19ª Bienal de São Paulo (1987) - Exposição: Marcel Duchamp

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1!j FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO



19ÂŞ Bienal Internacional de SĂŁo Paulo


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Fundação Bienal de São Paulo. Mareei Duchamp. - São Paulo 1987. 96 p: 74 il. Ib.p. + colori.

A Fundação:

Catálogo da exposição de obras de Mareei Duchamp pertencentes à coleção de Arturo Schwarz, de Milão, apresentada dentro da 19a. Bienal Internacional de São Paulo, de 2 de outubro a 13 de dezembro de 1987. 1. Dadaísmo2. Readymade3. Surrealismo4. Mareei Duchamp 5. 19a. Bienal Internacional de São Paulo I. Título. CDD 759.0674 CDU: 7.036.7


Mareei Duehamp

19. a Bienal Internacional de S達o Pau 2 de outubro a 13 de dezembro de 1987 Pavilh達o Eng. Armando de Arruda Pereira Parque Ibirapuera -

S達o Paulo -

Brasil


PATRocíNIO OFICIAL Governo Federal Presidente da República José Sarney Ministério da Cultura Celso Furtado, Ministro Fundação Nacional de Arte - Funarte Ewaldo Correia Lima, Presidente Ministério das Relações Exteriores Roberto de Abreu Sodré, Ministro Governo do Estado de São Paulo Governador-Orestes Quércia Secretaria de Estado da Cultura Elizabete Mendes de Oliveira, Secretária Prefeitura do Município de São Paulo Prefeito Jânio Quadros Secretaria Municipal da Cultura Renato Ferrari, Secretário


19ª Bienal Internacional de São Paulo

Diretoria Executiva Jorge Wilheim, Presidente Eduardo de Moraes Dantas, 1. o Vice-Presidente Mendel Aronis, 2. o Vice-Presidente Áureo Bonilha Thomaz Jorge Farkas Carlos Eduardo Moreira Ferreira Henrique de Macedo Netto Fernando Roberto Moreira Salles

Secretário Geral Executivo Luiz Norberto C. Loureiro

Comissão de Arte e Cultura Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses Presidente Ana Maria de Moraes Beluzzo, Secretária Luiz Paulo Baravelli Maurício Nogueira Lima Cláudia Matarazzo Glauco Pinto de Moraes Maria Alice Milliet de Oliveira Aldir Mendes de Souza Sheila Leirner, Curador Geral da 19 a BISP

Curador da Exposição Mareei Duchamp Arturo Schwarz


Patrocínio Especial

BANCO DO BRASIL S. A.


Sumário

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 9 O Grande Vidro e os Readymades, Mesmo. 11 Cronologia de Mareei Duchamp .......... 69 Catálogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 78 Anexo I: Duchamp na Bienal ............. 82 Anexo 11: Níveis de Significado de O Grande Vidro ....................... 85 Bibliografia selecionada ................. 90 Planta da Exposição .................... 91 índice ................................ 93 7



Apresentação Sheila Leirner A exposição "Mareei Duchamp", na 19. a Bienal Internacional de São Paulo, reveste-se de muitos significados. O primeiro deles, naturalmente, reside no fato de que esta é a primeira vez em que o artista é apresentado em nosso país, por meio de um conjunto importante de obras, depois da meteórica passagem do único trabalho "Jogadores de Xadrez" (1911) pela II Bienal (1953-54), na sala dedicada ao Cubismo. Trata-se, por outro lado, de uma oportunidade muito especial para revermos o trabalho e o pensamento do gênio das vanguardas históricas, daquele que é uma das balizas da arte do nosso século: exatamente agora comemora-se o centenário do seu nascimento em Blainville. O que é, sem dúvida, o coroamento dos esforços empreendidos pela Diretoria Executiva da Fundação Bienal, pelo corpo de curadores, pela Comissão de Arte e Cultura e também ~ devemos assinalar ~ por Luiz Villares e Walter Zanini, presidente e curador-geral da 16. a e da 17. a Bienal Internacional de São Paulo que, em 1983, mantiveram os contatos preliminares com Arturo Schwarz, estudioso e colecionador das obras de Duchamp. O significado histório desta exposição, todavia, não é menos importante do que aquilo que ela representa para a arte contemporânea e a tensão "Utopia versus Realidade" sobre as quais pretendemos provocar alguma reflexão. Na 19 a Bienal Internacional de São Paulo, Duchamp simboliza sobretudo uma profunda nostalgia daquilo que a nossa geração não viveu e não viverá jamais. Pois, para nós, perdeu-se para sempre aquele impulso inovador, a Intransigência crítica, o radicalismo, onde reside o poder revolucionário de choque e a surpresa da vanguarda. Hoje, diante da obra de Duchamp ~ não há como negar ~ a vanguanda não é mais vanguarda, mas algo muito mais inócuo. Como num vácuo da História, estamos alienadamente instalados num turbilhão contraditório de estilos e procedimentos. Como um outsider da questão "Utopia versus Realidade", Mareei Duchamp pode representar, portanto, um profícuo momento de distanciamento. Um hiato precioso por meio do qual, finalmente, podemos estranhar o nosso presente e refletir com franqueza sobre o curso que tomou a nossa história.

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A Noiva Despida por Seus Celibatรกrios, MesmolThe Bride Stripped Bare bV Her Bachelors, Even, 1958

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o Grande Vidro e os

Reac!Ymadest Mesmo

Arturo Schwarz

I. Introdução Foi somente em 1964 que Mareei Duchamp, com 77 anos, assistiu à primeira mostra individual até então dedicada a ele. Foi organizada pelo curador dessa exposição para comemorar o cinqüentenário do primeiro readvmade plenamente desenvolvido. A retrospectiva itinerante foi inaugurada em Milão (Galeria Schwarz, junho de 1964), viajando, então, para Berna (Kunsthalle, outubro e novembro), Londres (Gimpel Fils, dezembro e janeiro de 1965), Eindhoven (Stedelijk van Abbe Museum, marçomaio), Krefeld (Museum Haus Lange, junho-agosto) e encerrando-se em Hannover (Kestner Gesellschaft, setembro de 1965). No ano seguinte, as portas da Tate Gallery de Londres abriram-se, em junho de 1966, para a primeira grande retrospectiva de Duchamp na Inglaterra. Em 1969, Jindrich Chalupcky e eu apresentamos a uma platéia tcheca a obra de Duchamp exposta na Galeria Spal de Praga. O Museu Israeli de Jerusalém levou adiante essa atividade divulgadora, abrigando uma mostra individual, em 1972, curada por Yona Fischer e eu. No ano seguinte, Anne d'Harnoncourt e Kynaston Me Shine organizaram a mais abrangente exposição sobre Duchamp até hoje realizada, que se inaugurou no Philadelphia Museum of Art (setembronovembro de 1973), viajando para o M useum of Modern Art de Nova York e para o Art Institute de Chicago. A França foi a última a prestar tributo a seu eminente cidadão. Infelizmente, Duchamp já nos havia deixado dez anos antes, quando se inaugurou a exposição - extremamente mal organizada por Jean Clair - no Museu Nacional de Arte Moderna de Beaubourg, em 1977. Por ocasião do centenário de nascimento de Mareei Duchamp (28 de julho de 1887), creio que o mais adequado para uma exposição de suas obras seja ordená-Ias, finalmente, de acordo com a perspectiva do próprio artista e não segundo as inclinações dos curadores - conquanto seus critérios possam ser bem fundamentados. Na verdade, todas as retrospectivas realizadas até o presente tinham um traço em comum: eram antológicas em vez de temáticas. Enquanto a primeira iniciativa era justificada no começo, quando se fazia necessário apresentar a um público mais amplo os principais aspectos da atividade criadora de Duchamp, atualmente esse não é mais o caso. Uma exposição antológica mergulha num oceano de itens ocasionais e obras cruciais, perdendo-se de vista, assim, o essencial e os elos sutis que interligam um trabalho a outro. Com respeito ao que tenha sido sua mais significativa contribuição conceitual à arte do século XX, Duchamp não dá margem a dúvidas: "Não estou absolutamente seguro de que o conceito do readvmade não seja a mais importante idéia individual depreendida de meu trabalho".l Com respeito ao que considerava sua mais notável realização, foi igualmente incisivo: "O Grande Vidro é o trabalho mais singular e importante que já fiz" 2 Para verificar a extensão em que se justificava a convicção de Duchamp, basta lançar um olhar furtivo sobre os movimentos que ocuparam a cena artística

