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Polimorfismo, desconstrução e destruição

anterior (26 x 21 cm), tem 32 páginas em preto-e-branco, com capa no mesmo papel, o que dá a ele aspecto modesto, sensação ampliada pelo uso, entre as reproduções fotográficas, de imagens fotocopiadas. Todas elas são de anotações ou bilhetes para o artista em pedaços de papel, versos de envelopes ou qualquer superfície que possa ser anotada. Há um cartão de visita com um coração desenhado, uma cartela de fósforos com “Eu sou Heidi. Itália.”, há papéis apenas com nomes. Um bilhete pede que o artista busque uma torta grande, com peperoni em duas fatias. Um pedaço de papel pergunta se os preservativos precisam ser especiais e um outro se ele tem um poema de Gomringer. A fala é, portando, figurada, porque não existe outra possibilidade para o artista: ele é surdo. Tirados do contexto, esses pedaços de papel se tornam misteriosos, absurdos ou até engraçados. A leitura é exercitada pela imaginação, que deve reconstruir o contexto e a intenção de uma mensagem escrita às pressas. Como em uma indagação escrita no que parece ser um envelope: “Que tipo de arte você faz?”.

Em artigo de 1993, Mirella Bentivoglio reivindicou a importância italiana na gênese do campo da arte em livro através da participação pioneira de Contemplazione, 1918, do escultor Arturo Martini, como um Joseph Grigely, livro de artista estrito, e de Parole in libertà Figures of speech, 1995. futuriste: tattili-termiche olfative, 1932, do ceramista Tullio d’Albisola (originalmente Mazzotti) e do poeta Filippo Tommaso Marinetti, como o primeiro livro-objeto. A obra de Martini é um pequeno livreto de 14,2 x 10,5 cm, concebido originalmente em

1916 e executado dois anos após pelo artista, numa primeira tiragem de poucos exemplares, e por ele reimpresso em 1936, sempre em xilogravura (40 gravuras, em 84 páginas). Teria sido o primeiro livro sequencial com escritos não semânticos: grupos de linhas ou faixas paralelas, com pausas irregulares e divisão em capítulos (Jentsch, 1992, p.182). O artista pretendeu-o uma prece, tendo como modelo um livro de rezas (Bentivoglio, 1993, p.93).

O livro de Tullio d’Albisola e Marinetti é maior (23,5 x 21,5 cm) e mais pesado (600 gramas), feito com quinze lâminas de lata.44 Foi impresso em litografia colorida sobre folhas de lata, sendo o mais famoso exemplar do livro mecânico futurista. Foi elaborado na fábrica de objetos futuristas chamada Lito-Latta, criada em 1927.

Nenhum traço na sala de trabalho de prensas de impressão ou caixas de tipo, mas pedras litográficas para decorar superfícies de metal e um ensurdecedor barulho de tesouras, dobradeiras, aparelhos de fazer bordas. Embora prosaico, o jornalista se encontrava numa fábrica para a produção de objetos de folha metálica. Era aqui que as edições dos livros de lata dos futuristas eram manufaturados. A fábrica, empoleirada sobre os íngremes rochedos, projetando-se sobre o mar em Zinola, perto de Savona, empregava 180 pessoas, das quais 150 eram mulheres. Dado o caráter não-doméstico dos instrumentos pesados requeridos para processar o metal, essa alta percentagem de mulheres é surpreendente. O trabalho era simultaneamente exaustivo e delicado. As páginas de cada livro eram viradas com a ajuda de juntas articuladas seguras por arames paralelos, ocultos na lombada tubular. (Bentivoglio, 1993, p.95)

Bentivoglio reitera que os livros-objetos “são livros que submeteram-se a transformações na forma, estrutura ou material”. Esses três elementos de sua constituição passariam a ser mensagens. Poderia-se

Arturo Martini, Contemplazione, 1918 (acima, em Bentivoglio, 1993, p.93; ao lado, em Jentsch, 1992, p.182).

44 Aqui mais uma vez se apresenta a dificuldade de se precisar a página. Segundo Castleman (1994, p.223), 15 “fólios”, incluindo a capa; segundo Jentsch (1992, p.98), 15 “folhas” de lata; segundo Bentivoglio (1993, p.95), 24 páginas; segundo Books as Art (1993, p.18), 26 “páginas”. Provavelmente são 13 lâminas (26 páginas) mais 2 para as capas. Tullio d’Albisola e Filippo Tommaso Marinetti, Parole in libertà futuriste: tattili-termiche olfative, 1932 (Jentsch, 1992, p.98).

dizer, por isso, que a diferença entre livros de artistas e livros-objetos é que “um livro de artista (como Contemplazioni) é um livro regular com um conteúdo irregular e o livro-objeto é um livro irregular” (p.95).

Independente das proposições sobre quem foi o primeiro a fazer o quê, a ideia do produto de uma fatura ou construção parece ser inseparável da arte bibliomórfica, mesmo quando conceitual. A cristalização do gesto ou ação que pesquisa pode ser considerada uma das significativas características de identidade do livro-objeto. Separar deste o livro de artista, exige algum cinismo científico, já que apenas os seus casos extremos podem ser isolados como típicos. Entretanto, é verdade que a liberdade formal possível é o principal objetivo experimental dos dois casos. Mas o livro objeto é mais plástico. Portanto, guarda mais as cicatrizes do gesto fundador.

Um caso raro de experimentação plástica é o que vem sendo desenvolvido por Neide Dias de Sá. É raro porque guarda uma rigorosa linha de pesquisa há muitos anos, comprometida com seus princípios geométricos. Isso não parece usual no livro-objeto, onde os artistas são camaleônicos, muitas vezes até a exasperação. Neide propõe uma conduta que invoca o método e a assepsia nos recortes da página, em obras praticamente inalteradas desde 1973. Essa linha diretriz, rigorosa, e num certo sentido classicista, esteve sempre ao lado da pesquisa intermidial. A busca da comunicação interpessoal pela visão foi sua premissa formadora. Fez-se presente na pesquisa da utilização de ferramentas artísticas na formação de crianças normais e excepcionais (dirigiu o Núcleo de Arte Heitor dos Prazeres, no Rio de Janeiro, de

Neide Dias de Sá, Transparência (Caixa), 1969.

1966 a 1983). Entretanto, foi com o grupo ou movimento Poema-Processo que ela buscou as soluções semióticas definidoras de seu projeto artístico, com pesquisas em códigos, composição visual, relação verbo-visual com ênfase na imagem, poemas espaciais, arte postal e eventos de rua, quase sempre relacionados com a poesia visual. Ainda aplicaria a noção de poema no cinema super-8, no vídeo e em out-door.

