Viajor, conferencista e estudioso: o “naturalista” Oscar Leal

Page 1

FRANCISCO DAS NEVES ALVES

1


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

2


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

3


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

DIRECTORA: MARÍLIA PULQUÉRIO FUTRE PINHEIRO

DIRETORIA PRESIDENTE – FRANCISCO DAS NEVES ALVES VICE-PRESIDENTE – PEDRO ALBERTO TÁVORA BRASIL DIRETOR DE ACERVO – MAURO NICOLA PÓVOAS 1º SECRETÁRIO – LUIZ HENRIQUE TORRES 2º SECRETÁRIO – RONALDO OLIVEIRA GERUNDO TESOUREIRO – VALDIR BARROCO

4


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Francisco das Neves Alves

VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

- 32 -

UIDB/00077/2020

Lisboa / Rio Grande 2020

5


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Ficha Técnica Título: Viajor, conferencista e estudioso: o “naturalista” Oscar Leal Autor: Francisco das Neves Alves Coleção Documentos, 32 Composição & Paginação: Marcelo França de Oliveira Capa: Detalhe do retrato de Oscar Leal estampado no livro Viagem às terras goianas (Brasil central) e detalhe da capa do livreto O Amazonas Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Biblioteca Rio-Grandense Lisboa / Rio Grande, Outubro de 2020 ISBN – 978-65-87216-19-5

O autor: Francisco das Neves Alves é Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande, Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e realizou Pós-Doutorados junto ao ICES/Portugal (2009); à Universidade de Lisboa (2013), à Universidade Nova de Lisboa (2015), à UNISINOS (2016), à Universidade do Porto (2017), à PUCRS (2018) e à Cátedra Infante Dom Henrique/Portugal (2019). Entre autoria, coautoria e organização de obras, publicou mais de cento e cinquenta livros.

6


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Conselho Editorial Alvaro Santos Simões Junior (Universidade Estadual Paulista – Assis) António Ventura (Universidade de Lisboa) Beatriz Weigert (Universidade de Évora) Carlos Alexandre Baumgarten (PUCRS) Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos (UNISINOS) Ernesto Rodrigues (CLEPUL – Universidade de Lisboa) Francisco Topa (Universidade do Porto) Gilda Santos (Real Gabinete Português de Leitura) Isabel Lousada (Universidade Nova de Lisboa) Isabel Lustosa (Fundação Casa de Rui Barbosa) João Relvão Caetano (Cátedra Infante Dom Henrique – CIDH) José Eduardo Franco (CIDH e CLEPUL – Universidade de Lisboa) Maria Aparecida Ribeiro (Universidade de Coimbra) Maria Cristina Firmino Santos (Universidade de Évora) Maria Eunice Moreira (PUCRS) Tania Regina de Luca (UNESP) Vania Pinheiro Chaves (CIDH e CLEPUL – Universidade de Lisboa) Virgínia Camilotti (UNIMEP)

7


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

8


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

É grande, meus senhores, a comoção que agita o meu ser, ao ver-me diante de tão ilustre auditório, ao qual tributo respeito e admiração. Uma coisa, porém, desde já vos declaro – é que se o atrevimento é grande, a vontade de ser útil à pátria, torna-me audacioso, mas convicto de que cumpro o meu dever. A alta ideia que me inspiram as reuniões científicas, onde o prestígio se conquista pelo estudo e se impõe pela franca exibição dos troféus conquistados no campo da luta a tanto me anima. Oscar Leal – O Amazonas

9


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

10


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

APRESENTAÇÃO As transformações que marcaram a formação brasileira desde os primórdios do século XIX, com a transmigração da família real portuguesa e, posteriormente, com a formação do Estado Nacional, levaram a uma drástica mudança nas representações criadas acerca da antiga colônia e do jovem país. O avanço dos chamados naturalistas por significativa parte do território brasileiro, esquadrinhou e redesenhou o Brasil, reestruturando ou reforçando algumas das tantas imagens que sobre ele foram estabelecidas. Naturalista era uma denominação genérica que se dava ao indivíduo letrado que detinha conhecimentos menos ou mais amplos sobre áreas variadas do saber humano, ou por vezes, com alguma especialidade em particular, e que, em geral, registravam suas observações de forma textual e/ou imagética, seguindo alguns requisitos que poderia conferir até mesmo certa cientificidade. Assim, os Oitocentos foram marcados por “um verdadeiro ciclo de viagens e expedições científicas à testa das quais especialistas eminentes de várias partes do mundo” puseram “seu saber a serviço do conhecimento da flora, da fauna, da geografia, da geologia, da paleontologia e da etnologia” no Brasil1. Tais

OBERACKER, Carlos. Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (dir.). História geral da civilização brasileira: o Brasil Monárquico (o processo de emancipação). 4.ed. São Paulo: DIFEL, 1976, t. 2, v. 1, p. 119. 1

11


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

explorações “se fizeram em todas as partes do Brasil”, tendo “por objeto os problemas da geografia, da geologia, da botânica, da zoologia e de outras ciências naturais”, além das quais, tomaram “corpo também, ainda que em menor escala, as investigações sobre a língua e a cultura dos primitivos habitantes da terra”2. Tais relatos revelavam “um exercício e uma metodologia de aquisição de conhecimentos”, constituindo um discurso que se tornava “eminentemente pedagógico e formativo”, pois ensinava “a conhecer com seu exemplo, ao mesmo tempo que transmite informação, seguindo a ordem da sua aquisição”. Estabelecia-se então “um discurso compulsador de saberes diversos, da geografia, à botânica, à zoologia, à mineralogia, à sociologia, à história, etc.”3. Nesse sentido, o Brasil foi percorrido e estudado, “sob os mais diversos motivos de interesse, por nacionais e alienígenas” e, dentre seus registros, surgiu “muita coisa desestimável, obra de pura exploração, do exagero descomedido, da mania de causar espanto, aventura, inverdade, cego desabafo ou incompreensão irredutível”. Mas, por outro lado, “existem também, e até com abundância, depoimentos de inegável interesse, insubstituíveis em muitos casos, para estudos de determinadas regiões e de determinados problemas”, os quais foram “escritos por homens de ciência ou por simples viajantes ou por

SCHADEN, Egon & PEREIRA, João Baptista Borges. Exploração antropológica. In: HOLANDA, Sérgio Buarque (dir.). História geral da civilização brasileira: o Brasil Monárquico (reações e transações). 3.ed. São Paulo: DIFEL, 1976, t. 2, v. 3, p. 425. 3 RITA, Annabela. No fundo dos espelhos [II] – em visita. Porto: Caixotim Edições, 2007. p. 284285. 2

12


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

criaturas dedicadas a alguma tarefa específica”4. Esse tipo de testemunho “valoriza o conhecimento em processo, preferindo-o à sua síntese; porque o modo como o faz ensina a conhecer, modela o gesto cognoscente do leitor na sua própria experiência”, assim como assume “uma dimensão de intervenção epistemológica, mais do que simplesmente pedagógica”, propondo a reflexão e a “constituição de um novo quadro de referências”5. Oscar Leal (1862-1910), nascido no Brasil, mas, de família lusa, criado em Portugal, estabeleceu sua formação educacional no eixo lusitano-brasileiro, até formar-se em odontologia. Dedicou sua vida às viagens, tendo percorrido vários países da Europa centro-ocidental e visitado o continente africano, em especial as possessões portuguesas. Mas a maior parte de suas excursões voltou-se ao Brasil, avançando para além dos centros mais populosos, vindo a devassar os sertões do país, mormente nas regiões centro-oeste e norte. Para tanto, ele aliava o exercício de sua profissão com o gosto pelos deslocamento, vindo a ser um dentista itinerante, oferecendo seus serviços ao longo das localidades que percorria A partir dessas viagens, organizou uma série de escritos que foram publicados em periódicos e em vários livros que editou entre meados da década de 1880 e do decênio seguinte. Como ainda era bastante comum à época, Leal teve uma atuação múltipla, pois, além da odontologia itinerante e dos relatos de viagens, dedicou-se SODRÉ, Nelson Werneck. O que se deve ler para conhecer o Brasil. 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. p. 346. 5 RITA, Annabela. No fundo dos espelhos [II] – em visita. Porto: Caixotim Edições, 2007. p. 299. 4

13


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

também ao conto, à crônica e à poesia, além de uma atuação muito próxima às práticas jornalísticas, ao colaborar com vários periódicos e ele mesmo editar publicações especializadas, almejando assim seu lugar no rol dos homens de letras. Adepto e propugnador fervoroso do cientificismo, também direcionou sua produção em prol da difusão de princípios civilizatórios, debatendo as potencialidades de progresso para as localidades brasileiras que visitava. Nessa linha, Oscar Leal tinha um projeto bem articulado de angariar reconhecimento intelectual nas suas várias áreas de ação, quer seja, como literato, jornalista e, embora tenha, com falsa modéstia, chegado a dizer que não o era, como naturalista. Significativa parte da carga de leitura de Oscar Leal fora concernente à literatura de viagem, desde as mais tradicionais, elaboradas no século XVI, até os relatos de alguns de seus coetâneos. Nesse sentido, os relatos de viagem de sua lavra foram profundamente marcados por alguns pressupostos e práticas que vinham se desenvolvendo ao longo daquele largo período. A seu modo, ele pretendia seguir a mesma linha, pois se os seus modelos de inspiração haviam desvendado o desconhecido em suas respectivas épocas, ele pretendia fazer o mesmo em relação ao interior brasileiro do século XIX. Daí sua predileção pelas regiões longínquas e, por vezes, de difícil penetração, bem como seu olhar concentrado nas bacias hidrográficas, nas florestas e nas remanescente populações indígenas. De acordo com tal perspectiva, suas incursões aos agrestes do Brasil se estabeleciam a partir de um misto do gosto pelo desconhecido, da busca pela

14


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

aventura, da prática de um turismo diferenciado e, em nome dos princípios cientificistas e civilizatórios, da busca pelo conhecimento e de sua respectiva divulgação. Dessa maneira, suas empreitadas aproximavam-se da modalidade de “viagem erudita, de formação e de serviço”, cujos registros “giram em torno da viagem”, trazendo consigo e participando “do clima cultural, da cronologia e do fenômeno comunicativo” concernentes a tal prática. Tais excursões em geral carregam em si “um alto grau de espírito humanístico, da procura do saber, de integração nos gostos dos leitores”, constituindo “viagens em que a aquisição de conhecimento é a preocupação maior, quer se trate de conhecimentos científicos, ou de cultura geral, capazes de provocarem novas ideias e hipóteses”6. Os livros de viagem de Leal apresentavam o gosto pelo exótico, mas também o olhar avaliativo/interpretativo, buscando as possibilidades de avanço, bem estabelecendo censuras aos fatores que estariam atravancando o progresso. Essas excursões ao desconhecido e o consequente testemunho na forma de artigos e livros foram elementos constitutivos fundamentais para que o escritor atingisse sua ambicionada notoriedade intelectual. Em relação ao caráter de cientista ele buscava angariá-lo pelo aprimoramento da leitura, além da própria formação universitária que, para as padrões da época, já lhe conferia o título de doutor. Desse modo, uniam-se em torno de tais ações a figura do CRISTÓVÃO, Fernando. Para uma teoria da Literatura de Viagens. In: CRISTÓVÃO, Fernando (coord.). Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias . Coimbra: Almedina; Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, 2002. p. 48-49. 6

15


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

viajante com a do cientista, daí a caracterização menos ou mais precisa do naturalista. Foi com base em tal atuação e a partir de uma obra formada por significativa quantidade de livros, que Oscar Leal ganhou lugar em várias instituições acadêmicas, científicas e culturais em diferentes partes do mundo. Nessa linha, ele pertenceu à Sociedade Espanhola de História Natural, à Sociedade de Geografia de Madri, à Sociedade de Geografia de Nova York, à Sociedade de Geografia de Lisboa; à Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, à Sociedade Espanhola de História Natural; ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, à Arcádia Americana do Pará, ao Grêmio Literário da Bahia, à Academia Literária do Real Instituto de Lisboa e à Sociedade dos Homens de Letras do Porto7. Levando em conta sua ação como literato, jornalista e naturalista, o projeto de notoriedade intelectual de Oscar Leal atingia significativo sucesso. Para coroar tais intentos, seu reconhecimento foi também confirmado a partir de sua ação como conferencista e estudioso, a qual constitui o escopo deste livro, que

está articulado com o Estágio Pós-Doutoral realizado junto à

BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, v. 5 1900, v. 6, p. 339-340.; PEREIRA, Esteves & RODRIGUES, Guilherme. Portugal – dicionário histórico, corográfico, biográfico, bibliográfico, heráldico, numismático e artístico. Lisboa: João Romano Torres & Cia. Editores, 1909. v. 4, p. 98.; SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário bibliográfico português. Lisboa: Imprensa Nacional, 1894, t. 17, p. 131 e 333.; e LEAL, Oscar. Dentistas e “dentistas” – crítica (de luva calçada) ao folheto de Francisco Ortiz O Dentista Moderno. Lisboa: Livraria Editora da Viúva Tavares Cardoso, 1904. p. 1. 7

16


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras (Assis), Programa de Pós-Graduação em Letras, sob a supervisão do Prof. Dr. Alvaro Santos Simões Junior. A abordagem recai sobre duas conferências proferidas por Leal, uma na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e outra na Sociedade de Geografia de Lisboa, além da ação como “orador improvisado” e de duas palestras que ele realizou ao longo de suas viagens pelo interior do Brasil e relatadas em seus livros. Finalmente ainda há o destaque a dois estudos de caso específicos promovidos por Oscar Leal no seio de seu livro Viagem a um país de

selvagens.

17


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

18


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

ÍNDICE A conferência na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro...................................21 A conferência na Sociedade de Geografia de Lisboa.................................................71 Viajante e palestrante.....................................................................................................135 Dois estudos no último livro de viagens sobre o Brasil..........................................153

19


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

20


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

A CONFERÊNCIA NA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO

21


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

A ação intelectual de Oscar Leal teve como um dos principais focos o Brasil, o que levou à sua filiação em várias entidades científico-culturais brasileiras, em vários locais diferentes, como São Paulo, Bahia e Pará. Tal condição não poderia ser diferente na capital imperial e depois federal, na qual inclusive a família do escritor também tinha morada, servindo o Rio de Janeiro como ponto de partida e de chegada em várias das excursões que realizou pelo interior brasileiro. Seus relatos de viagem muito se coadunavam com o espírito das sociedades geográficas que se espalhavam pelo mundo ao longo do século XIX, as quais se destinavam, entre outros focos, às expedições científicas e aos projetos voltadas a travar conhecimento de regiões longínquas e pouco conhecidas. Nesse sentido, houve uma aproximação do escritor com a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, da qual participaria na condição de sócio correspondente. A instauração da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro deu-se aproximadamente uma década antes do ingresso de Oscar Leal. Na época, a direção da entidade realizou uma exposição de motivos8, justificando a sua criação. Nessa linha, a diretoria ressaltava “as vantagens” que poderiam em geral resultar “do estabelecimento de sociedades deste gênero”, ainda mais em “países como o Brasil, em que muito resta ainda verificar, quer com relação à sua extensão territorial, limites, orografia e hidrografia”, ou mesmo “com relação às imensas regiões que ainda possui no abandono, e cujos recursos a ninguém BOLETIM DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1885, t. 1, n. 1, 1º trim., p. 3-8. 8

22


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

tem sido dado apreciar devidamente”, bem como o fato dos estudos sobre tais regiões serem “esparsos, sem a precisa coordenação” e com “poucos documentos” organizados. Havia um espírito ufanista e patriótico na edificação da instituição geográfica, propondo-se que era “tempo de ir o Brasil ocupandose” de “estudos especiais, aproveitando com vantagem as vocações repletas de talento e abnegação”, além de conquistar, “pelos seus próprios esforços, o conceito que, nas ciências, nas artes e nas industrias, lhe caberá sem dúvida entre as nações sul-americanas”. A instalação da nova sociedade visava a superar a ação da seção da Sociedade de Geografia de Lisboa, que atuava no Rio de Janeiro desde 1878, acreditando que seria necessária uma entidade essencialmente nacional e não apenas uma filial de uma congênere estrangeira. Tal ato era considerado como um motivo de júbilo para o Brasil”, com a criação de “centros de pesquisa úteis sob o ponto de vista científico, como sob o prático” e, “sem perturbar a marcha e o progresso de suas coirmãs”, e “cooperando com elas para o desenvolvimento dos estudos geográficos”, de modo que, assim se instalava no ano de 1883, a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. A novel instituição aparecia com a finalidade “de preencher a lacuna, há muito tempo sentida, de uma sociedade nacional que tome a seu cargo o estudo, discussão, investigações e explorações científicas” nos vários “ramos, princípios, relações, descobertas, progressos e aplicações” concernentes à geografia. A Sociedade instalada na capital imperial seguia os esforços traçados por várias entidades da mesma natureza que se espalhavam pelo mundo, uma vez que era uma época na qual “as nações

23


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

procuram explorar os arcanos da Terra, os pontos mais longínquos, os fatos mais remotos”, e, para isso, organizavam “os congressos internacionais, verdadeiras assembleias cosmopolitas”, para as quais nenhuma “nação civilizada” poderia recusar-se a participar. As referências eram aos congressos internacionais de geografia e às novas associações que se formavam, “instituídas em proveito radical da civilização”, com intentos como os de realizar o estudo do planeta “nos seus diferentes aspectos, na sua constituição física, nas mediações da vida”; promover o exame dos meios de medi-lo e representá-lo, determinando “as suas relações com os corpos celestes” e restabelecendo “os estados sucessivos da sua estrutura nas diferentes épocas”, além de “descobrir sobre o solo as impressões da história reconstruída pela erudição moderna”. Também apareciam como escopos o de “procurar tornar mais prontas e mais fáceis as relações entre os povos e confiar gradualmente ao homem toda a superfície habitável”; o de “comparar entre si os métodos de ensino e unifazer os esforços para a difusão e o progresso da ciência”; o de “realizar explorações e discutir os meios de triunfar dos obstáculos, que as possam embaraçar”, ou seja, “verificar o que é certo” e “discutir o que é duvidoso”; e ainda o de “descobrir o incógnito no estudo prático e teórico da terra”. A partir de tais princípios ficavam definidos “os grupos” em que tais sociedades poderiam segmentar-se, envolvendo o “matemático (geografia matemática, geodesia, topografia)”; o “hidrográfico (hidrografia, geografia marítima)”; o “físico (geografia física, meteorologia geral, geologia geral,

24


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

geografia botânica e zoologia; antropologia geral)”; o “histórico (geografia histórica e história da geografia, etnografia, filologia)”; o “econômico (geografia econômica, comercial e estatística)”; o “didático (ensino e difusão da geografia)“; e o “de viagens (explorações, viagens científicas, comerciais e pitorescas)”. Diante disso, ressaltava-se que as tradicionais associações geográficas, ao desenvolverem seus estudos, “compreenderam as grandes aplicações a que estes dariam lugar, pelos inúmeros ramos das necessidades humanas, a que se liga a geografia”, seja “no domínio da prática”, ou “no da teoria”. Diante disso, “nenhuma nação civilizada” poderia retrair-se, o que daria lugar à necessidade dos “homens da ciência animar no Brasil as instituições de geografia”. Com base nessas premissas, a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro estabelecia que tinha por finalidade “o estudo, discussão, investigações e explorações científicas de geografia, nos seus diferentes ramos, princípios, relações, descobertas, progressos e aplicações” e, ainda mais especificamente, “o estudo e conhecimento dos fatos e documentos concernentes à geografia do Brasil”. Para realizar os seus fins, a entidade se propunha a realizar “sessões, conferências, preleções, congressos científicos, investigações, viagens, etc.”; além

de

estabelecer

“publicações,

arquivos,

bibliotecas,

museus

e

correspondência ou relações com outras sociedades ou grêmios geográficos nacionais ou estrangeiros”9. A partir de sua instalação tal Sociedade permaneceu empreendendo “um programa de trabalho que buscava responder BOLETIM DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1885, t. 1, n. 2, 2º trim., p. 191. 9

25


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

às demandas do governo, por meio de práticas científicas, direcionadas para o melhor conhecimento do espaço físico do Império e de seus habitantes”. Sua ação não encontrou rupturas nem mesmo “com o advento do regime republicano, apesar da crise institucional e sociopolítica dos primeiros anos”10.

- brasão da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro -

CARDOSO, Luciene Pereira Carris. Memória, história, sociabilidades: um espaço para a geografia brasileira no Rio de Janeiro. In: Cadernos do Desenvolvimento Fluminense , Rio de Janeiro, N.7, pp. 169 - 184, jan./jun. 2015. p. 171 10

26


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

A aproximação de Oscar Leal com tal Sociedade deu-se a partir de relações com alguns de seus membros e intercâmbios culturais, como o envio de livros publicados para a instituição. A 21 de outubro de 1892 viria a culminância, com a ordem do dia da sessão da entidade prevendo a conferência de Leal sobre o tema “Goiás – Regiões de terra e água – Os primeiros habitantes da América”, considerados como “assuntos que muita atenção” deveriam “merecer do auditório, não só pela especialidade a que se refere, e que muito interessam à pátria, como também pela proficiência de seu autor”, o qual já seria “brilhantemente conhecido no Brasil pelos trabalhos que tem publicado sobre viagens no norte e no sul do país”, estabelecendo-se que ficaria “o auditório plenamente satisfeito com a brilhante conferência” 11. Ao iniciar, o conferencista agradeceu “as expressões que lhe acaba de dirigir o Sr. Presidente”, esclarecendo que deixaria “para outra sessão a parte relativa a Goiás, tratando na presente somente das outras duas”. Daí em diante, Oscar Leal realizou “a leitura do trabalho sobre – Regiões de terra e água – acompanhando-o de considerações minuciosas sobre vários de seus tópicos. Em seguida passava “à leitura do trabalho sobre – Os primeiros habitantes da América”. Ao término de sua fala foi “o orador vivamente aplaudido e cumprimentado,

agradecendo-lhe

o

Sr.

Presidente

a

conferência

e

comunicando-lhe que, de acordo com a proposta apresentada por vários consócios”, ele fora “aceito na qualidade de sócio correspondente da Sociedade REVISTA DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO, tomo 10, 1º ao 4º boletins, 1894, p. 51-52. 11

27


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

de Geografia do Rio de Janeiro”12. Nos anos seguintes, Leal manteve contatos com a instituição, agradecendo pelo diploma de sócio, enviando original do trabalho “Baixo Tocantins” para ser impresso na Revista da Sociedade, ofertando folhetos “sobre assuntos de grande interesse” e colocando-se à disposição da Sociedade para a realização de novas conferências13. Da palestra proferida em outubro de 1892, Oscar Leal entregaria para publicação na Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, o tópico sobre “As regiões de terra e água”. A parte referente a “Os primeiros habitantes da América” viria a ser adaptada e editada posteriormente no livro Viagem a um

país de selvagens14. O conteúdo do trabalho de Leal estava bem a contento com o espírito das sociedades de geografia da época e, especificamente com a instalada no Rio de Janeiro, envolvendo as viagens, as expedições científicas e a busca de conhecimentos sobre o país, no caso de uma de suas porções mais recônditas. O artigo era sobre a região compreendida no entorno do baixo Tocantins, zona que, segundo o autor, “pouco ou nada se tem dito”, de modo que levaria aos leitores “um resumo” de suas “apreciações, devendo mais tarde oferecer-lhe a obra completa, cujo título” seria igualmente “As regiões de terra e água”.

REVISTA DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO, tomo 10, 1º ao 4º boletins, 1894, p. 52-53. 13 REVISTA DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO, tomo 11, 1º ao 4º boletins, 1895.; e REVISTA DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO, tomo 12, 1898. 14 Ver o último capítulo deste livro. 12

28


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

29


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

30


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

31


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Ao longo do texto, Oscar Leal buscava demonstrar amplo conhecimento de causa acerca do tema abordado, levando em conta o testemunho in loco que trazia, advindo de suas viagens e presença nos locais descritos. Uma das marcas do artigo era a intenção do autor de dar uma impressão sensória aos leitores,

referindo-se

a

sensações

contrárias

como

ruído/silêncio

e

claridade/escuridão. A exuberância natural era uma de suas predileções, com amplo destaque à fauna, à flora e aos “cambiantes da vegetação”. Outro fulcro de suas análises eram as potencialidades econômicas das regiões visitadas, ou seja, a possibilidade de incorporação das mesmas à exploração capitalista de recursos, bem de acordo com os propósitos dos congressos e das sociedades geográficas então em voga. De acordo com os pressupostos civilizatórios que abordou amplamente em todos os seus escritos sobre o Brasil, Oscar Leal lançava um olhar de desaprovação sobre aquilo que apontava como atrasos do país, intentando vislumbrar providências que, conforme suas convicções, garantissem ao Brasil galgar espaço em direção a um tão almejado progresso. O autor manifestava amplo descrédito para com segmentos da população brasileira, considerando-os inaptos e pouco capazes de promover os avanços necessários, uma vez que “muito deixa a desejar quanto à iniciativa do trabalho”. Para tanto, propunha a realização de um projeto de colonização, considerando que só a partir da ação dos imigrantes estrangeiros seria possível alavancar as atividades produtivas e garantir o progredir no caminho da sua tão decantada civilização.

