. Mas lá, também, se insinua o vírus maquínico do CINEMEX: Mulheres em formação chinesa armando uma frase como nos desfiles políticos. Uma pessoa com um telefone na mão discando o numero enorme de emergência enquanto é assassinada por uma enormidade de balas disparadas por um pistoleiro (SALOMÃO, 2002, p.86).

O cinema norte-americano nos redimirá. Ou nos matará. Nesse poema, o combustível do míssil é revelado: “CARNAÚBA DO NORDESTE NO FOGUETE DA NASA”. Por fim, o autorretrato definitivo daqueles tempos de vida sem pouso certo: “Foto minha com roupa e numeração de presidiário” (SALOMÃO, 2002, p.86). 181


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No poema seguinte, “Roteiro turístico do Rio”, o poeta separa os blocos de versos por planos cinematográficos. O roteiro sai de sua acepção de caminho mapeado e desaba na escrita cinematográfica. São Planos de bairros e ruas cariocas trilhados por Waly. Seu olho míssil torna-se a câmera-olho de Dziga Vertov. Se ele vê com olhos livres, sua vista é roteirizada nas artimanhas das quebradas dos morros e desvãos da cidade que o poeta adota para si. 7 A música, novamente. Foi no show de Gal Costa, realizado no Teatro Tereza Raquel durante 1971, que Waly, junto com a dupla de designers Luciano Figueiredo e Oscar Ramos, criaram as palavras-cenários – FA-TAL – E VIOLETO. Ambas escritas em caixa alta, penduradas acima do cenário do show. Waly já inseria, desde o livro de 1972, fotos-montagens para abrir os sentidos de alguns de seus poemas. Ainda nesse ano, fez, ao lado da dupla de designers e do seu amigo e parceiro de imprensa Torquato Neto, o petardo poético-visual Navilouca (1972). A nave, aqui barco, transmuta-se rapidamente em nave espacial pela impossibilidade de ser fóssil um projeto gráfico radical que conseguia articular heranças e presenças modernas-construtivas dos concretos e neoconcretos com a juvenília da experimentação brasileira de então. A partir desse encontro entre Waly, Luciano e Óscar ao redor de Gal Costa (o primeiro era o diretor do show), Torquato, o quarto vértice dessa geometria, escreve um dos textos mais pungentes da geração que atravessou mares revoltos entre exílios, internações e suicídios. O poeta piauiense vinha sugerindo desde 1971 em suas colunas na “Geleia Geral”, do Jornal Última Hora, o que chamava de “perda da fé nas palavras”. Cito Torquato: Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, uma palavra – um mundo poluído – explode comigo e logos os estilhaços desse corpo arrebentando, retalho em lascas de corte e fogo e morte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e outras que eu posso inventar, inverter. Todas juntas à minha disposição, aparentemente limpas, estão imundas e transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas. [...] Agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma; qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam nos hospícios (NETO, 2004, p.262). 182


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A partir do show de Gal, porém, Torquato escreve um agradecimento público a Waly não pelo show em si, pelas suas canções ou pelos seus versos em letras como “Vapor Barato” (1971). Ele agradece pelas grandes placas gráficas. Eis o texto de Torquato, feito na sua coluna em 4 de novembro de 1971: Ao poeta Sailormoon estou devendo a fé que eu já havia esquecido. Mas eu nunca disse para ninguém e digo logo desta vez: era um grilo zumbindo e eu não acreditava mais que as palavras pudessem me servir de nada. fa-tal e violeto, palavras-destaque do show de Gal by Waly, desfizeram meu absurdo encantamento pelo grilo. Não é nada daquilo e é o mesmo de sempre: tudo é perigoso, divino, maravilhoso. E as palavras, eu aprendi novamente, não são armas inúteis (NETO, 2004, p.288).

Assim, o poeta no limite da afasia, que caminhava também para a imagem em detrimento do verso –, Torquato fazia poemas visuais radicais e iniciava um desejo de se tornar diretor de cinema – encontra na palavra-destaque, puramente visual e em escala espetacular, a fé perdida. O olho vazado e opaco de Torquato foi reativado pelo combustível do olho míssil de Waly e seus parceiros designers. Esse episódio marcou também o poeta baiano, sempre lembrado ao rememorar o amigo. Vale lembrar, porém, que essa rememória de Torquato por parte de Waly é fortemente marcada pelo tom ácido com que o segundo afirmava as voltas do relógio do tempo. Waly gostava dos longevos, dos velhos poetas maduros. Para ele, a morte do amigo, seu suicídio ainda em 1972, um ano depois da retomada na fé pelas palavras, ganha metáfora imagética: “Foi um snapshot intersemiótico. Um Fotograma de cine-poesia.” (SALOMÃO,1993, p.66). Ainda Waly registra o epitáfio duro, porém generoso: “Mas a poesia não salva nada nem ninguém, ela somente supre o buraco das certezas.” (p.68). Buracos feitos pela Broca no muro? Ainda em cinema-verdade, metáfora da morte real na ficção das imagens em movimento, ele vê a vida de Torquato nos personagens de Godard. Torquato Pierrot, le fou, Torquato Le petit Soldat, Torquato One plus one. O final trágico deixa em aberto uma imagem que Waly nunca aceitaria: a santificação. Quem fica, aguenta a barra. O filme não pode parar quando alguns de seus atores saem de cena.

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8 Cine-poesia, poesia do olho em travelling, zoom, plongé ou plano e contraplano. O poeta da imagem-performance e da palavra sonora polissêmica e multicolor estava perto do Quasi-Cinema (1973) das Cosmococas (1973) de Oiticica e Neville de Almeida, estava dentro dos sets de filmes experimentais produzidos em velocidade míssil por Júlio Bressane, Rogério Sganzerla e Ivan Cardoso, era íntimo papeador do designer, poeta e filósofo Rogério Duarte. A decalagem histórica no Brasil entre a palavra e a imagem teve no período heroico da Poesia concreta e de seus colaboradores um marco fundamental. Não foi à toa que Waly levou até o fim da vida as lições do Paideuma proposto, projeto em que o ideograma chinês e o “lance de dados” mallarmaico sempre estiveram em órbita na mesma galáxia. Nos anos 1970, palavra e imagem já tinham sido remixadas pelos meios de massa multimídia para fora do domínio letrado. Silviano Santiago, em artigo dedicado no calor da hora aos primeiros livros de Waly e Gramiro de Matos, vaticina, a partir do termo curtição, essa fissura espaço-temporal da palavra e da imagem no Brasil. Citando o crítico (também poeta visual nesse período em livros como Salto (1971): O atraso da literatura com relação a outras formas de expressão artística já chega a ser normal em nossa época, e talvez neste preciso momento em que a arte da curtição ouve seu canto de cisne é que a literatura comece a tomar conhecimento do que esteve acontecendo. Perdemos o bonde; não percamos a esperança (SANTIAGO, 2000, p.129).

Silviano arremata a discussão apontando como agravante do atraso o fato das novas gerações olharem com descaso a comunicação verbal e valorizarem o trecho sobre o todo. Em outro artigo da mesma época, intitulado de forma emblemática “O assassinato de Mallarmé”, o crítico (que publicou poemas visuais na revista concreta Invenção) acusa o golpe geracional: os jovens preferiam a teoria antropofágica dos manifestos oswaldianos do que a teoria matemática dos manifestos do plano piloto noigandres. De certa forma, essa fissura, contraditoriamente criada pelos próprios poetas concretos em seu exercício crítico-míssil de atualizar a obra de Oswald de Andrade, foi justamente o espaço cindido em que Waly Salomão se instalara. Exercendo sua famosa tática “Pound Tsé-Tung”, ele produz novamente o E disseminador de sentidos e opta pelo concreto e o ocre dos casebres das favelas. 184


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9 Fechando esta escrita, mas abrindo a trilha, Waly se referiu ao seu primeiro livro, ainda no seu lançamento em 1972 como “energia propulsora” (1972, s/p.). Sua perspectiva histórica na díade fóssil/míssil pode derivar da perspectiva nietzschiana, para quem a história deve, de todas as formas, estar a serviço da vida. O fóssil, aquilo que encontramos a posteriori para comprovar vida – orgânica ou material – de povos passados, nos aprisiona na garantia do fato, e, como diz o filósofo, o fato é sempre estúpido. Mas há também os momentos em que o fóssil nos serve a favor de um fluxo de vida, de uma civilização vindo a ser. Há uma força, um combustível que, para Waly, faz com que ele queira sempre ser míssil. Se o mesmo diz que nunca será fóssil, hoje podemos dizer que a memória de sua obra e vida permanece viva, plena de roteiros a serem explorados. Uma obra cuja ideia de blocos de som, corpo, imagem e letra (sejam eles de carnaval, sejam eles de sensações, sejam eles o mármore de Brancusi) mantêm-se simultaneamente dentro e fora da história. Móvel, inquieto, quente e panorâmico. Como o próprio afirma em seu poema de 1983 “Olho de lince”: Quando quero saber o que ocorre a minha volta ligo a tomada abro a janela escancaro a porta experimento invento tudo nunca jamais me iludo quero crer no que vem por aí beco escuro me iludo passado presente futuro. (SALOMÃO, 1983, p.9)

Referências bibliográficas COELHO, Frederico. Groovy Promotion: Waly Salomão, Hélio Oiticica, literatura e amizade. In: OLINTO, Heidrun Krieger; SCHØLLHAMMER, Karl Erik (orgs.). Literatura e espaços afetivos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p.94-102. FIGUEIREDO, Luciano. Babilaques: poesia e arte. In: SALOMÃO, Waly. Babilaques. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007, p.11-18. NETO, Torquato. Torquatalia – Geleia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. SALOMÃO, Waly. Babilaques. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007. 185


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SALOMÃO, Waly. Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença. In: RISÉRIO, Antônio; FREIRE, Maria C. M.; KEHL, Maria Rita et al. Anos 70: Trajetórias. São Paulo: Itau Cultural/Iluminuras, 2005, p.77-89.

SALOMÃO, Waly. Me segura que eu vou dar um troço. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. SALOMÃO, Waly. Armarinho de miudezas. Salvador: Fundação Jorge Amado, 1993. SALOMÃO, Waly. Gigolô de bibelôs. Rio de Janeiro: José Álvaro editor, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos – ensaios sobre dependência cultural. Perspectiva: Rio de Janeiro, Rocco, 2000.

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ESCRITA-IMAGEM-TEORIA. ENCONTROS Heidrun Krieger Olinto

Para Karl Erik pelos muitos momentos de inspiração.

Encontros A presença de uma nova sensibilidade na produção de saberes na esfera dos estudos literários, contrariando a ideia de que mecanismos racionais protegem contra a atuação de afetos, será explorada em formas experimentais de fazer ciência que aliam vocações e interesses aparentemente antitéticos do artista e pensador, do poeta e cientista. Neste exercício de imaginação teórica a sedução dos sentidos ofusca a hegemonia do discurso da razão pelo acento sobre nexos indissociáveis entre a o pensamento inteligível e a percepção sensível, entre formas discursivas e imagéticas. Esta criatividade, que encontra eco na própria configuração estética de práticas teóricas, será avaliada de modo exemplar em cruzamentos inesperados entre poesia, arte visual e teoria, ensaiados para imaginar novas formas de pensá-la, exercê-la e exibi-la. No exercício proposto, o acento sobre o investimento estético em práticas científicas beneficia-se, em parte, de sugestões de Niklas Luhmann a favor de um pensamento de risco, reclamado em seu livro Soziologie des Risikos (LUHMANN, 1991). Uma sociologia crítica, segundo ele, não deveria se satisfazer com abstrações e descrições de regularidades sociais, mas explorar igualmente pequenas fraturas e desvios nas brechas de uma suposta normalidade, focando com interesse especial o acidental e excepcional, esse “lado obscuro da vida”,1 esse peso de frustração de todas as expectativas, apagado pela confiança em cursos normais e previsíveis das práticas cotidianas (p.1). Nesta ótica delineia-se 1 A tradução livre de termos e citações em alemão é de minha autoria.

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um paradigma capaz de contornar polaridades, em suas extremidades entendidas como generalização do particular e concentração no singular. Enquanto incerteza e acaso afrontam sensibilidades corriqueiras avessas ao inesperado que desconcerta rotinas e desencadeia condutas protecionistas contra hipotéticas ameaças à ordem, para o sociólogo o próprio registro explícito de rupturas da normalidade e o acento sobre a sua qualidade de fenômenos contingentes, de modo geral descartados ou marginalizados, exige antes uma atenção particular à sua condição de normalidade secundária, mas copresente. Somente uma exposição destacada torna reconhecível a sua forma, a sua complexa ordem própria, traduzível pela síntese paradoxal da atenção ao normal excepcional. Neste quadro, sistemas não necessitam de centros e hierarquias, o que permite contornar modelos binários excludentes clássicos, mas eles precisam de fronteiras de relativa invariância, que lhes conferem forma e sentido ao garantir certa estabilidade, ainda que precária, às expectativas internalizadas como condutas institucionalizadas. A existência de movimentos de retroalimentação entre possibilidades atualizadas e excluídas, que caracterizam tais processos por uma permanente fluidez, permite a Luhmann eliminar, ainda, dicotomias tradicionais entre disposições estáticas e dinâmicas concebendo-as como movimentos estruturantes a partir da seleção de certas possibilidades. A concretização de alternativas transforma-se, assim, em parte integrante desse modelo dinâmico que vincula a atribuição de sentido à redução de complexidades, mas paradoxalmente promove ao mesmo tempo o seu crescimento. Como efeito paralelo, a formação de sistemas sociais – e de outros subsistemas, tais como o artístico, por exemplo – não deriva de consensos pela eliminação de dissensos, porque eles mesmos se revelam indispensáveis à sua dinâmica. Nesta acepção, o lugar das formações teóricas passa a ser transferido para o campo da observação de observações e da descrição de descrições. O relevo dado à figura do observador autorreflexivo como instância necessária de todas as observações e descrições contraria, nesta ótica, algumas premissas (ainda?) básicas da investigação científica – a postulação de observações e descrições objetivas e imparciais dos objetos de análise escolhidos – e representa, de algum modo, a despedida de modelos fundados sobre estruturas e fronteiras estáveis. A produção de sentido não opera com grandezas invariantes, mas com estabilidades estruturais dinâmicas, flexíveis e negociáveis interativamente, caminhando, por assim dizer, na via dupla da estabilidade/instabilidade e privilegiam categorias de equilíbrio 188


ESCRITA-IMAGEM-TEORIA. ENCONTROS

instável e de dinâmica estável. Abrindo o seu repertório teórico criativamente ao acaso, à indeterminação, o modelo idealizado a partir da unidade da diferença oferece uma ferramenta poderosa para enxergar latências e valorizar complexidades contemporâneas em diversos domínios, entre eles, além das produções literárias e artísticas, os próprios repertórios de sua teorização. Teorias que adotam a contingência como ferramenta lidam com disparidades e eventos transitórios e conferem aos fenômenos um estatuto singular fundado sobre incertezas e redefinições imunes à abstração. Neste sentido, a arquitetura sistêmica de Luhmann adquire importância pela definição do conceito de forma como unidade da diferença, à medida que este teorema faculta enxergar os dois lados coexistentes – o normal e o desviante, o evidente e o latente – a partir da alteração de ângulos de visão. A forma, momentaneamente responsável pela distinção entre o visível e o invisível, emerge neste processo como operação seletiva da observação, em que algo salta aos olhos à custa de opções ignoradas que, no entanto, permanecem no limbo. Em sua síntese a forma resulta de processos de inclusão/exclusão paralelos a partir da atualização de um dos lados que corresponde à manutenção do excluído em “estado de inatualidade” (LUHMANN, 1984, p.101). No horizonte desta discussão ganha relevo o papel do intelectual – cientista e pensador – e suas possibilidades de ação e intervenção no universo acadêmico, por ele definido como sistema social de segunda ordem, que, em contraste com a redução de complexidades nos demais sistemas sociais, estende a sua tarefa básica precisamente à produção de complexidades. Afinado com esta ideia, Hans Ulrich Gumbrecht idealiza a função do intelectual contemporâneo, no ensaio “Riskantes Denken” [Pensamento de risco], a partir do compromisso com uma espécie de pensamento de risco, atribuindo-lhe o papel de “catalisador de complexidades intelectuais” (GUMBRECHT, 2002, p.145). Nesta função, no recinto do espaço universitário protegido do mundo extramuros, caberia ao cientista e pensador inventar contra-modelos às práticas interpretativas institucionalizadas e reguladas, via de regra, pela redução de complexidades e pela inatenção a latências na elaboração de sínteses acerca de sentidos e saberes de sua competência. Sintomaticamente a coedição Latenz (GUMBRECHT; KLINGER, 2011), dedicada, em parte, à produtividade intelectual do conceito de latência como processo de visualização em diversos campos de saber, exibe a chave inscrita no próprio subtítulo Blinde 189


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Passagiere in den Geisteswissenschaften: passageiros clandestinos nas ciências humanas. Gumbrecht conjuga este adjetivo – que em alemão preserva a ideia de cegueira –, apropriado de Anselm Haverkamp, ao se referir à sensação de presença de algo invisível, com o conceito de presence do teórico Eelco Runia (GUMBRECHT, 2011, p.10). A certeza intuitiva da proximidade espacial de corpos e materialidades, sem que esta sensação de presença possa ser convertida em evidência visual imediata, encontra neste passageiro clandestino uma tradução exemplar de latência. Ela expressa a certeza intuitiva das coisas atribuídas a distintas disposições afetivas que dirigem a nossa atenção a dimensões latentes (p.11). Na transferência desta figura de pensamento para uma reflexão teórica acerca de fenômenos literários, interessa menos arbitrar sobre supostas prioridades afetivas ou intelectuais, mas, antes, valorizar uma gama de emoções atuantes nas práticas teóricas experimentais a respeito deles. Neste âmbito, uma ajuda promissora vinda de descobertas neuropsicológicas recentes sinaliza diversos pontos de contato entre imagens mentais e sistemas visuais, sugerindo um entendimento dos seus efeitos como ativação de uma atenção intensa peculiar que opera em distintos níveis do processamento visual dos indivíduos, contrariando a hipótese de se tratar de uma percepção passiva (FARAH, 1989, p.203). Essa semelhança delineia articulações recíprocas entre operações de imagens mentais e modalidades de atenção no campo da visão supondo uma intensificação desses processos não só na esfera do literário e das artes visuais, como também em operações de construção do conhecimento. Nesta ótica, a linguagem imagética torna-se capaz de despertar sensibilidades inesperadas e desencadear uma dinâmica visual provocadora ao dirigir a atenção de observadores – leitores e espectadores – para novos modos de configurar e entender realidades materiais e imateriais. Escrita-imagem A dupla dinâmica da escrita, manifesta em sua materialidade e medialidade no cruzamento de um corpo semiótico visível e uma dimensão simbólica oculta, é analisada por Susanne Strätling e Georg Witte no ensaio “Die Sichtbarkeit der Schrift zwischen Evidenz, Phänomenalität und Ikonizität”, a partir da estrutura icônica da grafia e do impacto inquietante de latências atuantes sobre o espectador-leitor (STRÄTLING; WITTE, 2006, p.7). No caso, uma escrita se exibe ao seu olhar que, antes de assumir uma função representacional na interpretação de sentido, potencializa a tensão entre a transcendência referencial do signo 190


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e a sua resistência pelo acento sobre a sua presença material. Enquanto a percepção da escrita impõe o seu estatuto visual, a escrita icônica, por seu lado, evidencia sua condição indissociável da percepção cognitiva em processos de leitura. Com este argumento, os autores denunciam modelos equívocos que fundamentam os vínculos entre o sensorial visível e o cognitivo invisível na oposição dicotômica entre o visível e o invisível (p.7). A sua fórmula da invisibilidade da visibilidade da escrita permite entender, assim, o paradoxo de poder ser visualizada na codificação gráfica, ao passo que da abstração desta presença material depende a sua condição como dispositivo cognitivo e a sua própria legibilidade (p.8). À diferença entre a imagem e a escrita, tradicionalmente identificada pela oposição entre o perceptível e o inteligível, entre o corpo e a mente, corresponde uma leitura convencional que ofusca a materialidade icônica perturbadora da escrita tornando-a invisível ao privilegiar a forma simbólica como modelação de um saber do mundo. A própria impressão gráfica dos livros, a organização tipográfica homogênea de suas páginas, condiciona o movimento ocular do leitor revelando na escrita em sua expressão gráfica a ambivalência de tornar algo perceptível ao se tornar ela própria imperceptível. Mas enquanto na prosa o peso da balança inclina-se em direção à transparência do escrito na interação com o leitor, responsável pela construção de sentido em detrimento da sintaxe visual do texto, na poesia – e sobretudo na poesia visual – esta oscilação entre a materialidade como condição da percepção e a sua neutralização simultânea ganha destaque pela ênfase sobre a presença icônica do significante. Na cena atual prevalecem múltiplas articulações transmidiáticas, em que escrita e imagem ensaiam casamentos híbridos, expondo tensões epistemológicas, semióticas ou estéticas, seja em textos de poesia, prosa ou teoria. Estratégias escriturais insistem explicitamente em notações icônicas na materialização da textura gráfica da escrita como iconização de eventos e atos performáticos. A escrita se apresenta em configurações inusitadas como espaço partilhado de inesperados cruzamentos de olhares atentos aos vestígios de uma dupla escrita, marcada por constelações relacionais da diferença. Esta materialidade não se entende como falta, mas antes como matriz de experiências que sublinham singularidades em sua presença instantânea (p.12). Alheio à representação referencial, o evento singular depende da materialização sensível de uma grafia. Na manifestação efêmera do signo gráfico emerge uma dimensão visual da escrita que se apresenta na oscilação entre materialidade e latência, presença e ausência, e se realiza com 191


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frequência pelo enfraquecimento do simbólico a favor de efeitos semióticos inversos ao potencial representativo da escrita. Esta oscilação entre aparição e desaparecimento repete-se, com vigor maior, na estrutura precária das imagens. Imagens no universo das artes visuais, observadas a partir da perspectiva da atenção que sustenta as reflexões fenomenológicas do filósofo Bernhard Waldenfels, são tratadas de modo similar como eventos inesperados que escapam ao nosso controle, que nos assaltam, que ferem os olhos. O autor associa o efeito impactante desta fusão de imagem, objeto, corpo e espectador, ao poder arcaico da magia a que, enfeitiçados, nos entregamos sem resistência (WALDENFELS, 2008, p.48). Em sua hipótese, a força das imagens emana da faísca inicial de eventos de atenção intensa tornando visível algo novo e surpreendente independente de motivações causais e atos intencionais que orientam o olhar em direção a determinados objetos (p.49). O duplo acontecimento de pathos e response que interrompe o curso da observação normal, intimando o observador e sequestrando o seu olhar, equivale a uma atenção primária provocada pela incontornável presença de uma materialidade sensorial visível. Esta atenção concentrada que aprisiona o espectador ocorre em experiências estéticas genuínas mas desaparece numa atenção secundária, habitual e distraída, característica da percepção repetitiva e reprodutiva do conhecido, que, ao contrário da primeira, pacifica os sentidos e domestica o olhar. No ensaio “Aufmerken auf das Fremde” (2011), dedicado à descrição de atos responsivos a fenômenos estranhos a partir do singelo poder cognitivo da atenção, Waldenfels questiona a sua equivocada identificação como projeção de um foco de luz sobre recantos ocultos expondo o que eles encobrem, a partir do argumento contrário de que cabe à atenção o papel de protagonista ativo em sua genuína força apelativa. Algo inesperado, extraordinário, arrebatador acontece e nos toca e perturba como um raio que nos atravessa, “uma estrela cadente”, “uma descoberta repentina”, “uma inspiração artística” (WALDENFELS, 2011, p.1). Enquanto no primeiro momento de intensa atenção assistimos à irrupção de acontecimentos isentos de responsabilidade autoral – referidos nos termos de Widerfahrnis e pathos –, no segundo momento ocorre um endereçamento peculiar acompanhado pela irrecusável demanda de resposta que converte a nossa atenção instantânea em percepção concentrada, viva: “eu vejo o que me fascina ou assombra” (p.2). O movimento bifásico – algo chama minha atenção, eu reparo –, oscilando entre pathos e response, refere-se a um deslocamento 192


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temporal entre o que nos acontece, sempre anterior à expectativa, e a nossa resposta, sempre posterior à experiência disjuntiva. Denominada de diástase, essa disjunção na ordem sucessiva do tempo que irrompe como dissincronia do sincrônico, revela uma estranha experiência de simultaneidade marcada por tropeços (Stolpergang) na escala temporal pela concessão de um hiato minúsculo entre pathos e response (WALDENFELS, 2009, p.146). Trata-se de um deslocamento traduzido por categorias temporais e espaciais que não se enquadram em modelos clássicos de sucessividade e contiguidade. Esta pequena anomalia disrítmica infiltrada nos processos limiares entre ordem e desordem ganha importância específica em experimentos científicos e artísticos que sustentam a sua criatividade precisamente pelo descompasso entre o ordinário e o extraordinário. Se por um lado, a própria descoberta da normalidade só se torna consciente quando suas fronteiras são atravessadas, por outro, o evento perturbador adquire visibilidade apenas sobre o pano de fundo de uma normalidade de que se distingue e a que deve seu efeito de estranhamento. O referido desvio mínimo, irredutível, portanto a alternativas de contiguidade espacial ou sucessão temporal linear, emerge como ato de liberdade, fruto de uma “atenção selvagem” (WALDENFELS, 2011, p.4) que se evidencia nos gestos responsivos intensos de um olhar assombrado em estado nascente precipitando a percepção do inesperado precisamente nas ambíguas zonas intersticiais. Waldenfels qualifica de iconopatia o poder atuante de imagens nesta aliança enigmática de gestos afetivos e analíticos – pathos e logos – que se cruzam no olhar do observador, em contraposição à iconologia governada por um pensamento racional que enfraquece a força sensorial do corpo ao risco de apagar o estranho inquietante por uma naturalização regulada, pacificadora. É exatamente neste encontro que se realiza a contaminação do olhar teórico pelo estético. Experimentos teóricos artísticos No horizonte dessas reflexões um olhar sobre momentos da vida múltipla de Siegfried J. Schmidt permite dar relevo a cruzamentos de fronteira e contaminações recíprocas ente arte e ciência que marcam com intensidade oscilante seus projetos teóricos, literários e artísticos. O vigor do seu pensamento crítico imaginativo, favorecido pela escolha de formatos ensaísticos próximos de um fazer científico estético, pode ser conferido no livro Die Zähmung des Blicks 193


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(SCHMIDT, 1998), em que o autor contrapõe aos atos de visão domesticados por superteorias e métodos científicos positivistas o exercício de um pensamento constelar móvel – referido como sampling e deslocamento – sugerindo um modo de entendimento e de produção de saber a partir de experimentações provisórias enraizadas em convicções e predileções de ordem epistemológica e teórica atravessadas por desejos, obsessões e intuições.2 Os argumentos de Schmidt acerca do estatuto da arte e da literatura apropriam-se de questões tematizadas na reflexão filosófica contemporânea transplantadas para o âmbito das ciências e, além de sublinhar explicitamente origens pluridisciplinares, atestam alianças e procuram correspondências na esfera das artes visuais e da própria criação literária. A sua composição escritural multidiscursiva exibe numerosas conexões laterais e superposições hipertextuais, criando experimentos híbridos como se fossem links de uma rede digital, sem promessa de aplainar o diferente pela síntese (p.7). A formatação privilegiada distingue-se ainda da noção usual de texto por uma ordem multilinear, libertando-se do princípio organizativo único, a sequência, e questionando, por conseguinte, o estatuto formal do texto estruturado segundo princípios de início, meio e fim ou de tese, antítese, síntese, baseados em premissas dialéticas e de sequencialidade progressiva. A própria configuração formal traduz de modo radical a noção de obra aberta como exercício experimental ilimitado situando-se deliberadamente no campo ensaístico que equilibra os seus argumentos e constructos conceituais em espaços intersticiais da produção de conhecimento. Como discurso alternativo entre arte e ciência, seja pela arquitetura de repertórios teóricos, seja pela própria forma discursiva, a escrita ensaística ocupa um lugar significativo na tentativa de encontrar modos adequados de compreender e expressar as duas esferas. Em comparação a tratados científicos tradicionais, as vantagens, em termos epistemológicos, estéticos e políticos, são visíveis numa crítica que não apenas abrange conteúdos, mas se faz presente igualmente por suas opções escriturais. Distanciando-se de modelos dicotômicos que separam forma e conteúdo, e questionando, ao mesmo tempo, o próprio discurso sobre o estético numa linguagem inestética, o ensaio se equilibra entre uma aposta conceitual e um estilo artístico. Não se trata de uma reconciliação ilusória de contrários ao preço da anulação da diferença entre arte e ciência. As duas 2 Cf. Argumentos similares em OLINTO, 2014.

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se distinguem qualitativamente em sua procura de saber e é na provisoriedade de suas propostas e respostas experimentais e processuais, valorizadas como manifestação da liberdade do espírito, que se encontra a possibilidade de elaborar conhecimentos inaugurais minimizando formas herdadas sem poder explicativo no presente. Vários dos próprios escritos filosóficos de Schmidt sobre arte exibem este movimento pendular entre uma teorização conceitual e uma expressão artística metafórica e tais entrecruzamentos permitem-lhe interpelar, simultaneamente, os métodos modernos da ciência comprometidos com ideias claras e distintas, fundadas na razão, no pressuposto e na certeza de uma ordem confiável das coisas, conferindo validade universal ao pensamento científico. Afinada com a experiência de realidades antagônicas, fragmentadas e complexas, a forma do ensaio contrapõe aos modelos ilusoriamente redutores, um modo de pensar flexível, seja na escolha de seus objetos de investigação, na maneira de focalizá-los em suas relações interativas processuais e seus deslocamentos contextuais, seja na expressão e articulação de sua escrita opcional. Em lugar da forma fixa, o ensaio se caracteriza por relações interativas de reciprocidade, por transformações e recontextualizações solicitando, por seu lado, uma linguagem viva, artística, e um estilo com disposição para abrigar instabilidades. A despedida da ideia de que conceitos resultam de definições sistemáticas sintéticas corresponde à escolha deliberada a favor de conexões dinâmicas em configurações criativas. Esta forma dialógica do ensaio em busca de uma linguagem estética que não se baseie portanto em princípios de causalidade mas, ao contrário, em lampejos de casualidade – no acidente que interrompe expectativas –, encontra o antídoto à ordem lógica das coisas precisamente em sua constelação mosaica poética. O filósofo Ernst von Glasersfeld analisou essa atmosfera singular em sua resenha do livro de Schmidt, que exibe uma mescla de argumentos, explicações, hipóteses e observações acerca de termos tão variados como realidade, saber, vivência, conhecimento, experiência e estética. Além de aforismos, poemas, desenhos, gráficos, fotografias, anedotas, lembranças, anexos de anotações bio-bibliográficas, extratos de textos e uma longa lista de produções literárias de diversos autores, o livro inclui passagens de filósofos, epistemólogos e sociólogos problematizando questões de comunicação, cultura, cibernética, percepção, lógica da distinção, sistema/entorno, autorreferência, observação de segunda e terceira ordem. Fragmentos soltos, repertórios teóricos e imaginação (literária) convivendo em tensão criativa, mesclados com gestos autobiográficos, 195


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especulações filosóficas, intuições – latentes e conscientes – formam um patchwork de fenômenos e eventos que clamam por atenção. Toma forma, desta maneira, uma espécie de libelo programático a favor de um projeto teórico de construção de conhecimento que se veste de imaginação e intuição na elaboração do seu aparato conceitual estético orientado por diversidade e diferença. Ou seja, um libelo a favor da criatividade teórica. O título dado por von Glasersfeld à sua resenha, ao tematizar a domesticação do olhar investigada por Schmidt, capta de modo sensível o exercício teórico proposto: o olhar incômodo sobre o saber (Der unbehagliche Blick aufs Wissen, GLASERSFELD, 1999). Em suma, desfralda-se um panorama fascinante das inquietações que traduzem o clima intelectual e o espaço cultural/artístico contemporâneo, em uma configuração formal que não acompanha, mas traduz o seu próprio conteúdo. A escrita ensaística, assumindo deliberadamente uma argumentação em prosa artística não ficcional na aproximação de seus objetos de investigação, causa desconforto e estranheza desestabilizando horizontes de expectativa e solicitando um novo olhar na coprodução dos próprios. O experimento ensaístico da autobiografia intelectual de Siegfried J. Schmidt, Lehren der Kontingenz [Lições de contingência], no subtítulo enfatizado como recordações de 40 anos de vida dupla, abrange um leque de variadas identidades assumidas e de atividades exercidas e vividas – professor, filósofo, teórico e crítico de literatura, artes e cultura, escritor, poeta, artista visual – cuja plasticidade se espalha com densidade desigual em toda extensão entre os polos de ciência e arte. O próprio autor define a existência paralela de seus trabalhos científicos, literários e artísticos, como “princípio da dupla escrivaninha” (SCHMIDT, 2012, p.85), em que reserva um espaço particular para uma forma escritural predileta – o manuscrito – por sua capacidade de conservar intacto o seu investimento próprio na estruturação visual das palavras e, ao mesmo tempo, de enfatizar sua força de dizer e mostrar. Dois exemplos permitem ilustrar esta convivência poderosa. Participando em 1982, em Münster, da exposição de arte A mecânica do nômade, a sua instalação ocupa o espaço com seis tiras de papel compridas estendidas no chão, repletas de textos científicos escritos à mão e declamados oralmente ao longo do evento. Em outra exibição performativa, um rolo de papel afixado no teto, frente e verso cobertos de carimbos e rabiscos manuscritos, impõe a sua presença ao espectador tornando visível na própria prática artística a materialidade do ato estético aliado à manifestação 196


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reflexiva. Nos casos citados, além do exercício programático de máximas do concretismo, ganha contorno o gesto radical de reintroduzir o “excluído da tradição pela transformação” como “prova da contingência na normalidade” das coisas (SCHMIDT, 2012, p.85). Sintomaticamente, em publicações compartilhadas com trabalhos de artistas visuais como Mimmo Paladino e Andreas Grunert, as imagens não assumem funções ilustrativas e os fragmentos textuais não estimulam interpretações. Antes, as duas modalidades materiais e semânticas, coexistentes, exibem o poder imaginativo construtivo que define o encontro, paradoxalmente oscilando entre autonomia e interdependência. Esta criatividade experimental, presente nos espaços do sistema literário – da produção, distribuição e recepção à forma peculiar da reflexão teórica – ganha intensidade específica em processos recepcionais, quando ativados por uma gama de operações no nível da percepção sensível. A poesia visual, por exemplo, não diz, mas se expõe, oferece pistas, deixa rastros à espera do leitor/espectador atento, transformado em interlocutor curioso no circuito comunicativo. Na perspectiva de Schmidt, a poesia visual “precisa coparticipar da reflexão acerca do excluído” (p.88), porque é nesta atuação pensante da percepção imagética que se modifica a relação entre teoria e prática. A teoria assume um papel inseparável da própria experimentação artística. Esta simbiose de escritor-artista explica, em parte, a sedução simultânea de “cientistas-escritores” (p.88) pela literatura e a sua atração pelas artes experimentais, tanto em seu ofício de teorizar quanto nas práticas escriturais. As fronteiras supostamente demarcadas entre literatura, arte e ciência se definem nestes constantes deslizamentos e revezamentos sincopados em que a partilha de espaços do dito e do não dito por vozes estridentes ou por silêncios, e do exibido e do ocultado em cores fortes ou apagadas, se dá em campos de força em movimento. Schmidt decifra este enigma com respostas em suspenso: Uma imagem diz mais que mil palavras, talvez. Mas nós também precisamos de mil palavras para descrever o que uma imagem nos diz no contexto de histórias e discursos – contanto que saibamos lê-la (SCHMIDT, 2010, p.35).3 3 mag sein, dass ein Bild mehr sagt als tausend Worte. Aber wir brauchen auch tausend Worte um zu beschreiben, was ein Bild uns im Kontext von Geschichten und Diskursen sagt – wenn wir es denn lesen können (SCHMIDT, 2010, p.35).

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Esta bela charada revela que entre escrita, imagem e ciência nem todos os segredos são trocados e permite antever que possíveis respostas se comprometem com a manutenção do desequilíbrio na distribuição de acentos nos três espaços, sem reivindicar domínios permanentes. Os efeitos destes jogos interativos não se entendem como adição, mas como articulações recíprocas que, em vez de eliminar, potencializam dissensos ao prestigiar o contingente nesta prática estética do saber. Schmidt se refere a este exercício teórico-estético com o termo Systemflirts para distinguir processos de retroalimentação que flertam com formas plurais de sentir, agir e pensar (SCHMIDT, 2008). No posfácio à coletânea Literatur und Theorie seit der Postmoderne (BIRNSTIEL; SCHELLING, 2012), Hans Ulrich Gumbrecht caracteriza o estatuto epistemológico de sua tese “empírica” acerca de cronótopos atuais como tese complexa “em construção”, dialogando com formas de descrição e narração visando estabelecer inter-relações entre múltiplos fenômenos, a partir de observações singulares em contextos históricos mais abrangentes (GUMBRECHT, 2012a, p.231-232). Em contraste com estilos intelectuais pautados por racionalidades estritamente dedutivas que convertem a concretude dos objetos em estruturas conceituais abstratas, a sua preferência por uma postura autorreflexiva no entendimento do mundo das coisas inclina-se a favor de uma forma de pensar “claramente mais sensorial” (GUMBRECHT, 2012a, p.236), sem sucumbir à fusão indiferenciada de teoria e literatura. Para ele anuncia-se, neste horizonte, o início do fim da teoria. Não se trata de um diagnóstico pessimista geral e da despedida da produção de conhecimento em si, mas apenas do seu próprio distanciamento de certas de suas modalidades, praticadas exageradamente a favor do refinamento do instrumental analítico e da argumentação dedutiva. Cito na íntegra os argumentos de sua opção pessoal que encerram o seu posfácio à coletânea: Com este espírito, pretendo marcar, neste texto, a minha despedida de futuras produções teóricas. Não simplesmente por considerá-las “ilegítimas”, mas por querer me concentrar, nos anos que ainda me restam para escrever, nas possibilidades discursivas que emergiram em nosso novo cronótopo – e delas não faz parte a “teoria” (GUMBRECHT, 2012a, p.236).

Esta transferência de acento, já presente em diversos prenúncios anteriores marca significativamente a sua contribuição à Festschrift celebratória online dos 198


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60 anos de vida de Siegfried J. Schmidt (GUMBRECHT, 2000). O sugestivo título “Be quiet for a moment” remete a uma discussão autorreflexiva similar dedicada a definições e vínculos entre formas artísticas e a produção e aquisição de conhecimento, que dão relevo – pela grafia em itálico – a uma opção particular: “how one wants to have the relation between Art and (the production/ acquisition of) Knowledge”. Em sua justificativa, este desejo “obliges me – more immediately at least than the general question – to talk about aesthetic experience itself ”, por ele identificada como “sensual experience” ou “sense perception” (GUMBRECHT, 2000, s/p.). Dirigida explicitamente ao homenageado, Siegfried Schmidt, a sua posição antecipa, de algum modo, o seu próprio afastamento de uma teorização comprometida com uma racionalidade incompatível com formas de pensamento sensível. If I now ask myself how I want the relation between “Kunst” and “Erkenntnis”, I will say (unsurprisingly, for Siegfried at least, I bet) that I hope that art can give me a break from Erkenntnis – so much so indeed that I am prepared to hail and celebrate as art whatever will give me such releave (GUMBRECHT, 2012a, s/p.).

Visto nesta ótica particular, “it is extremely difficult not to produce new concepts all the time [...] this, after all, is how we spend our lives.” É na arte ou em “whichever source” que ele deposita assim a esperança “to be quiet for a moment, to be without the need of producing new concepts all the time and of transforming myself yet again.” (GUMBRECHT, 2000, s/p.). Uma imagem claustrofóbica do ambiente do seu escritório – no centro a escrivaninha rodeada de pilhas de livros de referência à história dos conceitos do último triênio do século XX – sintoniza com o estado de espírito de despedida de testemunhos monumentais de uma época das ciências que já acabou, de um pensamento cronologicamente ainda próximo, “mas intelectualmente parece-nos quase tão distante quanto o período do Renascimento ou Barroco” (GUMBRECHT, 2012b, p.16). O distanciamento vivido sem melancolia – “Poder participar da construção dessas pirâmides era para mim uma honra que me fazia ascender a um cientista completo.” (GUMBRECHT, 2012a, p.17-18) – é saudado, antes, como abertura para o imenso leque de possibilidades na zona intersticial do encontro entre pensamento racional e sensível, com forte inclinação para o polo do sensorial e corporal da 199


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experiência estética. É desta exposição às formas artísticas “I got a glimpse of Gelassenheit by getting a break from producing Erkenntnis”, como ele diz, e é nestes momentos “you may feel how you begin to let things come, how you cease to ask what they mean and you become part of them.” (GUMBRECHT, 2000, s/p.). Este clima epistemológico contemporâneo, marcado por um “oceano de opções livres” (GUMBRECHT, 2012c, p.57) favorecendo aberturas para dimensões de realidades que se presentificam sem ser conceitualmente traduzíveis pela linguagem, alimenta a sua prática teórica estética atual. À dança, um dos casos acalantados que escapa ao entendimento conceitual único pelo discurso e demanda a própria presença material do corpo para a sua apreensão visual sensível, é dedicado o ensaio “Graciosidade e jogo: por que não é preciso entender a dança” que ilustra criativamente esta nova configuração graciosa do pensamento que se apropria de todos os registros disponíveis, da teoria à experiência artística (GUMBRECHT, 2012c). Para Siegfried Schmidt, as encruzilhadas que demandam escolhas pontuais e intermitentes entre extremos nunca existiram, porque elas encontram abrigo em seu modelo da dupla escrivaninha. A polaridade não se coloca como dilema, seja como submissão ao outro, seja como sua eliminação. Ele transita pela multiplicidade dos intermediários e abraça seus polos opostos, ainda que no modo de oscilação e contingência na distribuição dos pesos entre o acadêmico, o poeta e o artista visual, como atestado em suas recordações de 40 anos de vida dupla. No programa Menschenbilder (Retratos de humanos), da rádio austríaca ORF, Schmidt contava que queria ser pintor enquanto o pai idealizava uma profissão mais séria para o filho – como professor do ensino básico com aposentadoria garantida. Na universidade, para custear os estudos de filosofia e filologia, ele pintava casas antigas e fazia retratos de senhoras. Ao mesmo tempo participava dos movimentos da poesia concreta, visual e conceitual para entender a linguagem não apenas do ponto de vista filosófico e linguístico, mas para investigar e praticá-la igualmente “numa ótica artística” (SCHMIDT, 2006). Os seus constructos de memória, chamados “minha vida” (SCHMIDT, 2012, p.i), não pretendem ser um balanço, mas antes lampejos das lembranças pessoais das experiências vividas nas transformações artísticas, científicas e biográficas nos quarenta anos de sua trajetória acadêmica (1965-2005), e dos caminhos paralelos da arte, literatura, ciência 200


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e filosofia, condensados em uma vida de acasos e riscos. Fora dos muros do espaço disciplinar universitário, o pêndulo se inclina com vigor para um fazer científico estético, em que o pensamento sensível e a materialidade do visual adquirem dimensões ímpares. Um olhar sobre o livro Passagen-Transitions-Hyper (SCHMIDT, 2014), editado por Andreas Hapkemeyer a pedido do museu de arte moderna e contemporânea Museion, em Bolzano, perturba o leitor-espectador porque, prenunciado no próprio título, tudo nele é hiperlativo, em trânsito e estado de emergência, e, por isso mesmo, à espera de processos de tentativa e erro na formulação de eventuais respostas. Em sua apresentação, a diretora do museu, Letizia Ragaglia, não destaca apenas o valor singular da publicação, mas dá contornos precisos à sua inserção na cena intelectual e artística contemporânea, onde as múltiplas e complexas questões levantadas de fato importam: Passagen-Transitions-Hyper é um livro de artista do teórico da literatura e da comunicação, filósofo, escritor e artista Siegfried J. Schmidt. A peculiaridade do livro reside nos cruzamentos surpreendentes experimentados não apenas entre formas discursivas e imagéticas muito distintas, mas também entre ciência e arte em sentido mais amplo (RAGAGLIA, 2014, p.7).

Ocupando simultaneamente domínios da literatura, das artes visuais e da crítica filosófica em forma de colagem diacrônica, nele coabitam ensaios, cartas, poesia visual, dedicatórias, aforismos, micro-dramas, pequenos poemas filosóficos, peças radiofônicas, desenhos, diagramas, fórmulas, trabalhos coletivos, fotografias, reproduções de objetos. A máxima estética privilegiada corresponde, neste sentido, a uma estética da cópia e da cópia da cópia. A cópia como princípio da composição repetidamente discutido em textos de caráter filosófico e teórico – a cópia é o original da realidade da cópia – encontra nesta publicação a mais perfeita realização. Hapkemeyer apresenta este princípio estético presente em todo o volume com o sugestivo título “mein denken, mein gehirn: eine bibliothek, die keinen katalog besitzt” (“meus pensamentos, meu cérebro: uma biblioteca sem catálogo”): Quase todas as páginas exibem as típicas margens pretas de cópias, alguns textos são cortados, outros parecem desfocados. [...]. Na maior parte trata-se de cópias de 201


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textos e imagens de publicações já existentes e de antigos manuscritos. O conjunto é regido pelo princípio da colagem (HAPKEMEYER, 2014, p.9).

O gesto iconográfico, intensificado – sem minimizar necessariamente estruturas narrativas e conteúdos referenciais – em proveito da ocupação gráfica do espaço, domina este livro teórico artístico. Em todos os momentos Schmidt, poeta e artista, surge como cientista e o cientista assume-se poeta ou artista. O poeta e o teórico da ficção, e o artista e teórico da arte ocupam a mesma escrivaninha. O jogo estético experimental com a materialidade visual das palavras demanda do receptor-espectador-leitor operações simultâneas complexas e uma participação ativa na construção do diálogo com textos e imagens. O apelo à imaginação e à sensibilidade nesta prática artística coloca, assim, em planos contíguos modos comunicativos distintos promovendo a emergência do dizer como evento do mostrar. Cruzamentos Os caminhos de Niklas Luhmann, Siegfried J. Schmidt e Hans Ulrich Gumbrecht se cruzaram em diversos lugares e momentos ao longo da vida dos três. Desde o início de suas carreiras acadêmicas eles ocuparam espaços disciplinares em universidades próximas, no Estado da Renânia do Norte-Vestfália, criadas no pós-guerra alemão e no espírito das Reformas Universitárias do final da década de 1960: Bielefeld (Luhmann e Schmidt), Siegen (Schmidt e Gumbrecht) e Bochum (Gumbrecht). A teoria sistêmica de Luhmann, que oferece instrumentos de analisar sociedades modernas hipercomplexas como sistemas autopoiéticos em constante transformação, nunca deixou de ser um interlocutor – explícito ou reticente – para Schmidt e Gumbrecht em suas investigações do mundo contemporâneo em suas expressões culturais e artísticas. O pensamento de risco e os conceitos de latência, emergência e contingência atravessam a sua própria reflexão crítica, e seus pressupostos filosóficos, teóricos e estéticos deixam suas marcas nas respectivas formas discursivas e imagéticas de seus modelos de comunicação.