Em particular, dela deve ser lembrado, dos anos sessenta, as páginas sem palavras, com condensados raciocínios gráfico-ideogramáticos [...]; as leituras táteis, as contraformas de letras, as destruições matemáticas, o “strip” de 1967 onde as imagens fotográficas, tiradas de revistas ilustradas e objetualizadas por recortes, se dispõem em ordens diversas escolhidas pelo público. (Mirella Bentivoglio, 1980, apresentação para exposição em Savona, Itália)45

Poema é a palavra-chave para a aproximação às obras de Neide. Por ser a coisa mesmo da poesia (do grego poíesis, “ação de fazer algo”), o poema (do grego poíema, “o que se faz”) materializa a expressão, mesmo sem a presença de palavras. Suas incursões nesse campo serão, por isso, construtoras e processológicas. Produz poemas-objetos e livros-poemas, que era a forma como o poema-processo (e outros movimentos da poesia visual) denominava o livro-objeto por eles produzido. Seu cubo de acrílico incolor Transparência, de 1969, é por ela apresentado tanto como um poema-objeto como um livro-objeto. Tem outros dois cubos igualmente transparentes dentro dele, com palavras ou seguimentos de palavras em preto, aplicadas sobre as suas superfícies. Precisa ser manuseado para que as visões possam

45 Tradução do italiano por Tânia Cervo. Neide Dia de Sá, Registros, 1998 (foto cedida pela artista).

Neide Dias de Sá, séries Poemãos, 1976-1998 (fotos cedidas pela artista).

Neide Dias de Sá, Livro poema 1 (esquerda), Livro poema 2 (direita) e Livro poema 15 (embaixo), 1985.

ser semantizadas a partir da sobreposição das superfícies. Apesar do título, a obra é conhecida simplesmente como A caixa.

Registros, um trabalho recente de 1998, é de construção mais simples, embora maior. Trata-se de uma grande manta de borracha preta de 1,5 m de largura que pende da parede e segue pelo chão, totalizando 10 metros. Nela estão aplicados caracteres, ideogramas e outros sinais em vinil branco, além de gravetos também brancos. Pode-se, ou deve-se, andar sobre o trabalho. Alvaro de Sá propõe sua leitura acompanhada da experiência tátil com a borracha macia.

[...] Quase-escrita que pode ser lida a partir do “alto” ou do “baixo”.

Partindo da parede lemos a síntese da evolução semiótica – os gravetos, memória do sinal, evoluindo lentamente até os meta-signos.

Começando pelo extremo do chão lemos o processo da poética contemporânea, que saiu do alfabeto, ou seja do discurso, para chegar ao poema visual: um “quadro” de signos à disposição do consumidor, onde gravetos convertem-se em código. Lemos também da história dos últimos tempos da arte contemporânea, que na pintura recuperou o uso dos alfabetos e na poesia o uso da imagem. (Alvaro de Sá, 1998, texto avulso)

A sequência Poemãos se aproxima dos livros mais frequentes da produção de Neide. Dentro de capas negras tipo caixa, lâminas soltas integram imagens de alfabetos, silhuetas de mãos e suas distorções. Neide Dias de Sá,É uma obra em processo, iniciada em 1976 exposição Revelação dos Rastros, a partir de uma foto de 1970 que mostra Museu de Arte do Rio Grande do Sul, 1998. a Caixa segura com os braços erguidos contra o sol. Cada versão foi executada com os meios disponíveis na época. O conjunto de 1978 foi executado com o auxílio

da fotografia. O de 1983 utilizou a fotocópia. O de 1995, a fotocópia colorida. E o de 1996, que ainda prossegue, incorpora a computação gráfica, existindo no papel e no computador.

O livro-objeto dominante na produção da artista tem uma forte unidade. Como já dito, sua conformação remonta a 1973. Eles não têm títulos individuais. Cada um é apenas um Livro poema. A feitura é quase um ritual: de folhas de papel colorido são recortadas formas geométricas, a partir de uma grade invisível de linhas ortogonais e diagonais. Não existem cortes curvos. São todos regulares e com elevado grau de acabamento. O trabalho é inteiramente manual, mas não permanece uma só marca de dedo. É liso, puro, preciso, de um abstracionismo geométrico de formas fechadas Gal Opiddo, série Taxidermias, rigoroso. Não há espaço para acidentes. Em lugar disso, um extremo contraste entre na coletiva Anti-Mitos Urbanos, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1996. a objetividade do gesto que corta com o estilete e a fragilidade passiva do papel. Executado o trabalho maior, o acabamento engloba a decisão de deixar as folhas soltas ou uni-las através de um espiral plástico, como os usados em cadernos. No primeiro caso, a artista propõe o jogo da visão através dos recortes, deixando ao fruidor a liberdade de alterar a ordem das páginas. No segundo, ela impõe o conceito ordenador da sequencialidade, narrando pelo corte uma experiência temporal. Nos dois casos, as páginas têm coloridos vivos, de duas ou mais cores por trabalho. Independente de serem folhas soltas ou em espiral (com capa), o grupo de páginas será acondicionado numa capa do tipo caixa, cartonada e revestida de papel preto. Em toda a extensão da lombada será colada uma tira de papel pardo na qual estão impressos “Livro poema” e a autoria.

Esses livros poderão ou não participar da pintura geométrica desenvolvida por Neide. Nesse caso, as páginas serão usadas como matrizes caleidoscópicas no exercício de procura de soluções geométricas e na integração de meios. Haverá, assim, na sala de exposição, um conjunto de pinturas recobrindo as paredes e, próximo a elas, à disposição do manuseio do público, um grupo de livros geradores. Eles, em geral, permanecerão no acervo da instituição curadora.