32


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

A partir da proposta de alocação de núcleos coloniais, o escritor debatia questões em torno de um determinismo geográfico e traçava comentários acerca das possibilidades de aclimatação desses imigrantes ao clima da região, intentando

realizar

um

procedimento

científico,

ao

envolver

análise,

diagnóstico e conclusão, prevendo que tal inserção poderia ser realizada. Descrevendo as várias localidades por onde passava, Leal não deixava de lado seus paralelos entre o civilizado e o atrasado, como ao especificar que um dos locais por onde passara era “o último ponto onde se encontram verdadeiros indícios pressagos da civilização”, pois “daí para cima some-se como por encanto e apenas choupanas de alguns tristes caboclos orlam as margens do grande rio”, havendo “vastas extensões” que “se acham ainda envoltas no seu estado primitivo”, chegando a se referir a uma “população composta de gente semicivilizada, mestiça e indolente”. As apreciações negativas e por vezes pejorativas quanto à força de trabalho voltariam à baila. Também não deixava de lado a admiração diante de “tantas belezas naturais”, bem como insistia recorrentemente na observação da potencialidades de aproveitamento econômico, com um olhar vigoroso sobre os tantos produtos, a intensificação das atividades extrativas e a introdução das práticas agropecuárias. Por vezes havia uma mescla entre a abordagem “científica” do “naturalista” e a narrativa de viagem, de fulcro descritivo com a qual Oscar Leal tinha maior afinidade. O escritor assim sintetizava a sua ação como a do viageiro-naturalista, afinal, considerava que “se viver é gozar, o viajar é saber, explicitando que, “quem nasce numa triste aldeia e nunca dela se

33


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

apartou durante algum tempo e aí tem o túmulo, não viveu”, já que “ver é conhecer” e “ler é aprender, base de uma certa definição sem mostras de real conhecimento”.

34


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

- As regiões da terra e água Conferência em 21 de outubro de 1892 feita pelo Dr. Oscar Leal15

O Tocantins, esse majestoso rio, que banha uma das mais formosas regiões do mundo, tem, segundo Castelnau, a largura média de 1.800 metros e a corrente de 1.500 metros por hora. A sua bacia compreende o vasto território, que se dilata do paralelo 1º ao 19º de latitude S., isto é, desde a foz do Pará até as mais remotas origens do Araguaia – o córrego das Duas Pontes, que despenhase das abas setentrionais da serra oriental do Caiapó. Mede-lhe a largura de 8 graus do oriente ao ocidente. No planalto em que tem o Tocantins suas vertentes ficam as cabeceiras do Tapajós, do Paraguai, do Guaporé e os braços ocidentais do Paraná. As múltiplas belezas desta região, a grandeza deste rio, a sublimidade de suas florestas, onde se encontram numerosos produtos que têm enriquecido a centenas de ousados aventureiros, em suma, os variadíssimos ramos de cultura, comércio e riqueza que provirão de um solo ainda não explorado, finalmente, o que já sabíamos ou adivinhávamos saber sobre tão bela região, deu origem à

LEAL, Oscar. As regiões de terra e água – conferência em 21 de outubro de 1892. In: REVISTA DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro: Tipografia G. Leuzinger & Filhos, 1893, tomo 9, p. 3-31. 15

35


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

resolução posta em prática em 1886, visitando-a e admirando em toda a sua plenitude a pujança de suas grandezas. E dirão alguns que fomos ainda singular na escolha das nossas descrições. Notarão sem dúvida, porque tendo ali tão próximo o soberbo Amazonas, nos vamos ocupar de um dos seus tributários! Mas é preciso refletir que o Amazonas está mais que descrito e sobre o baixo Tocantins pouco ou nada se tem dito. O que o leitor vai conhecer é um resumo das nossas apreciações, devendo mais tarde oferecer-lhe a obra completa, cujo título será “As regiões de terra e água”. Em fins de 1886 chegava a Mocajuba, pequena vila situada à margem direita do Tocantins, e que por sua insignificância, como povoado, nada oferece digno de nota. Há três meses que me achava no Tocantins, e convicto parecia de que a formosa região fosse igualmente fértil e produtiva; porém quis o acaso dar-me a conhecer o contrário. Se precisamente principio por mostrar a parte mais desagradável das minhas impressões é para mais uma vez provar que digo a verdade, e não ando somente tecendo elogios às nossas terras, sobretudo para com os meus compatriotas. É uma pequena mancha que por forma alguma mareia a imponência e soberbia de tão rico e ubérrimo país.

36


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Tendo chegado, com o disse, a Mocajuba e durante minha estada ali, aceitando o convite de um amável cavalheiro, que lá residia, parti em direção dos desertos campos, além da espessa mata que guarnece a margem do rio. Que quadros diferentes se iam destacando em poucas horas! Aqui, ainda nas vizinhanças da grande artéria fluvial, desse conjunto de elementos, do solo úmido turfoso, da matéria orgânica apodrecida pela ação da água, desprendia-se uma exalação miasmática, que se ia unir mistosamente ao perfume agreste e suave, que envolve as copas dos arvoredos. Através do silêncio, que envolvia a natureza, distinguia-se contudo um como rumor confuso, frenético, produzido pelo roçar das árvores, sobressaindo o ruído fervilhante da folhagem. E a luz penetrando pelas frinchas formadas entre essa massa densa, maciça e florescente iluminava animadamente o belo quadro da natureza. Pássaros de várias cores, desde o monótono pavãozinho até o catinguento cigano, saltavam de galho em galho; répteis, insetos mil e de mil formas e tamanho acompanhavam todos alegremente a animação da flora. Pouco a pouco, à proporção que caminhávamos, sucediam-se os cambiantes de vegetação. Mas é preciso notar uma coisa, nós não subimos. Esta região é apenas acidentada no curso dos rios e igarapés. Dentro em duas horas de marcha a vegetação rareava sensivelmente e apenas grandes areais mesclados por verduras exóticas e rasteiras se mostravam a nossos olhos.

37


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Nem um pio de ave, nem mesmo o grito agudo do gavião, que frequenta os campos desertos do nosso Brasil central, nem uma aragem, nada, nada. Profundo silêncio. Levado pela enunciação da minha dura verdade, digamo-lo com franqueza e segundo a óptica de mero ponto de vista, que pisávamos um terreno ingrato ao lavrador, demonstrando-o evidentemente os caminhos, que embora abandonados há dezenas de anos não apresentavam espécie alguma de vegetação. A crosta produtiva desaparecera de há muito nas patas dos animais. Um

terreno

semi-argiloso,

semi-areeento

no

qual

insignificante

quantidade e húmus pode existir superficialmente. Á exceção de alguns pontos onde florescem vários espécimes, dos quais muitos desconhecidos, temos, no mais, grandes claros onde vegetam até mesmo más e raquíticas pastagens completamente abandonadas. Para prova basta recordar que os habitantes de Mocajuba não possuem uma só vaca, que lhes forneça um simples copo de leite. Na solidão daqueles campos notei que a atmosfera parecia pouco carregada, o ar puro e menos viciado. De volta à vila, em poucos instantes eis-nos sob copada mata; e uma ou outra choça habitada por gente mestiça orla o caminho estreito e retilíneo. O suor banhava-me a fronte, que repetidas vezes enxugava um pouco contrafeito com o mau andar do meu cavalo.

38


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Os nossos animais eram os únicos que existiam na pequena vila. Em pouco tempo estávamos sob melhor teto e livres da tempestade que já se anunciava ao longe. Refletia então em tão singular passeio e no que vira sobretudo. Nas ilhas sujeitas a inundações constantes durante seis ou oito meses no ano, assim como nos terrenos da terra firme, próximos às ribanceiras, verdade é que a vegetação é mais ou menos luxuriosa porque o húmus da crosta tem sido formado secularmente por perene calor aliado ao apodrecimento contínuo das partes em que o período de vegetação findou. Como sabeis, resguardadas pois as matas que margeiam as grandes artérias, que são as maiores preciosidades desta vasta região, o aproveitamento dos terrenos mais próximos é útil desde que se adapte à cultura dos gêneros similares da zona tórrida. Todo o mundo sabe que a ação das matas é forte e grandiosa na produção de chuvas. Cristóvão Colombo atribuía à extensão e intensidade das florestas que cobriam o cimo das montanhas à abundância das chuvas refrigerantes as quais esteve exposto durante o tempo que costeou a Jamaica. Produzidas as chuvas estas podem-se limitar a regar a área tão somente em que a ação das matas se desenvolve. O chover muito, diz-nos Zurcher nos seus Fenômenos da atmosfera, em certos países quentes depende da natureza arenosa da superfície terrestre. O sol

39


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

dilucida aí uma corrente ascendente de ar quente que impede de se condensarem as vesículas do vapor. Muitas vezes notei em minhas excursões pelo Tocantins, que as frutas amadurecem antes do tempo devido ao esgotamento da seiva na planta nativa, às chuvas e calor constantes. Uma ou outra rara planta frutífera, ali a custo aclimada, produz frutas de gosto desigual e desenxabido, mas às vezes de colossal tamanho. O caju, a própria manga, frutos que no sul são bastante apreciados, ali parecem simplesmente intoleráveis. Os próprios habitantes as deixam cair das árvores e apodrecerem disseminadas nas praias, sem delas se aproveitarem. Como conseguintemente iremos vendo, a esta região está reservado próspero futuro. A criação de núcleos coloniais seria de grande proveito ao baixo e ao alto Tocantins, mormente hoje que se aventa a construção da estrada de ferro de Alcobaça, que unirá o Pará ao norte de Goiás. Aproveitando os terrenos mais férteis o bom trabalhador só terá a esperar sempre provável êxito e brilhante recompensa aos seus cuidados e esforços. A cana, os cereais, a mandioca, o cacau, tudo ali se desenvolve, apresentando magnífica fonte de receita, desde que se tome por base – trabalho e força de vontade.

40


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Com exceção dos terrenos vizinhos do Baião, daí para baixo a superfície topográfica é mais ou menos plana, exceto, como já disse, no curso dos rios e igarapés. A população atual, que apresenta insignificante proporção de habitantes por quilômetro quadrado, muito deixa a desejar quanto à iniciativa do trabalho. Portanto, a conseguinte utilização de promover o governo estadual à imitação do de S. Paulo, o povoamento desta zona por estrangeiros aptos para o serviço da lavoura seria de imenso proveito. Pelo seu amor ao trabalho, fariam nascer naqueles povos de rude convivência a ambição tão necessária a todo o indivíduo dotado de vida e saúde. Por esta forma todos virão a comungar no grande banquete do progresso, que é a honra dos povos e a glória das nações. É até mesmo bom saber-se que grau de exatidão se contém nas apreensões de impossibilidade da imigração neste território. E procurando estudar tal questão sente-se haver nela o teórico e o prático. Na primeira dessa divisória a combinação das variações termométricas com a força do organismo humano arrasta talvez à afirmativa da impossibilidade da imigração ou aclimação do europeu nas regiões da zona tórrida. Na segunda, porém, os fatos dizem não pouco em contrário e modificam a crença dela resultante como afirma abalizado escritor.

41


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Com Montesquieu são muitos os que pensam deverem achar-se enervadas as faculdades físicas e intelectuais do homem logo que a vida se passa sob a ação do sol equatorial. E de argumento lhes servem as populações da África central, cujo nenhum desenvolvimento na ordem física como na outra é atribuída pela maior parte à existência no ponto culminante do globo que habitamos. Como se sabe, Montesquieu levava as suas conjunturas a respeito até supor que na zona tórrida devia a humanidade inevitavelmente sofrer de estupidez, não ser suscetível de cultura intelectual nem consequentemente de fazer grandes conquistas em civilização. A ser assim no norte do Brasil os estados do Pará e Amazonas por cima dos quais está o equador, ficariam eternamente estacionários, não dariam um passo no caminho dos desenvolvimentos, porque a intensidade do calor embotando no homem as faculdades de espírito e inervando-lhe as do corpo forçosamente daria o estado de quietude e estacionarismo. A impossibilidade de aclimatação de estrangeiros no baixo Tocantins diremos nós, não passa de conjetural, e conjetura infundada feita pelos que vivem nas outras zonas da terra e delas nunca saíram. Já é bem sofrível o número de portugueses e marroquinos que habitam o baixo-Tocantins, onde vivem satisfeitos e entregues geralmente ao comércio. Notam-se indivíduos de outras nacionalidades e que vivem da mesma forma bem e felizes.

42


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

É da natureza do homem ter pensamentos e formar ideias segundo a natureza física de que se acha rodeado; não há fugir da influência dela e quem o diz são os fatos. O esquimó, continua a dizer um distinto escritor paraense que tratou do assunto, em que baseamos as conclusões, mal compreende, como habitante da bacia polar, que haja homens podendo viver nos países que não têm como o dele um dia de seis meses e uma noite igual e em casas que não sejam edificadas com gelo. Das relações de viagem se sabe que os selvagens das costas setentrionais da América mostram-se crentes do embrutecimento dos selvagens que habitam o interior das mesmas terras, as quais são por eles tidas como inabitáveis. É quente, não há dúvida, dizia ainda o mesmo ou outro escritor, mesmo bastante quente a temperatura do baixo Tocantins; mas não de tal modo que se torne inóspita como pretendem os que de longe ajuizaram das condições, que encerra em relação à vida do homem. A crença de que não pode a vida humana desenvolver-se ali como alguns têm pretendido, entre eles o notável Sr. Escragnolle Taunay, que tal afirmou uma ocasião no Senado, é negada pelos fatos no que diz respeito a estas paragens, de que trato, porque conheço. Conquanto

quente

o

clima,

é

perfeitamente

suportável.

Tendo

permanecido no baixo Tocantins durante os meses de maior calor, apenas uma vez em Cametá fui acometido por ligeira febre. A nossa saúde não sofreu outra alteração e quer-me parecer que goza-se ali de tanta robustez como no sul do

43


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Brasil, salvo casos excepcionais. Só bem avaliada e ajuizada é esta questão por quem já tenha vivido pelo tempo necessário ali para experimentar tais condições. _____ Partindo de Mocajuba em amena manhã, dirigia-me a novos pontos do Tocantins. Encostado à amurada da montaria punha os olhos na esteira brilhante que o barco deixa, mergulhando em vagas meditações e contemplando a variedade de paisagens na aproximação das grandes ilhas, em que grupos de floridas palmeiras, sepultam em quieta placidez o solo úmido das mesmas. A natureza cheia de vida, envolta em profundo mistério; morto só o espírito do homem que ali domina débil e francamente. Nada mais deleitável ao viajante que visitar e conhecer os encantos que encerra a vida nas ilhas do Tocantins, nas quais se pode dizer se encontra quase todo o comércio destas paragens por ser ali que se encontra em mais abundância o cacau, a borracha, e outros produtos extrativos! Pitorescamente separadas e subdivididas por milhares de braços, de igarapés, de furos, canais naturais, chega-se mesmo às vezes a crer na existência de numerosos labirintos, de onde seria ao estranho difícil sair senão fosse a prática dos remeiros.

44


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Seguíamos então em direção a um povoado denominado Baião. Sucedeu que por casualidade ali chegamos a 25 de dezembro, encontrando o lugar em festas de natal, as quais haviam atraído moradores de grandes distâncias. Esta vila está deleitavelmente assenta sobre um alto aprazível e vistoso, à margem direita do Tocantins. Dão acesso à povoação duas enormes escadas, com perto de duzentos degraus cada uma. Há ali um pequeno cais estivado e onde atracam os vapores da Amazon Steam. O Baião é o último ponto do baixo Tocantins onde se encontram verdadeiros indícios pressagos da civilização. Daí para cima some-se como por encanto e apenas choupanas de alguns tristes caboclos orlam as margens do grande rio. Vastas extensões se acham ainda envoltas no seu estado primitivo. Por ocasião da safra da castanha, o que se dá de janeiro a abril, vê-se subirem o rio numerosos vapores pertencentes a firmas comerciais do Pará, e uma corrente de audaciosos trabalhadores se dirige para os pontos em que aquele produto mais abunda sendo anualmente grande o movimento. Para quem deixa o Baião na sua retaguarda e continua a subir espera-o como um mundo novo, cheio de paisagens cada vez mais arrebatadoras. Pouco a pouco vemos ir rareando a população, essa população composta de gente semicivilizada, mestiça e indolente, até que chegamos ao Areião, um grupo de toscas cabanas.

45


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

O ponto mais interessante que temos neste percurso é finalmente Arumateua, aldeia ou insignificante povoado à margem esquerda do grande rio, onde o viajante se extasia contemplando o redemoinhar das águas do rebojo da Vita-Eterna, cuja celebridade é notória pelo número de vítimas que tem feito. E como se não fosse isto bastante para nos despertar a atenção e por embargos à temeridade dos imprudentes, atroa-nos os ouvidos o medonho rugido do Guaribão. Arumateua, sem receio de errar, é o sítio habitado mais belo e pitoresco de todo o baixo Tocantins. Colocado em ponto elevado daí se desfruta esplêndidos panoramas, e quem sobre eles espraiar suas vistas há de forçosamente deleitarse com tantas belezas naturais antes de alcançar os topos do horizonte. Como ponto sanitário chega a ser ótimo o local, podendo-se até mesmo considerar de alguma profilaxia o seu clima. De Arumateua em diante o que há de mais notável é a cachoeira da Itaboca. As margens do grande rio continuam sempre a se cobrir de grandes e verdejantes castanhais e o cumaru, a copaíba, abundam ali também prodigiosamente. Em Arumateua é que se reúnem durante a safra da castanha numerosos negociantes e apanhadores, por ser o ponto onde os vapores vão carregar. Casas, choupanas e barracões, tudo é construído para uso provisório. O lugar por este tempo toma uma aspecto interessantíssimo, oferecendo um conjunto de feira.

46


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

É preciso notar que estes pontos são magníficos e salubres. A terra provando à saciedade a forma de uma vitalidade exuberante, como que está a pedir cultivo e trato. Alcobaça, lugar onde se projeta estabelecer o ponto de partida da futura estada de ferro, segundo me pareceu e segundo o que me informaram pessoas abalizadas é ponto pouco acertado. Principia por ser um lugar ermo e inconveniente, segundo disse o Dr. Parsondas de Carvalho. Demora do travessão dos Patos (o lugar de menor profundidade) sobre ripas escarpada, contornado de praias e a margem eriçada de recifes. Nem pode servir de ponto de partida como o fim da seção encachoeirada, nem para começo da estrada que a começar daí descreveria uma grande curva para chegar a Jatobá ou Itaboca. Faria uma curva cujo raio mediria dez quilômetros pelo menos. _____ Regressando ao Baião e em saudosa madrugada de lá partia novamente rio abaixo em uma cômoda montaria dirigida por vigorosos braços. Eram duas horas da madrugada. O espelho das águas refletia a pureza do espaço celeste e uma brisa meiga e refrigerante, rompendo as correntes aéreas de maiores alturas chegava até nós como doce alívio enviado por uma aurora que não tardaria a romper.

47


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Sob a tolda semiesférica havia uma espécie de leito, e sobre um chão estivado se estendera uma fina esteira de obim. Era este o meu cômodo na frágil embarcação. A maré vasava, o remar pouco facilitava a marcha e assim entre um sossego de ouro e uma paz magnífica, o barco deslizava airoso ao largo “rodando de borbulho” como lá se diz, impelido pela corrente. Os últimos reflexos da lua que se sumia no horizonte batiam em cheio na outra margem e a natureza sepulta em letárgico silêncio enviava-nos um ar impregnado de mil deliciosos aromas. Nossa alma ferida pelos efeitos nostálgicos do costume, sentia no entanto motivo de expansão. Decorreu assim algum tempo. Ao crepúsculo sucedeu finalmente o dia. O quanto de agradável encontramos nestas viagens durante a noite ou com a fresca das manhãs ou das tardes tanto mais têm de penosas e insuportáveis quando somos a fazê-las em pleno dia sob terrível sol e um calor de rachar. Chegada essa ocasião há porém um recurso – a sombra. Buscando-se como benefício lenitivo, depois de termos vencido boa distância até adiantada hora da manhã, entramos num igarapé, como se entrássemos numa gruta de verdura. 48


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Uma multidão de palmeiras partia da beira da água e daquela abóboda formada pela espessura das folhagens desprendiam-se numerosas parasitas e trepadeiras carregadas de flores, movendo-se em um balanço contínuo. Da emaranhada cúpula onde as trepadeiras entrelaçadas formavam lindíssimos arcos, caíam numerosas florzinhas que alastravam o lume da água, sobre a qual pequenos insetos zumbiam esvoaçando sempre. E como numa das noites de inverno aquela hora de fogo, a natureza parecia entregue a preguiçoso espasmo, os dois elementos terra e água se uniam numa igualdade pletórica, brotando dali milhares, aos milhões, insetos de todas as espécies. O igarapé encerra mil doçuras e delícias. Decorridas as horas de maior calor saía dali saudosíssimo. Pouco adiante tive ensejo de assistir à pesca do pirarucu, vastres cuvieru o rival do bacalhau. Pirarucu significa peixe pintado: pira – peixe; urucu – vermelho. O pescador mete-se na montaria ou pequeno barco e quando só rema na proa substituindo o companheiro pelo jacumã, remo que substitui o leme amarrado à ré. Evita fazer o menor ruído possível e em pé na proa apenas o percebe lança-lhe o itapuá, ferrão farpado. É necessário o emprego de toda a cautela para lograr bom êxito. Essa noite tinha eu de a passar de pouso em casa do primeiro habitante e assim à tardinha, vencidas algumas léguas, tratamos de procurar melhor descanso. 49


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

A construção das habitações nestes pontos é tunantemente artificiosa. O nosso barco acabava de encalhar numa praia de lama a respeitável distância da morada que tínhamos à vista, porque a maré estava baixa. Verdade é que cheia, a água invadindo quase toda a superfície da ilha, penetraria até a habitação e a canoa impelida pelos varejões iria facilmente unir-se à escada que dá acesso ao casebre ou à habitação. Para isto era forçoso esperar a enchente, o que seria intolerável mormente ao anoitecer em que o sereno nos poderia prejudicar a saúde. Para suprir tamanha falta, que é a da construção de um cais estivado como possuem os mais abastados, colocam, uns atrás de outros, troncos de enormes palmeiras (quase sempre meritis ou buritis), formando uma espécie de pinguela mais ou menos flutuante pela qual o bom equilibrista ganha num momento a habitação. Continuamente molhada e escorregadia, torna-se pelo contrário um precipício para quem não afeito se atreva à arriscada passagem. A falta de apoio é completa porque o tronco da palmeira, ele próprio parece flutuar sobre aquele terreno fofo, úmido e turfoso. Alguns empunham uma zinga e logram passar, porém, até que a vara seja suficientemente enterrada em tão abundante camada de lama e ganhe mais duro terreno, o tempo que decorre em tal tarefa dá lugar a uma pessoa esgotar a paciência e forças até que num momento infeliz, zás-trás, atola-se até pescoço.

50


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Ora foi justamente o que nos sucedeu, quando a poucos passos da tal habitação. Felizmente as consequências não foram de gravidade. Estas vivendas, que nos fazem lembrar as habitações lacustres da Suíça, são construídas sobre estacas cravadas no solo e acham-se rodeadas de silenciosos matagais. Durante horas cercadas de água por todos os lados, dá lugar a que os habitantes façam constante uso das igarités ou pirogas nas pequenas excursões, ou dos botes e ubás nas longas viagens. O chão estivado assemelha-se quase sempre ao de uma gaiola, e é composto igualmente com ripas escolhidas. As mulheres conservam-se ordinariamente nos fundos destas habitações, ocupadas nos misteres caseiros e dedicam grande parte do dia na fabricação de redes, em que são peritas e hábeis. Os homens fabricam paris e tapumes onde o peixe entra com a enchente e fica na vazante. As partes ocupadas pelos tapumes são assinalada nas extremidades da praia por cada morador, à montante e à jusante dela. Afora estes currais de peixe vimos outros completamente fechados dos quais os habitantes se servem para depositar jabotis. O jaboti, espécie de cágado, substitui nesta região o porco que aí é difícil de criar. O jaboti cresce, vive e engorda no curral. A sua carne é muito apreciada pelos habitantes do baixo Tocantins e por eles usada quase quotidianamente.