nos últimos trinta anos. Neo-realismo, happenings e Fluxus, arte minimalista, body art, land art, arte conceitual, arte povera, arte e linguagem, todas essas tendências encontram suas premissas teóricas nos readvmades e sua justificativa epistemológica em O Grande Vidro. E mais, muito mais que isso, Duchamp restaurou a dignidade intelectual do artista; a liberdade de pensar e agir, independente de qualquer princípio autoritário - obedecendo, porém, ao Princípio do Prazer -, numa extensão raramente atingida no passado, é conseqüência direta da abordagem radicalmente nova da questão da natureza da obra de arte e das determinantes de sua qualidade estética. Esta exposição, que se concentra, pela primeira vez, naquilo que Duchamp considerava os momentos cruciais de sua atividade - os readvmades e O Grande Vidro -, procura evidenciar, também, o humor de Duchamp e o sentido poético e conceitual de sua aventura artística. Afinal, foi Duchamp quem confessou sua ambição de "colocar a pintura outra vez a serviço da mente"3 e, quando emprega aqui a palavra mente, na verdade está pensando em termos da palavra francesa ésprit, "ésprit em todos os seus significados: intelecto, espírito, inteligência e humor" 4 Os readvmades e La Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires, Même (A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo), conhecida abreviada mente como O Grande Vidro, foram o resultado de um processo de pensamento que transpôs várias décadas e que foi ao mesmo tempo conceitual (as notas de Duchamp permitem acompanhar os passos de sua reflexão) e visual (O Grande Vidro foi precedido, acompanhado e seguido de um grande número de notas preliminares, estudos, esboços e itens complementares) . Consegui reunir para essa mostra todos os readvmades remanescentes criados por Duchamp: desde o primeiro, Roue de Bicvclette (Roda de Bicicleta), de 1913 (um readVmade "assistido"), ao ultimíssimo Hommage à Caissa (Homenagem a Caissa), de 1966. Quanto a O Grande Vidro, foi evidentemente impossível obter o empréstimo do original, demasiadamente frágil para sair do Philadelphia Museum of Art em viagem, mas apresentamos 74 itens, por intermédio dos quais podemos acompanhar não apenas a gênese iconográfica da opus magnum de Duchamp, como também os itens desenvolvidos a partir da idéia original, visando a expandir seu significado para além dos limites desta obra em particular. Para facilitar a percepção da continuidade histórica e temática entre cada item, a mostra foi organizada em dois setores. A divisão, contudo, é meramente geográfica e por certo não conceitual. As duas principais correntes da atividade criadora de Duchamp não apenas correm paralelamente como também se fundem - fertilizando e enriquecendo o território de cada uma. Ao discutir esses itens, temos sempre a oportunidade de perceber o quanto O Grande Vidro e os readvmades estão relacionados e o quanto é bela sua interação.

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11. A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo 1. O Tema André Breton chamou O Grande Vidro de "uma espécie de grande legenda moderna"5 e aparentemente não se poderia encontrar nenhuma definição mais apropriada. O tema dessa obra é uma variação contemporânea de um dos mais antigos mitos que originaram um tabu quase universal: o hierático incesto entre o Céu (princípio urânico feminino) e a Terra (princípio ctônico masculino) personificados aqui pelo Celibatário (Mareei Duchamp) e pela Noiva (a irmã de Mareei: Suzanne). Desde que o coniunctio físico jamais ocorreu deixem-me esclarecer, desde já, que tal caso amoroso não poderia materializar-se, visto que aconteceu num nível puramente inconsciente - , foi substituído por uma atividade voyeurista que assistia à Noiva despida por seu Celibatário. Assim, o primeiro esboço preliminar (datado de julho de 1912) do Vidro sugere, de saída, que o relacionamento sexual foi deslocado do nível físico para o mental, desde que apresenta o subtítulo "Primeira Pesquisa para: a Noiva despida pelos Celibatários" e o título Mécanisme de la Pudeur/Pudeur Mécanique (Mecanismo do Pudor/Pudor Mecânico). Como que visando a compensar essa perda de tensão erótica, o prazer derivado do voyeurismo é acentuado pela modéstia da Noiva. Esse título não é indicativo, tão somente, do

estado mental da Noiva: Pudor Mecânico é um epítome da nat[Jreza da Noiva, que em O Grande Vidro é representada como uma complexa maquinaria "despida" de todas as conotações românticas. Mesmo a modéstia assume um aspecto "mecânico" e não sensual. O título original em francês de O Grande Vidro La Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires, Même contém um trocadilho que oculta todo o tema da obra - um caso de amor impossível entre uma virgem pouco convicta e um ansioso celibatário. Basta substituir même por seu homófono m 'aime e o título resulta em: A noiva despida por seus celibatários me ama. A utilização do trocadilho no título revela não apenas seu tema como também sua natureza basicamente mítica. Como todos os mitos, este também envolve o emprego de uma linguagem alegórica e simbólica, na qual os jogos de palavras e as metáforas ocultam o conteúdo real. Perceberemos, ao discutir a seqüência de O Grande Vidro, que seu caráter fantástico e seu desenvolvimento incoerente "não analisável pela lógica" (nota 1)6 são, de fato, típicos de mitos e situações oníricas em que as leis de uma ordem aparentemente natural são ignoradas. Como Jung, a propósito, observou, "uma história contada pela mente consciente possui um início, um desenvolvimento e um fim, mas o mesmo não é verdadeiro para o sonho. Suas dimensões no tempo e 'no espaço são muito diferentes".7 O subtítulo do Vidro, que o descreve como uma "máquina agrícola", é igualmente revelador, sendo uma óbvia referência ao conceito tradicional da agricultura como o casamento simbólico entre a Terra

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~ Nu em Pé/ Standing Nude, 1911

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A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo (A Caixa Verde}/The Bride Stripped Bare by Her Bachelors, Even (The Green Box), 1934


e o Céu; o ato de arar é quase sempre associado à semeadura e ao ato sexual. Chamar.o Vidro de máquina agrícola apresenta outras implicações ainda. Os protagonistas desse casamento são vistos como máquinas, e a desumanização, tanto da Noiva quanto do Celibatário, tornar-se-á ainda mais aparente à medida que essas duas personalidades são discutidas. Insistimos uma vez mais no fato de que a notável qualidade poética de O Grande Vidro reside precisamente no fato de seu criador ter sido levado por forças e caminhos dos quais não tinha consciência. Falando acerca do ato criativo, declarou certa vez: "Devemos, então, negar a ele [o artista] O estado de consciência, no plano estético, sobre o que está fazendo ou por que está fazendo". E J ung confirma que "é possível pintar quadros muito complexos sem ter a menor idéia de seu real significado".7a

2. Um rompimento radical com as tradições técnicas e iconográficas Em 1911, Duchamp, então com 24 anos, vivia em Neuilly. É um ano muito importante. A partir desse ponto, podemos observar o progresso de Duchamp, da rejeição aos estilos e temas da vanguarda tradicional, nos limites do meio de expressão do óleo sobre tela, ao desenvolvimento de um conceito de pintura mais mental do que visual. Enquanto nos anos anteriores a 1911 Duchamp desenvolveu sua arte passando pelos vários estilos vanguardistas do impressionismo, cézanismo e fauvismo, foi nesse ano que o artista voltou as costas à vanguarda mais recente, o cubismo, e deu início ao processo de afirmação da própria personalidade por intermédio do desenvolvimento de um estilo individual. Essa libertação ficou evidenciada, inicialmente, em pinturas como Jeune Homme et Jeune Filie dans le Printemps (Rapaz e Moça na Primavera), Sonate (Sonata), Dulcinée (Oulcinéia), À Propos de la Jeune Soeur (A Propósito da Irmãzinha), Yvonne et Magdeleine Déchiquetées {/vone e Madalena Esfarrapadas} e Portrait des Joeurs d'Échecs (Retrato dos Jogadores de Xadrez). A elaboração de um estilo, contudo, não satisfazia inteiramente seu espírito não-conformista, e sua ânsia por soluções novas levou-o a contradizer os cânones correntes também quanto aos temas. Em novembro de 1911 incluiu em suas pinturas dois temas heréticos: a máquina e a nudez. Foi o mês de Moulin à Café (Moedor de Café), a primeira máquina de Duchamp e o antecessor formal do Broveuse de Chocolat (Moedor de Chocolate). O nu teve sua primeira elaboração no novo estilo em Sonata, no desenho Encore à cet Astre (Ainda a esse Astro) - um estudo para o Nu Descendo uma Escada, no qual a figura nua sobe ao invés de descer -, e posteriormente nas duas versões do Nu Descendant un Escalier (Nu Descendo uma EscadaJ. Concentrando-se no tema do nu, Duchamp completou, na seqüência, alguns de seus quadros mais importantes: Le Roi et la Reine Entourés de Nus Vites (O Rei e a Rainha Cercados de Nus Velozes), Le Passage de la Vierge à la Mariée (Passagem da Virgem à Noiva), e, finalmente, Mariée (A Noiva). Essa última bem 'pode ser considerada uma das obras primas de Duchamp - é o produto final de uma série de revoluções estilísticas que andavam pari passu com uma rejeição dos temas tradicionais. A extensão em que o nu era considerado herético nas rodas vanguardistas é suficientemente evidenciado