Deve-se lembrar que a integração do livro com outros procedimentos é mais frequente do que possa parecer, e com resultados enriquecedores. Veja-se como exemplo paralelo a esse, a mostra de fotografias de Gal Opiddo, incluída na coletiva Anti-Mitos

Urbanos, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1996. O formato é o mesmo, com ligeiras variações: as obras “principais” na parede (grandes fotos coloridas) e sobre dois pedestais, dois grandes livros encadernados. O primeiro tinha pinturas de objetos do cotidiano. Ele antes serviu para compor, junto com o objeto representado na página, naturezas-mortas com sugestão de antro- Paulo Bruscky e Daniel Santiago, pologia urbana. Uma foto poderia mostrar Economia política, 1990. uma cadeira quebrada, que tem sobre ela o livro aberto mostrando uma pintura da cadeira quebrada. Depois disso, o negativo ou fotograma da imagem, guardando sinais de deterioração, seria anexado a uma janela vazada numa página do segundo livro. No dizer da curadora Katia Canton (no folheto de divulgação), o fotógrafo constrói “kits de composição e conteúdo que, ao mesmo tempo em que comentam, atropelam tem- Paulo Bruscky, Intersigne III, 1993. poralmente esses percursos narrativos”. O resultado é uma sensação estranha, como se vivêssemos uma integridade corrompida e reconstruída. O que vem de acordo com o título da série de Opiddo, Taxidermias. Existe um estigma de morte no processo. Se no seu trabalho persistem o excesso e a mobilidade contextual, gerando um clima de barroquismo apócrifo, em Neide a persistência da regra autoimposta insiste na manutenção de um certo sabor clássico. Nela, a quase imutabilidade de um grupo de seus livros-objetos justifica-se por seu papel de resultado de uma obra em progresso. Uma obra na qual o corte é criador e encerra, como numa cesariana bem-sucedida, o poder de trazer à visão a concreção da gênese.

O personagem mais frequente do livro-objeto multiforme é o artista experimental, provocativo, descontente com as soluções que encontra e, por isso, sempre na procura. Esse é mais ou menos o perfil de Paulo Bruscky, um dos mais inquietos experimentadores brasileiros de projetos intermidiais. Vem atuando em praticamente todos os espaços das vanguardas artísticas desde os anos 70. Chega a fazer constar em currículos seus “artista e inventor”. Sua presença tem sido mais ativa na arte postal, no livro de artista e como instigador cultural. Começou a publicar livros de artista e criar livros-objetos em 1971, como parte de sua produção em parceria com Daniel Santiago. Seus trabalhos muitas vezes carregam doses de humor e ironia (como em Como ler, 1974, um livro pão em co-autoria com Santiago, edição da Padaria Nabuco, Recife). Participou de muitas exposições específicas. Na Holanda, teve acesso aos arquivos de Carrión. Em 1981,

Paulo Bruscky, Ente, 1984.

Paulo Bruscky, Variações, 1992.

Paulo Bruscky, Livrobjetojogo 1, 1992. Paulo Bruscky, Livrobjetojogo 2, 1993.

Paulo Bruscky, Rubber book, 1978.

recebeu prêmio da Fundação Guggenheim, Nova York, por filme/livro, sendo bolsista da Fundação no ano seguinte.

Bruscky opera no terreno da absoluta criatividade. Difícil de ser enquadrado, pode-se defini-lo ao menos como anticomercial e marginal. Produziu livros-objetos de todas as formas possíveis. Fez livros em xerox (Alto retrato, 1981, já comentado em capítulo anterior), com carimbos (Rubber book, 1978, onde baratas comem e “descomem” o texto), de papelão (VariaPaulo Bruscky e Daniel Santiago, História politico-administrativa do Brasil e Volume superior - volume inferior, 1990. ções, 1992, com intervenções a tinta sobre papelão ondulado), de lata (Livrobjetojogo 1, 1992, com sobras de ímãs coloridos), de pano (Livrobjetojogo 2, 1993, muito colorido, com casas e botões), livros que abrem em sanfona (Ente, 1984), livros que nunca abrem (Time of book, 1994, de latão amassado), livros alterados (Volume superior/volume inferior, 1990, com Daniel Santiago, um livro serrado em dois), além de muitas intervenções metafóricas em assemblagem (Economia política, 1990, com Santiago, com uma torneira metálica incrustada na capa). Sua produção é muito Paulo Bruscky e Daniel Santiago, Tipos humanos (1990?). extensa. Numa única individual, em 1984, ele expôs 75 livros-objetos. Até 1998 já tinha realizado cerca de 250 livros.

Não existe linha dominante na produção de Paulo Bruscky que não seja a sua própria exuberância criativa. Ele é o anticlássico por excelência. É gauche. “Bruscky iconoclastou Pernambuco todo.”46 O que não significa que seja um biblioclasta. Ao contrário, em sua obra ele reafirma o códice como seu arquétipo. E os ferimentos, muitos e diversos, ou são compositivos e necessários à obra, ou são comentários aos problemas sociais, políticos ou culturais, os quais por vezes o livro representa. Por essa produção abundante, em cascata, Bruscky é exemplo cabal do que Mirella Bentivoglio chama de “librismo”.

A onda definitiva que percorreu o mundo da arte pelo livro de maneira tão marcante, parece fazer parte de uma maré maior, movimentada a partir de projetos de artistas

46 Em texto de José Roberto Aguilar sobre a homenagem de Paulo Bruscky ao poeta Torquato Neto, no catálogo Iconoclastias culturais, São Paulo: Casa das Rosas, 1998, página 8.

solitários ou em parceria com escritores de fins do século 19. Esse processo foi reconhecido por Bentivoglio (1990) como uma tendência para escolher o livro como espaço de todo tipo de manifestação. Ela chamou essa tendência de librismo, em italiano, ou bookism, em inglês. O librismo (nossa origem latina permite a manutenção do termo) considera o livro como um objeto que tem sua forma e conteúdo como entidades inseparáveis. A definição é simples e Bentivoglio não se detém em prestar exagerada reverência ao livro de artista conceitual, bem como não tem preocupação de ressentimento com galicismos ou anglicismos, excludentes e, portanto, diminuidores do universo em questão.

Group Material (Doug Ashford, Julie Ault, Thomas Eggerer e Jochen Klein), Market, 1995.

Assim, no livro, abrem-se todas as cachoeiras da expressão e há quem o transforma em matérias nobres ou pobres ou em formas de mãos e de rostos e quem o faz vegetar ou crescer à medida do homem ou o identifica no mistério da circularidade cósmica fechando-o em dois dorsos; ou o “libra” no ciclo ou o metaforiza como respiro, ou o esconde Der Mittwochsclub/ The Wednesdayclub (Babsi Bux, Carsten Fischer, Olaf Hackel, em uma caixa de fósforos; há quem o pe- Alexander Meszmer, Jürgen O. Olbrich, netre ou o finge, o lacera ou o imobiliza, Claudia Richter, Matthias Roth e Beate Voiges), o petrifica, o queima, o costura. Mas as Das Buch zum Fernsehen - TV/Culture/Book, operações de denúncia da história, uma 1997 . história que este objeto testemunhal tem, ele mesmo, determinado e transmitido, são somente ações de despegamento, de resgate do sacro sinal do conhecimento no redemoinho “orgiário” da matéria. (Bentivoglio, 1990, p.10)47

Essa demonstração de carinho pelo livro é compartilhada por Judith Hoffberg, que manifestou esse sentimento em muitas ocasiões. Sobre livros feitos como peça única, que podem rapidamente entrar no circuito de exposições ou serem comercializados, sem a necessidade de impressores industriais, Hoffberg nota que muitas vezes são tratados como ícones ou mesmo talismãs. Sua execução escultórica constituiria um “trabalho de amor” (Hoffberg, 1993, p.12 e 13). Sobre os livros de artista em geral, ela destaca o grau de ternura envolvida em sua feitura e seu desfrute.