51


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Quanto às tartarugas são hoje raras no baixo Tocantins e quando aparecem vindas de pontos distantes são sempre vendidas por bom preço. Tive no entanto ocasião de ver alguns exemplares de uma espécie cujo tamanho é regular e de carne apreciadíssima. Creio tratar da “Emys Tracaxa”, de que nos fala Wappaens e que no Araguaia e alto Tocantins tem o nome de Caracajá. Os seus ovos são cilíndricos e semiesféricos nas pontas. Esta espécie de tartaruga não pode ser como o jaboti conservada nos cercados. A “Emys amazônica”, tartaruga grande ou Jurará-assu, sem dúvida das maiores de água doce é raríssima no baixo Tocantins. Devido à sua maravilhosa fecundidade é que estes quelônios são ainda encontrados no Amazonas, pois contam por inúmeras as causas do extermínio. O peixe que mais abunda no Tocantins é o Mapará, do qual tiram as classes menos abastadas grande proveito. Os processos de conservação são pouco conhecidos ou pouco usados e se não fora o pirarucu, que vem do Amazonas, salgado e preparado em quantidade, muito sofreria essa pobre gente durante parte do ano. Temos ainda como espécie superior e própria de uma boa mesa – o saboroso curimã, mas este é mais raro e vende-se por bom preço. O passadio no baixo Tocantins é mau e atribui-se isto à falta de lavoura.

52


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Usam os habitantes do Tocantins como em outros pontos do Estado do Pará, de uma bebida denominada açaí, bastante quente e substancial que apresenta uma cor escura roxo-mesclada. A calda de bacaba é clara e mais procurada pelos estrangeiros, questões de gosto porque os naturais preferem a primeira. O açaizeiro (Euterpe oleracia) e a bacabeira (aeno carpus bacaba) são duas palmeiras naturais desta região e nela mesma cultivadas ou conservadas. É das suas frutas maceradas que fazem as ditas bebidas. Durante as horas de maior calor usam também de seus refrescos a que erradamente dão o título de vinho de cacau. Nas ilhas do Tocantins não há criação de espécie alguma, fazendo-se uma única exceção relativa aos patos que ninguém cria, mas que se criam livremente. As galinhas são raríssimas e vendidas por preços fabulosos, assim como a carne de vaca que só aparece em dias santos a tempos quando algum negociante se resolve a mandar vir de Santarém ou das ilhas de Marajó algumas cabeças de gado, que é logo abatido por falta absoluta de pastos onde retê-lo. Nestas condições tanto a carne de vaca com a de porco são sempre más e de ínfima qualidade.

53


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Assim, pois, a vida nestas paragens apresenta-se sob comezinha forma, deixando muito a desejar, apesar de tanta grandeza e tão ricos e apreciáveis elementos de prosperidade. Se este estado latente se manifesta nas terras firmes e até mesmo nas ilhas como que menosprezando as riquezas virgens é todavia nessas ilhas que existe alguma animação e o comércio tem seus melhores representantes. A alma desta zona está nos seringais antigos e nos cacaueiros existentes, restos de plantações espalhadas à sombra de frondosos arvoredos, por gente do passado e que dão fruto sucessivamente a várias gerações. Os denodados cervos da ciência que abordam às margens destes grandes rios e se atrevam a transpor os sombrios átrios das florestas virgens, por elas internando-se, terão ainda muito que devassar após os lineamentos de um plano de estudo começado e não acabado. A parte hidrográfica desta região oferece vastíssimo campo de estudos aos investigadores da ciência. Sujeitos às inundações na maior parte do ano, os terrenos das ilhas apresentam particularidades notáveis. Quantas vezes me foi dado encontrar nas minhas excursões rio abaixo ou rio acima, baixos, dos quais se levantavam ainda pequenas extensões de terreno alguns palmos fora da água onde pareciam vegetar uns últimos arbustos que encobriam as ruínas de uma antiga choupana?

54


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Eram ilhas que desapareciam com o tempo nas degradações produzidas entre as águas. Nas grandes ilhas habitada do Tocantins, cultivar uma hora, vê-la florescer e chegar a um período de desenvolvimento aproveitável quase nunca passou de um mito. Certa ocasião visitando um amável amigo estabelecido no braço de Mendarucu, tive ensejo de conhecer uma pequena horta que o mesmo cultivava com o máximo cuidado ao lado de sua casa. Couves, alfaces, ervilhas, pepinos e outras espécies floresciam ali brilhantemente. Qual não foi pois o meu espanto quando voltando quinze dias mais tarde não encontrei nem ervilhas, nem couves, nem horta ou coisa que com tal se parecesse? A água uma noite invadira o terreno por tal forma, que deu em resultado a destruição de tudo que ali havia. No entanto é incrível a rapidez com que crescem as plantas nesta zona. Em vez de couves haviam arbustos de quase um metro de altura, arbustos sem valia, ervas e capim. Um ano de boa safra de cacau constitui para esta boa gente verdadeira felicidade. As colheitas dão-se de janeiro a junho. As frutas são apanhadas e transportadas em montarias até as habitações onde se faz a separação da semente (amêndoa) que é seca ao sol.

55


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

As cascas do preciosos fruto são aproveitadas na fabricação do chamado sabão de cacau, que não é ruim, mas cujo processo muito deixa a desejar. O cacaueiro (esterculiaceos) é um desses arbustos que florescem em vários pontos da zona tórrida, mas cujos frutos se não desenvolvem pela mesma forma. No Tocantins e terrenos alagadiços do Amazonas o cacaueiro prospera brilhantemente, evitando aos horticultores amiudadas capinas ou contínuos cuidados. Isto sucede sempre nas terras úmidas e pantanosas onde a planta floresce com suas irmãs nativas. Transportado o cacaueiro para outros pontos é simplesmente um arbusto vistoso e de pouca valia. Em minhas excursões pelos Estados da Bahia e Espírito Santo entendi-me muitas vezes com lavradores dos municípios de Itapemirim, Cachoeira, S. Felix, Caravelas e Feira de Santana os quais se mostravam evidentemente cansados pelas contínuas tentativas de que lançavam mão para conseguir êxito nas plantações. A planta cresce, prospera de maneira esplêndida, chega mesmo a florescer mas a respeito de frutos só um ou outro consegue vingar; e como o cacaueiro, plantas há que transplantadas fenecem sem descendência. Entremos por um momento neste ligeiro raciocínio e talvez que outros mais abalizados cheguem a estabelecer resultado.

56


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Suponhamos que em vista de fatos idênticos em outras plantas a flor do cacaueiro é invadida por um inseto que lhe extrai o néctar e lhe danifica os órgãos? Que fazer mesmo assim se o inseto, caso exista é desconhecido? Nas orquídeas sucede que cada espécie tem a sua espécie de inseto. A baunilha que pertence a essa grande família, transplantada para a Europa em 1793 pelo jardineiro Miller prosperou desde logo, mas para que as vagens chegassem a um desenvolvimento regular tornou-se necessário, por não se ter operado a fecundação na flor, sujeitá-la a um processo magnífico qual o de rasgar com um instrumento pontudo a delgada membrana. Esta operação é pois de grande utilidade e o que resta é saber se torna-se ou não aplicável neste caso. Todo o mundo sabe que um planta em geral privada dos raios solares apresenta as folhas amareladas e chega mesmo a encanecer, todavia o cacaueiro prospera onde haja sombra e umidade. Pois bem transportem a planta, receba ela a sombra em que se abriga a folhagem, enterrem-na num todo úmido e lamacento, cerquem-na de calor, receba a sua flor o pólen fecundo e então não mais talvez vê-la-emos fenecer sem descendência. Na Bahia a plantação e cultura do cacau é um fato consumado e ela se estende por quase todo o baixo vale do Jequitinhonha. As terras são ali vendidas a peso de ouro e fora da área que se adapta a tal cultura perdem tanto de estima quanto míngua o seu valor. 57


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

A borracha e o cacau em primeiro lugar são os dois elementos de riqueza e prosperidade atual do baixo Tocantins. Trato de riquezas em geral, pois que pessoas verdadeiramente ricas ou abastadas aí não existem. A seringueira, “syphonia elastica”, da qual se extrai o cautchuc ou a borracha, é uma árvore como todos sabem, não só produtiva, mas vistosa. A habitação em que pousamos durante essa noite é rodeada como todas as outras por espesso e frondoso arvoredo, entre o qual abundam magníficos representantes da nossa flora, sendo que muitas espécies ali nativas transportadas e replantadas na terra firme deixam de vegetar. Enumerá-las aqui e dar sobre elas desenvolvida notícia não nos é permitido fazer por falta de tempo. Em volta destas modestas habitações vemos apenas alguns pés de árvores frutíferas cultivadas e isto mesmo em muito limitado número. E, neste meio em que a vida é fácil, pode-se quase dizer que o direito de propriedade é um direito sem direito por que todos têm direito a esse direito. Uma falta é sempre suprida reciprocamente. Assim um limoeiro, por exemplo, fornece limões não só aquele que o plantou como àqueles que não o viram plantar. Uma espécie de comunismo latente abraçado por todos, uma franqueza fruída em conjunto natural, eis o que aí se nos depara.

58


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Quereis porém saber porque isto se dá nesta região? Dá-se pela uberdade do seu solo, porque uma simples semente lançada ao acaso em qualquer canto consegue brotar e de embrião a plantinha transforma-se rapidamente em uma planta frondosa, que vai dar sem custo milhões de frutos que não têm dono, mas dos quais todos são donos. No largo da matriz, em Baião, lembra-me perfeitamente de que há ali uma vistosa pimenteira que fornece pimentas a centenas de pessoas. E não são só os habitantes da povoação que as apanham, vão ali buscá-las de muito longe. Uma vez estando de passagem num sítio distante de lá três horas de viagem, lembrome de ouvir a dona da casa recomendar cuidadosamente ao portador que despachava para aquela vila, de que entre outras coisas não se esquecesse de levar-lhe um molho de pimentas da pimenteira do padre, como diziam por estar a mesma plantada nos lados da igreja matriz. Porque essa senhora não cultivava no seu sítio alguns pés de pimenta? Nem sei que responder. Eram quatro horas da manhã quando, aproveitando a enchente, deixamos o pouso e nos pusemos ao largo. Parece incrível a nudez com que se envolve a natureza nestes desertos de terra e água. Qual a hora de maior encanto para o viajante que não seja se não a do romper da aurora? O romper da aurora em pleno deserto, onde a solidão é

59


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

vagamente quebrada pelos matutinos gorjeios das aves e que produz no espírito dos poetas e pensadores impressões repletas de variados matizes. Se viver é gozar, o viajar é saber. Quem nasce numa triste aldeia e nunca dela se apartou durante algum tempo e aí tem o túmulo, não viveu. É como a sombra furtiva se mostra e furtiva se esconde. Ver é conhecer. Ler é aprender, base de uma certa definição sem mostras de real conhecimento. Neste momento o quadro que se nos descortinava tinha dois tons – beleza e solidão. Apenas uma ou outra garça volteava sobre o ar, cortado também por algum bando de ciganos, pássaros de plumagem escura que deixam após a sua passagem o espaço impregnado do catinguento fétido que exalam. Triste seria para nós, afeitos a tudo que é vida e movimento esta e outras digressões se não fossem os constantes golpes de vista que víamos dilatarem-se em nossa frente. Às vezes ao tomar um atalho (furo) por entre aquela aluvião de ilhas de todos os tamanhos, a canoa deslizava-se quase levada pela corrente, como uma casca de noz impelida pelo vento. As horas passavam e na vastidão das águas tive ocasião de notar que numerosas ilhas e farelhões flutuantes desciam com a correnteza. São nacos de terra, tronco e raízes de árvores, ramos e folhas que emaranhados se

60


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

desprendem com as cheias e de muito longe vêm deslizando sobre as águas até se sumirem no oceano. Chegou o momento da enchente, estamos encalhados num igarapé à espera da vazante. Os canoeiros são muitos bons, amigos de servir, afeitos aos contratempos e tudo suportam com uma única exceção e essa é tradicional não remam contra a maré, como se expendem. Remar contra a maré é para eles o maior de todos os contratempos e quem mentalmente os quiser induzir a fazê-lo, experimente e verá. Fogem e não voltam ao serviço. Para outro mais dado à inércia estas horas correriam descuidosas, mas prezando-me de diligente, encontrei logo um valioso motivo de distração e estudo. O ponto em que nos achávamos enfrentava com uma dessas vivendas que já tentei descrever. Perto de alguns açaizeiros e num sítio disfarçadamente elevado vegetava um arbusto à primeira vista sem valor e cujo cultivo acabou por chamar-me a atenção que nome lhe davam, qual o proveito que de sua cultura podia advir, foram coisas que logo tratei de indagar. Com grande satisfação ouvi citar o dito vegetal, denominado ipadu, e que havia tempo almejava conhecer.

61


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

O ipadu é nada mais nada menos que a coca do Peru, “Erythroxillon Coca”, cujas folhas mastigadas anestesiam a mucosa do estômago, sustentando as forças de quem delas usa. Em todo o baixo Tocantins é este vegetal cultivado em pequena escala pelos habitantes, que dele usam desmedidamente. Tratei logo de adquirir um punhado de folhas; o que facilmente consegui. O distinto diretor do Museu Nacional, Dr. Ladislau Netto aconselhou em tempo o cultivo deste vegetal nas cordilheiras dos Órgãos e Mantiqueira, antevendo ótimos resultados, desde que fossem estabelecidos nos centros de cultura laboratórios destinados à preparação do respectivo alcaloide. A aclimatação deste vegetal nessas paragens, talvez não fosse difícil, podendo-se até tornar uma fonte de riqueza. É ocasião pois de certificar, do que muito me ufano, que a descoberta de tão útil vegetal no Tocantins é a mim devida, embora seja isso público desde então. Enviando algumas amostras ao ministro da agricultura, ordenou S. Ex. por ofício ao presidente do Pará, a que mandasse proceder às devidas indagações e exames que deram em resultado a certeza de que a coca do Peru era de há muito cultivada pela gente rústica do baixo Tocantins. * *

*

Continuando a viagem, nesse mesmo dia chegamos a Cametá, cidade colocada na margem esquerda do Tocantins, a 78 quilômetros da sua foz e a 180

62


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

L. O. da capital do Estado. Tem trezentas e oitenta casas melhores, sendo 16 sobrados e um cais por acabar com uns oitocentos metros de extensão, incluída a parte canalizada. O local em que se acha edificada foi antigamente ocupado por uma aldeia de índios. Sua população é de três mil habitantes. Tornou-se notável esta cidade desde 1637 por ter sido daí que partiu nessa data para o Peru o audaz Pedro Teixeira. Cametá tem sido berço de vários homens ilustres e que deixaram nome na história pátria. Todos eles pelo costume do tempo formados em teologia chegaram a salientar-se nobremente, ocupando cargos dos mais elevados no país. Cametá contava nesta época quatro igrejas, trinta lojas ou armazéns de fazendas e molhados de primeira ordem, duas farmácias, dois hotéisrestaurantes, dois salões de bilhares, três ditos de barbeiro, uma oficina de encadernação e outras de várias espécies. A respeito de fábricas só uma, e esta, de foguetes. O edifício da câmara ou intendência municipal acha-se colocado no centro de uma espaçosa e deserta praça. A cadeia estava no pavimento inferior desse prédio e o júri funcionava no salão da intendência.

63


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Instituída por cidadãos esclarecidos e patriotas aos quais se devem outros melhoramentos, temos a biblioteca do Grêmio Literário que contava já três mil volumes. Residiam em Cametá um médico e três advogados. Temos ainda ali duas farmácias, uma drogaria, três escolas públicas e duas particulares. A imprensa é representada ainda hoje por dois jornais de publicação hebdomadária – A Reação e o Comercial. A Rua denominada Porto Real era em parte formada por um chão estivado sob o qual a água provocava contínuos estragos nos alicerces dos prédios o que poderia ser evitado se ali se procedesse a um aterro de uma a outra extremidade. É bem provável que a esta hora conte a cidade mais este melhoramento assim como o de melhor iluminação que então muito deixava a desejar. Passados alguns dias depois da nossa chegada pela segunda vez a Cametá sentimos desvanecerem-se completamente os receios que nutríamos com relação a febres e maleitas, continuando graças a mil cuidados e precauções a gozar regular saúde. Pouco conhecedor ainda dos hábitos dos paraenses, levava uma vida algo reconcentrada. Às vezes, aproveitando a fresca das manhãs fazia pequenas excursões no perímetro da cidade e até certas horas do dia empregava-me tranquilamente em meus afazeres.

64


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

O apetite sob a influência só aparece tarde e quanto a passadio, sempre mau e mesmo muitas vezes o dono do hotel dizia-me de manhã não saber que dar durante o dia aos seus hóspedes. Ora a carne verde que deixava de haver por falta de gado aos fornecedores, ora o peixe que não aparecia à venda e assim tudo o mais. Muitas vezes vi-o impaciente voltar ao hotel depois de gastar horas e horas a percorrer todos os recantos da cidade em busca de uma galinha ou de uma dúzia de ovos que não encontrava e quando sucedia dar-se por feliz nunca lhe custava a galinha, embora magra e de má qualidade menos de quatro mil réis. Daí para cima sempre. Então para desabafo da sua indignação, banhado em suor, voltava-se para mim dizendo: – Esta ave custou-me quatro mil réis, depois de morta e preparada dá para oito pratos, vendidos ao preço da tabela de 500 rs. cada um, quanto posso vir a ganhar? Nada... e o trabalho, o tempo? O pobre hoteleiro tinha carradas de razão. – Mas em que se emprega esta gente de baixa classe, da qual devem provir as partes rudimentares de que se forma o pequeno comércio?

65


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

– Em coisa alguma. Tocam viola, dão à língua, falam da vida alheia e dormem a maior parte do tempo. São ociosíssimos os filhos da nossa terra. Esta gente não tem ambições, alimenta-se diariamente com algum pedaço de pirarucu, açaí e bebe cachaça ou água do rio quando não tem aquela. Lavoura, nem pensam nisso, e sem ela, sem o milho ou grão não há com que sustentar galinhas, porcos, ou outra qualquer espécie de criação. Patos há bastante, dão pouco trabalho, criam-se no rio, onde mariscam livremente. Os seringais mais próximos estão estragadíssimos e a respeito do cacau durante as boas safras os que têm cacauais colhem a fruta que podem antes que ela apodreça, e os que se não julgam proprietários vão chamando a si quanto podem e afirmando que o sol fez-se para todos e a terra também! Isto é claro como clara é a água do Coriman. Eu que tenho viajado por quase toda a América do Sul, não posso me admirar deste estado de coisas. Temos visto muito coisinha melhor, e muito pior. *

*

*

As condições telúricas e climáticas do baixo Tocantins e do Amazonas são mais ou menos idênticas. Há épocas em que as febres palustres e de mau caráter reinam em vários pontos com alguma intensidade, mas o que é certo e averiguado é que nenhuma moléstia aparece com feição endêmica.

66


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Devido ao clima quente as meninas desenvolvem-se rapidamente e aos treze anos, algumas aos doze, estão consideradas em vésperas de casamento. São flores que com a mesma rapidez com que despontam belas e viçosas, também logo desabrocham sob as ardentes carícias daquele sol tropical. Apesar do clima e da rapidez com que se envelhece, vê-se que em geral como velho vive-se ainda longos e longos anos, pois os casos de longevidade são inúmeros. Ainda há pouco vi uma notícia em um jornal dali que dizia haver falecido em Cametá um velho de cento e vinte anos de idade! e logo depois Guiomar Simões e Inês, uma com noventa outra com noventa e cinco anos de idade. Bem se pode dizer que estes esticaram a vida como a borracha da sua terra. * *

*

Deixando a formosa rainha do Tocantins, parti um belo dia a bordo de um dos vapores da Empresa Marajó e Tocantins, com destino à capital do estado. Eram quatro horas da tarde. O calor diminuía sensivelmente e o espaço conservava uma cor de azul desmaiado. Entrevíamos à nossa esquerda a terra firme monótona, carregada de arbustos sombrios, enquanto que para qualquer dos outros lados um deserto de água semeado de ilhas cobertas de palmeiras, de matos espessos e impenetráveis.

67


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Soprava uma brisa tíbia de uma amenidade refrigerante. Sobre nós uma imensidade azul mesclada de tênues nuvens brancas como neve, um céu repleto de luz e de calor. À boca da noite passamos em face da vila do Abaeté, no igarapé Maratanira, cujos fundos das casas debruçadas para o rio tiram toda a vista que se possa desfrutar de bordo. Esta vila é pequena e sem edificação alguma notável e o seu aspecto triste e sombrio. Sentiu-se aí um tremor de terra em 4 de agosto de 1885. Outrora houve uma tipografia onde era publicado o Abaetense. A população orça por mil habitantes. É o único ponto agrícola do baixo Tocantins, mas a agricultura longe de ter recebido incremento, nos últimos anos tem definhado sensivelmente. Ao amanhecer do dia seguinte passamos à vista de Marajó (arquipélago de Marajó, que muitos julgam ser uma única ilha) singrando o vapor as águas da foz do majestoso rio.

68


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

69


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

A CONFERÊNCIA NA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE LISBOA

70


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

A efetivação do projeto cultural de Oscar Leal esteve em grande parte concentrada em Lisboa. Por várias décadas ele viveu no périplo entre a capital portuguesa e o Rio de Janeiro, lugares de onde partia para suas viagens pelo Brasil. Mas, invariavelmente retornava para Lisboa, daí se deslocando para a Ilha da Madeira, para visitar a família, ou novamente viajando para o exterior, seja para outros países europeus ou para a África. Em 1894, ele fixou definitivamente sua residência no âmbito lisbonense e aí produziu dois de seus grandes planos editoriais, com a publicação de A Madrugada e a Revista de

Lisboa. Além disso, praticamente todos os seus livros foram impressos e chancelados por livrarias/tipografias/editoras lisboetas. A metrópole lusitana era também a sede de grande parte das instituições científicas e acadêmicas as quais Leal pertenceu no contexto europeu, sendo uma delas a Sociedade de Geografia de Lisboa. A aproximação de Oscar Leal com a Sociedade de Geografia de Lisboa deuse quando a instituição já estava consolidada, existindo por quase dois decênios. O nascimento da entidade ocorreria no contexto das tantas conferências internacionais e da fundação de sociedades de geografia ainda mais antigas, em várias cidades como Paris, Berlim, Londres, Viena e Roma, bem de acordo com o projeto imperialista. O pressuposto básico era a promoção de um melhor conhecimento para o aprofundamento das conquistas territoriais. Uma das regiões mais visadas para tal expansionismo era a África, continente no qual Portugal ainda tinha interesses concretos, mormente quanto à manutenção de seus territórios coloniais. Foi nesse ambiente que surgiu a proposta de criação

71


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

da Sociedade de Geografia de Lisboa, visando a “promover e auxiliar o estudo e progresso das ciências geográficas e correlativas, no país”, assim como “agremiar os esforços e realizar as aspirações de inúmeros estudiosos”, ligando “o país ao convívio científico do mundo civilizado” e ainda “avocar a luz e a justiça da crítica moderna por mais este laço simpático de tão necessário e tão interessante cultivo das ciências geográficas”16. A entidade foi instituída em 1875 e sua organização estatutária a definia como uma “sociedade civil de estudo, discussão, consulta, cooperação e propagação científica e patriótica”. Dentre seus fins, estavam o de promover “o estudo e conhecimento da geografia nos seus diversos ramos, princípios, relações e progressos”, bem como de realizar “o estudo e o conhecimento especial da geografia, da história e da etnologia portuguesa”. Pretendia ainda estabelecer “a demonstração científica do lugar de Portugal na história da civilização, e em especial, na história da geografia, da navegação e do comércio”, como também “a reivindicação histórica dos seus direitos e da sua individualidade independente e soberana17. A Sociedade de Geografia de Lisboa visava igualmente à “colheita, discussão e vulgarização de notícias e documentos” que fizessem “mais e melhor conhecidos os territórios e povos incluídos na soberania ou influência AIRES-BARROS, Luís. Os 140 Anos da Sociedade de Geografia de Lisboa. In: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-2015 – 140 anos. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 2016. p. 5-7. 17 PEREIRA NETO, João Baptista Nunes. Luciano Cordeiro no Contexto da Época da Fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa. In: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa , Série 133 – Nos. 1-12, jan. – dez. 2015, p. 18-19. 16

72


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

de Portugal, fora da Europa”; além de realizar “o estudo e a consulta dos meios de melhorar, aproveitar e desenvolver as forças e recursos naturais e econômicos de Portugal e, especialmente dos seus domínios ultramarinos”. Havia também o cuidado com “o estudo e auxílio das colônias portuguesas existentes em país estrangeiro, no sentido de nelas conservar, fortalecer e desenvolver”, e nelas “fazer servir e honrar, a tradição, o sentimento e os interesses da nacionalidade portuguesa”. A instituição admitia, “congregando e incorporando nela, os indivíduos nacionais e estrangeiros” que pudessem e quisessem “cooperar e contribuir para os fins sociais”. Poderia também fundir “em si, no interesse do desenvolvimento e na facilidade no trabalho e na cooperação

científica

nacional,

quaisquer

instituições,

sociedades,

ou

agremiações portuguesas de estudo ou de diversão instrutiva”, através de associação ou confederação18. Desde a sua edificação, houve o manifesto “interesse da Sociedade de Geografia em impulsionar as explorações científicas”. No ano de 1880, ocorreu a integração com a Comissão Central Permanente de Geografia, com o escopo de “organizar expedições científicas, coligir exemplares e documentos que interessam ao desenvolvimento e aperfeiçoamento da geografia, da história etnológica, da arqueologia, da antropologia e ciências naturais” no que tange “ao território português, mormente das possessões”, promovendo e auxiliando