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TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA, CIBORGUES E INFERÊNCIA ABDUTIVA João Queiroz Pedro Atã

Ciborgue cognitivo: "A mente está lá fora!" Humanos são ciborgues inatos, criaturas simbiontes "cujas mentes e selfs estão distribuídos pelo cérebro e por circuitarias não-biológicas." (CLARK, 2003, p.3). Esta tese está relacionada a nossa capacidade para estender a cognição através de dispositivos não-biológicos e para acoplar atividades cognitivas com operações baseadas em ferramentas e artefatos, criando sistemas externos e distribuídos. Literalmente, "a mente está lá fora!" (WHEELER, 2005, p.193); "a mente está cada vez menos na cabeça!" (CLARK, 2003, p.4). Nossos corposmentes vivem acoplados a uma parafernália de ferramentas e artefatos para alterar a percepção, a atividade motora, a memória e muitas outras competências. Não estamos falando de ciborgues como criaturas que resultam de implantes digitais ou eletrônicos, os cyberpunks. Esta tese não é uma metáfora epistêmica, e o acoplamento, invasivo ou superficial, de corpos-mentes com diversos aparatos tecnológicos não se baseia em casos historicamente contingentes ou em situações especiais e contemporâneas. Não há pós-humanidade nesta propriedade, como defendido por muitos autores (HALBERSTAM; LIVINGSTON, 1995). Trata-se de um processo evolutivo, e biológico (STERELNY, 2004). “Tecnologia” não se aplica apenas a dispositivos mecânicos ou eletrônicos, como o termo é muitas vezes usado, mas a diversos tipos de artefatos distribuídos em atividades externamente situadas. Eles integram nossas vidas – alteramos estados da consciência e da atenção através de drogas farmacológicas; congelamos o pensamento através de sistemas de notação; organizamos, comparamos, calculamos, prevemos através de números, mapas, grafos e diagramas. Ferramentas como lápis e papel, ábaco, calculadora, calendário, modelos matemáticos, listas de compras, sinais de trânsito, 205


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unidades de medida, línguas naturais, etc. são os artefatos (externos ou internos, invasivos ou não, abstratos ou materiais) que constituem o que chamamos de mente e de cognição (HUTCHINS, 1995). Não são entidades ou processos que fazem parte da cognição, são a própria cognição. Vivemos – construtores de nichos cognitivos (CLARK, 2010) – imersos neste espaço construído para pensar. Quando alteramos a constituição de nossos ambientes de artefatos, abrimos novos nichos cognitivos (MAGNANI, 2007; SINHA, 2015) e originamos novos padrões de atividade semiótica. Eles, por sua vez, atuam em um feedback positivo sobre os próprios artefatos em um processo acumulativo de construção de nicho (LALAND; SMEE; FELDMAN, 2000). Esta abordagem é parte central de um paradigma em Ciência Cognitiva chamado “cognição distribuída e situada” (MENARY, 2010; WHEELER, 2005). Ele opõe-se à metáfora da mente como sistema de processamento computacional neurobiologicamente implantado de representações simbólicas. Ao contrário, a abordagem concentra-se na distribuição da cognição através de material externo não-biológico. Consequentemente, esta abordagem rejeita os limites bem definidos do corpo e da cabeça para individualizar sistemas cognitivos. Surge um novo problema que é evitar um “inchaço cognitivo”, exagerando o tamanho e a generalidade dos sistemas. Se sistemas cognitivos não são indivíduos (um agente = um sistema cognitivo), como particularizá-los? Uma abordagem para este problema envolve a identificação de sistemas cognitivos em termos de tarefas cognitivas (DAVIES; MICHAELIAN, 2016). Qualquer agente ou artefato que participa do fluxo de informação relevante para a realização de uma tarefa cognitiva pode ser considerado parte de um Sistema Cognitivo Distribuído (SCD). Agentes e artefatos podem simultaneamente participar de diversos sistemas cognitivos distribuídos. Se os fluxos de informação entre entidades são realmente usados para uma tarefa, então essas entidades, independentemente de estarem dentro ou fora dos agentes, podem ser consideradas partes do mesmo SCD. Para Davies e Michaelian (2016), trata-se de um modelo com fácil ampliação e redução de escala. Tarefas cognitivas podem ser divididas em sub-tarefas, partes de tarefas mais gerais com objetivos globais. Como as tarefas definem os sistemas, ao escaloná-las para cima e para baixo, pode-se determinar a circuitaria ou parafernália envolvidas. Um SCD pode ser definido como incluindo apenas um agente humano em interação com um artefato externo atuando em uma tarefa, ou pode ser reduzido para incluir apenas algumas das estruturas 206


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no cérebro de um agente atuando em uma sub-tarefa. Ela também pode ser ampliada para incluir mais de um agente, ou uma comunidade de agentes. Um agente pode participar em diferentes SCD, e um SCD pode incluir vários agentes. Por exemplo, Nersessian et al. (2003) descrevem um laboratório de pesquisa biomédica como um SCD, onde o próprio laboratório é um espaço de problemas que incorpora diversos procedimentos e restrições a partir de um programa de investigação. Os autores reconhecem que o uso da noção de espaço do problema, neste contexto, difere da noção tradicional de espaço de busca representado internamente. O espaço do problema de um laboratório de pesquisa inclui pesquisadores, artefatos, dispositivos e equipamentos de observação, livros, artigos científicos, materiais on-line, problemas específicos e relações entre problemas. Agentes individuais acoplam-se, tornando-se parte constitutiva deste sistema. Um movimento estético também pode ser descrito como um SCD. A poesia concreta, por exemplo, em uma primeira fase orientada por um plano-piloto de experimentação radical, é um SCD em que fluxos de informação entre os agentes do movimento (especialmente Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari), os instrumentos e as ferramentas (tais como o espaço branco da página impressa como componente paralinguístico sintaticamente estruturante), e diversos meios externos de representação (tais como certas famílias de fonte tipográfica disponíveis) são parte relevante da solução de tarefas que requerem processamento cognitivo complexo (poesia visual que sucede o ciclo do verso). Esta abordagem (cognição distribuída) tem grande impacto sobre um programa de pesquisa em arte e literatura, especialmente quando relacionado à criatividade, porque enfrenta premissas aceitas como inequívocas de um internalismo em muitos níveis de descrição – dos processos mentais do gênio criador, muitas vezes patologicamente comprometido (gênio depressivo, maníaco ou esquizofrênico), às circuitarias do seu cérebro. Este impacto ainda não foi observado. O que faremos aqui é bastante preliminar. Em nossa argumentação, a tradução intersemiótica é uma ferramenta ou artefato acoplado ao tradutor para gerar ideias novas e concorrentes em sistemas-alvo. Nas próximas seções, vamos definir brevemente tradução intersemiótica e semiose, baseados na semiótica de C.S.Peirce, para introduzir a noção de tradução intersemiótica como artefato cognitivo. Ao final, vamos especular sobre o papel do raciocínio abdutivo na criatividade distribuída. 207


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Tradução intersemiótica Tradução intersemiótica (TI) foi definida por Roman Jakobson como “transmutação de signos – uma interpretação de signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais” (2000 [1959], p.114). Após a definição de Jakobson, a aplicação do termo tornou-se mais ampla e designa relações entre sistemas de diferentes naturezas, não se restringindo à interpretação de signos verbais (QUEIROZ; AGUIAR, 2015). Consequentemente, este processo é observado em vários fenômenos semióticos, incluindo literatura, cinema, HQs, poesia, dança, música, teatro, escultura, pintura, vídeo e outros. O conceito se superpõe a muitos outros como adaptação, ekphrasis, transposição e transmediação. Não vamos discutir as diferenças, muitas vezes sutis, entre eles. Basta, por enquanto, afirmar que a noção de tradução intersemiótica (TI) está necessariamente ligada à noção de semiose (ação do signo), de C.S.Peirce,1 e baseia-se em seus princípios lógicos e epistemológicos. A pergunta sobre o que é tradução intersemiótica? está, portanto, relacionada a pergunta o que é semiose? Algumas noções da semiótica de C.S.Peirce Peirce, sob forte influência de Kant, de quem se auto-designou por muito tempo um “devoto” (CP 4.2), e baseado numa revisão da “lógica dos relativos” (CP 5.469), desenvolveu um sistema filosófico (Fenomenologia, Lógica, Metafísica) rigorosamente estruturado em uma teoria das categorias. A semiótica, que ele definiu como uma espécie de lógica, é uma ciência da natureza essencial e fundamental de todas as variedades possíveis de processos semióticos (ATKIN, 2016; FARIAS; QUEIROZ, 2017). Ela fornece (i) um modelo geral da semiose (FISCH, 1986) e (ii) uma lista de variedades fundamentais de signos (FREADMAN, 2001). Para Peirce, a semiose (ação do signo) é uma relação constituída por três termos irredutivelmente conectados – signo, objeto, interpretante (ou o efeito sobre um intérprete), seus elementos constitutivos (CP 5.484, EP 2: 171) (ver imagem 1).

1 A obra de Peirce é citada como CP (seguido pelo número do volume e parágrafo), The Collected Papers of Charles S. Peirce, Peirce 1866-1913; EP (seguido pelo número do volume e página), The Essential Peirce, Peirce 1893-1913; W (seguido pelo número do volume e página), Writings of Charles S. Peirce, Peirce 1839-1914); MS (seguido pelo número do manuscrito), Annotated Catalogue of the Papers Of Charles S. Peirce.

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[...] um Signo pode ser definido como um Meio para a comunicação de uma Forma. Como um meio, o Signo está essencialmente em uma relação triádica, com seu Objeto que o determina, e com seu Interpretante que ele determina. […] Aquilo que é comunicado do Objeto através do Signo para o Interpretante é uma Forma; significa dizer, não é nada como um existente, mas é um poder, o fato de que alguma coisa aconteceria sob certas condições. (EP 2: 544, n. 22).

Imagem 1: Notem que trata-se de uma tríade, não de um triângulo. Esta diferença é relevante uma vez que na tríade os três termos estão irredutivelmente relacionados, enquanto num triângulo dois vértices estão ligados independentemente do terceiro (Merrell, 1997).

Forma é definida como tendo a natureza do “predicado” (EP 2.544) e é pragmaticamente formulada como uma proposição condicional afirmando que certas coisas aconteceriam, ou deveriam acontecer, sob certas circunstâncias (EP 2.388). Há, nesta tese, uma importante pressuposição metafísica, embora ela seja formalmente independente de qualquer tese metafísica - realidade das tendências e disposições. A forma comunicada do objeto para o intérprete através do signo não é uma “coisa”, mas um “hábito”, uma “regra de ação” (CP 5,397, CP 2.643), uma “disposição” (CP 5.495, CP 2.170), ou um “potencial real” (EP 2.388). Ela exibe a natureza de uma qualidade geral real. Outra consequência da noção de semiose (ação do signo) como um hábito comunicado do objeto para o intérprete através da mediação do signo é que ela nos permite conceber significado, ou significação, em uma moldura processista, ou processualista, não substancialista (QUEIROZ; EL-HANI, 2006). 209


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Outra importante formulação é que S, O e I não são definidos por quaisquer atributos intrínsecos. Suas ontologias dependem dos papéis funcionais que ocupam na tríade. Se a ação do signo é um processo triádico-dependente, no sentido de conectar irredutivelmente S, O, e I, o papel funcional de S só pode ser identificado numa relação de mediação que estabelece entre O e I. E não podemos inferir os papéis de S, O e I de quaisquer relações diádicas (S-I, S-O, ou I-O). Tradução intersemiótica como semiose Se uma tradução é um processo semiótico, o que é uma boa suposição, a descrição de uma tradução intersemiótica deve corresponder a uma descrição da semiose. Numa tradução, a relação S-O-I descreve como uma fonte é traduzida em um sistema semiótico alvo. Há duas formas de modelar fonte e alvo em S-O-I (QUEIROZ; AGUIAR, 2016; AGUIAR; QUEIROZ, 2013): (i) a fonte é o signo (S) e o alvo é o intérprete (I) (modelo 1, imagem 2), (ii) a fonte é o objeto (o) e o alvo é o signo (S) (modelo 2, imagem 3):

Imagem 2 - Modelo 1: Neste caso, a fonte é um signo que determina um efeito, o alvo da tradução. Este modelo representa graficamente o objeto da fonte, mas não o efeito do alvo em seus intérpretes. Ele descreve como, através de (ou “por meio de”) uma fonte, um certo padrão de restrições (objeto) atua sobre um sistema produzindo um alvo.

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Imagem 3 - Modelo 2: Neste caso, o signo é o alvo da tradução. Ele faz a mediação entre uma fonte, determinando um efeito no sistema cognitivo, que é um intérprete. Este modelo representa graficamente o efeito do alvo em um sistema cognitivo, mas não o objeto da fonte. Ele descreve como, através de um alvo, que é uma tradução, uma fonte restringe um comportamento interpretativo.

Quais são as implicações que resultam dos modelos 1 e 2? Eles não constituem modalidades distintas de tradução intersemiótica, mas exibem diferentes perspectivas de um mesmo fenômeno. No modelo 1, a fonte tem o papel funcional de signo e inclui seu objeto. Ele exibe como o objeto da fonte é triadicamente dependente do alvo. Diferentes traduções intersemióticas de uma mesma fonte podem revelar diferentes objetos. Além disso, no modelo 1 o sistema-alvo cumpre o papel funcional de um intérprete. O modelo 2 mostra o alvo no papel funcional de signo e inclui o intérprete. O objeto da tríade é a fonte da tradução. O exemplo de um sistema cognitivo, como interpretante, é uma audiência. Assim, o modelo 2 captura a noção de que uma obra é percebida ou reconhecida como tradução de outro trabalho. Tradução intersemiótica como artefato Uma das funções da tradução intersemiótica, explorada por artistas criativos, é tirar proveito da diferença entre fonte e alvo semióticos para gerar ideias novas e surpreendentes, que competem no sistema alvo. São abundantes os casos historicamente exemplares, fazendo parecer que a emergência de novos paradigmas depende mais crucialmente deste fenômeno do que de qualquer outro. Para falar apenas do século XX – Gertrude Stein, e todo cubismo literário, 211


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traduzindo Cézanne e Picasso; Klee traduzindo a estrutura polifônica musical; Cage traduzindo Stein; Cunningham traduzindo procedimentos usados na música indeterminada de Cage; Feldman traduzindo Rothko; Augusto de Campos traduzindo Webern; Eisenstein traduzindo a sintaxe ideogramática do chinês; Oswald de Andrade traduzindo procedimentos de composição e montagem cinematográficos; Orson Welles traduzindo Kafka; Godard, e Bill Viola, traduzindo Tintoretto. Esta lista está longe de ser exaustiva. Em uma tradução intersemiótica, transformações em cascata acontecem no sistema-alvo. Certos princípios, que funcionam para regular um espaço conceitual são alterados ou parcialmente abandonados, em favor de um conjunto diferente de princípios reguladores. Um “espaço conceitual” é estabelecido através de “um conjunto de constrangimentos, que permite a geração de estruturas dentro desse espaço [...]. Se um ou mais desses constrangimentos é alterado (ou abandonado), o espaço é transformado. Ideias que previamente eram impossíveis (relativas ao espaço conceitual original) se tornam concebíveis” (BODEN, 1999, p.352). O sistema-fonte, em nossa análise, funciona como um tipo de modelo generativo. Em uma tradução, certas escolhas e decisões podem criar uma transformação em um espaço conceitual do sistema alvo. Neste caso, em termos semióticos, uma transformação em um espaço conceitual ocupa o papel funcional de signo, e a fonte o papel funcional de objeto. O intérprete, que é o efeito da transformação, é um novo espaço conceitual (ver imagem 4).

Imagem 4 - TI como um artefato generativo. A relação fonte-alvo produz transformações adicionais que (potencialmente, no futuro) conduzem a um espaço conceptual diferente.

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Pensamento criativo com signos e o papel da inferência abdutiva A noção de inferência abdutiva pode ajudar-nos a descrever a tradução intersemiótica como artefato cognitivo. Mas nossa abordagem deste tópico, nessa seção, deve funcionar como uma sugestão para futura investigação. Uma classificação das inferências lógicas é desenvolvida por Peirce no domínio da ciência normativa da lógica (DE WAAL, 2013). Neste domínio, a abdução é descrita como o primeiro passo de uma descoberta, e como mecanismo de geração de hipóteses para explicação de fatos surpreendentes. Inicialmente, Peirce descreve, por meio do silogismo, a abdução como uma forma “fraca” de inferência (CP 2.625, 1878), de “raciocínio provável” (CP 5.349; CP 2.709). Mais tarde ela passa a ser associada a processos cognitivos e até fisiológicos, responsável pela produção dos “elementos sensórios do pensamento” (CP 2.643; W 1:4712). Numa fase madura, Peirce reconhece ter confundido a abdução com uma forma de indução (CP 8.227-228), e sugere que se trata de uma modalidade ainda mais fraca de inferência do que havia inicialmente suposto, relacionada a “sugestões” e “plausibilidades”. O fato é que Peirce, e muitos especialistas em sua obra, oscila continuamente entre diferentes posições sobre a estrutura e o papel, lógico e cognitivo, da abdução. A questão mais crucial é entender como os cientistas encontraram boas hipóteses na história da ciência, para explicar fenômenos surpreendentes. É uma suposição razoável que isso não aconteceu por acaso (CP 7.220), e nem haveria tempo para isso (CP 5.591). Mas atua na abdução um forte componente de indeterminação e acaso (CP 2.89-102). Como a geração de hipóteses está, lógica e cognitivamente, relacionada com tais componentes? Há outras questões. Se ela está associada a uma forma de instinto (CP 7.220), ou de adivinhação (CP 7.219), pode ainda assim ser considerada uma inferência lógica? Trata-se de uma modalidade autônoma de inferência, ou é parte da indução ou da dedução? Como, e porque, é mais dependente de processos icônicos do que de processos simbólicos ou indexicais? Nós lidamos aqui com um contexto aparentemente distinto, e ainda inexplorado: inferência abdutiva em arte e literatura. O fenômeno parece estar mais relacionado a própria produção de eventos e padrões surpreendentes, do que a suas explicações. Uma hipótese subjacente nessa abordagem, da noção de inferência abdutiva em artes, é que ela é altamente distribuída, possivelmente não estruturada (inferência fraca) e parte de um conjunto de operações semióticas 213


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imprevisíveis.2 Estas premissas estão, de um lado, em desacordo com uma visão também conhecida em filosofia da ciência – a de que não pode haver uma lógica da descoberta, apenas uma lógica da justificação –, e de outro, que processos criativos (em arte ou ciência) fazem parte de um domínio proto-misterioso, em termos empíricos. Assim, a descoberta e a criatividade baseiam-se em processos não-racionais, e não podem fazer parte de um tratamento lógico, de um lado, e de investigação empírica, de outro. A questão que deve enfrentada: como sistemas distribuídos, manipulando uma rede morfologicamente variada de artefatos cognitivos, a fim de gerar um objeto ou processo artístico criativo, pode ser visto como inferencial? Conclusão Exploramos introdutoriamente três ideias fundamentais neste capítulo: (i) a cognição baseia-se na manipulação de entidades e processos externos, conhecidos como ferramentas mentais ou artefatos cognitivos, (ii) a tradução intersemiótica é uma operação semiótica, podendo ser descrita como semiose (sensu Peirce), (iii) trata-se de um artefato cognitivo para distribuição da criatividade através de inferência abdutiva. Reunidas, tais ideias sugerem uma abordagem muito distinta para o fenômeno da criatividade, em arte e literatura, e para o papel da tradução intersemiótica como um artefato para alterar (ou gerar) um espaço conceitual em sistemas-alvo.

Referências bibliográficas AGUIAR, Daniella; QUEIROZ, João. Semiosis and Intersemiotic Translation. Semiotica, v. 196, 2013, p.283-292. ATKIN, Albert. Peirce. New York: Routledge, 2016. BODEN, Margaret A. Computer Models of Creativity. In: STERNBERG, Robert (ed.). Handbook of Creativity. New York: Cambridge University Press, 1999, p.351-372. 2 Tais atributos também parecem caracterizar a geração de hipóteses científicas. De fato, sem uma generalização semiótica da noção de inferência lógica, qualquer analogia (arte – ciência) não funcionará adequadamente.

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TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA, CIBORGUES E INFERÊNCIA ABDUTIVA

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ESCREVENDO REALIDADE: ESTRATÉGIAS DE PRESENÇA E INSCRIÇÃO NA CULTURA BRASILEIRA E CONTEMPORÂNEA Karl Erik Schøllhammer

Num ensaio do início da década de 1970, “Kool Killer ou a Insurreição Pelos Signos”, o sociólogo francês Jean Baudrillard escolheu Nova Iorque como exemplo de uma cidade industrial e produtiva, em que as relações históricas com a produção de mercadorias estavam chegando a seu fim, em que a produção foi exterminada ou descentralizada, levando a cidade a não ser mais o espaço-tempo de relações sociais sustentadas no mercado para tornar-se o regime semiocrático do poder da codificação social em si. A revolta radical nestas condições, observa Baudrillard, está inicialmente em dizer: “Eu existo, eu sou tal, eu habito esta ou aquela rua, eu vivo aqui e agora”. Mas isso ainda seria apenas a revolta da identidade: combater o anonimato reivindicando um nome e uma realidade próprios. Os grafites vão mais longe: ao anonimato eles não opõem nomes, mas sim pseudônimos. Eles não buscam sair da combinatória para tentar reconquistar uma identidade de todo modo impossível, mas para voltar a indeterminação contra o sistema – transformar a indeterminação em exterminação. Retorsão, reversão do código segundo a sua própria lógica, no seu próprio terreno, e vitoriosa em relação a ele por superá-lo no irreferencial (BAUDRILLARD, 1979, p.315).

Nos meados dos anos 1970, esse movimento já deixou de existir em Nova Iorque; mas em São Paulo, a maior área urbana no Brasil com mais de 20 milhões de habitantes, as primeiras intervenções de grafite apareceram em 1979 e, nas décadas seguintes, tornaram-se uma manifestação forte da cultura urbana junto com outros movimentos como o hip-hop, o surf de trem e o skate. Meu objetivo, hoje, é enfocar no equilíbrio difícil entre inscrição como busca de identidade, por um lado, e, por outro, a resistência no anonimato. Nas artes 217


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visuais e na literatura brasileira contemporânea, mostrarei alguns exemplos de escrita em que a formação de uma territorialidade coletiva simbólica e rebelde, como Baudrillard enxergou na paisagem urbana pós-moderna dos anos 1970, hoje é substituída por uma escrita com outra demanda de singularidade e documentação. Uma escrita em que o predomínio do espaço urbano é substituído pela temporalidade de acesso aberto da mídia social e comercial e em que a turbulência intensiva das representações provoca novas demandas de inserção e presença em tempo real. É bem conhecido como a mídia social tem sido identificada com uma nova centralidade de encenação e exposição individual num espaço público muito diferente daquele que Habermas idealizou como a esfera pública burguesa do século XVIII. O fenômeno da auto-ficção tem sido identificado, na literatura contemporânea, com uma nova legitimidade do pronome pessoal da primeira pessoa Eu enquanto âncora para uma verdade testemunhal da experiência individual. O que quero discutir aqui é como o ato de escrever no contemporâneo pode ser visto não apenas como um gesto de inscrição e assinatura individual, mas também como a construção do segredo pseudonímico e como parte da inserção performativa pela representação. Este tipo de documentalidade – a escrita de diários, anotações, opiniões nas mídias sociais etc. – sustenta a realidade social de atos e eventos individuais e muitas vezes foi analisada na perspectiva dos estudos da memória e da identidade. A segunda parte do meu argumento é uma tentativa de discutir a temporalidade destas intervenções à luz da presentificação: o esforço de criar uma experiência de simultaneidade em que o ato de escrever torna-se parte da emergência da realidade, pertencendo tanto à representação quanto ao afeto da representação sobre a experiência social. Em 2011, muitos habitantes do Rio de Janeiro tomaram consciência da aparição de novas inscrições na paisagem urbana por meio de sinais e letras consistentes e reconhecíveis de um alfabeto misterioso e desconhecido. Intrigados pela consistência enigmática da escrita, dois estudantes de matemática usaram um algoritmo criptográfico para decifrar o conteúdo real das frases coletadas em todo o lado sul da cidade. Descobriu-se que a autora era uma mulher de 37 anos, Joana César, que inventou este alfabeto secreto quando tinha 12 anos e precisava proteger seus escritos mais íntimos. Uma vez identificada pelos matemáticos, já adulta, ela revelou à imprensa que havia se sentido obrigada a 218


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registrar o conteúdo exato de suas fantasias adolescentes em lugares públicos, como túneis, pontes ou paredes. Muitos compararam a jovem artista ao famoso “Profeta Gentileza”, um camionista que recebeu uma visão após o grande desastre de circo que ocorreu em Niterói em 1961, quando o Grande Circo Norte-Americano pegou fogo e foi reduzido a cinzas, deixando um pedágio de mais de 500 mortos, a maioria deles crianças. Depois deste terrível desastre, José Datrino, então com 44 anos, começou a dedicar sua vida a deixar inscrições de conteúdo moral em espaços públicos no Rio de Janeiro, sendo a mais famosa a frase Gentileza gera Gentileza. Quando morreu em 1996, Gentileza era uma personalidade amplamente conhecida no Rio de Janeiro, e muitos de seus escritos foram protegidos e preservados pelo município. Nos três casos – os artistas pichadores de grafite, Joana César e Gentileza – estamos lidando com intervenções no espaço público motivadas por intenções pessoais ou íntimas, mas com consequências políticas, éticas e estéticas. Aqui, vemos uma espécie de documentalidade (FERRARIS, 2013), definida por Maurizio Ferraris em oposição ao conceito de intencionalidade de John Searle e na tentativa de oferecer uma noção realista de objeto social e – como tal – uma categoria-chave de ontologia social. A escrita é mais forte do que a fala e, para o filósofo italiano, o conceito de documentalidade sustenta que a construção de objetos sociais se encontra no ato de registrar e está enraizada tanto na teoria do performativo como nos atos de fala de J.L. Austin e na teoria da inscrição de Derrida. O ato de gravar é dividido em três níveis hierárquicos de escrita capazes de trazer o pensamento ao mundo. Ferraris faz distinção entre traço, registro e inscrição. Traço é definido como uma simples intervenção na superfície, um índice que nos permite lembrar algo ausente. Registo, por sua vez, é a representação desse traço em nossa mente, enquanto inscrição é a exposição externa desta representação, que é o que lhe dá valor social e converte-o em um objeto comum de acesso coletivo. Por um lado, Ferraris se afasta do construtivismo e do poder espiritual de criar a realidade por meio da linguagem, sublinhando a necessidade institucional de documentos escritos para permitir que as intenções subjetivas se tornem realidade. Por outro, enfraquece a teoria da inscrição resumida na famosa frase de Derrida: Não há nada fora do texto (1967). Na versão realista de Ferraris, a sentença torna-se Não há nada de social fora do texto. Além da realidade social, Ferraris reconhece objetos naturais, que existem no espaço e no 219


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tempo independente dos sujeitos, e objetos ideais, que existem fora do espaço e do tempo independentes dos sujeitos; ambos muito diferentes dos objetos sociais cuja existência no espaço e no tempo depende dos sujeitos. Assim, é somente para objetos sociais que a teoria da documentalidade torna-se importante, obedecendo à equação “Objeto = Ato Inscrito”. Seguindo essa ideia, o que mencionamos nos exemplos anteriores é, por um lado, objetos sociais criados a partir da inscrição pessoal e muitas vezes íntima de vestígios na superfície da experiência urbana. Por outro lado, é fácil reconhecer que esta documentação não serve de base estável para as instituições, mas se esforça para subscrever a relação com instituições já estáveis ​​por meio de estratégias de segredo, ironia e antagonicidade. No caso dos pixadores de São Paulo, vale citar a Bienal de São Paulo de 2008, onde uma parte do espaço reservado para as atividades bienais foi mantida vazia pelos organizadores para discutir os desafios curatoriais da contemporaneidade; Talvez não surpreendentemente, esta área foi invadida por 40 pichadores que deixaram suas marcas nas paredes brancas do palácio de exposições no Parque do Ibirapuera. Uma jovem, Caroline Pivetta, foi pega e passou 54 dias presa por vandalismo. Em 2010, os organizadores bienais convidaram os mesmos pichadores para participarem da exposição com desenhos e pinturas em vez de pulverizadores. No caso de Joana César, do Rio de Janeiro, a divulgação pública de seu diário secreto exposto em formato criptográfico no espaço público da cidade pôs imediatamente fim às suas atividades nas ruas. O aspecto positivo deste fato é que ela recebeu convites de galerias de arte e começou uma nova carreira como pintora. Ela obteve sucesso muito limitado, sem nunca recuperar a força de suas atividades anteriores, em suas tentativas de recriar a expressão visual de suas inscrições de parede em grandes pinturas. Se voltarmos para a literatura contemporânea, outra questão torna-se relevante: o status da subjetividade que, obviamente, não pode ser entendido apenas como intencionalidade, sendo este o ponto principal da crítica de Maurizio Ferraris à teoria da Realidade Social de John Searle. Os sujeitos são também objetos do desejo e dos atos dos outros e podem se tornar imagens sociais por meio da representação da mídia ou de outras formas de construção biográfica e exposição. No caso do sujeito da escrita – o sujeito da documentação – o efeito da escrita não é apenas transitivo, mas também intransitivo, como sublinha o conhecido ensaio de Roland Barthes, com seu poder transformador 220


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sobre a subjetividade autoral. Discutiremos isso mais adiante, mas agora vamos apenas tirar uma amostra da narrativa brasileira contemporânea, em que uma legitimidade recuperada de narrativas em primeira pessoa e certa preferência pelas caraterísticas da auto-ficção foi reconhecida pelos críticos. Escolhendo três romances lançados nos últimos anos, tentarei chegar a uma compreensão mais profunda do que esse retorno a certa narrativa confessional ou testemunhal pode significar. Descobri que estava morto (2015), de João Paulo Cuenca, A vista particular (2016), de Ricardo Lísias, e Simpatia pelo demônio (2016), de Bernardo Carvalho. Trata-se de propostas muito diferentes, estilos diferentes e modos narrativos diferentes, mas todos os três com uma construção similar: um enredo ficcional envolvendo um personagem principal baseado na experiência biográfica do autor e uma narrativa histórica de fundo intimamente ligada a personagens factuais e eventos políticos recentes. No romance de João Paulo Cuenca, o narrador narra a história de “João Paulo Cuenca” em primeira pessoa e começa a narração com a frase: “Descobri que estava morto quando tentei escrever um livro. Ainda não este livro”. O passado recente é assim narrado a partir da escrita presente para ganhar um efeito de presentificação. É como se os leitores estivessem seguindo as narrações que se tornam presentes através de nossa experiência de leitura simultaneamente com o presente de escrita. O narrador descobre que, em 2011, uma pessoa foi encontrada morta na posse dos documentos pessoais do narrador (e do autor), em um prédio abandonado ocupado por ocupantes ilegais no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Ele começa a investigar esse fato enigmático, e a evidência confusa que ele descobre aponta para um resultado fatal: o escritor acaba morto. Por um lado, um fim obviamente contrafactual ao saber que o autor sobreviveu, juntamente com a fascinante exploração de dados biográficos precisos retirados da vida real do escritor. Ao mesmo tempo, nos é apresentado um relato estreito e crítico das grandes reformas urbanas antes dos grandes eventos da Copa de 2014, dos Jogos Olímpicos de 2016 e a presente revelação de um enorme esquema de corrupção que levou o governador e seus colaboradores próximos à prisão. Partes da cidade foram gentrificadas, as favelas foram mantidas sob vigilância militar para melhorar a segurança durante os eventos, e bairros inteiros foram removidos para facilitar a construção das facilidades olímpicas. Também no romance de Ricardo Lísias, os eventos contextuais são narrados com minúcia documental e descritos com precisão geográfica e temporal. O formato narrativo 221


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se assemelha a um script multimídia comparável a um story board. Apesar do desenvolvimento irônico da trama ficcional, o romance registra eventos e personagens quase em tempo real, o que compara a escrita à intervenção diária de uma crônica de jornal. Poderia também ser comparado com a temporalidade de registros escritos em mídias sociais, que, por sua vez, são simultâneos à representação de eventos históricos por meio da mídia. Sugiro ver essa estratégia de escrita como uma busca por presentificação, entendendo-se tanto como a reivindicação de uma temporalidade de imediação quanto como a criação de efeitos de presença sensível. A primeira dimensão é observada no imediato do processo criativo em si, comprometido pelo seu conteúdo, enquanto a segunda é expressa como um desafio para intervir na atualidade de um presente social e político complexo. Observamos como a distância entre criação e recepção é encurtada por plataformas tecnológicas: o escritor está on-line e a experiência dessa temporalidade acentua o aspecto performático de seu empreendimento. O livro ainda é o principal veículo da literatura contemporânea, mas a escrita do livro faz parte de seu conteúdo, não como uma moderna reflexão meta-literária sobre o poder da ficção, mas como uma apropriação da realidade visada por sua inscrição. O escritor, hoje, está empenhado em registrar sua própria criação em tempo real, refletindo publicamente o processo criativo e interagindo com uma rede de contingências de vida diária. Um tipo peculiar de auto-escrita aparece que nem uma montagem teatral do processo criativo. É uma espécie de registro etnográfico que acompanha a constelação de informação e representação em que ele mesmo está sendo inscrito e onde os claros limites entre ficção e realidade se tornam desfocados, criando o que Josefina Ludmer chamou realidadficção. A ficção ganha realidade, e a realidade da ficção muda de status tornando-se não uma realidade histórica, mas a vivida experiência da realidade da vida cotidiana no tempo-zero, nem submetida ao espaço nem à diferença entre próximo e distante, local e global, como Ludmer observa no exemplo da literatura latino-americana contemporânea. Para Ludmer, a tarefa da escrita é ser uma fábrica da realidade numa época em que sonhos e fantasias são explorados e expropriados pelos meios tecnológicos. A ficção encontra seu desafio em explorar a conversão de certas imagens em realidade, sublinhando, assim, sua dimensão performativa e afetiva. Em vez de uma esfera pública, sustentada na separação entre o individual e o social, a imaginação pública desprivatiza a privacidade ao expressar abertamente a experiência particular. “O público é o que 222


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está lá fora e o que está dentro, como o público-íntimo. Na especulação nada é preservado dentro, o segredo, a intimidade e a memória estão se tornando públicos.” (LUDMER, 2011, p.11). Quanto ao registro do passado, Ludmer escreve: Agora o passado é posto em presença e a temporalidade não é mais a história, mas a vida cotidiana: muitas narrativas assumem a forma de uma série de blocos de tempo com interrupções, fraturas e repetições. Os fragmentos fluem em uma série que não se unifica ou totaliza. Esta temporalidade (que parece ser a predominante) é o tempo de agora e para alguns também de presença pura e de realidade. É o tempo da vida diária, não o espaço, não o histórico, nem o filosófico nem o literário. É também a temporalidade e a forma da narrativa da mídia e do melodrama: um presente puro (densamente cheio de imagens em diferentes velocidades e graus) que expropria todo o passado em forma de nostalgia, memória e luto (LUDMER, 2011, p.77).

A documentação literária do presente projeta uma temporalidade virtual que mistura fatos de presença e eventos da imaginação com uma realidade que se torna profética ou, ao menos, aponta para a emergência como se fosse a lembrança de um presente aberto ao que aconteceu, ao que acontece e ao que acontecerá eventualmente. Mas quais são as condições reais para o sucesso de tal investimento na realidade da escrita literária? Estamos, obviamente, muito além das ambições modernas de realismo representativo tão frequentemente reestabelecido durante o século XX em diversas formas de novo realismo. Os desafios para este tipo de escrita questionam a própria autonomia da literatura em sua busca pela intervenção na realidade efetiva de um mundo circunstancial. Josefina Ludmer, polemicamente, denomina essa interdependência como escrita pós-autônoma disposta a suspender a questão do valor estético de seu empreendimento e submeter-se à determinação da realidade. Como tal, a escrita torna-se a suspensão da diferença entre sujeito e objeto e a portadora involuntária de uma experiência sem sujeito, o que está muito próximo do que Roland Barthes caracterizou como a escrita intransitiva (BARTHES, 1989, p.11-21) do modernismo em seu ensaio, de 1966, “Escrever: um verbo intransitivo”. O escritor escreve, mas é ao mesmo tempo escrito, um fenômeno descrito como Diáthesis, que Barthes afirma “designa a maneira pela qual o sujeito do verbo é afetado pela ação. Isso é óbvio para o passivo; E, no entanto, os linguistas 223


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dizem-nos que, pelo menos em indo-europeu, a oposição diatética não é entre ativa e passiva, mas entre ativa e média” (BARTHES, 1989, p.22). Barthes refere-se, aqui, ao famoso ensaio de Benveniste, “Voz Ativa e Média no Verbo” (1950), sobre a existência de uma voz média, nem ativa nem passiva, como no verbo sacrificar em sânscrito, em que ele nota uma diferença entre a forma do verbo ao falar sobre o sacrifício de outro e outra ao lidar com o sacrifício de si mesmo. Barthes observa que “a média voz corresponde exatamente ao estado moderno do verbo escrever: escrever é hoje tornar-se o centro da ação da fala, é efetuar a escrita afetando-se, fazer coincidir ação e afeto, deixar o scriptor dentro da escrita - não como um sujeito psicológico (o sacerdote indo-europeu poderia perfeitamente estar transbordando de subjetividade enquanto sacrificando ativamente por seu cliente) - mas como agente da ação” (BARTHES, 1989, p.18). É bem conhecido como este ensaio teve uma forte influência sobre os primeiros estruturalistas e sobre Jacques Derrida, que o invocou em 1968 em seu ensaio sobre o conceito différance, e que ele identifica como uma operação que não pode ser concebida nem como paixão, nem como ação de um sujeito sobre um objeto (DERRIDA, 1991). Para Derrida, a média voz representava certo estado intransitivo de pensamento ou filosofia que só através da repressão se constituía como ativo ou passivo. O modernismo expressou essa visão crítica do sujeito da escrita rejeitando a ideia de uma entidade romântica anterior à sua expressão. No modernismo, a teoria do sujeito da escrita expressiva foi constituída, de acordo com Barthes, por uma subjetividade imediatamente contemporânea com a escrita, sendo efetuada e afetada por ela. Esse seria o caso exemplar do narrador proustiano que existe somente por escrito. Subjacente a esta visão, o modernismo abraçou um ideal libertário de uma transgressão da distinção sujeito-objeto, permitindo assim o acesso ao que Benjamin chamou de experiência absoluta. É óbvio que o sujeito, na situação da escrita contemporânea, é completamente diferente. O que, no modernismo, pode ser visto como um acesso enriquecedor ao mundo e ao tempo por meio de uma escrita que precisava ser desvinculada da razão e da intencionalidade, no caso dos escritores contemporâneos, se expressa como disponibilidade, abertura, vazio ou, como diz Josefina Ludmer: tédio é a negação do desejo. No entanto, esse estado de espírito passa a ser, ao mesmo tempo, privado e público – intimamente-público – porque compartilha experiência com um grupo de outros ao mesmo tempo. É o que caracteriza o diagnóstico de Ludmer, o que ela chama de temporalidade cotidiana. No meio 224


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do ambiente de vida diário familiar, você pode viver eventos políticos externos como ficções privadas e você inscreve sua própria intimidade, o que ocorre a você no momento em registro público através de mídia tecnológica on-line e no tempo. O destino da modernidade e da sociedade do espetáculo, na visão soturna de Giorgio Agamben, é a alienação maciça. Mesmo assim, Agamben reconhece um potencial libertário no vazio provocado pela alienação, uma experiência da própria linguagem. A reversão da alienação pode acontecer no gesto autoral, porque, segundo sua leitura do ensaio de Foucault “O que é um autor” (1969), a subjetividade emerge no gesto. Ao invés de ser a expressão do sujeito, a escrita é “a abertura de um espaço em que o sujeito da escrita não deixa de desaparecer” (AGAMBEN, 2007, p.61). Para Agamben, esse desaparecimento é, de modo radical, sua potência dinâmica, e a subjetividade é, de certa forma, medida por sua semelhança com a autoria. É difícil de manter essa visão surpreendentemente otimista do vazio existencial da contemporaneidade quando se olha para exemplos da vida real onde a busca pela afirmação individual, ao invés de vaidade, parece expressar o desespero. Se os escritores contemporâneos da América Latina reinventam, na ficção, seu próprio conteúdo biográfico como matéria prima, não é por uma nova confiança romântica no eu e pela verdade da experiência vivida e sua expressão íntima, mas muito mais um reconhecimento da subjetividade como abordagem à conectividade, como um pacote biopolítico no tempo e no espaço que pode ser renegociado na ficção e tornar-se uma lente de interpretação ou até mesmo um ponto focal para a compreensão global. É o que se pode ver nos romances mencionados de Cuenca e Lísias, e o que acontece no romance Simpatia pelo demônio de Bernardo Carvalho, em que o personagem principal, funcionário da ONU, especialista em estudos de violência e enviado em missão para resgatar uma pessoa sequestrada pelo ISIS ou alguma organização desse tipo, só consegue entender em profundidade a violência e a submissão por meio da revelação íntima de sua relação homoerótica que, mesmo descrita em uma narrativa em terceira pessoa, obviamente é baseada na experiência biográfica e confessional da vida. Outro aspecto deve ser levado em conta para a compreensão desta aparição da figura do autor no mundo da ficção que não pode ser entendido apenas na clave do narcisismo intrínseco à cultura midiática. É preciso considerar o fato de que as fronteiras entre a realidade e a ficção, constantemente, são desafiadas e que isso não acontece apenas em função da ficcionalização da experiência 225


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histórica por via da cobertura em tempo real dos acontecimentos, mas também em consequência da procura literária e artística de inserção política na realidade. Os escritores e os artistas querem aparecer, intervir e mudar a realidade das coisas não apenas em efeito da precisão crítica de sua representação ou expressão estética. Querem que a própria criação literária ou artística aja de maneira diferencial e isso na medida em que a criação se torne o eixo real desta ambição. Nas artes contemporâneas, é, de certa maneira, mais visível, pois os artistas performam sua arte ou trazendo a política para dentro como tema e objeto ou se posicionando fora dos circuitos estritos dos museus e das galerias para se relacionar com comunidades, grupos, indivíduos e questões políticas. O aspecto relacional e performativo emerge assim como um dos traços definidores da arte contemporânea (LADDAGA, 2011). No caso da literatura, principalmente na ficção, o aspecto performativo é menos literal e mais ligado à questão linguística dos atos de fala e da referencialidade dêitica, embora sempre de maneira menos direta. Ricardo Lísias é uma exceção pela maneira que sua produção ficcional tem trazido reverberações na vida real e jurídica de maneira indesejada – quando foi processado por falsidade ideológica devido a um documento jurídico recriado no romance Divórcio (2013) – e desejada – quando aproveitou a mesma experiência na novela Delegado Tobias (2014) ou editou um relato sobre o tempo na cadeia do deputado Eduardo Cunha, Diário da Cadeia (2017) e assinado sob este mesmo pseudônimo. Sem entrar em detalhes nas discussões sobre o fenômeno da autoficção, sugiro que a aparição cada vez mais frequente da figura do autor, às vezes de maneira autoficcional, deve ser vista como sintoma de uma transformação mais fundamental que atinge a própria autonomia que caracterizava a arte e a literatura moderna e que aponta para um abrir mão da hegemonia do estético. O historiador e crítico de arte russo, Boris Groys, tem observado que o contemporâneo se caracteriza por um deslocamento da atitude contemplativa do juízo estético da obra, predominante na estética moderna, para uma posição de produção da arte que ressalta os aspectos técnicos e poéticos do fazer artístico (GROYS, 2010). Hoje, o público está mais interessado em virar produtor da imagem do que observador da imagem. Com a proliferação das plataformas globais de distribuição digital da internet e com o acesso facilitado a telefones celulares com câmeras, a perspectiva da produção da arte se sobrepõe à atitude estética de sua contemplação. Ao mesmo tempo, esta imagem é, em primeiro lugar, a imagem da pessoa que a produz, é a produção da imagem enquanto 226


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expressão do sujeito no campo estético que torna-se o objeto principal. Desde Nietzsche, o artista moderno é convocado a se tornar a própria obra de arte numa aposta ética que ressalta a forma da aparição do sujeito aos olhos dos outros. É uma espécie de self-design, diz Groys (2010), uma produção e posicionamento do sujeito enquanto imagem para os olhos do mundo. Se a religião estimulava a preocupação pela apresentação da alma aos olhos de Deus, hoje, o sujeito se interessa pela maneira que o corpo se confecciona para aparecer na paisagem política observada pelo público. Se essa preocupação sempre era parte da realidade de artistas, políticos e celebridades de todo tipo, com a ampliação das redes sociais, qualquer pessoa tornou-se objeto de contemplação estética e responsável pela maneira que aparece publicamente. Desta maneira, artistas e público se aproximam e se confundem, nem todos criam obras de arte, mas todos são artistas, e todo o mundo é destinado a se tornar seu próprio autor. Todos somos convocados a assumir a autoria de nós mesmos, desenhar a nossa própria aparição, imagem, ou forma estética para a contemplação geral do público. Essa autoria generalizada forma parte de outra mudança fundamental no papel das artes e da literatura no contemporâneo, que podemos, ainda com a ajuda de Groys, descrevê-la como um deslocamento do estético para o poético, do paradigma contemplativo, que determina a arte moderna desde a terceira crítica de Kant, para uma questão de poiesis, uma questão técnica da produção da obra, assim como se impunha para a poética de Aristoteles. Se a emergência da atitude estética em detrimento da poética foi relativamente recente, Groys sugere que já está na hora de recolocar o foco no aspecto poético, na análise das condições de probabilidade da produção artística. Já na culminação da arte de vanguarda, isso acontece no gesto de Duchamp, em que o objeto artístico perde sua importância na perspectiva do fazer ou gesto artístico que, ao mesmo tempo, ressalta o próprio artista enquanto finalidade da arte. Na arte contemporânea, as obras se apresentam como a encarnação de uma subjetividade sem qualquer conteúdo específico. O crítico argentino Reinaldo Laddaga observou que a literatura contemporânea almeja a condição das artes visuais contemporâneas, converte a narrativa em percurso interativo estimulado pela contingência de uma instalação de cenários, que em todo momento interroga a relação entre produção e recepção e traz a leitura para dentro da realização coletiva que tende abrir a contemplação individual e estética para sua potencialidade ética e comunitária. Se a modernidade literária, 227


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emblematicamente, destacou a leitura no lugar da criatividade produtiva da escrita (Pierre Menard), o contemporâneo parece trazer outra visão da escrita que já não é privilégio dos eleitos senão a mídia interativa por excelência, que negocia novas fronteiras entre construção subjetiva (autoria) e a participação na apropriação comum do já escrito como interação com o coletivo.

Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. AUSTIN, John Langshaw. How to Do Things with Words. The William James Lectures Delivered at Harvard University in 1955. Oxford: Oxford University Press, 1968. BAUDRILLARD, Jean. Kool Killer ou a Insurreição pelos signos. RIZOMA. NET-Arte&Fato, 2010. Disponível em: https//issuu.com/rizoma.net/docs/ artefato/318. BARTHES, Roland. [1966] To Write: An Intransitive Verb?. In:____. The Rustle of Language. Translation by Richard Howard. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1989, p.11-21. BENVENISTE, Émile. [1950] Active and Middle Voice in the Verb. In:____. [1966] Problems in General Linguistics. Translation by Mary Elizabeth Meek; Coral Gables. Florida: University of Miami Press, 1971, p.145-153. DERRIDA, Jacques. [1971] Margens da Filosofia. Tradução de Joaquim Torres Costa; António M. Magalhães. Lisboa: Papirus, 1991. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman; Renato Janinni Ribeiro. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1973. FERRARIS, Maurizio. Documentality: Why it Is Necessary to Leave Traces. New York:Fordham University Press, 2013. GROYS, Boris. Going Public. Berlin: Sternberg Press, 2010. LADDAGA, Reinaldo. Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. São Paulo: Martins Fontes, 2011. LUDMER, Josefina. Aqui, America Latina: Una Especulacion. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2011. 228


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Os livros do escritor alemão W. G. Sebald – prosas narrativas, como chamava – são sempre muito precisos, já em suas linhas iniciais, em localizar a história no tempo e no espaço. Vertigem, de 1990, começa com: “Em meados de maio de 1800, Napoleão e seus trinta e seis mil homens atravessaram o Grande São Bernardo, uma empreitada considerada até então como praticamente impossível” (SEBALD, 2008a, p.7). Os emigrantes, de 1992, diz: “No final de setembro de 1970, pouco antes de assumir meu cargo em Norwich, no leste da Inglaterra, eu e Clara fomos de carro até Hingham em busca de um lugar para morar.” (SEBALD, 2009, p.9). Os anéis de Saturno, de 1995, diz: “Em agosto de 1992, quando os dias de canícula chegavam ao fim, pus-me a caminhar pelo condado de Suffolk, no leste da Inglaterra, na esperança de escapar ao vazio que se alastra em mim sempre que termino um longo trabalho.” (SEBALD, 2010, p.13). E Austerlitz, de 2001: “Na segunda metade dos anos 60, viajei com frequência da Inglaterra à Bélgica, em parte por motivo de estudos, em parte por outras razões que mim mesmo não me ficaram inteiramente claras, às vezes apenas por um dia ou dois, às vezes por várias semanas.” (SEBALD, 2008b, p.7). É com muita atenção, portanto, que Sebald estabelece pontos iniciais de referência, de modo a intensificar o efeito da errância do narrador-protagonista ao longo das narrativas. O mesmo se dá na escolha das imagens intercaladas ao relato: aquelas posicionadas no início oferecem uma espécie de tonalidade que será desdobrada e variada no decorrer do relato – as imagens em Sebald não ilustram o romance, e sim estabelecem um relato suplementar, paralelo e simultâneo ao texto, que respondem a regras próprias que levam em conta perspectiva, foco, granulação, iluminação, corte e montagem. Em Austerlitz, o último romance de Sebald, publicado em 2001, as duas primeiras imagens 229


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do livro estão lado a lado, em páginas opostas, funcionando não apenas como ancoragem ao escrito, mas estabelecendo uma sorte de correspondência morfológica que demanda uma leitura. O narrador, contando de suas “excursões belgas” na “segunda metade dos anos 1960”, é “atormentado por dores de cabeça e maus pensamentos”, buscando refúgio no zoológico, no parque e, finalmente, no Nocturama, em Antuérpia, vendo “os diversos animais que levavam suas vidas sombrias atrás do vidro, à luz de uma lua pálida”. Desses animais mantidos no Nocturama, continua o narrador de Sebald, “só me ficou na lembrança que alguns deles tinham olhos admiravelmente grandes e aquele olhar fixo e inquisitivo encontrado em certos pintores e filósofos que, por meio da pura intuição e do pensamento puro, tentam penetrar a escuridão que nos cerca.”(SEBALD, 2001, p.7-9). Sebald usa quatro imagens: à esquerda, duas fotos, dois recortes horizontais dos olhos de dois animais, um lêmure acima e uma coruja abaixo;1 na página da direita, outras duas fotos com o mesmo formato, mostrando os traços 1 Existe certa inconsistência na identificação do primeiro par de olhos animais, uma vez que o segundo par é sem dúvida de uma coruja. Agradeço ao professor Marcelo Esteves pela indicação de que não se trata de um guaxinim, como erroneamente indiquei, e sim, muito provavelmente, de um lêmure. Sebald cita uma série de animais vistos no Nocturama: “Não me lembro mais ao certo quais animais vi então no Nocturama de Antuérpia. Provavelmente morcegos e gerbos do Egito ou do deserto de Góbi, espécimes nativos de porcos-espinhos, bufos e corujas, gambás australianos, martas, arganazes e lêmures, que lá pulavam de um galho a outro, disparavam de lá para cá no solo de areia amarelo-cinzento ou desapareciam em uma touceira de bambu” (SEBALD, 2008b, p.8). Caroline Duttlinger (“Traumatic Photographs: Remembrance and the Technical Media in W. G. Sebald’s Austerlitz”) chega a conclusão semelhante: “Dois pares de fotografias são inseridos no texto, o par de cima mostrando os olhos de dois animais noturnos, provavelmente um lêmure e uma coruja, e o par abaixo mostrando os olhos do pintor alemão Jan Peter Tripp e do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. As quatro imagens são reproduzidas em partes, e seus referentes e origens não são mencionados no texto. A interação entre texto e fotografia portanto tem o efeito de um enigma, desafiando o leitor a rastrear as imagens de ‘certos pintores e filósofos” das quais os detalhes reproduzidos são retirados” (DUTTLINGER, 2004, p.137). A descrição feita por Duttlinger acarreta uma segunda questão: a disposição dos olhos na página. Duttlinger menciona a disposição tal como encontrada na primeira edição em alemão (Hanser Verlag, 2001), com os pares de olhos animais acima e, abaixo, separados por duas linhas de textos, os olhos humanos. Na primeira edição da tradução ao inglês (Random House, 2001), os olhos dos animais estão em uma página, os olhos humanos em outra – a edição brasileira (Companhia das Letras, 2008), que guiou minha descrição aqui, posiciona os olhos lado a lado, usando as duas páginas, mas fazendo-o de forma simétrica, ao contrário da edição da Random House. Sobre essa questão das diferenças no posicionamento das imagens nas narrativas de Sebald, ver “Superimposition as a Narrative Strategy in Austerlitz” (MOSBACH, 2007, p.390-411).

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equivalentes – a linha dos olhos, das sobrancelhas e o início do nariz – de dois homens. Essas duas fotografias indicam a passagem na qual o narrador faz referência a “certos pintores e filósofos”, e mesmo não dando nomes, é possível reconhecer, no alto, Jan Peter Tripp e, abaixo, Ludwig Wittgenstein. O episódio do Nocturama é fundamental também para a economia narrativa geral de Austerlitz. O narrador dirá que as imagens que guarda na memória do interior do Nocturama sempre se confundem com as imagens da Estação Central de Antuérpia, o local em que encontrará Jacques Austerlitz – que, de resto, será mencionado como alguém que sofre da “visão” e frequentemente ligado à figura de Wittgenstein ao longo do romance. Para o narrador de Sebald, Austerlitz surge como um misto de testemunha e professor, um filósofo especializado no tempo (os traumas) e no espaço (a arquitetura), mas também um melancólico por vezes desamparado e congelado pela angústia.2 Existe uma passagem de Austerlitz na qual o protagonista afirma que não lhe parece “que compreendemos as leis que governam o retorno do passado”, mas sente “cada vez mais como se o tempo não existisse em absoluto, somente diversos espaços que se imbricam segundo uma estereometria superior, entre os quais os vivos e os mortos podem ir de lá para cá como bem quiserem.” (SEBALD, 2001, p.182). Austerlitz também relata ao narrador seus passeios noturnos por Londres, nos quais encontrava “uns poucos espectros noturnos no caminho”, aparições que pareciam desafiar a divisão entre o passado e o presente: “ocorreu-me diversas vezes nas estações julgar reconhecer, entre aqueles com que eu cruzava nas passagens ladrilhadas um rosto que me era familiar de uma época muito 2 Essa postura inicial de Austerlitz, evocando a visão como tarefa e aproximando filósofos, pintores e escritores, é um eco também da postura inicial de Nietzsche em Além do bem e do mal, que escreve, já no prólogo de junho de 1885: “Parece que todas as coisas grandes, para se inscrever no coração da humanidade com suas eternas exigências, tiveram primeiro que vagar pela terra como figuras monstruosas e apavorantes: uma tal caricatura foi a filosofia dogmática, a doutrina vedanta na Ásia e o platonismo na Europa, por exemplo. Não sejamos ingratos para com eles, embora se deva admitir que o pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem em si. Mas agora que está superado, agora que a Europa respira novamente após o pesadelo, e pode ao menos gozar um sono mais sadio, somos nós, cuja tarefa é precisamente a vigília, os herdeiros de toda a força engendrada no combate a esse erro” (NIETZSCHE, 1992, p.8). Na medida em que trata de sobrevivências do passado e da possibilidade de passagem entre vivos e mortos, Austerlitz questiona “a invenção platônica do puro espírito”, além, evidentemente, de tomar a “vigília” como “tarefa”, como fica materialmente apresentado com as imagens dos olhos de Tripp e Wittgenstein e os animais noturnos.