47 Tradução de Tânia Cervo.

Masterbox, 1998 (amarela), Masterbox II, 1999 (branca), e Masterbox #3, 2000 (verde, aberta). Editadas em Buenos Aires no formato 12,1 x 8,3 x 2 cm. Participantes (e suas caixas): Alejandro Ros (3), Ana Shprejer (2), Andrea Shwartzman (2), Bill Fick (3), Carla Bertone (2), Carla Lucarella (1), Carolina Mikalef (3), Cecilia Pavón (3), Cecilia Szalkowicz (1, 2, 3), Cristian Turdera (3), Cristina Reche (2), Daniel Joglar (3), Diego Bianchi (2, 3), Diego Posadas (1), Eduardo Arauz (2), El Niño Rodríguez (1), Elenio Pico (1, 2, 3), Eleonora Margiotta (3), Fabián Muggeri (2), Fabio Zimbres (1, 3), Fernanda Laguna (3), Fernando Brizuela (2), Florencia Cacciabúe (2), Florencia Puzzo (1), Gabriela Forcadell (1, 2, 3), Gastón Pérsico (1, 2, 3), Guillermo Ueno (3), Gustavo Navas (2), Helio Fervenza (3), Hernán Salamanco (1, 3), Jaime Serra (2), Javier Galarza (3), Juan Tessi (3), Juana Ghersa (1), Julia Masvernat (1), Julieta Escardó (1), Karin Idelson (1), Laura Escobar (2), Leo Vaca (2), Lola Goldstein (2, 3), Lucia Koch (3), Luciana Lardiés (2, 3), Luis Lindner (1), Magdalena Jitrik (1), Marcelo Sapoznik (1), María Delia Lozupone (1), María Guerrieri (3), Maria Ivone dos Santos (3), Mariana Grekoff (3), Marta Almeida (1), Matilde Oliveros (1), Maureen Hallbol (1), Max Gómez (3), Mayumi Nakamura (2), Nacho Iasparra (3), Pablo Ruiz (1, 2), Pablo Zicarello (2), Rapa Carballo (1), René Parrondo (3), Roberto Conlazo (1), Sandra González (1), Silvia Troian (3), Tea Alberti (1), Verónica Romano (2, 3), Wilip (1, 2, 3), Xcella/Chávez (1) e Yanina Szalkowicz (3).

Livros-obras, livros de artistas, livros feitos por artistas, livros-objetos – uma terminologia que não tem sido assentada por aqueles desta área, mas que agora tem ingressado na literatura como livros de artistas – estão ainda a se autodefinir, não para o iniciado, mas para o não-iniciado. Esses trabalhos de arte requerem cuidado terno e amoroso, uma generosa abundância de técnicas de preservação casada com uma compreensão de sua fragilidade e intimidade. [...] Essa ideia de acondicionamento para ideias visuais e verbais está ainda tentando encontrar uma definição, um lar, um lugar para ser reconhecida à vontade, prontamente e facilmente. [...] Nesta época de microchips e microcomputadores, o livro-obra é um bem-vindo antídoto tátil, visual e verbal aos pixels e ao discurso eletrônico em nossas vidas. (Hoffberg, 1993, p.15)

E de novo caímos no problema interminável dos conceitos. A área de sobreposição entre o livro-objeto e o livro de artista estrito parece ser muito maior do que se afirma,

por um motivo prosaico: são originalmente frutos da arte, portanto reivindicam alguma liberdade de forma e linguagem. Dessa liberdade seriam gestadas as obras que provocariam as críticas mais fortes.

Clive Phillpot (1993, p.10) considerou que houve “o sequestro da forma do livro para a disseminação de arte primeira para uma grande audiência”, especialmente nos anos 70, com uma “erosão de ganhos” nos anos 80, num mercado que queria “novos tipos de preciosas edições limitadas e antiliteratos livros únicos”. Essa erosão de ganhos estaria diretamente ligada à pressão do mercado para um expressionismo pictórico “aquecido no microondas”. A ênfase seria ainda mais ampliada para os livros únicos feitos à mão e os livros-objetos. O conceito “livro de artista” se estenderia até as edições de luxo. Se a quantidade estava ampliada, “enquanto muitos ofereciam inspiração, instrução ou deleite, existiam muitos mais que evidenciavam ideias pobres executadas pobremente”, vítimas da “superindulgência do culto dos materiais e excentricidade da forma”. Ainda segundo Phillpot, o ideal de democratização da arte e a crença implícita de aptidão literária seriam colocados de lado “pelo culto do livro-objeto antiliterato, que não pode ser aberto e fetichista. O trabalho de centenas de artistas sem talento se tornou horrendamente visível.” Considerou parte significativa da produção do início dos anos 90 como de livros-objetos mudos, ostentativos e lúgubres, lado a lado com obras luxuosas e artesanais, mas com algumas tentativas sérias de se continuar a produzir os múltiplos e livretos baratos.

Em texto de 1998, Phillpot retoma o problema, que parece maior para ele do que é para os artistas. Observa que muitos são seduzidos pelas “estruturas excêntricas”, o que os levaria a desconsiderar o potencial do códice.

Os resultados são altamente visíveis. Exposições são atravancadas com bizarras, desfuncionais livro-construções; páginas se desconjuntam em todas as direções; e afetados, mudos livros-objetos, que só servem para fetichizar a cultura livresca, envaidecem-se sob o vidro. Para os mal-informados esses são livros-obras. Entretanto poucos livros de artista múltiplos empregaram variações da forma do códice para atender fins específicos. (Lauf e Phillpot, 1998, p.54)

Seria esse o antilivro citado por Plaza (1982, não paginado) como perversão sobre o livro? Talvez tanto o livro de artista como um objeto, como o livro de artista como uma ideia, se desconstruam por uma possível ansiedade de se afirmar mais como objeto de arte do que de comunicação. Como um tipo brando de egoísmo. Além disso, eles têm seu jogo de tensões (mais ou menos de vanguarda) em oposição dialética ao seu aspecto imóvel (oferecimento ao espetáculo) e a sua participação como obra da vida profissional do artista. Opiniões que percebiam isso já estavam registradas em Art-Rite, número 14, de fins de 1976. Como a de Ted Castle (p.7).