PEREIRA NETO, João Baptista Nunes. Luciano Cordeiro no Contexto da Época da Fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa. In: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa , Série 133 – Nos. 1-12, jan. – dez. 2015, p. 19. 18

73


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

“quaisquer trabalhos referentes a essas ciências” e propondo “ao governo, todas as providências tendentes a tornar mais e melhor conhecidas aquelas vastas e importantes regiões”19. A entidade se propunha a “explorar cientificamente, os diversos ramos, princípios, relações, descobertas e progressos da geografia”, ficando evidente “a necessidade da aplicação prática dos resultados entretanto obtidos, tanto em ambiente metropolitano como ultramarino”. No intento de atingir suas finalidades, a Sociedade deveria “organizar congressos científicos, conferências, cursos livres, sessões, concursos, corresponder-se com outras instituições científicas”. Os idealizadores da instituição buscavam “cumprir um dever para com a ciência, mas também para com a pátria”, de modo que “pretendiam ligar o país ao ‘convívio científico’ do mundo civilizado ao cultivar as ciências geográficas”, além de tentar “dissipar as críticas e a imagem negativa que o país tinha no exterior”. Eles tinham “a convicção de que seria possível educar e instruir através de exposições – nacionais, universais, internacionais ou mesmo coloniais –, trocar ideias comparando experiências técnicas e científicas” e mesmo “permutar coleções científicas entre museus”20. Os propugnadores da Sociedade de Geografia de Lisboa “acompanhavam o movimento que na época multiplicou sociedades congêneres, conscientes de AIRES-BARROS, Luís. Os 140 Anos da Sociedade de Geografia de Lisboa. In: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-2015 – 140 anos. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 2016. p. 8. 20 CANTINHO, Manuela. O espólio cultural da Sociedade de Geografia de Lisboa: a Biblioteca, a Cartoteca, a Fototeca e o Museu Etnográfico e Histórico. In: Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-2015 – 140 anos. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, 2016. p. 19-20. 19

74


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

que o saber é uma componente da soberania, indispensável para salvaguardar os interesses nacionais”, notadamente quanto a melhorar, aproveitar e desenvolver as forças e recursos naturais e econômicos” do país e de seus territórios coloniais. Assim, a entidade “sustentou uma filosofia” que promovia a mobilização do “saber, enriquecendo o sentido nacional”, por meio de “atividades cientificas e culturais, nos domínios da história, da antropologia, da arqueologia, da geografia”21. Ao atuar em prol das “explorações coloniais” e “na defesa dos direitos históricos de Portugal”, a Sociedade admitiu em “seu seio muitos e variados domínios do conhecimento”, variando “desde os das ciências ditas exatas (por exemplo a cartografia, designada, vulgarmente, por engenharia geográfica), aos das ciências naturais, aos das ciências sociais, às literaturas e artes”22. A instituição viria a considerar “que havia a necessidade urgente das autoproclamadas elites assumirem uma responsabilidade ética e cívica, face a um perturbador panorama de subdesenvolvimento”, além “de uma patente incapacidade política, ensaiando uma proposta de fazer convergir as partes com peso no meio social e intelectual, no sentido de Portugal poder emparceirar-se com as nações mais avançadas daquele tempo”. Nessa linha o “poder da ciência, da cultura, da educação” e “do conhecimento”, ficariam “aliados ao poder MOREIRA, Adriano. A Sociedade de Geografia e o Conceito Estratégico Nacional. In: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 133 – Nos. 1-12, jan. – dez. 2015, p. 12-13. 22 AMARAL, Ilídio do. O papel da Sociedade de Geografia de Lisboa na delimitação das fronteiras das antigas colônias portuguesas em África e de Timor In: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 133 – Nos. 1-12, jan. – dez. 2015, p. 49. 21

75


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

econômico e financeiro, ao da informação” e ainda ao “poder de influência dos homens ligados à indústria, ao comércio”, ao capital financeiro, “ao aparelho do Estado, às forças armadas, aos jornais, à magistratura, à diplomacia, ao ensino, à saúde”, entre outros, em um “esforço conjunto de promoverem, pelo seu prestígio pessoal, a elevação do debate e o apuramento de soluções adequadas, para tirarem o país do atraso a que estava condenado”23. Em tal conjuntura, o trabalho intelectual de Oscar Leal em muito se coadunava com os princípios e as ações da Sociedade de Geografia de Lisboa, ainda mais na perspectiva do “movimento cultural e científico que pretendia conhecer as terras ainda inexploradas ou mal conhecidas em toda o ecúmeno” Somava-se “à curiosidade científica a vontade de estudar as sociedades indígenas e, também, o desejo de encontrar novos produtos”24. Regiões longínquas e pouco conhecidas, as populações indígenas e as potencialidades econômicas daqueles rincões eram temas recorrentes nos estudos de Oscar Leal sobre o Brasil e, mais tarde, a respeito da África. Foi nesse âmbito que ocorreu o ingresso de Leal na Sociedade e a conferência “O Amazonas”, proferida a 9 de novembro de 1894 e publicada no mesmo ano, no formato de um livreto, pela lisbonense Tipografia Minerva Central. FONSECA, João Abel da. A Sociedade de Geografia de Lisboa e as explorações geográficas de Angola à contra costa. In: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 133 – Nos. 1-12, jan. – dez. 2015, p. 80. 24 FARINHA, António Dias. O valor do Boletim da Sociedade de Geografia para a História de Portugal. In: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 133 – Nos. 1-12, jan. – dez. 2015, p. 120. 23

76


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

77


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

78


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

- brasão da Sociedade de Geografia de Lisboa -

A realização da conferência foi divulgada pelo periódico republicano lisboeta O Século25, informando que à palestra compareceu “um numeroso auditório”, uma vez que a região abordada “tanto desperta o interesse dos 25

Citado por: A MADRUGADA. Lisboa, 18 nov. 1894, a. 1, série 1, n. 2, p. 3.

79


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

viajantes”. O periódico descrevia que a fala iniciara pela descrição das “belezas incomparáveis da região amazônica, as suas fantásticas paisagens, as suas admiráveis quedas de água e as suas deslumbrantes montanhas bem como os usos e costumes dos seus habitantes”. Era enfatizada a atuação de Oscar Leal como “explorador”, que conheceu in loco os lugares apresentados, bem como as asserções do palestrante a respeito dos progressos ocorridos no Brasil após a implantação da nova forma de governo, em consonância com os princípios antimonárquicos tanto de Leal, quanto do Século. Nesse sentido, a folha lisbonense colocava em destaque o “desenvolvimento que a assistência pública” tomara no Pará, depois de 1889, e no mesmo sentido, quanto a Manaus, repercutia a fala do conferencista, o qual salientava “a importância e os progressos que tem feito depois da proclamação da república” pois a mesma teria trazido “ao Brasil um desenvolvimento e uma prosperidade nunca sonhadas”, colocando o país “na vanguarda das nações da livre América”. O periódico português ainda deu relevo aos segmentos da palestra sobre a carestia de vida em Manaus, “a indolência do trabalhador indígena e a falta de braços para a agricultura, dando como causa destes males o erro de se terem aberto os conventos e permitido o estabelecimento de congregações religiosas”. Complementava ainda que o conferencista, junto de “notas descritivas, apresentou dados estatísticos de grande valor”, passando após à “interessante descrição da vida dos indígenas”, referindo-se “à tribo dos cocamas, apresentando uma curiosa coleção de colares, feitos de dentes de macaco, de penas de variegadas cores e de contas, que os indígenas obtém pela troca de

80


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

produtos naturais com os europeus”. Descrevia a folha que Leal ainda apresentara “grande número de pulseiras, turbantes e outros adornos com que aquele indígenas se enfeitam”; além de ressaltar que aquilo “que sobremodo despertou o interesse dos assistentes foi a apresentação da cabeça de um indígena da tribo dos huambizas”. O jornal explicitava que, segundo “o conferente, estas cabeças se obtém com grande dificuldade, porque os seus possuidores as usam como relíquias sagradas, servindo-lhes como que de ídolos”, de modo que só seria possível obtê-las “pela troca de objetos que tenham pelo menos o valor de 20 libras”. A narrativa jornalística dizia ainda que Oscar Leal descrevera “a sua viagem através desta região, tão pouco conhecida, viagem cortada por variadas peripécias, mais extravagantes umas e perigosas outras”. O Século concluía que a “preleção foi deveras interessante”, de maneira que o palestrante “foi muito cumprimentado”, lamentando “que a falta de espaço” não permitira que fosse dado “da sua bela conferência um extrato tão desenvolvido como seria para desejar”. A conferência de Oscar Leal, que se transformaria em mais uma de suas obras, O Amazonas, caracterizou-se como um misto de trabalho científico e narrativa de viagem.

Ao saudar o público, ele enfatizava que nas reuniões

científicas, o prestígio se conquistava pelo estudo, o que o animava, tendo em vista os esforços que empreendera na execução das excursões que lhe permitiram a realização daquela fala. Mantendo a sua recorrente falsa modéstia, o palestrante dizia que o seu trabalho era “rudimentar e pobre como peça científica ou literária”, mas que, mesmo assim, suas “notas e descrições”

81


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

levariam a “conhecer essa região amazônica”, sobre a qual “ainda há muito que dizer e que contar” e que poderia ser reconhecida como “a mais bela região hidrográfica do mundo”. Como era padrão nos trabalhos de Leal e estava de acordo com os interesses da entidade que promovia a palestra, o fulcro da fala estava em narrar a exuberância natural da região enfocada, ressaltando as potencialidades de exploração econômica que ela poderia proporcionar. As estruturas hidrográficas, as características das localidades no entorno e as condições socioeconômicas foram os temas mais recorrentes. Além da região amazônica brasileira, o conferencista explicitava que ultrapassara a fronteira nacional e levara sua expedição até o Peru, país no qual, além das condições naturais e das riquezas, deu destaque aos usos e costumes indígenas. Assim como em outras oportunidades, o escritor não deixava de adjetivar pejorativamente setores das populações locais, explicitando o que considerava como a “ociosidade sem limites”, que trazia como resultado a pobreza e uma “vida tristíssima”. Em outra ocasião, se referia a uma “corrente preguiçosa e indolente”, que atravancava o desenvolvimento, o progresso e, enfim , o avanço da civilização. Sobre uma das ideias então em voga, a respeito da importação de mão de obra chinesa, Leal se mostrava peremptoriamente contra, pois tinha convicção de que a melhor solução seria o imigrante europeu. Como alternativa, ele apresentava uma proposta bastante sui generis para a época, ainda mais com os precedentes históricos que tanta mortandade provocaram, com a utilização das populações indígenas como força de trabalho. Nessa linha, sugeria que se o

82


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

governo necessitava “de braços, de gente que se possa tornar apta para o serviço de lavoura e apropriada ao clima”, deveria mandar “arrancar do seio das florestas os milhares de pobres indígenas, que lá têm permanecido em plena barbaria. Ressaltava que, assim, “debaixo de carinhoso ensinamento, de proteção, de agasalho, de conforto e sujeição, o selvagem”, descrito como “mau, traiçoeiro, imprestável”, poderia tornar-se “um individuo prestante e o pai talvez de grandes cidadãos no futuro”, ressaltando que se tratava “de catequizar e não de escravizar”. Bem de acordo com o espírito cientificista e o intento de atuar como naturalista, o próprio conferencista dava relevo ao seu “espírito investigador”, enfatizava o papel da ciência, citava vários pesquisadores e estudiosos e desenvolvia uma fala que aglutinava conhecimentos de áreas variadas como a geografia, a economia, a etnografia, a antropologia e até a linguística, tanto que, ao final do livreto incluiu um estudo sobre a linguagem de uma tribo indígena. A respeito dessa ação do naturalista, Oscar Leal relevava a importância da pesquisa de campo, explicando que “o homem civilizado que quiser conhecer os segredos das naturezas virgens, tem necessariamente de deixar o conchego do lar e aventurar-se”, do mesmo modo que faziam “os sábios e exploradores, ou simplesmente os forasteiros teimosos por inclinação e gosto, a cujo número pertenço”, em clara manifestação, mais uma vez, de sua falsa modéstia. Em plena consonância com as entidades científicas que então proliferavam, como a Sociedade de Geografia de Lisboa que sediava a conferência, Leal deixava claro que “das minhas investigações posso concluir que

83

são em abundância as


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

riquezas naturais e bem mal conhecidas ainda”, de modo que “cada nova exploração põe a descoberto coisas antes desconhecidas, o que faz crer com justa razão, que tudo excede o que pode alcançar a nossa imaginação”.

84


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

- O Amazonas Conferência realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa em 9 de novembro de 1894 pelo Dr. Oscar Leal26

É grande, meus senhores, a comoção que agita o meu ser, ao ver-me diante de tão ilustre auditório, ao qual tributo respeito e admiração. Uma coisa, porém, desde já vos declaro – é que se o atrevimento é grande, a vontade de ser útil à pátria, torna-me audacioso, mas convicto de que cumpro o meu dever. A alta ideia que me inspiram as reuniões científicas, onde o prestígio se conquista pelo estudo e se impõe pela franca exibição dos troféus conquistados no campo da luta a tanto me anima. Sinto deveras não ter palavras com que exprimir a minha gratidão pela benevolente atenção que principiais a dispensar-me neste momento. Como ides ver, o meu trabalho é rudimentar e pobre como peça científica ou literária. São notas e descrições de uma região muito extensa, quase despovoada, se bem que muito rica em produtos naturais ainda mal explorados, cortada de largas vias de comunicação fluvial, de clima variado, mas em geral quente e possuindo terrenos férteis que deverão ser de grande valor para o futuro da humanidade, como já disse abalizado escritor. 26

LEAL, Oscar. O Amazonas. Lisboa: Tipografia Minerva Central, 1894.

85


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Vou, pois, tentar dar-vos a conhecer essa região amazônica, sobre que ainda há muito que dizer e que contar. *** A região amazônica tem sido estudada e visitada por iminentes homens de ciência, tais como Humboldt, La Condamine, conde de Castelnau, d’Orbigny, Martius, Smith, os brasileiros Barbosa Rodrigues, Torquato Tapajós, Moreira Pinto e muitos outros que seria longo citar; entre os quais um grande número de exploradores que com seus estudos e investigações têm engrossado o cabedal de conhecimentos, que se encontram impressos em diferentes idiomas, tornando conhecidas as buscas e descobertas feitas na flora e na fauna, clima, topografia e navegação. Muito pouco pude, com certeza, ajuntar ao que têm escrito homens tão ilustres, porém, embora sejam fracos os meus esforços, deles resultará talvez que alguma coisa faça, tornando conhecida de vós ainda mais esta zona, que bem se pode denominar a mais bela região hidrográfica do mundo. O fenômeno da condensação que se produz pelas águas meteóricas, tem sua origem ali nas nuvens formadas pela evaporação dos mares, que se vão despedaçar de encontro aos Andes. Condensados

os

vapores

levados

pelos

ventos gerais, deles

se

desprendem levadas de água que vão formar diversos vales e rios cortando inúmeras extensões e que se reúnem antes de alcançarem o Oceano Atlântico.

86


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

O Amazonas e seus afluentes banham uma imensa região, cujos terrenos de aluvião estão cobertos por uma vegetação espessa e muitas vezes quase impenetrável e sob a qual a vida orgânica se desenvolve rápida e brilhantemente. Entra-se no Amazonas, deixando a capital paraense, pelo canal de Tagipuru e não pelo canal de Bragança, que não é mais do que a boca do Tocantins. Muitos geógrafos têm chegado a afirmar que este último rio é um simples tributário do Amazonas, todavia o engano é palpável. As águas do Tocantins correm independentes pela orla meridional do arquipélago de Marajó, ao passo que as do Amazonas banham a orla setentrional do mesmo, sem que entre elas se estabeleça a menor confusão. Pelos canais de Tagipuru e Breves, o Amazonas é que envia uma pequena parte de suas águas que se unem às do Tocantins nas baías de Melgaço e Breves. Os leitos dos dois grandes rios estão à distância de quarenta léguas um do outro. Completa a separação o arquipélago de Marajó, que veda a permissão de ambas as águas. Finalmente a união delas só tem lugar com as do oceano. Da mesma forma se tem acreditado que Marajó seja simplesmente uma ilha, quando é um dos maiores arquipélagos do globo. Conta cerca de duas mil e tantas ilhas separadas por canais e formando um conjunto isolado completamente de terra firme pelo canal Tagi-puru e pelos dois grandes rios. Na maior das ilhas, como informo em uma das minhas obras de viagens, há campos vastíssimos onde se cria gado bovino e cavalar. As marés dos

87


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

pinilúvios chegam a cobrir quase todos os pontos e fazendo-se um estudo verse-á que ainda estão no seu período de formação. É até crível que século atrás ali existisse apenas um grande baixio e mais tarde uma praia sobre a qual fossem parar lias e sedimentos levados pelas marés e pelas águas dos dois rios, originando o seu volume gradual e secularmente. Isto assim parece, pela existência de outras pequenas ilhas que se vão formando ao redor do mesmo arquipélago. Nestas paragens o calor é mitigado pelas brisas marítimas. Antes de passar a tratar do Amazonas devo dizer alguma coisa sobre a bela e rica cidade de Belém do Pará, empório desta vastíssima região e cujo grande progresso é recente e depois da proclamação da república no Brasil. Banhada pelas águas da baía de Guajará, esta cidade parece delas sair, sentindo a palpitação da grande artéria fluvial no mais profundo do seu leito. Não se parece com o porto, nem com Lisboa, nem com Veneza, Nápoles ou qualquer outra capital europeia. O Pará é puramente, essencialmente

uma

cidade americana, parecendo a certa horas do dia em que o calor equatorial aí se faz sentir com mais intensidade, entregar-se a delicioso espasmo, passadas as quais o movimento e o bulício se fazem sentir, denotando aos olhos do viajante extasiado a grandeza do seu progresso sempre crescente e que aumenta ano a ano, dia a dia.

88


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

O seu horizonte é amplo e descortinado, as suas ruas e praças calçadas de madeira são belas e asseadas, as suas avenidas e bulevares em contrário das que dividem o centro das grandes praças europeias conduzem a lindos arrabaldes, avenidas orladas de encantadoras vivendas, de chalés e chácaras silenciosas e sombreados os seus trottoirs espaçosos por gigantescos vegetais, que dão uma nota bem viva ao forasteiro dos esplendores da flora equatorial. Passeios de asfalto e de cimento, jardins públicos sem gradeamento, entregues ao cuidado do povo que os frequenta nas horas de descanso, um teatro e uma catedral, talvez superiores aos melhores edifícios deste gênero existentes em todo o país; assim como muitos outros que seria longo citar, tornam esta cidade digna de ser visitada. Não faltam ali riquíssimas casas de modas e objetos de luxo, magníficos restaurantes e hotéis, como os não há iguais em Pernambuco e Bahia, principais cidades do norte do Brasil e superiores ao Pará somente em população. Pouco mais de cem mil habitantes possui a bela cidade paraense e conhecer-se-á quanto é grande o seu progresso, se se lembrar que há vinte anos passados a sua população era inferior a cinquenta mil. Confeitarias, restaurantes de luxo, carros de praça, mictórios públicos, estátuas e muita coisa mais que não existe naquelas outras cidades, há e de sobra na bela capital paraense. Entre os estrangeiros, salientam-se as colônias italiana e portuguesa como mais numerosas.

89


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Brevemente o Pará deve ser iluminado à luz elétrica, como muitas outras cidades dos Estados de S. Paulo e Rio de Janeiro já gozam desse importante melhoramento. A respectiva empresa já deu começo aos seus trabalhos. Atualmente há ali três mil prédios em construção, sendo para notar que nos últimos três anos a vida tem-se tornado caríssima, e um homem de posição regular, não pode viver decentemente com menos de quinze a vinte mil réis fracos diários. No entanto, aí onde a vida é cara, onde se sofre os rigores do clima, além das moléstias endêmicas que têm desaparecido quase completamente nos últimos anos, com as medidas de saneamento postas em execução, ninguém no Pará morre de fome, ninguém morre na via pública e, nesta, raras vezes se vê um pobre estender a mão para pedir uma esmola. Quando infelizmente, isso se dê, é para notar que o desgraçado (felizardo?) é estrangeiro e muitas vezes especula com a caridade pública, que lá é pródiga e de mãos largas. A este respeito devo dizer-vos que no Brasil raras vezes se vê um cidadão em dias adversos de sua existência chegar a pedir esmola. O brasileiro sofre calado, mas é soberbo e tem nariz; não estende a mão porque além da humilhação julga molestar aqueles que não têm culpa dos males da humanidade. Se é pobre, se ainda neste dia não almoçou nem jantou, por falta de meios, mas se em todo o caso tem no bolso um tostão, é capaz de dá-lo muito generosamente ao primeiro que lhe estenda a mão e lhe peça, fazendo aquilo mesmo que bem necessitava que o outro lhe fizesse.

90


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Nestas coisas o paraense, principalmente, estica o seu orgulho como a borracha da sua terra. *** O meu fim, senhores, não é descrever-vos as cidades e as povoações que orlam em largos intervalos daqui para diante as margens do grande rio e de seus afluentes, que visitei e conheci; nem tão pouco fastidiar-vos com notas e estatísticas de que se não pode tirar grande proveito numa conferência, cujo fim principal é dar-vos a conhecer rapidamente as belezas naturais, os costumes desses povos indígenas com quem convivi durante meses, além de ligeira notícia sobre tudo quanto possa interessar-vos acerca da geografia e hidrografia desta região. Devo dizer-vos que as mil e tantas léguas que fiz em vapores, em lanchas, em botes, em canoas de um só pau e até em jangada no Amazonas e alguns de seus afluentes, foi uma viagem decidida repentinamente, pois tendo de passeio chegado ao Pará em meados de fevereiro do corrente ano, a fim de obter os últimos dados para um trabalho que que tenho no prelo, tive ocasião de ser apresentado ao ilustre governador daquele estado, Dr. Lauro Sodré, que conhecendo o meu espírito investigador pelas coisas pátrias, honrou-me com a sua animação, oferecendo-me facilidades e recomendações que de muito valor me foram em tão proveitosa excursão. A primeira parte desta longa viagem realizei-a a bordo do vapor Izabel, da Amazon Steam, que do porto do Pará largou a 25 de março, gastando vinte e sete

91


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

dias até alcançar Tabatinga na fronteira, e ganhando em mais três dias nas águas peruanas a cidade de Iquitos. As impressões que recebi logo nos primeiros dias desta viagem, se belas e encantadoras por um lado, foram por outro, desde logo tristíssimas, quanto à vida a bordo. Ninguém crê, ninguém avalia quanto é mau, quanto é ruim o pessoal destes navios e de todos aqueles quer particulares, quer de companhias subvencionadas pelo estado, que fazem a carreira de Manaus ao alto Amazonas, a principiar pelo primeiro mandão de bordo até o último e miserável servente que imundo e sujo inspira somente repugnância. O comandante do Izabel (verdadeiro modelo dos de sua classe) era um homem dotado de gênio brando, calmo, ajuizado, mas também bom e sensível demais. Talvez por isto mesmo, houve quem a bordo abusasse de tanta bondade e contasse com ela de antemão para praticar desacatos e tentativas de morte; para se perceber no serviço de limpeza o cunho de uma negligência e de um pouco caso intoleráveis; para sofrermos horas dolorosas de encalhamento e muito mais. Pondo de parte as peripécias da jornada, vejamos o que de mais interessante se me oferece relatar-vos. Pouco populosas são ainda as povoações que orlam as margens do grande rio, ou dos igarapés e canais, no espaço compreendido entre Pará e Manaus.