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distante”, “rostos conhecidos” que “sempre tinham algo diverso de todos os outros, algo indistinto, eu diria, e às vezes eles me perseguiam e inquietavam durante dias”; a convivência com esses espectros noturnos começa a afetar sua visão: “Nessa época, de fato, em geral ao regressar das minhas excursões noturnas, comecei a enxergar cores e formas de uma corporeidade reduzida, por assim, dizer, através de uma espécie de véu ou nuvem de fumaça, imagens de um mundo empalidecido” (SEBALD, 2008b, p.128). No caso de Austerlitz, Sebald dá ainda mais peso ao ato de olhar e também à sua materialidade intrínseca – a espectralidade do mundo externo é, de certa forma, absorvida pelo protagonista, até somatizada, na medida em que a membrana que regula o contato entre interior e exterior é agora “uma espécie de véu ou nuvem de fumaça.” O olho de Jacques Austerlitz absorve as feições do ambiente, processando suas características, primeiro através da imaginação e, em seguida, através da fala, do discurso, da linguagem, no contato com o narrador. E, como apontou Walter Benjamin em seu comentário a Baudelaire – que por sua vez escrevia sobre Edgar Allan Poe –, a imaginação não só é a faculdade que percebe as afinidades, como é responsável pelo contato delas com a memória (BENJAMIN, 2002, p.346). Nessa articulação entre o “olhar fixo” encontrado em “certos pintores e filósofos” e a convivência de Austerlitz com os “espectros noturnos”, a ênfase é posta nessa capacidade de ver algo que está velado, encoberto pela escuridão. O segmento da imagem que mostra Wittgenstein serve também para marcar esse contexto da primeira metade do século XX, ao qual Sebald insistentemente retorna. Hannah Arendt, que também retornava a esse contexto com frequência, vai definir o período, em janeiro de 1968, no prefácio de Homens em tempos sombrios, justamente a partir de seu grau de luminosidade e/ou visibilidade: Que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra – essa convicção constitui o pano de fundo implícito contra o qual se delinearam esses perfis. Olhos tão habituados às sombras, como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se sua luz era a luz de uma vela ou a de um sol resplandecente. Mas tal avaliação objetiva me parece uma questão de importância secundária que pode ser seguramente legada à posteridade (ARENDT, 2008a, p.9). 232


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A relação entre luz e escuridão faz parte do pensamento desse período, já na virada do século, desde o aspecto mais direto e material, com o desenvolvimento do cinematógrafo, passando pela Decadência do Ocidente de Oswald Spengler (1918, 1923), pela História como pensamento e como ação de Benedetto Croce (1938), até a Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer (1944), dentro da qual o discurso iluminado da razão é questionado em suas bases.3 É digno de nota que Hannah Arendt se valha dessa metáfora visual em seu prefácio, mencionando o pano de fundo contra o qual se delinearam os perfis, resgate da própria fundação da pintura segundo Plínio, na História natural, quando fala da mulher apaixonada que traça a silhueta do amado que parte para a guerra, fazendo da imagem já uma espectrologia, uma zona de contato entre vivos e mortos, como será o caso para Sebald e para Jacques Austerlitz (STOICHITA, 2008, p.13-22). Sebald reconfigura essa tradição na medida em que aquilo que era visto de perfil, agora é visto de frente, confrontado; há também um esforço deliberado de contágio entre humano e animal, que ocorre simultaneamente ao esforço de contágio entre texto e imagem. Esse deslizamento recíproco de posições é constante na obra de Sebald, como na passagem de Os anéis de Saturno que relata a visita do narrador à antiga residência de Somerleyton, no interior da Inglaterra, onde encontra, “em um dos aviários em boa parte abandonados”, uma “solitária codorna chinesa”, “evidentemente em estado de demência”, “correndo de lá para cá ao longo da grade lateral da gaiola e sacudindo a cabeça toda vez que estava prestes a dar meia-volta, como se não compreendesse como 3 Este ensaio sobre as imagens de abertura em Austerlitz faz parte de uma pesquisa em andamento acerca da poética de W. G. Sebald em geral e a historicidade das formas de visualidade em particular. Remeto a um trabalho já publicado, “W. G. Sebald e o olho da História”, que investiga essa historicidade da visualidade em Sebald a partir de seu contato, entre outros, com a obra de Bertolt Brecht e seu Diário de trabalho (mas passando também pelo contexto compartilhado por Benjamin, Heidegger e Adorno): “Tendo em mente o esboço de aproximação com a poética de Sebald experimentado neste texto, é possível atestar, a cargo de conclusão, que o ‘olho da história’ tal como praticado por Brecht e diagnosticado por Didi-Huberman surge como um ponto possível na extremidade de uma cadeia de sentido cujo início está no ‘rígido olhar cartesiano’ que Sebald localiza na pintura de Rembrandt. Os sapatos de Gollancz e o deliberado erro de Rembrandt na representação da mão de Aris Kindt formam uma sorte de tríptico em conjunto com os recortes e intervenções de Brecht, instaurando, dessa forma, um complexo campo de atuações recíprocas entre texto e imagem, história coletiva e história individual, campo a partir do qual se constitui também a poética de Sebald” (KLEIN, 2016a, p.118-119).

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fora parar nessa situação deplorável” (SEBALD, 2010, p.46-47). Abaixo da palavra deplorável, Sebald posiciona uma fotografia da codorna chinesa: em primeiro plano, fora de foco, os riscos das grades; alguns centímetros à frente a codorna de perfil, parada, e bem mais ao fundo, pequenina e correndo ao longo da grade, uma segunda codorna. Chama a atenção o esforço de posicionar a câmera o mais baixo possível, junto à grade, emulando o campo de percepção da codorna, sua linha de visão, só que de forma invertida – de fora para dentro, e não de dentro do aviário para fora. Ainda em Os anéis de Saturno, ao caminhar por uma região inóspita da costa leste da Inglaterra, escreve o narrador que “o vazio em mim e o vazio à minha volta ficava maior e o silêncio mais profundo”. Por conta do silêncio dominante, uma aparição repentina quase faz o narrador “morrer de susto”: “bem aos meus pés uma lebre que estava escondida nos tufos de grama junto à trilha deu um pulo e saiu correndo”. O susto logo dá lugar à projeção e à especulação características do narrador, que imagina que a lebre “deve ter se encolhido em seu lugar enquanto me aproximava, o coração disparado em expectativa, até quase ser tarde demais para se safar com vida”. Ele vai além, afirmando que o “exato instante em que a paralisia que tomara conta dela se converteu no movimento de pânico da fuga”, foi esse também “o instante em que seu medo me penetrou”. A partir desse ponto, todo o processo de aproximação entre o narrador e a lebre – feita a partir de uma fenomenologia do susto – ocorre por meio da visão: “ainda vejo com toda a clareza o que ocorreu naquele momento de pavor, que mal durou uma fração de segundo”. “Vejo”, continua ele, a borda do asfalto cinza e cada lâmina individual de grama, vejo a lebre pular de seu esconderijo, com orelhas viradas para trás e uma expressão estranhamente humana, rígida de terror e algo dividida, e em seus olhos, voltados para trás durante a fuga e quase saltados da órbita de tanto medo, vejo a mim mesmo, que me tornara um só com ela (SEBALD, 1995, p.234).

O medo que o narrador acredita que a lebre está sentindo o “penetra”, e a sucessão de detalhes que compõem a cena da fuga, detalhes vistos e relatados por ele, determina essa condição na qual o sujeito se torna “um só” com a lebre. O uso que Sebald faz das imagens, portanto, envolve um trabalho das passagens, na acepção benjaminiana que Sebald frequentemente evoca. Ao 234


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contrário de outros leitores da morfologia de Goethe e contemporâneos seus, como Spengler e em seguida Wittgenstein, Benjamin tenta definir a relação entre imagem e história a partir da ambivalência: “o conceito de progresso deve estar fundado na ideia de catástrofe” (BENJAMIN, 2002, p.473, N9a, 1) e “superar a noção de ‘progresso’ e superar a noção de ‘período de decadência’ são dois lados de uma coisa só” (p.460, N2, 5). Ou, ainda mais relacionado à montagem de Sebald, a epígrafe da introdução de 1939 ao projeto das passagens, retirada de Maxime du Camp: “a História é como Jano, tem duas faces. Olhando o passado ou o presente, vê as mesmas coisas” (p.14). Os quatro pares de olhos no início de Austerlitz indicam o estabelecimento desse regime de ambivalência para todo o romance, como faz a epígrafe de du Camp no Livro das Passagens. Além disso, Jacques Austerlitz, o personagem, professor de história da arquitetura especializado naquilo que chama de “era burguesa”, diz ao narrador que suas ideias de escrita “iam do projeto de uma obra sistemática e descritiva em vários volumes até uma série de ensaios sobre temas como higiene e saneamento, arquitetura carcerária, templos profanos, hidroterapias, jardins zoológicos, partida e chegada, luz e sombra, vapor e gás, e assim por diante” (SEBALD, 2008b, p.122). A concatenação vertiginosa de temas e ideias leva o mesmo Austerlitz, anos depois, a refletir: “não será possível imaginar [...] que também temos compromissos para cumprir no passado, no que já se foi e em grande parte está extinto, e lá temos de procurar lugares e pessoas que, quase além do tempo, guardam uma relação conosco?” (p.250).4 E para Austerlitz, no começo de tudo, assim como no caso de Benjamin, estava Maxime du Camp: 4 A relação entre a poética de Sebald e a teoria da história/historiografia é complexa e já mobiliza uma vasta fortuna crítica – Lynn L. Wolff, por exemplo, em W. G. Sebald’s Hybrid Poetics, fala de “literatura como historiografia” em Sebald (WOLFF, 2014). Para uma discussão detalhada acerca do tema, remeto ao ensaio de Felipe Charbel, “Uma filosofia inquietante da história: sobre Austerlitz, de W. G. Sebald”: “Se a historiografia, depreende Austerlitz nas suas investigações, possui uma inegável dimensão de ficcionalidade – os ‘recursos cênicos’ e ‘imagens predefinidas’, ‘levados ao palco por outros à exaustão’ –, o tempo linear, o tempo contínuo, é uma das ferramentas mais notáveis da ficção histórica: ‘o tempo, disse Austerlitz no observatório astronômico de Greenwich, era de todas as nossas invenções de longe a mais artificial’ (SEBALD, 2008a, p.103). É que como estrutura a História é caótica, inapreensível, sem sentido, entrópica, e a sua engrenagem, se é que existe uma, se faz sentir apenas em flashes de coincidências e nas formas intempestivas de eclosão do passado. A pressuposição de uma lógica intrínseca ao processo histórico – a ‘estereometria superior’ – nada mais é que uma ficção de sentido, necessária à tentativa de autogoverno que tanto Austerlitz como o narrador devem empreender para não sucumbir à melancolia” (CHARBEL, 2015, p.132).

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lembrei [...] dos meses de inverno de 1959, durante os quais estudei na rue Richelieu uma obra crucial para o meu próprio trabalho de pesquisa, os seis volumes de Paris, ses organes, ses fonctions et sa vie dans la seconde moitié du XIXème siècle, que Maxime du Camp, que antes viajara pelos desertos do Oriente surgidos, como ele diz, da poeira dos mortos, começou a escrever por volta de 1890, inspirado por uma visão esmagadora que teve na Pont Neuf e que só concluiu sete anos mais tarde (SEBALD, 2008b, p.277).

O deus Jano de Maxime du Camp se transforma, em Sebald, nessa figura compósita, quase cubista, com quatro pares de olhos – que continua operando como um comentário acerca da ambiguidade entre imagem e história, como queria Benjamin, mas agora também dentro de uma estratégia ficcional de questionamento de certos limites, luz e sombra, o filósofo e o animal, razão e desrazão. É possível resgatar aqui outro dos perfilados de Hannah Arendt, outro par de olhos envolvido na escansão crítica desses “tempos sombrios”, Martin Heidegger. Dentro do tópico da relação possível entre o olho do filósofo e o olho da coruja e suas compartilhadas capacidades de “penetrar a escuridão que nos cerca”, cabe relembrar o que escreve Peter Sloterdijk em Regras para o parque humano: “Nesse ponto, Heidegger é inexorável, caminhando entre o animal e o ser humano como um anjo colérico com espada em riste para impedir qualquer comunhão ontológica entre ambos” (2000, p.25). Mas não é tanto o Heidegger do protecionismo ontológico que interessa aqui, e sim o Heidegger leitor de ficção, e da ficção localizada justamente nos “tempos sombrios”. “Lembro que, em 1966, enquanto acompanhava em Le Thor o seminário sobre Heráclito”, escreve Giorgio Agamben em Meios sem fim, perguntei a Heidegger se tinha lido Kafka. Respondeu-me que, do não muito que havia lido, havia ficado, sobretudo, impressionado com o conto ‘Der Bau’, o covil. O animal inominado (toupeira, raposa ou ser humano) protagonista do conto está obsessivamente ocupado em construir um covil inexpugnável, que se revela aos poucos ser, na verdade, uma armadilha sem saída. Mas não é precisamente o que aconteceu no espaço político dos Estados-nação do Ocidente? As casas (as ‘pátrias’) que estes trabalharam para construir revelaram-se ser, no fim, para os ‘povos que tinham que habitar nelas, apenas armadilhas mortais (AGAMBEN, 2015, p.125). 236


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Agamben retoma esse relato algumas vezes ao longo da sua obra: em Ideia da prosa, de 1985, acrescenta o seguinte: Um dia, quando o seminário chegava ao fim, e os discípulos, à volta do filósofo, lhe faziam perguntas sem fim, ele respondeu simplesmente: ‘Vocês podem reconhecer os meus limites, eu não’. Anos antes tinha escrito que a grandeza de um pensador se mede pela fidelidade ao seu próprio limite interior, e que não conhecer esse limite – não o conhecer devido à sua proximidade do indizível – é o dom secreto, e raro, do ser (AGAMBEN, 2012, p.49).

A anotação de Meios sem fim citada anteriormente é de 1994, mas parece já fazer parte daquilo que seria uma conferência de 1996, “Heidegger e o nazismo”, hoje em A potência do pensamento (AGAMBEN, 2005). Na conferência fica claro porque Agamben indica que o “animal inominado” pode ser uma “toupeira, raposa ou ser humano”: o relato da conversa com Heidegger é precedido por um comentário acerca de um livro póstumo de Hannah Arendt, lançado em 1994, Essays in Understanding, do qual faz parte um fragmento intitulado “Heidegger, a raposa”. Chama a atenção de Agamben que um texto com um “tom confidencial” fizesse parte da coletânea de ensaios, tendo sido retirado do Diário de pensamentos, que reúne anotações esparsas de Arendt do período entre 1950 e 1975, Diário só publicado na íntegra em 2002 (p.333-334). O fragmento é uma fábula de duas páginas, escrita em 1953, e ainda que o nome de Kafka não seja citado, é uma clara glosa à predileção de Heidegger pelo conto mencionado. Em linhas gerais, conta a história de Heidegger, a raposa, que depois de tanto cair em armadilhas e danificar irreversivelmente sua pelagem, decide “construir como toca uma armadilha”, que, surpreendentemente, consegue atrair várias outras raposas ao longo dos anos para seu interior (ARENDT, 2008b, p.381-382). Além de remeter aos espaços sombrios aos quais os olhos de certos artistas e filósofos e certos animais estariam habituados, a toca-armadilha ecoa também em outro limite, outro trabalho das passagens, aquele que Agamben denominou, em seu seminário sobre Heidegger (1979-1980), “a linguagem e a morte”. O “terlugar da linguagem”, à semelhança da “toca-armadilha”, é o espaço ambivalente que reúne tanto a potência da linguagem quanto a insustentabilidade de seu próprio projeto de representação e performance, “entre o suprimir-se da voz e o evento de significado” e que, “na tradição metafísica, constitui a articulação 237


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originária da linguagem humana” (AGAMBEN, 2006, p.56). Nessa perspectiva, os pares de olhos posicionados por Sebald no início de Austerlitz podem ser lidos como a representação da fixidez da morte, a rigidez cadavérica, o congelamento do animal empalhado, do corpo embalsamado ou do artefato no museu de cera. Os olhos estão inseridos em uma série de momentos de articulação entre texto e imagem ao longo de sua obra, série na qual Sebald expõe um desdobramento daquilo que Benjamin, ainda no Livro das passagens, chamou de “sex appeal do inorgânico” 5 (BENJAMIN, 2002, p.18-19). Desde o molde de gesso da mão esquerda de Métilde, uma das mulheres por quem Stendhal foi apaixonado, apresentado em Vertigem (SEBALD, 2008a, p.19); passando pelo crânio de Thomas Browne, que teria permanecido exposto no museu do mesmo hospital no qual o narrador se recupera de um colapso, crânio exposto também em Os anéis de Saturno, pouco antes do surgimento na narrativa dessa imagem, a Lição de anatomia de Rembrandt, que, assim como os olhos em Austerlitz, funcionará como epígrafe visual que dará o tom do restante da narrativa. Nas palavras do narrador de Os anéis de Saturno, a aula de anatomia era “uma demonstração do destemido zelo investigativo da nova ciência”, mas, ao mesmo tempo, de forma subterrânea e recalcada, era também um “ritual arcaico”, o “suplício da carne do delinquente mesmo após a morte”, um procedimento que dizia respeito não tanto à “ciência”, mas a uma continuação da “punição 5 “Dar-se como uma coisa que sente e agarrar uma coisa que sente, esta é a nova experiência que se impõe ao sentir contemporâneo, experiência radical e extrema que tem o próprio fulcro no encontro entre filosofia e sexualidade, e que todavia constitui a chave para entender tantas e tão díspares manifestações da cultura e das artes atuais. O que suscita inquietude e constitui um enigma é exatamente a confluência num único fenômeno de duas dimensões opostas, o modo de ser da coisa e a sensibilidade humana: parece que as coisas e os sentidos já não lutam entre si, mas tenham tecido uma aliança graças à qual a abstração mais distanciada e a excitação mais desenfreada sejam quase inseparáveis e muitas vezes indistinguíveis. Assim, do conúbio entre o extremismo especulativo da filosofia e a invencível potência da sexualidade nasce algo de extraordinário em que a nossa época se reconhece: em sintonia com Walter Benjamin, podemos chamá-lo o sex appeal do inorgânico” (PERNIOLA, 2005, p.21). Além do caminho que aponto aqui – ou seja, as possibilidades de relação entre humano e inumano na poética de Sebald –, as ressonâncias “pós-humanas” da obra de Sebald vem sendo investigadas em ao menos outros três percursos: o pós-humano do dispositivo, na ótica foucaultiana das relações entre poder e saber, como no trabalho de J. J. Long, W. G. Sebald: Image, Archive, Modernity (LONG, 2007); o aspecto “criatural” e biopolítico da relação entre corpos (humanos e inumanos) e objetos, como em On Creaturely Life, de Eric Santner (SANTNER, 2006); e, por fim, a perspectiva da sexualidade, em sua dimensão tanto normativa quanto desviante, como no trabalho de Helen Finch, Sebald’s Bachelors: Queer Resistance and the Unconforming Life (FINCH, 2013).

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infligida”. A dissecação envolve um cerimonial e, por isso, há mais na imagem do que aquilo que ela mostra – nas palavras do narrador, “estava mais em jogo do que o conhecimento profundo dos órgãos internos do ser humano”. Os cirurgiões vestem gala, o dr. Tulp está de chapéu, um banquete foi oferecido depois da aula. Caso nos posicionemos hoje diante do quadro, “estaremos na posição daqueles que seguiram na época o andamento da dissecação” e “imaginamos ver o que eles viram”. A posição do espectador hoje, afirma o narrador, repercute aquela da audiência do passado; e, no entanto, continua ele, “é discutível se alguém na verdade viu esse corpo, pois a arte da anatomia, na época em sua infância, servia em boa parte para tornar invisível o corpo do condenado” (SEBALD, 2010, p.2425). Parece então que mesmo diante do visível, certas coisas permanecem ilegíveis, à sombra. Sebald reativaria o sex appeal do inorgânico no gesto de identificar o que está congelado e, na justaposição entre texto e imagem, gerar movimento. Como conclusão, é preciso observar que os pares de olhos de Austerlitz tiveram um desdobramento editorial que intensifica certas características apontadas aqui. Em 2003, é lançado o volume póstumo Unerzählt, feito a partir da junção de 33 breves poemas escritos por Sebald e 33 gravuras feitas por Jan Peter Tripp, todas elas apresentando olhos com o mesmo ângulo de corte já conhecido desde Austerlitz. Não se trata apenas da repetição do procedimento, mas de sua ampliação experimental, um esforço de consolidar esse argumento que parece indicar um reduto ilegível dentro do visível, que vai se dissolvendo à força da repetição e do estranhamento daí decorrente.6 Em 1928, Walter 6 Escreve João Barrento sobre Unerzählt: “O órgão privilegiado deste tema central parece ser desde sempre, na obra de W. G. Sebald, o olhar, como mostra o livro, publicado postumamente, Unerzählt (Por contar, de 2003, ainda não traduzido para português), uma série de pequenos poemas epigramáticos que mais parecem epitáfios, acompanhados de gravuras de um amigo de infância, o pintor Jan Peter Tripp, e que reproduzem, com um verismo impressionante, exclusivamente pares de olhos de figuras conhecidas e menos conhecidas, vivas e mortas (entre outros, Javier Marías, Francis Bacon, Borges, Beckett, Proust, Rembrandt, André Masson, o próprio Sebald, a sua mulher Anna e o cão Maurice). Esses olhos fixam-se, com os breves textos, no que restou da História, nas suas margens, como os olhos dos animais nocturnos no “Nocturama” de Antuérpia, aonde o narrador vai dar no início de Austerlitz” (BARRENTO, 2013, p.2). A genealogia crítica possível da relação de Sebald com a visualidade e sua historicidade é vasta e ramificada, apresentando elementos que vão desde a polêmica judaico-cristão da relação entre corpo, espírito e presença, passando pela consolidação da perspectiva no Renascimento até o surgimento e consolidação das mídias técnicas no século XIX. Investiguei esse último estágio genealógico em um ensaio intitulado “Atenção flutuante e deriva em W. G. Sebald” (KLEIN, 2016b, p.127-141).

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Benjamin resenha o livro de Karl Blossfeldt Formas originárias da arte: imagens fotográficas de plantas, um álbum com 120 imagens aproximadas de plantas, um procedimento de repetição e estranhamento que gera uma narrativa que Benjamin qualifica de “frutífera e dialética oposição à invenção” (1999, p.157), o que se relaciona àquilo que aponta no Livro das passagens, em relação ao sex appeal do inorgânico, que o nascimento de algo novo entre coisas antigas é o “legítimo espetáculo dialético” (2002, p.64). Ou, em outras palavras, aquilo que permanece “por contar” ou “não-contado” não responderia à lógica da invenção ou do original, mas àquele estado em que, nas palavras de Jacques Austerliz, “todos os momentos do tempo existem simultaneamente uns ao lado dos outros” (SEBALD, 2008b, p.104).

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AFINIDADE E MORFOLOGIA EM W. G. SEBALD

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LYGIA PAPE: ENTRE A GEOMETRIA E A ETNOGRAFIA Luiz Camillo Osorio

As recentes retrospectivas internacionais de Lygia Pape, no Reina Sofia de Madri e no Metropolitan-Breuer de Nova York, deram uma nova perspectiva para pensarmos sua trajetória, incluindo aí os desafios que algumas de suas obras impõem às formas expográficas convencionais e seu lugar na virada cultural e etnográfica da arte contemporânea nos anos 1960/70.1 Sua poética, como já sabíamos, foi marcada, desde a década de 1950, pela experimentação e pela inquietação. O trânsito entre meios de expressão, disciplinas e institucionalidades jamais se deixou fixar em alguma identidade formal. Sua formação junto ao concretismo carioca revela o quanto esteve, desde o início, preocupada tanto com a renovação dos meios expressivos como com novos modelos de inserção social da arte. A capacidade de transformação social da arte estaria atrelada à sua capacidade de renovação formal. Como já dizia um dos seus mestres russos, Maiakóvski: uma arte revolucionária demanda uma forma revolucionária. A aproximação entre a prática artística e a reflexão crítica foi determinante na disseminação do concretismo na cena brasileira. Tanto Waldemar Cordeiro quanto Ivan Serpa – os dois principais articuladores em São Paulo e no Rio de Janeiro do movimento concreto na primeira metade da década de 1950 – sabiam o quanto fazer arte e abrir novos processos de intervenção no debate cultural era determinante para um compromisso efetivamente de vanguarda. Não podemos 1 Esta dimensão etnográfica foi descrita por Hal Foster no sexto capítulo intitulado “O artista como etnógrafo” do livro O retorno do real. Nele, o crítico americano tratava de caracterizar o momento, a partir da Pop Art, em que a aposta na alteridade cultural e étnica passava a definir procedimentos artísticos tendo em vista os novos territórios abertos pela luta política na década de 1960. A direção tomada pelas obras de Oiticica, Clark e Pape, nesta década, assim como a virada pós-moderna da crítica de Pedrosa, respondem a mesma inquietação.

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esquecer que as duas primeiras exposições do grupo Frente no Rio de Janeiro, em 1954 e 1955, fizeram-se acompanhar de textos de Ferreira Gullar e Mario Pedrosa.2 Além disso, ter tido na figura de Ivan Serpa e nos seus cursos ministrados no MAM-Rio um ponto de agregação do grupo carioca – que é o que nos interessa para falar de Lygia Pape – também mostra o quanto a reflexão sobre o processo de criação e o atravessamento da própria dimensão crítica no interior do fazer artístico eram da maior relevância. Para a jovem Lygia Pape, este foi um momento definitivo em que se afirmava, para ela, a necessidade de fazer da experimentação formal um lugar de enfrentamento político. Tanto fazia se o meio expressivo era pintura com tinta industrial, guache ou xilogravura; o que importava era o modo como as linguagens plásticas se punham em questão e, concomitantemente, redefiniam suas possibilidades de comunicação. Olhando retrospectivamente, desmobilizado o otimismo progressista da década de 1950, o mais importante nesta formação construtiva foi a deliberação contida no ideário deste movimento, especialmente a partir de sua formação carioca,3 de que a arte e seu processo de criação deveriam buscar uma expressão descolada do sujeito expressivo. A expressividade não seria abandonada, mas deveria se exteriorizar no trabalho da forma e no tipo de disseminação que ela efetivaria culturalmente. Optar pelas formas geométricas, organizá-las no plano, estabelecer uma paleta mais restrita, abandonar a intensidade gestual, tudo isso eram estratégias para retirar o sujeito criador da fatura propriamente dita da obra. Entretanto, a presença material do fenômeno plástico deveria produzir uma experiência estética singular, ou seja, mobilizar sensivelmente quem está diante da obra. A geometria deixa de ser uma forma 2 A Primeira Exposição de Grupo Frente aconteceu em 1954 na galeria do Ibeu no Rio de Janeiro. Os artistas que participaram desta primeira edição foram: Ivan Serpa, Aluísio Carvão, Lígia Clark, Lígia Pape, Décio Vieira, Carlos Val, João José da Silva Costa e Vincent Iberson. A segunda exposição do grupo aconteceu no MAM-Rio em 1955, e, além destes oito artistas acima, participaram também Abraham Palatnik, Franz Weissmann, Helio Oiticica, César Oiticica, Elisa Martins da Silveira, Eric Baruch e Rubem Ludolf. 3 Não podemos esquecer que a matriz deste grupo – Almir Mavigner, Ivan Serpa, Abraham Palatnik e Mario Pedrosa – teve nos workshops ministrados a partir do convite da Dra Nise da Silveira no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, seu ponto inicial de conversão poética, estética e ética. Uma racionalidade artística que se constitui neste encontro com a loucura é, no mínimo, peculiar. Acima de tudo, parece-nos ter deixado marcas definidoras se olharmos o que se passaria na guinada Neoconcreta de 1959 e seu clamor pela expressão e pela individuação.

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genérica (universal) para ser uma forma concreta (singular). Conquistar a singularidade é dar à forma geométrica uma expressividade própria – que não é nem da geometria, nem do artista, mas da obra. Como veremos mais claramente depois dos Neoconcretos, este ir além de si, de um eu lírico, implicava pensar uma nova relação entre expressão e subjetividade. Este era o desafio colocado como ponto de partida: como expressar sem falar de si, como se apropriar da estruturação formal e dos elementos geométricos sem ser meramente impessoal? Nesta dialética de expressão e impessoalidade, de experimentação e rigor, de indisciplina e forma, constituiu-se a poética de Lygia Pape e dos seus companheiros neoconcretos. As passagens ocorridas em sua obra entre 1955 e 1960, das pinturas concretas, relevos e tecelares, passando pelos poemas-luz, pelos dois balés neoconcretos e chegando aos livros-objeto (do tempo, da criação e da arquitetura, entre outros), mostram uma artista absolutamente comprometida com uma investigação heterodoxa da forma, que muito rapidamente se desprendeu do plano e de toda e qualquer especificidade de meios expressivos. As três primeiras salas da exposição no MET-Breuer evidenciavam estas passagens e são fundamentais para a própria análise comparativa – com a Minimal Art e a Pop Art – do modo como a pesquisa formal moderna se deslocou para o espaço concreto do mundo, seja inicialmente pela ampliação do embate fenomenológico do sujeito inserido no espaço exterior, seja em seguida pela incorporação de uma discursividade cultural e institucional que desloca o campo de experimentação artística. Este segundo ponto acabaria sendo determinante a partir de meados da década de 1960 e teria, na formação cultural brasileira, um solo muito fértil para desdobrar-se. Não por acaso, Mario Pedrosa, ao observar em 1966 o surgimento de uma arte pós-moderna no Brasil (PEDROSA, 1981, p.206) remetendo a uma virada cultural da arte, dirá que sob muitos aspectos nos antecipamos aos movimentos internacionais, especialmente à Pop. Entre todo o grupo Neoconcreto, Lygia Pape é a que teve maior interesse pela cultura ameríndia, pela absorção dos resíduos imateriais provindos daí que ainda pulsam à margem da cultura brasileira. Dos Tecelares (1957) até as Tetéias (2002), vemos em Lygia Pape um constante mergulho em padrões geométricos que se propagam no espaço e fazem da linha e do corpo uma unidade integrada do fazer e do construir, da arte e da vida. Neste aspecto, não parece interessante olhar a estruturação formal da pintura concreta em Lygia Pape apenas como 245


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uma aposta na especificidade planar da pintura, uma delimitação do que seria próprio ao seu campo disciplinar. Todos os deslocamentos e passagens apontados acima implicam uma aproximação entre a impessoalidade geométrica e a ação do corpo, um movimento de concreção e disseminação da forma abstrata. Mas não era só isso, implicavam também uma resistência à acomodação formalista da arte que se fecharia no jogo de referências internas ao próprio fazer da arte negligenciando toda contaminação com o mundo. O diálogo intenso com a tradição ameríndia não se dava apenas na superfície, pelo interesse nos padrões geométricos contidos nas pinturas corporais e nas cestarias (que reverberam nos Tecelares), tampouco na tematização do primitivo e do oprimido, mas principalmente na compreensão de que o fazer da arte se dá na precariedade e na processualidade da vida, ressignificando o cotidiano, misturando a alegria (e a dor) de criar com a de viver.4 Neste aspecto, gostaria de aproximar, sem nenhum determinismo nisso, seu nomadismo poético a aspectos da cosmologia ameríndia realizada por estudos etnográficos recentes. Como mostrou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro com a sua hipótese do multinaturalismo ameríndio, os princípios e dicotomias constitutivas das metafísicas ocidentais, tão determinantes do modo como se pensou a relação entre matéria e forma nas obras de arte, deveriam ser postas em xeque. Segundo ele, Esta diversidade de corpos e a unidade de espírito é o que me parece caracterizar justamente a poética de Pape, sua migração e experimentação incansável entre linguagens e disciplinas. Para além da desmaterialização da arte, uma multimaterialização, uma mobilização incansável de suportes que vão sempre reafirmando a experimentação entre modos de ser da arte e de invenção de si. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.226).

Neste aspecto, deslocar a geometria para o espaço, articular espaço e corpo, atravessar o corpo da obra com os corpos que a experienciam, misturar experiência e experimentação; são todos estes movimentos realizados por sua 4 Não podemos esquecer o projeto expositivo de Mario Pedrosa e Lygia Pape, que se intitularia Alegria de criar, alegria de viver, que fora abortado pelo incêndio do MAM. Nele, todo um leque de referências ameríndias da cultura brasileira estaria sendo investigado. Importante lembrar que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro era um dos consultores que ajudariam a curadoria.

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obra que combinam intensidade e fragilidade buscando uma espécie de disseminação e polinização poéticas. Disseminar no sentido de multiplicar o gesto criador e polinizar no sentido de fazê-lo fertilizar pela mediação da proposição artística, por aquilo que Oiticica denominava de objetato referindo-se a performance de Lygia Pape intitulada O Ovo. “O objeto ou a obra seriam as probabilidades infinitas contidas nas mais diversas proposições da criação humana: a mágica do fluir das ideias, no instante, no ato, no comportamento.” (OITICICA, 1980, p.80). A noção de não-objeto, tão cara ao movimento neoconcreto, retirava o elo, determinante na noção mais tradicional de obra de arte, entre forma e objeto, retirando a fixidez da forma, deslocando-a para o polo da subjetivação, da construção de si. Neste aspecto, o ato criador e a obra atuariam fertilizando sensorial e produtivamente quem dela se aproximasse, incutindo nele a disposição experimental que disseminaria o gesto criativo e transformador. As obras de Pape seguiram ao longo de sua trajetória, para além do próprio momento neoconcreto, esta intenção germinadora de criação e vida, olhando à margem do sistema da arte, das convenções e padrões instituídos, a presença pulsante de potencial criativo bruto que nascia junto ao enfrentamento das adversidades cotidianas. Neste aspecto, a crise do movimento neoconcreto entre 1962 e 1963, junto ao agravamento da situação política brasileira que acentuava as polarizações, fez aparecer uma crítica mais politizada do grupo ligado ao Centro Popular de Cultura (CPC) – com Ferreira Gullar à frente – que mirava na experimentação formal. O sintoma era de alienação e hermetismo que desconsiderava a realidade social e as tensões políticas urgentes. Contra tal alienação, era fundamental uma arte engajada. Entretanto, por este viés, engajamento significava uma pedagogia ideológica de conscientização que retirava da arte qualquer tipo de exercício experimental. Em nome da comunicabilidade de conteúdos políticos, seria determinante alguma regressão no trabalho com a forma. Contra a equação do CPC, menos experimentação e mais engajamento, artistas, como Oiticica, Pape e Clark, buscaram outra formulação: experimentar para produzir outro tipo de engajamento. Novas subjetividades coletivas demandavam novas vozes políticas. Em vez de falar em nome dos oprimidos – conscientização política – buscar viabilizar a participação de novos corpos e novas subjetividades nos processos de expressão poética. Em certa medida, podemos perceber que a opção participativa, que implicava a transformação da obra em proposição, mudava 247


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o lugar do espectador, ele também convocado como parte determinante da vontade construtiva disseminada pelo gesto criador. Falar com em vez de falar por ou para. No caso de Lygia Pape, desde os balés neoconcretos e dos livros-objeto, esta disseminação começava a ser percebida. Entretanto, a partir de meados da década de 1960, este movimento começa a incorporar as vozes marginalizadas que gravitavam no interior da cultura brasileira. A minha sugestão é que isso dar-se-ia a partir do seu contato com o Cinema Novo, trabalhando junto a diretores tais como Paulo Cesar Saraceni, Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, mais especificamente em filmes como Vidas Secas (1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Para a linguagem cinematográfica, talvez pela inespecificidade inerente ao audiovisual que inviabilizaria de saída a pureza de meios expressivos, o conteúdo político articulado à imagem não arrefecia a experimentação formal. Na mesma direção, devemos lembrar quanto os artistas da Nova Figuração buscavam recolocar o problema da participação via uma nova articulação entre palavra, imagem e materialidade. Articulava-se uma temporalidade mais densa e reflexiva para a imagem, constituída no interior de um contexto cultural marcado pelas assimetrias que buscava uma disseminação mais abrangente para os conflitos sociais, políticos, éticos que desafiavam os processos de uma modernização conservadora. Não se tratava de inverter a dicotomia forma e conteúdo, mas deixar aparecer corpos e vozes historicamente excluídos para, deste contato, se viabilizar uma outra densidade formal. Uma fabulação, tal como vemos em Glauber de Deus e o Diabo, acabaria juntando o tempo da experimentação formal com a urgência dos corpos políticos excluídos, que atravessam as imagens com uma contundência histórica singular, uma vez que nunca estiveram ali no centro da história. Guardadas todas as diferenças de contexto, seria o caso de lembrarmos aqui da crítica que Pasolini dirigia a Godard neste mesmo período. Sem abrir mão da experimentação cinematográfica, introduzir nela os corpos precários e pobres que pareciam afastados do universo burguês do cineasta parisiense: “na cultura de Godard, há qualquer coisa de brutal e quiçá de ligeiramente vulgar: ele não concebe a elegia, pois enquanto parisiense ele não se deixa tocar por sentimentos tão provincianos e campesinos.” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.185). Na interpretação dada por Didi-Huberman a este comentário crítico de Pasolini, a vulgaridade remetia a perda de contato com a realidade concreta do mundo. 248


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Quando em seu artigo sobre o cinema de poesia, Pasolini afirma que Godard não pode ser tocado por um sentimento provinciano e campesino, é para indicar que não há cor pos pobres nos filmes de Godard e, portanto, nenhuma pesquisa sobre esta sobrevivência de gestos antigos com os quais o seu próprio cinema (de Pasolini) tinha sido profundamente atravessado (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.192).

Algo desta vontade deliberada de trazer os corpos pobres para dentro da forma poética vimos aparecer nos Parangolés de Oiticica (1964) e, em seguida, no Trio do embalo maluco (1968) de Pape. Os sambistas rompendo do interior dos cubos de cores primárias, com seus corpos e ritmos libertados, fazem destas proposições exemplos paradigmáticos desta transformação. Depois, isso viria à tona no Divisor (1968) e nos filmes da década de 1970, Our Parents: Fossilis (1974), Carnaval no Rio (1974) e Mão do Povo (1975). Há neles uma urgência de aproximar o artista-inventor desta potência criativa bruta, que, em vez de falar em nome dos oprimidos, busca disparar nele o gesto transformador que faça liberar subjetividades recalcadas que componham um novo e experimental corpo coletivo. Citemos a própria Lygia Pape em sua dissertação de mestrado: O que dizer, por exemplo, dos objetos recriados pela economia do precário do nordeste? Há alguns anos, em Areia, na Paraíba, interessados que estávamos em manifestações do povo, começamos uma pesquisa de objetos reciclados; iniciamos pelas latas de lixo feitas pelo aproveitamento dos pneus velhos de carros. Verificamos que sua presença na calçada era quase simbólica. Pouco ou nada havia dentro delas [...] A percepção do homem prevê a estrutura geométrica implícita naquele material pelo uso e dá-lhe nova forma, refaz e recria significados para ele (PAPE, 1980, p.66).

Este contato com o outro, este interesse pelo que não era seu, fez com que sua obra aderisse sempre ao gesto simples das práticas convencionais, dos objetos e atividades cotidianas, buscando retirá-los de uma espécie de limbo social para ressignificá-los. O trabalho manual da xilogravura, o contato direto com a madeira, o gesto de corte que produz nela espaço através da luz, em seguida ela vai deslocar a luz para a cor, depois a cor para o poema e o poema para a vida. Dos Tecelares passando pelo Balé neoconcreto, livro da criação, livro da arquitetura e chegando até as Tetéias, vemos o gesto da mão que procura a luz se expandir enquanto movimento do corpo, das palavras, das 249


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cores, tudo levando à constituição de espaços imantados que nos atraem e nos impulsionam na direção do que há de transformador na vida. Desdobrando aspectos genuínos das culturas ameríndias conforme explicitado por Viveiros de Castro, “não há mudança espiritual que não passe por uma transformação do corpo, por uma redefinição de suas afecções e capacidades.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.247). Este espírito colado ao corpo, esta deliberada aposta naquilo que nos materiais, na sua contingência, se deixa atravessar de sentido e energia, que faz falar pelos intervalos da linguagem, pelo silêncio, pelas cores, pelo gesto, pela luz, é o fio deflagrador que na sua migração entre linguagens vai tecendo um corpo poético coerente e fascinante. Gostaria de terminar, citando uma passagem de uma crítica que escrevi, quando estive em uma de suas últimas exposições no CAHO em 2001/02, que abordava uma instalação intitulada Carandiru (2001) – o nome de um presídio em São Paulo onde em 1992 a polícia militar exterminou 111 presos de forma cruel e banal. O trabalho que recebe o público nas duas galerias contíguas do térreo, Carandiru, é o mais ousado e impactante de todos na exposição. Na primeira sala, estão duas projeções de slides, misturando imagens dos índios tupinambás com cenas de presidiários, geralmente desfocadas, contaminadas pelo vermelho que vem da sala seguinte, que tem uma fonte onde corre água avermelhada. As duas salas são invadidas pelo forte som de cachoeira gravado e reproduzido. O cruzamento entre energia, vida, desperdício e destruição é uma síntese crua e ácida da cultura brasileira (OSORIO, 2002, p.8).

No final da vida, Pape seguia experimental, crítica e contundente como sempre. Juntando duas fraturas expostas da sociabilidade brasileira, os pobres e os índios, duas energias sistematicamente desperdiçadas que volta e meia explicitam suas vozes e corpos deliberadamente excluídos das narrativas hegemônicas da história do Brasil, Lygia Pape seguia seu compromisso etno-poético-político-experimental. Se as Tetéias são rasgos de luz que articulam os pontos da arquitetura (espaço) e nosso vínculo com a transcendência simbólica, Carandiru são rasgos de corpos luminosos e triturados que articulam os pontos da história (tempo) local e nosso vínculo com a imanência da exclusão. Vida e morte, criação e destruição são os elementos dialéticos de sua poética e da construção de 250


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uma experiência singular de arte e de Brasil. Ver a obra de Pape exposta em importantes instituições internacionais é o sinal de que nossas questões e conflitos têm cada vez mais ressonância universal, na inversão do processo colonial, no embaralhamento geral de centros e periferias. Além disso, os desafios colocados à apresentação museológica, certa sensação de inadequação institucional, em que os gestos de inconformismo poético e político não cabem na composição imposta por toda exposição, é simultaneamente a certeza de que a arte pulsa além dos domínios estabelecidos. A inadequação é sintoma da resistência da arte, sendo que ela (a resistência) só aparece uma vez inserida (a arte) institucionalmente. Esta é a contradição vivida por estas obras e estes artistas agora que, gostemos ou não, a experimentação instalou-se nos museus.

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NEM ESTÉTICA NEM COSMÉTICA: UM DEBATE SOBRE O CINEMA CONTEMPORÂNEO A PARTIR DA REVISÃO DA SUA RELAÇÃO COM A FOME Miguel Jost

A partir de 2003, o poder público brasileiro, em especial através da gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, atuou efetivamente para realizar uma distribuição mais democrática dos recursos do estado destinados a fomentar e incentivar práticas artísticas. A política do Ministério era desconcentrar o seu orçamento disposto, equilibrando uma balança que historicamente pesou a favor da produção oriunda das capitais do país, com foco principal no eixo Rio de Janeiro – São Paulo. Nesse sentido, foram criados mecanismos que possibilitaram o surgimento de novas cenas de produção e incorporaram agentes que, anteriormente, dispuseram de quase nenhuma estrutura para o desenvolvimento de linguagens estéticas e para a construção de suas obras. Como desdobramento dessa política pública de descentralização em escala nacional, podemos observar também uma nova orientação nas políticas estaduais e municipais que, na mesma direção das políticas federais, procuraram deslocar o aporte dos seus recursos das áreas de maior poder socioeconômico para regiões que eram pouco contempladas com recursos para investimento em cultura. Surge nesse momento, ainda na primeira década dos anos 2000, o conceito de territórios de cultura. É fundamental destacar que não falamos aqui de um conceito de natureza meramente geográfica, mas sim de uma abordagem que pretende pensar esses territórios por sua pluralidade, pelo caráter não homogêneo do desejo por cultura existente nele, e pelos distintos desafios que estes precisam enfrentar para a garantia de um sentido mais amplo de cidadania e direito cultural em um país com as profundas desigualdades de renda e acesso à educação como é o caso do Brasil. 253


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O objetivo desse artigo, que apresenta apenas um recorte de uma pesquisa mais ampla, é, a partir da produção de um grupo de novos realizadores do cenário audiovisual brasileiro, que surge justamente na esteira da implementação dessas políticas públicas, debater um tema que há muito mobiliza intérpretes e críticos que se debruçam sobre a nossa produção cultural: o olhar sobre a fome e os espaços de pobreza no país. Para uma melhor localização do leitor, a pesquisa que dá origem a esse artigo tem como foco entender como essa descentralização de recursos tem consequências para o campo estético brasileiro e para a própria partilha de chaves de leitura sobre nossa sociedade e para as muitas interpretações que moldaram o sentido de uma realidade brasileira específica. De forma mais objetiva, como a emergência de novos agentes, como novas subjetividades, novos modos de fazer, novos modos de ler essa realidade alteram percepções historicamente consolidadas sobre o país e implicam a necessidade de repensar conceitualmente o desenvolvimento de linguagens artísticas em nosso meio? O motivo principal de destacar essa linha mais ampla da pesquisa, que dialoga com materialidades diversas como a música, o audiovisual, as artes visuais, o teatro, a dança, é explicitar que, nesse caso específico, o olhar sobre o impacto de políticas públicas não passa pela abordagem tradicional de matriz sociológica, mas sim pela tentativa de entender a contribuição desses novos agentes e de suas obras para pensar estéticas contemporâneas brasileiras. E entender, a partir delas, uma série de contradições que marcaram a crítica cultural brasileira ao longo do século XX e que ainda ocupam espaço de protagonismo no debate crítico. Por fim, discutir, inclusive, se, ao serem detonados esses processos, eles não tendem a abalar até determinados postulados epistemológicos que foram cristalizados em nossa história da cultura. No caso do presente artigo, analiso a contribuição de alguns filmes recentemente lançados que, ao meu ver, subvertem a compreensão de territórios periféricos como estes até então foram abordados pelo cinema nacional e terminam por apresentar uma forma nova e original de interpretar as diversas realidades que estão em jogo nesse debate. Cabe ainda, antes de entrar efetivamente na discussão, lembrar que as políticas públicas orientadas nesse sentido foram suspensas de forma abrupta em 2016 pela deposição da presidente eleita do Brasil Dilma Rousseff. Como bem sabemos, no campo da produção cultural, a continuidade de processos é fundamental para consolidação de novos cenários e para a emergência de trabalhos 254


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mais consistentes para análise crítica. Sendo assim, vale ressaltar que o desmonte dessas políticas públicas operado nesse momento no Brasil apresenta novos desafios a serem enfrentados pela pesquisa. A hipótese defendida aqui parte da ideia de que Branco Sai Preto Fica (2014) de Adirley Queiroz, Ela Volta Na Quinta (2015) de André Novais Oliveira, A Vizinhança do Tigre (2016) de Affonso Uchoa e Arábia (2017) de Affonso Uchoa fazem parte de uma série de longas-metragens contemporâneos lançados nos últimos anos que reconfiguraram de maneira contundente a forma de abordar um conjunto de temas como pobreza, fome, favela, periferias, migração (sertão-cidade) que, historicamente, exerceram um papel de protagonismo dentro do debate sobre o cinema brasileiro. Inicialmente, cabe discutir, como forma de localização para o leitor, dois movimentos fundamentais dentro do histórico desse debate que, acredito eu, ajudam a delimitar o que pretendo apontar como uma virada importante, e talvez até paradigmática, para a construção de um cenário mais democrático, mais inventivo e mais potente dentro do campo do audiovisual brasileiro. O primeiro movimento surge a partir da discussão instaurada na década de 1960 por “Eztetyka da Fome 65” (1965), texto de Glauber Rocha no qual o cineasta faz um duro ataque a uma concepção sobre a fome como folclore, ao paternalismo do europeu em relação à pobreza do terceiro mundo, ao humanismo piedoso que pautava essa relação no campo das interações estéticas (linguagem de lágrimas e mudo sofrimento) e ao papel resignado de vitimização dentro de uma visão sociológica sobre a América Latina. No texto, Glauber propunha como resposta um cinema violento, “estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto” (2004, p.66), um cinema que impusesse esse tema pela força de suas imagens e sons. Cito Glauber: A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e da ufanista mentira cultural: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o intuito de construir escolas sem criar professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar o ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede; o cinema novo, no campo internacional, nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons em 22 festivais internacionais. (ROCHA, 2004, p.66). 255


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Mais à frente, no mesmo texto, recusando a ideia de primitivismo e exotismo, Glauber segue delimitando essa ideia de violência que, segundo ele, não estaria condicionada pela noção de ódio: Uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse o Argelino. (ROCHA, 2004, p.66).