pelo pedido de G leizes de "ao menos modificar o título" quando Duchamp tentou expor seu Nu Descendo uma Escada no Salom des Indépendants de 1912, e que o levou a retirar o quadro, embora este já figurasse no catálogo. Os objetivos fundamentais de Duchamp eram "uma distância do aspecto físico da pintura" e "colocar a pintura outra vez a serviço da mente" B "Estava interessado em idéias - não apenas em produtos visuais. Queria colocar a pintura outra vez a serviço da mente. E minha pintura foi, obviamente, considerada, de imediato, como pintura 'intelectual e literária'. Era verdade que me empenhava para estabelecer-me o mais longe possível das pinturas físicas 'agradáveis' e 'atraentes'. Tal extremo foi visto como literário. L .. ) Na verdade, até os últimos cem anos, toda pintura fora literária ou religiosa: estivera inteiramente a serviço da mente. Essa característica foi perdida pouco a pouco no decorrer do último século. Quanto mais apelo sensual uma pintura proporcionava - quanto mais animal se tornasse mais era louvada. Foi bom ter aparecido a obra de Matisse, pela beleza que proporcionou. Contudo, criou uma nova onda de pintura física neste século ou pelo menos incentivou a tradição que herdamos dos mestres do século XIX ... Essa é a direção para a qual a arte deveria voltar-se: uma expressão intelectual ao invés de uma expressão animal. Estou farto da expressão 'bête comme un peintre' - 'burro como um pintor"'.9 O desejo de Duchamp de fugir dos aspectos físicos da pintura também explica sua rejeição ao visivo. "Considerava a pintura como um meio de expressão e não, em absoluto, como um objetivo completo de vida, do mesmo modo que considerava a cor apenas como um meio de expressão da pintura. Não deve ser o objetivo último da pintura. Em outras palavras, a pintura não deveria ser apenas visiva, ou retinia na; deveria estar relacionada à antiga questão de nosso entendimento ao invés de ser puramente visual ... "10 Em outra parte, Duchamp afirmou: "[O impressionismo] de certo modo foi o início de um culto devotado ao material sobre a tela - o pigmento mesmo. Ao invés de interpretar através do pigmento, os impressionistas gradativamente apaixonaram-se pelo pigmento, pela própria tinta. Suas intenções eram completamente visivas e dissociadas da utilização clássica da tinta enquanto um meio que visasse a um fim. Os últimos cem anos foram visivos; até mesmo com os cubistas. Os surrealistas tentaram libertar-se, e o mesmo fizeram antes os dadaístas, mas infelizmente estes últimos eram niilistas e não produziram o suficiente para comprovar seus pontos de vista, que, a propósito, não precisavam provar segundo sua teoria. Eu estava tão consciente do aspecto visivo na pintura que desejava encontrar pessoalmente um outro veio de exploração. "11 Dois desses outros veios de exploração são os readvmades e o próprio O Grande Vidro. Ambos os fenômenos resultam largamente da rejeição da noção de visivo ou retiniano. Duchamp nunca deixou de enfatizar a necessidade do comprometimento da mente tanto quanto do olho. A Noiva, pintada em Munique (agosto de 1912), é a última pintura convencional de Duchamp. Marca, na realidade, sua despedida do conceito de arte tal como compreendido na época. É considerada uma das obras mais perfeitas de Duchamp. O artista, inclusive, deve ter sentido que seria difícil a ele mesmo superála. Deve ter estado bastante alerta aos perigos de se

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repetir, de ceder ao poder inebriante do formalismo puro e de aceitar a monotonia de um gênero, de um gosto. A Noiva foi um triunfo de técnica e sensualidade, o ponto mais alto que poderia alcançar através da utilização dos meios tradicionais da pintura enquanto veículo. Contudo, viera para rechaçar o "retiniano" e não tinha a menor intenção de cometer um suicídio criativo por meio da repetição. Tendo esgotado as possibilidades de renovar-se nos limites da pintura tradicional sobre tela, deu início à conquista de um conceito inteiramente novo de arte. Duchamp afirmou: "A partir de Munique, tive a idéia de O Grande Vidro. Cortara relações com o cubismo e com o movimento ~ ao menos com o movimento misturado com tinta a óleo. Não me importava em dar continuidade a toda a tendência da pintura. Após dez anos de pintura, estava entediado dela ... "12 Assim, foi na volta de Duchamp a Neuilly, em setembro de 1912, que a idéia de O Grande Vidro enquanto tal começou a cristalizar-se. O primeiro indício de utilização do vidro encontra-se no início de uma série de notas dedicadas por ele a essa obra. Aqui, embora O Grande Vidro ainda seja imaginado como "uma grande tela na vertical", Duchamp passou a considerar a utilização de elementos de vidro para o "mais frio", que consistiria em três chapas paralelas de vidro, perpendiculares à tela, separando o Domínio da Noiva (metade superior) da Máquina Celibatária (metade inferior), exatamente como no Vidro final. A passagem das especulações teóricas para a execução concreta pode ter-se originado de uma banal experiência cotidiana. "A idéia veio por ter usado um pedaço de vidro como paleta e de olhar através deste para as cores do outro lado. Isso me fez pensar em proteger as cores da oxidação, de modo a evitar aquele desbotamento e amarelamento que ocorre na tela."13 A antipatia de Duchamp pela tela enquanto fundo também pode ter influenciado sua escolha, que é sintomática sob outro ponto de vista ainda. O vidro é, ao mesmo tempo, um dos materiais mais duros existentes (somente o diamante e o ácido fluorídrico podem atacá-lo) e um dos mais frágeis. Reconciliava, assim, duas tendências conflitantes de sua psique: uma, que o levava a realizar uma obra que desafiaria o tempo, e outra, que o levava a expor a mesma obra à destruição, com o intuito de evitar que o observador descobrisse seu significado. O desejo de diferenciar-se de outros pintores levou Duchamp a pensar na criação de uma obra quadridimensional, projeto que o levou a considerar a utilização de cores e técnicas não convencionais para criar caracteres não convencionais. Podemos traçar o desenvolvimento do pensamento de Duchamp graças às notas que escreveu, algumas das quais foram reunidas em La Bolte de 7914 (A Caixa de 1914) e, posteriormente, em La BOlte Verte (A Caixa Verde), de 1934; foram completadas por uma terceira série, publicada em 1966, intitulada Á l'lnfinitif (Ao Infinitivo). Um exame desta última série revela um grande número de notas dedicadas à quarta dimensão, que não se encontram nas publicações anteriores. Á l'lnfinitif permite-nos, portanto, conhecer seus interesses intelectuais na segunda década do século. Duchamp explica, ali, que seu interesse na quarta dimensão era resultante de seu desejo de fugir da banalidade da rotina. Para o estabelecimento de uma perspectiva quadridimensional, pensou inicialmente em utilizar "dois objetos 'similares', isto é, de dimensões