92


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

De todas as mais importantes, são, Santarém e Óbidos, esta colocada sobre uma colina na margem esquerda do Amazonas, e aquela guardando a foz do Tapajós. Monte Alegre, à margem esquerda do grande rio e a cujo porto tivemos de atracar, é uma povoação insignificante, todavia a galhardia e a generosidade governamental já fê-la chegar à categoria de cidade! A sua população é apenas de seiscentos habitantes! Para se avaliar da sua importância assim como de outros muitos lugarejos situados nesta região e que gozam de idênticos foros, basta dizer-vos que em toda a povoação o meu criado não conseguiu encontrar, para comprar, um só ovo! São muito lindas as paisagens amazônicas, encantadoras as suas noites de luar, belas e ricas as suas florestas, mas tudo isto que vale onde não se encontra os mais comuns gêneros alimentícios?! A vida por ali é tristíssima, e a classe pobre que é a mais numerosa, como em toda a parte, sofre horrivelmente as consequências da sua ociosidade sem limites. Um povo que se acostumou unicamente como o mineiro, a viver da indústria extrativa, que abandona a verdadeira fonte de riqueza pública e particular, que é a – agricultura – não pode deixar de pagar tão fatal tributo ao destino. Em alguns lugares do baixo Amazonas, onde se extinguiram os seringais depois de muitos explorados, pode-se bem dizer: – A nossa riqueza de outrora é

93


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

a nossa miséria de hoje. Ainda quando há fortuna de peixe tudo corre às mil maravilhas, porém, isto dá-se durante poucos meses do ano. A alimentação principal em todo o Amazonas compõe-se de pirarucu seco (vastres cuvieres) e farinha muito grossa de mandioca, fabricada no Maranhão, a quem chamam farinha de água, e da qual no preparo desaparece grande parte nutritiva. *** Manaus, a capital do Amazonas, onde me demorei no regresso, outrora Vila da Barra do Rio Negro, era há quarenta e cinco anos, uma povoação de cento e cinquenta casas e três mil habitantes. É hoje uma cidade importantíssima, com uma população de trinta e seis mil pessoas. Possui já magníficas ruas e praças arborizadas e calçadas a madeira e paralelepípedos, logradouros e jardins públicos, palácios e notáveis edifícios do estado, tais como o teatro e o palácio do governo, obras monumentais no seu gênero. É uma cidade que progride espantosamente. Acervos de terra, montões de pedras, renques de andaimes, tudo isto se encontra por todo o seu perímetro. Como sucede com o Pará, este adiantamento data de pouco tempo, isto é, depois da proclamação da república, que se por um lado trouxe entre os inimigos da pátria, a desordem, a falta de tranquilidade pública e da garantia individual, por outro trouxe também uma série de melhoramentos e de progresso material e

94


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

industrial de que hoje o Brasil se pode ufanar, ocupando invejável lugar entre as grandes nações da livre América. Ultimamente pôs-se em execução no Amazonas um novo plano de ensino, e só na capital funcionavam, em julho de 1894, vinte e duas escolas públicas providas de modernos aparelhos e utensílios para a prática do ensino intuitivo. Tratava-se da criação de uma escola modelo anexa ao curso normal, onde possam os aspirantes ao magistério exercer a indispensável praticagem. Existem ali estabelecimentos de instrução secundária, tais como, o Ginásio, Escola Normal e o Instituto de Artes e Ofícios, o Instituto Benjamin Constant, onde a infância desvalida encontra a educação moral e intelectual, estabelecidas de acordo com as leis regulamentares do estabelecimento. As condições sanitárias da capital do Amazonas são atualmente magníficas, tendo desaparecido, com os aterros dos igarapés que atravessam a cidade, as febres palustres que antes lá reinavam. Em sua mensagem de 10 de julho... o governador do estado diz que, de junho de 1893 a maio de 1894, houve apenas um quociente mortuário de vinte e cinco para cada mil habitantes, o que importa dizer, ser o estado sanitário dali o mais lisonjeiro possível. A alimentação pública, infelizmente, continua a ser má e a piorar de dia para dia.

95


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

A carne vende-se de dois a três mil réis o quilo. Uma dúzia de ovos custava 5$000 réis. A indústria pastoril e agrícola por falta de braços que afluem para

a

indústria

extrativa,

continuam

estacionárias,

e

para

o

seu

desenvolvimento o governo trata de facilitar as comunicações interiores, abrindo estradas entre as quais a do Rio Branco, que é o empório daquela primeira indústria no estado. Sobre a emigração no Amazonas, parece-me que devo ler ao ilustre auditório esta curiosa peça, extraída da mensagem governamental a que já me referi, dirigida ao Congresso do Amazonas, na sessão de abertura: “Tem prendido a atenção dos poderes públicos em todos os países a magna questão da emigração, problema de grande valor sociológico. Em nosso país, já no tempo do regime decaído, serviu de tema às discussões na tribuna do parlamento e na imprensa, parecendo que só agora os estudos sobre tal assunto vão ser coroados com os melhores resultados. Estado vasto e fértil, tem em seu seio tesouros inesgotáveis que jazem esquecidos da vida ativa das nossas sociedades, porque não temos braços suficientes para exumá-los; para isso torna-se mister promover uma corrente emigratória como já por muitas vezes tem acontecido. Para o sul, onde um clima agradável, temperado em certas épocas, assemelha-se ao de alguns países europeus, a emigração europeia tem dado ótimos resultados, erguendo à altura considerável a lavoura que de 1888 a 1890 perigou com as consequências inevitáveis da áurea lei que libertou os escravos

96


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

do Brasil; mas para o norte, onde vivemos especialmente em uma zona queimada por um clima equatorial, certamente a emigração europeia não poderá dar bons resultados. São confirmação desta verdade as tentativas feitas com algumas dezenas de famílias europeias, sem o menor resultado. Se para o norte e especialmente para o Amazonas está provado que é de efeitos negativos a emigração do continente europeu, onde ir buscar braços para dar vida à nossa lavoura que está quase extinta e povoar o nosso vasto território que por assim dizer está inculto e deserto? A experiência hoje nos aconselha que devemos buscá-los no continente asiático. As famílias que da Europa têm vindo para o norte do Brasil e que não se aclimam, têm só concorrido para o dispêndio do erário público e os poucos representantes que delas ficam, demonstrando preferir o sacrifício do calor equatorial à miséria e à fome em seus países, dedicam-se quase que exclusivamente ao comércio. Com os poucos representantes da raça amarela o mesmo não tem acontecido. Devido a esse povo é que o Peru, o México, América Central, Cuba e finalmente S. Francisco da Califórnia, nos Estados Unidos da América do Norte, progrediram e viram nascer a sua prosperidade, dando calor e vida à indústria e à lavoura. 97


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Se é exato que os governos de alguns daqueles países foram obrigados a tomar medidas enérgicas contra a raça amarela que os povoava, porque se dedicavam à cleptomania, todavia a razão prática nascida da experiência tem levado a concluir que só na China se dá aquele vício a população que habita o litoral do Celeste Império, onde em contato imediato com os mercadores da Europa estudam-lhes os costumes e imitam-lhes a conduta; isso porém não se pode estender aos chineses das cidades que muito distam de Hong-Kong e Macau, onde a par de uma boa educação cívica, bebe a mocidade chinesa uma instrução baseada nas mais severas lições de moral. Que importa que os princípios religiosos a que obedecem os chins, com fanatismo até, nos obriguem a evitar o cruzamento de raças? Tragam-nos os processos de arrancar do seio da terra todas as suas riquezas; instruam-nos o suficiente para dar vida à nossa lavoura; ensinem-nos como se deve cultivar o solo para torná-lo fértil; ministrem-nos os segredos para arrancar da terra os seus produtos, que temos pouco que ver com a relutância ao cruzamento de raças, que é grande parte do chinês. Do que temos necessidade é do trabalhador. Precisamos de braços aptos e em abundância para fazer produzir o nosso vasto território amazonense, e é no Celeste Império que devemos ir buscá-los. É lá que podemos encontrar quem possa fazer avolumar-se a nossa população, nascer a nossa lavoura, e não na Europa, onde, por possuir uma raça

98


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

mais forte (porém, não apropriada ao nosso clima), vamos buscar o mercador para em nosso país imiscuir-se nos fatos sérios da nossa vida política. Para maior convicção de que é de ótimos resultados a emigração chinesa, é que algumas centenas de famílias chegadas ao Rio de Janeiro têm-se aplicado à lavoura, onde completamente afastadas da vida política brasileira, trabalham enchendo de contentamento os lavradores que os receberam. Vós que tendes sido patrióticos em vossas deliberações, deveis habilitar o poder executivo a satisfazer a necessidade de encaminhar para esta região uma corrente emigratória do Celeste Império, única emigração que atualmente nos poderá prestar serviços, por princípio, índole e educação.” Devo notar que o governador do Amazonas é um tipo forte e robusto, homem de ação, em cuja fisionomia se destaca o brilho de inteligente expressão, própria daqueles que sentem correr nas veias algo de sangue europeu. Como ele, eu poderia citar muitos outros que embora descendentes de uma raça talvez injustamente tida por pouco adiantada, tem chegado a engrandecer a história com o produto do seu talento. Todavia não é de esperar o mesmo nos futuros descendentes filhos do Celeste Império e muito tem que sofrer com este mistão de raças o tipo brasileiro. Infelizmente, eu sinto dizer que a emigração chinesa não é mais do que uma escravatura disfarçada. O chinês de baixa classe é um ser banal, estúpido, mas trabalhador e humilde. É o predomínio do forte sobre o fraco. 99


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Os mais fervorosos adeptos da emigração asiática hoje, são justamente aqueles que eram outrora no sul e no norte, convictos e célebres escravocratas, senhores de tronco e algemas, ricos à custa do suor alheio; do sangue derramado e do vil azorrague! Se o governo amazônico necessita de braços, de gente que se possa tornar apta para o serviço de lavoura e apropriada ao clima, vá ou mande arrancar do seio das florestas os milhares de pobres indígenas, que lá têm permanecido em plena barbaria, escapos da guerra que lhes continua a fazer o homem que passa por civilizado. Debaixo de carinhoso ensinamento, de proteção, de agasalho, de conforto e sujeição, o selvagem de hoje, mau, traiçoeiro, imprestável, tornar-se-á um individuo prestante e o pai talvez de grandes cidadãos no futuro. Aqueles que tiverem para isto uma resposta irônica, eu direi – trate-se de catequizar e não de escravizar. É daí que eu avalio qual possa ser o futuro da emigração asiática nalguns estados do Brasil. Agora quem fala é o ilustre magistrado Dr. Assunção Menezes. Dele é uma série brilhante de artigos publicados há pouco na República do Amazonas sob a epígrafe “Catequese dos jauaperis”. Vou ler estas linhas:

100


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

“Se os jauaperis não são aqueles índios bárbaros, cruéis, rebeldes à catequese, porque já não chegaram aos centros civilizados, quando aliás outras tribos aí estão prestando em maior ou menor escala os seus serviços? Antes de tudo é conveniente advertir que eu não considero essas tribos que aí estão prestando os seus serviços, como compostas de índios catequizados. Formo um conceito muito mais elevado e sério do que seja catequese. Frouxo, bem frouxo tem sido o empenho catequizador do governo e particulares no Amazonas. Se, porém, catequizar vem a ser sinônimo de escravizar, a dúvida tem logo uma resposta pronta e é que as tribos de que se fala são compostas em quase suas generalidade de índios escravizados, e não catequizados. E essa escravização tem sido plantada pela população adventícia que se interna pelo Estado, procurando as fabulosas riquezas que por aí estão entesouradas, as quais só poderão a princípio haver por meios dos índios, senhores dos segredos dessas mesmas riquezas. Catequese no seu rigor técnico, científico, em regra não tem havido”. O ilustre governador do Amazonas é um espírito culto, segundo me pareceu, e portanto eu só posso distinguir nas razões que apresenta sobre a emigração asiática, uma sugestão mal entendida do partido político a que pertence, se bem que este seja composto em sua maioria de homens de elevado

101


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

merecimento intelectual. Por este e por outros motivos é que se vê com verdadeiro pesar que essa república sonhada, e que podia fazer a felicidade do povo brasileiro, ainda não existe. Se hoje o Brasil tem leis adiantadas, a cegueira dos maus políticos, tem favorecido outras como a permissão do noviciado e a abertura dos conventos, de novo cheios de frades de todas as ordens, que prejudicam grande e fortemente o movimento progressivo da sociedade. Apresentado e recomendado por alta influência política ao ilustre Dr. Eduardo Ribeiro, governador do Amazonas, dignou-se este cavalheiro prestarme seus obséquios para o bom êxito das minhas excursões, durante as quais consignei alguns apontamentos, que reputo úteis, sobre a geografia e a hidrografia desta região. *** Logo ao deixar o Rio Negro e a algumas horas de viagem Amazonas acima, temos à vista as insignificantes povoações de Anamã e Manacapuru e depois em continuação até Tabatinga na fronteira, Coary, Codajás, Tefé (habitada outrora pelos índios Muras), Tonantins, Fonte Boa, Foz do Jutaí e S. Paulo de Olivença, lugares quase sem importância alguma, tendo como de costume alguns deles obtido foros que lhes não devem pertencer, pela falta de desenvolvimento comercial, pela pequena população e sobretudo pelo aspecto triste que apresentam sob todos os pontos de vista. Posso não agradar a muitos usando desta franqueza, mas a verdade antes de tudo.

102


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

A justiça em muitos desses lugares ainda não pode ser distribuída como manda a lei porque muitas vezes aqueles que deviam contribuir para o bom andamento dos processos são os primeiros a apresentar embaraços. Nesse número devo incluir alguns tipos que gozam de importância local e que têm os seus números inscritos no grande rol dos criminosos impunes. O próprio governador tudo isto reconhecendo, não duvidou em chamar a atenção dos representantes do estado em sua mensagem. Assim diz ele: “São contristadoras as notícias que sempre nos chegam do interior do estado acerca da impunidade com que se praticam os mais horrorosos crimes. Os magistrados, aqueles a quem está confiado o sagrado dever de distribuir a justiça, nada podem fazer diante dos embaraços invencíveis que a cada passo encontram na prevenção e verificação dos crimes e na formação da culpa aos criminosos.” Subindo o Amazonas, antes de chegar à altura da grande ilha de Carapanatuba que se encontra sem nome na carta de Smith, temos à vista a ilha de Jacitara a mesma que Castelnau e Smith denominaram erradamente de Camera-Coary que é o nome de uma costa como reconheci pela derrota do prático. No mapa do Amazonas de Veloso Barreto, impresso em Lisboa, encontrase o lago Cayambé separado de outro denominado Jutica, tendo cada qual a sua embocadura. Verifiquei que se deve tratar de um só lago e não de dois, havendo

103


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

com efeito duas embocaduras separadas uma da outra por um quilômetro e meio de distância. O lago Catuá que se acha mais abaixo comunica com o Amazonas e sucessivamente por dois ou três braços com o Rio Ipixuna cuja foz se acha em frente da ilha do mesmo nome. O conde de Castelnau diz que a povoação denominada Fonte Boa está colocada sobre o pequeno Rio Cayari (Caiari no mapa de Veloso Barreto) e que tem sua nascente num lago. No entanto eu verifiquei que a nascente do Cayari está muito além do lago, sendo este formado por aquele. Tenho também minhas dúvidas sobre o verdadeiro nome de um braço do Japurá que comunica com o Amazonas abaixo do Tocantins e que Barreto denominou Athy, o mesmo de que tratou Castelnau com o nome Ayuaytiá. Este mesmo ilustre autor diz-nos à pág. 64, tomo V, da sua obra em que se trata da expedição que dirigiu nas partes centrais da América do Sul: “La riviére de Tonantins est d’une largeur assez considerable, mais je ne pus rien obtenir de positif sur son cours: la plupart des habitants me dirent qu’elle avait peu d’etendue et qu’elle prenait as source prés du rio Içà; un seul me dit que c’etait um bras du Japurá ce qui je l’avoue me parait assez probables.” O que posso assegurar é que nada disto é real.

104


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Hoje, que o Tonantins tem sido melhor explorado por afoitos seringueiros, pode obter dados seguros a tal respeito, pra afirmar que não se trata senão da bifurcação de um braço do Japurá que vai comunicar com o Rio Putumayo ou Içá. Sendo estes os principais canais é para notar que outros todavia existem comunicando ente si e com alguns lagos habitados pelos índios yuris. *** A viagem no Amazonas é longa e monótona porque a perspectiva é sempre a mesma. Tabatinga, ponto estratégico onde o governo federal mantém uma pequena força militar sob o comando de um oficial superior, está situada à margem esquerda do Amazonas em um sítio elevado e pitoresco, pouco acima da foz do Javary. Os principais edifícios, como o quartel, igreja, paiol, etc. estão em ruínas. Na fronteira peruana e na mesma margem, existe o posto militar de Letícia, situado também à margem esquerda, pouco abaixo do forte Gran Mariscal Castillo. É este o primeiro porto do departamento de Loreto no Peru e foi fundada a povoação em 1867. O povoado de Loreto, acima algumas horas de viagem, e que já foi a capital do distrito da mesma denominação, está hoje quase desabitado e em sensível decadência.

105


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Temos ainda as povoações de Caballo Cocha e Pebas, de pouca importância, até chegarmos a Iquitos, empório comercial do Alto Amazonas e do departamento de Loreto, cuja capital é Moyobamba. A cidade de Iquitos, terceira praça desta região em comércio e população, acha-se situada à margem esquerda do Rio Amazonas, na latitude sul 3º 44’ 20’’ e longitude 3º 5’ 30’’ ocidentais 553, 1 quilômetro acima da quebrada S. Antônio e 894 abaixo do porto de Jurymaguas. Contém uma praça e vinte ruas retas, largas, paralelas e planas. No princípio do século era uma aldeia de índios iquitos, em 1852, uma pequena povoação de pescadores índios e mestiços, de 350 habitantes. A sua prosperidade data de 1864. Possui mais de 1.000 casas e conta hoje mais de 8.000 habitantes. O seu plano é devido ao capitão de mar e guerra D. Frederico Alzamora, durante a sua administração. Tem cerca de cem estabelecimentos comerciais. Possui cinco lojas de alfaiate, dois salões de bilhares, quatro cabelereiros, cinco casas de pasto, dois restaurantes, três olarias, três padarias, duas boticas, quatro sapatarias, duas fábricas de cigarros, duas tipografias, uma serraria a vapor, dez mercearias de primeira classe. Esta cidade apresenta a perspectiva de uma grande aldeia, pelas inúmeras habitações cobertas de palha ainda hoje.

106


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

A sua altura sobre o nível do mar é apenas de 108 metros. Determino a temperatura média de Iquitos por duas observações de vinte e quatro horas cada uma e que não diferem no máximo mais que um décimo de grau – ela é de 26º – abril de 1894. A província de que Iquitos é capital, denomina-se do baixo Amazonas e acha-se limitada ao norte com a República do Equador, a leste com o Brasil, ao sul com os departamentos de Cusco, Ayacucho e Junin, Liberdade e Amazonas. Com a República do Equador pelo curso do rio Pastaza até ao distrito de Andoas e pelo Rio Napo até a embocadura do Aguarico. Com o Brasil pela margem esquerda do Rio Javary desde a sua confluência com o Amazonas e pela direita da quebrada de S. Antonio de cujas vertentes parte uma reta na direção do N. que, atravessando o Rio Içá toca a margem direita do Japurá em frente à foz do Rio Aporis. O clima é quente e úmido e não passa a temperatura de 33 do termômetro centígrado; no entanto a atmosfera é tão impregnada de umidade que nada lhe escapa, livros, roupa, calçado, etc. por mais bem acondicionados que estejam, se cobrem em poucas horas de espessa camada de vegetais microscópicos. É suportável porém o calor e nem tampouco são conhecidas moléstias endêmicas, com exceção de disenteria, que se manifesta em certas épocas do ano, principalmente tendo como causa a intemperança dos habitantes. O Amazonas ou Marañon, que é o tronco principal, atravessa o departamento de O. para L. e recebe do N. os Rios Santiago, Morona, Pastaza,

107


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Tigre, Nanay, Napo e outros e do S. Apuga, Potro, Huallaga, Ucayale, Cajurù, Javary e outros. A navegação no Amazonas estende-se até o Pongo de Manseriche, a do Huallaga até (cachoeira) o Aguirre, do Ucayale até o Rio Tambo; e os mais até certas alturas conforme o calado dos navios ou a época do ano. Numerosos produtos naturais encontram-se até hoje perdidos pela dificuldade que acha o extrator para a sua exportação. As únicas estradas conhecidas no departamento, são as que se dirigem da capital, passando por Tarapoto até Cassuta e a de Jeveros que passa em Balsapuerto e se ramifica em Paranapura e outros povoados. Estas estradas são talvez as piores de toda a América. Tanto uma como outra são muito escabrosas, cheias de curvas e verdadeiros precipícios. As viagens são feitas na do Norte a pé ou às costas dos índios, porque o caminho não permite a passagem de cavalgaduras. Há três anos que se acha em construção, uma estrada que partindo de Jurymaguas se deve dirigir a Moyobamba. O principal produto da indústria do departamento, era outrora, o chapéu de palha que é conhecido no Brasil por chapéu do Chile. Nas províncias de Moyobamba e Huallaga principalmente o fabrico dos chapéus de palha constitui ainda a principal ocupação de seus habitantes.

108


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

A exportação desses chapéus para o Brasil data de 1855. Desse ano a 1871 atingiu a exportação desse produto a 319.478 chapéus. De 1872 para cá a exportação desse produto, que ia em aumento, diminui consideravelmente com a extração da borracha ou do caucho. Antes de 1862 não era conhecida ainda nesta região, esta rica indústria extrativa, que ali foi inaugurada com o exemplo de José Joaquim Ribeiro, que se estabeleceu com uma pequena colônia de brasileiros já afeitos à extração da goma elástica, e que lutou com a má vontade dos agentes do governo peruano, aos quais era dado a direção dos negócios desta região. De 1862 a 1863 a exportação desse produto, devida a esse brasileiro laborioso, foi de 2.088 quilogramas. A do exercício de 1870 a 1871 foi de 58.584, e de 1889 a 1890 atingiu a 1.361.037 quilogramas. A pesca do pirarucu é hoje quase nula. A extração da salsaparrilha é variável e pouco importante, sendo a exportação deste gênero em 1870, de 9.510 quilogramas e a de 1889, pouco mais importante foi. Este departamento exporta atualmente também magnífico tabaco de excelente qualidade e que reputo igual ao goiano, algodão, fio de tucum, redes deste fio, manteiga de ovos de tartaruga, marfim vegetal, couros de veado e de outros animais silvestres. Os mais produtos agrícolas não chegam para exportação.

109


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

A navegação é feita mensalmente pela companhia de navegação a vapor do Amazonas, cujos navios se ressentem, como já disse, de comodidades para passageiros, porque são de carga. Este departamento peruano divide-se em uma parte montanhosa e formada de grés-arenoso de formação Frias; outra úmida e coberta de formações de aluvião. Encontra-se abundância de sal que é o principal produto mineral. A maior salina é a de Tacache cujo produto tem a cor rosada. As salinas de Pelluana e Callanayacu são abundantes e podiam abastecer de sal toda a América meridional. Encontra-se também gesso, pedra hume, enxofre, ferro argiloso, lignite e pedra calcária. O ouro encontra-se em vários pontos do departamento e crê-se que nas montanhas de Anquisa há abundantes minas. O padrão monetário peruano é o solar. A lei nas moedas de ouro e prata é 9/10. As numerosas tribos selvagens que infestavam esta região antes da viagem de exploração de Gonçalo Pizarro, e que não haviam sido submetidas ao governo dos incas, foram mais ou menos catequisadas, havendo contudo ainda hoje muitas que vivem no estado primitivo de embrutecimento. Em 1870 o conselheiro W. de Mattos no seu dicionário topográfico, avaliou a população do departamento em 68.000 habitantes, sem contar com muitas

110


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

tribos selvagens. Em 1862, porém, El Nacional de Lima estimou a população em 51.889 habitantes. O recenseamento publicado em um periódico de Moyobamba dava, porém, apenas 50.999 habitantes. Este ressente-se de grandes inexatidões. Creio que a população de todo o departamento pode ser hoje comportada em 100.000 habitantes. A instrução primária no Peru como no Brasil é gratuita. Em Moyobamba há um colégio de ensino secundário. A primeira autoridade política do departamento é o prefeito, que por um decreto especial deixa de residir na capital para residir em Iquitos, cidade superior aquela em tudo, exceto em população. *** Devo ter abusado da vossa benevolência com estas relações e estatísticas, por isso para amenizar o meu trabalho, dar-vos-ei a conhecer uma das aldeias indígenas, que visitei. A dos índios cocamas, isto é , a mais próxima de Iquitos, está situada nas proximidades do lago Morona e do Rio Nanay. Forçosamente eu era acompanhado nesta excursão pelo Sr. Alexandre de Freitas, um peruano filho de pais brasileiros, que patrocina e explora os índios como muitos fazem, dedicando-se na estação própria à extração do caucho e do Jéve (borracha). Dois desses indígenas, mais afeiçoados a este cavalheiro, nos 111


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

acompanhavam, auxiliando-nos na travessia através da espessa floresta, cujo terreno turfoso e úmido parecia muitas vezes ceder ao peso do nosso corpo. Empecilhos de todo o gênero surgiam de instante a instante, dificultandonos a marcha. Ora tínhamos de passar um lago com água pela cintura ou às costas dos índios, ora tínhamos que fazer exercícios de equilíbrio sobre maus estivados, compostos de grossos paus colocados em seguimento num caminho lamacento, e romper em canoa através das florestas submersas (igapós) entre um emaranhado de lianas e trepadeiras. Assim chegamos nós ao Lago Morona de onde passamos ao Nanay. A água do rio inundava a margem esquerda até grande distância, de forma que nos conseguimos ir na frágil ygara até perto das malocas e, ao saltarmos em terra, chegou a nossos ouvidos, o ruído da vozeria dos selvagens que logo soubemos estarem em festas. Entramos numa das principais malocas. À esquerda estavam sentados, em grupo, vários índios mais ou menos embriagados, assim como algumas mulheres e crianças, que à direita se acocoravam umas atrás das outras sobre colossal jirau. Todas tinham o rosto pintado de preto com o suco de jenipapo, o que lhes dava um aspecto triste e repugnante. Algumas estavam nuas da cintura para cima e usavam um pano tinto de azul à roda da mesma que ia até a altura dos joelhos. Traziam os cabelos soltos e nos pulsos, assim como abaixo da barriga das pernas, usavam pulseiras de sementes e contas, algumas bordadas caprichosamente sobre fios de tucum.