A coisa terrível sobre o conceito dos livros de artistas é que ele contém todos os defeitos dos conceitos de arte, artista e livro. [...] Esse desenvolvimento provavelmente ainda está na sua infância. [...] Mesmo estando à espreita por novas formas e na espreita contra a banalidade, os artistas se aproximam do livro cuidadosamente, como um gato se aproximando de um presente de Natal [...]. Muitos artistas têm horror à literatura, para a qual o conceito livro é altamente

devedor. Não sempre, mas frequentemente, artistas são pessoas que tanto têm sido intimidadas por livros, como que os têm desdenhado. Desse modo, muitos dos livros são tão diferentes de livros quanto possível. Esse efeito é estreitamente ligado às mitologias da linguagem.

A declaração de Richard Nonas envolveu a escultura de forma direta como alternativa para uma dificuldade de escrever (p.11).

E eu fiz escultura. E aquilo era melhor; mais geral, mais difuso, mais ambíguo – mas também mais imediato. [...] De novo algo estava perdido. Algo importante para mim: uma qualidade narrativa que me mexe e me excita. Algo que eu não posso obter e não quer entrar na minha escultura. É uma qualidade temporal; lembranças específicas usadas como blocos de construção numa escultura que serpenteia pelo tempo. Portanto eu faço livros também. Mas diferentemente do que eu fazia antes. Meus livros são como esculturas agora; construídos pelas mesmas razões e do mesmo modo. Eles visam os mesmos sentimentos ambíguos, trabalham com as mesmas formas não tão regulares e os mesmos materiais pré-formados – eles são objetos; objetos para se lidar. Mas eles fazem o que minhas esculturas não podem: eles saltam, eles movem, eles serpenteiam com a riqueza da ocorrência verdadeira – eles são o espaço entre as esculturas.

Pode-se dizer que essas afirmações, feitas na etapa “adulto jovem” do livro de artista, e situadas entre outras de ação conceitual, sugeriam (mesmo que essa não fosse a sua intenção) uma retomada de soluções mais espaciais e lúdicas. Como ponto positivo, isso desobrigava o artista da dependência verbal, em favor de mais estimulantes projetos visuais. O ponto negativo, se tanto, foi o transbordamento de uma produção espalhafatosa, frequentemente vista com insatisfação por alguns críticos e historiadores.

Anne Moeglin-Delcroix confirma a oposição entre os criadores de livros de artistas estritos e a maioria dos criadores de livros-objetos, concordando com o ponto de vista de Gilbert Lascault segundo o qual eles corromperiam o livro de todas as maneiras, gerando obras “depravadas” (Moeglin-Delcroix, 1997, p.306). Haveria, assim, uma violência biblioclasta a causar dano à potencialidade legível do livro, como na obra de Gérard Duchêne, nos anos 60 ligado ao grupo Textruction, algo como “textruição”, que fazia “livros para destruir o livro”. Além disso, existiria uma “bibliopraxia”, manifestada pelo empréstimo de soluções editoriais clássicas, ou pela ação ou intervenção sobre obras já publicadas, o que estabeleceria um vínculo estreito “entre convenção e experimentação, tradição e invenção, respeito e liberdade”.

Os trabalhos menos convencionais quanto ao abandono da página têm um débito inegável com Marcel Duchamp, em especial com a concepção de volume que guarda volume, como contêiner de informação tridimensional, com ou sem o acompanhamento da palavra, preservando ou negligenciando a página. Esse procedimento encontrou um multi Gérard Duchêne, Livre-boules, s.d. (Moeglin-Delcroix, 1985, p.118).

plicador muito pessoal na figura de Joseph Cornell, com suas caixas e colagens. Renée Riese Hubert avalia que elas podem ser consideradas colagens tridimensionais ou livros subvertidos. Permaneceriam nelas o elo com as artes visuais e a derivação literária. Daí a derivação do livro, agora em sentido levemente diverso do antes citado Ted Castle, como a própria literatura tem uma parcela de sua evolução em dependência das convenções ou limitações do suporte. São construções-livro manufaturadas, relacionadas com o objeto surrealista. São objetos modificados, perturbados ou interpretados “em que o ponto de partida coincide com um objeto específico: um livro. Como a ênfase cai na fabricação do objeto, não no texto, Cornell, que poderia ter parecido marginal ao nosso propósito, é visto como um precursor da recente experimentação na arte do livro” (Hubert, 1988, p.340).

Comentando os resultados obtidos por ele ao inserir objetos em buracos quadrados no centro das páginas de alguns trabalhos, Hubert nota o diálogo entre as duas e três dimensões.

A destruição da integridade do livro e da unidade da página resulta num volume, nos dois sentidos da palavra. Não é um texto específico mas a própria textualidade que é ilustrada, porque a página vira um fragmento de um volume feito visível a partir do interior ao invés do exterior. Ao mesmo tempo, por meio de seus usuais peepshows, Cornell nos distrai do ato de leitura. (p.341)

Hubert ainda destaca os trabalhos de Jan Kristofori e Helmut Löhr. Do primeiro ela destaca a total cobertura com linhas impressas.

Escrita, impressão em todo o lugar e nenhuma linha para ler! A imagem da impressão substitui o texto; a visibilidade faz a legibilidade fútil. Ou ainda, texto e imagem se problematizando um ao outro, assim como simultaneamente atraem e repulsam o leitor.

Aos livros de Löhr, Hubert considera “desviados”.

O livre-objet de Löhr sugere uma peça de escultura acabada não em latão ou mármore, mas em papel. Páginas são curvadas, torcidas, forçadas a se sobrepor; e Löhr comenta sobre nossa cultura colocando a leitura, feita para sempre inacessível, num pedestal. Também parece que a ilustração tem finalmente devorado e absorvido seu outro, o texto. A tensão entre palavra e imagem, sempre latente nos trabalhos surrealistas levantados, tem-nos impulsionado além do livro ilustrado. (p.342)

O assunto da pesquisa de Löhr é o próprio estado do livro como obra da arte e da cultura. A mensagem, no sentido de informação objetiva, deixa de existir, em favor de uma visualidade crítica e contemplativa. Ele primeiro interfere na existência ou funcionalidade inerente ao livro, como etapa anterior ou paralela da extinção da condição de ser livro. Para Wolfgang Wangler, “a destruição da mensagem original não é a destruição da mensagem pura e simples”. Entende que o ato de rasgar ou arrancar páginas, cortá-las, serrar os volumes, queimá-los, picá-los ou toda a sorte de injúrias aplicadas, provocam a “alienação do livro” pela nova qualidade modelada de “livro-escultura”. Wangler ilustra esse processo através de uma intervenção executada em sua galeria.