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Nu Descendo uma Escada/Nude Descending a Staircase, 1937

distintas, porém sendo um a réplica do outro ... " Mas essa crua tradução plástica do velho conceito platônico de nosso mundo não ser nada senão o microcosmo de um macrocosmo existente alhures não era, evidentemente, bastante para o artista. Viu-se num território mais fértil quando lhe ocorreu que a superfície bidimensional de um espelho poderia servir de tradução prática da noção de uma infinitude tridimensional, o que o levou à idéia de que o continuum quadridimensional é essencialmente o espelho de um continuum tridimensional. Estava a um passo da decisão de empregar o vidro transparente e o espelho para a perspectiva quadridimensional. Essa mesma noção, de representar uma dimensão superior através e em termos de uma dimensão inferior, encontra-se na base das experiências ópticas às quais se dedicaria posteriormente, criando efeitos tridimensionais com objetos bidimensionais. Tendo-se decidido quanto aos materiais que serviriam a seus propósitos, estava ainda inseguro quanto à maneira de utilizá-los. Um aspecto, porém, estava perfeitamente claro: que O Grande Vidro, ainda por ser executado, teria de marcar um rompimento final e decisivo com toda a convenção do passado. Era seu objetivo conseguir "não pensar mais que a coisa em questão seja um quadro". Pensou em defini-lo como um '''retardamento em vidro', como se alguém dissesse 'um poema em prosa' ou 'uma escarradeira de prata'''. De 1913 em diante, Duchamp estendeu a noção dos materiais não convencionais a serem utilizados como objetos corantes. Desde o princípio, a idéia do vidro é acompanhada por uma referência a materiais como "líquidos, peças coloridas de madeira, aço,


reações químicas". Pensava em testar as possibilidades do vidro esmerilhado, do vidro transparente e do vidro colorido. Com respeito a líquidos, considerou a possibilidade de uma essência transparente e incolor, e planejou toda espécie de experiências com muitos outros materiais, desde os mais elementares até outros mais complexos, e com misturas inusitadas. Em 1915, pensou até mesmo em cultivar cores imateriais numa estufa, cada cor encontrando-se "em seu estado óptico: perfumes(?) de vermelhos, azuis, verdes ou cinza". Essa idéia levou-o a "cultivar" poeira e a utilizá-Ia como material corante, como fez em O Grande Vidro na parte das Peneiras. De suas primeiras especulações teóricas à subseqüente realização prática de O Grande Vidro, Duchamp lutou para incorporar tantos meios novos de expressão quantos lhe fossem possíveis. No Domínio da Noiva, a Inscrição do Alto (também denominada Via Láctea) deveria ter o aspecto de um creme de barbear. Para obter "sobre uma superfície plana uma representação convencional dos 3 Pistons de Corrente de Ar", Duchamp pendurou um pedaço quadrado de gaze diante de uma janela aberta e fotografou-a assumindo diferentes configurações e formando imagens casuais sob a ação da corrente de ar. No "Jogo do Barril", outrora popular, viu "uma 'escultura' de destreza muito boa", o que o levou a introduzir o elemento destreza na determinação da posição dos nove orifícios abertos logo abaixo da Inscrição do Alto, na área dos Nove Tiros; esses orifícios correspondem aos pontos em que o Vidro foi atingido por fósforos mergulhados em tinta fresca e lançados através de um canhãozinho de brinquedo.

Noiva/Bride, 1934

Finalmente, o desnudamento da Noiva foi concebido como sendo realizado por intermédio de uma espécie imaginária de eletricidade - sua largura. Na Máquina Celibatária, técnicas e materiais não convencionais aparecem ainda com maior freqüência. A forma dos Tubos Capilares, que conduzem o gás dos Moldes Machos às Peneiras, foi novamente determinada, como nos Pistons de Corrente de Ar, pelo acaso; foram desenhados segundo vários segmentos das Cerziduras-Padrão, cada qual feita de acordo com a configuração assumida por um metro de linha esticado horizontalmente e solto a um metro de altura. A qualidade não convencional das técnicas e materiais é plenamente compartilhada pelas personagens da obra. Dentre os atores de O Grande Vidro, Duchamp menciona um Inspetor do Espaço, um Mastigador de Revólver e um Operador de Gravidade. O fato de as personagens, assim como as cores e as técnicas do Vidro, não serem cdnvencionais implica em que devam ser governadas por princípios similarmente classificados. E, de fato, uma das primeiras notas de Duchamp afirma que o Vidro está sujeito às regras do Regime de Gravidade Ministério de Coincidências ou, inversamente, Regime de Coincidência - Ministério da Gravidade. Especifica, então, que os princípios ativos centrais do Vidro são três: vento, destreza e peso (gravidade). "Vento - para os Pistons de Corrente de Ar! Destreza - para os orifícios! Peso - para as Cerziduras-Padrão." Os movimentos do Operador de Gravidade e da Noiva foram concebidos como sendo governados pelo "Princípio de Simetrias Subsidiadas". O Celibatário obedece ao" Adágio da Espontaneidade" e mói sozinho seu chocolate. Na base da Noiva "há um reservatório de gasolina do amor", cujo propósito é abastecer "o motor com cilindros bastante frágeis", cujos golpes controlam "o mecanismo", tradução gráfica do impulso dos Celibatários para o desnudamento, assim como do "desnudamento elétrico" da Noiva. Essas novas leis, princípios e fenômenos derivam da concepção do Vidro como a representação de "uma realidade que seria possível distendendo levemente as leis da física e da química" - uma distensão que requer a invenção de uma "física lúdica". Até mesmo o espaço e o tempo estão sujeitos a leis distintas. O espaço, conforme já mencionado, é quadridimensional, e a unidade de medida é a Cerzidura-Padrão, que pode ser esticada. Quanto ao tempo, o "Relógio de Perfil" mede uma duração dotada de duas ou três dimensões. Duchamp sustenta integralmente seu desejo de conseguir "não pensar mais que a coisa em questão seja um quadro". Podem-se reconhecer quatro estágios distintos na gênese e desenvolvimento de O Grande Vidro, que foi concretizado em Neuilly, antecipado em Munique e Paris, e elaborado em Nova York. O primeiro estágio começa em Neuilly, já em 1911, com Rapaz e Moça na Primavera e termina em Munique, no verão de 1912, com a Noiva; tanto o enredo de O Grande Vidro quanto a estrutura formal de suas drama tis personae tomam forma. O segundo estágio começa em Munique, no verão de 1912, onde Duchamp redige a primeira de uma série de notas referentes a O Grande Vidro, e termina em Nova York, em 1920, com Témoins Oculistes (Testemunhas Oculistas). Durante esses oito anos, cada elemento do Vidro foi objeto de um ou mais estudos preliminares, abrangendo desde esboços sumários a trabalhos inteiramente elaborados e independentes. O terceiro estágio consistiu na 15


Capa para "A /'Infinitif"/Cover for "A /'Infinitif", 1967

Pist達o de Corrente de Ar/Draft Piston, 1965

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realização dos projetos, estudos e notas dos anos anteriores - seguindo-se da elaboração de O Grande Vidro propriamente dito, iniciado no outono de 1915 em Nova York e abandonado, inacabado, em 1923. Finalmente, o quarto estágio de O Grande Vidro assistiu à sua projeção em trabalhos que, de 1913 em diante, desenvolvem, comentam e ampliam idéias e elementos desta obra. Esse período é o mais longo, haja vista que se estendeu até a morte do artista. Pode-se dizer, portanto, que O Grande Vidro é não apenas o trabalho mais importante de Duchamp fato largamente aceito - como também o ponto focal de toda sua obra, o ponto para o qual convergem todas as suas mais significativas realizações anteriores, e do qual descendem suas mais importantes realizações posteriores.