112


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Ornavam-lhes

o

pescoço

vistosos

colares

de

dentes

de

mono,

graciosamente engastados num grosseiro tecido. Usavam também de outros ornamentos bizarros. Em geral, pareceram-me mais belos os homens que as mulheres. Quase todos tinham os cabelos cortados e em nenhum deles distingui vestígios de barba ou bigode. Esta primeira maloca pertencia ao curaça ou tuchaua (chefe) que meio embriagado, também parecia desfrutar aquela hora do dia as delícias da sesta, deitado em uma rede velha de embira, armada ao centro da grande palhoça. Despertando com a nossa aproximação não se mexeu para receber-nos, e pelo contrário deixou-se ficar à vontade na mesma posição resolvendo-se somente afinal, em trocar algumas palavras no seu dialeto com o companheiro. De par com todos os selvagens desta tribo, raramente nos encarava, e na sua fisionomia descobria-se um sorriso zombeteiro, de homem descuidado e negligente. Deixando a maloca do chefe, visitamos seguidamente outras muitas, nas quais reinava a mesma orgia e grande deboche. Alguns índios estavam feridos e ensanguentados parecendo dispostos a entrar em luta uns com os outros, por prazer e por passatempo! As casas dos cocamas são em forma de grandes barracas cobertas de palmas secas e bem ajustadas uma nas outras. Não existem paredes nem divisões. A vida é em comum e em cada casa vivem diversos casais.

113


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Não havia ordem na construção e a floresta rodeava-as a uma distância de cinco ou quinze metros ao redor. Ensinaram-me a conhecer o cipó de que tiram o veneno para ervar as armas, principalmente para acometer os macacos. Pertence esta planta ao gênero Cocculus (D. Toxicoferus de Weddel). Também encontrei ali a árvore do leite, denominada pelos peruanos árvore vaca. Produz uma goma que podia substituir a arábica e que se toma como alimento e se pode usar, misturando-a e dissolvendo-a no café ou chá como se faz com o leite condensado. Algumas das mulheres traziam também o rosto pintado de encarnado, em vários pontos, com o urucu, que os peruanos chamam achiote. A sua alimentação compõem-se quase exclusivamente de bananas assadas (plátanos), e mandioca que plantam e cultivam. A tribo dos cocamas do Huallaga, hoje dividida e esparsa, habitava de 1.600 a 1.700, segundo foi informado, em uma bela lagoa, em cuja margem o padre Lucero fundou uma missão. Até o ano de 1881 tinha esta tribo o costume de comer os cadáveres de seus parentes. Diziam eles que, “melhor era entrarem par o estômago de um parente, que servirem de alimento aos corvos e à terra negra!”.

114


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

No ano de 1830, por efeito dos maus tratos que lhes davam os soldados existentes na povoação de Lagunas, abandonaram-na e desceram para Nauta, onde se estabeleceram. São muito dóceis e inteligentes. Prestam-se bem como tripulantes de pequenas embarcações. São cristãos, mas conservam ainda antigos hábitos. Em certa época do ano acoitam-se com um látego de couro de peixe boi, na extremidade do qual prendem fragmentos de ossos ou de cascas de marisco para sangrar-lhes o corpo, que muitas vezes fica em deplorável estado. Quando a hemorragia é abundante tomam banhos de água fria. Fabricam vários vasos, potes e pratos de barro, pintados exteriormente de diversas cores obtidas de argilas. Alguns destes potes têm enormes proporções e servem para o fabrico e conservação de uma bebida que muito apreciam, denominada caissuma feita de mandioca cozida e ferventada. *** Deixando as malocas dos cocamas e meu companheiro o Sr. Freitas, que teve de voltar a Iquitos, parti mais os dois índios em busca da terra firme que alcancei, depois de viajarmos durante meia hora numa floresta submersa (em canoa).

115


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Esta excursão, aliás penosa, foi-me bastante útil no entanto, e tive ensejo de notar a perspicácia e sagacidade de que eram dotados os meus guias, que afinal me não inspiravam senão confiança de sua parte. Caminhávamos pela floresta a dentro onde não havia a menor sombra de caminho.

Nestas

partes

a

vegetação

apresenta-se

soberba

e

difere

sensivelmente dessa vegetação raquítica que bem se pode denominar anfíbia e que cobre os terrenos baixos e quase sempre inundados do Amazonas e seus afluentes. Por aqui se vê quão pouco conhecimento têm das grandezas desta região, aqueles que percorrem estes rios em vapor e apenas do parapeito de bordo encontram inspiração para as suas descrições pobres e banais. Debaixo desta vegetação a vida orgânica apresenta-se sob todas as suas manifestações e o homem civilizado que quiser conhecer os segredos das naturezas virgens, tem necessariamente de deixar o conchego do lar e aventurar-se, de botas e sombreiro de abas largas, de espingarda ao ombro e faca à cinta, por estas terras adentro, tal e qual como fazem os sábios e exploradores, ou simplesmente os forasteiros teimosos por inclinação e gosto, a cujo número pertenço. Acabava de contemplar no seio da floresta um exemplar de árvore colossal, que os peruanos denominam Tarapoto, cujas raízes se dividem desmesuradamente acima do solo e através das quais se podem esconder vinte homens, quando um dos guias chamou a minha atenção para um sapo muito temido nestas paragens, e que se achava a pouca distância de nós.

116


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

É conhecido por Bacurúru e é venenoso. Contaram-me que usam chegá-lo perto do fogo, a cujo calor ele despede pelos poros uma matéria que é um veneno terrível e que me parece ter a propriedade de atacar diretamente o coração. Realmente provou-se uma vez o efeito dessa substância, tocando-se com ela a boca de dois cães, um dos quais fora curado há tempos da mordedura de uma cobra venenosa. Ambos caíram estorcendo-se, no entanto, o primeiro salvou-se, ao passo que o segundo morreu. Antecipadamente houve quem afirmasse que este morreria sem dúvida. Uma planta que também chamou minha atenção foi a Hirarana de que os índios também tiram veneno para ervar as flechas. A caça aqui é rara por causa da guerra e extermínio que diariamente os índios lhe movem, havendo, porém, com abundância, à proporção que se caminha para o interior. Das minhas investigações posso concluir que são em abundância as riquezas naturais e bem mal conhecidas ainda. Cada nova exploração põe a descoberto coisas antes desconhecidas, o que faz crer com justa razão, que tudo excede o que pode alcançar a nossa imaginação. Sobre o Rio Nanay, que continua apenas a ser navegado por canoas de selvagens e de raros exploradores ou aventureiros, tenho as seguintes informações que se dignou ministrar-me o Sr. Freitas.

117


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Disse-me ele que um seu irmão, audaz viajante, subira o Nanay durante trinta e seis dias, até que chegando a uma altura em que o rio se estreitava e se cobria com numerosos paus e árvores caídas que impediam a passagem da sua piroga, voltou para trás. Às vezes mandava subir os índios às mais altas palmeiras (buritis) e desciam depois dizendo que o rio continuava sempre escoltado pelas preciosas plantas. Passando ao Rio Ytayo, cuja foz está acima de Iquitos, consegui, na companhia de um jovem alemão, gerente da casa Weche, e numa lancha a vapor que se dignou por à minha disposição, alcançar o ponto na margem direita onde se acham as malocas dos índios munichis, cujo aspecto era quase o mesmo que encontrei nas dos cocamas. Os munichis cultivam um arbusto denominado por eles Yaca de que se servem para apanhar o peixe nos lagos, depois de impregnarem as águas com o suco da mesma planta e cujos efeitos narcóticos se fazem sentir rapidamente. Encontrei em suas malocas muita carne defumada, plátanos, mandioca, etc. Nesta ocasião achavam-se ali apenas mulheres com as quais não conseguimos trocar uma palavra nem obter coisa alguma. Muitas delas correram para o mato ao avistarem-nos. Os homens estavam longe, ocupados na caça. Um alemão que habita perto da foz do Itayo informou-me de que o subiu, explorando seringais até muito acima e que o achou francamente navegável.

118


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Ao subir passa-se primeiro a foz do igarapé Massano à margem direita e outro que comunica à esquerda com o Lago Morona e o Rio Nanay. Depois temos vários afluentes entre os quais o Yanayácu, na margem direita e o Pintoyácu e o Yurayácu na margem esquerda. *** A minha viagem nestas regiões estendeu-se até Jurimaguas que fica situada à margem esquerda do Huallaga e na foz do Paranapura, durante a qual experimentei amargas horas de sofrimento e mal-estar. Jurimaguas está situada em terreno elevado na latitude sul 5º 3’ 13’’ e longitude ocidental 5º 58’ 48’’ na distância de 244 quilômetros da foz do Huallaga. De todos os pontos que tenho visitado nesta região é Jurimaguas o mais belo. Só a pena de um inspirado das musas poderia bem descrever o magnífico panorama que ali se desdobra ao olhos do viajante. Basta lançar a vista sobre o Huallaga, matizado de numerosas ilhas cobertas de luxuriante vegetação, admirar as suas águas rolando mansamente ao pé da barranca, ou banhando as alvas praias que em certa época do ano lhe vão ficando a descoberto para que o forasteiro se deixe prender de profundo êxtase. Se em vez, porém, da mudez que reina nestes desertos e que tudo parece envolver na doce paz de inúmeros mistérios, se visse essa corrente preguiçosa e indolente serpenteada por centenas de barcos a vapor, que trouxessem o

119


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

comércio e a vida a estas paragens segregadas de progresso, como não seria mais belo o quadro que ora palidamente se desdobra a nossos olhares?! Jurimaguas era em 1873 uma pequena povoação que apenas continha uns trezentos descendentes dos antigos jurimaguas. É hoje uma cidade de três mil habitantes e o porto mais comercial depois de Iquitos. É o ponto terminal da navegação a vapor, convindo notar que só é visitado por pequenos navios pertencentes a casas comerciais. Esta circunstância há de trazer mais tarde aí grande animação e desenvolvimento. O mais soberbo espetáculo que se apresenta aos olhos do viajante quando se aproxima, ou se acha em Jurimaguas, é o fundo do quadro desta região perfeitamente descortinado nos elevados montes que tem à vista, primeiros degraus dos majestosos Andes. Um homem sente então vontade de poder em um momento galgar aqueles elevados píncaros, chegar a um ponto de observação e descortinar um horizonte que até agora se lhe esconde no silêncio das florestas amazônicas. Jurimaguas, que acabo de descrever, era nesta ocasião em que infelizmente aportei, vítima de uma epidemia que lhe estava ceifando numerosas vidas, ao mesmo tempo que a maioria de seus habitantes a abandonava, coberta de pavor. Pode-se avaliar do terror que incute nestes centros semi-civilizados, a notícia do aparecimento da varíola, como ali sucedia. 120


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Assim é que eu só, sem um companheiro, um amigo, ou quem me auxiliasse, me vi na dura contingência de comprar uma canoa ao primeiro mercador que me apareceu, para poder regressar, já que me não era possível seguir adiante. A despeito dos esforços empregados pela autoridade e da boa e generosa paga que ofereci, foi impossível obter um só homem, ou um único guia para me acompanhar. Tudo havia fugido já para outros pontos com tempo de evitar grandes males. Jurimaguas ficara deserta em dois dias. Assim, viajando só na minha canoa, dia e noite, sem conhecer o rio e seus numerosos braços, os perigos a que estava exposto e tudo o mais, servindo de remador e fazendo ao mesmo tempo as vezes de timoneiro, sentado à popa da embarcação, consegui alcançar um sítio onde, sobre uma paliçada descobri uma jangada abandonada e ali deixada pelas águas na última enchente. Foi nela, presa à canoa, que desci o Huallaga até alcançar o porto de Lagunas na margem direita, onde vive um homem que se serviu levar-me a pé até a aldeia dos índios cocamilas, cujo curaça me proporcionou três guias, hábeis remadores, que me levaram ao porto de Parinari, na margem esquerda do Amazonas. Não me é dado neste trabalho, já bastante extenso, relatar as peripécias desta longa, enfadonha, mas curiosa viagem. *** Acima da foz do Huallaga o Amazonas é quase deserto, havendo apenas sítios de Santo Antonio e Barranca, onde arrojados aventureiros costumam

121


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

estacionar para traficar com os selvagens que habitam os rios Morona, Santiago e Pastaza. Entre as tribos que habitam esta última região, devo citar como mais feroz a dos huambizas, que vive nos Rios Santiago e Morona. Em 1841, atacaram estes índios as missões existentes naquelas paragens, pondo em fuga os seus habitantes. Em 1843, assaltaram a povoação de S. Tereza, assassinando todos os moradores. A Vila de S. Borja foi destruída por esta tribo que ainda no ano de 1868 assassinou onze pessoas que ali tinham ido estabelecer-se, com o fito de se empregarem nos trabalhos de mineração aurífera. Os huambizas são inimigos dos hauarunas dos Rios Cahuapanas e Nieve, com os quais estão sempre em guerra e são os únicos que preparam as cabeças dissecadas dos grandes guerreiros que conseguem matar. O processo de escalpe por eles usado deve ser curiosíssimo e tem chamado a atenção em França e na Alemanha, dos mais afamados anatomistas sem que a ciência tenha podido explicar o sistema que tais índios adotaram, porquanto os dois sistemas conhecidos pela medicina, de dissecação e maceração, produzem o desprendimento do cabelo, em época determinada. A meu ver, devem estes selvagens possuir certas raízes ou substâncias vegetais que, aplicadas à pele, produzem o encolhimento da mesma, sem danificar o cabelo.

122


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Creio que empregam pedras quentes, usando da calcinação e maceração. A extração dos ossos do crânio deve ser muito morosa, porque isto se deve dar depois de triturados. Como se pode ver, estas cabeças apresentam a vantagem e singularidade da conservação do físico e de maneira a poder distinguir-se o morto, estando aderido o cabelo. Os poucos exemplares que aparecem tem sido trocados por magníficas armas, redes e mercadorias de valor, pois só assim os índios se separam delas, e que lhes faz grande falta nos seus dias de festa. As dificuldades que se encontram na obtenção de cada exemplar, temlhes dado maior importância ainda, sendo que, mesmo em Iquitos não se consegue uma por menos de vinte libras e as poucas enviadas a Paris, têm sido vendidas por mais de mil francos cada uma27. *** Terminando, devo pedir me releveis a ousadia que tive até agora, abusando da vossa benevolência. ●●●●●●●●●●

O conferente apresenta ao auditório um exemplar, assim como as suas coleções indígenas, lembrando o nome do ilustre cônsul geral do Brasil em Iquitos, Dr. Benjamin Graça, que lhe ministrou informações e o auxiliou bastante durante a suas excursão ao alto Amazonas. 27

123


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

LINGUAGEM DOS COCAMAS Os seguintes apontamentos gramaticais são fragmentos de um trabalho que tenho em mãos e poderão talvez servir de cabedal para o estudo da linguagem dos cocamas. Como em quase todas as línguas selvagens e compostas de onomatopeias a pronuncia é muitas vezes aspirada. Para conseguir bons resultados não enfronhei as mãos um só momento que me pareceu aproveitável, tratando de passar ao papel simplesmente o que ouvia ao próprio índio dizer e pronunciar. Declinação dos nomes

N. G. D. Ac. V. Ab.

Patiri Patiri-uca Patire-supe Patire Patire Patire-sue Patire-muque Patiri-se-cuyara Xita patira Ira Patiri Patiri-mari-eira Patiri-eira-soupe Ira patiri 124

Padre Casa de padre Para o padre Ao padre Padre Do padre Com o padre Em lugar do padre Muitos padres Padre bom Coisa de padre bom Para o padre bom Padre bom


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Declinação dos pronomes

Ta Ta mari cana Ta soupe Ta Ta muque Ta iqua Ene Namaricaná Na soupe Na Na sue Ene muque Ene iqua

SINGULAR PLURAL Eu Tuna Nós outros Minhas coisas Tana-mari Nossas coisas Para mim Tana soupe Para nós outros A mim Tana Nós outros Comigo Tana muque Conosco Por mim Tana iqua Por nós Tu Epe Vós outros Tuas coisas Epe-mari Coisas vossas A ti, para ti Epe A vós A ti Epe A vós De ti Epi sui De vós Contigo Epi muqui Convosco Por ti Epi iqua Por vós Abreviatura –– niquá – Por ti

Outros pronomes

Iquá Este Iquiácana Estes Iquiá niá piçara cana Estes homens Iquiá ana cana Esta pessoas

125


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Usa-se de nia piçara cana, quando se quer tratar de qualquer indivíduo do sexo masculino. Para o sexo feminino, da mesma forma usa-se de huaina. Falando-se no plural, junta-se sempre esta partícula – cana – que é o mesmo que mais de um. Do nome comparativo

Ta-eira na sue Sou melhor que tu Ta sasau na sue Sou mais (superior que tu (Eira corresponde a catú da língua geral) Do nome superlativo

Ta iquáci eira Ta iquaci eira na sue Miara – macaco

Estou muito bom Sou muito melhor que tu

Miarauassú

Do nome diminutivo O diminutivo se usa ajuntando kira. Huaina mulher Huaina-kira mulherzinha Usa-se também de miri quando se quer depreciar ou se trata de coisa inanimada, insignificante e de má qualidade.

126


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Do número numeral Os numerais não são mais que quatro:

Uipi um,

Mocuica dois,

Chita céme Chita uyari Atchiuata ou atchiuana Upi Uipirapa niari

Musapêreca três,

Iruaca quatro.

Inumeráveis Muitas vezes Um pouco Todos Algumas vezes

Do nome ordinativo

Ygatira Sacapéire Sacapurêcimi

Primeiro (significando adiante) Segundo Correspondente ao último

Do nome distributivo

Uipi rápa Mocuica rápa Mussapêreca-rapa

De um em um De dois em dois De três em três, etc.

127


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Dos nomes recíprocos

Yumi Rana yumi ta supi Rana yumi tana supi

Dar Dão-me Deram-nos

Verbos Português Andar Provar Amar Queimar Guardar Padecer Comprar Matar Pé Peito

* Ayuca

Cocama

Uatá Sani Sachita Oukita Yratura Yporara Puripi Umanuta Pèta Putiá

Guarani

Aguatá Ahaã Ahaihú Ahapi Ahârõ Aporará Ayâ Ayucá * Pi Riá

em cocama significa espancar,

maltratar.

Sendo estes vocábulos guaranis tirados de Montoya, ocorre-me o seguinte com relação à significação de Piá. Em toda a parte onde se fala a língua geral, sempre verifiquei que Piá significa coração e não peito, entretanto Montoya à

128


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

pág. 96 da sua Arte, erra, para à pág. 164 do Vocabulário, 1ª parte, dar a verdadeira significação de Piá. Na língua geral Putiá ou Potiá significa peito.

Ypurakari – caçar Presente do indicativo AFIRMATIVO

Ta ypurakari Ene ypurakari Uri ypurakari Tana ypurakari Epe ypurakari Rana ypurakari

Eu caço Tu caças Ele caça Nós caçamos Vós caçais Eles caçam NEGATIVO

Ta tema ypurakari Ena tema ypurakari Uri tema ypurakary Tana tema ypurakary Epe tema ypurakary Rana tema ypurakary

Eu não caço Tu não caças Ele não caça Nós não caçamos Vós não caçais Eles não caçam

Nota. Algumas alterações se têm notado no dialeto dos cocamas, com certeza por se terem separado e vivido isolados. Assim é que em Parinari um

129


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

cocama disse-me não conhecer o vocábulo ypurakari, e explicando-me, que pra ele Tá-ci-quitara, significa: eu vou pescar ou caçar. Entretanto os cocamas de Morona Cocha afirmaram-me que usam ambos e que cada qual tem o seu significado. FUTURO

Ta ypurakariari Ene ypurakariari Uri ypurakariari Tana ypurakariari Epe ypurakariari Rana ypurakariari

Eu caçarei Tu caçarás Ele caçará Nós caçaremos Vós caçareis Eles caçarão

PRETÉRITO

Ta ypuraka suripe

Eu caçei, etc.

——————————

Pira-pira-taca Raio Upa Está acabado Apainiu Comer (Upuri significa cair na água) —————————— 130

Castelnau

Pira-pira-caca Oupouri Apiniou


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Macati panussi? Aua cutipiquiara? Matchirancú?

Onde vás? De quem é este lugar? Como se chama?

Vocabulários

Rio Deus Terra Olho Beber Dormir Caminho Grande Pequeno Sim Preto Água Homem Mulher Cobra Amanhã Hoje Adeus

Castelnau

Parana Yara tuyuca Chisasi Curata Uquêri Pi Tua Tchura Suni Uni Niapiçara Oina Mui Camutone Icumi Tusapa

131

Parana Yara Toyouca Chisa Curata Ouqueri Pi Toua Tchuranani Achisima Suné Uné Niopisara Ouina Mui Camutone Icumi Tusapa


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Flecha Flor Casa Não Folhas Remo Braço Pedra

Ua Sisa Uoca Tema ieuratsa Yapuquita Yuá Itaqui

Ua Sisi Uca Temari Eouarassa Yapouquita Iguá Itaqué

——————————

Ypasso Ygapo Ypira Tata Yaci Guaratchi Chicô Amoe Nai Paï Ma Takira Itchmari Eyuira Tini Petani

Lago Floresta submersa Peixe Fogo Lua Sol Estrela Avô Avó Tio Tia Sogro Genro Madeira, pau Branco Encarnado

132


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Oenepuca Eicura Yum Ygara Huira Ti Yôru Chiçá Yakissa Yucara Uâraro Satchi Payun Yacari Iá Euá Sá Oura Nami Moritso Ague Iwata iwatita

Azul Verde Amarelo Canoa Pássaro Nariz Boca Cara Cabelo Comichão Ardor Dor Curandeiro Crocodilo Fruto Árvore Folha Bicho Orelha Pote Preguiça (animal) Terra firme Montanha

133


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

VIAJANTE E PALESTRANTE

134


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Em seus tantos itinerários pelo Brasil, Oscar Leal também teve oportunidades para apresentar-se como homem de letras e naturalista. O “doutor dentista” dava atendimento odontológico, se inter-relacionava com os jornalistas locais e conseguia uma razoável interação com as sociedades das tantas comunas que visitava. Nesse contexto surgiam oportunidades para que ele atuasse como “orador improvisado” e palestrante e, pelo menos três desses casos foram narrados pelo próprio escritor em seus livros. Os dois primeiros episódios são contados no livro inaugural de viagens sobre o Brasil, intitulado

Viagem ao centro do Brasil (impressões), referindo-se a uma excursão que Leal empreendeu entre 1884 e 1885, saindo do Rio de Janeiro e atravessando as províncias de São Paulo e Minas Gerais, até chegar ao centro do país, onde permaneceu por vários meses, refazendo o caminho para o retorno. Já a outra deu-se em uma nova expedição, em 1886-1887, na qual o escritor atravessou parte da região amazônica, registrando-a no seu derradeiro livro a respeito do Brasil, denominado Viagem a um país de selvagens. Uma dessas experiências não chegou a constituir uma palestra no sentido literal, mas o próprio Leal definiu-se como um “orador improvisado”, quando, no decorrer de um deslocamento entre Franca e Uberaba, em pleno meio rural, fez uma “preleção” sobre temas diversos para a família de um fazendeiro, intentando demonstrar seus propalados múltiplos conhecimentos. O episódio foi narrado com certa jocosidade, mas o interessante é o fato dele ter se assumido como naturalista, ou pelo menos reunir os “predicados preciosos” para tanto. Já primeira palestra propriamente dita ocorreu na cidade de Uberaba, em

135


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Minas Gerais, ainda na etapa inaugural da viagem a caminho do Brasil central. Na ocasião surgiu a oportunidade dele atuar como orador em uma sessão de uma sociedade literária, sendo sua fala divulgada junto à imprensa local, matéria que foi transcrita em Viagem ao centro do Brasil. Nessa ocasião, os membros do Ateneu Literário Uberabense, ouviram o odontologista itinerante e literato falar sobre seu amor pela literatura e o seu desejo pelo desenvolvimento, e, sem novamente deixar de lado sua falsa modéstia, concentrar seu discurso em torno de uma das ideias mais recorrentes em suas manifestações – a abolição da escravatura. A outra palestra por sua vez, aconteceu no retorno de sua viagem pelas terras amazônicas, quanto voltava à localidade paraense de Cametá, ocasião em que o escritor narrava seus últimos dias na cidade, descrevendo-a em minúcias e referindo-se às transformações que aconteciam na região, inclusive no campo cultural. Na oportunidade ocorreria a primeira sessão do clube literário Marquês de Santa Cruz e Leal relatava toda a solenidade, com ênfase à sua palestra acerca da educação da mulher, bem de acordo com outra bandeira que ele defendeu por diversas vezes vinculada à emancipação feminina, mormente por meio do acesso à instrução.