Nesse texto, que faz parte de uma espécie de cânone da produção crítica acerca da cultura brasileira no século XX, Glauber reivindica noções muito presentes no debate político/cultural da época e tenta escapar de um modelo dialético que ele mesmo define como discurso sociológico acadêmico. Ele identificava as perspectivas presentes nos debates da sociologia brasileira do período como responsáveis pela permanência de uma posição subserviente na nossa relação colonizado/colonizador e afirmava que esta, a sociologia brasileira, ainda produzia seu discurso a partir de uma visão de mundo constituída dentro dos postulados do humanismo ocidental, um modelo de pensamento hierárquico e perverso. Um outro movimento desse debate importante de destacar ocorre já no início dos anos 2000. Nesse momento, a pesquisadora e crítica Ivana Bentes, ao analisar produções recentes do cinema brasileiro, cunhou um termo que jogou nova luz sobre o tema: cosmética da fome (2007). Sob outro contexto, a fome foi mais uma vez disparadora de um debate que envolveu muitos nomes do cinema nacional e colocou em xeque um conjunto de filmes como Central do Brasil (1998) de Walter Salles, Eu Tu Eles (2000) de Andrucha Waddington, Cidade de Deus (2002) de Fernando Meirelles e Kátia Lund, Orfeu (1999) de Cacá Diegues, entre outros que tematizavam relações de pobreza e carência de distintos tipos. A partir de uma revisão do texto de Glauber, Ivana Bentes contrapõe à perspectiva da violência proposta pelo cineasta uma tendência no cinema brasileiro daquele momento de glamourização da pobreza. Segundo a pesquisadora, essa tendência aparece, no caso do sertão por exemplo, numa linguagem e fotografia clássicas que o transformam num jardim ou museu exótico. 256


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Cito Ivana Bentes: Passamos da “estética” à “cosmética” da fome, da ideia na cabeça e da câmera na mão (um corpo-a-corpo com o real) ao steadicam, a câmera que surfa sobre a realidade, signo de um discurso que valoriza o “belo” e a “qualidade” da imagem, ou ainda, o domínio da técnica e da narrativa clássicas. (BENTES, 2007, p.245).

Ainda segundo Ivana Bentes o mesmo tipo de procedimento cosmético pautava a forma como uma série de filmes produzidos naquele momento abordava questões referentes ao cotidiano das favelas e bairros das periferias brasileiras, utilizando como matéria prima a violência do tráfico e a criminalidade de uma maneira geral. Nesse caso, a cosmética se dava a partir de uma linguagem e uma fotografia pós MTV e videoclipe, com foco na espetacularização das cenas de violência e inspiração no formato dos filmes hollywoodianos de ação. Reproduziam, assim, a narrativa já construída inúmeras vezes no cinema ocidental do turismo no inferno, retratando a favela como um cartão postal às avessas e expressando o que Ivana Bentes chamou de novos formatos do brutalismo e do realismo. A autora conclui essa ideia da seguinte forma: A questão é que não estamos mais lutando contra o olhar exótico estrangeiro sobre a miséria e o Brasil que transformava tudo “num estranho surrealismo tropical, como dizia Glauber em 1965. Somos capazes de produzir e fazer circular nossos “próprios clichês em que negros saudáveis e reluzentes e com uma arma na mão não conseguem ter nenhuma outra boa ideia além do extermínio mútuo. (BENTES, 2007, p.253).

Nesse mesmo texto, e se faz importante destacar isso aqui em favor do ponto de vista historiográfico da nossa crítica de cinema, Ivana Bentes cita alguns filmes do período que, para ela, não endossavam essa perspectiva: nesse sentido, ela elege longas-metragens como O invasor (2001) de Beto Brant – que no texto ela discute em interlocução com “O cobrador” (1979), conto de Rubem Fonseca que inaugura a ideia de brutalismo na literatura brasileira –, Os matadores (1997) de Beto Brant, Como nascem os anjos (1996) de Murilo Salles e Um céu de estrelas (1996) de Tata Amaral. No campo do documentário, cita de Eduardo Coutinho Santo Forte (1999) e Babilônia 2000 (1999), e 257


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ainda Notícias de uma guerra particular (1999) de João Moreira Salles e Kátia Lund. Ivana Bentes afirma perceber nesses filmes o apontamento de um outro caminho, ao colocar na tela personagens que fabulam sobre sua própria existência, sem demonizar ou glamourizar os personagens e os territórios da miséria. Nos casos específicos dos longas-metragens de ficção citados no parágrafo acima, Ivana Bentes afirma que esses filmes – ao contrário dos cosméticos, que não relacionam nem a violência nem a pobreza com as elites, a cultura empresarial, os banqueiros, os comerciantes, a classe média, e apontam para o tema recorrente do espetáculo do extermínio dos pobres se matando entre si –, indicam a falência ética e dissolução de pactos sociais que formataram o Brasil do século XX (p.249). Sobre esses filmes que escapam ao seu conceito de cosmético, Ivana afirma: Um cinema que destrói o paternalismo e lirismo que ainda poderiam povoar os sonhos da classe média diante dos que estão à margem, da mesma forma que destrói a imagem de uma classe média tolerante e impermeável à violência cotidiana, disposta a “compreender” a miséria. (BENTES, 2007, p.249).

Nesse sentido a autora vai de encontro ao que Glauber defende no seu texto e que já debatemos brevemente nesse artigo. Como desdobramento desse segundo movimento, cito ainda um texto que circulou consideravelmente na área de Letras das universidades brasileiras desde sua publicação em 2004 no jornal Folha de S. Paulo, principalmente entre pesquisadores interessados em refletir sobre a emergência de vozes ditas periféricas da nossa cultura, que é o “A dialética da marginalidade – caracterização da cultura brasileira contemporânea” (2015) de João Cezar de Castro Rocha, professor e pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Obviamente, trata-se de um texto que dialoga com o clássico, para qualquer estudante da área de Letras no Brasil, “Dialética da malandragem” (1970) de Antonio Candido. Podemos considerar também esse texto como uma proposta de interlocução com Ivana Bentes, apesar de João Cezar de Castro Rocha fazer uma menção muito pouco interessada sobre o artigo publicado alguns anos antes do seu. Mas é visível que existe uma conexão entre eles, como, por exemplo, pelo fato do autor analisar com enorme cuidado e atenção o papel de Cidade de Deus – tanto o livro (1997) quanto o filme (2002) –, e elegê-los como 258


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alguns dos trabalhos que exercem maior espaço de protagonismo dentro de sua reflexão. Rocha ainda traz o mesmo conto que Ivana Bentes, “O cobrador”, de Rubem Fonseca, como uma baliza importante para discussão que apresenta sobre realismo, violência e práticas estéticas brasileiras contemporâneas. De forma breve, vale resumir aqui o pressuposto de João Cezar de Castro Rocha no texto. Ele defende a ideia da suplementação do termo malandragem por marginalidade, na tentativa de defender que o conceito de malandragem, como chave de interpretação e caracterização da cultura brasileira, operava em termos conciliatórios e que abafavam a exposição do conflito em nossa sociedade. Cito o autor: Ora, porque não pensar que a dialética da malandragem e a ordem relacional tem sido parcialmente substituídas pelo seu oposto, a dialética da marginalidade e a ordem conflituosa? Tal substituição tem consequências profundas, pois o conflito aberto não pode mais ser mascarado sob aparência do convívio carnavalizante. A hipótese da emergência da dialética da marginalidade ajuda a compreender o ponto comum de produções recentes que desenham uma nova imagem de país: imagem essa definida violência, transformada em protagonista de romances, textos confessionais, letras de música, filmes de sucesso, programas populares e mesmo séries de televisão. A violência é o denominador comum, mas a forma de abordá-la define movimentos opostos, determinado a disputa simbólica que interessa explicitar (ROCHA, 2015, p.281).

Na sequência do texto, ele elege três artistas como expoentes da perspectiva que apresenta: o escritor Ferréz, o também escritor Paulo Lins e o grupo de música Racionais MCs. E destaca alguns trabalhos específicos como exemplos para o conceito: os documentários Ônibus 174 (2002) de José Padilha e À margem da imagem (2003) de Evaldo Mocarzel, o livro Manual Prático do ódio (2003), publicado por Ferréz, e ainda determinadas letras de raps do Racionais MCs. Conclui o ensaio, inclusive, com a seguinte passagem de “Rapaz comum” (1997): “olha no espelho e tenta entender”, seguida pela sua afirmação “muitos dos manos que teimam em contrariar as estatísticas estão seguindo o conselho.” (ROCHA, 2015, p.290). Como já afirmado, João Cezar de Castro Rocha demonstra pouco interesse no debate apresentado e delineado pelo texto de Ivana Bentes e, mais 259


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especificamente, menos ainda pelo conceito de cosmética da fome. No início do seu texto, o autor chega a afirmar: “As discussões sobre o filme Cidade de Deus com base na oposição entre estética e cosmética da fome pouco contribuem para o entendimento do panorama contemporâneo, pois terminam reduzindo sua novidade a modelos teóricos dos anos 1960 e 1970.” (p.279). De fato, podemos afirmar que João Cezar de Castro Rocha dá um considerável passo além na operação conceitual que propõe em favor do conceito de marginalidade como uma tentativa de recuperar e avançar sobre uma das chaves teóricas mais recorrentes da crítica literária brasileira que é a dialética da malandragem. A maneira como autor demonstra uma presença constante em nossa literatura, no seu sentido de campo ampliado, de soluções que passam pela perspectiva conciliatória é uma contribuição de enorme relevância para esse debate. João Cezar de Castro Rocha explicita com precisão como é comum nas narrativas brasileiras evitarmos o lugar do conflito e, por consequência, a própria noção de ruptura com uma realidade indecente, sempre em prol de uma crença no acordo e na conciliação das profundas diferenças que definiram e ainda definem a sociedade brasileira. Acredito, inclusive, que esse é um dos primeiros movimentos teóricos contemporâneos na área de Letras que se mostrou efetivo para refletirmos sobre uma certa falência do chamado projeto utópico brasileiro a partir da análise de práticas artísticas e estéticas. Com profundas bases no nosso pensamento social da primeira metade do século XX, esse projeto utópico, que evidentemente tem nuances muito mais detalhadas do que é possível apresentar aqui, afirmava a ideia do Brasil como um país que seria uma referência para o mundo de bom convívio entre as distintas culturas, crenças, classes sociais, perspectivas ideológicas, etc. Como exemplo mais agudo dessa vocação para ser uma expressão do multiculturalismo, o Brasil se tornaria uma experiência decisiva de democracia racial no ocidente e apontaria para um futuro possível num mundo marcado por conflitos étnicos e sociais. Essa perspectiva marcante como clave de interpretação da sociedade brasileira, de certa forma, influenciou as práticas estéticas produzidas aqui ao longo de todo século XX. São inúmeras obras que reverberam uma faceta desse projeto no campo artístico e que o fazem justamente pelo sentido de 260


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conciliação permanente para os conflitos políticos e sociais. É exatamente essa visão de Brasil, ao que me parece, que João Cezar de Castro Rocha aponta no seu texto como característica decisiva da nossa cultura. Uma das sugestões que decorrem dessa reflexão e que indicam uma saída possível para o autor é que atores sociais historicamente excluídos pelas elites culturais do sistema de produção e circulação de obras artísticas estariam reivindicando e assumindo uma posição de narradores sobre seu cotidiano e o contexto em que vivem. Estariam, assim, desmontando um sistema em que as formas de representação, encenação e discurso sobre territórios determinados como carentes serviam somente para a manutenção de sua condição de periféricos e para reificar que a única saída para essa condição seria por um pacto social e político com bases multiculturais. É interessante observarmos que João Cezar de Castro Rocha, ainda que de forma lateral, tem também o mérito de indicar, nesse ensaio, o que anos depois se tornou um dos debates de maior centralidade para crítica cultural e pesquisa de práticas artísticas no Brasil. A questão do lugar social e econômico do autor, das perspectivas identitárias e territoriais que constituem sua história de vida, da experiência biográfica em relação ao conteúdo expresso, já estão postas de maneira objetiva e efetiva em seu texto. Evidentemente, no momento em que o trabalho de João Cezar de Castro Rocha foi publicado, os estudos culturais e os estudos pós-coloniais já eram contribuições teóricas com razoável lastro nos debates brasileiros. A pergunta sobre se importa quem fala na hora de abordarmos criticamente um texto já havia sido incorporada ao debate no nosso meio acadêmico a partir da circulação de autores como Stuart Hall, Homi Bhabha, Paul Gilroy, entre outros que indicavam uma nova forma de pensar as questões das diásporas e da experiência pós-colonial. Porém, é relevante destacar que o autor, de alguma forma, antecipa em seu texto isso que agora em 2017 exerce um papel de protagonismo e de enorme eco nos nossos debates sobre literatura e cultura. Reconhecendo a importância e a real contribuição do texto de João Cezar de Castro Rocha para o debate aqui delimitado, acredito que seja válido, como tentativa de desdobrar ainda mais o tema e apontar possíveis avanços para nosso debate literário, problematizar algumas questões presentes em seu argumento. A direção que seu texto conclui pode também ser observada, dentro da minha perspectiva sobre o tema, como uma direção que recai na 261


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armadilha de uma abordagem essencialista sobre o campo estético. Isso ocorreria quando o autor insiste de forma veemente que o lugar da originalidade, da potência estética das periferias, está em assumir uma espécie de primeira pessoa da narrativa que, a partir de sua experiência in loco, poderá falar com a devida legitimidade e fidelidade sobre a realidade violenta e conflituosa que marcam as desigualdades sociais brasileiras. Esse ponto, de fato, é fundamental diante das imensas lacunas que precisam ser preenchidas por essas vozes que permaneceram à margem da produção artística no século XX em nosso país. Parece elementar, mas infelizmente não o é, que existe uma enorme urgência em incorporar ao debate sobre questões que atingem objetivamente as periferias brasileiras narrativas e interpretações que sejam constituídas por essas vozes e corpos. Até porque é importante ressaltar que essas narrativas de um hiper-realismo, com experiência do corpo vivida, com a pegada etnográfica e documental, além de cumprirem um papel fundamental no campo político, também incidem de forma consistente e relevante no debate estético. Porém, um erro crasso da intelectualidade brasileira é homogeneizar a subjetividade sob a noção de comunidade (no sentido que nós usamos para periferias dos centros urbanos). É acreditar que o desejo, as potências estética e discursiva desses atores sociais respondem a um mesmo tipo de demanda: e que, em geral, esse desejo e essa potência existem a partir das questões de violência e criminalidade que são enfrentadas cotidianamente nesses territórios. Vale aqui visitar novamente o texto da Ivana Bentes, que me parece conduzir a uma pergunta mais produtiva e forte do que a missão que João Cezar de Castro Rocha conferiu aos agentes eleitos por ele. Nas palavras dela: A questão ética é: como mostrar o sofrimento, como representar os territórios da pobreza, dos deserdados, dos excluídos, sem cair no folclore, no paternalismo ou num humanismo conformista e piegas? A questão estética é: como criar um novo modo de expressão, compreensão e representação dos fenômenos ligados aos territórios da pobreza, do sertão e da favela, dos seus personagens e dramas? Como levar esteticamente, o espectador a “compreender” e a experimentar a radicalidade da fome e dos efeitos da pobreza e da exclusão, dentro ou fora da América Latina? (BENTES, 2007, p.244).

Seria possível seguirmos por muitas mais linhas aqui comentando como nos dois casos ainda se opera conceitualmente numa lógica representativa 262


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limitada. No artigo de Ivana Bentes explicitamente e, no caso de João Cezar, como uma espécie de terceirização dessa representatividade. Mas, em favor do objetivo primeiro desse artigo, proponho agora a entrada (e criação) de um terceiro movimento nesse debate. É, nesse sentido, e como uma provocação que me parece necessária, que gostaria de introduzir nessa discussão o conceito de um cinema fome zero, ou como desdobrou Daniel Castanheira, professor do Departamento de Letras da PUC-Rio e um importante interlocutor dessa pesquisa, o que ele chamou cinema da nutrição. Para além do jogo retórico com o conceito que balizou os ensaios de Glauber Rocha e Ivana Bentes e com saída do Brasil do chamado mapa da fome nos anos dos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), o que interessa destacar nesse terceiro movimento é uma transformação radical que, ao incluir de forma mais efetiva e consistente atores sociais que historicamente estiveram impedidos de ter acesso aos meios de produção do audiovisual, possibilitou a emergência de estéticas diversas e plurais que enriqueceram o cinema brasileiro e são capazes, como estão fazendo, de dialogar com a cena contemporânea mundial do cinema. O curta Quintal (2015), por exemplo, dos mesmos realizadores do longa Ela volta na quinta, a produtora Filmes de Plástico da cidade de Contagem (MG), dirigido por Andre Novais e citado bem no início dessa fala, foi o único curta-metragem brasileiro selecionado para a semana dos realizadores do Festival de Cannes em 2015. Mesmo festival em que o diretor do curta já havia sido premiado com uma menção honrosa em 2013 por outro curta intitulado Pouco mais de um mês (2013). Branco sai preto fica, de Adirley Queiroz de Ceilândia (DF), fez excelente carreira internacional e recebeu várias premiações importantes do circuito europeu de cinema. Da mesma forma Ela Volta na Quinta e A vizinhança do Tigre, filme também produzido em Contagem mas realizado pela Katasia Filmes. O filme Arábia de Affonso Uchoa foi o vencedor do Festival de Brasília de 2017. Um dado fundamental, já introduzido no início desse artigo e que baliza a tentativa de pensar essa produção dentro de uma nova chave conceitual, é que todos eles são resultado de uma virada determinante e paradigmática das políticas públicas para cultura no Brasil pós 2003. Cabe destacar, mesmo que de forma ainda resumida, o que seria essa transformação de paradigma. 263


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As políticas culturais no Brasil, historicamente, desde que surgiram na década de 1930, foram pautadas por dois vetores: o patrimonial: que ao longo de todo o século XX foi circunscrito ao patrimônio material clássico (museus, acervos, grandes bibliotecas, teatros, conservatórios), e o pedagógico: aquele que acreditava que haveria uma função educativa em levar cultura para os territórios carentes das periferias urbanas brasileiras e para o meio rural. E que essa função/missão seria alinhada e determinada pelos intelectuais, aqueles que carregam a luz, formando assim cidadãos com bases e valores humanistas e multiculturais. O que a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura (MinC) reverteu plenamente, abrindo espaço para uma política inovadora e multiplicadora para o setor cultural como um todo, foi essa lógica pedagógica. A partir da compreensão de que todo território comporta muitas vocações e desejos diversos, o poder público brasileiro mudou sua chave de leitura sobre esses espaços como territórios de carência para uma compreensão de que estes são territórios de potência, mesmo que represada por uma lógica de exclusão. Em vez de levar cultura, o que o ministério de Gilberto Gil entendeu foi que o papel do estado é proporcionar condições de produção e viabilização, pois estas naturalmente detonarão processos e práticas artísticas originais, instigantes e capazes de modificar nosso olhar, nossa escuta, nossa sensibilidade e campo de partilha estética. Quando Gilberto Gil, em seu discurso de posse, falou sobre a necessidade de aplicar um do in antropológico na produção cultural brasileira, termo que foi alvo de piadas e ridicularizações na época, era exatamente esse papel do estado em ativar territórios e agentes de potência represada que ele queira apontar. Qualquer trabalho de análise séria de interpretação do Brasil identifica facilmente como esses territórios carentes/potentes são espaços de invenção capazes de criar expressões culturais de aguda inteligência estética, social, tecnológica, econômica, arquitetônica, etc. Assim é agora no audiovisual também. E insisto, com grande parcela de responsabilidade das políticas democráticas, distributivas de orçamento e de meios de produção em geral que foram executadas na gestão de Gilberto Gil nos anos do governo de Luís Inácio Lula da Silva. Para encaminhar o fim desse texto, voltando ao diálogo com os intercessores que trouxe e na esperança de dar pelo menos algumas pistas mais concretas do conceito que começo a esboçar, vale pelo menos indicar seu mote principal. 264


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Assistindo aos filmes citados nesse terceiro movimento (e muitos outros ainda não incluídos nessa pesquisa), salta aos olhos uma nova forma de pensar, narrar e filmar as periferias brasileiras. E essa nova forma não carrega a dívida de debater e denunciar a pobreza, a criminalidade, a violência, a fome ou mesmo de estetizar esses temas em qualquer cor ou tom de perspectiva determinista. Como dado concreto, dentro da perspectiva que move a pesquisa que originou esse texto, percebe-se que estamos diante de um cenário que, mais que tudo, abre um novo horizonte de expectativas para realizadores do audiovisual brasileiro. Não há mais espaço para delimitar temas, estéticas ou formas narrativas que seriam tipificados como cinema de periferia. Derruba-se a própria ideia de que cinema de periferia e violência são parte de uma mesma equação e estão necessariamente associados. Retiram-se, assim, os realizadores chamados periféricos de um gueto temático que é consequência das mazelas sociais em que estão inseridos. Nem mais estética, nem mais cosmética da fome, mas sim a superação da fome (e seus desdobramentos) como elemento constituinte de narrativas sobre esses territórios. O que esses filmes apresentam é uma liberação e uma superação de um cinema com excessivos clichês que marcaram os longas-metragens brasileiros, principalmente entre a década de 1990 e o início dos anos 2000. As marcas dessa desigualdade social constitutiva da realidade brasileira não deixam de fazer parte do imaginário e da construção dos personagens que os filmes citados apresentam, mas, definitivamente, é possível afirmar que a perspectiva redentora, marcada na produção anterior pela inviabilidade de produzir modos de vida nesses territórios hiperviolentos, é substituída pela simples afirmação de que, sim, existem infinitos modos de vida nas favelas e periferias urbanas brasileiras. E que esses modos de vida, ao se tornarem histórias a serem contadas, revelam sua universalidade e sua enorme diversidade de formas de ver o mundo. Os filmes aqui elencados são filmes sobre sensibilidades, experiências, corpos, fabulações, que não respondem a um critério de protagonismo desse ou daquele tema. São simples maneiras de interação estética a partir de olhares e vozes que só agora acessaram os meios que possibilitam a construção de uma linguagem audiovisual. Fome e marginalidade ainda são elementos importantes dessa equação, mas não possuem mais a primazia sobre o desejo de falar e filmar. Esta é uma hierarquia ultrapassada e desestabilizada, ou melhor, suplementada por esses novos realizadores. 265


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Para ilustrar esse terceiro movimento, que faz parte de um processo de pesquisa em vigência como já foi afirmado, selecionei aqui duas falas desses realizadores que podem nos ajudar a iluminar a que passo está esse debate dentro do cenário do cinema brasileiro. Inicialmente destaco uma citação retirada de uma entrevista de Andre Novais, diretor do Ela Volta Na quinta, que é bem sintética e objetiva: “Minha intenção é colocar o negro como alguém que vive normalmente. Sem a questão da violência ou do tráfico de drogas, que geralmente é como é retratado no cinema brasileiro e até no cinema mundial.” (NOVAIS, 2016, s/p.). Por fim, uma segunda citação, agora do realizador Lincoln Péricles, diretor de Aluguel: o filme (2015), e que foi escrita por ocasião do convite feito para exibir o filme na Semana dos Realizadores, festival que acontece anualmente no Rio de Janeiro. Os membros da equipe do filme não vieram para exibição porque estavam envolvidos nas ocupações das escolas públicas de São Paulo conflagrada naquele ano e optaram por enviar uma carta aos produtores do festival. Dessa carta, retirei o trecho abaixo que me parece muito significativo para o debate que tentei mapear nesse artigo. E que, por serem palavras de um jovem realizador já formado no contexto das políticas públicas aqui descritas, acredito ser uma excelente maneira de concluir o presente artigo: Nós, equipe do filme Aluguel: O Filme não fazemos cinema brasileiro, fazemos filmes. A média de idade da nossa equipe é 25 anos e negamos a ideia de que não sobrou rebeldia à nossa geração ou que a utopia e mudança do mundo é um sonho distante. Não esmagamos nossa rebeldia nas palavras fáceis que durante a história da arte e do mundo foram usadas para acalmar e matar corpos do povo em fúria, palavras tais como: “afeto”, “periferia” ou mesmo “arte”. Essas e outras palavras queremos usa-las com toda força assim como usamos, stricto sensu, tudo o que temos, para fazer nossos filmes como são. Não ao “afeto” burguês que é gênero e grife! Sim ao afeto-consciência-de-classe! Não à “periferia” nomeada e estimulada ao consumo pelo burguês! Sim ao nosso espaço-periferia de luta! Não à “arte” biscoito fino da burguesia! Sim à arte de invenção e risco! Não a tudo que nos oprime!

E assinam a carta da seguinte forma: “Texto escrito direto do expresso periferia Capão Redondo, zona sul (São Paulo). Com colaboração de militantes e parceiros de luta-arte-vida. Assinado: Equipe de Aluguel: O Filme”. 266


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Referências bibliográficas BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. Revista Alceu, v.8, n.15, 2007, p.242-255. CASTRO ROCHA, João Cezar. A dialética da marginalidade: caracterização da cultura brasileira contemporânea. In: _____. Por uma esquizofrenia produtiva: (da prática à teoria). Chapecó, SC: Argos, 2015. NOVAIS, André. Ela volta na quinta retrata família da periferia que poderia ser a sua. Revista Carta Capital, São Paulo, 2016. ROCHA, Glauber. Eztetyka da fome 65. In: _____. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p.63-65. SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Cena do Crime: violência e realismo no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.

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O CONTADOR DE HISTÓRIAS COMO IMAGEM: SOBRE VANGUARDA E TRADIÇÃO NOS CONTOS DE WALTER BENJAMIN Patrícia Lavelle

A imagem do contador de histórias Em “Experiência e pobreza”, texto de 1933, Walter Benjamin evoca o interesse crescente pelo tema da vida e da vivência (Erlebnis) no inicio do século XX, associando-o à desvalorização moderna da experiência tradicional, a Erfahrung que podia ser transmitida dos mais velhos aos mais jovens através de conselhos, provérbios ou histórias. Segundo ele, uma nova forma de miséria surge com a modernidade, pobreza cujo reverso paradoxal é o retorno a temas e formas de pensamento pré-modernas: Uma nova miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de ideias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização. Pensemos nos esplêndidos quadros de Ensor, nos quais uma grande fantasmagoria enche as ruas das metrópoles: pequenos burgueses com fantasias carnavalescas, máscaras disformes brancas de farinha, coroas de folhas de estanho, rodopiam imprevisivelmente ao longo das ruas. Esses quadros são talvez a cópia da Renascença terrível e caótica na qual tantos depositaram suas esperanças (BENJAMIN, 1993a, p.115; Benjamin, 1991b, p.214).

Podemos comparar as fantasmagorias arcaizantes na pintura de Ensor, tal como Benjamin as apresenta aqui, à sua própria atitude diante do contador de histórias, compreendida como uma figura arcaica, pré-moderna – espectro 269


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que faz aparição e deixa traços na modernidade de sua obra. Ora, se em “Experiência e pobreza”, ele valoriza positivamente a barbárie moderna, propondo um construtivismo vanguardista capaz de partir do ponto zero de experiência, o ensaio sobre Leskov, de 1936, assume um tom inegavelmente nostálgico que parece contradizer a primeira posição. Entretanto, o novo bárbaro disposto à construir com pouco e o contador que encontra na riqueza da experiência transmissível a matéria de sua arte, são as duas faces de um mesmo. Ao evocar o arcaísmo do narrador que se inscreve na tradição oral, Benjamin tem o projeto de construir uma nova forma profundamente moderna. De fato, ele não se refere a narrativa apenas teoricamente, no gênero do ensaio crítico, mas também numa produção ficcional na qual as estratégias tradicionais da arte de contar são mobilizadas e ironizadas. Como mostra Marc de Launay no estudo que acompanha uma coletânea de contos de Benjamin por ele traduzidos em francês,1 tais textos ficcionais se caracterizam pelo efeito de choque causado pela evocação nostálgica e pela brusca denúncia da nostalgia, pelo uso de formas narrativas tradicionais e por sua ironização pelo contista moderno, que não pode aderir substancialmente à estas. Procuraremos mostrar que esta forma arcaica aparece como uma fantasmagoria em sua reflexão teórico-literária. Aparição artificialmente invocada não apenas teoricamente, mas também em construções ficcionais, a imagem do contador de histórias aponta para um projeto alternativo (e vanguardista) de modernidade que se manifesta também nas formas de apresentação do pensamento. Invocada tanto no ensaio crítico sobre Leskov quanto numa série de contos, esta fantasmagoria se inscreve num horizonte de problematização da apresentação do pensamento que busca em elementos arcaicos uma alternativa ao projeto de modernidade baseado na ideia de progresso e na instrumentalização sistemática da linguagem. A figura pré-moderna do contador, já evocada no ensaio sobre As afinidades eletivas (2009) a partir da história contada aos personagens do romance, nos coloca diante da questão moral. Benjamin atribui uma grande importância ao conto que Goethe insere na trama romanesca, considerando-o como uma chave para a compreensão da obra. Nesta forma mais arcaica, representada pela 1 Cf. Préface. In: BENJAMIN, Walter. N’oublie pas le meilleur et autres histoires et récits. Tradução, apresentação e notas por Marc de Launay. Paris: L’Herne, 2012.

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narrativa curta, ele identifica o núcleo luminoso d’ As Afinidades eletivas, isto é, o elemento que remete à esfera da liberdade da qual os personagens do romance, cativos das convenções como de uma segunda natureza mítica, estão excluídos. Neste sentido, a conclusão do conto é significativa: o jovem enamorado não hesita em mergulhar em águas agitadas para salvar a amada que, num ato desesperado, joga-se de um barco. Ao interpretar esse ato heroico – e o episodio no qual o rapaz desnuda o corpo da moça, não para contemplar sua beleza, mas no intuito de salvar-lhe vida – Benjamin chama a atenção para a passagem da esfera estética à uma ordem mais alta. Como veremos, tanto sua reflexão teórica sobre o contador de histórias quanto o recurso ficcional a estratégias próprias à arte de contar se inscreve na perspectiva do enraizamento de todo pensar na esfera da liberdade e na interrogação sobre o sentido da ação humana. A arte de contar: tradição e modernidade Contemporâneo de Dostoievski e de Tolstoi, Nicolai Leskov viveu e escreveu na época de apogeu do romance russo do século XIX. Entretanto, ao caracterizá-lo, logo nas primeiras linhas do ensaio de 1936, Benjamin o assimila à figura arcaica do contador de histórias, cujas origens pré-modernas se encontram na tradição oral, na transmissibilidade da experiência da vida, a qual estaria irremediavelmente perdida no mundo moderno. Assim, ele situa Leskov num passado anterior ao da modernidade que, no século XIX, encontra sua expressão literária no romance burguês e sua forma filosófica no sistema. O anacronismo não é arbitrário – o contista russo se serve efetivamente de formas narrativas tradicionais que se alimentam de um farto material popular e da tipologia do conto de fadas – mas indica, entretanto, a orientação mais geral do estudo como caracterização da figura arcaica do contador de historias em sua relação com a modernidade. O contador é um espectro. Aparição do passado no presente, essa figura construída em torno de Leskov no ensaio de 1936 não é uma simples metáfora, mas possui uma certa materialidade que se encarna não apenas no escritor russo, mas também na obra de Hebel, de Poe ou de Kipling, entre outros autores citados. Sobre o projeto do ensaio sobre o contador, que pode ser compreendido como a produção de uma fantasmagoria, Benjamin se exprime em duas cartas de 1936. “Tenho me ocupado sobretudo com um estudo sobre Nikolai Leskov no qual falo menos sobre este grande contista russo do que sobre o tipo do 271


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contador em geral, sua relação com o romancista e com o jornalista e seu lento desaparecimento da face da terra”, afirma numa carta de Paris, endereçada a Werner Kraft2 (BENJAMIN, 2000, p.289). Uma semana mais tarde, torna a escrever sobre o assunto, desta vez dirigindo-se à Adorno: “Escrevi nos últimos tempos um trabalho sobre Nikolai Leskov o qual, sem se referir, nem mesmo de longe, à teoria da arte, contém alguns paralelos com a ‘perda da aura’ no que esta diz respeito à arte do contador de histórias.”3 (BENJAMIN, 2000, p.307). Apresentada como uma forma fundamentalmente aurática cujo declínio no mundo moderno estaria relacionado à emergência do romance, e sobretudo da informação, a narrativa tem um caráter artesanal. Isto significa que ela se alimenta da experiência de vida (Erfahrung) do contador, cuja marca se imprime na história contada “como o oleiro deixa a impressão de sua mão na argila do vaso”4 (BENJAMIN, 1991c, p.447). A experiência transmissível da tradição é, segundo Benjamin, a fonte a que recorreram todos os contadores. O senso prático é uma característica desta figura cuja autoridade se funda na sabedoria, “o lado épico da verdade” (p.442). Assim, a arte de contar pressupõe a capacidade de aconselhar, compreendida como o talento para sugerir uma continuação para uma história que está se desenvolvendo. O declínio da narrativa oral estaria relacionado ao empobrecimento desta experiência que outrora garantia o valor dos conselhos e se exprimia em provérbios e ensinamentos morais. Benjamin caracteriza tal crise através do contraste com o romance e com a informação. Se os contos podem ser compartilhadas e transmitidos oralmente, a recepção do romance implica a leitura silenciosa pelo indivíduo isolado. É também a perplexidade diante da singularidade individual que orienta o romance; este se interroga fundamentalmente sobre a inefabilidade do sentido de uma vida e sua conclusão corresponde simbolicamente à morte do personagem. A narrativa curta, ao contrario, coloca a questão moral de tal modo que a história não se acaba com o seu fim, mas suscita a interrogação sobre o que aconteceu depois, abrindo-se assim a outras histórias. Segundo Benjamin, o declínio da arte de contar que se enraíza na tradição oral corresponde à emergência do romance, mas se acentua com a própria crise deste, associada à 2 Carta n°1041, minha tradução. 3 Carta n° 1047, minha tradução 4 Todas as traduções de citações d’O Contador de histórias são de minha autoria.

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importância crescente da informação que encontra seu espaço nos jornais. Ora, esta se caracteriza pela proximidade, pela plausibilidade e pela explicação dos fatos. O saber que vem de longe para se transmitir misteriosamente nos contos não tem nenhum valor informativo. O interesse da informação está na proximidade, no aqui e agora de eventos que nunca vem sem numerosas explicações. Nela, nada é deixado ao julgamento do leitor. Por outro lado, a “metade da arte de contar está em despojar de explicações a história contada” (BENJAMIN, 1991c, p.445). A ausência de explicações psicológicas é uma característica fundamental do conto e remete às suas fontes antigas. Benjamin menciona à propósito disto a história, contada por Heródoto e comentada por Montaigne, do faraó egípcio Psammenit. No décimo quarto capítulo do terceiro livro de suas Histórias, encontra-se um relato que muito nos ensina. É sobre Psammenit. Quando o faraó egípcio foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei da Pérsia Cambises, este decidiu humilhar seu prisioneiro. Deu ordens para que Psammenit fosse levado até a rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. E assim fez com que o prisioneiro visse sua filha, reduzida à condição de serva, indo buscar água no poço, com um jarro. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos baixos; e, quando logo depois viu seu filho ser conduzido em cortejo para execução pública, permaneceu imóvel. Mas quando reconheceu na fila dos prisioneiros um de seus antigos servidores, um homem velho e miserável, então bateu na cabeça com os punhos e deu sinais da mais profunda tristeza (BENJAMIN, 1991c, p.445).

Segundo Benjamin, tal relato conserva suas forças depois de tanto tempo justamente porque renuncia a nos dizer o que se passa no coração e no pensamento do rei deposto. É sua concisão, aliada à ausência completa de explicações psicológicas, que nos deixa pensativos. Abrindo-se a uma pluralidade de interpretações e comentários que procuram, em vão, extrair da história uma moral ou um sentido, o conto não se explica numa frase, mas nos leva à multiplicidade difusa de representações que constitui aquilo que Hans Blumenberg chama de pensatividade (Nachdenklichkeit). Em um pequeno texto assim intitulado, Blumenberg evoca uma fábula de Esopo para refletir sobre este estado de espírito ao qual nos leva o conto. Ele o 273


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caracteriza como um momento de hesitação no qual nos confrontamos confusamente àquelas questões que não podemos responder, mas às quais também não devemos renunciar. Entretanto, a pensatividade se distingue do pensamento porque não conclui, não resolve nenhum problema, é apenas uma disposição, um espaço de jogo. Neste sentido, a pensatividade seria, segundo Blumenberg, um adiamento, um prazo dado contra os resultados banais e decepcionantes que o pensamento ordenado pode nos dar quando se interroga sobre a vida e a morte, o sentido e a ausência de sentido, o ser e o nada. Ora, se a filosofia passa por saber disciplinar com método tais questões – e por vezes as proíbe em razão do caráter inatingível de suas respostas – a pensatividade, essa produtividade suscitada pelo conto, estaria em sua origem. Assim, a conclusão de Blumenberg nos parece extremamente significativa para compreendermos o recurso à narrativa na perspectiva do gênero crítico no qual Benjamin situa seus trabalhos.5 Blumenberg afirma que a filosofia deve conservar, senão renovar, algo da origem, vinda do mundo da vida, que encontra na pensatividade. Pois, segundo ele, a filosofia representa uma constatação mais geral de toda cultura, isto é, que devemos respeitar as questões às quais não podemos atribuir uma resposta. Ora, ao evitar explicações, o conto nos ensina tal respeito – e a palavra respeito é aqui significativa pois nos remete aos objetos da razão prática. Diante do conto moderno que se alimenta de fontes pré-modernas, como a fábula ou o conto de fadas, se descortina a esfera na qual esses questionamentos aos quais não podemos dar uma resposta adequada encontram sua fonte. No ensaio sobre o contador, Benjamin afirma que o conto de fadas revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. Dirigindo-se às origens do homem, o conto de fadas apresenta a figura 5 É a partir da relação entre literatura e filosofia que, numa carta de 1920, endereçada à Ernst Schoen, antigo camarada de estudos, ele circunscreve o vasto campo da crítica, no qual inclui sua própria produção: “Muito me interessa, efetivamente, o princípio do grande trabalho crítico-literário: o campo compreendido entre arte e filosofia propriamente dita, que compreendo apenas como o pensamento ao menos virtualmente sistemático. É preciso conceber um princípio perfeitamente originário de uma forma literária a qual pertencem grandes obras como o diálogo de Petrarca sobre o desprezo do mundo ou os aforismas de Nietzsche ou as obras de Péguy. Nestas últimas, por um lado, e por outro no devir e nas relações de uma jovem pessoa minha conhecida tal questão se colocou sob meus olhos. Além disso, tornei-me consciente do fundamento originário e do valor da crítica também em meu próprio trabalho. Neste sentido, a crítica de arte, cujas fundamentações me ocuparam, é apenas uma parcela deste vasto domínio” (BENJAMIN, 2000, p.71, carta n° 252, minha tradução).

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do justo que não se identifica ao místico asceta, mas ao homem simples e ativo, capaz de enfrentar as adversidades com bondade e astúcia. Benjamin identifica tais elementos na produção de Leskov, o que lhe permite delinear os contornos da figura do contador, fantasmagoria na qual “o justo encontra a si mesmo” (BENJAMIN, 1991c, p.465). Segundo ele, o primeiro contador verdadeiro é e continua sendo o do conto de fadas, que sabia dar um bom conselho e oferecer sua ajuda na necessidade provocada pelo mito. O conto de fadas ensinou há muito tempo à humanidade e ainda hoje ensina às crianças a combater as forças do mundo do mito com astúcia e ousadia. [...] A magia libertadora do conto de fadas não coloca em cena a natureza de um modo mítico, mas indica a sua cumplicidade com o ser humano liberado (BENJAMIN, 1991c, p.458).

Levando-nos de volta à infância e aos primeiros esforços da humanidade para libertar-se do mito, o contador nos conduz à origem da filosofia na pensatividade – este espaço de jogo, essa vivência de liberdade que se abre à esfera da razão prática na qual o questionamento metafísico se enraíza. Assim, a nostalgia inerente ao ensaio sobre o contador não diz respeito apenas ao declínio da arte de contar e ao empobrecimento da experiência que constitui sua fonte, mas concerne também a pensatividade que se instala no sonho acordado, no devaneio – esta face interior do tédio que Benjamin associa ao ritmo do trabalho artesanal. “O tédio é o pássaro de sonho que choca o ovo da experiência” (BENJAMIN, 1991c, p.446), diz ele ao afirmar que as atividades artesanais que o propiciavam, prestando-se ao dom de ouvir e à arte de contar, estão em vias de extinção. O conto como gênero crítico Vivenciamos o surgimento da short story. Ela se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas que oferece a melhor imagem da maneira pela qual o conto perfeito vem à luz do dia a partir das camadas acumuladas por suas versões sucessivas. Walter Benjamin. Gesammelte Schriften, 1991, p.448.

Grande parte da produção ficcional de Benjamin se inscreve neste novo gênero literário que surge, por assim dizer, nas ruínas da arte de contar. Estes textos 275


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curtos, escritos ao longo dos anos vinte e trinta, utilizam elementos que caracterizam a tradição narrativa, tal como é apresentada no ensaio sobre Leskov. Entretanto, se o uso de tais recursos provoca em nós a nostalgia da origem do pensamento na pensatividade, o recurso à ironia marca a distância entre o contista moderno e as formas tradicionais das quais ele se serve, criando assim um efeito de choque. Neste sentido, a barbárie construtivista e a nostalgia da arte de contar correspondem a dois aspectos de um mesmo projeto filosófico-literário no qual o recurso ao arcaico visa encontrar uma alternativa para a imanência radical do mundo moderno. Encontramos um exemplo disso em “A sebe de cactos” (2018), onde o personagem principal, o irlandês O’Brien, incarna a figura do bárbaro moderno, disposto a começar do zero. O conto, escrito na primeira pessoa, narra o encontro, em Ibiza, com este excêntrico solitário cujas ocupações – a pesca, a caça e a arte de fazer e desfazer nós – remetem a um mundo arcaico. Da África, onde convivera com uma tribo primitiva, trouxera uma bela coleção de mascaras que fora, há muitos anos, roubada por seu melhor amigo. Assim, o narrador do conto se surpreende ao contemplar um impressionante conjunto de mascaras africanas reunidas em sua casa. O’Brien passa então a contar como vieram parar ali numa dessas noites em que o luar e o tédio estimulam a faculdade de produzir e de perceber semelhanças. Ele vira pela janela uma cerca de cactos ganhar vida e, como um grupo de guerreiros africanos, avançar usando as mascaras desaparecidas. Resolvera então esculpir suas visões oníricas na madeira. Mas a história não termina com essa invocação nostálgica, na qual o arcaico perdido reaparece no arcaísmo do sonho. A ironia fica reservada a um reencontro posterior com três dessas mascaras numa galeria de arte de Paris, onde especialistas garantem sua antiguidade e autenticidade. Como afirma o galerista, elas poderão “inspirar nossos jovens artistas a fazer suas próprias tentativas interessantes” (BENJAMIN, 2018, p.89). Os contos de Benjamin são como essas mascaras primitivas esculpidas pelo excêntrico O’Brien, neles o arcaísmo nostálgico é invocado e ironizado por um construtivismo reflexivo próprio aos procedimentos de vanguarda. Retorno do passado no presente, a fantasmagoria do contador constitui o próprio tema de “O Lenço” (2018). Neste conto, um marinheiro, o Capitão O..., possui todos os traços que compõe a figura do contador de histórias menos um, 276


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que aparece, entretanto, como fundamental: a faculdade de contar sua própria vida. Tal faculdade, que implica a ligação intrínseca entre a vida do contador e a matéria de suas histórias, corresponde à transmissão da experiência tradicional, essa Erfahrung que não se confunde com as vivências (Erlebnisse) radicalmente individuais e interiorizadas do homem moderno. Ora, o desenrolar do conto contradirá e confirmará essa constatação inicial. Encontrado por acaso durante uma escala, o Capitão O... conta ao narrador em primeira pessoa do conto que, há muitos anos, teve como passageira uma moça tão linda quanto discreta e silenciosa. Um dia, ela deixou cair no convés um lenço e, quando ele o apanhou, agradeceu seu gesto como se tivesse salvo sua vida. O marinheiro-contador descreve minuciosamente o lenço, que era ornamentado com um escudo bordado de estrelas, mas nada diz sobre seus próprios sentimentos e impressões. Conta apenas que, quando o barco estava para atracar, a bela passageira precipitou-se sem uma palavra e jogou-se no mar, justamente no pequeno espaço que restava entre a quilha e o cais. O perigo era grande e a moça teria sido rapidamente esmagada se, numa átimo de segundo, alguém não tivesse se prontificado para salvá-la. O episódio faz pensar na pronta decisão do rapaz que salva sua amada das águas geladas na pequena narrativa que constitui, segundo Benjamin, o núcleo luminoso das Afinidades eletivas de Goethe. Entretanto, o relato do marinheiro, todo na terceira pessoa, não inclui nenhuma alusão aos sentimentos pois não dá lugar a nenhuma explicação psicológica. Neste ponto, a história do Capitão O... é tão reservada e discreta quanto a moça, e sua beleza delicada vem justamente dessa extrema concisão. É a figura arcaica do justo que vemos surgir em sua simplicidade proverbial. Na contramão do romance psicológico do inicio do século XX, a short story de Benjamin nada diz sobre a interioridade dos personagens. Sua modernidade radical está na evocação irônica e nostálgica do relato arcaico que apenas expõe, sem nada explicar. Se no final ficamos sabendo que o herói da história é o próprio contador, isso se deve a uma única frase em primeira pessoa: “Quando a segurei assim, [...] ela sussurrou ‘obrigada’ como se eu tivesse lhe estendido um lenço que caíra ao chão.” (BENJAMIN, 2018, p.66). E a última imagem do conto é confiada justamente a este objeto cuja presença dispensa maiores explicações: o narrador reconhece o pequeno escudo bordado no lenço que o Capitão agita ao longe, ao despedir-se. 277


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Ao tematizar o próprio contador, evocando o seu espectro ou produzindo sua fantasmagoria, Benjamin ironiza a forma narrativa tradicional. Penso aqui no conceito romântico de ironia como um recurso formal, um distanciamento crítico que se inscreve na própria forma da obra, explicitando a reflexão nela contida e relativizando o seu caráter condicionado. Em sua tese de doutorado, que se apoia sobretudo em Friedrich Schlegel e em Novalis, ele compreende o conceito romântico de crítica como auto consciência da reflexão que se coloca em forma numa formação artística. Criticar significa então desenvolver a reflexão que já se encontra na obra, isto é, despertar e completar o pensamento nela colocado em forma. Segundo a interpretação de Benjamin, para os românticos, a crítica não é um julgamento sobre a obra, mas um método de seu acabamento pois deve ultrapassá-la em sua própria reflexão, torná-la absoluta. Assim, o conceito romântico de crítica de arte se funda sobre a dimensão reflexiva imanente à formação artística, sobre sua criticabilidade essencial. Nesta perspectiva, aquilo que os românticos chamavam de ironia corresponde à exacerbação formal do elemento crítico contido na própria forma da obra de arte, isto é, à acentuação reflexiva de sua reflexividade. Neste sentido, é significativo que este conto em torno da própria figura do contador se inicie ironicamente com uma reflexão crítica sobre o declínio da arte de contar. O narrador da pequena ficção começa por relacionar a morte da narrativa oral com o desaparecimento das atividades manuais e repetitivas que outrora deixavam tempo para o tédio. Assim, ao incluir no conto tradicional a própria teoria de seu declínio, distancia-se da simplicidade ingênua (no sentido de Schiller) que nos toca no relato de Heródoto, ou mesmo nos contos de Leskov ou de Hebel. A short story do início do século XX, tal como Benjamin a inventa, é um gênero sentimental. Isto quer dizer que, nele, a ironização dos procedimentos tradicionais da arte de contar implica não apenas a consciência de seu fim, e, portanto, uma certa nostalgia, mas também a reflexão irônica sobre sua reflexividade.

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RASTROS DE BABEL: DO TEXTO ÀS TELAS DA PINTURA E DO CINEMA Renato Cordeiro Gomes

A tarefa do historiador das imagens, por mais modesta que seja – pois as imagens são vestígios de histórias, traços, sintomas –, não se assemelha apenas a uma arqueologia, uma vez que escava o que a representação midiática tende a recobrir, mas também a uma tomada de posição crítica, visando a fazer despertar uma memória na atualidade ou uma atualidade na história. É, com efeito, o que poderíamos chamar o caráter intempestivo de toda análise consequente das imagens. Georges Didi-Huberman. La condition des images, 2011. Babel: antes de tudo um nome próprio, seja. Mas quando dizemos Babel, hoje, sabemos o que nomeamos? Sabemos quem nomeamos? Consideremos a sobrevida de um texto legado, a narrativa ou o mito da torre de Babel: ele não forma uma figura em meio a outras (....) ele também fala da necessidade de figuração, do mito, dos tropos, das circunlocuções [des tours = giros, voltas, passeios, vias, vozes, tornos, truques, e até mesmo desvios se confundem na confusão de Babel], da tradução inadequada para suprir aquilo que a multiplicidade nos interdiz. [...]. A “torre de Babel” não configura apenas a multiplicidade irredutível das línguas, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica. Jacques Derrida. Tours de Babel, 2006.

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A citação em epígrafe de Didi-Huberman pode nos remeter a uma metamorfose que nos serve de fio condutor: o texto do relato bíblico de Babel, centrado na construção da Torre, o mito, a narrativa, de que fala Derrida, fornece traços para que a imagem verbal, já marcada pela visualidade, projete uma imagem icônica, que certamente tenha como matriz o quadro de Bruegel de 1563, um empenho na tentativa de completar a necessidade de figuração. Tentativa essa que exibe o não-acabamento (reveja o quadro do pintor flamengo), apontando para a impossibilidade de totalizar.