Ele arrancou alguns tijolos da alvenaria e os substituiu por pedaços de livros publicados no meu estabelecimento. Aqueles livros foram, claro, destruídos e tomado a forma de tijolos.

Os conteúdos desses livros presos na parede parecem estar perdidos. Os livros se tornaram objetos e somente podem ser contemplados visualmente, afinal de contas um paradoxo para com o sentido original de transmissão de mensagens. Os volumes alienados se tornaram parte da obra de alvenaria [...] isto é, na formação de corpos arquitetônicos. (Helmut..., 1985, p.3)

Pode-se aqui propor a mesma observação do poeta da “escrita destrutiva” e da contracultura, preso mais de uma vez por obscenidade, d. a. levy (ele queria que seu nome fosse escrito com minúsculas): “O que pode ser mais obsceno do que a recusa em comunicar?” (JAB 10, 1998, p.18)

A propensão à exacerbação do corpo do livro, além de facilmente encontrável em propostas isoladas, pode ser identificada de modo ainda mais didático em exposições coletivas. Para The Altered Page, ocorrida no Center for Book Arts, em Nova York, em fevereiro e março de 1988, Marvin Sackner selecionou de seu arquivo obras verbo-visuais agrupadas em sete maneiras ou graus de alteração física da leitura ou da superfície: páginas com significados ocultos; páginas anuladas (obliteradas); páginas cortadas, rasgadas, amassadas e perfuradas; páginas fragmentadas; páginas com camadas; páginas esculturadas (onde ficou agrupado Poemóbiles, 1974, de Augusto de Campos e Julio Plaza); e páginas costuradas e tramadas. Uma obra não precisaria, claro, pertencer apenas a um grupo, o que dificilmente aconteceria. Esta era apenas uma proposta da curadoria para demonstrar um problema temático de uma forma que ainda não havia sido feita (segundo Sackner, em The Altered Page, 1988, p.3 e seguintes). A exposição parece ter sido uma pequena aula sobre danos criativos à página, mesmo que não tivesse apresentado trabalhos mais polêmicos, integralmente desprovidos da possibilidade de leitura.

Essa exacerbação parece mesmo ganhar um realce a mais quando expressa por intermédio de mostras coletivas. Reuniões desse tipo quase que assumem o espírito dos bestiários, tal a variedade

Helmut Löhr, dois Buchobjekt, ambos de 1981, e livros em parede, 1985 (reproduzidos em Helmut Löhr, 1985, p.11, 17 e 15).

de conformações expostas. A pequena (em espaço físico) exposição coletiva The International Library, ocorrida em abril e junho de 1995 no Center for Book Arts, de Nova York, foi absolutamente marginal aos acontecimentos culturais do período na cidade, confirmando esse caráter um pouco recluso do livro-objeto. Ela foi montada como resultado de um projeto de Helmut Löhr, no qual ele enviava dois exemplares comerciais, por ele alterados e transformados, para artistas de quase todo o mundo. O intercâmbio propunha uma rede internacional de respostas artísticas através do livro. Cada participante deveria devolver um exemplar com novas alterações de qualquer tipo, formando uma biblioteca internacional de obras esculturadas, e revelando a diversidade da experiência humana (ver catálogo da exposição e Koob Stra, n. 11, 1995).

A exposição final contou com os trabalhos de 57 artistas,48 além do próprio Löhr. Nem todos eram artistas apenas voltados ao livro. O catálogo registra que

48 Gloria Adrian, Hartmut Andryczuk, Frank Aoi, Ulrike Amold, Harriet Bart, Mark Beard, Douglas Beube, João Mauricio Carvalho (brasileiro), Gerard Charriere, Theodore Clausen, Byron Clercx, Anja Deerberg, Marylyn Dintenfass, Hilka-Frauke Duckwitz, Gerhild Ebel, Robert Ellsworth III, Felix Furtwangler, Lynn Geesaman, Albrecht Genin, G. W. Goettker, Giesela Groener, Thomas Günther, Koichi Hara, Ulrich Hinrichsmeyer, Basia Irland, Alain Jadot, Tom Joyce, Vesna Krezich Kittelson, Ben Kinmont, Jana Kluge, Laszlo Lakner, Hans-Peter Leicht, Marianne Lindow, Martha Little, Angela Lorenz, Scott McCarney, Renate Mergemeier-Teltz, Wes Mills, Wolfgang Nieblich, Jürgen Olbrich, Hinrich Peters, Eric Powell, Karin R’hila, Ric Schachtebeck, Daniel Schäfer, Sabine Sinzel, Keith Smith, Hartmut Sorgel, Buzz Spector, Stephan Stüttgen, Birgit Thelen, Martine Tremblay, Uwe Wamke, Hansa Wisskirchen, Lawrence Weiner e Anton Würth. Exposição The International Library, no Center for Book Arts, Nova York, de abril a junho de 1995. O artista alemão Helmut Löhr produziu 112 intervenções que foram enviadas para novas interferências por 57 artistas de todo o mundo.

havia “antropólogos, cenógrafos, encadernadores, botânicos, marceneiros, coveiros, presos políticos, ferreiros, linguistas, escultores, arquitetos, performers, curadores, sociólogos, editores, desenhistas de moda, fotógrafos, ceramistas, prateiros, advogados, psicólogos e fonoaudiólogos”. Alguns livros-objetos receberam não mais do que uma encadernação expressiva, estetizante ou surrealisante, mas protetora. Mas praticamente todos os outros trabalhos expostos tinham sofrido algum tipo de injúria física, com frequência buscando metáforas. As violações foram funcionais ou semânticas: imobilização, obliteração, uso de cordas, pregos ou arames, novos Jirí Kolár, 1963-69 (Bentivoglio, 1990, p.38). rasgões e buracos, envelopamento, encaixotamento, incorporação em outros trabalhos escultóricos, “parasitismo” por outros bens de consumo, e até “encamisamento” por preservativo sexual. Toda coletiva tem seus altos e baixos e com essa mostra não foi diferente. Mas era estimulante. A energia bem-humorada dela estava justamente na “gritaria” de seus participantes, somada a um certo encanto radical. Foi uma amostra clara das tensões entre forma e significado no livro-objeto. Jirí Kolár, sem título, 1967