136


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

O “ORADOR IMPROVISADO”28 (...) No dia seguinte, ao levantar-me veio um amigo dizer-me que todos que me tinham visto, perguntavam se era norte-americano ou inglês o cirurgião dentista que estava de passagem para Uberaba. Não era má chalaça. (...) Segui viagem às dez horas. Logo adiante da cidade, no Arraial das Covas, encontrei-me com um rapaz representante de uma casa comercial do Rio de Janeiro e que se dirigia para Santa Rita do Paraíso. Ofereceu-me a sua amável companhia e continuamos juntos a viagem. (...) O tal companheiro era um excelente rapaz e dentro em pouco percebi que era além de tudo um magnífico pândego. Odiava os caipiras e a gente de pouca instrução ou nenhuma prática do mundo. Quando queria imitar o sotaque italiano ou francês, fazia-o com uma maestria admirável. Foi por isso que lembrei-me de fazer-lhe a seguinte engraçada proposta. A fazenda onde íamos pernoitar pertencia a um sujeito de bom coração, porém, com fama de rústico e que embora remediado não sabia aproveitar os cobrinhos, vivendo como outros entregue aos doces sigilos da vida sertaneja. LEAL, Oscar. Viagem ao centro do Brasil (impressões) . Lisboa: Tipografia Largo do Pelourinho, 1886. p. 49-53. 28

137


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

É a vida ridícula do avarento que se curva ao peso do dinheiro. Uma vez ali eu teria de intitular-me um americano naturalista para o que reunia os predicados preciosos; e ele um engenheiro francês incumbido de levar estradas de ferro através daqueles sertões. Dito e feito. O guia foi avisado e lá chegamos sem novidade alguma às seis horas da tarde. O tal fazendeiro, calculando antecipadamente a nossa ilustre posição, recebeu-nos com alguma frieza e meio atrapalhado, obsequiando-nos a todo o momento com títulos de nobreza e v. ex., etc., etc. Saiu o homem dali e foi ter com o guia em particular, perguntando e indagando das nossas profissões. Este, porém, não acostumado a ouvir a tal palavra naturalista, viu-se atrapalhado na resposta, dizendo que o outro era engenheiro e eu um... pomadista! O caso era de encavacar se, porventura, o tipo conhecesse a palavra, mas felizmente não sucedeu assim e ele ainda por sua vez esqueceu-se dela. Voltando a ter conosco, o companheiro explicou-lhe em português afrancesado o motivo da nossa viagem. Quando, porém, lhe disse que eu era naturalista, voltou-se para mim mais ou menos confuso exclamando: 138


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

– Naturalista! Naturalista! É natural. Não me recorda de ouvir tal palavra, mas pelo que vejo v. ex. é diretor de alguma companhia de naturalidades, hein? (...) O companheiro então safou-me da enleada explicando-lhe a palavra naturalista. – Cá o senhorre, dizia ele, estude la natureze des minerales, e é

mineraliste, conhece la botanique e faz la nomenclature des vegetales. É portanto, além de naturaliste, zoologiste, mineraliste, fisiologiste, paisagiste, e mesmo até, cronista, jornalista, articulista, retratista, dentista e pomadista! – Pois que! exclama admirado o fazendeiro. O senhor também é dentista? – Exato, lhe respondi quase com uma gargalhada, por causa dos istas do companheiro. – E conhece o novo processo de extrair dentes sem dor? – Conheço perfeitamente, porque nunca as senti quando os extraí. – Em si? – Não, nos outros. – É natural. – Mormente para um naturalista onde se encontram naturalidades. – E o que vem a ser po... pomadista? O companheiro olhou para mim de soslaio e eu respondi com prontidão. 139


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

– É uma coisa que vem nos anúncios quando o dentista diz que extrai dentes sem dor. – Sim senhor, é bastante natural. – Naturalíssimo, disse eu. – Naturalíssimo, voltou o companheiro. – Circumnaturalíssimo, acrescentei ainda. Em seguida a prosa avolumou-se e eu tornei-me um orador improvisado, tendo ali toda a família do fazendeiro e mais outros tipos desconhecidos. Falei-lhes sobre várias espécies de plantas e minerais. Fiz-lhes ver ainda que o homem descende do macaco e a mulher da macaca, segundo Darwin. Que Adão e Eva não podiam ter sido pais de todas as raças humanas e mesmo que se admita a mudança de cores pelos climas não se pode compreender a transformação na formatura e estrutura de uma a outra raça, onde se encontram sensíveis diferenças e a mesma diferença mais ou menos que se nota do branco europeu para o negro africano, nota-se deste para o gorila, o orangotango, o mais perfeito dos macacos e sobretudo nas raças do Sião. Portanto Adão e Eva deviam ter sido pais de toda essa macacaria. Disse-lhe depois, este mundo ser da família dos planetas e que, portanto, é só por si um grande ser cheio de vida e vigor. Que os rios são as suas veias, o oceano a veia mãe, a água o sangue, as pedras os ossos, os vegetais os cabelos e que assim como neste mundo existem partes mais férteis, com grandes matos e 140


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

outros de campos e areais nativos, a mesmíssima coisa sucede e se nota sobre a superfície do nosso corpo. Que neste há duas partes completamente nuas de vegetação, tais como as solas dos pés e as palmas das mãos, tal e qual como no mundo com os polos norte e sul, onde realmente apesar de inúmeros esforços, o homem não conseguiu penetrar. Que a mesma diferença existe ainda de um homem para um piolho que vive sobre aquele (na parte mais fértil, a cabeça), existe também do homem para o mundo que vive sobre este. Além de tudo o nosso corpo é interior e exteriormente povoado de pequenos animáculos invisíveis a olho nu, cada qual de uma espécie ou determinadas famílias. Ainda segundo o grande sábio do século Camilo Flamarion, a lua é filha ou filho da Terra e assim por diante. Que sendo finalmente o mundo centro de tantos pequenos entes (vida sobre a vida) é natural que seja também o que mais possua e cuja idade já parece ser madura pelas transformações que se têm em si operado. Daí a degeneração sensível que se nota em todas as raças. Segundo a história, os homens antigamente atingiam a altura de gigantes e hoje não somos mais que pigmeus. Estava terminada a minha preleção.

141


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

PALESTRA PROFERIDA NO ATENEU LITEÁRIO UBERABENSE29 Senhores membros do Ateneu Literário Uberabense. Demorando-me embora pouco tempo nesta cidade, onde me trouxe o exercício prático da minha profissão, eu que a amo a literatura e desejo o desenvolvimento, não só desta província, como de todo o país, não posso deixar de, neste momento, tornar patente com a minha palavra a alegria de que me sinto possuído, por ver-me em terra estranha coberto de provas de filantropia e amizade, em meio de uma plêiade de rapazes amantes do progresso e da liberdade. A minha humilde palavra e a minha rude inteligência são mesquinhas bem sei, mas a vossa benevolência me animará a prosseguir. Sinto-me alegre e feliz, sabendo que vós em maioria seguis as ideias avançadas do século e não vos deixais levar por ideias desprezíveis e fanáticas. Sei que tendes tomado a peito também uma das grandes questões que agitam o país. Da escravatura senhores é que falo, porque eu não reconheço qual o direito que possa existir do homem sobre o homem. A emigração foge, e foge espavorida ante as cenas bárbaras que muitas vezes temos presenciado no interior das províncias. O emigrante deixa no Brasil de sujeitar-se aos trabalhos da lavoura, é verdade, mas a causa é fácil de

LEAL, Oscar. Viagem ao centro do Brasil (impressões). Lisboa: Tipografia Largo do Pelourinho, 1886. p. 62-63. 29

142


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

compreender-se. É que neste país a lavoura está desonrada pelo chicote, pelo azorrague, pelo instrumento mais aviltante que se conhece. Entanto caminhai sempre pelo terreno legal, fazei prevalecer os direitos de uma raça, não vos importeis com os espinhos de hoje, que mil glórias vos rodearão amanhã. E é a província de Minas que primeiro deve caminhar nesta questão, porque foi ela que, produzindo um Tiradentes, incutiu no espírito dos povos a ideia da liberdade.

143


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

ÚLTIMOS DIAS EM CAMETÁ30 O aspecto que apresentava agora Cametá era magnífico. Por todos os lados, vida e movimento, devido à alta no preço da borracha e principalmente à safra do cacau que corria abundante. Negociantes, que, há dois anos a esta parte, jaziam prostrados por inúmeras dificuldades comerciais, tinham então em face uma época de salvação de lucros e recompensas. Diariamente numerosos botes e montarias ali aportavam, transportando centenas de sacos com cacau e volumosos fardos de borracha. Maior número de vapores subiam e desciam o rio despertando a monotonia daquelas paragens. As ruas de Cametá, meses antes, solitárias e sombrias, enchiam-se de vida e animação e alguns prédios novos estavam a construir-se. Tudo melhorava sensivelmente. No meio daquela gente estranha provinda de vários pontos do Tocantins, destacava-se um ou outro tipo verdadeiramente sertanejo do alto rio, cujas vestes de couro, enlameado e sujo pelo pó das estradas, nos fazia recordar o tropeiro goiano.

LEAL, Oscar. Viagem a um país de selvagens. Lisboa: Livraria de Antônio Maria Pereira, 1895. p. 213-220. 30

144


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

E com efeito eram estes indivíduos em sua maioria goianos, embora em Cametá os chamem baianos ou mineiros, os quais por sua vez chamam paraseiros aos paraenses. São habitantes do alto Tocantins e Araguaia, e vinham ao Pará efetuar a troca de couros e fumo por sal que conduzem em grandes ubás. Neste reboliço comercial em que se afogava Cametá, tudo era lembrado, e uma onda de animação envolvia as próprias artes no estado ainda embrionário em que ali jazem. Até as letras eram lembradas. Alguns moços, agrupando-se em busca de luz, tratavam de festejar a inauguração de um gabinete literário, ideia que vimos coroada de êxito. O ato de instalação devia celebrar-se numa das salas da casa em que residia o professor público, sob a presidência de um dos seus fundadores. Obrigado o meu comparecimento em consequência dos convites que recebera e ainda mais por estar o meu fraco nome no número dos oradores inscritos, para la me dirigi na noite marcada. Bem iluminados e preparados, os salões regurgitavam de convidados e numerosas famílias foram ocupando lugar na sala em que devia realizar-se a primeira sessão do clube literário Marquês de Santa Cruz Cametá em peso ali se achava e poucos, bem poucos, foram os que por força maior deixaram de tomar parte em tão saudosa festa.

145


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

À direita de um estrado, sobre o qual se erguia a cadeira presidencial, havia uma tribuna preparada adrede e que ia ser ocupada em ordem pelos oradores. À vista de todos e sobre a mesa presidencial, destacava-se na parede, entre alegorias, o retrato do falecido Marquês de Santa Cruz, em cuja memória tinha lugar esta festa, como um tributo às letras pátrias. Às 8 ½ horas, depois do discurso de instalação proferido brilhantemente pelo Dr. João de Sequeira Mendes, presidente do clube, seguiram-se com a palavra os oradores inscritos. Se quisesse aqui expender-me a tal respeito ou mostrar qual mais brilhou, seria talvez taxado de injusto, pois que todos se esforçaram por corresponder à expectativa geral. Não me posso, porém, furtar ao desejo de apontar aqui o nome do jovem E. Martins, filho do professor público, cuja inteligência brilhante se manifestou em magnífico floreado e num discurso em que se exprimiu com uma calma não vulgar em moços da sua idade. Um coração terno, apaixonado de rapaz cheio de crenças e sonhos, ouvimo-lo com silenciosa atenção discorrer sobre os moldes da virtude feminina. O seu sistema de dicção era tão doce e suave que, apesar de traí-lo a voz fraca e débil, chegava ternamente a enlevar todos os ouvintes.

146


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Naquelas frases repassadas de melodia brotava a expressão sincera sobre as virtudes que engrinaldam a personalidade feminina. E ele, o jovem crente, assemelhava-se, a seu modo, ao poeta triste em excursões pelas campinas, procurando colher, dentre tantas, a flor por que sente mais viva predileção, depois de cantá-la com vigor, inspirado pelo seu viço e frescura. Naquele salão, onde reinava profundo silêncio, havia também flores; quem nos diz, pois, que este mancebo teria talvez ali a rosa da sua predileção?! Depois que um gentil menino recitara uma poesia de Castro Alves, foi-nos dada a palavra. Recebendo de surpresa o convite para aquela festa, pois que havia apenas três dias voltara a Cametá, não tivera tempo de fazer estudos e reflexões sobre o tema que de momento adotara. Tratava-se da fundação de um clube literário; portanto, qualquer ponto científico era o bastante, para, tentando defini-lo, exprimir-me sob minhas forças e muito principalmente sob minha opinião. “A educação da mulher a par da mais pura religião” foi o ponto que escolhi, despertando um acolhimento que sempre esperei de tão seleto auditório, mas de que me considero fraco merecedor. Sei perfeitamente que a franca manifestação de pensamento desperta opiniões e produz, em conjunto, afeiçoados e desafeiçoados.

147


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Sou daqueles que preferem afrontar as consequências desferidas pela crítica, do que ditá-la a encoberto. Os fins benéficos que dela devem provir, solidificar-se-ão melhor, muito melhor, em face do original que a produz. Se o nosso mérito é mesquinho e diminuto para fazer realçar o seu valor, a nossa obra foi produzida em céu aberto sem as cores anônimas do costume, que empenam. Outros mais abalizados, se assim o entenderem, estender-lhe-ão as mãos, dando-lhe apoio e incremento. Tudo o que é anônimo nas letras e ciências é produto do medo e da falta de confiança, de que o autor se sente eivado. Assim me foi dada ocasião de tratar da educação da mulher, porque para ela deve convergir as vistas de todos os bons patriotas. É fato sabido e notório que, com raras exceções, a mulher no Brasil recebe uma educação rudimentar e quase sempre demais limitada, representando um papel secundário quando a sua inteligência lhe dá direito a vastas aspirações, impelindo-a baldamente a grandes cometimentos. Não podem, porém, atingir o ponto a que se destinam pelos estultos preconceitos que ainda predominam nos nossos meios hipócritas e que conseguem com o aplauso de muitos estorvarlhes os passos. A nossa sociedade é verdadeiramente estúpida; vivemos cercados de um romantismo impressionável, num todo falso e deleitável ao mesmo tempo.

148


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Uma jovem molda o seu procedimento pelas obras românticas que lê e lhe abrasaram a imaginação, sem lembrar-se de que cai assim num mundo fictício e que se trai a si própria. Depois os males advindos do donjuanismo introduzido na própria sociedade. Quantas vezes vemos na rua, nas janelas, nas reuniões, nos passeios e nos teatros, um rapaz com pretensões a galanteador e uma moça com desejos de ser amada, ou ter um namorado, porque isso é moda, entregaram-se a idílios estapafúrdios, em que se descobrem gestos tolos, frases apatetadas, passagens ridículas, tudo originado pelo romanticismo? E uma moça casa porque julga amar o noivo e ser amada simplesmente! Casa com ele porque é um rapaz bem falador mas que só diz tolices, que veste bem mas nada possui, nem profissão, nem saber, nem meios que lhe garantam o futuro da família e daí surge a hora do desengano quase sempre tarde. Uma mulher enfim logo que nasce, encontra o berço alcatifado de flores e teteias; cresce, ainda menina chamam-lhe bonita pelo galanteio, continua a crescer, mira-se ao espelho a toda a hora e a todo o instante, certa de que na realidade é bonita e não lhe faltarão adoradores; esquece o estudo, deixa as costuras a um canto e vai para a janela namorar. A mucama, tipo de perdição que invade as casas de família, é quem a ajuda e lhe facilita os meios de corresponder-se com os namorados, uns toleirões que vivem nas esquinas e que lhes escrevem cartinhas repletas de asneiras e sandices.

149


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Uma mulher enfim, o que quer é casar; mas a um homem é forçoso meditar e sobretudo estudar aquela que vai merecer os seus cuidados para então contrair a união sem receio de arrepender-se. A paixão pode tanto levar o homem a unir-se com uma mulher, como esse sentimento transformado em ódio o pode fazer sob a obediência de um capricho. Instalado finalmente o clube literário Marquês de Santa Cruz sob os melhores auspícios, terminou a festa animado sarau dançante, que se prolongou até o romper do dia. Após o exercício intelectual, o exercício higiênico é com certeza salutar e agradável. Prefiro, no entanto, o primeiro, mormente sob mais útil ponto de vista. Sempre dancei e nunca fui amigo de danças. Isto de danças Só a crianças, Pode agradar.

Um mês depois de pequenas e novas excursões por vários pontos do Tocantins, preparava-me para deixar a princesa dessas paragens – Cametá. Desejando tornar patentes a alguns amigos as saudades futuras de que me sentia possuído ao deixar aquela terra, oferecia-lhes na véspera da partida um modesto banquete que foi servido no salão principal do hotel Tocantins. Colocado em vigor à cabeceira da mesa, tive o prazer de ver-me ao lado de um pequeno mas escolhido número de cavalheiros, alguns dos quais ergueram

150


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

brindes animando o festim. Entre eles recorda-me os nomes dos Drs. Aristides de Moraes, Temístocles de Figueiredo, promotor público, redator da Reação, Henrique Wanzeller, etc. Este último é infelizmente falecido. A todos me mostrei penhorado, tentando por minha vez agradecer-lhes as atenções de que era alvo e fazendo votos pelas prosperidades daquele abençoado e rico torrão. Na mesma sala, que se achava regularmente adornada e iluminada, fez-se ouvir uma das corporações musicais, dando assim maior realce àquela pequena festa.

151


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

DOIS ESTUDOS NO ÚLTIMO LIVRO DE VIAGENS SOBRE O BRASIL

152


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Em meio ao seu último livro a respeito de suas excursões ao Brasil,

Viagem a um país de selvagens, Oscar Leal interrompeu por duas vezes a narrativa para realizar estudos de caso. Em tais ocasiões, manifestava-se mais abertamente o viajante-naturalista, que propagava o pensamento científico, ao propor uma análise específica sobre um determinado assunto. A primeira proposta denominava-se “Estudo rápido” e estava bem inserida no contexto geral narrativo, envolvendo uma espécie de miscelânea temática, com um fio condutor ligado à realidade paraense e tópicos como erosão do solo, aclimatação de frutas transplantadas, consumo de cerveja e, um de seus preferidos, a necessidade de núcleos coloniais e a presença de imigrantes estrangeiros, como soluções para o que denominava de pequena “iniciativa de trabalho” e “negligência” de certos brasileiros”. Já o outro estudo intitulava-se “Os índios da América” e representava uma certa ruptura para com o conjunto da narrativa, pois, em meio às descrições da natureza, dos núcleos urbanos e dos usos e costumes dos índios, surgia aquela análise, sobre a qual ele mesmo reconhecia que se afastava ”por alguns instantes do fim principal que me propus”, passando a discorrer sobre a tese de que as populações indígenas americanas poderiam ter uma origem autóctone, percorrendo teorias sobre a gênese da vida no planeta, abordando pontos de interseção e de diferenciação entre povos de diferentes continentes e buscando lançar argumentos que reforçassem sua tese. Nos dois escritos, Leal intentava atuar como um estudioso que desenvolvia um trabalho intelectual, de modo que buscava lançar mão de uma certa erudição, como ao citar intelectuais que corroborassem com suas

153


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

explicações, mormente no segundo texto. No “Estudo rápido”, o escritor salientava que certas questões só poderiam ser desvendadas pelos especialistas e viajantes observadores e não “por aqueles que deixam de consagrar algum tempo ao estudo profundo que nos despertam as naturezas virgens”. Nesse sentido, fazia questão de ressaltar que suas conclusões advinham de seus estudos, do conhecimento de causa e de suas excursões, afirmando que conhecia o Brasil “praticamente do Amazonas ao Prata”. Enquanto isso, “Os índios da América” estava vinculado à sua ação como conferencista, pois o texto originara-se em sua palestra na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, em 189231, e nele o autor voltava a incorrer na discussão de temas relacionados a áreas diversas do conhecimento humano como etnografia, geografia, história, antropologia, arqueologia e biologia, assim como trilhava pelo darwinismo, por teorias em torno do determinismo geográfico e apreciações de cunho racial. No seu arrazoado sobre a gênese dos índios americanos, Leal dizia querer convencer-se “de que o homem americano tem tanto direito de dizer que teve sua origem na América, como o asiático na Ásia” e, depois de buscar defender sua tese, concluía “quase convicto, que o índio da América é filho nativo deste continente, e, portanto, genuinamente americano”. Tais estudos, articulados com suas conferências em locais de “notório saber” e com suas palestras pelo interior do Brasil revelavam mais uma das tantas facetas do múltiplo Oscar Leal.

31

Ver o primeiro capítulo deste livro.

154


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

155


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

156


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

ESTUDO RÁPIDO32 Nas terras firmes da outra margem, nas vizinhanças de Cametá, coisa idêntica se me havia deparado. Terrenos em parte maus e pouco prestáveis às culturas contínuas. Nas ilhas sujeitas a inundações constantes durantes seis ou oito meses do ano, assim como nos terrenos mais frescos da terra firme, próximos às ribanceiras, parece certo que a vegetação é mais ou menos luxuriosa; mas é preciso convir em que o húmus da crosta tem sido formado secularmente por perene calor aliado ao apodrecimento contínuo das partes em que o período de vegetação findou. A vida produz-se no seio da morte. Vemos muitas vezes uma bela parasita erguer-se viçosa entre as fendas de um tronco de árvore podre e carcomido. A fartura apresenta-se ao pé do estulto desperdício, quem sabe se originada por este, e o bom nasce muitas vezes do mau. Resguardadas, pois, as florestas que margeiam as grandes artérias e que são as maiores preciosidades desta região, o aproveitamento dos terrenos mais próximos é útil desde que se adota a cultura dos gêneros similares de zona tórrida.

LEAL, Oscar. Viagem a um país de selvagens. Lisboa: Livraria de Antônio Maria Pereira, 1895. p. 67-73. 32

157


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Todo o mundo sabe que a ação das matas é forte e grandiosa na produção das chuvas. Cristóvão Colombo atribuía à extensão e intensidade das florestas que cobriam o cimo das montanhas a abundância das chuvas refrigerantes, as quais esteve exposto durante o tempo que costeou a Jamaica. Produzidas as chuvas, estas podem-se limitar a regar a área tão somente em que a ação das matas se desenvolve. “O chover muito pouco, diz-nos Zurcher nos seus Fenômenos da

atmosfera, em certos países quentes depende da natureza arenosa da superfície terrestre. O sol dilucida aí uma corrente ascendente de ar quente que impede de se condensarem as vesículas do vapor”. Ao passo que no Estado do Pará as chuvas são tantas que chegam a causar flagelo, no Ceará, estado não muito ao sul, são tão escassas que a falta delas espalha o terror diante de contínuas secas que o assolam amiudadamente. Derrubadas as florestas e gasto o adubo natural que invade a superfície, adeus decantada fecundidade, que só pode ser vista aereamente por aqueles que deixam de consagrar algum tempo ao estudo profundo que nos despertam as naturezas virgens. Essa fecundidade é muitas vezes aparente. Nas minhas excursões pelo Tocantins, notei que as frutas amadurecem antes do tempo devido ao esgotamento da seiva na planta nativa, às chuvas e calor constantes.