3. O desenvolvimento iconográfico

o quadro que antecipa diretamente o tema básico do Vidro é Rapaz e Moça na Primavera, pintado em 1911. Aquele ano assistiu a um florescimento da personalidade de Duchamp, quando seu processo de individuação viu-se fortemente acelerado. Duchamp deve ter sentido a importância das motivações mais profundas dessa pintura na solidificação de seu processo de individuação, visto que, alguns meses depois, procurou realizar uma versão ampliada do mesmo tema. Mas o primeiro impacto emocional, responsável por Rapaz e Moça na Primavera, provavelmente se dissipara ou não poderia ser captado novamente, e Duchamp, insatisfeito com essa segunda versão, abandonou-a inacabada. Três anos depois, voltou à tela e pintou sobre ela a Réseaux des Stoppages (Rede de Cerziduras), 1914. Rapaz e Moça na Primavera não apenas antecipa o tema de O Grande Vidro como está imediatamente atrás deste em complexidade. O tema é sugerido tanto no duplo sentido do título - dois jovens "na primavera" de suas vidas - e na atitude que esse par heróico-virginal assume na pintura: evidencia-se que os dois estão sexualmente atraídos um pelo outro. Podemos notar que o Rapaz (o futuro Celibatário de O Grande Vidro) e a Moça (a futura Noiva) são pouco diferenciados sexualmente e ambos têm os braços erguidos para o céu, formando a figura do Y, posição indicativa de sua aspiração comum - a imortalidade - e de sua configuração física basicamente andrógina. Essa é a posição do xamã que se proclama imortal durante os rituais 14, como também a do Homem Cósmico na tradição esotérica. O signo Y personifica o conceito da imortalidade através da ressurreição, assim como o conceito da "dupla" personalidade andrógina. Os dois jovens encontram-se em dois mundos separados, conforme indicam os dois semicírculos dos quais emergem, com dificuldade, na direção um do outro. O semicírculo onde está o Rapaz irradia uma luz amarelada: bem pode ser um símbolo do sol. O semicírculo da Moça é mais escuro e apresenta uma área branco-prateada - a Lua. Na tradição alquímica, de maneira similar, o par incestuoso Irmão-Irmã é simbolizado pelo par Sol-Lua. Sua união (coniunctio oppositorum) reconstitui a unidade original do ser primordial, o imortal Andrógino Hermético (Rébus). Podemos observar na pintura que o encontro dos dois jovens parece simultaneamente sugerido e aprofundado por uma árvore cujos ramos crescem entre eles. A árvore enquanto símbolo carrega uma grande variedade de significados: aqui apenas iremos ressaltar que a árvore

é um símbolo do movimento rumo à totalidade cósmica, assim como o protótipo do hermafrodita, a síntese de ambos os sexos; e rJode, enquanto axis mundi, atuar como mediadora entre a Terra (Mulher) e o Céu (Homem) .15 A árvore da pintura cresce a partir de um círculo, ou melhor, de uma esfera transparente de vidro, que aprisiona uma personagem assexuada, que lembra muito de perto o Mercurius, freqüentemente representado no vaso alquímico. Nessa esfera podemos, de fato, ser tentados a reconhecer um alambique, o vaso alquímico. Finalmente, logo abaixo da esfera de vidro transparente do centro, há outra personalidade que repousa ao mesmo tempo no mundo do Celibatário (50/) e no mundo da Noiva (Lua!. Essa personagem participa de ambos os mundos, sendo a mediadora entre eles e reconciliando em si mesma as contradições dos dois. Essa personagem central é o epítome do significado da pintura, que é a realização, a nível artístico, de três aspirações primordiais e contraditórias somente na aparência, encontrando a gratificação na estrutura do incesto alquímico: a ânsia de reconstituir a unidade original, o impulso rumo à individuação e a aspiração da imortalidade. No tipo particular de relacionamento dos jovens, o relacionamento real do par Irmão-Irmã substitui gradativamente o relacionamento mítico do par Herói-Virgem. O incesto é aqui vislumbrado como um meio de resolver as contradições da dualidade masculino-feminino na unidade andrógina reconstituída do ser primordial, dotado da eterna juventude e da imortalidade. É igualmente importante, porém, lembrar que a bissexualidade é a qualidade arquetípica do criador, enquanto o incesto alquímico é o modelo mítico do estado no qual, depois de resolvidas todas as contradições, a individuação é alcançada e a criação torna-se possível. Poderíamos chamar a atenção, nesse ponto, para as extraordinárias semelhanças entre Rapaz e Moça na Primavera e seu modelo mítico - a tradicional representação do andrógino filosófico (o Rébus ou Compositam de Compositis) , tal como pode ser visto, por exemplo, na ilustração em que o par incestuoso Irmão-Irmã encontra-se novamente no Sol e na Lua e onde uma árvore cresce novamente entre eles, dividindo-os e unificando-os. Não apenas a relação sexual jamais ocorre (como em O Grande Vidro), como sua mera intenção acarreta a mais drástiéa das punições - a morte. É esse o modelo de um dos tabus mais antigos e difundidos do mundo - o tabu do incesto. No Vidro, a Noiva também é chamada de Virgem, ou Pendu Femelle, e, de fato, ela parece pender do céu. Isso pareceria indicar que os incestuosos sentimentos do Celibatário dirigem-se a uma irmã em vez de à mãe, sendo que esta hipótese pode encontrar maior fundamento se lembrarmos que muitas sociedades primitivas punem o incesto entre irmãos com a morte por enforcamento. Para descobrir qual das três irmãs de Duchamp teria sido objeto de seu inconsciente amor incestuoso, devemos voltar à pintura Rapaz e Moça na Primavera. Parece bastante óbvio que essa pessoa seja o receptáculo da obra. Basta apenas ler a dedicatória no verso da tela para conhecermos o receptáculo. A dedicatória de Duchamp diz: À toi ma chere Suzanne; a pintura foi o presente de casamento para sua irmã Suzanne. Ao escrever a dedicatória, deixou um espaço extraordinariamente longo entre as 17


Mรกquina Celibatรกria/Bachelor Apparatus (Plantai, 1913

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palavras chere e Suzanne. Lembrando a paixão de Duchamp por trocadilhos, é inevitável o ímpeto de substituir a palavra chere ("querida") por seu homófono chair ("carne"). Trata-se de uma reafirmação da indivisível unidade física entre Mareei e Suzanne, sendo esta, literalmente, a própria carne de MareeI. Esse quadro expressa os sentimentos de Duchamp com respeito ao primeiro casamento de Suzanne. Ela fora sua companheira e modelo favorita. Alguns anos depois, quando Suzanne desposou seu segundo marido, o pintor Jean Crotti, um amigo de Duchamp vagamente parecido com ele, este encontrou uma nova ocasião para expressar sua susceptibilidade a essa segunda "traição" de Suzanne. Duchamp escreveu de Buenos Aires dando-lhe instruções para preparar o que poderia ser considerado seu presente de casamento, o Readvmade Malhereux rReadvmade Infeliz), de 1919. Confiou-lhe, assim, o mesmo poder reservado, até então, exclusivamente a ele, o de criar readvmades. O processo de identificação, porém, não termina no título, que expressa a infelicidade de MareeI. O destino desse readvmade é o mesmo que o da Noiva - o de ser destruído por enforcamento. A mais forte evidência sustentando a hipótese da identificação Noiva-Irmã vem novamente de Duchamp. Na inscrição de um livro dado a Ulf Linde em 1962, a Noiva Despida é identificada como cette temme affamée d'infamie en famile, um jogo de palavras muito próximo ao igualmente revelador Une nvmphe amie d'enfance. Não obstante o espaço de quase quarenta anos separando esse trocadilho e a dedicatória do livro, a irmã-ninfa-noiva ainda está envolvida numa infamie d'enfance. Depois de Rapaz e Moça na Primavera, praticamente todas as obras de Duchamp até o final do verão de 1912 estão ligadas a quatro temas essenciais: retratos de família; nus; o Rei e a Rainha (atravessados ou cercados por Nus Velozes); e a Noiva. Os temas dessas pinturas são a expressão formal de quatro tendências e aspirações inconscientes: recordações e culpas de infância; ressentimento e vingança; auto-realização (o retrato do artista como um jovem); e a elevação de uma crise pessoal à categoria de conflito mítico - o Jovem e a Moça crescem, tornando-se o Celibatário e a Noiva. A continuidade extraordinariamente lógica e formal dos trabalhos desse período torna-se clara ao serem vistos sob a seguinte luz: o Jovem da pintura de 1911 é, na verdade, o Nu Descendo uma Escada; o Nu é transfigurado no Rei atravessado pelos Nus Velozes; e o Rei, por sua vez, torna-se o mítico Celibatário de O Grande Vidro. Reconheceremos, de maneira similar, a Moça da pintura de 1911 na Rainha cercada de Nus Velozes, que, por sua vez, é transformada primeiro na Virgem e depois na Noiva, que vemos na pintura homônima assim como em O Grande Vidro. Moedor de Café (1911), um óleo pequeno, é a primeira pintura mecanoforme de Duchamp e antecipa as duas versões do Moedor de Chocolate Glissiere Contenant un Moulin à Eau en Métaux Voisins (Moedor Contendo um Moinho de Água em Metais Próximos), dois temas posteriormente incorporados a O Grande Vidro. Em Rapaz e Moça na Primavera, notamos a relação entre os temas de Duchamp e a tradição alquímica. Reconhecemos na esfera de vidro ao centro da pintura um típico aparato alquímico de destilação - o alambique; agora, no Moedor de Café, encontramos outro instrumento alquímico típico, o