O catálogo da exposição retrospectiva antológica (The Altered Page, 1988, p.19). Book as Art, 1991, no Boca Raton Museum of Art, Estados Unidos, apresentou o então recentemente falecido Harry Fritzius, através de um livro em sanfona sem título, feito a partir de sobras de cartas queimadas e desenhos de uma galerista sua amiga. Infelizmente o catálogo não reproduz a obra. O curador, Timothy Eaton, lembra que Fritzius entendia que, pela destruição da arte no seu sentido convencional, ele liberaria sua energia espiritual (Book as art, 1993, p.9). Seria essa uma ideia ligada ao sacrifício ou ao renascimento? No mínimo, ela instaura um novo início, um recomeço, uma destilação. A destruição pode mesmo ser um ponto de partida, não sendo, necessariamente, um fator negativo. Essa é também a opinião de Jirí Kolár.

Eu sinto que as ações de amassar, rasgar e cortar não são realmente destrutivas, mas são como um tipo de interrogação. É como se eu estivesse constantemente questionando algo. Eu sou curioso sobre o que existe atrás da página ou através do quadro. Biólogos não sabem nada de origem e função dos organismos vivos sem um microscópio para os ajudar a determinar corpúsculos vermelhos dos brancos. Eu também, necessito conhecer a composição dos corpúsculos de uma palavra. Essa aproximação levou-me na direção de uma gênese e de modo algum em direção a uma destruição. Foi, de certo modo, um passo para a germinação. (Transcrito por Kotik, 1978, p.10)

Ao tratar de alguns livros com material têxtil e cabelos de Robbin Ami Silverberg, um artigo de Lois Martin os apresenta ou como fruto de uma luta com emoções que se recusam a ser contidas pela linguagem (e que envolveriam desespero e aflição); ou como meditações sobre a forma sagrada, o ritual e a blasfêmia; ou sobre a mutilação do livro; ou sobre a violência doméstica. O final de seu artigo reproduz uma visão sintética tanto da ambiguidade presente nesse tipo de obra (que afinal “é cuidadosamente feita de bonito papel artesanal”), como do fascínio de sua apreciação.

Primeiro eu estava pensando nas mutilações de Silverberg como o oposto dessa cuidadosa preservação; prevendo um como destruição e o outro como conservação. Mas eu vejo isso agora totalmente diferente. Eu repentinamente imagino a lâmina precisa de Silverberg como as tesouras afiadas dos fazedores de colchas recortando uma peça nova de boa metragem, dividindo-a em pedaços. O impulso parece perverso, até que se veja os pedaços compondo um novo trabalho. Mas então novamente, talvez isso seja perverso, tão perverso como uma citação. (JAB 10, 1998, p.28-29)

John Latham, Art and Culture, 1966, reproduzido do livro de Lucy Lippard, Six years: the dematerialization of the art object from 1966 to 1972 [...], obra clássica do registro da arte contemporânea. Lippard fez parte do grupo de fundadores da livraria Printed Matter, de Nova York, em 1976, juntamente com Sol LeWitt, Edit DeAk, Walter Robinson, Carl Andre, Pat Steir, Irena von Zahn, Mimi Wheeler e Robin White.

O livro vive a glória e sofre o ônus de representar a base da cultura universal. Assim, não é de estranhar que ele participe de uma infinidade de ações passionais ou performances ensaiadas que o destroem de todas as maneiras. John Latham, nos anos 60, produzia suas “esculturas infames”, por ele apelidadas de skoob (ou book em ordem inversa), baseadas na mutilação. A uma pilha de livros Nuno Ramos, Balada, 1995 (reproduzido no catálogo Livro, conforto e narcisismo, (skoob tower) ele botou fogo, numa cerimônia ritual 1996, p.1). próxima ao Museu Britânico. Em 1966 ele retirou Art and culture, de Clement Greenberg, da Biblioteca da St. Martin’s School of Art. Para a etapa seguinte, convidou um grupo de amigos, estudantes e críticos, mais o escultor Barry Flanagan, para ajudarem a mascar pedaços rasgados das páginas do livro. Depois de cuspidas, as páginas mastigadas foram colocadas numa garrafa com ácido sulfúrico a 30 %. Após virar uma forma de açúcar, foi neutralizado com bicarbonato de sódio e acrescido de uma levedura, na qual fermentou por alguns meses. Devolvido à biblioteca, o “livro” foi rejeitado. O evento biblioclasta gerou um subproduto: uma maleta de couro contendo a garrafa, os restos da “cultura” e a carta de suspensão do seu cargo de instrutor (Lippard, 1997, p.15 e 16, e Drucker, 1995, p.360 e 361).

No Brasil, ações ou gestos mais ou menos genuínos também ocorreram. Lygia Pape revela o fim de uma obra de Reynaldo Jardim.

Em 62 ou 63 o Gullar resolve aderir a uma ideologia política e o Reynaldo Jardim o acompanha. Os dois entram pro CPC (Centro Popular de Cultura). Principalmente o Gullar, que renegou toda a obra neoconcreta. O Reynaldo Jardim chegou ao ponto de jogar fora aquele livro, Infinito, um livro belíssimo sem começo e sem fim. Jogou pela janela o único exemplar. Danou-se porque nunca mais se soube do livro. Foi carregado pela Comlurb [empresa pública recolhedora de lixo] da época, foi literalmente para o infinito. (Entrevista em Cocchiarale e Geiger, 1987, p.158)

Também eventos não-expontâneos ocorreram, alguns mais agressivos, outros com humor. Em São Paulo, 1995, Nuno Ramos deu o acabamento de seu livro Balada, disparando nele com uma pistola 45, como gesto performático (Livro..., 1996, p.1). Também pelo fagismo existiram homenagens ao conhecimento ou críticas à imposição cultural: bolachinhas com palavras, sopa de letrinhas ou livros em forma de bolo. Como peça avulsa, deve ser lembrado o Livro de carne, 1977, de Artur Barrio. Realmente de carne, na primeira versão ela foi feita por um açougueiro francês a partir de lâminas muito finas de carne unidas por um barbante. Era manuseada diretamente pelo espectador. Ela se insere na produção do artista de fim dos anos 60 e início dos 70, agressiva e contrária ao mercado de arte e inserido nos piores momentos da ditadura militar no Brasil. Desse período são marcantes o uso de lixo e restos perecíveis em manifestações e trouxas ensanguentadas em eventos de rua. Existe ainda uma versão em cartão madeira (ou cartão pinho ou

Artur Barrio, Livro de carne, versão em cartão de 1979, e versão para a XXIV Bienal de São Paulo de 1998.