Imagem 1 – “A torre de Babel” de Pieter Bruegel (1563)

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RASTROS DE BABEL

Imagem 2 – “A pequena torre de Babel”, de Pieter Bruegel (1563)

O texto verbal e o visual juntam-se e vão deixando rastros, vestígios dessa narrativa, traços, que também são sintomas de situações históricas, que podem ser escavadas através de representações, que, por sua vez, permitem despertar o que ia se apagando – a brasa que ainda queima sob as cinzas da memória (DIDIHUBERMAN, 2013), para ganhar potência na atualidade, ou uma “atualidade na história”. Rompendo a linearidade progressiva e causal, o método leva a imprimir a epistemologia do hoje no ontem (FOUCAULT, 1972) e permite coadunar traços disjuntivos, possibilitando novas relações entre imagens distanciadas no tempo, elementos intempestivos/extemporâneos (anacrônicos), que apontam para os rastros deixados pelo caminho e submetidos ao jogo de ausência e presença. Segundo Jeanne Marie Gagnebin, “o conceito de rastro é caracterizado por sua complexidade paradoxal: presença de uma ausência e ausência de uma presença.” E continua: “o rastro somente existe em razão da sua fragilidade: ele é rastro porque sempre ameaçado de ser apagado ou de não ser mais reconhecido 283


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como signo de algo que assinala” (GAGNEBIN, 2012, p.27). Nesse ensaio, “Apagar os rastros, recolher os restos”, em que procura apreender esse conceito em Walter Benjamin, destaca que “o estatuto paradoxal do rastro remete à manutenção ou ao apagamento do passado, i.e., à vontade de deixar marcas, até monumentos de uma existência humana fugidia, de um lado, e às estratégias de conservação ou de aniquilamento do passado, do outro.” (p.27). Ao observar a relevância do rastro para a concepção de história de Benjamin, a pesquisadora destaca que a escavação do passado se dá como o trabalho de um arqueólogo, mas ressalta não tanto o resultado da escavação, mas o próprio processo. Certamente, essa metodologia relaciona-se à modernidade marcada pelo desaparecimento ou deterioração de rastros de memória, de aura, de experiência, bem como a atrofia da narração de histórias, hábitos, ato de habitar; apagamento de traços seria um imperativo histórico-mundial em curso, incorporado ao modo de produção capitalista. Tal fenômeno pode ser também aproximado ao que Raymond Williams, em Marxismo e literatura (WILLIAMS, 1979, p.125) denomina residual: o que foi efetivamente formado do passado, mas como elemento efetivo do presente; ou seja, certas experiências, significados e valores que não se podem expressar em termos de cultura dominante, mas ainda são vividos e praticados à base de resíduos cultural e social – de uma instituição ou formação social e cultural anterior, que sobrevive no presente, sem nostalgia, junto à cultura dominante e à emergente. A partir do resíduo, elemento restante de uma trajetória realizada, é possivel elaborar uma perspectiva de compreensão ampla. Faz-se necessária a situação contemplativa para perceber o potencial de um resíduo. O rastro está ambiguamente em ausência e presença. Como resto já não é mais o que foi vivido. Sua presença é indicação de uma convergência entre o que está ausente e o que está diante dos olhos. Tratar um objeto como rastro implica admitir que tem mais de um significado possível. Por esta via, localizam-se a cifra, o índice (o signo indicial) e o romance policial – como ressalta Ginzburg (2012). Ao tentar acionar a imagem de Babel e sua torre como um rastro que persiste nesse jogo dialético de ausência e presença, em sua sobrevivência nas artes pláticas, na arquitetura, na literatura, no cinema, no teatro, nas mídias digitais etc, mito que frequenta o imaginário urbanista moderno e contemporâneo, é possível evocar o relato bíblico, os dois quadros de Bruegel, o prédio do Parlamento Europeu em Strasbourg, França, 284


RASTROS DE BABEL

Imagem 3 – Torre inacabada de Babel, autor desconhecido

Imagem 4 – Fusão da imagem do Parlamento Europeu com o quadro “A torre de Babel” de Pieter Bruegel (1563) - autor desconhecido (2013)

a instalação homônima de Cildo Meireles, elaborada com aparelhos de rádio, de 2001, hoje na Tate Modern de Londres,

Imagem 5 – “Babel”, Cildo Meireles (2001)

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os filmes Metrópolis (1927), de Fritz Lang, Blade Runner, O caçador de andróides (1982) de Riddlel Scott, até Babel (2007) do mexicano Alejandro Gonzáles Iñárritu e roteiro de Guillermo Arriaga, entre muitas outras, bem como textos literários de Kafka (O emblema da cidade, 1920), o de Murilo Rubião (o conto O edifício, 1965), e muitos mais, que vão retomando e reinpertretando o relato do Gênesis. Este, ligado a uma cultura sedimentada no livro e suas sucessivas exegeses (a interpretação talmúdica), já é escrita com palavras contaminadas por carga imagética que aponta para a visualidade que será o meio de repesentação que fornece signos que serão rastraeados por sucessivas visualizações não causais, mas disjuntivas. “Il faut regarder avec des mots”, assegura Didi-Huberman (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.12). *** Aqui, cabe um parênteses metodológico. Construo uma espécie de montagem/ colagem, ou uma constelação em que seleciono e aciono textos e imagens. A estratégia do pesquisador é produtiva nessa operação. Neste sentido, seguindo formulações de Didi-Huberman e Walter Benjamin, apela-se para “o conhecimento pelas montagens”: cada imagem leva a pensar como uma montagem de lugares e de tempos diferentes, às vezes contraditórios, a exemplo do atlas de Warbug, no que concerne à longa duração que aparece como un modelo de um método, uma mariz a ser desenvolvida. A montagem intrínseca a todo acontecimento poderia ser, do ponto de vista histórico, nomeado como uma anacronia ou uma heterocronia (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.95). *** Bruegel: uma matriz da Torre de Babel Como começo, eleito como estratégia do pesquisador, e não como origem, consideremos os dois quadros A Torre de Babel, de Bruegel, que se conecta ao edifício do Parlamento Europeu,

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Imagem 6 – Torre inacabada de Babel, autor desconhecido

e com ele se imbrica,

Imagem 7 – Fusão da imagem do Parlamento Europeu com o quadro “A torre de Babel” de Pieter Bruegel (1563), autor desconhecido (2013)

associando tempos disjuntivos: da destruição e dispersão a união e conjugação. O Parlamento seria uma resposta histórica e contemporânea a Babel, talvez invertendo o mito bíblico: a confusão das línguas deixa de ser punição e permite a co-habitação das linguagens, que trabalham lado a lado, encarnando, possivelmente, a “Babel feliz” de que fala Barthes (BARTHES, 1974, p.36). Isto se quisermos projetar aí um residuo utópico da construção de União que busca ultrapassar o conceito de Estado-nação como patologia histórica (SAFATLE, 2016). A guerra dos conflitos e dos relatos é gerada por situação histórica, e por isso transformável. Tal rastro, entretanto, pode gradativamente se apagar, apontando para seu contrário, se considerarmos como índices o Brexit do Reino Unido e o recrudescimento da xenofobia, da intolerância, do terrorismo, bem como o movimento para a independência da Catalunha, ou mesmo as 107 regiões do mundo de hoje que querem se separar (Folha de S. Paulo, 26/10/2017). De certa forma, pode-se relacionar esses fenômenos com o “conflito” previsto nos textos de Kafka e de Murilo Rubião, por exemplo, de que falaremos mais adiante... 287


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As duas versões do quadro de Bruegel, que representam a Torre em construção, podem, por sua vez, ser vistos como matriz e indiciam a sobrevivência da forma, que ganha conotações heterogêneas em contextos históricos diferentes, muitas vezes associadas às tecnologias e sua evolução que levam a reorientar a percepção humana (no duplo sentido de aisthèsis, percepção e estética). Nesta perspectiva, é que, ao discorrer sobre a vida privada no Brasil, o historiador Nicolau Sevcenko explora o fluxo de transformações causado pelos novos recursos técnicos que levam a reorientar a percepção humana. Desdobra essa observação geral para apreender o impacto das então novas tecnologias que condicionaram o desenvolvimento da cultura midiática, bem como afetaram as expectativas da sociedade e os projetos de cada indivíduo. Sobre isto, declara: As novas tecnologias, conquanto envolvam procedimentos e recursos que são postos e operados no espaço público, mas agenciam os desejos e as disposições psíquicas mais íntimas de cada um, influenciando a esfera mais estreita de suas deliberações em âmbito privado e interagindo decisivamente com esta. (SEVCENKO, 1998, p.520-521).

Esse estado das coisas afeta os regimes de representação da própria cidade que aciona um significativo arsenal de imagens, símbolos, mitos, metáforas, narrativas, conjunto que forma um repertório pronto a ser realocado, repetido, na tentativa de construir sentidos para a realidade urbana, enquanto fenômeno moderno e pós-moderno. Deste modo tal repertório constitui uma tradição. E de tal modo que, ao olharmos as imagens da cidade nas artes, na cultura das mídias e nas ciências sociais dos últimos dois séculos, reconhecemos que nossa visão é impregnada por essas imagens que foram se inscrevendo nessa tradição (em continuidade e transmissibilidade): a representação do objeto cidade é ela própria formatada pelas ações e imaginações dos sujeitos que o percebem, mesmo com concepções distintas de cidade. Quanto mais vemos a cidade moderna em sua “permanente transitoriedade”, para usar a expressão de Karl Schorske (1987), a olhamos através de uma série de lentes (mediações). Está neste caso a imagem da Torre que podemos rastrear nas artes plásticas, a exemplo da tela de Salvador Dalí, de 1963,

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Imagem 8 – “A torre de Babel”, Salvador Dalí (1963)

das maquetes do russo Tatlin, para o Monumento da Terceira Internacional,

Imagem 9 – “Maquete do Monumento em comemoração à Terceira Internacional”, Vladimir Tatlin (1919-1920)

Imagem 10 – "Maquete do Monumento em comemoração à Terceira Internacional", Vladimir Tatlin (1919-1920)

na arquitetura, como o já citado prédio do Parlamento Europeu, ou a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro,

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Imagem 11 - Catedral Metropolitana de São Sebastião do Rio de Janeiro, acervo pessoal (2018)

na fotografia, até objetos do cotidiano, como bolos de casamento.

Imagem 12 – Imagem do casamento associada à torre de Babel, autor desconhecido

A forma da Torre, a partir da representação que Pieter Bruegel, o Velho, fez dela, sobrevive em suas variações e interpretações, guardando muitas vezes o traço narrativo da obra deste pintor flamengo. Certamente a imagem ganha traço universal que aparece em todas as latitudes; basta olhar a instalação do coreano Nam June Paik, um dos inventores da vídeo-arte, 290


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Imagem 13 – "Quanto mais, melhor", Nam June Paik (1988)

Imagem 14 – "Quanto mais, melhor", Nam June Paik (1988)

ou uma peça das Six impossible things before breakefast, de 2011, do sueco Goran Hassanpour,

Imagem 15 – "Torre de Babel", Goran Hassanpour (2011)

ou a instalação realizada pela artista argentina Marta Minujín, Babel Tower of books in Buenos Aires, que parte da eleição dessa cidade como Capital Mundial del Libro, patrocinada pela Unesco.

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Imagem 16 – "Torre de Babel de livros", Marta Minujín (2011)

A recorrência a determinadas imagens pode significar alguma coisa para além de uma mera referência cultural para representar fenômenos ao longo do tempo. O mito de Babel que fecunda os imaginários é uma dessas recorrências facilmente verificável em seus múltiplos aspectos percebidos nos mais diversos discursos, como provam as imagens registradas neste ensaio. Suas reedições múltiplas, cenarizadas e dramatizadas em produtos midiáticos, desde a pletora das representações da destruição das Twin Towers, da babélica Nova York (digna de nota é a capa da revista The New Yorker, de 24/09/2011, elaborada por Art Spiegelman),1 passando pelo filme Babel (2006), produção americana, dirigida pelo mexicano González Iñárritu. A metáfora de Barthes – a Babel feliz –, entretanto, não se inscreve numa tradição que vê Babel como alegoria (ou símbolo) do desafio e da destruição, a partir do caos original do mito bíblico. O mito de Babel (Gen. 11, 1-9) é um acontecimento de disjunção que, em sua estrutura narrativa, é circunstanciado como fenômeno e catástrofe social. A Torre é o símbolo 1 A primeira capa da New Yorker, depois dos atentados, ocupa-se com aquele impasse: como representar as Torres, frente ao excesso de realidade, ao que não pode ser nomeado, ao que é inimaginável, depois do desaparecimento desse outro símbolo ascensional, que remete a Babel, essa moldura arcaica que sobrevive até a contemporaneidade do século XXI. O recurso puramente gráfico aplicava um preto 100% para as silhuetas das duas torres do World Center sobreposto a um preto 90%, sugerindo uma inscrição a indicar o que houvera ali, no agora ground zero, onde em seguida haveria dois focos de luz, mera sugestão, material e simbólica, de que ali, no vazio, uma era fora abalada e de que se estava começando um novo século: a incerteza aberta num presente precário e ao mesmo tempo expansivo. No local, hoje, há uma torre nova, um memorial e um shopping-center, isto é, o mesmo em diferença. Disponível em https://www.newyorker.com/ news/news-desk/911-new-yorker-covers. Acesso em: 14/09/2018.

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da confusão, e sua construção indica centramento, desafio do homem que se eleva desmesuradamente. Símbolo da empresa orgulhosa e tirânica, sua destruição aponta para o desvio, a dificuldade de comunicação (tema que as narrativas literárias e midiáticas exploram fartamente), e o isolamento como castigo (“Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros”, diz a Bíblia); é resultado da explosão da humanidade em frações hostis. A esses aspectos, juntam-se construção – inacabamento – destruição. O mito babélico envia à crítica da urbanidade mecânica, da rapidez, do gigantismo crescente (e daí facilmente grudado às representações da cidade moderna). Ilustra a dificuldade de comunicação, o tempo e o espaço esfacelados, mas expressando, igualmente, um empreendimento ligado à incompletude e a um permanente recomeçar. Associa-se, portanto, em sua projeção na metrópole moderna, ao espetáculo disforme da cidade fragmentada, desse universo descontínuo marcado pela falta de medida. Se a dispersão babélica motivou as tentativas de fazer emergir na cidade o diálogo humano, como resistência à incompreensão, se o diálogo é o símbolo mais pleno e a justificativa final da vida na cidade – segundo reivindica Mumford (1982, p.134) – o caos das metrópoles retoma quase circularmente a Babel mítica. O mito bíblico torna-se recorrente, enquanto suporte semântico de uma série de narrativas, que se orientam para uma nova síntese simbólica agregada a essa forma arcaica, com a qual procuram formalizar uma representação da cidade em permanente atualização modernizadora, emblematizada na imagem de um edifício-torre em construção, ou de sua destruição. O cinema, como já citamos, é particularmente rico neste sentido, numa tradição que vai de Metropolis (1927), de Fritz Lang, a Babel (2006), de González Iñárritu. Esta série midiática pode ser associada a uma outra, literária, em que podem ser inscritos textos, como mencionamos, a exemplo de “O emblema da cidade” (1920), pequena parábola de Kafka, o conto “O edifício” (1965), de mineiro Murilo Rubião (1974), até obras pós-modernas como a novela City of glass (Cidade de vidro) (1985), da Trilogia de Nova York, de Paul Auster, ou mesmo o romance Cosmópolis (2003), de Don DeLillo, por sua vez, base para o filme homônimo de David Cronenberg (2012).

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Babel revisitada por Kafka e por Murilo Rubião Há uma pequena parábola de Kafka, “O emblema da cidade” 2 (ou “O escudo da cidade”, ou “O brasão da cidade”), escrita em 1920, que pode ser relacionada ao conto “O edifício”, do mineiro Murilo Rubião,3 publicado em livro de 1965. Ambos, em seu aspecto alegórico, podem remeter ao projeto urbanístico da Modernidade e suas derivas contemporâneas, e seus mecanismos de controle. Ambos retomam o mito bíblico de Babel como suporte semântico, orientandose para uma nova síntese simbólica agregada a essa forma mítica arcaica, com a qual procuram formalizar uma representação da cidade em permanente atualização modernizadora, emblematizada na imagem de um edifício-torre em construção. “Essa reorientação simbólica se tornou possível pela disjunção entre a base religiosa de um mundo longamente estável e a irrupção desestabilizadora das novas tecnologias, assentadas sobre a aceleração, a fragmentação e a concentração isoladas das grandes cidades.” (SEVCENKO, 1991, p.171). Essas novas tecnologias modificam radicalmente a percepção e a sensibilidade urbanas e alteram o imaginário e a subjetividade, na linha demonstrada por Georg Simmel, no ensaio “As grandes cidades e a vida do espírito” (1903). Os dois textos – o de Kafka e o de Murilo Rubião – dramatizam um projeto de construção que, pautado por um sistema racionalizado para a produção de signos e de imagens, estabelece hierarquias e conflitos. A torre e a cidade como um fazer sem fim, sempre incompleto, são produtos da racionalidade geradora do progresso e atrelam-se ao totalitarismo dos planejadores, burocratas e elites corporativas que traçam as normas de controle. Revelam uma concepção de cidade rigidamente estratificada, dramatizando o desdobramento do processo de modernização. 2 Utilizo aqui a tradução de Geir Campos, in: KAFKA, Franz. Parábolas e fragmentos e Cartas a Milena, p.30-31. Há uma outra tradução de Modesto Carone, com o título “O brasão da cidade”, publicada no Folhetim, no. 449, p.12, Folha de S. Paulo, 01/09/1985. A tradução de Carone é reeditada no Mais!, Folha de S. Paulo, 03/01/ 1993, em que o tradutor e crítico assina também o ensaio “Nas garras de Praga”, sobre a presença desta cidade na obra de Kafka. 3 RUBIÃO, Murilo. Os dragões e outros contos. Belo Horizonte: Movimento-Perspectiva, 1965. A versão consultada para este trabalho é a publicada em O pirotécnico Zacarias, São Paulo: Ática, 1974, p.35-41. Todas as citações remetem a essa edição. Recentemente, “O edifício” reaparece no volume Contos reunidos do autor (São Paulo: Ática, 1997), organizado pela Profa. Vera Lúcia Andrade, na ocasião, responsável pelo acervo de Murilo Rubião, doado ao Centro de Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG – Acervo de Escritores Mineiros.

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O texto de Kafka apresenta, inicialmente, “a ideia de construir uma Torre que chegasse até o Céu” (KAFKA, 1987, p.30), em condições ideais em que “ia tudo em muito boa ordem” (p.30); tudo era previsto e controlado para que nada pudesse colocar obstáculos ao empreendimento coletivo. Impunha-se, definitivamente, o projeto. Cito: “E a ideia, uma vez concebida em toda sua magnitude, não pode mais ser afastada: enquanto existir a criatura humana, existirá o desejo de levar a cabo a construção da Torre.” (p.30). Pondera-se, em seguida, sobre as suas antinomias, inconsistências e impasses: a hesitação dos protagonistas do projeto se teriam forças e condições para levá-lo a bom termo, a mudança do projeto com o passar das gerações e a transformação da tecnologia, que exige atualizações permanentes. Motivados, entretanto, pela ideia da construção, “tudo mais é complementar” (p.30) – diz o texto –; não devia se temer o futuro, garantido com o progresso que vence o tempo; o trabalho de uma geração seria superado e aprimorado pela geração vindoura. Surgem, porém, a competição, os privilégios, a luta de classes e a ideia da insensatez do projeto, “mas já estavam todos demasiado comprometidos, para abandonarem o lugar” (p.31) – registra o narrador. Através de tais impasses, confrontam-se a intemporalidade e as contingências imprevisíveis das circunstâncias históricas, apontando para “o contra-senso de pretender condicionar a estrutura e a fisionomia das cidades a uma Razão modeladora que existe fora do tempo e por sobre o espaço” – (SEVCENKO,1994, p.22). A violência emblematizada pelo punho desenhado no brasão da cidade, a profetizar sua destruição, parece indicar a pretensão de “reduzir as descontinuidades históricas a padrões espaciais e temporais homogêneos, contínuos, estáveis e consolidados” (p.22). A boa ordem no início possibilita a demasiada preocupação em prever e administar os conflitos e gera um projeto que é mais importante em si que os fins propostos. O desentendimento e os conflitos não são consequência da destruição, mas do processo mesmo de construção. Sob o poder esmagador, que controla, mas não elimina tais conflitos (“Essas lutas não tinham fim e forneciam aos líderes um novo argumento: que, por faltar a indispensável harmonia, a Torre haveria de erguer-se muito devagar ou só mesmo após a instauração da Paz universal” (KAFKA, 1987, p.31), a utopia solidária se desmorona, indicando a perda da philia, que, segundo Anne Coquelin (COQUELIN, 1982, p.8), é a condição a priori da existência urbana. A visibilidade monumental da Torre expressa o reconhecimento do sem-sentido da construção, marcada com o símbolo da 295


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intensidade vertical da cidade como celebração da tecnologia, autonomizada em relação ao humano. A orientação geométrica, o monumental e a tecnologia são traços que marcam a política urbanística da modernidade, forma de controlar o espaço urbano, sob o signo do planejamento, quando é encarado como estratégia política autoritária de o presente, momento transitório, de passagem, colonizar o futuro, numa concepção de um tempo linear que comanda uma história triunfalista, colocada sob suspeita na parábola de Kafka. Esses traços estão também dramatizados no conto “O edifício” (1974), de Murilo Rubião, estruturado em torno da construção de um edifício interminável num movimento ininterrupto, que retoma o motivo do arranha-céu, emblema da cidade moderna, aqui também relacionado ao mito de Babel, o caos urbano original, cuja forma inacabada frequenta a memória urbanística. O conto é uma narrativa alegórica de fundação da modernidade, aberta a um futuro interminável, sempre em construção, mas conjugado a forças míticas arcaicas, para criar, em seu paradoxo, um outro mito, o da própria modernidade. Neste sentido, a narrativa coloca em pauta a questão do poder cujo símbolo é o edifício que teria um número ilimitado de andares, planejado com as mais perfeitas especificações técnicas sob o comando do Conselho Superior da Fundação. Para esse empreendimento é contratado o jovem engenheiro João Gaspar (ainda não era marcado pela experiência do passado) a quem as autoridades nada declaram sobre as finalidades do prédio – o que também não estava nas cogitações do recém-contratado. Além das funções de natureza técnica, as tarefas do engenheiro envolviam “toda complexidade de um organismo singular”, administrando os operários, para evitar quaisquer motivos de desarmonia entre eles. Diz o texto: “Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir a importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, consequentemente, o malogro definitivo do empreendimento” (RUBIÃO, 1974, p.37). Para esse fim, e detestando improvisações, esse funcionário da Razão instituiu uma comissão de controle, que redobrou os cuidados, ao aproximar-se o 800o pavimento, afinal atingido sem o profetizado na lenda. Na festa comemorativa, porém, acontece uma grande confusão: “de modo inesperado, cumpria-se a antiga predição” (p.38). Contudo a lenda é aparentemente desmoralizada, quando construção é retomada. O relatório que o engenheiro, guardião-controlador da ordem, envia 296


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à Fundação é inútil: os conselheiros haviam morrido; não há memória nos arquivos, de que só constavam normas técnicas e a advertência de que era preciso evitar a confusão. Do entusiasmo e da glória, o engenheiro passa à dúvida, ao desânimo e ao tédio, quando não consegue determinar a finalidade da obra. Julga, agora, inexequível “um monstro de ilimitados pavimentos” (p.41), mas não consegue demover os obreiros da tarefa. A retórica de belas imagens ajuda a redirecionar a interpretação das palavras de João Gaspar pelos operários, que, “com o passar dos anos, habituaram-se a elas e as consideravam peça importante nas recomendações recebidas pelo engenheiro-chefe antes da dissolução do Conselho” (p.41).4 A princípio indiferentes à agressiva repulsa do discurso de João Gaspar, depois neutralizada pelo bom estilo empregado, os obreiros “retornavam ao serviço, enquanto o edifício continuava a ganhar altura” (p.41), dando continuidade à dicção moderna do projeto - conforme se lê no fecho do conto. O discurso do engenheiro é, por conseguinte, inócuo, em seu poder de persuasão; sua “oratória torna-se aliada da ação dos operários, e a dependência discurso-ação é nítida: ambos, apesar de se oporem como princípio (palavra/gesto), identificam-se na medida em que são desprovidos de sentido” (SCHWARTZ, 1981, p.20-25), como demonstrou Jorge Schwartz. Acrescenta este crítico: “As inversões das normas se acumulam: se no texto bíblico a ação divina põe um fim à vaidade humana, gerando a eterna incompreensão entre os homens, no texto ‘O edifício’ esta mesma consequência surge através do castigo às avessas, que faz com que o castigado assuma hiperbólica e absurdamente seu desejo gerador da obra” (p.24). O elemento insólito que a retórica do texto estampa, através da hipérbole, indica, assim, o absurdo construído logicamente e serve para representar a cidade moderna em sua expansão racional e controladora. Parece apontar o “absurdo banalizado pelo eterno retorno da rotina [...], e o fantástico representa uma momentânea interrupção da ordem das coisas, como quebra da rotina, e acaba repondo o insólito nos eixos habituais. Compõe, afinal, com a ordem.” (ARRIGUCCI JR, 1998, p.1), restando a multiplicação repetitiva dos meios revelada pelo movimento narrativo. Parece, por outro lado, indicar que 4 Vale a pena conferir a primeira versão publicada deste trecho na edição de 1965: “A princípio, os trabalhadores desculpavam-se constrangidos, por não dar atenção devida às suas palavras. Entretanto, com o passar dos anos, habituaram-se aos discursos e os consideravam sumamente benéficos ao aceleramento da obra” (In: Os dragões e outros contos, p.59-60).

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o refazer permanente, em busca do novo, também se rotiniza; o poder da negatividade expresso pela ruptura torna-se repetições rituais, rebeliões de fórmulas, transgressões de cerimônias. Neste sentido, o conto “O edifício” pode ser lido, segundo a assertiva de Davi Arrigucci Jr., como “uma alegoria da própria construção ficcional marcada pelo retorno repetitivo e dissolvente das mesmas coisas.” (p.1). É por esta clave que o regime discursivo metafórico encaminha a crítica social ao projeto urbanístico da modernidade, articulado, no texto, pelo aspecto normativo do planejamento que se veicula a uma instituição que os membros da comunidade devem, sem questionamento, acatar: o Conselho Superior da Fundação detém os mecanismos de controle social, através da burocracia, instrumento do mundo administrado, ao transmitir e perpetuar - nos registros arquivados - as regras da construção do prédio, a serem cumpridas num tempo homogêneo e vazio. Como lembra ainda Arrigucci, o universo muriliano “exprime entre outras coisas a ordem, o entorpecimento e a docilidade própria da disciplina, que se aprendeu a ver pelos olhos de Weber como traço característico do comportamento dos burocratas, sujeitos às enormes engrenagens, submissos às estruturas hierarquizadas das grandes organizações que dominam o mundo moderno” (ARRIGUCCI JR, 1988, p.1). Assim, na economia da narrativa de “O edifício”, o crescimento desmedido em nome do progresso indica a continuidade do projeto que desafia o tempo e os limites humanos. Se esse projeto é coletivo e pretende sanar os conflitos, as dissidências, de acordo com determinações prévias e autoritárias, todos se engajam num empreendimento sem finalidade. É um projeto controlado e inacabado, produto da racionalidade geradora do progresso. O mundo como Babel nas lentes de González Iñárritu e nas palavras de Guillermo Arriaga Especular ainda hoje sobre Babel é o que faz Iñárritu em sua produção de 2006, na busca de respostas artísticas que a mídia cinematográfica permite equacionar para o violento mundo deste século XXI, efetivamente inaugurado pela catástrofe do World Trade Center. É o que o cineasta mexicano, com roteiro dele e de outro mexicano, o escritor Guillermo Arriaga [os dois se desentenderam justamente por causa da autoria de Babel, depois de uma parceria nos filmes anteriores: Amores brutos (Amores perros, 2001) e 21 gramas (21 grams, 2003)] 298


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– fez em seu longa metragem sintomaticamente intitulado Babel, produção americana de 2006. Pode-se até levantar como hipótese que está respondendo à pergunta de Canclini, expandindo-a para além da cidade do México: “O que ocorre quando não se entende o que uma cidade está dizendo, quando esta se converte numa Babel, e a polifonia caótica de suas vozes, seu espaço desmembrado e as experiências disseminadas de seus habitantes diluem o sentido dos discursos globais?” (CANCLINI, 2006, p.78). Enquanto drama do mundo contemporâneo, o filme evita neutralizar os conflitos, mas, pelo contrário, são potencializados, num mundo que se tornou uma imensa Babel, em que tudo se conecta, instantâneo. Filme sobre a globalização, choque de culturas, drama multicultural, histórias simultâneas, olhar diferente às barreiras culturais e de linguagem na era das redes sociais, dificuldades de comunicação foram algumas das expressões dos comentários que circulam pela Internet, associadas de modo explícito ou implícito ao emblemático título, a menor síntese dos sentidos do filme, atualizando em diferença sentidos herdados de uma longa tradição que remete ao mito bíblico. O título funciona, ao mesmo tempo, enquanto marca de um produto simbólico e midiático, que ganha legitimidade pela assinatura do diretor (a produção anterior participa dessa instância de autorização) e pelos prêmios que arrebatou pelo mundo, do Oscar, ao Globo de Ouro até o Festival de Cannes, além de muitas indicações a diversas categorias. Com locações em Ibaragi, Shinjuku e Tóquio, no Japão; El Carrizo e Sonora, no México; Tijuana, na Baja Califórnia, também no México; Ouarzazate e Taguenzalt, no Marrocos, em uma vila bérbere aos pés dos Montes Atlas e construídas nas encostas rochosas do vale do Rio Draa; e San Diego, na Califórnia, nos EUA, a saga de Babel é filmada em cinco línguas, e daí ser sempre legendado, construindo uma intensa dimensão dramática no uso de liguagens diferentes: o caos babélico da dificuldade de comunicação, da necessidade de tradução, aliás sempre precária, insuficiente, a que se juntam outras instâncias da linguagem tais como a violência e sua retórica, os afetos (o choro de vários personagens como a babá mexicana, ou a adolescente japonesa, liga os mundos na narrativa fragmentada e simultânea do filme), a linguagem dos sinais, a das anotações, a retórica da política internacional, o hibridismo da linguagem da fronteira. Instâncias que passam a índices da linguagem na era da globalização, dimensionada dramaticamente em referência às barreiras culturais, a exigir tradução cultural, abrindo espaço de contestação 299


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discursiva que se encaminha para um relativismo histórico e cultural em que as tensões entre barbárie e civilização perdem seus valores etnocêntricos (BHABHA, 1998, p.310-315). Os conflitos que movem a narrativa de Babel são marcados, assim, pela incomunicação, pela intolerância, pela violência, pela disjunção (essa característica já inscrita no mito bíblico), que se ligam a questões do século XXI, tais como os deslocamentos pelas dásporas e pelo turismo, o atravessamento das fronteiras territoriais e simbólicas, ao mesmo tempo em que são respostas (é típica nesse sentido a história da babá mexicana de volta ao seu país com as duas crianças americanas). Se esses conflitos são abordados em dimensão social e política, como Iñárritu declarou em várias entrevistas, trazem a marca cultural que, na perspectiva babélica do mundo atual, exige tanto na instância diegética quanto na recepção dos espectadores uma tradução cultural semelhante ao que Walter Benjamin descreve como a “estrangeiridade das línguas” – aquele problema de representação inato à própria representação, como adverte Bhabha (p.311-312). A problemática da tradução é mesmo uma das questões articuladas no filme, como também será no babélico filme Lost in translation, de Sophia Coppola. (a respeito da trudução como impasse derivado de Babel, ver Derrida: Torres de Babel, 1998). Ao articular, na própria narrativa, diferentes espaços e tempos em simultaneidade, essa obsessão das vanguardas, o filme de Iñárritu perde a dimensão do futuro, para atrelar-se ao presente: a narrativa está presa ao agora em que tudo está ao mesmo tempo conectado e disjuntivo. O que permite a encenação da diferença cultural, que os personagens não entendem em sua totalidade, impedindo a troca inerente à comunicação que se dá em ato, performatitamente. Cabe aqui a formulação de Bhabha que autoriza dizer que os personagens de Babel vivem em numa espécie de exílio: “A tradução é a natureza performativa da comunicação cultural. É antes a linguagem in actu (enunciação, posicionalidade). E o signo da tradução conta, ou “canta”, continuamente os diferentes tempos e espaços entre a autoridade cultural e suas políticas performativas” (BHABHA, 1998, p.313). São justamente as instâncias espaciais (detaque-se a imensa relevância da dimensão territorial da película) e temporais (destaque-se aqui a simultaneidade), que constroem o caos babélico da narrativa. Ao trabalhar o acaso (HENRIQUES, 2005), Iñárritu acredita, na linha da teoria do caos, que um acontecimento, por mais prosaico e banal que pareça, sempre integra uma cadeia de causas e 300


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consequências que se desdobra de maneiras imprevisíveis – em dramas de natureza trágica. Tal tomada de posição indica um modo de narrar, gesto discursivo e imagético da enunciação para adequar-se à confusão babélica, dramatizada em cinco dias e em quatro núcleos, dois no Marrocos, outro na fronteira México/EUA e outro no Japão. O acaso de um tiro de rifle que atinge a turista americana leva a conexões com as outras histórias paralelas, tendo justamente a arma (cuja origem está no Japão) como leit-motiv. E todas caminham para a tragédia graças à incapacidade de comunicação, seja política, ou a verbal, ou mesmo a relacionada à deficiência. Na verdade, o filme é sobre aquilo que divide homens, mulheres, nações, países, pais e filhos, no mundo do século XXI, essa Babel globalizada e dramática. Ainda a Babel da desmedida, ainda caos, confusão, desorientação dos sentidos, atomização da comunicação, traços já inscritos no mito bíblico, essa persistente saga do imaginário ocidental. Babel = Cosmópolis A narrativa que Kafka, em 1920, reinterpreta, reatualiza e possibilita a sobrevivência da imagem na modernidade tomada pela obsessão do progresso, expondo um exercício premonitório, que o filme de González Iñárritu complexifica e que Don DeLillo dramatiza, em Cosmópolis (2003), mistura caótica de todas as culturas, todas as etnias, todas as línguas, num dia da Nova York comandada pela tecnologia das redes comunicacionais. A celebração da tecnologia em seu paroxismo é satirizada pela narrativa de DeLillo, que relata um certo dia de abril de 2000, na vida do multimilionário Eric Michael Packer, 28 anos, dono da Packer Capital, que, preso pelo engarrafamento, é obrigado a passar o dia inteiro dentro de uma limousine, de onde controla os negócios, recebe assessores e tem encontros amorosos. No decorrer do dia, a existência de Eric é gradualmente corroída: suas certezas e valores se revelam vazios, ao mesmo tempo em que o sistema financeiro global é arrastado para uma crise sem precedentes. A narrativa em forma de fábula sobre uma cosmópolis desumanizada, fruto das tecnologias e do sistema do capitalismo globalizado, atesta as preocupações do autor com as formas de controle que a sociedade moderna impôs aos indivíduos. A cosmópolis, aqui representada por Nova York, literalmente nomeada como Babel, é um submundo urbano, em que as implicações com a 301


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tecnocracia, com o capitalismo globalizado e as modificações das relações humanas, vão compor o quadro submetido à paródia e à sátira, para reivindicar, através da própria trama e das reflexões que se tecem nessa trama, a preservação dos valores humanos fundamentais. Esse cosmopolitismo de um centro hegemônico está atrelado ao imperativo digital (DELILLO, 2003), à tecnologia, que, na Babel que é o século XXI, gera novos modos de simbolização e ritualização dos laços sociais, tecidos pela mediação das redes comunicacionais, da cibercultura. Babel persiste deixando seus rastros, e, de uma forma ou de outra, atualiza-os, enquanto anacronismos, recolhendo os restos do mito bíblico e as imagens que, a partir do quadro de Bruegel, sobrevivem nas diversas manifestações artísticas, que, ao tomar uma posição crítica, despertam na atualidade uma memória, reenviando, em marcha regressa, a uma tradição ainda vigente, atrelada a uma outra memória que reconfigura o próprio presente. Mais do que nunca, é preciso olhar com palavras? Mais do que nunca, é preciso cantar para que as cinzas da memória revelem uma Babel feliz?

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VER: DESAPARECER1 Rosana Kohl Bines

Ardoroso colecionador de brinquedos infantis, Walter Benjamin descreve em pequeno artigo seu fascínio com a publicação do livro Kinderspielzeug aus alter Zeit. Eine Geschichte des Spielzeugs (1928) de Karl Gröber. Diante do monumental acervo de reproduções liliputianas de cavalinhos de balanço, soldadinhos de chumbo e bonecas, reunido nesta história ilustrada dos brinquedos de antigamente, Benjamin pondera sobre o que está em jogo no ato de olhar para essas imagens: Mas quando um moderno poeta diz que para cada homem existe uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro desaparece, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma velha caixa de brinquedos? (1994, p.75).

Em que consiste esse efeito devastador que Benjamin supõe emanar da contemplação de antigos brinquedos? Como encontros intempestivos com imagens do brincar podem abrir clarões no campo perceptivo de quem vê? Quais as conexões entre ver (formas ressurgidas do universo lúdico da infância) e desaparecer (o mundo inteiro de onde as contemplamos)? E será que algo mais aparece quando desaparece o mundo? Redireciono essas perguntas ao olhar uma coleção de imagens que parecem saídas de um velho baú de brinquedos. Trata-se da instalação artística “Parcours d´ombres” (Percurso de sombras), do artista francês contemporâneo Christian Boltanski, comissionado a criar na pequena cidade de Vitteaux, na região da Borgonha, uma obra que 1 Uma outra versão deste texto foi publicada sob o título de "Assombrações da infância com Boltanski e Benjamin" na Revista Alea [online]. 2015, v.17, n.2, p.227-245.


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interagisse com o patrimônio arquitetônico do lugar e colaborasse com o incremento da iluminação precária das ruas sombrias no entorno da praça central. Os tradicionais lampiões da cidade geravam uma luz mortiça, que deixava intranquilos os moradores do lugar. A expectativa de abrandar o medo com arte tomou a forma de um pedido específico do prefeito de Vitteaux, no primeiro encontro com Boltanski: “Eu quero alguma coisa que alegre a minha cidade!”2 (BOLTANSKI, 2010, p.15). O pedido foi atendido, ainda que ironicamente. Porque ao invés de luzes, o artista propõe à cidade um circuito de sombras que bruxuleiam nas fachadas das casas quando anoitece. Uma fantasmagoria tão macabra quanto divertida, que expõe jocosamente o medo que a obra artística deveria camuflar. São figurinhas esquemáticas de bruxas, gatos pretos, morcegos, caveiras, recortadas toscamente em pequeninos pedaços de cobre e penduradas em pontos estratégicos da cidade, projetando na contraluz silhuetas amplificadas e moventes que formam uma espécie de corredor de trem fantasma, daqueles parques de diversão bem fuleiros, em que os monstros são malfeitos, meio gaiatos, mas não perdem de todo o poder de nos assustar.

Imagem 1 – Parcours d'ombre. 2004/2010. Vitteaux (França). Obra realizada por Christian Boltanski como parte da ação Nouveaux Cinnabditaires, Fondation de France. Fonte: ©Bertrand Gautier. 2 No original em francês, "Je veux quelque chose de gai pour ma ville!" Agradeço à Judith Bines pela colaboração nas traduções de todas as citações em francês aqui apresentadas.

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VER: DESAPARECER

Imagem 2 – Parcours d’ombre. 2004/2010. Vitteaux (França). Obra realizada por Christian Boltanski como parte da ação Les Nouveaux commanditaires, Fondation de France. Fonte: ©André Morin para o Consortium.

Imagem 3 – Parcours d’ombre. 2004/2010. Vitteaux (França). Obra realizada por Christian Boltanski como parte da ação Les Nouveaux commanditaires, Fondation de France. Fonte: ©Bertrand Gautier para o Consortium.

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Imagem 4 – Parcours d’ombre. 2004/2010. Vitteaux (França). Obra realizada por Christian Boltanski como parte da ação Les Nouveaux commanditaires, Fondation de France. Fonte: ©André Morin para o Consortium.

Nesta coleção de sombras em Vitteaux, opera-se um trabalho de invenção de experiências sensório-visuais para aquilo que não cessa de desaparecer, já que a desaparição se apresenta ali como um acontecimento rítmico. As imagens desaparecem e aparecem, seguindo os ritmos alternados do dia e da noite. Quando amanhece, as figuras levemente assustadoras já não estão mais lá, visíveis. Com a luz do sol, elas simplesmente se desmaterializam. Sua aparição depende do breu. Quanto mais escura a noite, mais nítidas as sombras. Esta rítmica muda decisivamente a paisagem do sensível, porque o sumiço não é um evento derradeiro, posto de uma vez por todas. Em Vitteaux, a desaparição é ritmicamente convocada, em grande parte à revelia da decisão humana. O que vem e vai é condicionado aos movimentos de rotação da terra em sua órbita em torno do sol, movimentos que não se podem frear, mas com os quais se pode sempre jogar. "Percurso de sombras" propõe assim um jogo com os ritmos cósmicos do dia e da noite pela lei da repetição, que rege o mundo do brinquedo, segundo a teoria freudiana, a que Benjamin presta tributo, não sem fazer um desvio contundente, cuja elucidação nos ajudará a ler, nas imagens de Boltanski, aquilo que têm de mais elementar e inquietante: a possibilidade de transformar em hábito a convivência com aquilo que voltará a desaparecer na manhã seguinte. Se considerarmos o longo tempo de exposição dos moradores à obra, passados já tantos anos desde a sua inauguração em 2004, cabe pensar qual a força desse habituar-se 308


VER: DESAPARECER

ao desaparecer-reaparecer das sombras, que fazem das visões da infância3 um pulso intermitente na vida? No ensaio “Brinquedos e jogos, observações sobre uma obra monumental”, dedicado ao já mencionado livro de Karl Gröber sobre a história cultural dos brinquedos, Benjamin retoma brevemente a teoria freudiana exposta em “Além do princípio do prazer” (1920) para pensar, também ele, o ímpeto da repetição nas brincadeiras infantis. É bastante conhecida a cena em que Freud observa seu neto de dezoito meses jogar para longe um carretel de madeira atado a um barbante, que desaparece atrás da caminha cortinada, para depois puxá-lo de volta à visão, repetindo inúmeras vezes o gesto de mandar embora e fazer aparecer, gestos que são acompanhados vocalmente pelo som prolongado de “óoooo”, no qual Freud imagina a criança lamentar a perda da coisa, seguido pelo som alegre de “da”, com que saúda a sua renovada presença. A brincadeira, escreve Freud, é uma maneira de a criança se assenhorear das perdas que ela não controla, como as ausências diárias da mãe quando sai ao trabalho. Brincando de desaparecer com o carretel, o menino transforma a sua condição passiva, de quem é abandonado sem recursos, em atividade de jogo, recuperando o poder de agir e falar sobre o objeto que vai e vem. A situação desagradável é encenada repetidas vezes como forma de elaboração das perdas, tanto as que já ocorreram, como as que tornarão a acontecer, porque a constituição do sujeito está para Freud justamente vinculada a esta dinâmica de “repor em jogo o pior”, ou seja, de repor permanentemente em jogo nossa relação com as ausências, e no limite, nossa relação com a própria supressão da vida, com a partida de tudo aquilo que existe.4 3 Por infância não se entende aqui um estado puro e apartado do mundo adulto, mas uma configuração coletiva e abrangente, que pode tocar também as gerações mais velhas. Sem demarcações de idade, de traços fisiológicos ou comportamentais, a infância não coincide inteiramente com a criança, manifestando-se antes como uma dimensão humana que pode nos atravessar a qualquer momento. Jean-François Lyotard pensou a infância como uma pulsão inventiva associada aos estados nascentes: "O nascer não é apenas o fato biológico do parto, mas sob a cobertura e a descoberta deste fato, o acontecimento de uma possível alteração radical no curso que empurra as coisas a repetir o mesmo. A infância é o nome desta faculdade, tanto mais quanto aporta, no mundo do que é, o espasmo do que, por um instante, não é ainda nada. Do que já é mas ainda sem ser algo. Digo esse nascimento incessante porque marca o ritmo de uma “supervivência” recorrente, sem medida Cf. LYOTARD apud KOHAN, 2005, p.251-252. Minha ênfase. 4 Foram decisivas, para a minha reflexão, as considerações de Georges Didi-Huberman sobre a cena da criança com o carretel, na minuciosa análise que faz do texto freudiano no capítulo "Dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento" do livro O que vemos, o que nos olha (2010). Nesse

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Este jogo com a desaparição é, para Freud, estruturante do humano. Nas seções finais de “Além do Princípio do Prazer”, ele associará a compulsão à repetição ao conceito de pulsão de morte, um instinto constitutivo que manifesta a força de materiais inconscientes recalcados, sendo o mais fundamental deles o desejo de restaurar um estado inercial de que toda matéria viva teria se originado. A evolução do homem, para recuperar os termos biológicos de Freud, estaria fundada na repressão de um instinto que nunca abdica de querer de realizar a morte, de querer nos restituir a uma situação primordial de imobilidade em que, paradoxalmente, repetimos o mesmo para conservar energia vital, para não nos gastarmos no movimento. Na concepção freudiana, a repetição se torna, pois, um dos mecanismos fundamentais da pulsão de morte, na medida em que nos reenvia continuamente ao mesmo lugar, poupando-nos a energia necessária à vida. Mas ao contrário dos pesadelos traumáticos e das neuroses de guerra, que constituem o plano maior do ensaio freudiano, em que o retornar compulsivo às cenas de perigo são sintomas patológicos da sujeição dos indivíduos àquilo que não conseguem elaborar e que, por isso mesmo, retorna sem consentimento, a brincadeira repetitiva das crianças é orquestrada por elas mesmas e se torna fonte de prazer. Freud observa que elas gostam de ouvir as mesmas histórias, sempre do mesmo jeito, para reviver aquela primeira sensação de leitura. Já para os adultos, quando escutam a mesma piada uma segunda vez, a graça se perde. A novidade é para eles condição indispensável do deleite. À medida que se deixa para trás a infância, perde-se também a capacidade de encontrar o novo pela repetição. Benjamin radicaliza esta sugestão de Freud e a leva para um lugar inusitado. Em linguagem efusiva, constata: Tudo correria com perfeição, se se pudesse fazer duas vezes as coisas: a criança age segundo este pequeno verso de Goethe. Para ela, porém, não basta duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para tornar-se senhor de terríveis experiências primordiais, mediante o embotamento, capítulo, o autor demonstra como a dimensão rítmica do jogo do luto "convoca uma estética" (p.80) e cria uma "obra da ausência" (p.81), em que "o objeto eleito pela criança só ´vive` ou só `vale` sobre um fundo de ruína" (p.82). A hipótese de Didi-Huberman é a de que apenas quando o carretel se torna capaz de desaparecer ritmicamente, é que ele ganha uma "eficácia pulsional" (p.82), tornando-se uma imagem visual capaz de constituir a identidade imaginária da criança, que passa a incorporar a morte na energia da vida.

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VER: DESAPARECER

juramentos maliciosos ou paródia, mas também de saborear, sempre com renovada intensidade, os triunfos e vitórias. O adulto, ao narrar uma experiência, alivia seu coração dos horrores, goza novamente uma felicidade. A criança volta a criar para si o fato vivido, começa mais uma vez do início. Aqui talvez se encontre a mais profunda raiz para a ambiguidade nos “jogos” alemães: repetir a mesma coisa seria o elemento verdadeiramente comum. A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformação da experiência mais comovente em hábito (1984, p.75).5

Muito mais do que normalizar pela brincadeira experiências que tenham causado forte impressão nas crianças, trata-se antes de pensar o hábito como uma batida rítmica que re-introduz, a cada vez, a devastação. Dito de outra forma, aquilo que o hábito faz aparecer sempre de novo é o potencial de desaparição de todas as coisas. No hábito, tudo está a um passo de desaparecer, e de forma tão extremada, a ponto de solapar a própria consciência desta operação de apagamento, o que significa dizer que no hábito o desaparecimento se inscreve rotineiramente, sem dele nos darmos conta. Benjamin insiste que “é o jogo, e nada mais, que dá à luz todo hábito” (p.75). Ações costumeiras como comer, dormir, vestir-se, lavar-se são rotinas inculcadas nos pequenos através de brincadeiras sonoras, pelo ritmo de versinhos. No vai-e-vem compassado das rimas, os hábitos se internalizam, e mesmo em suas formas mais enrijecidas, ele dirá, sobrevivem nestes gestos diários “um restinho de jogo até o final” (p.75). O hábito guardaria, portanto, a memória do esquecimento do jogo. Em outras palavras, ao converter-se a brincadeira em hábito, deixamos de perceber a repetição como jogo motivado e simplesmente comemos, nos vestimos, dormimos repetidas vezes, sem intenção, por hábito justamente. É como se o conteúdo ou o sentido das ações desaparecesse para dar lugar a um código de gestos automáticos, que agem por si sós, apesar de nós, gestos que nos dispensam, por assim dizer. E o agente propulsor desta condição de ausência de nós mesmos 5 Minha ênfase. Reproduzi a tradução de Marcus Vinicius Mazzari, publicada no livro Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação (1984). Porém, suaviza-se demais o enunciado final, a meu ver, quando se traduz "Verwandlung der erschütterndesten Erfahrung" (no original em alemão) por "transformação da experiência mais comovente em hábito". O adjetivo em grau superlativo utilizado por Benjamin - der erschütterndesten - alude antes à dimensão devastadora, calamitosa, aterradora da experiência a ser convertida em hábito pela via do jogo. Agradeço aos esclarecedores e-mails trocados com Susana Kampff Lages sobre a tradução para o português desta passagem.

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no hábito é exatamente o dispositivo da repetição ritmada com seus potenciais efeitos hipnóticos. Por força do hábito, deixamos de prestar atenção naquilo que irá se fazer sem o nosso acordo, como em estado de sonambulismo. Não à toa, ao final da Infância Berlinense, livro que agrupa uma maravilhosa coleção de pequenos esquecimentos que a escrita ajuda a presentificar, Benjamin rememora os versinhos rimados de um velho livro infantil alemão: Quis descer à minha adega Para ir buscar o meu vinho, Está lá um anão corcunda Que me rouba o meu jarrinho Quis ir à minha cozinha Fazer a sopa, e já nela Me espera um anão corcunda P´ra me partir a panela Se pr´o quarto de comer Com a minha papa vou, Está lá um anão corcunda: Já metade me levou6 (BENJAMIN, 2013, p.114).

“Aqueles para quem o anão corcunda olha não dão atenção ao que fazem” (p.114), Benjamin insiste. A panela se quebra, o jarrinho some, o jantar é comido pela metade, quando a criança está distraída em meio às ações costumeiras, bebendo, comendo, preparando a sopa, indo dormir. É pela repetição ritmada dos gestos cotidianos, que o menino se esquece do que está a fazer e os desastres se precipitam. Se o anãozinho corcunda personifica nosso lapso com relação a nós mesmos, a aparição desta figura do esquecimento parece estar vinculada aos efeitos poderosos da audição dos versinhos. Sua batida rítmica convida ao entorpecimento e à distração e funciona como um chamamento que conjura o anão. Os ritmos cadenciados que regulam os movimentos do menino na casa – descer à adega, buscar o vinho, ir à cozinha, fazer a sopa, ir ao quarto – acabam por transtornar as ações costumeiras. Pela repetição continuada, chega 6 Em tradução de João Barrento.

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VER: DESAPARECER

um momento em que os gestos desandam, perde-se o passo, cai-se em falso. São sintomas do esquecimento que vêm se instalar no hábito, roubando a presença do menino dos atos que ele pratica sem se dar conta. Ao fim e ao cabo, é a repetição rítmica aquilo que captura o menino e o faz desaparecer naquilo que realiza. Refaçamos brevemente as sugestões propostas até aqui: 1) a repetição é um jogo alegre com a desaparição; 2) repetição dá lugar ao hábito; 3) o hábito se vincula ao jogo infantil pelas formas ritmadas de sua performance; 4) as formas ritmadas fazem irromper o esquecimento nos percursos rotineiros. Esta cadeia associativa pode ser acompanhada no circuito de sombras em Vitteaux, desde a sua gênese. Em entrevista, Boltanski comenta a produção dos pequeninos espectros feitos de retalhos em cobre: E o recorte é para mim, que não sei desenhar, como o prazer do desenho. É algo insignificante, coisa de criança [...] Os pequenos recortes que eu faço em pedaços de cobre são de uma completa “estupidez”, como quando se desenha ao telefone. Aliás, eu recorto vendo televisão. Quando eu faço estes recortes, minha única regra é não desperdiçar o cobre e utilizar tudo, mesmo os restos 7 (BOLTANSKI, 2010, p.16).

Eis um artista que declaradamente não sabe desenhar e que encontra no recorte uma fonte de prazer associada exatamente à manipulação distraída. Recorta sem ver, esquecido da coisa, esquecido de si, com os olhos noutro lugar. Recorta sem intenção, sem maestria, absorto numa total estupidez. Da proclamada inépcia artística, surge uma obra de ar enfaticamente displicente. As sombras ampliam as imprecisões das formas recortadas e reforçam a impressão de improviso, de acabamento descuidado. A caveira, por exemplo, tem um olho visivelmente maior do que o outro e os contornos de seu crânio apresentam picos pontiagudos, resultado de picotes malfeitos no cobre. Todos estes desacertos, a bem dizer, contribuem para a dimensão de alegria e graça deste trabalho. Há uma comicidade terna nas imagens. As sombras assustam, mas são 7 Minha ênfase. No original, em francês: Et le découpage, pour moi qui ne sais pas dessiner, c´est comme le plaisir du dessin. C´est dérisoire, un truc que font les gosses [...] Les petits découpages que je fais dans des morceaux de cuivre sont d´une total "stupidité", comme quant tu dessines au téléphone. Et d´alleurs, je les fais en regardant la télévision. Quand je fais ces découpages, ma seule règle est de gâcher le moins de cuivre possible et j´utilise tout, même les restes.