Detalhe: Máquina Celibatária/Bachelor Apparatus (Elevação),1913

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moinho triturador. Podemos ver nisso a continuidade do pensamento de Duchamp e a organização unitária de seus símbolos. Ambos são instrumentos de refino - o alambique atuando quimicamente e o moinho mecanicamente. Transmutam materiais brutos para sua forma sublimada, exatamente como Duchamp sublima seus impulsos sexuais em impulsos artísticos. A moenda, que também é um símbolo da cópula, carrega tradicionalmente o mesmo significado. Se lembrarmos que o Moedor de Café antecipa o Moedor de Chocolate e que o comentário de Duchamp acerca do segundo é "o Celibatário mói sozinho o seu chocolate", encontramos uma confirmação direta do significado simbólico desse moinho. O significado do Moedor de Café está mais do que determinado aqui, na medida em que é também um subtítulo simbólico para o Celibatário e para a Noiva e uma antecipação da mecanização dos dois protagonistas de O Grande Vidro. Essa sobredefinição de seu simbolismo'é uma manifestação do movimento unitário da psique de Duchamp, que busca conciliar as personalidades conflitantes de Mareei e Suzanne num símbolo que deriva sua lógica dos traços comuns de seus personagens. Não é de estranhar que Duchamp declarasse considerar o Moedor de Café "a pintura-chave de toda a sua obra" . A pintura Jeune Homme Triste dans un Train (Jovem Triste num Trem), 1911, é ainda outro ponto de partida, podendo ser considerada um estudo preliminar incompleto que resultaria nas duas versões do Nu Descendo uma Escada. A rubrica no verso da pintura - Mareei Duchamp nu ... - não deixa dúvidas quanto à identidade do jovem triste, no qual reconhecemos Duchamp nu. 16 O Nu Descendo uma Escada n. o 7 (1911) é o estágio intermediário entre o Jovem Triste ... e a versão final e em formato maior do mesmo tema, Nu Descendo uma Escada n. o 2, pintado em janeiro de 1912. Em Nu ... n. o 7, os lados direito e esquerdo são novamen'te limitados com azul-prússia escuro; o Nu aparece confinado no espaço, como que reprimido, Opostamente, na versão final do Nu, .. , a figura emerge triunfante das formas que antes a restringiam para afirmar sua presença expandida numa exibição pirotécnica de tons de pele, Enquanto nas duas versões precedentes a atmosfera dominante é pessimista, na medida em que um nu introvertido se retira para dentro de si mesmo, em Nu,., n. o 2 é um aspecto otimista e extrovertidamente exibicionista que prevalece. Alguém nu descendo uma escada é claramente um exibicionista, e o exibicionismo "representa à perfeição um conflito da vontade, uma negação"17 (o grifo é de Freud). Sabemos perfeitamente que Duchamp estava, de fato, atravessando uma crise, na medida em que o impulso incestuoso colidia com a condenação moral do mesmo. Contudo, tal como todo símbolo onírico, este também é dmbivalente, sendo que a própria ambivalência aponta o caminho para a superação do conflito. O estado de nudez também faz lembrar: "Essa idade da infância, na qual o senso de pudor é desconhecido, [que] parece um paraíso quando vista em retrospecto no futuro - e o paraíso em si nada mais é do que a grande fantasia da infância individual. É por isso que no paraíso os homens estão nus e livres do pudor ... "18 Parafraseando Freud, Duchamp poderia voltar àquele paraíso, onde o sentimento de culpa e o pudor são desconhecidos, sempre que a pressão do conflito aumentasse a ponto de requerer

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um escape, fosse num sonho noturno ou numa fantasia que encontrasse expressão numa obra de arte. Duchamp confirmou estar absolutamente cônscio do sentido chocante dessa pintura, assim como do sentimento de frustração que expressava. O nu da pintura é claramente andrógino, conforme sugere o desenvolvimento do peito e a característica cor de madeira; sabemos que a madeira é um substituto simbólico da mulher. Lembremos que Duchamp gostava de assumir uma aparência andrógina; escolheu para si um pseudônimo feminino (Rose), e um retrato feminino como seu "retrato de compensação"19. Assumindo uma personalidade andrógina no Nu Descendo uma Escada, reforçou as virtudes compensatórias desse quadro. O impulso unitário de sua psique foi gratificado e o incesto deixou de ser um passo necessário à conquista da individuação. Outro aspecto de grande importância deve ser ressaltado na pintu ra: esta pode ser considerada a precursora dos Neuf Moules Malic (Nove Moldes Machos), 1914-15, incorporados a O Grande Vidro. Inclusive, a multiplicação de Duchamp na série de nus descendo escadas é similar à multiplicação dos Celibatários de Nove Moldes Machos, onde, conforme observado anteriormente, é novamente Duchamp quem está sendo representado. Após terminar o Nu ... n, o 2, dois meses se passaram antes que voltasse ao trabalho. Com o passar dos meses, o choque do casamento de Suzanne foi atenuado. Em 1912, Duchamp pintou somente quatro telas, consideradas dentre as mais notáveis de sua obra: Nu Descendo Uma Escada n. o 2, que acabamos de discutir, O Rei e a Rainha Cercados de Nus Velozes e duas obras pintadas em Munique, Passagem da Virgem à Noiva e a célebre Noiva. Podemos, nesse ponto, acompanhar o processo pelo qual o Rapaz e a Moça crescerão até se tornarem o Celibatário e a Noiva. O tema de O Rei e a Rainha ... foi preparado por três esboços preliminares, o primeiro dos quais intitula-se Deux Nus: un Fort et un Vite (Dois Nus: Um Forte e outro Veloz), Não temos a menor dificuldade em reconhecer o Nu Forte à direita como o Nu Descendo uma Escada. O tema formal é semelhante e a natureza andrógina do Nu (novamente o desenvolvimento da região peitoral) chega a ser levemente acentuada, como que para aplacar a ansiedade do Nu Veloz, à esquerda, no qual o primeiro esboço do tema formal da Noiva é claramente identificável. Nesse desenho, o par Irmão-Irmã de Rapaz e Moça na Primavera torna-se o par Herói-Virgem, passando por outra transformação ainda para tornar-se o par Rei-Rainha nos dois desenhos seguintes, intitulados Le Roi et la Reine Traversés par des Nus en Vitesse (O Rei e a Rainha Atravessados por Nus em Velocidade) e Le Roi et la Reine Traversés par des Nus Vites (O Rei e a Rainha Atravessados por Nus Velozes). O Rei e a Rainha, por sua vez, passam por uma transformação final, tornando-se o Celibatário e a Noiva no último esboço desta série: La Mariée Mise à Nu par les Célibataires (A Noiva Despida pelos Celibatários), que antecipa o título e o tema de O Grande Vidro. A continuidade estilística do tema formal nesses quatro desenhos fundamenta suficientemente nossa afirmação de reconhecer nas diferentes figuras dos esboços as mesmas personagens - Mareei e Suzanne. Notemos que o Rei e a Rainha do jogo de xadrez são particularmente adequados para representá-los simbolicamente. A propósito, no xadrez o rei é imortal: pode sofrer um xeque-mate mas