Artur Barrio, Livro de carne, apresentação na XXIV Bienal de São Paulo de 1998.

pinheiro) e fotografia, com tiragem de cinco exemplares, de 1979. Foi refeito em 1998, para a XXIV Bienal de São Paulo, pelo próprio Barrio, mas a partir de uma peça única de carne. De tempo em tempo a peça em exposição era substituída por uma nova, e ficava separada do público por uma vitrina de acrílico. Agora num país democrático (mas ainda com fome), ele padeceu sob o espalhafato antropofágico do layout do evento. Mal contextualizado, o novo Livro de carne ainda causava surpresa para o público em geral. Talvez diminuída pela banalização da violência na mídia, a surpresa ia do nojo à pilhéria. Mas felizmente, demonstrações de indiferença eram raras.

Se a arte evolui por oposições (como clássico e romântico, por exemplo) e exacerbações (como maneirismo e rococó), por que não procurar esses parâmetros no estudo de amostragens menores, pontuais no livro de artista? Penso que voltaríamos, aqui, a Edward Ruscha e Dieter Roth. Havia neles o método na produção e constância suficiente para a identificação de um corpo de trabalho. Além disso, eles estavam inseridos em contextos culturais bibliólatras (anglo-americano e germânico) que eram muito ricos em precedentes artísticos. Tanto em Ruscha quanto em Roth esteve presente o gesto da renovação, por algum grau de rompimento ou desconstrução. Em Ruscha a ruptura é mais gráfica, envolvendo a destruição da estética fotográfica e da lógica sequencial. É, por isso, mais sutil, determinando a preferência que alguns têm pelos seus livros em detrimento da sua pintura.

Para a exposição temática, retrospectiva e coletiva Scene of the Crime foi comentado o estilo de Ruscha, através de Royal road test, 1967, livro feito com a colaboração de Mason Williams e Patrick Blackwell. O projeto parte de um evento mínimo. Ruscha dirigia um Buick ano 63, a 145 quilômetros por hora na US 91 (região do extremo oeste da Rota 66), com seus amigos. Às 17h7min Williams arremessou pela janela do carro em movimento uma máquina de escrever Royal. Após parar o carro, Blackwell documentou os destroços.

Royal road test (1967), o livro de 62 páginas que Ruscha reuniu de seu “experimento” em destruição, tem o aspecto de um manual forense. Fotos preto-e-branco inexpressivas descrevem fragmentos da máquina de escrever despedaçada in situ, acompanhadas por legendas fatuais lacônicas como “Ponto de impacto” ou “Ilustração mostrando a distância que os destroços percorreram”. [...] O que esse “teste” representou com uma máquina de escrever, uma máquina que produz caracteres decifráveis ao serviço do discurso inteligível, não parece incidental, nem a marca de fábrica “Royal” [régio, majestoso, real]. Arrebentando com essa máquina contra o cascalho sem significado, Ruscha expressou o violento falecimento de muitos sistemas simbólicos que encerram hierarquias “reais” de um tipo ou outro – especialmente entre eles a supremacia da linguagem como um meio de comunicação. (Rugoff, 1997, p.59-61)

Mas certamente a obra de Dieter Roth é mais visível nesse aspecto. As “salsichas literárias” de Roth, feitas com tripas embutidas com papel macerado e fervido, são alguns dos mais curiosos exemplos de mutilação de livros. Solitário, obsessivo, temperamental em relação a museus e instituições, com raízes no construtivismo suíço, mestre nas técnicas de impressão e em contato com os artistas Fluxus, Roth tem seus livros determinados por sua concentração na redefinição da materialidade (Dieter..., 1998, p.14) e

na tendência ao uso de elementos que transmitem conteúdos como destrutibilidade e fragmentação. Iniciou seus livros com as perfurações em páginas coloridas, em obras de 1956 e 1957, preocupado com as qualidades espaço-temporais. A partir daí, ele se divide na fundação e participação do livro de artista gráfico e no incremento do livro-objeto plástico (como nas capas que faz para suas obras). Ele junta à linguagem pictórica narrativa o uso provocativo Edward Ruscha, Royal road test, da materialidade concreta (Dieter..., 1998, p.20 e 1967, seguintes). O seu construtivismo tem um opositor com a colaboração dialético no seu interesse destrutivo, ampliado a partir de opiniões como a de Mondrian que, apesar de ter de Mason Williams e Patrick Blackwell (Drucker, 1995, p.266).trabalhado pela relação harmônica, numa de suas últimas cartas (em 1942) declarou que o elemento destrutivo é muito negligenciado na arte (ver também em Chipp, 1988, p.368). Roth também se declarou muito impressionado, em 1960 com as máquinas autodestrutivas e agressivas de Jean Tinguely. Ficaram famosas as citadas salsichas literárias de Roth, Literaturwurst, aproximadamente cinquenta, numeradas e assinadas, feitas de páginas picadas do Daily Mirror, do Spiegel e de vários livros, com destaque para os vinte volumes das obras de Hegel. A tripa era enchida com uma massa temperada do papel com gelatina e banha, com o rótulo recortado do original. A deterioração também fazia parte de sua obra, com a presença de chocolate, carne, ovos, sucos de frutas ou Dieter Roth, pão em esculturas ou mesmo gravuras. Eram projetos Georg Wilhelm Friedrich Hegel: que consideravam a fermentação como integrante da mutação até a destruição pela multiplicação de Werke in 20 Bänden, 1974 (Archiv Sohm, Staatsgalerie Stuttgart; microorganismos. Dieter Roth, 1998, p.33).

Em entrevista para Felicitas Thun, alguns meses antes de seu falecimento, ele faz um grande relato desses aspectos do seu trabalho (Dieter..., 1998, p.143-144). Acho que a resposta a uma das perguntas deve ser transcrita por inteiro, pelas informações que traz e pela escassez de material sobre Roth.

FT: Destruição como um método da arte para a expansão das técnicas artísticas? DR: Eu passei por algo em 1950, algo que eu tinha experimentado como uma criança, tenho certeza que você sabe. Desenha-se alguma coisa e inicia-se a borrá-lo até se estar num frenesi. Não se pode parar e pinta-se até estar tudo totalmente destruído. Se você experienciou isso você