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ao mesmo tempo dóceis, são artefatos de brinquedo, exibem a maleabilidade do jogo, aparecem e desaparecem com o medo, vão e vêm com ele, porque são crias do esquecimento, justamente. São conjuradas pelos ritmos da tesoura que simula trabalhar sozinha e opera o esvaziamento da figura do artista que recorta desatento. [...] quero que os objetos sejam muito frágeis e muito pequenos, no limite da insignificância e da não existência [...] Eu espero que nunca se descubra o momento em que a criação acontece. A meu ver, o objeto é importante e carregado simbolicamente, mas sua importância deve ser minimizada na obra final.8 (BOLTANSKI, 1984, p.82).

“Percurso de Sombras” é uma instalação que brinca com a escala, criando jogos de ilusão, que ampliam a visão daquilo que é ínfimo, insignificante, no limiar da não existência. De fato, as pequenas silhuetas são mantidas longe da vista dos passantes e assim perde-se a conexão com a materialidade geradora das imagens. É esta perda de lastro que estará também figurada nas sombras imateriais, espessando as camadas de apagamento que ali se encenam. Ao fim e ao cabo, expõe-se de modo agigantado a fragilidade de um mundo de coisas que podem sumir a qualquer momento, como num truque de mágica. É o que observa George Didi-Huberman no texto freudiano, quando identifica na brincadeira do menino com seu carretel um componente pulsional fortíssimo, condicionado à precariedade do fio que pode se romper de repente, impedindo que o objeto seja enrolado de volta à visão da criança. É uma questão de vida-e-morte, afinal. É isto o que está em jogo, o que está sendo jogado. Nas palavras de Didi-Huberman, o carretel é um quase, no limite de não ser nada. Por isso sua “energia é formidável”, porque está ligada a muito pouco e “pode morrer a qualquer momento, ele que vai e que vem como bate um coração” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.80). A propósito das batidas cardíacas, cabe mencionar um outro trabalho de Boltanski, sediado na ilha japonesa de Teshima, à beira de uma praia deserta. Lá uma casa abriga Os arquivos do coração (BOLTANSKI, 2010). Trata-se de 8 No original, em francês: ... je veux que les objets soient très fragiles et très petits, à la limite de l´insignificance et de la non- existence... Je souhaite que l´on ne sache jamais à quel moment se passe la création. Pour moi, l ´objet est importante et symboliquement chargé, mais il doit demeurer le moins important possible par rapport à l´ "oeuvre" final.

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VER: DESAPARECER

uma coleção de registros sonoros com cerca de 80.000 gravações de batidas de coração, coletadas por Boltanski ao redor do mundo. Pesquisando em blogs de pessoas que gravaram as suas batidas, encontrei colocadas algumas questões existenciais de peso, que aqui parafraseio livremente: Como imaginar o futuro sem que eu esteja nele, apenas pelas batidas do meu coração? E quem das pessoas amadas se disporia a ir até Teshima para escutar a minha batida cardíaca, quando ela já tiver parado de acontecer no meu corpo? Que tipo de emoção aflorará com o som dos ausentes? Será que a minha batida é única, diferente da batida das outras pessoas? Ao fim e ao cabo, o que se escuta nesta coleção? Testemunhos rítmicos da existência singular de cada um? A dimensão comum da fragilidade humana, seu potencial desparecimento, audível em cada pausa, repetidas vezes, no intervalo mudo entre sístole e diástole?

Imagem 5 – Les Archives du coeur. Christian Boltanski, 2010, Ilha de Teshima. Fonte: Christian Boltanski.

Seria por demais forçoso, contudo, tentar aproximações grandiloquentes entre os corações que batem em Teshima e a pulsação das sombras em Vitteaux. Se, por um lado, ambos os projetos exploram a emissão de signos rítmicos de vida e 315


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morte, por outro, há uma gravidade monumental em toda a complicada logística e tecnologia nos arquivos do coração que está muito distante do artesanato rudimentar e leve que anima a dança de sombras. Se quiséssemos brincar de encontrar um equivalente sonoro para a obra em Vitteaux, soaria melhor o famoso verso da canção de Newton Mendonça e Tom Jobim, ao sussurrar que no peito dos desafinados também bate um coração. Algo deste contratempo esquerdo, malemolente, meio acanhado, meio risonho, de quem não leva jeito para o canto e tira disto o maior proveito compõe uma trilha musical mais próxima à textura sensível de uma instalação feita por alguém que simula não levar jeito para o desenho e faz dos recortes tortos um convite para que qualquer um assuma as tesouras desafinadamente, desobrigados da perícia artística. Quando Boltanski define o seu trabalho em Vitteaux como coisa de criança (un truc que font les gosses), indica nas frestas deste rebaixamento uma abrangência da figura autoral, um movimento expansivo da obra no espaço do mundo e também a natureza aberta e modificável da prática artística, vocacionada para a atuação de muitos: Eu penso que, para este tipo de obra, é preciso uma presença próxima da vida cotidiana, sem a dimensão sagrada da arte de museu. Alguma coisa que esteja lá, como uma lâmpada que se acende ao anoitecer e que é preciso substituir quando se queima [...] A rigor, se alguém substituísse uma silhueta que se perdeu por outra que eu não tenha feito, daria no mesmo [...] A coisa está “dada”, mas ela é modificável, e isso me parece interessante. E em cinquenta anos, será como as velhas casas de Vitteaux, sobre as quais ninguém sabe mais quando foram construídas ou por quem. Elas estão ali e isso basta [...] O ideal seria que os habitantes de Vitteaux amassem a instalação como coisa sua, sem se lembrar mais de que é uma obra de arte.9 (BOLTANSKI, 2010, p.16-17). 9 No original, em francês: Je pense que, pour ce type de commande, il faut une présence proche de la vie quotidienne, sans le côté sacré de l´art d´un musée. Quelque chose qui soit là, comme une lampe qui s´allume à la tombée de la nuit et dont il faut changer l´ampoule quand elle est grillée. Oui, quelque chose de plus ouvert, de plus modifiable: à la rigueur si on remplaçait une silhouette disparue par une silhouette qui n´est pas faite par moi, ça me serait égal. Je sui persuadé qu´il y a encore beaucoup d´habitants qui ne connaissent pas mon nom, et pas une personne sur cent de l´extérieur passant par Vitteaux qui sait que ces ombres sont une oeuvre d´art. Et puis cette installation n´empêche pas les gens de repeindre leur mur en blanc, de bouger un truc... La chose est données, mais elle esta modifiable et ça me semble intéressant. Et dans cinquante ans, ce serait comme les vieilles maisons de Vitteaux dont on se sait plus très brien de quelle époque elles sont ou qui les a construites: seleument c´est là! L´idéal, je veux dire ce qui aurait du sens, serait que les habitants de Vitteaux l´aiment el la respectent comme une chose à eux, tout en ne sachant plus que c´est une oeuvre d´art.

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VER: DESAPARECER

É bonito este desejo de amor à coisa na relação inversa de sua desapropriação como arte. As sombras deixam de ser coisa de artista e se transformam em bem comum, disposto numa visibilidade expandida, fora das paredes e dos horários prescritos pelos museus, algo aberto ao ir e vir dos passantes nos seus trajetos habituais, uma instalação penetrável que participa dos fluxos da vida: entrar e sair de casa, visitar os vizinhos ou caminhar até a praça pública, para onde todas as sombras convergem, local de encontro e partilha. A energia coletiva mobilizada para este percurso de sombras também é um fator fundamental na dispersão do indivíduo-artista. A intervenção aconteceu no âmbito do programa de ação cultural Societé des Noveaux Commanditaires, apoiada pela Fondation de France, que põe em contato três instâncias fundamentais: os patrocinadores ou demandantes, pessoas comuns que se associam para formular um desejo de arte nos espaços em que atuam; um mediador, a quem esta solicitação é encaminhada e a quem caberá buscar um artista que possa responder aos anseios da coletividade; e o artista comissionado para realizar a obra. O mediador fica também incumbido de conectar o artista com a comunidade, propiciando encontros de discussão do projeto, além de ajudar na gestão de todo o complexo processo que envolve viabilizar uma obra de arte no espaço público, obra que deverá ser inteiramente financiada e integrada por aqueles que a demandam.10 No caso específico de Vitteaux, o grupo de commanditaires foi composto pelo prefeito da cidade e pelos membros da Câmara Municipal, representando os interesses dos moradores. Xavier Doroux atuou como mediador entre a comunidade e Christian Boltanski, tendo escolhido este artista em particular por seu trabalho anterior com luzes e sombras, em conexão com os temas da

10 Na página da Sociedade Nouveux Commanditaires há a descrição de vários projetos levados a cabo pelos mais variados grupos de pessoas, engajadas na reimaginação de seus ambientes familiares ou profissionais. Uma das iniciativas mais inusitadas partiu dos médicos patologistas do Departamento de medicina forense de um pequeno hospital na França, desejosos de humanizar as salas assépticas e soturnas em que eram feitas as autópsias e velados os corpos de acidentados na região. A ideia, paradoxal e bela, era a de dignificar a vida humana, mesmo a dos mortos. A intervenção agregou o trabalho de um arquiteto, de um artista plástico e de dois músicos que transformaram e sonorizam os espaços, em diálogo contínuo com os profissionais do hospital, responsáveis por gerir todas as fases da obra. Ver: http://www.nouveauxcommanditaires.eu/ en/25/41/parcours-d’ombres. Primeiro acesso em: 10/8/2014.

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memória e do desaparecimento, em contextos violentos de guerra.11 O primeiro encontro entre o artista e os moradores aconteceu numa capela desativada e colocada à disposição do projeto. O clima inicial era de desconfiança e desconforto. Da janela do primeiro piso de uma das casas, alguém gritava: “Ei, você não vai colocar uma caveira na minha fachada, fora de cogitação!”12 Outros tentavam negociar suas preferências. Uma moça pede a figura de uma bruxa de vassoura nos muros de sua casa. Outra se entusiasma com a estampa de um pequeno fantasma. Um grupo de moradores fica encarregado de providenciar e instalar a iluminação adequada às projeções. A adesão paulatina e logo animada dos moradores ao projeto e seu envolvimento efetivo em diferentes frentes do trabalho, da distribuição e localização das silhuetas à execução final, fez crescer o amor pela coisa, algo afinado ao que Benjamin vislumbrava como efeito potente das fantasmagorias surrealistas: um “descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem” (1985, p.34). Um espaço cuja potência não seria medida de forma contemplativa, mas na maneira como o corpo e o espaço das imagens se interpenetram, de modo que a coisa artística seja transformada em “inervações do corpo coletivo” (p.34). É a partir de um corpo coletivo que a obra de Boltanski continuará a se expandir, passados seis anos de sua inauguração. Em 2010, os moradores quiseram ampliar o percurso inicialmente proposto, produzindo e pendurando eles mesmos as novas silhuetas e lâmpadas em outras ruas da cidade, como o próprio artista havia prenunciado. Assim, a obra ganha uma segunda inauguração, já com um novo prefeito, que leva a cabo a iniciativa do percurso estendido. Boltanski comparece agora como convidado neste desdobramento da obra, que ele ajudou a disparar, e que se alastra, dispersando qualquer assinatura. Neste segundo tempo, os moradores brincam de fazer de novo, começam mais uma vez do início, convocam a invenção como prática rítmica, fadada a reaparecer e, pela repetição, a se transformar em hábito. Quando a invenção se torna 11 Uma amostra das obras de Boltanski pode ser vista em http://www.artnet.com/artists/christian-boltanski. Primeiro acesso em: 10/8/2014. Remeto os leitores, em particular, à instalação Théatre d´ombres (1984), espécie de protótipo do trabalho que desenvolveria anos depois na cidade de Vitteaux: https://www.youtube.com/watch?v=TDrFplT3Nug. Primeiro acesso em 15/8/2014. 12 No original, em francês: Ah dis donc vous n´allez pas me mettre une tête de mort sur ma façade, ça pas question!

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reincidente, é possível imaginar um cenário exponencial em que, a cada tantos anos, novas gerações confeccionem silhuetas que projetarão novas sombras em novas ruas, até o ponto em que todas as fachadas recebam sombras e já não seja mais possível distinguir a cidade da instalação artística. Então as ruas de Vitteaux deixarão de ser um lugar de atração turística para se tornar lugar comum, vocação inicial da cidade, um lugar qualquer esquecido de sua particularidade, lugar para se passar a vida, para ver a vida passar, para ver tudo aquilo que passa, na batida leve e ritmada de uma infância que assombra ao voltar a nascer.

Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Rua de mão única: infância berlinense – 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. BENJAMIN, Walter. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência europeia”. In: ____. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v.1. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.21-35. BENJAMIN, Walter. Brinquedos e jogos: observações sobre uma obra monumental. In: ____. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Summus Editorial, 1984, p.71-75. (Coleção Novas Buscas em Educação). BINES, Rosana Kohl. Assombrações da infância com Boltanski e Benjamin. Revista Alea [online], v.17, n.2, 2015, p.227-245. BOLTANSKI, Christian. Parcours d’ombres. Paris: Les presses du réel, 2010. (Collection Société des Nouveaux Commanditaires). BOLTANSKI, Christian. Catálogo de exposição, 1º de fevereiro a 26 de março 1984. Paris: Musée National d’Art Moderne au Centre Georges Pompidou, 1984, p. 82. BOLTANSKI, Christian. Théatre d´ombres. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=TDrFplT3Nug. Primeiro acesso em: 15/8/2014. BOLTANSKI, Christian. Les archives du coeur. Disponível em: http://benesseartsite.jp/en/art/boltanski.html. Primeiro acesso em: 23/06/2017. 319


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BOLTANSKI, Christian. Parcours d’ombres. Société des Nouveaux Commanditaires. Disponível em: http://www.nouveauxcommanditaires.eu/en/25/41/ parcours-d’ombres. Primeiro acesso em: 10/8/2014. BOLTANSKI, Christian. Parcours d’ombres. L´été des Arts en Auxois-Morvan 2010. Disponível em: http://auxois.arts.free.fr/francais/pages_lieux/boltanski_ ete04.htm. Primeio acesso em: 15/8/2014. DIDI-HUBERMAN, Georges. A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento. In: ____. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010, p.79-116. FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos: 1920-1922. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição Standard Brasileira. Tradução de Cristiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVIII. LES NOUVEAUX COMMANDITAIRES. Disponível em: http://www.nouveauxcommanditaires.eu/. Primeiro acesso em: 10/8/2014. LYOTARD, François apud KOHAN, Walter Omar. Infância: entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

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A “POLPA DA COR”: A PERSISTÊNCIA DO DISPÊNDIO NA TEORIA NEOCONCRETA DE FERREIRA GULLAR Sérgio B. Martins

Lá pelos idos de 1960, Aluísio Carvão recobriu um cubo de cimento próximo em tamanho de uma bola de vôlei com uma camada de tinta de um vermelho denso e algo fosco, ela própria misturada em cimento. O procedimento resultou num objeto ambivalente: por um lado, seu tamanho sugere o peso que de fato verificaríamos se o levantássemos de súbito com as duas mãos; por outro, é o toque leve das pontas dos dedos que sua superfície parece solicitar. É como se tal toque fosse necessário para confirmar que, por detrás de sua textura, há de fato um objeto sólido, e não uma mera aglomeração de pigmento. Poroso e abaulado, este é um cubo de Gestalt hesitante, como se sua clareza formal estivesse na iminência de ser consumida por sua intensidade cromática. Poucos evocaram tão vivamente o nó perceptivo de Cubocor (1960) quanto o poeta Ferreira Gullar, ao afirmar que o trabalho neoconcreto de Carvão supera a “resistência do objeto” para alojar-se “na polpa da cor” (GULLAR, 1999, p.258). Na verdade, Cubocor não foi feito para ser tocado; é irônico, aliás, que tenha se tornado a obra-prima de um artista cuja produção consistia quase que exclusivamente de pinturas. Mas, como bem sabemos, Carvão não adentrava sozinho a zona cinzenta entre pintura e escultura: foi naquele mesmo ano, por exemplo, que sua colega neoconcreta Lygia Clark começou a produzir seus Bichos (1965). Foi com tais trabalhos em mente que Gullar desenvolveu a “Teoria do Não-Objeto” calcando-a numa dupla operação. Por um lado, informado pela filosofia que vinha lendo – sobretudo da fenomenologia de Merleau-Ponty –, Gullar esmerou-se na descrição de obras de arte que envolviam o sujeito na participação ativa ou projetiva, rompendo assim com a dicotomia sujeito/objeto 321


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que ele associava com o paradigma da contemplação pictórica. Em segundo lugar, ele situou estas mesmas obras no ponto final de uma teleologia da arte moderna impulsionada pela tentativa de superar as barreiras – a saber, moldura e base – que isolavam o espaço da pintura e da escultura do resto do mundo.1 Ao mesmo tempo, o prefixo do termo não-objeto pretendia sinalizar que a rejeição da especificidade de tais meios não implicava no nivelamento, do ponto de vista da experiência, entre obra de arte e objeto mundano. Gullar insistia que, ao contrário destes últimos, os não-objetos não se deixavam determinar por nossa familiaridade linguística e instrumental com as coisas que conhecemos. Não-objetos se definem por uma dupla negação: eles rejeitam tanto o espaço metafórico da pintura e da escultura quanto o espaço das coisas cotidianas. Através da experiência dessa nova forma, que entrelaçava sujeito e objeto, o poeta esperava que os não-objetos levassem os espectadores ou participantes a transcender seu modo habitual de se relacionar com os objetos ordinários. Tal fenomenologia transformativa residia no cerne da utopia neoconcreta. Ao contrário da ênfase concretista na disseminação social de formas racionalmente ordenadas através do poder exemplar da obra de arte e da mediação pedagógica das artes aplicadas, o neoconcretismo buscava transformar o sujeito de forma menos pedagógica que transferencial, no sentido psicanalítico de um trabalho que, feito uma armadilha, atrai o sujeito para fora de sua zona de conforto. A cor, empregada de modo a perturbar a estabilidade das formas geométricas, foi um dos meios que artistas neoconcretos como Carvão e Hélio Oiticica encontraram para catalisar este processo. Mas a cor neoconcreta não se deixa explicar somente através dos marcos cronológicos e interpretativos do próprio movimento: daí que eu pretenda abordar a compreensão da cor por Gullar não apenas através de seus textos neoconcretos, mas buscando também traçar a gênese de suas posições teóricas em sua poesia do início da década de 1950, sobretudo d’A Luta Corporal (1954), livro escrito entre 1950 e 1953, mas publicado somente em 1954. Minha tese é que a cor neoconcreta, tal qual concebida por Gullar, relaciona-se intimamente com as meditações anteriores de sua poesia sobre os limites da linguagem e também com uma importante virada em sua visada fenomenológica ao longo daquela década. Mais diretamente, 1 Discuto a dupla matriz da Teoria do Não-Objeto em MARTINS, 2016; e mais longamente em MARTINS, 2013, capítulo 1.

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“A POLPA DA COR”

creio que o sentido utópico implícito na insistência de Gullar na cor como uma força que desmancha a resistência do objeto é surpreendentemente devedora do existencialismo trágico que permeava sua poesia imediatamente pré-Concreta e informava descrições poéticas do dispêndio das coisas contempladas (especialmente em imagens de frutas apodrecendo). Não se trata, porém, de uma dívida banal ou direta; para reconstituí-la, será necessário atentar também para a questão da temporalidade e da duração na “Teoria do Não-Objeto”, e também, claro, para o próprio problema da contemplação. O caminho que conecta A Luta Corporal à “Teoria do Não-Objeto” é formado por deslizes e sobreposições conceituais, e não por blocos articuláveis num sistema. Dessa forma, ao invés de sistematizar essa trajetória, melhor será acompanhar o desdobramento dialético de suas formações conceituais. Linguagem e contemplação A Luta Corporal é um livro extraordinário; primeira publicação madura do jovem poeta maranhense, é nada menos que um marco de ruptura com a dicção neossimbolista da geração de 45, segundo João Luiz Lafetá (LAFETÁ, 2004, p.126-133).2 Tal sentido de ruptura, explica o crítico, é sublinhado pela estrutura de “caminhada em linha reta” do livro (p.152). A Luta Corporal abre com “Sete Poemas Portugueses”, um conjunto que poderia até parecer fiel ao tenor encantatório da geração de 45, não fosse pela intrusão ocasional de um vocabulário mais corrosivo que trava a fluidez dos versos e sugere uma estrutura alternativa, calcada no espelhamento de imagens e palavras cuja contraposição incisiva sobressai em meio aos versos (p.129-133). Abandonado o metro mais convencional dos poemas iniciais, Gullar prossegue como num passo-a-passo, enfocando temas até então latentes, como o descompasso temporal que separa sujeito e objeto, a alienação do eu-lírico diante das coisas que ele contempla e o pressentimento angustiado da morte. Na medida em que a caminhada avança, a própria linguagem se transforma, deixando de lado os resquícios de uma tonalidade mistificante para debruçar-se obstinadamente sobre a resistência dos objetos evocados. Em “Galo galo”, diz Lafetá, “o tom obscuro dos ‘poemas 2 Para além da leitura de Lafetá, minha interpretação d’A Luta Corporal deve muito ao trabalho de Miguel Conde, e a conversas com ele. Houve, até o momento, muito pouco diálogo entre a história da arte e a crítica literária no tocante à obra de Gullar; o presente ensaio é, em grande medida, uma tentativa de costurar ambas as perspectivas.

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portugueses’ é substituído pela visão nítida, econômica, que parece desenhada a bico-de-pena” (Galo: as penas que/florescem da carne silenciosa/e o duro bico e as unhas e olho/sem amor. Grave/solidez./Em que se apoia/tal arquitetura?) (p.138). Cada nova solução poética que o livro introduz termina por ruir sob o peso de uma consciência sempre renovada e crescentemente aguda da insuficiência da linguagem como meio de angariar conhecimento objetivo das coisas. Em “Roçzeiral”, um dos poemas finais do livro, as palavras se esfacelam numa profusão dispersa de sílabas, letras e sons: “MU/ LUISNADO/ VU/GRESLE RRA/Rra Rra/GRESLE RRA/I ZUS FRUTO DU DUZO FOGUARÉO/ DOS OSSOS DUS/DIURNO/RRRA”. Tal leitura d’A Luta Corporal como uma marcha inexorável rumo à pulverização da linguagem é compartilhada tanto pelo mais assíduo comentador do poema – o próprio Gullar –, quanto por seus principais adversários intelectuais, os poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, bem como por discípulos destes. Todos concordam que o leitor termina o poema em meio aos escombros da linguagem, divergindo na avaliação de tal estado de coisas: ao invés de elogiar a radicalidade do livro, o poeta e teórico Philadelpho Menezes, por exemplo, retoma o juízo negativo dos poetas concretistas em sua reprovação de Gullar, descrito como “um franco-atirador, que parece mais interessado em destruir uma linguagem que planejar novas organizações composicionais” (MENEZES, 1991, p.20). Em 1963, reavaliando sua produção anterior, o próprio Gullar conclui que A Luta Corporal chegara numa insuperável “contradição entre a intimidade do homem e a exterioridade da palavra” (GULLAR, 1965, p.121) que explanava a futilidade do fazer poético em si. Não resta dúvida de que o colapso da linguagem é um tema central d’A Luta Corporal – nem de que esta se tornou uma interpretação demasiado oficial do livro. O afã teleológico de Gullar fez do livro uma espécie de capítulo encerrado numa narrativa linear de sua própria trajetória poética. Entretanto, à luz de outros e mais recentes lances interpretativos, é possível rever tal clausura narrativa e postular relações fundamentais entre A Luta Corporal e os escritos neoconcretos de Gullar. Segundo o crítico Miguel Conde, por exemplo, é na “descrição da imagem estática considerada contemplativamente” (CONDE, 2013, p.5) que a ênfase do livro sobre a disjunção entre a linguagem e as coisas é sentida em primeiro lugar. Observemos o seguinte fragmento do poema em prosa “Um programa de Homicídio”: 324


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Tanto o seu estar, rubro e quieto, quanto o meu que se faz e desfaz o ar/destas paredes—é queda [...] Sirvo-me deste nome como dum caminho para não te tocar, cousa, fera, objeto vermelho e súbito [...]

Maçã?

Sim, para não te tocar no que não és: forma e cor aqui, e algo mais que o corpo unicamente sabe [...] (GULLAR, 2017, p.70).

A linguagem pode até ser passível de utilização – “Sirvo-me deste nome” –, mas é incapaz de tocar aquilo que designa. Palavras nada mais são que “as nossas acrobacias, o nosso pobre jogo”, e nada nos dizem sobre nosso ser: “O que somos é escuro, fechado, e está sempre de borco. Falamos, gesticulamos, soluçamos, puerilmente, em torno dele – que não nos ouve nem nos conhece”. É visível o tenor existencialista por detrás de tal quadro de correspondência entre contemplação e alienação – de fato, é fácil imaginar a maçã de Gullar como um fruto estranho da célebre castanheira do romance de Jean-Paul Sartre, A náusea (1938). Pois bem, tais de ecos de Sartre retornam cinco anos após a publicação d’A Luta Corporal, precisamente no momento em que Gullar se esforça para dar corpo ao tour de force teórico do Neoconcretismo, a “Teoria do não-objeto”. É o caso do fragmento a seguir, tomado do “Diálogo sobre o não-objeto”, texto escrito para complementar e elucidar a “Teoria”: A- Mas os objetos tampouco se esgotam sempre naquelas referências [de uso e designação verbal]. Sob o nome pera, está a pera coma sua densidade material de coisa. B- Sim. Quando nos subtraímos à ordem cultural do mundo, vemos os objetos sem nome – e nos defrontamos com a sua opacidade de coisa. [...] sem nome, o objeto torna-se uma presença absurda, opaca, em que a percepção esbarra; sem nome o objeto é impenetrável, inabordável, clara e insuportavelmente exterior ao sujeito. [...] É, pois, o objeto, um ser híbrido, composto de nome e coisa, como duas camadas superpostas das quais uma apenas se rende ao sujeito – o nome. (GULLAR, 2007, p.94-95).

Muda a fruta, segue o drama: maçã e pera são apenas nomes e, como tal, incapazes superar a opacidade da coisa e tocar sua essência. Poucas linhas adiante, 325


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Gullar explicita sua referência teórica (e poética) ao reexaminar o problema do objeto sem nome “nos termos da filosofia existencial sartreana. Enquanto o sujeito existe para si, o objeto, a coisa, existe em si” (GULLAR, 2007, p.95). A consequência, explica o poeta, é “a perplexidade do homem que se sente exilado entre elas [as coisas]” (p.95). Se tratasse só de uma recorrência periódica de motivos sartreanos, tal observação teria interesse limitado. Mas o fato é que uma mudança fundamental de coordenadas ocorre no pensamento de Gullar entre 1954 e 1959. Em meio ao virtuosismo acrobático d’A Luta Corporal, o poeta relança sua voz seguidamente em direção às coisas, mas sua obstinação não resulta na tão almejada reconciliação entre linguagem e mundo; ao final, como já mencionei, esta mesma voz se dissolve numa sequência de grunhidos e ruídos desprovidos de sentido aparente. Tão radical foi este desmantelamento da linguagem, e o beco sem saída dela resultante, que Gullar chegou a pensar que sua breve trajetória poética havia chegado ao fim (CAMPOS, 1978, p.58; GULLAR, 1998, p.35). Cinco anos mais tarde, no entanto, o existencialismo trágico que pautava sua concepção da relação sujeito/objeto havia sido abrandado por uma perspectiva reconciliadora oriunda de sua descoberta da fenomenologia de Merleau-Ponty.3 É sob este novo signo que desponta tanto o conceito de não-objeto quanto sua crença de ter finalmente alcançado aquela fugidia reconciliação: “O não-objeto [...] [é] uno, íntegro, franco. A relação que mantém com o sujeito dispensa intermediário. Ele possui uma significação também, mas essa significação é imanente à sua própria forma, que é pura significação” (GULLAR, 2007, p.95). O intermediário ao qual o poeta se refere é a própria linguagem, que restringe nosso acesso aos objetos a questões do útil e da designação verbal. Como vimos, esta mesma restrição ditava a alienação do sujeito perante os objetos d’A Luta Corporal. Mas a Teoria traz um novo trunfo: posto que seu significado é imanente à sua própria forma, o não-objeto teria então o poder de recolocar os sentidos de tempo e espaço em cada novo encontro com o sujeito. Em outras palavras, ele teria o poder de renovar as próprias coordenadas da experiência subjetiva, resultando no que o poeta chama de pura significação. 3 Segundo Gullar, seu primeiro contato com Merleau-Ponty se deu em torno de 1957-1958, após a Exposição Nacional de Arte Concreta. (GULLAR JIMENEZ, 2013, p.117).

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O descompasso entre as perspectivas ontológicas de Sartre e Merleau-Ponty é fundamental para que possamos compreender porque a contemplação se torna um mote tão central na teorização do não-objeto. Mesmo no Diálogo, Gullar segue caracterizando a cena contemplativa como o palco da alienação do sujeito, uma vez que a linguagem ali prossegue no papel de necessário – ainda que tragicamente insuficiente – de intermediário entre o sujeito e o mundo. Porém, o momento de reconciliação entre sujeito e objeto que o não-objeto finalmente proporciona aos olhos do Gullar neoconcreto nunca ocorre em seus trabalhos iniciais. Em O Anjo, outro poema d’A Luta Corporal, o poeta encena um encontro entre o eu-lírico e um anjo de pedra que anima tanto sujeito (“Tão todo nele me perco/que de mim se arrebatam/as raízes do mundo;/tamanha/a violência de seu corpo contra/o meu”) quanto objeto (“que a sua neutra existência/ se quebra:/e os pétreos olhos/se acendem”; “a leve brisa/faz mover a sua/túnica de pedra”). No entanto, tal ensaio de imbricação fenomenológica entre sujeito e objeto – para tomar de empréstimo outro termo de Miguel Conde – cessa de súbito no último verso do poema (CONDE, 2013): O anjo é grave agora. Começo a esperar a morte (GULLAR, 2017, p.45).

A estrofe é cindida por um marcador temporal abrupto e incisivo – agora –, seguido de ponto final. Finda a acrobacia, tudo é imobilidade, e angústia uma vez mais assombra o sujeito. Não fosse por esta última estrofe, O Anjo teria antecipado à risca o movimento reconciliador do não-objeto. Ao contrário do anjo, no entanto, o não-objeto não regride a um estado solene e inerte, ou pelo menos não o faz para o sujeito. As cartas postas na mesa são as mesmas em ambos os casos, mas a fortuna que o poeta nelas lê muda da água para o vinho. A eliminação desse momento alheado – o momento final d’O Anjo – da experiência da obra confere à experiência estética do não-objeto seu sentido radical de superação da contemplação: A mera contemplação não basta para revelar o sentido da obra – e o espectador passa da contemplação à ação. Mas o que a sua ação produz é a obra mesma, porque esse uso, previsto na estrutura da obra, é absorvido por ela, revela-a e incorpora-se à sua 327


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significação. O não-objeto é concebido no tempo: é uma imobilidade aberta a uma mobilidade aberta a uma imobilidade aberta. [...] O espectador age, mas o tempo de sua ação não flui, não transcende a obra, não se perde além dela: incorpora-se a ela, e dura (GULLAR, 2007, p.99-100).

Tempo e dispêndio É o tempo que está claramente em jogo aqui. E não só aqui: a temporalidade da experiência era um dos pomos da discórdia entre Gullar e os poetas concretos paulistas. Sua famosa resposta a Haroldo de Campos na sequência da Exposição Nacional de Arte Concreta (ENAC), em 1957, antecipa o trecho citado acima, especialmente quando Gullar tenta distinguir sua visão da poesia concreta de uma caracterizada por analogia com a publicidade: o poema começa quando a leitura acaba... [...] Assim, no poema concreto, o leitor é levado ao encontro de um objeto durável – e isto o coloca em oposição ao anúncio e aos processos publicitários em geral – onde a linguagem pretende apenas precipitar uma reação do leitor e não criar um objeto para ele (GULLAR, 2007, p.77-78).

Não se trata apenas de passar da contemplação à ação, mas de uma distinção entre ação enquanto resposta mecânica (como nos processos publicitários que Gullar equipara à ortodoxia concreta) e ação enquanto imbricação entre sujeito e objeto, isto é, ação que incorpora-se no não-objeto e cuja temporalidade é apreendida como duração. A analogia com a publicidade implica numa crítica à ênfase concretista no design gráfico e industrial como formas de mediação entre a prática exemplar da arte e seu pretenso alcance social. Gullar suspeitava do mecanismo implícito nesse processo por temer que ele reduziria práticas de recepção da arte, como a leitura, a efeitos amplamente predeterminados por decisões formais tomadas de antemão (sua crítica assemelha-se à de Merleau-Ponty ao modelo mecanicista que rege a psicologia da Gestalt).4 Mais do que propor um modelo de relação entre sujeito e objeto pautado por determinações recíprocas entre ambos (já que, como Merleau-Ponty observava, a reciprocidade 4 Ronaldo Brito nota esta semelhança em seu clássico estudo sobre o neoconcretismo. Ver BRITO, 1985.

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por si só não elimina o mecanicismo), a alternativa do poeta visava reconfigurar a própria textura temporal dessa relação (MERLEAU-PONTY, 2006, p.250). Tal posição é consequência direta do envolvimento breve e peculiar de Gullar com a poesia concreta. O concretismo lhe apareceu como uma luz no fim do túnel em que ele se enfiara após a publicação d’A Luta Corporal; era a possibilidade de uma trégua, por assim dizer, com seu lirismo niilista e a linguagem autodestrutiva que este trazia a reboque. Mais visual que musical, a poesia concreta permitiu que Gullar retomasse alguns de seus motivos poéticos favoritos na forma objetos verbais aliviados daquela pressão insuportável que os encaminhava inexoravelmente para (mais) uma reflexão sobre o drama existencial de seu eu lírico (LAFETÁ, 2004, p.163).5 Os próprios pressupostos da poética concretista já lhe garantiam algum grau de esperança utópica; garantiam, por conseguinte, um teto mínimo de sentido para sua poesia, protengendo-o da angústia existencial (no período neoconcreto, como vimos, a fenomenologia de Merleau-Ponty desempenha um papel semelhante, e o mesmo vale para o dogmatismo revolucionário da arte popular ao qual Gullar adere no início dos anos 1960, ao militar na esquerda estudantil). Mas nem mesmo a poesia concreta de Gullar debelava por completo seu fascínio com a temporalidade instável oriunda da corporeidade inescapável da leitura. Como os demais concretistas, o poeta tinha a obra de Stéphane Mallarmé na mais altíssima conta; no entanto, poema “O Formigueiro” (1954-55), do qual Gullar extraiu sua contribuição para a ENAC, demonstra que sua dívida para com o mestre francês era deveras idiossincrática. Nas mãos dos concretos paulistas, a obra-prima de Mallarmé, Un coup de dés jamais n’abolira le hasard (1897), enseja uma poesia na qual chamam a atenção tanto o arranjo gráfico dos signos na página branca quanto aquilo que o poeta francês denominava “subdivisões prismáticas da ideia”, isto é, o desdobramento hierárquico, mas multidirecional, de cláusulas que forqueiam a partir do verso principal (CAMPOS, 1978, p.138). O emprego gráfico das diferentes cores para indicar caminhos de leitura na série Poetamenos (1953), de Augusto de Campos, é talvez o mais claro exemplo dessa posição. “O Formigueiro”, por outro lado, 5 Para Lafetá, os “temas de antes – o brilho das frutas, o alheamento entre os seres, a dissipação da poesia – encontram mais uma possibilidade de se colocarem como forma. A concepção concretista do poema enquanto objeto (somada a seus postulados anti-subjetivistas) tem um valor oposto ao dionisismo que levou Gullar ao impasse do silêncio.”

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debruçava-se sobre a própria forma-livro e mobilizava o branco da página não em sua dimensão gráfica, mas como signo do silêncio. No contexto da ENAC, onde “O Formigueiro” teve páginas ampliadas e apresentadas como pôsteres – uma clara concessão de Gullar à visualidade concretista –, tais diferenças passavam relativamente despercebidas. Mas a publicação tardia do poema como livro, em 1991, não deixa dúvidas: a cada folha virada, uma página com poucas letras impressas vem acompanhada por outra completamente em branco: Everything... silence, Gullar observa numa apresentação supostamente incluída na ENAC. Seu interesse não residia nem no fluxo sintático (“O Formigueiro” até tem um verso principal, como Un coup de dés, mas a cada nova página o jogo da leitura é zerado, já que somos obrigados a juntar as letras espalhadas para só então apreender a palavra da vez), nem no jogo fonético típico da poesia concreta (as páginas em branco separando cada palavra por formar não esboçam qualquer contraponto vocal; já a aliteração da frase principal – “a formiga trabalha na treva a terra cega traça o mapa do ouro maldita urbe” – em nada se assemelha ao critério de composição verbivocovisual dos concretos paulistas, dado que só comparece retrospectivamente, findo o laborioso esforço de leitura palavra a palavra).6 O recurso à forma-livro em “O Formigueiro” e em livros-poema como Fruta são centrais para o modo com o qual Gullar instaura uma poética calcada no sentido corpóreo do tempo. É à ênfase gráfica do poema concreto – que tem como suporte paradigmático a página – que Gullar se opõe em sua opção pela forma-livro. Recordemos a anedota que o poeta contava acerca de seu poema “Verde Erva”: verde verde verde verde verde verde verde verde verde verde verde verde erva (GULLAR, 2007, p.34).

Gullar esperava que a repetição aliterativa da palavra “verde” deslocasse o tempo forte da leitura – de “verde/ verde/ verde” para “verd/e verd/e verd/e” –, prenunciando assim o surgimento da palavra “erva”. Em outras palavras, a voz deveria insinuar-se como um objeto indócil, brotando em meio ao ritmo constante da repetição e desviando seu sentido, desvio esse que a associação 6 O texto que acompanhava o poema está reproduzido em GULLAR, 2007, p.135.

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cromática entre “verde” e “erva” trataria então de regular, como que para evitar que tal indocilidade resultasse incendiária, como em “Roçzeiral”.7 No entanto, o poeta teve suas expectativas frustradas por um amigo cuja leitura ignorou tal desvio. Sua percepção apreendeu num só lance o quadrado gráfico composto por várias repetições da palavra “verde”; tomando tal sentido por dado, esse leitor então furtou-se de seguir o fio cadencial e lê-las uma a uma, o que era exatamente a precondição para que a indocilidade da voz prenunciasse o surgimento da palavra “erva”. Gullar remete este incidente às suas reservas quanto à estética concretista, mas o que mais interessa aqui é registrar que mesmo sua fase concreta seguia assombrada pelo registro temporal d’A Luta Corporal – a frustração de suas expectativas não é senão um indicativo do descompasso entre os dois partidos poéticos que ele buscava conciliar.8 Já observei que A Luta Corporal recorre à descrição contemplativa de imagens estáticas como contraponto à fluência encantatória de seus versos iniciais (contraponto este que ecoa posteriormente no Manifesto Neoconcreto, onde se lê que, “na poesia neoconcreta a linguagem não escorre: dura”) (GULLAR, 2007, s/p.). Não que o tempo seja gradualmente banido do livro; o que ocorre, na verdade, é que sua natureza se revela outra: ele se torna uma um mistério que o sujeito contempla, mas do qual ele também se sente inexoravelmente alienado. O poema “As peras” é um caso exemplar: As peras, no prato, apodrecem. O relógio, sobre elas, mede a sua morte? [...] 7 Para um tratamento lacaniano da voz como um objeto intimamente ligado, mas ainda assim irrevogavelmente estranho ao sujeito, ver DOLAR, 2006. 8 Mariola V. Alvarez argumenta que a poesia concreta de Gullar antecipa, ao invés de opor-se à, sua produção neoconcreta. Ela ainda propõe que é a palavra o cerne de sua poesia, especialmente a partir de 1957. Ainda que a sugestão seja plausível, creio que há outro lado importante sem o qual a história permanece incompleta, pois a palavra opera também no sentido de velar, e assim permitir, o retorno do dispêndio em sua produção concreta e neoconcreta. Ocorre que reconhecer este retorno é questionar a periodização que o próprio poeta fazia de sua produção; me parece, enfim, que qualquer tentativa de periodizar taxativamente o concretismo de Gullar é metodologicamente questionável, especialmente se amparada na compreensão do concretismo como um gênero estável (ALVAREZ, 2013).

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Oh as peras cansaram-se de suas formas e de sua doçura! As peras, concluídas, gastam-se no fulgor de estarem prontas para nada. […] O dia das peras é o seu apodrecimento. [...] (GULLAR, 2017, p.58-59).

Lafetá é preciso em sua avaliação do poema: “As peras” se assemelha a uma natureza-morta em cujo “quadro, paralisado diante de nós”, cada elemento – as peras, o relógio, o eu-lírico – encontra-se paradoxalmente isolado num tempo e espaço distinto (LAFETÁ, 2004, p.145). O abismo temporal que os separa, a despeito do intimismo da cena que os reúne, é o conteúdo trágico do poema. Em “Verde erva”, Gullar tenta escapar deste impasse precipitando um movimento que, apesar de imanente ao objeto (no caso, ao objeto “verde” em sua dimensão verbal), visa transcender a si próprio e abrir-se a um novo significado. Um objetivo que ele só alcançaria – ou que imaginaria ter alcançado – com o não-objeto. Maçãs, peras – o tema da fruta é dos mais recorrentes ao longo da sinuosa trajetória poética e teórica de Gullar nos anos 1950. A Luta Corporal é repleto de frutas que apodrecem, ardem, dispendem-se e expiram, e que o fazem sem alvoroço (“É tranquilo o dia / das peras? Elas / não gritam, / como / o galo”). São emblemas do “dispêndio das coisas em si mesmas” que Conde toma como a “força devoradora” a animar o livro (CONDE, 2017, p.28). Que as peras ignorem seu destino – não são sujeito, afinal – faz delas um tipo particularmente perturbador de objeto: incapaz de compartilhar da serenidade das frutas, o eu-lírico torna-se mais e mais consciente de que aquilo que ele enxerga ao contemplá-las nada mais é do que a sua própria angústia. Haveria qualquer parentesco relevante entre estas peras e a que aparece no Diálogo sobre o Não-Objeto? À primeira vista, esta última parece desprovida de particular interesse ontológico e fenomenológico, dado que é enumerada como apenas mais um dentre uma série de diversos objetos ordinários (“an eraser... a shoe”). Gullar toma-a isoladamente mais adiante, na passagem que citei acima, mas não há qualquer razão para imaginar que o lápis ou o sapato não pudessem 332


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ter cumprido papel semelhante em seu argumento. Estamos distantes, afinal, daquela cena na qual o dispêndio da pera apontava para a alienação do sujeito diante de um mundo de coisas cuja temporalidade era essencialmente outra: a razão de ser do não-objeto é precisamente a revogação dessa alteridade radical; é para tanto que ele oferece ao sujeito um meio de superar a instrumentalidade característica da linguagem conceitual e participar, enfim, da temporalidade do objeto (no caso, do não-objeto, isto é, da obra de arte). Nesse contexto, a duração desponta como a inversão do dispêndio: ambos se situam para além da linguagem, mas aquela transcorre incorporando os atos do sujeito, enquanto este aponta para um registro temporal incomensuravelmente diverso. Em suma, o beco sem saída do dispêndio já não é mais um problema. A polpa da cor Mas será mesmo? É realmente crível que Gullar tenha insistido na pera como exemplo de objeto ordinário por pura força do hábito? Teria o sentido de dispêndio previamente entranhado na pera realmente ficado restrito ao passado, ou será que ele de alguma forma persiste ou retorna para assombrar a utopia fenomenológica neoconcreta? Esta última é precisamente a minha hipótese: ainda que o não-objeto tome o lugar dos objetos que se dispendem na renovada perspectiva ontológica do poeta, o fato é que o dispêndio segue operando no discurso neoconcreto. Mais especificamente, meu argumento não é simplesmente que o dispêndio se dissocia de seu avatar primeiro, a fruta, mas também que esse processo é análogo ao mecanismo psicanalítico do recalque, no qual o significante se dissocia do significado desprazeroso que causou sua rejeição por parte do Eu. Freud frequentemente emprega a metáfora do porteiro ou segurança que vigia uma porta para descrever o recalque. O papel deste agente – contratado, por assim dizer, pelo Eu – é precisamente o de prevenir a entrada do visitante indesejado (a saber, do representante pulsional recalcado e de suas representações derivadas, ou seja, de significantes).9 No recalque, o Eu mira no significado (o desprazer causado pela pulsão intolerável), mas só acerta o significante (e com 9 O recalque só funciona na medida em que esta “representação derivada”, ou significante, permanece minimamente reconhecível como representante do conteúdo a ser recalcado. Dado que os significantes inconscientes seguem passando por processos metonímicos de deslocamento, ocorre da moção pulsional que o recalque inicialmente visava atrelar-se a um significante que não consta na lista negra do porteiro, por assim dizer, podendo assim ludibriá-lo. É exatamente a isso que se dá o nome “retorno do recalcado” (FREUD, 2004, p.175-193).

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isso o recalca). Ora, se é verdade que o dispêndio opera como uma espécie de pulsão forçando sua entrada na consciência do discurso neoconcreto, então seu retorno depende de que o significante recalcado dê lugar a um tolerável. No contexto neoconcreto, e mais especificamente da teoria neoconcreta de Gullar, esse significante é a cor. Este não é o único retorno pelo qual a cor neoconcreta passa; ela também retorna no trabalho de Carvão. Num artigo de 1960, intitulado “Cor e estrutura-cor”, Gullar recorda que, após seu contato com o rigor geométrico do concretismo paulista, Carvão afastou-se temporariamente do jogo tonal com linhas cromáticas que caracterizava seu trabalho no Grupo Frente para dedicar-se a composições nas quais figura e fundo encadeavam-se de forma rítmica (GULLAR, 1999, p.258). Mas mesmo nessas pinturas, afirma o poeta, Carvão evitava a composição serial e privilegiava “a duração da forma em lugar de sua dinâmica exterior”; em outras palavras, ele recusava o tratamento tipicamente concretista do tempo como uma relação mecânica entre elementos pictóricos distintos arranjados em série (p.258). O trabalho que Gullar tem em mente é Ritmo Centrípeto-Centrifugal (1958), situado no meio termo entre o arranjo de elementos geométricos coloridos contra o fundo neutro de um trabalho como o Sem Título (1957) pertencente à coleção Gilberto Chateaubriand e a divisão da superfície como um todo em duas zonas geométricas cromaticamente diferenciadas de um Clarovermelho (1959). Como no Diálogo, Gullar traça uma oposição entre forma e linguagem – não a linguagem verbal, nesse caso, mas a sintaxe compositiva concretista –; o fato de a forma ter “duração” já implica que seu efeito temporal sobre o sujeito é distinto da temporalidade linear própria da sintaxe. Até que em pinturas como Clarovermelho e Terralaranja (1959), finalmente, a cor retorna. “Mas não se trata, aqui, de uma mera volta”, prossegue Gullar, e sim, de redescoberta, uma vez que a cor ressurge livre de qualquer função figurativa, ou demarcativa, para se tornar o elemento fundamental, significante, da obra. [...] A cor das últimas obras de Carvão (1959-1960) é a um tempo clara e densa, nem se expõe totalmente à percepção nem se refugia em dissimulações e truques. Ela dura diante de nós. A vista penetra, mas nunca até a decifração total, como se alojasse no cerne da cor, na polpa da cor, lá onde a percepção já não encontra a resistência do objeto e onde tudo é apenas tempo de perceber (GULLAR, 1999, p.258). 334


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Neste fragmento – o mesmo que dá título ao presente ensaio – a crítica à dinâmica exterior dá lugar à superação da própria resistência do objeto. É isso que exige que a cor se livre de qualquer função figurativa ou demarcativa, isto é, do seu uso pictórico restrito pela (e cúmplice da) distinção entre formas geométricas lineares. Está em jogo aqui o mesmo princípio segundo o qual a linguagem teve que desvencilhar-se do seu uso na nomeação e descrição de coisas n’A Luta Corporal. “Nesses quadros de Carvão”, escreve Gullar, “já não se encontra uma composição sobre um fundo, mas, apenas, faixas de cor que parecem vir de fora da tela e que ali se justapõem” (GULLAR, 1999, p.258). Em outras palavras, a relação entre as cores é determinada não por seu arranjo compositivo sobre o plano, mas pelo simples fato delas simplesmente se encontrarem lá, para que o sujeito as encontre; ao invés de determinar o horizonte de sentido desse encontro (enquanto delimitação do plano dentro do qual a composição se dá), a tela é determinada por ele. O retorno da cor no trabalho neoconcreto de Carvão consiste, portanto, numa reversão dialética: num primeiro momento, aplicações lineares ou locais de cor dão lugar a exercícios de forma e fundo que implicam o plano como um todo; daí, é só uma questão de tempo – ou melhor, de mobilização da duração – até a cor retornar e destronar o primado metafísico do plano, alçando o trabalho de Carvão à órbita do não-objeto. Trata-se de uma cor que corrói toda sorte de resistência: da linha, da forma, do plano e, finalmente, como vimos em Cubocor, do objeto. Numa entrevista publicada em 1961, o próprio Carvão dá voz ao seu desígnio de liberar as zonas de cor do fardo de “funcionar dentro de uma área rígida, delineada,” trabalhando de modo a fazer com que “o pincel não tivesse de parar num limite certo” (CARVÃO apud MARTINS, 1961, p.3) – uma declaração deveras reminiscente da observação de Baudelaire acerca do colorista cuja pincelada “sempre devorará a linha” (BAUDELAIRE, s/d., p.12).10 Desse ponto de vista, é evidente que a ênfase dada pelo neoconcretismo à duração não é inteiramente benigna – persiste nela um sutil, mas crucial sentido de dispêndio. Mais: creio que é este sentido que permite à cor atuar como catalisadora da não-objetidade. A cor neoconcreta não apenas se opõe à serialidade e à 10 A observação de Baudelaire diz respeito não à ideia do grande dessin, mas do desenho linear localizado – algo que a torna ainda mais oportuna no contexto da discussão sobre a composição concretista.

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relacionalidade da cor concreta, como o faz ao invocar uma temporalidade idiossincrática, uma temporalidade atrelada ao modo com o qual a cor tende a devorar a linha. É o que transparece quando Mário Pedrosa descreve o que se passa numa pintura neoconcreta de Carvão, muito possivelmente uma Cromática: um ocre bem enfechado avança em ponta triangular sobre a área rosa, e, então, o ocre é sombra do rosa ou o rosa negativo do ocre. A partir daí áreas já não são delimitadas a rigor geométrico, mas pelo encontro de faixas cromáticas que definham nas extremidades como que por exaustão energética (PEDROSA, 1981, p.180).