nunca ser morto, enquanto a raiz etimológica da rainha do xadrez pode reportar-se à palavra "virgem". O fato de tanto o Rei como a Rainha nos esboços e na pintura serem atravessados ou cercados por Nus em alta velocidade é indicativo de suas fantasias eróticas em comum. O simbolismo sexual da velocidade e de nus "voadores" é demasiadamente conhecido para que o reforçemos, e Duchamp já enfatizara claramente o aspecto erótico dessas obras em 1915. No terceiro desenho - Rei e Rainha Atravessados por Nus Velozes - aparece, pela primeira vez, o desenho de uma figura personificando um dos dois aspectos da psique de Duchamp. Essa personagem é vista saindo de uma fenda no Rei, como que representando, a nível psicológico, a cisão provocada na psique de Duchamp à medida que a tendência narcisista e conservadora entra em conflito com a impetuosidade da tendência erótica, que finalmente vislumbra a realização de seu impulso no sentido da unificação dos opostos. O fato de a tendência narcisista prevalecer é mostrado aqui pelo quarto esboço, no qual a união do Rei e da Rainha não mais é representada. A Rainha, inclusive, é vista parada entre as duas expressões da personalidade cindida do Rei. Poderíamos acrescentar também que o Rei e a Rainha dessa pintura parecem realizar, num universo mundano, a felicidade de Adão e Eva no Paraíso (título defihitivo do quadro), na medida em que o tema do Rei atinge aqui sua maturação plena, enquanto a beleza austera da Rainha anuncia a perfeição formal dos dois quadros seguintes. Passagem da Virgem à Noiva (1912) foi precedida de dois estudos preliminares intitulados Vierge n. o 1 (Virgem n. o 1) e Vierge n. o 2 (Virgem n. o 2). No primeiro, o tema formal da Rainha é isolado, enquanto no segundo esse tema passa por uma elaboração maior; encontramo-lo plenamente desenvolvido na personagem da esquerda, na versão final do quadro. Os sentimentos ambíguos de Duchamp com respeito à Virgem, prestes a tornar-se uma Noiva intocável disputada por numerosos Celibatários, estão bem expressos pelo título desses dois esboços, visto que em francês, como no alemão a palavra prostituta recebe o eufemismo de "moça" ou "virgem" 20 Duchamp considerava Passagem da Virgem à Noiva como um estudo para a Noiva, que em seu entender "era mais acabada e limpa". Adorava seu título ambíguo, pois "deve haver, é claro, um double-entendre aí". Inclusive, a "passagem" refere-se não apenas ao fato de a obra ser intermediária entre os dois desenhos da Virgem que a precederam e a pintura Noiva que vem em seguida, mas também ao tema da pintura, que é uma descrição da passagem de uma jovem do estado virginal ao matrimonial. Assim, no lado esquerdo dessa pintura, reconhecemos claramente o motivo estilístico da Virgem, que, ao passar para o lado direito, evolui rumo à formulação estrutural da Noiva. Ao mesmo tempo, Duchamp concebeu essa pintura como pertencente ao ciclo que deveria culminar numa pintura ortodoxa sobre tela, e com o mesmo título que o de O Grande Vidro. No verão de 1912, ele ainda não concebera A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo enquanto obra a ser executada sobre vidro. A Noiva (1912) é a pintura que traz a um clímax estético perfeito e adequado a série de pinturas que tivera início quase um ano e meio antes, com Rapaz e Moça na Primavera. É a culminância daquela

extraordinária continuidade estilística na elaboração do tema formal da Noiva que acabamos de examinar. Por sua vez, uma análise morfológica da Noiva de O Grande Vidro revelará que seus traços derivam de uma redução a uma síntese essencial da estrutura da Noiva na pintura homônima. Um detalhe dessa estrutura é da maior importância: logo ao centro, podemos reconhecer um alambique - o clássico símbolo andrógino da alquimia. A natureza andrógina da Noiva é confirmada mais além por outro fato: Duchamp escreve que a coluna vertebral da Noiva é "arbre-type", árvore-tipo, e podemos lembrar novamente que a árvore é um símbolo típico da bissexualidade. A Noiva, nessa pintura, personifica, assim, a realização dos desejos dos protagonistas de Rapaz e Moça na Primavera, a obra inicial que os revelou. Outro detalhe dessa pintura serve também como confirmação para essa hipótese: podemos perceber que um fiozinho de líquido aparece entrando pela abertura do alambique. Na tradição alquímica, essa operação representa o casamento alquímico - a união do casal Irmão-Irmã. O casamento alquímico é representado, de maneira similar, em muitas gravuras alquímicas antigas, e mesmo na célebre pintura de Bosch, Millennium (O Milênio), onde podemos perceber num detalhe um "corvo encapuzado derramando, de uma garrafinha em seu bico, um fluido bruxuleante que cai dentro do ovário". Franger comenta que esse é "um processo que, na linguagem metafórica de Bosch, indica a celebração de um casamento alquímico" 21.

4. Estágios iniciais de O Grande Vidro Acompanhemos agora os oito primeiros anos da elaboração de O Grande Vidro. A parte inferior de O Grande Vidro, conhecida como Máquina Celibatária, foi a primeira parte a ser planejada. Um óleo sobre cartão, executado no início de 1913, mas perdido desde então, foi seu primeiro esboço. Essa parte da obra seria reelaborada depois, com todos os elementos colocados de forma precisa, segundo a perspectiva clássica. Também em 1913, num desenho a lápis com o mesmo título que o Vidro, A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo, Duchamp esboçou o primeiro lay-out completo de O Grande Vidro, dessa vez incluindo também a metade superior, o Domínio da Noiva. No desenvolvimento iconográfico do Domínio da Noiva, o primeiro elemento que encontramos é a Noiva. À direita da Noiva está a Inscrição do Alto; uma nota explica que esse elemento é uma "espécie de Via Láctea cor da pele envolvendo, de maneira irregularmente densa, os 3 Pistons". Estes são três aberturas retangulares, denominadas Pistons de Corrente de Ar ou Redes, e permitem a obtenção da Inscrição do Alto. Conforme já discutido anteriormente, estes foram criados por Duchamp tirando "três fotos de um pedaço de tecido branco". Uma peça plana de gaze foi pendurada diante de uma janela aberta e, à medida que o ar penetrava na sala, o tecido era "aceito e rejeitado pela corrente". O resultado dessas fotos (tiradas em 1914) foi uma série de imagens casuais das deformações do quadrado, registradas fotograficamente com o intuito de obter "sobre uma superfície plana uma representação convencional dos 3 Pistons de Correntes de Ar". Duchamp escolheu uma peça de gaze porque sua textura de reticulado regular ajudava-o a "evitar

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Rapaz e Moça na Primavera/Young Man and Gir/ in Spring, 1911

qualquer jogo de luz". Seu plano original era fixar diretamente sobre o vidro, com cola, as três formas reveladas nas fotos. Foi impossível, contudo, prender a gaze ao vidro, e ele decidiu registrar sobre este somente as formas externas dos três quadrados ou de preferência suas fotos. O último elemento do Domínio da Noiva encontrase à direita da Inscrição do Alto, parcialmente coberto por esta, numa área delimitada por um retângulo perfurado por nove orifícios. Essa área é conhecida como a dos Nove Tiros, pois Duchamp, utilizando um canhãozinho de brinquedo, lançou um "fósforo com um pingo de tinta fresca" em seu "alvo", de três pontos diferentes e três vezes em cada lugar. Cada fósforo deixou uma marca de tinta sobre o vidro no ponto de colisão; nesses pontos o Vidro foi, então, perfurado. O primeiro elemento da Máquina Celibatária (parte inferior do Vidro), localizado simetricamente em relação à Noiva, em cima, é o Celibatário, representado pelos Nove Moldes Machos. Cimetiere des Uniformes et Livrées n. o 1 (Cemitério de Uniformes e Librés n. o 7), 1913, é o primeiro desenho a materializar esse conceito; esse esboço a lápis dá os nomes e sugere a posição de oito dos Nove Moldes Machos. O plano foi desenvolvido no ano seguinte em Cemitério de Uniformes e Librés n. o 2, uma heliografia em que as nove personagens aparecem em ordem inversa em relação às posições que irão ocupar na versão final. Essa terceira versão, conhecida como Neuf Moules Malic (Nove Moldes Machos), 1914-15, é, por sua vez, um estudo preliminar do elemento de mesmo nome de O Grande Vidro. "Malic" é um neologismo cunhado por Duchamp e derivado de