158


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Um ou outra rara planta frutífera, ali a custo aclimada, produz frutos de gosto desigual e desenxabido. O caju e a própria manga, frutas que no sul são bastante apreciadas, ali parecem simplesmente intoleráveis. Os próprios habitantes as deixam cair das árvores e apodrecer disseminadas nas praias, sem delas se aproveitarem. Temos demasiados exemplos provindos da transplantação de plantas frutíferas de uma para outra terra ou de um para outro ponto, cujos resultados excedem a toda e qualquer expectativa. Uma fruta, seja ela de que espécie for, é apreciada pelo seu sabor e nunca pelo seu tamanho. A cana de açúcar, que erradamente se diz ter sido transportada da Madeira para o sul do Brasil, continua a ser cultivada tanto nesta ilha como nesta república. Provai o suco da de lá e da de cá e notai a diferença. Provai na Ilha da Madeira a manga, o araçá, a goiaba, a própria banana, e vereis que sabor delicioso nos arrebata o paladar, o que não podeis achar em todo o território brasileiro, onde existem as plantas nativas que produziram a semente transportada. Na Europa, viajando do sul para o norte, sempre notei por exemplo que a cerveja tem melhor ou pior adaptação ao paladar, com sensível diferença de um para outro país. O boch em Berlim é ótimo, em Bruxelas, Londres e Paris é bom, em Madri e Lisboa, sofrível. 159


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

No Brasil dá-se a mesma coisa, conhecendo-o praticamente do Amazonas ao Prata. Quereis uma prova? Ei-la. Em todo o Estado do Pará não existe uma só fábrica de cerveja; entretanto, como já disse um distinto escritor, bebe-se ali mais cerveja que água na Bahia. Não duvido que isto seja um exagero de dizer, nem irei certificar-me se os baianos bebem água à farta, mas o certo é que o Pará consome milhões de garrafas de cerveja. Toma-se ali cerveja de manhã cedo, como na Europa se toma vermute ou absinto. As garrafas vazias em Belém do Pará não têm valor e os hoteleiros e negociantes, para desobstruírem os depósitos e os quintais, pagam ainda em cima a quem as vá lançar ao fundo do rio. No Maranhão e Ceará igualmente não existem fábricas de cerveja; em Pernambuco há duas; em Maceió, Bahia e Espírito Santo, uma em cada capital. Só do Rio de Janeiro para o sul conseguem os fabricantes de cerveja nacional encontrar consumidores e se transpusermos a fronteira do sul teremos o prazer de provar, em Buenos Aires, a famosa Quilmes. No Rio de Janeiro abusa-se da tolerância do público, impingindo-lhe cerveja com a marca de alemã a que é fabricada em Petrópolis, ao passo que no Pará o público bebia como nacional a cerveja – marca Onça – provinda de Hamburgo. Os habitantes de Tocantins também gostam da cerveja; mas, são menos escrupulosos, nestas coisas de marcas. 160


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Onça, Tenent’s, Calrsberg, Bass, tudo para eles é cerveja. Preferem, em todo caso, a água do rio que lhes serve para todos os misteres. Apanhada de véspera e depositada em púcaros de barro ao ar livre, durante a noite, é mais ou menos tragável e menos nociva. A falta absoluta de rochas ou colinas não permite o encontro de uma gruta ou de uma poética fonte. Os cametaenses proclamam, com alguma ufania, as virtudes da água do Coriman; dizem sempre aos hóspedes que partem saudosos de seus torrões: – Bebeu água do Coriman, voltará mais cedo ou mais tarde. Isto é quase um dizer popular em toda a parte. – Bebeu da nossa água, voltará à nossa terra. Em todo o caso, o paraense proclama a sua terra doutra forma, bradando que “quem vai ao Pará, parou, e bebendo açaí ficou”. Verdade é que quem visita uma vez esta região sentirá vontade de voltar a ela, porque nos prende a amabilidade de seus habitantes. Um futuro próspero e não remoto a espera. A criação de núcleos coloniais seria de grande proveito ao baixo e alto Tocantins, mormente hoje que está em via de realização a construção da estrada de ferro de Alcobaça que unirá o Pará ao norte de Goiás?

161


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Aproveitando os terrenos mais férteis o bom trabalhador só terá a esperar sempre provável êxito e brilhante recompensa dos seus cuidados e esforços. A cana, os cereais, o milho, a mandioca, o cacau, tudo ali se desenvolve apresentando magnífica fonte de receita desde que se tome por base – trabalho e força de vontade. Com exceção dos terrenos vizinhos ao Baião, daí para baixo, a superfície topográfica é mais ou menos plana, exceto as partes acidentadas nos cursos dos rios e igarapés. A população atual que apresenta insignificante proporção de habitantes por quilômetro quadrado, muito deixa a desejar quanto à iniciativa de trabalho. A consequente utilização de promover o governo estadual à imitação do de São Paulo, o povoamento desta zona, por estrangeiros aptos ao serviço da lavoura, seria de imenso proveito. Eles tornar-se-iam portadores dos bons exemplos e fariam nascer entre aqueles povos a ambição e o amor ao trabalho. Pouco a pouco, a negligência desaparecerá e todos virão a comungar no grande banquete de progresso que é a honra dos povos e a glória das nações.

162


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

163


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

OS ÍNDIOS DA AMÉRICA33 Afastando-me por alguns instantes do fim principal que me propus, vou oferecer ao leitor algumas considerações que me despertam ilustres autores, cujos juízos cito tornando meus e tanto quando pode produzir meu espírito infelizmente pouco esclarecido e obcecado por sofrimentos de toda a espécie. Não me parece de todo impossível, como dizem muitos, achar-se a origem das primeiras tribos que povoaram em remotas eras o Brasil e a América em geral e trazendo a questão à altura a que posso fazê-la chegar, pelas conclusões lógicas e irrefutáveis que a distinguem, não tenho em mira pretensão que não seja baseada na razão. Trata-se de saber como apareceu o homem na América. Deste assunto já tive ensejo de me ocupar diante de homens eminentes, em parte de uma conferência que fiz em 1892, na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Pondo de parte o Brasil (se bem que ao norte do país tenha existido em épocas remotas uma civilização adiantada, como ultimamente se tem procurado demonstrar e sobre o que parece não existir dúvida) e outros países da América, vamos em primeiro lugar às regiões andinas, campo mais apropriado para os primeiros estudos.

LEAL, Oscar. Viagem a um país de selvagens. Lisboa: Livraria de Antônio Maria Pereira, 1895. p. 151-166. 33

164


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Diz a tradição que houve uma época em que algumas raças do continente americano, envoltas na mais profunda selvageria, se entregavam à guerra como ocupação favorita e a atos de antropofagia, fazendo da carne de seus inimigos apetitosos manjares, etc. Aparecendo Manco-Capac, a vida dos naturais tomou outro aspecto, porque ele, estabelecendo-se no vale de Cuzco, reuniu-os em habitações e ensinou-lhes a cultivar a terra. Manco-Capac o depois Kara-Inca-Manco-Capac e Mama Oello, irmão e irmã e ao mesmo tempo marido e mulher, atravessaram as planícies vizinhas do Lago Titicaca, antes de fixarem residência, sendo acompanhados por muitos dos seus. Uma outra tradição ou lenda conhecida ainda hoje dos índios peruanos, nos informa de que homens brancos e barbudos haviam partido das bordas daquele lago e que, dizendo-se filhos do sol, exerceram depois grande poder sobre os habitantes do país aos quais ensinaram o que antes eles não conheciam. É para nota que entre os astecas se trata também do aparecimento de Quetzalcoatle e tanto mais curiosidade nos despertam estas tradições, ao sabermos que entre as duas nações nunca houve a menor comunicação antes da conquista espanhola. As ruínas de Piahuanaco e as das bordas do Lago Titicaca são, porém, mais antigas que a fundação da dinastia incaica por Manco-Capac e se numa

165


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

parte houve gente inteiramente bárbara a civilizar, noutra existiam ainda, ou tinham existido, tribos bastante adiantadas que jamais puderam ser imitadas. Estas antiquíssimas ruínas demonstram à saciedade quão superior foi a civilização que alcançaram outros povos, à que atingiram mais tarde os incas e os astecas ao tempo da conquista por Pizarro e Cortez. Devo notar que Manco-Capac quando chegou a Cusco falava uma língua desconhecida no país, mas que ele conservou somente entre os seus ou a gente da sua corte; ao passo que tratou de vulgarizar a outra, que é conhecida por

kechua. Da primeira, a oficial que desapareceu quase completamente com a queda dos incas, poucas são as palavras que se conhecem ainda. Uma delas é kara, apelido que significa invasor, usurpador o conquistador, valente e destemido, tirano, etc. Na persuasão em que estou, de que nem todos os povos americanos são raças de uma só semente, filhos de um só berço, admito contudo, que da Ásia central partissem invasores da América, pela conservação da palavra kara, conhecida lá entre os filhos do sol e das serpentes, cujas crenças foram cá perpetuadas e, sobretudo, hoje, pela luz que se tem feito em redor do mais precioso objeto arqueológico encontrado em vários pontos da América, a pedra verde, o Muyrakytã, da Jade (Nefrite) laminar verde oriundo da Ásia, substância que Barbosa Rodrigues, ilustre sábio brasileiro, provou há pouco não ter sido até agora encontrada, bruta ou naturalmente em nenhuma região do Novo Mundo; como admito que em épocas pré-históricas tivessem povoadores americanos alcançado a Ásia ou entrado em contato com os seus habitantes, emprestando166


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

lhes crenças e costumes em troca das suas, da mesma forma que obtinham os famosos Muyrakytãs, amuletos que espalharam entre os seus, de regresso aos pátrios lares, uns ou outros em vária épocas. Ao Amazonas, diz Barbosa Rodrigues, que o Muyrakytã foi levado pelos karahibas, descendentes dos nauhas. Como vemos, a esse distinto investigador deve-se a luz que se fez em torno desse precioso objeto da arqueologia americana, a misteriosa pedra verde de La-Condamine e outros. Atribui-se particularmente o seu uso às amazonas, cuja existência tem sido negada por muitos, quando, no entanto, outros a garantem, e eu assim penso pelo que tenho lido e ouvido dos próprios índios. Basta o prisco uso da palavra ikamiaba (mulher sem marido) que sem motivo não podia existir e que tem passado de geração a geração. Creio que se Orellana as não chegou a ver, devia pelo menos ter, na descida pelo rei dos rios, obtido notícias seguras da existência delas. Os povos e seus descendentes que mais uso fizeram do Muyrakytã usam da palavra kara. Muyrakytã significa nó de pau. Tal denominação provém da semelhança que algumas jades têm com os nós da madeira. Geralmente significa amuleto, talismã. O amuleto, da palavra árabe hamalet, quer dizer estar dependurado, e partiu do Oriente para o Ocidente, antes de penetrar no cristianismo.

167


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

A tradição e as virtudes de que goza o Muyrakytã são a mesma do amuleto asiático. Ninguém deixa de afirmar que entre as raças americanas e a mongólica, existe notável semelhança, e Castelnau, por exemplo, diz que “Is est difficile encore aujourd’hui de distinguer sous ler apport physiologique quelques unes des peuplées de l’Asie avec les sauvages de l’Amerique”. Para completar este trabalho, diz Barbosa Rodrigues, faltar o estudo antropológico. Não prende minha atenção a semelhança que se nota em várias raças, e nem o estudo antropológico baseado em provas que fazem simplesmente crer, ser o indivíduo pertencente a uma espécie. O que quero é convencer-me de que o homem americano tem tanto direito de dizer que teve sua origem na América, como o asiático na Ásia. E porque não ser assim? Não é a América a pátria do guariba, como a África o é do gorila? Não são estes macacos, membros de uma espécie? Contudo, têm ambos pátria diferente. No mundo vegetal temos as plantas nativas do continente americano, que nascem e medram à superfície do solo, vegetando com a ajuda do seu calor, como a terra vive fecundada pelo sol. Com certeza, ninguém transportou de outras partes do mundo para esta o pau-brasil, o jacarandá, etc.

168


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

É sabido que os animais originários de cada país surgiram nos matos e nas florestas, através da evolução orgânica, segundo Haeckel, como as moneras primitivas nasceram por geração espontânea no mar ou como os cristais salinos nascem ainda nas águas criadoras (eaux-meres). A vida dá-se no seio da morte por entre a decomposição da matéria orgânica. Basta ver sobre que vegeta muitas vezes uma linda parasita. É na reunião dos princípios albuminosos e anorgânicos, segundo Haeckel, nesta substância (azoto e carbono) denominada protoplasma, que se vê como surgiu a vida sobre o nosso globo. Ainda. Abandonando-se ao tempo qualquer quantidade de água, embora límpida e cristalina, exposta em seguida aos seus rigores por alguns dias, nesta água estagnada vê-se surgir milhares de seres, mais do que visíveis a olho nu. E aqueles pequenos insetos surgiram na água, como surge no corpo sujo e suarento o piolho e outros muitos asquerosos insetos. A mesma coisa sucede com a terra, quando contém em quantidade húmus, calor e umidade. O homem, último e mais perfeito vivente, obra da prodigiosa perfectibilidade física até hoje conhecida, apareceu em toda a parte sobre a terra onde os efeitos da vida se têm feito conhecer numa escala ascensional. Esta opinião é puramente minha e filha do que a tal respeito me tem sido dado a pensar. 169


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Dizem os investigadores da ciência que isto se deu no período quaternário, e se nós ainda estamos nele, eis porque precisamente as transmutações, em sua ação lenta e demorada, são para muitos de difícil compreensão. Quem me diz que dentro de alguns milhares de anos, se esse grande ser que chamamos Terra, ainda existir através da evolução orgânica, o homem cederá seu lugar ao homem do futuro, dotado ainda de mais saber e perfeição que ele próprio? Então para essa nova espécie, o homem atual não será mais do que o quadrúmano é ainda hoje para ele. A lei da perfectibilidade é um axioma incontestável. Certamente, portanto, não é possível que a criação tenha terminado no nosso planeta e nem o homem constitua o último degrau da escala da vida. Outro ser mais perfeito e inteligente pode ainda substituí-lo ao mesmo tempo que uma fauna e uma flora completamente novas surgirão também. Maravilhosos, porém, naturais são os resultados que a natureza tem produzido desde que começaram a desenvolver-se nos lodacentos e fumegantes líquidos, que em épocas pré-históricas cobriam grande parte da Terra. Encontra-se perfeita explicação da perfectibilidade física, a que se acham submetidos os corpos vegetais e animais, na desaparição de muitas espécies e na formação de outras novas.

170


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Se, nos bem elaborados estudos de Darwin se encontram verdades incontestáveis, é preciso afirmar que a criação não se extinguiu, e que os seus efeitos se sucedem em intermináveis transformações. Quem não entender assim, é porque esquece que o homem atual, cheio de conhecimentos e possuidor de rico cabedal científico, que envergonharia sem dúvida os sábios da antiguidade, se os tivesse em presença, ainda assim é incapaz de encher-se de maiores forças, para poder estudar satisfatoriamente os múltiplos movimentos progressivos da grande procriadora – natureza e conhecer a fundo as lutas orgânicas e biológicas, porque a existência humana é tão curta que lhe não permite seguir pari-passu as sucessivas transformações que se realizam em cada século, em cada mil anos. O que é a vida de um homem em comparação com o longo período que a natureza leva, produzindo os seus maravilhosos resultados? Se tem sido precisos dois mil e quinhentos milhões de anos, segundo Thompson e outros autores, para que se operassem tantas transformações na diferenciação dos tipos que em nossos dias apresentam os dois reinos em suas raças, famílias, espécies e individualidades! A criação continua, pois, sem a menor dúvida e não é por consequência um fato consumado. No insondável abismo do tempo hão de perder-se milhares de séculos ou milhões talvez, até que o homem do futuro surja pouco a pouco, livre das imperfeições que se observam na espécie atual.

171


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Desprezando-se a estulta soberbia do homem do nosso tempo é proveitoso considerar que neste imenso período da vida, ele deixou de ser troglodita e canibal, deixou de ignorar os segredos de certas invenções (o que quase só conseguiu nestes últimos séculos), deixou de imitar com sons rudes os ruídos da natureza para falar, para tornar-se sábio, eloquente, letrado e fruir as delícias do progresso, conquistadas pela sua inteligência cultivada. Nisto se devem resumir as suas glórias. Não será também demais, calcular que o homem do futuro surja liberto das duras necessidades a que está sujeita a espécie atual, se possuir um mecanismo mais simplificado. Assim o homem do futuro será sem dúvida, um ser superior, desde que, como o de nossos dias não tenha que alimentar diariamente o seu organismo para a manutenção da vida, causa atual de muitos vícios e muitos crimes que se praticam na Terra. O amor é que será sempre a sua paixão favorita, porque esse fogo brilha do Equador aos polos, porque a natureza é a sua eterna vestal, em todos os pontos onde houve juventude, enquanto não chegar o dia em que a vida haja desaparecido na superfície da Terra, antes que esta se perca nos abismos do imenso vácuo a girar à roda do sol extinto. Esse é o dia, como diz Camillo Flammarion à pág. 459 da sua obra as

Terras do céu, em que da humanidade só restará a sua história fechada e selada, no qual a noite eterna envolverá o nosso antigo sistema solar: E daí em diante, o

172


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

tempo sem asas e sem foice dormirá imóvel sobre os mundos destruídos, como escrevia também o poeta Gilbert na sua ode do juízo final. Com relação ao homem do futuro, não se deve supor que a natureza tenha que modelar novo tipo para substituir o antigo, o que é de crer é que chegará a vez de que o tipo matriz sofra uma nova metamorfose. Assim como atualmente a raça caucasiana, a mais perfeita de todas, tem dominado as outras, é forçoso crer que ela própria será infalivelmente dominada pelas raças vindouras. Tudo isto se lê no grande livro da natureza, aberto sempre diante de todos os olhos. A melhor argumentação é aquela que está fora do escólio e não é fundada em deduções ideológicas. Que se riam disto que aí fica as pessoas que de tudo descreem à primeira prova. Para aqueles que são adeptos da religião revelada, então sim, a verdade científica não passa de terrível pesadelo, porque ambas se odeiam. O axioma científico discute-se e prova-se, e a sutilidade metafísica não se discute nem se prova. Antes de terminar, convém ainda dizer em confirmação ao que admiti sobre o aperfeiçoamento do homem asiático na América ou do homem americano na Ásia, que isto se pode, com igual razão ter dado, certamente

173


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

devido a circunstâncias casuais e não a resultados de determinações premeditadas. Não resta a menor dúvida de que mesmo ultimamente tem vindo parar, às costas da América do Norte, juncos chineses arrastados pelas correntes ou pelos ventos34. Do mesmo modo isto se podia ter dado em remotas eras, em remotos tempos, e Pizarro (Francisco), quando visitou Puna e outras ilhas do Pacífico, precedendo a conquista, encontrou-as povoadas de índios, que se comunicavam viajando de umas para outras ou para a costa em grandes balsas. Da mesma maneira que os juncos, estas balsas podiam ter sido em remotas épocas arrastadas pelas correntes e pelos ventos a terras estranhas de onde regressar também podiam os tripulantes ou seus descendentes, casual ou aventurosamente, pelos mares fora ou em grande volta alcançando pelas costas de Bering as pátrias terras. Calculando os grandes períodos decorridos, os séculos passados entre estes acontecimentos, vê-se que novas e sucessivas gerações apareceram, novos costumes surgiram, as alterações linguísticas se manifestaram e a degeneração das raças continuou a dar-se pela influência do clima e dos hábitos ou se robusteceram segundo o meio.

Em 1850 entrou no porto de São Francisco um junco chinês encontrado a 100 milhas do porto, por um navio americano. O an. Brooks diz que de 1782 a 1850 deram à costa da Califórnia 41 embarcações japonesas. Não podia isto dar-se antes? 34

174


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Quanto às línguas originárias, não se formaram ao mesmo tempo, mas sim, têm sido efeito de um gradual processo através das idades que nunca, nem ainda agora, cessou completamente. Pelos idiomas pode-se conhecer alguma coisa da vida primitiva e ir mais longe que as recordações históricas, mas não alcançar a origem do gênero humano, porque como se vê, o homem só conseguiu falar, depois de balbuciar e imitar, com rudes sons, as vozes da natureza. Muitos historiadores têm querido descobrir a origem de um povo pela semelhança que se nota ordinariamente entre certos termos, significando às vezes o mesmo objeto. Assim é que, imitando tal exemplo, se podia também acreditar que os incas fosses descendentes dos saxônios, comparando – Inglisman com

incamanco ou entre os que falam kechua descobrindo a relação que existe entre oasi ou house-casa! Isto, porém, pouco importa, porque, como tenho procurado demonstrar, deve-se forçosamente admitir que em várias e distantes épocas, foi o continente americano visitado por povos de outros pontos do mundo. O meu fim é simplesmente provar que da mesma maneira o homem puramente americano, como pretendo, pode ter visitado terras estranhas e basta a notícia abaixo sobre o Fou-sang para que tal fato fique talvez provado.

175


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

Fou-sang é o nome que os chineses davam a uma planta oriunda da América conhecida no Peru por Maguey35 e por Agave (Amaryllidacea), no México, transplantada para a Ásia e lá conhecida por aquele primeiro nome, denominação que esses povos entenderam dar também ao continente americano como nós podíamos hoje mesmo denominar o Pará, a terra da Seringa ou Borracha, ou como Gonçalo Pizarro denominou as do centro, por terras da Canela. Nos anais da China conhecidos por Nan-zú encontra-se a notícia a tal respeito e Li-yen, escritor chinês do VII século da nossa era, trata do país denominado Fou-sang, situado a uma distância de mais de 40.000 li ao oriente da China36 (Do Muyrakytan).

Em minhas recentes viagens no Peru, tive ocasião de conhecer esta planta. A arqueologia americana se enriquece de dia em dia. “Um jornal de Cali (Colômbia) anuncia que o Dr. Ricardo Guittierrez, fazendo uma excursão ao vulcão de Puracé, que está em erupção, atualmente acaba de descobrir nas vizinhanças daquele vulcão uma cidade antediluviana, a julgar pelos ossos de mastodontes e crânios humanos quase duplos das proporções ordinárias. Esta cidade, edificada nas neves dos Andes e os fogos do vulcão, tem dimensões colossais. M. Guttierrez encontrou ali termes elevados sobre colunas de granito, de mais de 12 metros de altura, aquedutos, poços, construídos com argamassa e lava do vulcão, que parece haver recebido diversas aplicações, como estuques, calçadas, etc.; e que adquire brilho e consistência de metal”. M. Guttierrez assegura ter contado até 3.000 pedras de moer gastas pelo uso. Achou também uma floresta petrificada. O jornal Em Numero Trece, que anuncia esta maravilhosa descoberta, diz que publicará em breve sob a responsabilidade do explorador, uma narrativa completa da sua viagem do Puracé. 35

36

176


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

Por isto se prova que as famosas pedras verdes da Ásia vieram para a América onde ficaram, como uma planta oriunda deste continente foi também levada para a Ásia e lá transplantada. Quer fossem uns, quer outros os primeiros a efetuar a travessia, pouco importa. De qualquer modo a teoria que apresento está de pé, não deixando de admitir talvez que o continente americano só em época muito posterior ao que sucedeu na Ásia, chegou a reunir as condições necessárias ao aparecimento da vida humana. Na América, como na Ásia, encontram-se, no entanto, os vestígios de uma civilização pré-histórica e ao arqueólogo talvez não fosse difícil, depois de aturados esforços e estudos contínuos, fornecer ao leitor estudioso dados pelos quais se possa francamente ser levado a proclamar em alto e bom som que a América foi habitada e conheceu as maravilhas da civilização muito antes de o ser a Europa e assim que o Novo Mundo não é a América, mas sim a própria Europa. Aqui esqueletos, ruínas e pó, ali restos de grandezas que se sumiram, porque pátrias, nações, tronos, edifícios, línguas, religiões, tudo desaparece no abismo insondável dos tempos, e se confunde com a própria terra que tudo produziu e continua a produzir, enchendo novamente de vida, de grandezas, de fausto, de misérias, os mesmos sítios onde há pouco sucedeu a tudo isto a desolação e a morte. Eis aí a síntese suprema da vida, segundo Flammarion, na definição de Claude Bernard – La vie c’est la mort.

177


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

O viajante que daqui a trinta ou cinquenta séculos procurar as ruínas da soberba Londres há de com certeza sentir-se tão fatigado ao tentar encontrá-las; como quem procura ainda as ruínas da antiga Babilônia, ou como se procura hoje o verdadeiro sítio onde viveram as célebres Amazonas. Termino portanto este trabalho, quase convicto de que o índio da América é filho nativo deste continente, e, portanto, genuinamente americano.

178


FRANCISCO DAS NEVES ALVES

A Coleção Documentos tem por intento trazer ao público fontes manuscritas ou impressas, e ainda bibliográficas cujas edições estejam esgotadas ou se encontrem em difícil acesso. Seu fulcro são os documentos voltados à cultura em geral e, especificamente, aos fundamentos históricos e literários, com especial atenção às temáticas de cunho luso-brasileiro. Por meio desta Coleção, o CLEPUL e a Biblioteca Rio-Grandense unem forças para disponibilizar na rede mundial uma série de documentos que poderão fomentar pesquisas e/ou estimular a leitura de textos originais.

179


VIAJOR, CONFERENCISTA E ESTUDIOSO: O “NATURALISTA” OSCAR LEAL

180


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.