Note-se que Pedrosa, apesar de próximo de Gullar, não tinha compromisso com o não-objeto e seu sentido reconciliatório.11 Em sua vívida descrição, a delimitação linear se dissolve precisamente no ponto em que as zonas cromáticas definham por exaustão energética. O desmanche da delineação (ou seja, do rigor geométrico) é inextricável, portanto, do dispêndio cromático. Do ponto de vista do desenvolvimento histórico do discurso neoconcreto, esse dado ilumina a passagem da fruta à cor nos trabalhos poéticos e teóricos de Gullar, uma passagem sintetizada à perfeição naquela imagem que o poeta conjura para dar conta da obra de Carvão, e à qual eu finalmente posso agora me voltar: a polpa da cor. Essa passagem tem a sua história. Segundo Gullar, a origem do seu livro-poema Fruta (1958) reside numa estrofe d’A Luta Corporal implicitamente baseada na contemplação de uma maçã: Cerne claro, cousa aberta; na paz da tarde ateia, branco, o seu incêndio (GULLAR, 2017, p.134).

Como não ver na polpa de que fala Gullar um análogo deste cerne, especialmente dado o título – Cerne-cor (1961) – de outra importante obra neoconcreta 11 Pedrosa foi sem dúvida o principal mentor de Gullar no tocante à crítica de arte, mas nem por isso o jovem poeta deixava de afirmar sua independência crítica; o termo “neoconcretismo” e o conceito de não-objeto são marcos importantes nesse sentido. Discuto a relacão entre ambos em MARTINS, 2013, capítulo 1; e também em MARTINS, 2016.

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de Carvão? Está claro o que o termo nomeia: o objeto de um súbito encontro direto, imediato. Sua revelação n’A Luta Corporal deflagra um incêndio branco que se espalha incontrolavelmente, até finalmente consumir a linguagem (“Nos dar as chamas dum/exato/vácuo/VOCABULAR.”). Já o livro-poema, incorporando as lições que Gullar aprendera com “O Formigueiro” e “Verde erva”, lança mão da brancura da página como uma pausa silenciosa que enlaça temporalmente a palavra ao seu suporte físico. Em outras palavras, Fruta já não possui um cerne que se dispende e incendeia a linguagem, mas um cerne em torno do qual página e palavra gravitam num jogo cujo apelo à duração é palpável. Algumas de suas páginas triangulares são deixadas completamente em branco, evocando as fatias de uma maça cortada e criando intervalos silenciosos entre as palavras flauta, prata e fruta. Mas isso não significa dizer que o dispêndio é simplesmente deixado de lado. A sintaxe linear e o arranjo serial de palavras são estranhos à órbita temporal de Fruta, e mais ainda do não-objeto, da mesma forma que a delineação rígida e a composição serial não têm lugar no cromatismo neoconcreto de Carvão. Seu desmanche é perpetrado pela duração – tanto o poema quanto a cor duram. A duração pode então ser compreendida, por assim dizer, como uma nova versão do dispêndio, agora desarmado e dócil ao sujeito. Isso é fundamental: a duração tem o poder de corroer a delineação, mas já não chega mais ao ponto, como era o caso com o apodrecimento das frutas n’A Luta Coporal, de condenar a contemplação alienante; muito pelo contrário, agora é a duração – enquanto tempo de perceber – que permite que a forma do não-objeto incorpore as ações do sujeito. A preferência da geometria neoconcreta por formas simples, ao invés de padrões compositivos complexos, se explica por conta dessa mesma lógica. Quadrados, cubos e círculos são formas cuja percepção é simples e quase autoevidente, fato que artistas neoconcretos frequentemente usam como uma armadilha para a visão e como uma espécie de pano de fundo contra o qual o trabalho da duração pode ser mais palpavelmente discernido. Para Lygia Clark, por exemplo, o plano quadrado atuava como uma espécie de espelho sobre o qual o sujeito projetava um sentido racional e falso de seu próprio equilíbrio, o que por sua vez dava à artista a oportunidade de usar este mesmo quadrado, como que entortando o espelho, para subverter a autoimagem deste mesmo sujeito (CLARK, 1960).12 É este o papel da linha-luz que perturba a simetria 12 Discuto esse trecho e essa questão em MARTINS, 2014, p.46-57.

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dos Espaços Modulados (1958) e Unidades (1959). Já para Carvão e Hélio Oiticica, é a cor, e não a linha, o principal operador deste mesmo efeito. As superfícies quase monocromáticas das Invenções (1959) de Oiticica provocam uma falsa expectativa, frustrada pela gradual insinuação das camadas inferiores de cor que se dá na medida em que o olho se acostuma com a cor superficial – uma experiência calcada na duração, portanto.13 Já em Cubocor – o não-objeto por excelência de Carvão –, a cor se mistura com a textura do cimento, resultando na impressão paradoxal de que sua textura cromática fortemente tátil forma uma superfície quase impalpável. Em resumo, linha e forma são devorados pela cor. Talvez seja surpreendente pensar que a descrição de Gullar, da visão superando a resistência do objeto até se alojar na polpa da cor, deve ter sido escrita antes dele tomar conhecimento de Cubocor. Mas isso não muda o fato de que estes termos evocam um sentido de dispêndio que o trabalho de Carvão desenvolve com vigor; ademais, Carvão já vinha desenvolvendo as cores intensas e foscas que contribuem tanto para o relato do poeta quanto para o efeito visual de Cubocor.14 Poucos anos mais tarde, Oiticica enveredaria por um caminho similar ao encher as gavetas e jarras geométricas com pigmento em pó; o próprio nome dos Bólides (1964) já prenuncia sua exploração da tensão entre o dentro e o fora, como se estes recipientes estivessem no limiar de uma explosão.15 A metáfora é recorrente: Gullar gostava de repetir que chegou a propor uma última exposição neoconcreta cujo fim seria marcado pela explosão de todos os trabalhos (apud GEIGER; COCCHIARALLE, 2004, p.96). Verdade ou não, pouco importa: a anedota é suficiente para recordar-nos de um ethos compartilhado por todos esses artistas, e que se deixa resumir, nas palavras de um dos heróis de seu panteão, no ideal de realizar uma obra que seja tão destrutiva quanto construtiva (MONDRIAN apud BOIS, 1994, p.357).

13 Discuto essa questão na obra de Hélio Oiticica em MARTINS, 2013, capítulo 2. 14 Agradeço a Luiz Camillo Osório, que trabalhou com Carvão numa retrospectiva tardia de sua obra, pela informação de que ele acrescentava pigmento às tintas com o intuito de alcançar tons intensos e foscos. 15 Luiz Camillo Osório chega afirmar que, sem a existência prévia de Cubocor, teria sido impensável para Oiticica a realização dos bólides (OSÓRIO, 2001, p.12).

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“A POLPA DA COR”

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GRÁFICA EXPANDIDA: SOBRE ALGUNAS RELACIONES ENTRE ESPACIO PÚBLICO, IMÁGENES Y TEXTOS Silvia Dolinko

Las reflexiones sobre la obra gráfica comenzaron a incorporar desde hace algunos años aportes de los estudios visuales, apuntando a su ampliación hacia una historia del arte que desnaturalice la tradicional jerarquía entre las imágenes en tanto producciones visuales con condiciones de materialidad y circulación diversas. Estas renovadas perspectivas pusieron en discusión la canónica centralidad de lo pictórico en el gran relato modernista, así como también el más específico enfoque basado en el parámetro de la realización técnico-artesanal que dominó tradicionalmente las perspectivas y valoraciones sobre el grabado. En efecto, el principal abordaje de la cuestión de la multiejemplaridad de la obra impresa y su circulación ampliada había partido, históricamente, de la pregunta por la técnica, en el sentido sostenido por Paul Valéry al dirigirse a los peintres-graveurs; mientras que a principios de los años treinta el escritor francés indagaba sobre la conquista de la ubicuidad, consideraba en otro texto la producción del grabador desde el punto de vista artesanal.1 La particularidad híbrida del grabado – entre lo artesanal y lo reproductible, entre la creación única y la multiplicación – lo situó históricamente en una posición descentrada o paratópica dentro del campo cultural. Esta posición resultó aún más marcada en lo que respecta a la imagen impresa industrial, la cual sólo más recientemente comenzó a cobrar relevancia o interés como objeto de estudio dentro de las humanidades, a partir de su problematización desde la perspectiva de la cultura impresa o cultura gráfica (SZIR, 2016). 1 Cabe recordar que Valéry fue una de las voces de autoridad para la reflexión de Walter Benjamin en torno a la reproductibilidad de la obra de arte y la pérdida del aura. Paul Valéry, “La conquête de l’ubicuité”, texto publicado originalmente en De la musique avant toute chose, Editions du Támbourinaire, 1928 y reproducido en Nouvelles Littéraires el 28 de marzo de 1931 y “Pequeño discurso a los pintores grabadores”. Incluidos en Piezas sobre arte, Madrid, Visor, 1999.

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Considerando la idea de un campo expandido ya formulado por Rosalind Krauss (1996) para la escultura, me interesa presentar en este trabajo algunos casos de lo que denomino gráfica expandida a partir de algunas intervenciones en el espacio público; para ello, contemplaré en particular algunos ejemplos latinoamericanos de relaciones entre imágenes y textos, en especial, de la escena cultural argentina. I La noción de gráfica expandida posibilita considerar diversas prácticas y modalidades en torno a la imagen impresa; la definición involucra una toma de posición terminológica al contraponer la más amplia categoría de obra gráfica frente a la ortodoxa –y tantas veces taxativa – denominación de grabado. Pensar en una gráfica expandida implica cuestiones de orden material o de dispositivos, de recursos y técnicas, en oposición al más acotado repertorio histórico que incluyó como modalidades privilegiadas a la xilografía, el aguafuerte o la litografía. Al considerarse las relaciones entre el anclaje histórico y su deriva contemporánea, cabe recordar que hubo un tiempo – fines del siglo XIX, principios del siglo XX – en el que la gráfica industrial y el grabado coincidían dentro del universo general de la imagen impresa, y en que ninguno conllevaba una especial valoración artística. Paulatinamente, los procesos de impresión artística y mecánica se fueron escindiendo y diferenciando en términos cualitativos, cuando la noción de grabado original resultó determinante para la jerarquización simbólica y material de los impresos (DOLINKO, 2009). En forma progresiva, y especialmente a partir de los años sesenta, los cánones y fronteras de las disciplinas artísticas, comenzaron a ponerse en cuestión y luego a derribarse: los recursos técnicos y las poéticas fueron ampliados, los espacios de visibilidad e intervención se expandieron. La historicidad y los usos de las técnicas resultan, así, una cuestión clave, ya que las derivas técnicas y su correlato en los procesos de legitimación se vinculan a distintas coyunturas culturales; en este sentido, xilografías, litografías y serigrafías fueron empleadas, en diversos momentos de la modernidad occidental, tanto para la producción de obras artísticas como para la reproducción de otro tipo de imágenes comerciales o publicitarias. Dentro de ese universo, resulta interesante señalar el papel del estarcido o esténcil en tanto técnica antigua y su más reciente puesta en juego como recurso contemporáneo. Surgido como una forma popular de multiplicación de imágenes, y reconocido como modalidad artística a partir del proceso de aperturas y discusión de cánones iniciado en los años sesenta, este procedimiento es recurrente 342


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en diversas prácticas actuales. Una matriz de estarcido puede ser vía para producir un graffiti callejero, una obra de gráfica experimental, un simple anuncio publicitario o una intervención de arte público monumental. Dentro de este último caso, se puede considerar la obra Triunfos y lamentos (2016) del sudafricano William Kentridge: en ella, a la vera del río Tíber, se develan figuras de personajes y seres legendarios de la historia de Roma; el medio por el que surgieron las imágenes es la presión del chorro de agua sobre una matriz de grandes dimensiones, el soporte es el muro con el detritus y la suciedad acumulados allí por centurias. Mientras que la multiejemplaridad fue un recurso particular de la imagen impresa, ésta fue a su vez potenciada por su inclusión en libros y revistas, plataformas de papel privilegiadas para la conformación de una cultura visual de la modernidad cultural. La renovación modernizadora o la ruptura vanguardista latinoamericana de las primeras décadas del siglo XX fueron proclamadas desde las páginas de revistas culturales surgidas en distintos puntos del continente: la brasileña Klaxon (19221923), la argentina Martín Fierro (1924-1927), la mexicana Horizonte (1926-1927) o la cubana Revista de Avance (1927) son, apenas, algunos ejemplos paradigmáticos.2 Dentro de la relación entre el soporte revista y la imagen impresa, también puede considerarse un caso particular de expansión gráfica a otro tipo de visibilidad y soporte: los muros de la ciudad. Así, la vanguardia ultraísta irrumpió en Buenos Aires en 1921 a través de Prisma. Revista Mural (1921-1922), empapelada en las paredes del centro de la ciudad. Dentro de ese impreso de grandes dimensiones se estableció un diálogo entre la xilografía Buenos Aires (1921) de la artista argentina Norah Borges – en la que invocaba la arquitectura vernácula, barrial, con sus casas de patios con baldosas y balcones con balaustradas, resueltas en clave visual modernista – y la proclama-manifiesto de Jorge Luis Borges y sus poesías, junto con las de Eduardo González Lanuza y Guillermo de Torre, entre otros escritores de ese movimiento. Pocos meses después, en diciembre de 1921, la publicación Actual. Hoja de Vanguardia apareció en la Ciudad de México; estaba diagramada con un dinámico juego tipográfico junto a la imagen del ideólogo del movimiento, Manuel Maples Arce, autor del Manifiesto Estridentista también allí reproducido.

2 Conferir Silvia Dolinko y María Amalia García, “Páginas en conexión: las revistas culturales en América Latina como escenario visual de la modernidad”, Errata, Bogotá, Instituto Distrital de las Artes y Fundación Gilberto Álzate Avendaño, n. 11, 2009, p.176-188.

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Imagen 1 – Actual No1 – Hoja de Vanguardia. Comprimido Estridentista, México, diciembre de 1921. Fonte: Actual No1 (1921)

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Con la progresiva aparición de los cuatro manifiestos del estridentismo surgieron las revistas del movimiento como Irradiador (1923), con abundantes imágenes de temática urbana de los artistas mexicanos Diego Rivera, Leopoldo Méndez, Fermín Revueltas y, especialmente, Ramón Alva de la Canal (GONZALEZ MELLO; STATON, 2013). Continuando esta línea que asocia gráfica y poesía, podría establecerse otro vínculo lejano – geográfica y cronológicamente – con la revista-cartel Alicia la Roja publicada en Puerto Rico entre 1972 y 1979 (REYES FRANCO, 2013). II Vinculado en cierto sentido con la noción de la revista mural, aunque con una especificidad particular, el afiche o cartel resulta asimismo un objeto asociado al cruce entre expansión gráfica y espacio público. Artefacto visual que juega con los límites entre la producción artística, la reproducción técnica o fotomecánica, el diseño gráfico, la difusión de información y el comercio, son muchos los casos que confirman el rol privilegiado jugado por afiches, esténciles y otros modos de inscripción gráfica desde las paredes de las ciudades. Un ejemplo destacado en la Argentina es el que constituye la obra gráfica de Ricardo Carpani y su larga impronta, desde los años sesenta, en la construcción de un imaginario visual sobre las luchas populares y la denuncia social.3 Resulta importante considerar sus imágenes en relación con una cultura visual de la época atravesada por las tensiones entre industria cultural y contracultura, entre práctica artística y compromiso político. En este sentido, puede afirmarse que se trata de uno de los imaginarios de mayor impacto producidos por un artista nacional a lo largo del siglo XX, trascendiendo el específico circuito artístico para proyectarse en el consumo popular. Carpani difundió desde los muros de las ciudades argentinas inconfundibles imágenes de trabajadores robustos y en lucha a través de impresos offset vinculados a la militancia política o sindical. Fueron esas imágenes las que Luis Felipe Noé – otro artista clave de la historia del arte argentino– definió como “logotipos de la rebeldía revolucionaria” (1994, p.17). Sus figuras de desocupados, de luchadores anónimos y también 3 Véase, por ejemplo, el estudio de Ignacio Soneira, “¡Basta! La persistencia de una imagen” en Caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura Visual, Buenos Aires, n.10, primer semestre de 2017.

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de íconos de la política nacional e internacional conformaron un imaginario de alto impacto a partir de la circulación de numerosos afiches concebidos para su reproducción masiva y su consiguiente ocupación del espacio público.

Imagen 2 – Ricardo Carpani, ¡¡Basta!!, 1963, offset, 109 x 74,5 cm. Fonte: CARPANI (1963)

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Contemporáneos de muchas de las obras de Carpani, pero desde otra geografía, los impresos realizados desde el Atelier Populaire de Beaux-Arts – integrado por muchos artistas latinoamericanos residentes en París –4 también intervinieron visualmente desde las paredes de la capital francesa para apoyar el movimiento de estudiantes y obreros en el célebre Mayo francés del 68. En ese mismo año, en la Ciudad de México se retomaba la tradición local de circulación social de las estampas – como aquellas producidas por José Guadalupe Posada a fines del siglo XIX y principios del siglo XX, o las de los miembros del Taller de Gráfica Popular (TGP) activos desde fines de los años treinta – para denunciar desde los muros de la ciudad la situación de represión y violencia institucional en aquél país. Aunque no se trató de afiches en un sentido estricto, resulta relevante referir aquí a otro ejemplo significativo de intervención de una gráfica expandida asociada a instancias de denuncia política. Me refiero a la acción conocida como “El Siluetazo” llevada a cabo en Buenos Aires durante la Tercera Marcha de la Resistencia, organizada por organismos de derechos humanos el 21 de septiembre de 1983, cuando la Argentina todavía se encontraba bajo dictadura militar.5 En ese marco, y a partir de una propuesta de los artistas Rodolfo Aguerreberry, Julio Flores y Guillermo Kexel, los cuerpos de muchos de los asistentes a la marcha fueron activados en tanto matriz humana: contorneados sobre papel, el registro de las siluetas de los presentes posibilitaron aludir a aquellos cuerpos desaparecidos. Dentro de cada silueta, la inscripción de nombres y fechas de desaparición anclaba esa referencia visual general a casos particulares, multiplicados y pegados en las paredes del centro de Buenos Aires. Esta imagen y sentido particular de la silueta devino en el campo local en símbolo de denuncia y resistencia, proyectando con fuerza su impronta en la cultura visual y la memoria colectiva argentina hasta la actualidad.

4 Cf. Isabel Plante, “Afiches del Mayo Francés. Gráfica, autoría y alteridad sudamericana en 1968”, Revista VIS, Programa de Pós-Graduação em Arte, Universidad Nacional de Brasilia, v.15 n.1, septiembre de 2016. 5 Cf. Ana Longoni y Gustavo Bruzzone (comps.), El Siluetazo, Buenos Aires, Adriana Hidalgo editora, 2008.

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Imagen 3 – Siluetas-pancartas en la marcha en Buenos Aires del 24 de marzo de 2017 (aniversario del golpe de Estado de 1976). Fotografía: Juan Lo Bianco. Fonte: LO BIANCO (2017)

Más reciente en el tiempo, otro caso de intervención gráfica en el espacio público es el que desarrolló el Taller Popular de Serigrafía (TPS), colectivo de artistas activo en Buenos Aires entre los años 2002 y 2007.6 El nombre de esta agrupación conllevaba un implícito juego de palabras, enlazando referencias hacia otros colectivos: por una parte, aludía a siglas de partidos políticos de izquierda (como el PTS) y a las contemporáneas asambleas populares surgidas a partir de la crisis político-económica argentina del año 2001; por otra parte, establecía vínculos con los ya mencionados Taller de Gráfica Popular mexicano (TGP) y el Atelier Populaire activo en Francia en 1968. El TPS realizó sus serigrafías en la calle, producidas en el marco de manifestaciones sociales contra diversas formas de impunidad y crímenes políticos en democracia. Citas de Karl Marx, de la poeta argentina Diana Bellesi, invocaciones a la obra vanguardista de Vladimir 6 La conformación del TPS fue dinámica; en sus más de cincuenta acciones públicas participaron Diego Posadas, Mariela Scafati, Magdalena Jitrik, Omar Lang, Karina Granieri, Carolina Katz, Verónica Di Toro, Leo Rocco, Pablo Rosales, Christian Wloch, Julia Masvernat, Juana Neumann, Guillermo Ueno, Catalina León, Horacio Abram Luján, Daniel Sanjurjo y Hernán Dupraz.

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Malevich o a la poesía visual brasileña fueron impresas y difundidas en el espacio público porteño en tanto escenario de acción colectiva.7 Sus imágenes fueron multiplicadas en papeles, banderas e incluso sobre la ropa de los manifestantes; en sus intervenciones, el taller se hizo móvil y se expandió a las calles.

Imagen 4 – Taller Popular de Serigrafía (TPS), Somos nosotros, 2002, serigrafía, 18 x 24 cm. Fonte: Taller Popular de Serigrafia (2002)

III Mientras que en los anteriores apartados de este trabajo se apuntó – concatenando diversas instancias geográficas y temporales – a señalar algunas propuestas relacionadas con las intervenciones de la gráfica expandida en el espacio público, me interesa en este último punto detenerme en un caso específico de expansión experimental dentro del museo: la obra Swift en Swift (1970) del artista argentino Juan Carlos Romero. Puede pensarse esta propuesta como un esténcil o estarcido en gran escala y sobre soporte papel que, operando desde dentro de la propia institución, expandía los códigos disciplinares e introducía la denuncia social en las salas de la institución. 7 Una lectura reciente de Diana Bellesi sobre el TPS en “La serigrafía tiene un largo pasado”, en http://www.malba.org.ar/la-serigrafia-tiene-un-largo-pasado/, 2017. Acesso em: 25/11/2018.

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Formado como grabador en la Escuela de Bellas Artes, a lo largo de toda su carrera, desde los años sesenta y hasta su fallecimiento en abril de 2017, Romero llevó adelante una obra gráfica de intervención social, concentrada en gran medida en las posibilidades del afiche: desde sus tempranas composiciones realizadas para apoyar campañas sindicales del gremio telefónico en el que participó en su juventud, pasando por los afiches desarrollados dentro del Grupo Escombros en la década del ochenta,8 hasta su última obra de pegatinado callejero de carácter netamente tipográfico. Estas propuestas fueron desplegadas en su gran mayoría en el marco urbano, especialmente en las ciudades de Buenos Aires y La Plata (ROMERO et al., 2010; ROMERO, 2012). Esta línea de producción de Romero, en donde la palabra constituye el cuerpo de la obra, tuvo uno de sus puntos más destacados en Swift en Swift, realizado para participar en el Salón Swift de Grabado llevado a cabo en 1970 en el Museo de Arte Moderno de Buenos Aires. Se trataba de la tercera edición de un concurso dedicado a la disciplina, patrocinado por el frigorífico Swift, de capitales norteamericanos.

Imagen 5 – Juan Carlos Romero, Swift en Swift. Vista de su instalación en el Salón Swift, Museo de Arte Moderno de Buenos Aires, 1970. Fonte: Museo de Arte Moderno de Buenos Aires (1970) 8 El Grupo Escombros fue una agrupación activa en la ciudad bonaerense de La Plata, entre 1988 y 2012; en sus inicios, estuvo conformado por Horacio D’Alessandro, David Edward, Luis Pazos, Héctor Puppo y Juan Carlos Romero.

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En los años sesenta, la compañía Swift se había ubicado entre los primeros exportadores del país, pero sucesivas maniobras con créditos financieros derivaron en una fuga de capitales y un debilitamiento de la situación de la empresa. Las suspensiones y despidos de obreros se tornaron un recurso cada vez más frecuente, utilizados por parte de la patronal como elemento de presión ante grupos económicos y políticos nacionales, en una Argentina entonces bajo dictadura militar (LOBATO, 2004). En ese contexto, Romero presentó Swift en Swift en el Salón Swift para denunciar esta situación de violenta manipulación patronal. El artista partió de una selección de párrafos de Los viajes de Gulliver de Jonathan Swift tomados de una vieja edición de la editorial Espasa Calpe de 1921 – mismo año, cabe recordar, del lanzamiento de la revista mural Prisma. La selección de fragmentos que hizo de la cuarta parte de la novela, “Un viaje al país de los houyhnhnms” (1726), se centraba en escenas de destrucción y dominación.9 Modificó algunas palabras para acentuar la actualidad de su sentido, sustituyendo por ejemplo los nombres de armas antiguas – como culebrinas, mosquetes y carabinas – por fusiles, morteros, ametralladoras, o cambiando el original tiempo verbal en pasado por presente. El artista tomó, entre otros, los siguientes párrafos: “las naciones pobres están hambrientas y las naciones ricas son orgullosas, y el orgullo y el hambre estarán en discordia siempre. Por estas razones el oficio de soldado se considera como el más honroso de todos; pues un soldado es un asalariado para matar a sangre fría, en el mayor número que le sea posible, individuos de su propia especie que no le han ofendido nunca” (SWIFT, 1921, p.141) o también: “expliqué que los ricos gozaban el fruto del trabajo de los pobres, y los últimos son como mil a uno en proporción a los primeros, y que la gran mayoría de nuestras gentes se ven obligadas a vivir de manera miserable, trabajando todos los días por pequeños salarios para que unos pocos viviesen en la opulencia” (p.148-149). Romero realizó así una selección de párrafos que aludían a la violencia y los mecanismos de dominación del poder: su obra presentaba dentro del mismo 9 Un análisis de la dimensión textual de esta obra de Romero en María Angélica Melendi, “Território de Juan Carlos Romero. Crônicas da violencia”, Modos. Revista de História da Arte, Campinas, v. 1, n.3, septiembre de 2017, p.218-235. Disponible en: https://www.publionline.iar. unicamp.br/index.php/mod/article/view/874>DOI:https://doi.org/10.24978/mod.v1i3.874.

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salón patrocinado por el frigorífico, una denuncia sobre el conflicto en que se encontraban involucrados los obreros debido a la especulación empresarial transnacional. En un plano más general, y teniendo en cuenta la procedencia norteamericana de la empresa Swift, esta obra se situaba como una denuncia antiimperialista sobre la política de los Estados Unidos. A la vez, además de la alusión específica al problema gremial, esta obra también podía apuntar a una reflexión sobre los abusos represivos del gobierno nacional al considerarse las estrechas vinculaciones de la empresa con algunos representantes del régimen militar gobernante por entonces: por ejemplo, uno de sus directivos era cuñado del general Alejandro Lanusse, quien poco después sería proclamado presidente de facto. Si el contenido textual sostenía una implícita provocación hacia la propia empresa que patrocinaba el evento, su materialidad y su presentación formulaban una estrategia de ruptura respecto de los cánones disciplinares. Las cuatro hojas de 4 x 0,70 mts. que componían la obra fueron presentadas extendidas en el piso del museo, ocupando un espacio tradicionalmente vedado para los grabados. Cada una de las partes de Swift en Swift tenía colores diferentes: letras verdes y rojas sobre papel celeste, verde y negro sobre fondo amarillo, rojo y fucsia sobre rosa, rojo y naranja sobre amarillo. La agradable conjunción de estos colores brillantes sobre papel de afiche publicitario barato – que remitía a los anuncios de bailes populares o a las publicidades callejeras –, contrastaba con la dificultad en la decodificación del mensaje escrito. En efecto, las palabras, inscriptas directamente sobre la superficie con tintas líquidas y plantillas de letras para estarcido, se encontraban escritas sin acentos, signos de puntuación ni espacios; se trataba de un continuum textual alterado solamente por la discreta inclusión de un círculo perforado en el papel a la altura del inicio de cada palabra, y por el cambio del color de los párrafos.

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Imágenes 6 a 9 – Juan Carlos Romero, Swift en Swift, 1970, esténcil, cuatro secciones de 74 x 400 cm cada una (detalles). Fonte: ROMERO (1970)

Palabras, colores y planos se combinaban en un enfoque conceptualista, corriente escasamente abordada por los grabadores en la Argentina. La obra de Romero planteaba así otro nivel de expansión gráfica y, a la vez, de subversión institucional: stricto sensu, no se trataba de un grabado, tal como convocaba el nombre del Salón. O, por lo menos, no lo era en el sentido en que lo hubiera entendido la convención disciplinar. Sin embargo, más que indagar acerca de qué se podía entender como la ortodoxia del grabado, cabe aquí la pregunta por la particularidad y las derivas de la imagen impresa desde entonces. En momentos en que la masividad de la gráfica industrial y militante de Carpani dislocaba el sentido de una obra impresa y múltiple, grabadores experimentales como Romero cuestionaban los fundamentos básicos de la disciplina y postulaban nuevas posibilidades dentro de la vía ya abierta de la gráfica expandida, aquella que se continuó proyectando hasta la actualidad.

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PRÁTICAS LITERÁRIAS E EXERCÍCIOS DO VER: A REVOLUÇÃO DOS SUPORTES Vera Lúcia Follain de Figueiredo

Entramos na era das águias. A característica das águias é ter os olhos maiores que o cérebro. Isto não significa que sejam idiotas, mas que pensam com os olhos. Gérard Wajcman. El ojo absoluto, 2011. A questão da relação entre o cognoscível e o visível, como sabemos, pontuou, com diferentes matizes ao longo do tempo, todo o pensamento ocidental. Na primeira metade do século XX, a noção de inconsciente ótico, tal como concebida por Walter Benjamin em sua reflexão sobre a reprodutibilidade técnica, retomava este mesmo tema, partindo da hipótese de que haveria algo que vemos e não sabemos que vemos inscrito no visual, ou ainda, alguma coisa que conhecemos no que vemos e não sabemos que conhecemos. Para tornar mais clara tal hipótese, Benjamin exemplificava, então, com o caso da fotografia, observando que o olho mecânico da máquina fotográfica é capaz de ver algo que só conseguimos ver com a sua mediação, ou seja, a fotografia poderia revelar um segredo existente na superfície fisionômica das coisas: Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos próprios: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 1985, p.94). 355


LINGUAGENS VISUAIS. LITERATURA. ARTES. CULTURA

O surgimento do cinema também colocou em pauta a questão da relação entre o visível e o conhecimento. Em 1921, Jean Epstein atribuía ao próprio dispositivo técnico cinematográfico o poder de diluir a oposição entre sensível e inteligível, já que permitiria ver o que o olho humano não vê: a dimensão íntima, imaterial da realidade, constituída de partículas, ondas e vibrações em movimento contínuo (1974). Para ele, aquilo que é visto pelo olho da câmera é uma matéria equivalente ao espírito, portanto, estaria resolvida a denúncia platônica das imagens, eliminando-se qualquer polarização entre aparências enganosas e a realidade substancial. Por outro viés, mais político, não limitado à mediação do olho técnico, Hanna Arendt, preocupada em compreender o que chamou de banalização do mal, isto é, a naturalização dos horrores praticados na Segunda Guerra Mundial, revisita em A vida do espírito, livro publicado em 1975, o tema da relação entre visão e conhecimento, entre visão e reflexividade, ou seja, entre ver e pensar. Para ela, a banalização do mal seria decorrente da falta de profundidade, da superficialidade em que se move o homem de massa, daí que procure resgatar a importância da contemplação e da distância, do retirar-se momentaneamente do mundo para que se possam questionar as certezas estabelecidas. Por esse caminho, a pensadora realiza uma defesa do sentido da visão, já que o associa à distância que abre espaço para o exercício da crítica. Identificando a existência de uma dificuldade geral, na época em que escreve, de se lidar com o domínio do invisível, em função do descrédito em que teria caído tudo o que não é visível, tangível, palpável, faz o elogio do sentido da visão, relacionando-o ao resgate da dimensão do suprassensível: ou seja, faz o elogio da contemplação que dessensorializa os objetos através do movimento do pensar que torna distante o que está perto e perto o que está distante (ARENDT, 2008, p.104). Embora considere não ser a percepção sensorial, mas a imaginação, que vem depois dela, que prepara os objetos do nosso pensamento, existiria, para Arendt, uma relação entre o pensar e o sentido da visão, pois este introduziria o observador. Haveria, em primeiro lugar, o fato indiscutível de que nenhum outro sentido, além da visão, estabelece distância tão segura entre sujeito e objeto, ganhando-se, aí, o conceito de objetividade. A visão nos forneceria um múltiplo simultâneo, enquanto todos os outros sentidos, especialmente, a audição, construiriam suas unidades de percepção a partir de uma sequência temporal de sensações: 356


PRÁTICAS LITERÁRIAS E EXERCÍCIOS DO VER

Enquanto a verdade, entendida em termos de audição, exige obediência, a verdade, em termos de visão apoia-se no mesmo tipo de autoevidência poderosa que nos força a admitir a identidade de um objeto no momento em que está diante dos nossos olhos (ARENDT, 2008, p.140).

Para a autora, a convicção dos filósofos gregos da superioridade do modo contemplativo indica que a distância nobre, colocada pelo pensamento, é tributária da distância instaurada pela visão. Conclui, assim, que só o espectador, e nunca o ator, poderia conhecer e compreender o que quer que se ofereça como espetáculo. Embora configure-se, pelo menos no Ocidente, como um discurso silencioso, tributário das palavras, o pensamento abstrato estaria associado ao sentido da visão, o que explicaria a recorrência das metáforas como ponte entre as atividades espirituais interiores e o mundo das aparências. Do momento em que A vida do espírito foi publicado para cá, vários pensadores, com outras motivações e por diferentes caminhos, saíram em defesa da visualidade, marcando a importância do ato de ver para o conhecimento, mas, na contramão das ideias de Hanna Arendt, sem apartá-lo da percepção sensorial ou da corporalidade. Jacques Rancière, por exemplo, em El espectador emancipado, discordando das teorias de Guy Debord, para quem a visão é o sentido mais abstrato e mais sujeito à mistificação (RANCIÈRE, 1997), defenderá o valor da contemplação, contrapondo-se à condenação do lugar do espectador. Tal condenação, segundo o filósofo, seria decorrente da ideia de que ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de atuar. Propõe, então, o reexame da rede de equivalências e oposições que daria sustentação a este pensamento: equivalência entre olhar e passividade, exterioridade e separação, mediação e simulacro; oposições entre o coletivo e o individual, imagem e realidade, atividade e passividade, possessão de si mesmo e alienação. A argumentação de Rancière visa comprovar a ideia de que a distância não se constitui num mal a abolir. O autor indaga se o que permite declarar inativo o espectador do teatro sentado em seu assento não seria a radical oposição previamente colocada entre o ativo e o passivo. Identificar olhar e passividade significaria partir do pressuposto de que olhar é satisfazer-se com a aparência, ignorando a verdade que está atrás da imagem. Tais oposições – olhar/saber, aparência/realidade, atividade passividade – definiriam um modo de partilha do sensível, uma distribuição a priori de posições e de capacidades, associada à desigualdade. 357


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A defesa da visão e, consequentemente, das imagens contra o que se considera uma iconoclastia da crítica, tem encontrado eco também no pensamento filosófico contemporâneo tributário das reflexões de Benjamin, relido, cada vez mais, como um filósofo da imagem. Diz Gerhard Richter: Para Benjamin, todo ato de leitura literário ou histórico está fundamentalmente associado a um compromisso com a imagem. E não se trata de suas famosas reflexões sobre a reprodução técnica, o cinema ou a fotografia, mas também no sentido mais concreto de uma investigação cultural e histórica. (RICHTER, 2002, p.8).

Nesse sentido, seguindo o legado de Benjamin, opera-se um resgate das imagens como modo de representação e construção do pensamento, em função, inclusive, da resistência que, em princípio, ofereceriam às continuidades, aos encadeamentos sequenciais, teleológicos. O protagonismo das imagens fica evidente em títulos de textos de Didi-Huberman tais como “Quando as imagens tocam o real” (2012) ou “Quando as imagens tomam posição”, em que lhes é atribuído o papel ativo, de sujeito da ação. Aliás, ainda que na forma de perguntas, os títulos “O que as imagens realmente querem?” (2015), de um texto de W. J. T, Mitchell, e “As imagens querem realmente viver?” (2015), de Rancière, seguem o mesmo padrão, o que sinaliza um deslocamento da atenção, antes mais voltada para os produtores e consumidores, e agora dirigida para a imagem em si, no limiar de uma subjetivação ou uma personificação das imagens, como o próprio Mitchell observa, acrescentando: A ideia de que as imagens têm um poder social ou psicológico próprio é, de fato, o clichê reinante nos estudos contemporâneos em cultura visual [...] Não há nenhuma dificuldade, portanto, em demonstrar que a ideia de uma personalidade das imagens (ou, no mínimo, um animismo) encontra-se tão viva no mundo moderno quanto outrora em sociedades tradicionais. A dificuldade está em saber o que dizer a seguir. (MITCHELL, 2015, p.169).

O que Mitchell vai dizer a seguir é que se trata de modificar sutilmente a imagem que se tem da imagem, privilegiando os processos cotidianos de olhar e ser olhado. Afirma, então, que a visão é tão importante quanto a linguagem na mediação de relações sociais sem ser, no entanto, redutível a linguagem, ao 358


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signo ou ao discurso. Para ele, “as imagens querem direitos iguais aos da linguagem e não simplesmente serem transformadas em linguagem.” (p.186). Esta requalificação positiva, que se quer uma redenção justa contra a culpabilização das imagens, ora vistas como aparências inconsistentes ora como potência maléfica, tem colocado em primeiro plano as discussões relativas à visualidade, em detrimento da textualidade.1 Vai ficando distante o tempo em que um teórico como Philippe Dubois afirmava que, na obra de Godard, o texto não está no filme, nem mesmo na imagem – é o próprio filme – acrescentando que antes de ver, seria preciso ler o texto-filme (DUBOIS, 2004, p.271). Ainda que, diante de exposições de artes visuais contemporâneas, constatemos a presença recorrente do texto para expressar o conceito que as constitui, isto é, constatemos uma proeminência da linguagem verbal no próprio campo do visual, a ênfase na esfera teórica tem recaido sobre os atos de ver, não nos atos ler. A ideia predominante, em concordância com a reflexão de Fredric Jameson, em El posmodernismo y lo visual, é que a transformação das tecnologias da visão converteu a imagem em depositária da função epistemológica (JAMESON, 1997, p.14). Partindo do princípio de que não há objetos ou fenômenos de visualidade pura, de que os atos de ver resultariam de uma complexa construção tributária do entrecruzamento de operadores textuais, mentais, sensoriais, midiáticos, institucionais, trabalhos no campo dos estudos visuais têm abordado um amplo leque de práticas simbólicas, situando-se muitas vezes na interseção entre os campos artísticos. No caso dos estudos literários, o crescente intercâmbio entre a literatura e os meios audiovisuais, facilitado pela tecnologia digital tem contribuido para reforçar a crença de que haveria uma hegemonia do visível, um domínio dos meios visuais e do espetáculo sobre as atividades da fala, da escritura e da leitura. Exibidos nas telas, os textos se inserem numa rede, em princípio, não hierárquica de circulação: traduzidos em dados numéricos são expostos na mesma plataforma que exibe filmes, fotografias, vídeos, o que favorece os deslizamentos, a interseção entre estes campos. Com a textualidade eletrônica, a literatura, num processo incessante de reciclagem, vem cada vez mais assumindo o lugar de intermídia, para usar a expressão de Youngblood (1970), 1 Para um aprofundamento da reflexão sobre a chamada virada pictórica, ver SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2007

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servindo de prototexto no campo da produção cinematográfica, televisiva e digital. Como já destacava, na década de 1980, Umberto Eco, no lugar do choque e da frustração de expectativas, ganha terreno, na era eletrônica, uma estética da repetição que vem minando o critério da originalidade característico da arte moderna. Identificada com os produtos veiculados pelos meios de comunicação de massa, essa estética da serialidade implica a ideia de infinitude do texto, cuja variabilidade se converteria em prazer estético (ECO,1989, p.110). Os princípios da criatividade e da originalidade perdem espaço com a profusão dos trabalhos de montagem a partir de materiais de arquivo e com a prática de apropriação e deslocamento dos textos retrabalhados para uma nova plataforma. Kenneth Goldsmith, poeta nova-iorquino, laureado pelo Museum of Modern Art (MoMA), observa que a poesia, hoje, adota formas inusitadas. Há desde poetas que fazem, por exemplo, películas consideradas como poemas até poetas que transcrevem documentos legais: as palavras se converteram em material plástico, os textos anteriores em ready-made e a literatura aproxima-se, por esse caminho, da arte conceitual. Indagado sobre a recepção de sua obra, Goldsmith responde: Eu não tenho leitores. Não se trata disso. Meus livros são aborrecidíssimos e lê-los seria uma experiência espantosa. Não se trata de ler, mas de pensar em coisas acerca das quais jamais pensamos. A medida do êxito de um livro assim é a quantidade de debate que gera: se escreveram resenhas, se comentaram nos blogs e se foram incluídos nos programas de cursos universitários. Não nos enganemos, nisso não há diferença em relação às grandes obras da vanguarda. Quem lê os Cantos de Pound ou o Ulisses, de Joyce? São livros de que todo mundo fala, mas que praticamente ninguém lê. (GOLDSMITH, 2014, s/p.).

Como se vê, a exemplo de algumas vertentes das artes plásticas, a obra, no campo da literatura, pode se tornar o conceito e o escritor passa a ser, assim, o proprietário de uma ideia. Para Jacques Rancière, desfaz-se assim o que constituía o conteúdo mesmo da noção de obra: isto é “a expressão da vontade criadora de um autor numa materialidade específica trabalhada por ele, singularizada na figura da obra, erigida como original distinto de todas as suas reproduções.” (RANCIÈRE, 2003, s/p.). A ideia de obra torna-se radicalmente independente de toda elaboração de uma matéria particular e a ori360


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ginalidade passa para a ideia. Para o filósofo, paradoxalmente, o esvaziamento da obra não concretizou a tão anunciada morte do autor, mas, ao contrário o fortaleceu abrindo espaço para a negociação entre os proprietários de ideias e proprietários de imagens. Daí decorre que “o autor por excelência seria, atualmente, aquele cuja ideia é explorar o que lhe pertence como algo próprio, sua própria imagem” (s/p.). O autor não seria mais o “espiritual histrião” de que falava Mallarmé, mas o “comediante de sua imagem” (s/p.). A proeminência seria da imagem viva do autor, da fetichização gerada por sua performance em blogs, sites de editoras, no Facebook, em eventos literários, na televisão ou em entrevistas na mídia impressa, e não das imagens verbais construídas no espaço do texto literário. Não se pode negar, então, que a visibilidade da obra literária foi se tornando, ao longo da segunda metade do século XX, cada vez mais tributária de fatores externos a ela própria, como, por exemplo, do fato de fornecer matéria ficcional para um filme, valorizando-se o texto literário por intermédio de sua versão audiovisual. Essa tendência, como destacamos em Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema (FIGUEIREDO, 2010), manifesta-se nas inúmeras estratégias que visam diluir as fronteiras entre as duas esferas de produção, como as reedições de obras que foram filmadas, colocando-se, na capa, fotos de cenas do filme, como tática de sedução do público. Mais recentemente, algumas editoras têm lançado mão dos meios audiovisuais para divulgar livros. Pequenos filmes, de cerca de dois minutos, exibidos na internet, em sites, blogs de editoras e até no cinema, são usados como trailers de livros: no cinema, procura-se exibi-los antes de filmes que tenham alguma afinidade com a obra. O book trailer serve de chamariz para o texto, substituindo resenha e publicidade escritas nos moldes tradicionais, como se as palavras impressas fossem insuficientes para atrair leitores, que necessitariam de estímulos audiovisuais. Em diferentes formatos, de acordo com o tipo de livro que apresentam, os book trailers podem mostrar, por exemplo, cenas do autor lendo trechos selecionados, intercaladas com imagens de arquivo, como costuma acontecer com livros de historiografia. Outras vezes, ouve-se a poesia de um escritor consagrado na voz de um poeta com maior visibilidade midiática, de um ator ou cantor, enquanto imagens alusivas à obra ou à vida do autor do texto recitado são exibidas. Quando se trata de livros de ficção, o trailer busca sintetizar visualmente o enredo dessas narrativas: quase sempre 361


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conta com trilha sonora e é estrelado por atores, aproximando-se dos trailers de filmes. Há, no entanto, exceções, como o caso do romance Leite derramado (2009), de Chico Buarque: neste book trailer, por cinco minutos, o autor, em primeiro plano, lê algumas páginas do livro – a câmera só se desloca da imagem do escritor, cuja fama, no Brasil, se deve à sua carreira de cantor e compositor, para aproximar-se das páginas que estão sendo lidas, voltando em seguida para o autor. O propósito de atrair o leitor/espectador pelo entrecruzamento do campo literário e do audiovisual, nos dias de hoje, evidentemente não se esgota nos book trailers. A mesma estratégia de utilização das imagens como iscas para captar leitores, preside a revigoração, na atualidade, da publicação de livros a partir de filmes – prática muito antiga, presente já na Europa das duas primeiras décadas do século passado, quando eram comuns as publicações de versões romanceadas de obras cinematográficas e de textos destinados a serem convertidos em filmes. O mercado editorial tem investido também na publicação de romances que dão continuidade a séries de TV. Segundo matéria de Alexandra Alter, publicada na Folha de S.Paulo (24/01/2015), desde a publicação da série de livros Star Wars, que começou em 1976, várias narrativas de ficção televisiva deram origem a livros, como o drama sobre terrorismo Homeland (2011), a série policial britânica Broadchurch (2013), o seriado de ficção científica Fringe (2008). Tais romances, que, muitas vezes, garantem a sobrevida de personagens de séries populares que terminaram há algum tempo, são garantia de lucro certo para editoras e produtores. No caso da televisão brasileira, cabe lembrar o projeto intitulado sugestivamente “Assista a esse livro”, lançado pela TV Globo com a minissérie Dois irmãos, em 2016. O projeto pressupõe, além da adaptação de obras literárias para a TV, a publicação, em parceria com a editora Companhia das Letras, de ebooks hiperlinkados, através dos quais o leitor poderá mergulhar no universo da história não só através do texto, mas também assistindo às cenas exibidas pelo canal de televisão na adaptação da obra. Cada livro digital contém links de vídeos com duração de até um minuto. Na apresentação da minissérie, o diretor de Comunicação da Globo, Sérgio Valente, declarou: Os livros contam histórias que, na televisão, ficam ainda mais vivas e tomam forma não apenas na cabeça de quem lê, mas na cabeça de quem vê. E isso ajuda a 362


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despertar o desejo pela literatura. Eu, por exemplo, não tinha lido Dois Irmãos. E ao ver o trabalho brilhante feito por Luiz Fernando Carvalho e Maria Camargo, me deu uma profunda curiosidade de descobrir a obra de Milton Hatoum. Pra mim, isso foi um presente.2

Como se pode perceber, atribui-se às imagens televisivas a capacidade de tornar as histórias mais vivas e daí adviria sua capacidade de atrair o espectador para a leitura dos textos. Nesse quadro, não é de estranhar que em meio a profusão e sedução das imagens, uma certa literatura mais recente venha evocando diretamente técnicas narrativas próprias do aparato cinematográfico, tentando criar uma mediação entre a comunicação textual e a audiovisual. Sabemos que não é de hoje que a literatura busca ultrapassar os limites do dizer em direção ao mostrar,3 mas sabemos também que o fazer ver das palavras não é da mesma natureza do fazer ver das imagens. Lembre-se ainda que houve um tempo em que, na direção contrária do que ocorre atualmente, o cinema que almejava o status de arte, visando afastar-se do prestígio visual do cinema espetacular, recusou o estigma da visualidade, numa tomada de posição a favor do dizer, em detrimento do mostrar. O filme era visto, então, como resultado de um trabalho de escritura: as imagens deviam se tornar tão abstratas quanto às palavras. Em consonância com a mudança na hierarquia cultural, que tem suas raízes nos avanços tecnológicos e na expansão do mercado de bens simbólicos ao longo do século passado, agora, mais que nunca, é a literatura que almeja ser lida como um filme, fazendo-se referências, por exemplo, a posicionamentos de câmeras que enquadrariam a cena narrada, procurando-se facilitar a passagem do mundo verbal para o da imagem cinematográfica. No romance Miguel e os demônios ou Nas delícias da desgraça (2009), de Lourenço Mutarelli, além da mixagem de ingredientes formais e temáticos de gêneros narrativos populares, como o romance policial e o filme de ação, predominam formas 2 Declaração publicada na matéria “Globo lança a série Dois Irmãos”, de Endrigo Annyston. Disponível em https://observatoriodatelevisao.bol.uol.com.br/noticia-da-tv/2016/12/globo-lanca-a-serie-dois-irmaos-dramaturgia-diferente. Acesso em: 6/3/2017. 3 Com a publicação do roteiro de L’Année dernière à Marienbad (Alain Resnais, 1961), Robbe-Grillet, por exemplo, ensaiava o nouveau roman, que se caracterizaria por tentar criar configurações literárias cujos efeitos sobre o leitor fossem equivalentes aos provocados pelas imagens.

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verbais no presente e frases nominais – recursos que tendem a presentificar as cenas narradas, como ocorre no cinema. Pontuado por indicações que remetem para a esfera cinematográfica, como se fosse um texto pré-filme, isto é, um roteiro, o romance começa com a seguinte referência: “Tela branca”. Mais adiante, pode-se ler: “A câmera se afasta, revelando a mosca que se debate contra o para-brisa.” (MUTARELLI, 2009, p.3). Tais indicações sugerem que o leitor privilegiado por Mutarelli ou situa-se no lugar de um dos integrantes de uma equipe de filmagem ou é alguém que, vivendo numa cultura predominantemente audiovisual, necessite de referências como estas para manter um diálogo com o texto literário. Acrescente-se que essa busca de aproximação entre os dois campos, que deixa marcas na escritura, é estimulada pelo mercado de bens culturais que, cada vez mais, trabalha com o reaproveitamento das matérias ficcionais disponíveis, distribuindo-as por plataformas diversas. Afetando as maneiras de ler, a questão da mudança de suporte não é apenas um problema comercial que atinge as editoras, como às vezes é tratado, já que, como observou Roger Chartier, os suportes materiais que permitem a leitura, a audição ou a visão dos textos participam profundamente da construção de seus significados (CHARTIER, 1999, p.91). Para o autor, a revolução do texto eletrônico será, ela também, uma revolução da leitura: Ler num monitor não é o mesmo que ler num códice. Se é verdade que abre possibilidades novas e imensas, a representação eletrônica dos textos modifica totalmente a condição destes: à materialidade do livro, ela substitui a imaterialidade de textos sem lugar próprio; às relações de contiguidade estabelecidas no objeto impresso, ela opõe a livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis; à apreensão imediata da totalidade da obra, viabilizada pelo objeto que a contém, ela faz suceder a navegação de muito longo curso, por arquipélagos textuais sem beira nem limites. (CHARTIER, 1999, p.16).

Essas mutações, que alteram as estruturas fundamentais do livro, determinam novas relações com o escrito, novas técnicas intelectuais. Nesse ponto cabe lembrar que o que chamamos de convergência de mídia também diz respeito a alterações nos modos de ler, estimulando o comportamento migratório da audiência midiática, instada a migrar de um suporte a outro seguindo o fluxo de conteúdo por múltiplas plataformas em busca de experiências renovadas de 364


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entretenimento. Por isso, Chartier afirma que “a revolução iniciada é, antes de tudo, uma revolução dos suportes e das formas que transmitem o escrito” (p.40). Os Estudos Visuais têm, assim, nas práticas literárias, um campo fértil para investigação, numa época em que a recuperação da imagem contra os iconoclastas, une os filósofos e o mercado, abrindo espaço para publicidades como a da empresa Design do Escritor Editorial, que diz o seguinte: “promova seu livro como um trailer de cinema em toda internet! Uma maneira sofisticada, divertida. Desenvolvido com software usado pelos estúdios de Hollywood. Um texto pode passar despercebido, mas um book trailer não. Uma maneira que atrai e demonstra profissionalismo.”4 Se, como nos lembra de Flusser, a relação texto-imagem é fundamental para a compreensão da história do Ocidente, cabe, então, perguntar como se inscreve, nesta constante tensão – que, por vezes se configura como um embate entre idolatria e textolatria – a tomada de posição contemporânea em defesa das imagens como um outro sempre rebaixado pela metafísica e sua primazia do linguístico. Haveria o risco de se cair numa vitimação das imagens que invalidasse a crítica política e ética das práticas culturais na sociedade midiática?

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CHARTIER, Roger. As práticas da escrita. In: ARIÉS, Philippe; CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.113-163. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Brasília: UNB, 1999. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DIDI-HUBERMAN, Georges. Cuando las imágenes toman posición: el ojo de la historia, v.1. Madrid: Machado Libros, 2013. DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Revista Pós, Belo Horizonte, Escola de Belas Artes (UFMG), v. 2, n. 4, 2012. DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ECO, Umberto. Sobre espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. EPSTEIN, Jean. Écrits sur le cinéma. Paris: Seghers, 1974. FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: PUC/7Letras, 2010. GOLDSMITH, Kenneth. La vanguardia vive en Internet. Entrevista concedida a Eduardo Lago. Jornal El País, 15 fev. 2014. Disponível em: http://cultura. elpais.com. Acesso em: 10/10/2014. JAMESON, Fredric. El posmodernismo y lo visual. Colección Eutopías, v.153. Valencia: Episteme, 1997. MUTARELLI, Lourenço. Miguel e os demônios ou Nas delícias da desgraça. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Buenos Aires: Manantial, 2010. RANCIÈRE, Jacques. Autor morto ou artista vivo demais. Folha de S. Paulo, Caderno MAIS, 06/04/2003. RICHTER, Gerhard (ed.). Benjamin’s Ghosts: Interventions in Contemporary Literary and Cultural Theory. Stanford: Stanford University Press, 2002. SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. Nova York: P. Dutton & Co, 1970.

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O OLHAR E OS OLHARES DE UM ARTISTA BRASILEIRO NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL: O “CADERNO DE GUERRA” DO PRACINHA CARLOS SCLIAR Vinicius Mariano de Carvalho

We are the hollow men We are the stuffed men Leaning together Headpiece filled with straw. Alas! Our dried voices, when We whisper together Are quiet and meaningless As wind in dry grass Or rats’ feet over broken glass In our dry cellar Shape without form, shade without colour, Paralysed force, gesture without motion; Those who have crossed With direct eyes, to death’s other Kingdom Remember us—if at all—not as lost Violent souls, but only As the hollow men The stuffed men T. S. Eliot. The Hollow Men, 1925.

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Globalmente e nacionalmente é quase ignorada a participação ativa do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) com o envio de mais de 25.000 soldados para o front de batalha na Itália, compondo as forças aliadas que liberaram aquele país da ocupação alemã nazista. Pouco se produz sobre este fato, marcante para a história nacional. É muito provável que boa parcela da população brasileira – e mesmo acadêmicos que se dedicam a temas afins à Segunda Guerra Mundial – desconheçam quantos brasileiros morreram na em virtude do envolvimento do país neste que foi o maior conflito do século XX. Também improvável que saibam quantos voltaram da campanha na Itália e, principalmente, como voltaram. O silêncio em torno da Força Expedicionária Brasileira (1943-1945) e as macro-narrativas nas quais ela foi inserida levaram a praticamente um esquecimento das memórias dos mais de 25.000 brasileiros que foram para o teatro de operações. Afora anedotas repetidas sem muito rigor histórico e muitas vezes para reafirmar uma pequenez da participação brasileira na guerra, a figura do pracinha se tornou mais pitoresca do que aquela digna de um veterano de guerra. O fim da guerra trouxe consigo uma relativa produção bibliográfica por parte daqueles que passaram o inverno de 1944-45 no chão gelado dos Apeninos italianos. Alguns oficiais da reserva e da ativa produziram livros memorialísticos, recontando suas experiências no conflito. Alguns destes livros se tornaram referenciais, como a memória do General Mascarenhas de Moraes, comandante da FEB, que sob o título A FEB pelo seu Comandante (1947), traçava um perfil de como foi compor, treinar e comandar o primeiro efetivo expedicionário brasileiro deste o fim da Guerra do Paraguai em 1868. Outros livros foram mais críticos, como o Depoimento de Oficiais da Reserva sobre a FEB (1949), uma coletânea com memórias de vários tenentes temporários que compuseram a força e não pouparam críticas ao despreparo e descaso com a FEB por parte do Brasil. As crônicas produzidas pelos jornalistas enviados para cobrir a participação brasileira na guerra, por sua vez, ganharam algum reconhecimento, especialmente aquelas de Joel Silveira e de Rubem Braga. Tanto o papel que desempenharam durante a guerra, mantendo a população brasileira informada, na medida que a censura permitia, sobre o que ocorria com o soldado brasileiro no campo de batalha, quanto o valor que tiveram após o conflito como um documento literário isento da preocupação mitologizante de narrativas militares 368


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e que resguardava a memória da participação do Brasil na guerra, garantiram a estas crônicas uma imensa sobrevida e inúmeras reedições. Pouca foi a produção literária de ficção entre os pracinhas, porém dignas de nota. Boris Schnaiderman, que serviu como sargento da Artilharia Divisionária durante toda a campanha, produziu uma obra prima, o romance Guerra em Surdina (1995).1 Roberto de Mello e Souza escreveu o romance Mina R (1973), confrontando sua experiência como cabo em um pelotão de desminagem em uma narrativa ficcional primorosa. Celso Furtado, que definitivamente não entrou para a história como voluntário da FEB, ou mesmo como escritor de contos, teve como obra inaugural, contudo, um livro de contos que refletem sua vivência na guerra. Obra pouquíssimo conhecida, tem estilo fluente e revela características únicas. Os Contos da Vida Expedicionária (1946) tecem ficcionalmente a vivência do tenente temporário que viria a ser posteriormente um dos mais influentes economistas brasileiros do século XX. Também muito pouco se sabe sobre a produção musical dos pracinhas, tema este também ao qual venho me dedicando e sobre o qual preparo outro estudo a ser publicado em breve. Ainda no campo das artes, e agora finalmente chegando ao tópico deste estudo, o tema das artes plásticas (especialmente pintura e desenho produzidos) por pracinhas da FEB é mais ignorado ainda. Especialmente aquela arte produzida na experiência real da guerra. Pouco se sabe quais, dentre os 25.334 militares, eram artistas. Neste universo, dois nomes, contudo, chamam imediata atenção por se tratarem de já então artistas conhecidos e com algum reconhecimento no Brasil, o do pintor Israel Pedrosa e do pintor, gravurista e ilustrador Carlos Scliar. Pedrosa, com 17 anos em 1943, é convocado e se torna 2o. Sargento Instrutor da 1a. Cia. de Intendência Expedicionária. (MORAIS, 1995, p.189). Scliar, também convocado, incorporando como Cabo da Artilharia Divisionária e embarcando no segundo escalão da FEB, em agosto de 1944, para a Itália. 1 Sobre esta obra, publiquei o ensaio “O Brasil na Segunda Guerra sob o olhar de um pracinha. A Guerra em Surdina, de Boris Schnaiderman” para o volume intitulado Memórias da Segunda Guerra Mundial na Literatura, Cinema e Artes, organizado por Volker Jaeckel e Elcio Cornelsen. Nesse texto, procuro analisar como a experiência da guerra foi vivida, expressa e representada por este autor. Em um primeiro momento, discuto como a literatura resultante da vivência da guerra oscila entre o dizível e o indizível, comportando-se, formalmente, de uma maneira quase apofática e, com isso, aproximando-se também de um discurso da mística.

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Neste estudo, dedico-me a uma análise das obras produzidas por Carlos Scliar durante o período em que esteve no front italiano e posteriormente expostas no Brasil sob o título de Caderno de Guerra (1996 [1969]). Esta exposição e publicação consta de 61 desenhos a nanquim selecionadas por Scliar entre os mais de 600 desenhos que produziu durante seu período na guerra. Do mesmo modo que as outras formas artísticas mencionadas acima, muito pouco se produziu academicamente analisando esta produção de Carlos Scliar. Afora uma monografia de graduação (TEIXEIRA, 2013) e alguns apontamentos na obra de Roberto Pontual (1970), desconheço estudos específicos sobre este conjunto de obras, talvez as mais relevantes no contexto da expressão artística do soldado brasileiro na FEB. Antes de apresentar e analisar propriamente o Caderno de Guerra, traço algumas considerações sobre a arte na guerra em geral e em particular na Segunda Guerra Mundial, correlacionando a experiência e expressão de Scliar com um contexto mais abrangente. A arte na guerra Silent muse inter arma – not quite and when it was over: oh boy! Franta Belsky

Se, com a invenção da fotografia, a arte de retratar as guerras ganhou uma dimensão mais realista e documental, ao mesmo tempo, abriu espaço para que o artista no campo de batalha pudesse expressar o que está para além de um documento fiel do combate e pudesse perscrutar o front existencial de cada ser humano envolvido no conflito. A Primeira Guerra Mundial (1914-1998) talvez tenha sido o conflito onde esta realidade se fez mais presente, também pela efervescência das vanguardas artísticas do início do século XX, que promoveram uma percepção da arte liberta de uma função referencial explícita. Neste conflito, o número de artistas de todas as nacionalidades, em todos os fronts, produzindo arte em condições muitas vezes completamente adversas e distantes da tranquilidade de um ateliê, permitiu uma história visual do conflito que escapa da narrativa, do diegético e projeta-se em uma dimensão apofática paradoxalmente eloquente. 370


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Ossip Zadkine (1890-1967), escultor, pintor e ilustrador bielorrusso que passou boa parte de sua vida em Paris e foi soldado durante a Primeira Guerra Mundial, deixando primorosa coleção de obras produzidas durante o conflito, exprime muito bem o que é a vivência da guerra para a arte. Para ele, a guerra não se descreve nem se conta: Elle ne peut, dans son essence, qu’être enregistrée. Tout le reste est dèlayage, tripatouillage éhonté.2 Este testemunho de Zadkine, nos permite perceber o quanto a fruição de obras de arte resultantes da experiência da guerra, são, de certa maneira, uma co-participação no conflito, para além do espaço e do tempo, já que transporta o interlocutor para o que estou chamando de front existencial do soldado artista. Outro artista que ainda na Primeira Grande Guerra nos deixa monumental trabalho artístico é Raymond André Paillette (1889-1945). Este jovem pintor do Montmartre registrou a guerra de 1914 a 1918 em 11 cadernos em forma de diário, desenhos e pequenas pinturas que capturam o dia-a-dia de um soldado de um batalhão de chasseur à pied, mas que mais que isso, desvelam o absurdo da vivência da guerra (PAILLETTE, 2014). Na Segunda Guerra Mundial, que nos interessa mais diretamente aqui, não foi diferente. Apenas nos EUA, estima-se por pesquisas não conclusivas que mais de 100 artistas combateram na Segunda Guerra Mundial e a maioria pereceu em combate. (LANKER e NEWNHAM, 2000, p.7). Compreendendo o significado desta arte para a posteridade, mas também para os tempos de guerra, o War Department, decidiu por criar o Art Advisory Committee, para organizar um programa especial e recrutar artistas e os enviar aos campos de batalha, para que capturassem, em obras de arte, a dimensão do conflito. John Steinbeck foi um grande entusiasta desta iniciativa e em carta a George Biddle, o chair deste programa, escreve: It seems to me that a total war would require the use not only of all of the material resources of the nation but also the spiritual and psychological participation of the whole people. And the only psychic communication that we have is through the arts. (STEINBECK apud LANKER; NEWNHAM, 2000, p.2) 2 Ela (a guerra) não pode, em sua essência, ser mais do que registrada. Todo o resto é estofamento, adulteração desavergonhada. (Tradução do autor). Segundo ZADKINE, 1931 apud KOEHLER, 2016, p.23.

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Ainda que os recursos para este programa tenham se tornado escassos no decorrer da guerra, considerando-se que outras prioridades emergiam, o resultado foi uma grande coleção de obras, com expressões estéticas diversas, que deram outra dimensão ao conflito. Brian Lanker e Nicole Newnham, na já citada obra, fazem um apanhado geral sobre esta produção e apresentam os principais artistas que fazem parte deste repertório único da expressão artística da experiência liminar da Guerra. Também no Reino Unido um grande número de artistas já conhecidos e celebrados foram convocados ou se voluntariaram para compor os quadros militares envolvidos na guerra. Franta Belsky, de quem tomei a epígrafe para esta parte do texto, é um bom exemplo. Já era um famoso escultor e artista tcheco quando migra para o RU e se voluntaria para as forças expedicionárias britânicas. Como ele, Bruce Allsopp, que também serviu na Itália, no mesmo Corpo de Exército do qual a FEB fez parte; Anthony Eyton, famoso pintor; Andrew Grima, que ficou mais famoso por ser joalheiro da Rainha Mãe; e Thomas William, gravador, ilustrador e pintor (BUCKTON, 1999). O que se nota é que em todos estes casos, os artistas estão mais preocupados em captar o indizível e o fazem de uma maneira extremamente eloquente em termos de expressão estética, indo para além de uma expressão de trágico, muitas vezes esperada neste tipo de arte, ou de grandiloquência apologética – a outra face da tragédia da guerra. Ecoando Belsky, a musa não se silencia na guerra, como poderia se pensar frivolamente. Ao contrário, expõe o artista ao seu extremo expressivo. Carlos Scliar, artista já maduro quando convocado para a guerra, é também tocado por esta musa na vivência que teve deste que foi o maior conflito do século XX. Carlos Scliar, o artista – Cabo Scliar, o pracinha Carlos Scliar nasceu em 21 de junho de 1920, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e faleceu em 28 de abril de 2001, no Rio de Janeiro. Segundo Roberto Pontual, em Scliar – O real em reflexo e transfiguração (1970), o artista foi autodidata, exceto por poucas aulas que teve, ainda adolescente, com Gustav Epstein, gravador e pintor austríaco radicado no Rio Grande do Sul (RS). A partir de 1931, ainda em Santa Maria, Scliar colabora em suplementos infantis do Diário de Notícias e do Correio do Povo, com contos, poemas e 372


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desenhos. O Expressionismo parece ter sido a maior fonte de inspiração para aquele jovem artista, que também desde muito cedo se envolve com o cinema. Seu engajamento artístico frente às novas expressões e movimentos o leva a ser um dos fundadores da Associação Francisco Lisboa, que se torna uma associação da vanguarda artística no estado do RS. Em 1939, Scliar faz sua primeira viagem para São Paulo, estabelecendo contatos com Flávio de Carvalho (1899-1973), Portinari (1903-1963), Burle Marx (1909-1994) entre outros artistas da vanguarda paulista. A partir de 1940, associa-se ao grupo da Família Artística Paulista (FAP), coletivo de artistas formado em 1937. Scliar participa da terceira e última exposição desse grupo, em 1940. Ainda em São Paulo, de 1940 a 1942, Scliar realiza exposições de pintura (individuais e coletivas), produz gravuras e trabalha como ilustrador. Em 1943, fixa-se no Rio de Janeiro, onde atua como roteirista, cenógrafo, membro do júri do Salão Nacional de Belas-Artes, e escreve e dirige o documentário Escadas (TEIXERA, 2013). Neste mesmo ano de 1943 é convocado para compor os quadros da Força Expedicionária Brasileira. Sobre esta convocação, diz o próprio Scliar: Para mim, educado num ambiente de conforto, a miséria em torno me envergonhava. Sentia-me responsável, e não sabia como. Tudo me levava a uma sede de justiça social, tanto mais forte quanto descobria as raízes dessa situação, numa sociedade que se considerava humanista. [...] Essa compreensão levou-me – como, aliás, à imensa maioria da intelectualidade brasileira – a uma posição contra a injustiça social e contra a ditadura que a sustentava. Minha condição de descendente judeu já me levava, aos treze ou catorze anos, a me identificar com aqueles que, na Alemanha, nos países fascistas e por toda a parte, vinham sendo perseguidos em decorrência de rações raciais. [...] A guerra explodira, e o Brasil passava por intensa luta interna, com os ministros divididos em suas simpatias pelos dois campos em combate. Apesar das medidas de coerção, o movimento popular crescia na medida em que se tomava conhecimento das misérias praticadas e, aliás, anunciadas e prometidas há muito nos livros dos teóricos líderes fascistas, ardorosamente defendidos por seus êmulos nativos. Esse clima aumentava nossa preocupação e nós nos sentíamos responsáveis por tudo que acontecia no mundo. Por índole e formação, sempre fui contrário à vida e disciplina militares. No entanto, experimentei a maior emoção quando recebi, em 1943, minha convocação para a FEB. (SCLIAR, 1945 apud PONTUAL, 1970, p.120) 373


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Em 22 de setembro de 1944, o Cabo Scliar embarca no navio de transporte de tropas americano, General Meigs, no Segundo Escalão da Força Expedicionária Brasileira, comandado pelo General Cordeiro de Farias, que respondia pela Artilharia Divisionária da FEB. O navio desembarca em Nápoles no dia 6 de outubro do mesmo ano e a tropa quase imediatamente já se vê na realidade de combate. O cabo Scliar faz parte do I Grupo do I Regimento de Obuses Autorrebocado (I\I ROAuR), Grupo comandado pelo Cel Levi Cardoso, tendo a função de controlador horizontal da central de tiro do Grupo. Posteriormente, compõe também a equipe que edita o jornal Cruzeiro do Sul, uma publicação do serviço Especial da FEB para os pracinhas na Itália. Sua atividade na artilharia divisionária consistia em calcular a correção do tiro, segundo as informações do oficial de ligação que observava os primeiros tiros e por telefone ou rádio, reportava à central de tiro as quotas e posições atingidas. O dia a dia de um calculador de tiro de artilharia na guerra não tem nada de glamoroso como um filme de guerra americano. São horas e horas, em frente a uma prancheta com cartas topográficas e réguas, recebendo orientações por telefone do observador avançado, refazendo cálculos e informando aos comandantes das baterias de obuses. O estresse do cálculo bem feito é fundamental, já que um pequeno erro pode fazer com que os tiros caiam em linhas amigas e acabem por matar amigos e companheiros. Não há nesta função nada de mais fácil ou mais difícil do que aquela posição do soldado da infantaria que está no front. Se algumas regalias como um lugar coberto para dormir existem para o artilheiro da central de tiro, este está, por outro lado, exposto também à artilharia inimiga e ao constante peso de errar seu cálculo e as consequências disso são imensas. Enfim, o cabo Scliar não estava em uma situação confortável na guerra e vivenciou o terror, a destruição e a barbaridade. Mesmo nesta situação, Scliar não negligencia a arte. Compõe desenhos a nanquim de seus companheiros fardados, dos cenários de combate, das paisagens, casas e naturezas mortas. Nesta vivência da guerra, Scliar redescobre-se como artista. Diz o próprio: Foi na guerra, em contato com a miséria que ela produz, vivendo aqueles instantes derradeiros, que banham de luz nova tudo que nos cerca, que se iniciou uma nova etapa em minha pintura. Eu era, senão um pessimista, quase um cético; me descobri então um lírico, um lírico visceralmente otimista, com uma tremenda confiança na humanidade (SCLIAR, 2017, s/p.). 374


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Durante o quase um ano que passou na Itália (Scliar embarca de volta no dia 28 de julho de 1945), o artista compôs mais de 600 desenhos, posteriormente selecionados para a coleção publicada e exibida no Brasil, o Caderno de Guerra, com 64 desenhos. Desta seleção, 43 são figuras humanas, seis são paisagens, quatro interiores e uma natureza-morta. Os dez demais não se inserem em nenhum destes gêneros. É óbvia a predileção do artista em representar a figura humana. Dos 43 desenhos, 15 são retratos, 24 são soldados descansando ou em alguma função na central de tiro e cinco figuras de civis. Não há representações de batalhas, combates ou tiros, nem mesmo a presença de armas nos desenhos. Alguns destes desenhos, que não foram selecionados para o Caderno de Guerra, ilustraram edições do jornal Cruzeiro do Sul, para o qual Scliar contribuía como diagramador, e outros ilustraram o volume Scatolettas da Itália (1946), uma coleção de crônicas publicadas ao fim da guerra sob os auspícios da BBC e organizada por Francis Hallawell, o correspondente da BBC junto à FEB.3 Os desenhos do Caderno de Guerra são todos datados e com a localização de onde foram feitos. O primeiro desenho data de 27 de novembro de 19444 e o último de 1 de agosto de 1945, quando já à bordo do Navio Pedro I que o trazia de volta ao Brasil. As localizações mostram a trajetória do artista no teatro de operações: Pisa, Castel de Casio, Porreta Terme e Gaggio Montano (cidades muito próximas uma da outra e onde localizava-se a central de tiro, dependendo do avanço dos combates), Alessandria, Francolise, Florença e a bordo do Pedro I. Também são de Porreta Terme e Gaggio Montano a maioria das figuras humanas. Um dos correspondentes brasileiros na guerra, Joel Silveira, dedica uma crônica ao artista, “O Pracinha Carlos Scliar”: 3 Este volume traz também uma crônica escrita pelo “cabo” Carlos Scliar, sobre “Veneza e seus tesouros d’arte”, datada de junho de 1945, já depois do armistício e quando Scliar pode viajar um pouco pela Itália para conhecer um pouco de seu patrimônio artístico. 4 Cinco dias antes da data deste primeiro desenho, inaugurava-se em Londres a primeira exposição de arte moderna brasileira fora do Brasil, parte do esforço diplomático brasileiro na guerra. Entre as obras selecionadas, estava também uma de Carlos Scliar. Deste modo, o cabo Scliar é possivelmente o único brasileiro que participou de dois fronts na segunda guerra mundial, o da Itália como militar e o de Londres como artista. Para mais detalhes sobre esta exposição, ela é tema da tese doutoral no Brazil Institute King’s do College London, sob minha orientação, de Hayle Gadelha, entitulada Unearthing the Exhibition of Brazilian Modern Paintings (Royal Academy of Arts, 1944), the first Brazilian art show held in Europe: the role of the visual artts as a tool of soft power of Brazilian foreign policy during WWII.

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Falávamos naquele dia precisamente dos desenhos, motivos e croquis de pracinhas brasileiros, paisagens e tipos italianos, com os quais o cabo Scliar começara a encher vários grandes cadernos, comprados em Florença. O primeiro caderno, iniciado ainda quando os brasileiros estavam no setor do rio Secchio, é essencialmente uma coleção de coisas outonais, com pinheiros amargurados e estradas cobertas de lama. Mas acredito que foi em Porreta Terme, um lugarzinho numa crista dos Apeninos, que o cabo Scliar desenhou suas melhores coisas (SILVEIRA, 1976, p.61-62).

Scliar planejava, ainda durante a guerra, a publicação de um álbum com seus desenhos feitos durante seu tempo de pracinha. Em registro do dia 2 de fevereiro de 1945, em uma caderneta de anotações que escreveu durante a guerra, registra: Estive pensando em convidar Ruben Navarra para escrever o texto do caderno de desenhos que pretendo editar. Quero dois textos pequenos: um que seja uma es pécie de guia para a Itália que conheci, escrito pelo Rubem Braga, e outro texto tratando dos desenhos como tais (SCLIAR, 1945 apud PONTUAL, 1970, p.127).

Após seu retorno ao Brasil, três exposições foram organizadas com as obras produzidas na Itália. No Rio de Janeiro, de agosto a setembro de 1945, sob o patrocínio do Instituto Brasil – Estados Unidos e do Instituto dos Arquitetos do Brasil, com 80 desenhos da série Com a FEB na Itália. Em São Paulo, em setembro de 1945, sob o patrocínio do Comitê Democrático Progressista dos Artistas Plásticos, com 70 desenhos da mesma série (Com a FEB na Itália). E em Porto Alegre, em outubro de 1945 (PONTUAL, 1970). Em meu desconhecimento de catálogos destas exposições, é difícil dizer quais obras expostas vieram a compor posteriormente o álbum Caderno de Guerra, editado bem mais tarde. Duas outras mostras foram feitas após a publicação do Caderno de Guerra, uma em 1996, em São Paulo (Caderno de Guerra – Pinacoteca APLUB); e a outra em 2000, em Bologna, Itália (Caderno de Guerra, 1944-1945, Museo Morandi). Em março de 2016, como parte do projeto In the footsteps of the Brazilian Expedicionary Force, coordenado por mim no Brazil Institute, do King’s College London, fizemos uma exposição de 25 das obras constantes no Caderno de Guerra.5 5 Para mais detalhes sobre este projeto, ver: http://www.brazilinstitute.org/feb/

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Um primeiro projeto de publicação do álbum se deu ainda em 1945, porém não se tornou realidade. Apenas em 1969 a Editora Sabiá, do Rio de Janeiro, publicou a obra, em iniciativa da revista Realidade, que enviou o jornalista Rubem Braga à Itália para refazer os caminhos que fizera em 1944, quando era correspondente da guerra. Por ocasião da exposição de 1996 na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, uma segunda edição, fac-similar à original, foi impressa. Na apresentação desta segunda edição do álbum, escreve Scliar: Sinto que foram estes desenhos, quase um mil, não sei exatamente quantos, tantos rasguei, quase tantos quantos guardei. São estes desenhos, apontamentos do meu entorno: os companheiros as famílias italianas que nos hospedavam, os interiores, as paisagens, tudo o que me cercava. Foram estes desenhos que me salvaram. Todos os dias pareciam os últimos, a tensão era permanente. Através dos desenhos, sem me dar conta eu revalorizava a vida, redescobria o mundo: modifiquei minha visão do mundo, percebi que ele poderia ser essencial e belo, salvei minha cuca! Sim, tenho certeza que posso classifica-los como desenhos de salvação (SCLIAR, 1996, s/p.).

Vejamos, pois, o que desvelam estes desenhos de Scliar. O que se vê e o que não se vê nas obras do pracinha Scliar O primeiro aspecto que chama a atenção na coleção Caderno de Guerra é a insistência na reprodução de figuras humanas, em várias posições, e quando de objetos e paisagens, nunca revelando a destruição da guerra. Isso, com certeza é um reflexo do que o próprio artista disse na citação acima, que buscava revalorizar a vida, redescobrir o mundo, considerando-se que o ambiente em que vivia era de morte e destruição. Os desenhos do Caderno de Guerra nos remetem a uma experiência dos dias de confronto com uma realidade na qual o front não é uma linha geográfica, mas é a própria existência. Seu traço é como uma escrita de sugestão muito mais que de revelação, formando uma sintaxe elíptica com traços interrompidos ou oblíquos. Eles traem a confusão e a insegurança de uma consciência que, para retornar ao que foi antes da guerra, não para de exercitar a reconstrução da figura humana em posições pacíficas. É como uma tentativa de recriar um novo homem. Em cada obra se nota um traço de um estado de tristeza, melancolia e solidão, mas com movimento de vida, com busca pelo movimento da vida. As figuras humanas do Caderno de Guerra de Scliar ou estão com seus rostos cobertos, ou de costas, ou com faces ausentes e olhares vazios, enviesados. 377


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Imagem 1 – Retrato de Soldado – aguada e nanquim – 24 x 33,5 cm, Itália, 4/4/1945

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Isso parece ser uma constante em outros artistas de guerra. Figuras similares se encontram na obra de Anthony Eyton, Andrew Grima, Bill Ward e Franta Belsky. Comentando a obra de Scliar, Rubem Braga escreve: Em alguns desenhos de Carlos Scliar eu revejo êsse (sic) sentimento de tristeza monótona da guerra. Fértil em ligação humana, forjando dedicações que são mais ou menos que humanas, que remontam ao puro instinto animal, a guerra é também uma terrível professora de solidão. No seio de seu tumulto espantoso e grosseiro o homem as vêzes (sic) se vê só, abandonado a uma angústia dolorosamente fria (...). (BRAGA, 1969 apud SCLIAR, 1996, p.8-9.)

Pelo abismo que representam, os desenhos de Carlos Scliar mostram o que vivem os soldados em suas almas, o que sofrem, o que matam, o que morrem. E isso é evidente na impossibilidade de se olhar face a face, de se olhar nos olhos. Invariavelmente todas as figuras humanas de Scliar no Caderno de Guerra evitam o olhar. Evitam encarrar seu espectador, escondem os olhos, os abaixam, ou olham ao revés. Isso porque olhar nos olhos não deixaria o espectador ileso. Este soldado brasileiro, ou civil italiano, retratado por Scliar, preserva seu espectador de ver o front existencial que viveu, suas linhas onduladas, inconclusas, distrai o espectador. Estas figuras humanas são como Medusas. Olha-las frente a frente, face a face, olhos nos olhos, nos transformaria em pedra. Estes olhares evadindo são como figurações do The Hollow Men, de T. S. Eliot (1925), já citado como epígrafe a este texto. Na parte 4 do poema, lemos: The eyes are not here There are no eyes here In this valley of dying stars In this hollow valley This broken jaw of our lost kingdoms In this last of meeting places We grope together And avoid speech Gathered on this beach of the tumid river Sightless, unless The eyes reappear As the perpetual star Multifoliate rose Of death’s twilight kingdom The hope only Of empty men. 379


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Imagem 2 – Retrato de Soldado – nanquim – 20,5 x 31,7 cm – Alessandria, Itália, 13/5/1945

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A única exceção nesta coleção é o autorretrato do artista, que nos olha nos olhos. Porém, ainda ecoando o mito de Medusa, só logra faze-lo, como Perseu, através do espelho (imagem 3). A impossibilidade de comunicar a brutalidade e experiência liminar da guerra só pode ser capturada nesta figuração humana de um homem vazio, cujos não-olhares revelam, apofaticamente. Os desenhos do Caderno de Guerra de Scliar, reafirmam o que Zadkine já havia dito, que o que se viveu na guerra, só se pode registrar e tout le reste est dèlayage, tripatouillage éhonté.

Imagem 3 – Autorretrato-nanquim – 23 x 29 cm – Porreta Terme, Itália, 23/12/1944

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Como já dito, muito pouco foi escrito sobre esta coleção específica dentro da obra de Scliar. Mesmo sua participação na FEB é, muitas vezes, nota de rodapé em sua biografia. Nota-se, porém, que a experiência da guerra teve papel fundamental na formação do artista. Talvez nem tanto em sua técnica, mas sem dúvida na sua percepção existencial e seu posicionamento em relação sua arte. Conclusões Neste breve estudo, busquei apresentar o Caderno de Guerra de Carlos Scliar, uma coleção de desenhos produzidos pelo artista durante sua participação na Força Expedicionária Brasileira (FEB) na campanha da Itália. Uma produção pouco conhecida e comentada do artista, porém extremamente significativa no conjunto de sua obra. Na análise realizada neste texto, procurou-se perceber como esta produção de Scliar dialoga com a obra de outros artistas que também viveram a experiência do soldado na guerra. Destacamos, principalmente, o quanto Scliar privilegia figurações humanas em seus desenhos, evitando, contudo, que haja o olhar destas pessoas desenhadas cruzem com o dos espectadores dos desenhos. Este deliberado efeito de ocultar o olhar, na verdade revela a impossibilidade de expressão do que é a experiência existencial da guerra. Scliar, magistralmente, recorre a sua arte para consubstanciar o que chamo neste texto de ‘front existencial’ – o grande campo de batalha individual de cada um dos soldados que teve que encontrar um referencial existencial após ter sobrevivido a experiência liminar da guerra. O término que Joel Silveira, em sua já citada crônica sobre o pracinha Carlos Scliar, dá a seu texto, resume bem o que busquei detectar na obra deste artista gaúcho. Assim diz Silveira: Trouxe comigo uns vinte desenhos do pracinha Scliar, mas deixei lá, com ele, uns duzentos ou trezentos mais. Seu plano é reunir os melhores trabalhos e publicá-los num álbum, o álbum do pracinha brasileiro. Se ele fizer isto, acredito, terá contado melhor do que ninguém, melhor mesmo do que nós os correspondentes, a história da Força Expedicionária – [...] toda a guerra enfim. A guerra que somente um pracinha como ele poderia ver, compreender e reproduzir. (SILVEIRA, 1976, p.63).

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Este texto é também um tributo a todos os brasileiros que compuseram a FEB e especialmente aqueles que por lá pereceram. Foram heróis. Não porque foram à guerra e combateram. Mas heróis porque terem sobrevivido e resistido ao ignominioso olvido do pós-guerra; por terem colocado sua jovem vida em riscos, de terem tido que matar ou morrer, por uma causa comum e nobre e para a qual muitas vezes não estavam totalmente convencidos. O pracinha, retratado por Scliar, não tem nome. É cada um dos 25.445 membros da FEB. Cada um deles tendo que reconfigurar sua existência e sua capacidade de olhar nos olhos e como Scliar, revalorizar a vida e redescobrir o mundo.

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Mundial: Tomo I - Rio de Janeiro e Minas Gerais. Rio de Janeiro: BibliEx 2001. PAILLETTE, Raymond André. 1914-1918 – Journal de Guerre du ‘diable bleu’ Paillete. Bayeux: Orep Editions, 2014. (Preface de François Jouas Poutrel et Yann Thomas). PONTUAL, Roberto. Scliar, o real em reflexo e transfiguração. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. SCHNAIDERMAN, Boris. Caderno Italiano. São Paulo: Perspectiva, 2015. SCHNAIDERMAN, Boris. Guerra em Surdina. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. SCLIAR, Carlos. SCLIAR 80 anos de vida, arte e luta pela liberdade. Disponível em: http://carlosscliar.com/linha-do-tempo. S/d. Acesso em: 28/11/2017. SCLIAR, Carlos; BRAGA, Rubem. Caderno de Guerra de Carlos Scliar. Rio de Janeiro: Sabiá, 1969. SCLIAR, Carlos; BRAGA, Rubem. Caderno de Guerra de Carlos Scliar. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1996. SILVEIRA, Joel. O inverno da Guerra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. SILVEIRA, Joel. O Brasil na 2a. Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Ediouro, 1976. TEIXEIRA, Teresinha de Castro. O caderno de Guerra na obra de Carlos Scliar – Traços marcantes de uma trajetória. Monografia de Graduação. Porto Alegre: Instituto de Artes UFRGS, 2013. Vários autores. Depoimento de Oficiais da Reserva sobre a FEB. Editora Cobraci, 1949. Vários autores. Scatolettas da Itália. A BBC e as Fôrças Brasileiras. Londres: BBC, 1945. ZADKINE, Ossip. apud KOEHLER, Véronique. Dess(t)ins de Guerre. Paris: Musée Zadkine, 2016.

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SOBRE OS AUTORES

SOBRE OS AUTORES

ANDERS MICHELSEN. Professor associado, PhD - Department of Arts and Cultural Studies, University of Copenhagen; Professor adjunto de Creative Arts and Media, James Cook University 2014-2016; Cofundador da Rio-Copenhagen Visual Culture Network, PUC-Rio e UCPH, 2006 – conselheiro consultivo, Sage Journal, Thesis Eleven and Ekphrasis: Nordic Journal of Visual Culture. Mais de oitenta artigos científicos e capítulos de livros publicados. Próxima monografia: The Trans-visible. Visual Culture in the Anthropocene, Social and Critical Theory, Brill 2019 (autor). Publicações recentes: Transvisuality. The Cultural Dimension of Visuality. Three volumes. Liverpool University Press, (2013-2019) (Coeditor, colaborador); Verner Panton. Environments, Colors, Systems, Patterns, London: Phaidon (2018); Architecture, Drawing Topology, AADR/Spurbuch Verlag (2017) (coeditor, colaborador). BRUNO GUIMARÃES MARTINS. Doutorado em Literatura, Cultura e Contem-

poraneidade na PUC-Rio (2013). Mestrado e graduação em Comunicação Social na UFMG (1995-2005). Autor de Tipografia popular: potências do ilegível na experiência cotidiana (2007). É professor no departamento de Comunicação Social na UFMG desde 2006. Como pesquisador tem interesse em história dos meios de comunicação no Brasil, artes, literatura, estética, design, tipografia e processos criativos. DANUSA DEPES PORTAS. Obteve seu PhD no Programa de Pós-Graduação Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, onde atua como professora colaboradora. Pesquisadora do Programa de Auxílio ao Pós-Doutorado FAPERJ, integra os projetos de pesquisa CNPq Teorias Atuais de Literatura e Literatura Contemporânea e sua intervenção crítica. Tem experiência nas áreas de meios de comunicação, artes e letras, com ênfase em estudos visuais e teoria da imagem. Seus atuais interesses de pesquisa abarcam os seguintes temas: ensaísmo; pós-critica; cultura visual; teoria decolonial; América Latina. Suas publicações mais recentes incluem: La era de las gambiarras (2015), Oscar Muñoz y el rumor de una imagen que se des-pliega (2016), La cultura visual en paralaje – frenesí de lo visible (2017), Desvio para a imagem: impregnação, entorno, 385


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desvio (2017), A imagem que se diz-obra (2018), Render(ing) Time and Image – on the Coloniality of Gaze (2018), Ex-isto: o olhar no campo expandido (2018). ELISA MARIA AMORIM VIEIRA. Professora associada da Faculdade de Letras da

UFMG, onde atua no ensino de Literaturas Hispânicas, na graduação, e Teoria da Literatura, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit). É coordenadora do GT/Relações Literárias Interamericanas da ANPOLL (biênio 2016-2018) e coordenadora do Núcleo de Estudos Latino-Americanos da Faculdade de Letras da UFMG. Possui graduação em Comunicação Social pela UFRJ, mestrado e doutorado em Letras Neolatinas pela UFRJ, pós-doutorado pela Stanford University. É autora de artigos em português e espanhol e co-organizadora de coletâneas como Imagem e Memória (2012) e Em torno da imagem e da memória (2016). ENEIDA LEAL CUNHA. Mestrado em Teoria da Literatura pela UFBA e Douto-

rado em Letras pela PUC-Rio. É Professora Titular de Literatura Brasileira da UFBA e atualmente professora associada da PUC-Rio, onde integra o Programa de Pós-Graduação em Literatura, cultura e contemporaneidade. Pesquisadora do CNPq, tem atuação acadêmica e produção intelectual predominantemente em dois eixos: sobre as questões culturais que emergem da pós-colonialidade, especialmente nas interseções Brasil/África e Brasil/Portugal, e sobre os debates epistemológicos e os trânsitos disciplinares contemporâneos. FREDERICO COELHO. Professor do Departamento de Letras e do Programa

de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio. Publicou, entre outros, as obras Livro ou livro-me - os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (EdUERJ, 2010), Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado – cultura marginal no Brasil 1960/1970 (Civilização Brasileira, 2010). Como organizador, lançou em 2013 os livros Aos sábados, pela manhã, coletânea de artigos de Silviano Santiago (Rocco) e, com César Oiticica Filho, Hélio Oiticica – Newyorkaises/Conglomerado, (Azougue Editorial). HEIDRUN KRIEGER OLINTO. Doutora em Letras pela UFRJ, é professora eméri-

ta da PUC-Rio, onde atua no Programa da Pós-Graduação Literatura, Cultura e Contemporaneidade, do Departamento de Letras. É pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNPq), onde lidera junto com Karl Erik 386


SOBRE OS AUTORES

Schøllhammer o grupo de pesquisa Teorias contemporâneas de literatura. É autora e coautora dos livros Ciência da literatura empírica (1989), Histórias de literatura (1996), Literatura e mídia (2002), Literatura e cultura (2003), Literatura e imagem (2005), Literatura e memória (2007), Literatura e realidade(s) (2011), Literatura e criatividade (2012), Cenários contemporâneos da escrita (2014), Literatura e espaços afetivos (2014) e Literatura e artes na crítica contemporânea (2016). JOÃO QUEIROZ. Professor no Instituto de Artes e Design na UFJF. Tem le-

cionado cursos sobre semiótica cognitiva, filosofia de C.S.Peirce, e estudos de intermidialidade. Coordena o Grupo de Pesquisa em Iconicidade (https:// iconicity-group.org/), é membro da Associação Internacional de Semiótica Cognitiva (IACS), membro do Linnaeus University Centre for Intermedial and Multimodal Studies (Vaxjo, Suécia), e pesquisador do Linguistics and Language Practice Department, Universidade Free State (África do Sul). KARL ERIK SCHØLLHAMMER. Doutor em semiótica pela Universidade de

Aarhus, Dinamarca e professor titular e diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio. É cientista do Nosso Estado, pesquisador do CNPq e coordenador de área de Literatura e Linguística da Faperj. Autor, coautor e editor de vários livros, seus títulos mais recentes de autoria integral são: Além do visível – o olhar da literatura (2007, 2016) e Ficção brasileira contemporânea (2009) e Cena do Crime – Violência e Realismo no Brasil. (2013) KELVIN FALCÃO KLEIN. Professor Adjunto de Literatura Comparada na Escola de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Modelo de Nuvem, 2011), tem pesquisado nos últimos anos a configuração híbrida do campo literário contemporâneo, publicando leituras de autores latino-americanos (“A dinâmica formal de La literatura nazi en América” In: Toda a orfandade do mundo: escritos sobre Roberto Bolaño. Antonio Marcos Pereira e Gustavo Silveira Ribeiro (org.). Belo Horizonte: Relicário, 2016) e ensaios de investigação conceitual a partir da articulação entre literatura, filosofia e teoria literária (“Repetição, originalidade e tradução”, Ilha do Desterro, v.69, nº 1, 2016; “Fidelidade inexorável: Blanchot, Heidegger e Derrida”, Letras de Hoje, v.51, nº 1, 2016).

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LINGUAGENS VISUAIS. LITERATURA. ARTES. CULTURA

LUIZ CAMILLO OSORIO. Professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio,

pesquisador do CNPq e curador do Instituto PIPA. Foi curador do MAM-Rio entre 2009 e 2015. Em 2015, foi o curador responsável pelo Pavilhão do Brasil, na Bienal de Veneza e é o curador do 35º Panorama da Arte Brasileira no MAM-SP, 2017. Publicou alguns livros, entre eles: Flavio de Carvalho: uma poética em trânsito, Editora Cosac&Naify, SP, 2000; Abraham Palatnik, Editora Cosac&Naify, SP, 2004 (org.); Razões da Crítica, Editora Jorge Zahar, RJ, 2005; Angelo Venosa, Editora Cosac&Naify, SP, 2008 (org.) Olhar à Margem: Caminhos da arte brasileira, Editora SESI-SP e Cosac, SP, 2016. E também inúmeros artigos em revistas especializadas e catálogos de arte no Brasil e no exterior. MIGUEL JOST. Professor colaborador do Departamento de Letras da PUC–Rio. É mestre e doutor em Estudos de Literatura por esta mesma instituição onde atualmente conduz pesquisa de pós-doutorado financiada pela CAPES. Também na área acadêmica, é membro do grupo de pesquisa Textualidas Contemporâneas: processos de hibridação que reúne pesquisadores da PUC-Rio, UNB, UFU, UFJF, UFES e mantém acordo de cooperação permanente com a UMCE do Chile. Pesquisador musical, organizou e assinou os prefácios dos livros Samba Falado – Crônicas musicais de Vinicius de Moraes e Entrevistas do Bondinho, compilação de uma série de entrevistas publicadas pela Revista Bondinho nos anos 70 com personagens como Chico Buarque, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gal Costa, Luiz Gonzaga, Hermeto Pascoal, Gilberto Gil, Milton Nascimento, entre muitos outros. PATRÍCIA LAVELLE. Professora do Departamento de Letras da PUC-Rio e asso-

ciada ao Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. É doutora em filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Sua tese, que tematiza o conceito de experiência na obra de Walter Benjamin, foi publicada pelas Editions du Cerf em 2008. Também na França, organizou o Cahier de l’Herne Walter Benjamin (L’Herne, 2013). Editou recentemente os contos do autor para a Editora Hedra. PEDRO ATÃ. Doutorando no Linnaeus University Centre for Intermedial and

Multimodal Studies, Vaxjo (Suécia). Investiga a distributividade do significado em contextos sociais e materiais, particularmente fenômenos intermidiáticos e nichos cognitivos. 388


SOBRE OS AUTORES

RENATO CORDEIRO GOMES. Doutor em Letras pela PUC-Rio, professor de Literatura do Departamento de Letras da PUC-Rio. Pesquisador 1A do CNPq, coordenador-adjunto da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses. Autor de Todas as cidades, a cidade (2. ed, 2008), de João do Rio: vielas do vício, ruas da graça (1996), de Jão do Rio por Renato Cordeiro Gomes (2005). Co-organizador das coletâneas (ED. UFMG): O papel do intelectual hoje (2004); Literatura, Política, Cultura (2004); Espécies de espaço (2008); Literatura e Revolução (2011); Novos realismos (2012), O intelectual e o espaço público (2015), Políticas da ficção (2016). ROSANA KOHL BINES. Professora do Departamento de Letras e do Programa

de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade de Chicago (2001), Mestre em Ciências da Literatura pela UFRJ (1992) e graduada em Licenciatura Português/Inglês e Literaturas pela PUC-Rio (1998). Pós-Doutorado pela PUC-Rio (2005). É pesquisadora do CNPq (PQ-2) e desenvolve atualmente o projeto “Chamar a Infância: Jogos, brinquedos e outras operações lúdicas na literatura e nas artes.” SÉRGIO B. MARTINS. Professor do Departamento de História da PUC-Rio e autor do livro Constructing an Avant-Garde: Art in Brazil, 1949-1979 (MIT Press, 2013). Tem ensaios e artigos publicados em revistas nacionais e internacionais, como October, Third Text, Novos Estudos e Artforum, e também em diversos catálogos, como Cildo Meireles (Reina Sofia and Serralves, 2013), Alexander Calder: Performing Sculpture (Tate Modern, 2015), Anna Maria Maiolino (MoCA, 2017) e Hélio Oiticica: to Organize Delirium (Carnegie, Art Institute of Chicago and Whitney, 2016). SILVIA DOLINKO. Doutora em História da Arte pela Universidad de Buenos Aires.

Especializou-se em gravura e experimentação gráfica no século XX. Pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Professora de Arte Argentina e Latino Americano do século XX e Diretora da Maestría en Historia del Arte Argentino y Latinoamericano del Instituto de Altos Estudios Sociales de la Universidad Nacional de San Martín (IDAES/ UNSAM). Autora de Arte plural. El grabado entre la tradición y la experimentación 1955-1973 (Buenos Aires, Edhasa, 2012). Editora de Travesías de la imagen. 389


LINGUAGENS VISUAIS. LITERATURA. ARTES. CULTURA

Historias de las artes visuales en la Argentina (CAIA-Eduntref, dos volúmenes, 2011-2012), entre outros livros. VERA LÚCIA FOLLAIN DE FIGUEIREDO. Doutora em Letras, professora associada

do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, atuando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e também no Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, do Departamento de Letras da mesma instituição. É pesquisadora do CNPq e autora, dentre outros trabalhos, dos livros: Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema (PUC/7 letras), Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea (UFMG) e Da profecia ao labirinto: imagens da história na ficção latino-americana (Imago/UERJ). VINICIUS MARIANO DE CARVALHO. Professor de Estudos Brasileiros no King’s

Brazil Institute e no Dept. de Estudos de Guerra no King’s College London e professor honorário de Estudos Brasileiros na Universidade de Aarhus, Dinamarca. É doutor em Literaturas Românicas pela Universidade de Passau, Alemanha. Além das suas atividades acadêmicas, é também músico profissional e atualmente é regente do King’s Brazil Ensemble, em Londres. Como pesquisador, tem uma vasta produção acadêmica em áreas diversas que vão da literatura, religião, história, música, relações internacionais e estudos de segurança e defesa. Sua mais recente publicação foi o livro Military Music in the War of the Triple Alliance. Explanatory notes and Revealed manuscripts. (2018). WILLIAM JOHN THOMAS MITCHELL é um professor Gaylord Donnelley por sua

contribuição às áreas de Inglês e de História da Arte na University of Chicago. É editor do Critical Inquiry e colaborador da revista October. Autor dos livros Iconology (1986) e Picture Theory (1994) entre outras importantes obras. Sua coleção de ensaios What Do Pictures Want? (2005) ganhou o prestigiado Prêmio James Russell Lowell da Modern Language Association em 2005. Foi eleito para a American Academy of Arts and Sciences em 2017.

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Com textos de Anders Michelsen Bruno Guimarães Martins Danusa Depes Portas Elisa Amorim Vieira Eneida Leal Cunha Frederico Coelho Heidrun Krieger Olinto João Queiroz Karl Erik Schøllhammer Kelvin Falcão Klein Luiz Camillo Osorio Miguel Jost Patrícia Lavelle Pedro Atã Renato Cordeiro Gomes Rosana Kohl Bines Sérgio Martins Silvia Dolinko Vera Lúcia Follain de Figueiredo Vinicius Mariano de Carvalho W.J.T. Mitchell


Articles inside

Sobre os autores

10min
pages 387-394

O olhar e os olhares de um artista brasileiro na Segunda Guerra Mundial: o “Caderno de Guerra” do Pracinha Carlos Scliar

27min
pages 369-386

Gráfica expandida: sobre algunas relaciones entre espacio público, imágenes y textos

19min
pages 343-356

Práticas literárias e exercícios do ver: a revolução dos suportes

21min
pages 357-368

A “polpa da cor”: a persistência do dispêndio na teoria neoconcreta de Ferreira Gullar

36min
pages 323-342

Ver: desaparecer

26min
pages 307-322

Rastros de Babel: do texto às telas da pintura e do cinema

34min
pages 283-306

O contador de histórias como imagem: sobre vanguarda e tradição nos contos de Walter Benjamin

20min
pages 271-282

Nem estética nem cosmética: um debate sobre o cinema contemporâneo a partir da revisão da sua relação com a fome

27min
pages 255-270

Lygia Pape: entre a geometria e a etnografia

17min
pages 245-254

Afinidade e morfologia em W. G. Sebald

28min
pages 231-244

Tradução intersemiótica, ciborgues e inferência abdutiva

17min
pages 207-218

Escrevendo realidade: estratégias de presença e inscrição na cultura brasileira e contemporânea

23min
pages 219-230

Escrita-imagem-teoria. Encontros

31min
pages 189-206

Waly Salomão: entre o olho fóssil e o olho míssil

17min
pages 179-188

Literatura e fotografia: entre conceito e representação

19min
pages 153-162

Ver para ler: Cícero Dias e Mário de Andrade

21min
pages 163-178

Marmotas em vista (1849-1864

31min
pages 95-118

O que é uma imagem?

1hr
pages 19-68

Transvisuality: on visual mattering

50min
pages 69-94

Imagens mi(g)rantes

1hr
pages 119-152

Literatura, cultura e artes no espaço visual

17min
pages 9-18
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