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"ma/e" (masculino). Duchamp fez questão de enfatizar que os moldes eram bastante "machos", embora suas formas ambíguas não contribuíssem em nada para a identificação de seu sexo. Eis a explicação de Duchamp para o fato de os Moldes Machos se encontrarem num cemitério: "Dei esse título aos dois primeiros estudos porque no final pareciam um cemitério. Não é que eu tenha pretendido que fosse um cemitério, mas ao mesmo tempo os Moldes Machos não eram as formas em si; estas se encontram em seu interior. Os Moldes eram mais uma espécie de catafa/co ou esquife ( .. ). Para simplificar as coisas, não pretendia detalhar cada forma muito de perto e foi uma boa idéia utilizar o Gás, que tomaria a forma de algo que eu não teria de desenhar materialmente, pois a idéia da coisa era mais importante do que o desenho em si, e o desenho de um policial de verdade, muito detalhado, tomaria tempo demais ... " A forma dos Tubos Capilares, os canais de comunicação dos Moldes Machos, derivou de 3 Stoppages-Étalon (3 Cerziduras-Padrão), 1913-14. Os Tubos Capilares tinham uma dupla função; primeiro levar o Gás para dentro dos Mo/des Machos, e depois para fora destes até a abertura da primeira das sete Peneiras. A forma desses tubos era, por um lado, estritamente aleatória e, de outro, planejada de maneira igualmente rigorosa, combinando uma "pintura de precisão" com a "beleza da indiferença". Encontramos aqui, uma vez mais, a combinação de acaso e determinismo à qual Duchamp tantas vezes recorreu. O acaso, de fato, desempenha um papel importante na iconografia de O Grande Vidro. Determina a forma dos Pistons de Corrente de Ar, assim como a dos Tubos Capilares, e a posição dos Nove Tiros. Duchamp já expressara anteriormente seu desejo de "fazer um quadro do acaso bem ou mal sucedido". Para ele, o acaso era um tema altamente pessoal; na objetividade aparentemente completa do acaso, via, paradoxalmente, uma espécie de determinismo subjetivo. De igual importância é o papel complexo desempenhado pelo número 3 no Vidro, onde se repete, como observou Duchamp, "como um refrão em duração". Há três elementos principais que governam o Vidro (vento, destreza e peso), e três princípios que o regulam (distenção da unidade de comprimento, o adágio da espontaneidade e o princípio da densidade oscilante); cada elemento, por sua vez, é tributário do número 3, acima de tudo por suas partes componentes. "O número 3 interessou-me porque o utilizei como uma espécie de arquitetura para o vidro." Quando indaguei a Duchamp a razão de sua predileção por esse número, comentou: "Para mim, é uma espécie de número mágico, mas mágico não no sentido comum. Como disse certa vez, o número 1 é a unidade, o número 2, o casal e o 3, a multidão. Em outras palavras, vinte milhões ou três é o mesmo para mim". As Peneiras são os únicos elementos que não foram precedidos por estudos importantes, mas apenas por dois esboços a lápis. Levaram, todavia, a uma das experiências mais inusitadas e interessantes de Duchamp, Élevage de Poussiere (Criação de Poeira), 1920, executada em colaboração com Man Ray. Essa obra materializa um dos projetos de Duchamp: "Para as Peneiras do Vidro - permitir que a poeira se acumule nesse trecho, uma poeira de três ou quatro meses." Assim, permitiu que o verso da Máquina Celibatária acumulasse poeira por alguns meses em seu estúdio de Nova York, chamando,


então, Man Ray para fotografar o resultado. Uma vez tirada a foto, a poeira foi cautelosamente removida do vidro, exceto na região das Peneiras, onde foi passado verniz sobre o pó para fixá-lo e perpetuar o efeito cromático que criava sobre o outro lado do vidro. Isso resultou na ênfase de um aspecto da poeira, seu vínculo com o conceito do fluxo do tempo.

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I

Moedor de Café/Coffee Mil!, 1921

Diversas notas e dois estudos antecipam as Testemunhas Oculistas, que derivam seu tema formal dos diagramas ópticos transferidos ao Vidro, prateando-o. Duchamp pensou inicialmente em obter o "efeito prateado" utilizando "vidro moído atrás do qual coloca-se papel preto fosco". Algum tempo depois, para testar a possibilidade de pratear o vidro, planejOU "fazer um guarda-roupa espelhado ... para a prateação". Mais tarde, pensou também na utilização da ferrugem e de uma lente de aumento. Finalmente, numa carta de 1919, menciona pela primeira vez sua intenção de utilizar diagramas ópticos numa obra de arte. Foi nesse período., durante sua estada de nove meses em Buenos Aires, que Duchamp realizou o pequeno vidro A Regarder (/'Autre Coté du Verre) d'un Oeil, de Prés, Pendant Presque une Heure [Para Ser Observado (do Outro Lado do Vidro) com um Olho, de Perto, por Quase uma Hora}, 1918, em que os quatro elementos de suas especulações anteriores - diagramas ópticos, vidro prateado, ferrugem e lente de aumento - participam da composição. Mesmo que Combat de boxe (Luta de Boxe), 1913, tenha sido o primeiro elemento, juntamente com o Moedor de Chocolate, a ser planejado para inclusão em O Grande Vidro - deveria ter sido inserido no topo das Testemunhas Oculistas -, nunca chegou a ser utilizado ali, talvez porque Duchamp estivesse insatisfeito com a peça ou por jamais ter concluído o Vidro. O caráter abstrato desse item exemplifica claramente a intenção de Duchamp, após sua experiência em Munique, de substituir o "desenho mecânico", seco e impessoal, pelo toque artístico complacente e sensual. Depois da Noiva, do ano anterior, estava bastante ciente do perigo de que o resultado estético pudesse resultar numa complacência do artista, levando, assim, à repetição. A Luta de Boxe era a expressão gráfica da atitude irônica de Duchamp com relação a esse tipo de risco. Não obstante a inscrição exaustiva, porém absurda, descrevendo as fases da disputa, ao observador é dada a liberdade de imaginar o desenvolvimento desse inusitado balé mecânico em que o solitário protagonista robóide antecipa as mais pessimistas previsões da ficção científica quanto a um futuro inteiramente mecanizado. Esse pessimismo, contudo, é aliviado pela introdução de um sentimento estritamente humano - o erotismo - , haja vista que a solitária figura não almeja derrubar um adversário inexistente, mas desnudar a Noiva, como sugere a legenda desse item. Talvez isso explique a definição da Luta por Duchamp como "a romantização de uma luta real". O Moedor Contendo um Moinho de Agua em Metais Próximos (1913-15) é o único antecedente do Moedor em O Grande Vidro. É também o primeiro trabalho de Duchamp em vidro. Com Moedor ... , Duchamp teve a oportunidade de ensaiar praticamente todas as técnicas que utilizou mais tarde em O Grande Vidro. A primeira tentativa de traçar as linhas de seu

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o 24

Grande Vidro/The Large Glass, 1965


desenho sobre o vidro, recobrindo-o de parafina e gravando-o com ácido fluorídrico, não foi bemsucedida. Mais tarde, explicou: "Achei que esticando um fiozinho de arame poderia obter uma linha perfeitamente reta. O fio, sendo bem maleável, era muito fácil de ser trabalhado, e os resultados que obtive correspondiam de perto às minhas expectativas." Esse trabalho é um dos primeiros exemplos do interesse de Duchamp em chegar a uma forma de expressão tão impessoal quanto possível. Do ponto de vista teórico, é provavelmente o mais fiel às austeras intenções de Duchamp e, do ponto de vista formal, o mais acabado. O Moedor de Chocolate foi o primeiro elemento a ser executado para o Vidro. Foi precedido por duas pinturas: Moedor de Chocolate n. o 1 (1913) e Moedor de Chocolate n. o 2 (1914). Pouco depois de seu regresso de Munique, Duchamp foi visitar seus pais em Rouen e viu, na vitrina de uma loja daquela cidade, um moedor de chocolate. A visão fascinou-o: "0 lado mecânico influenciou-me, então, ou ao menos aquele era também o ponto de partida de uma nova técnica. Não poderia lançar-me ao desenho ou à pintura casual, esparramar tinta. Queria voltar a um desenho completamente enxuto, uma concepção enxuta da arte, e o desenho mecânico era, para mim, a melhor forma daquela arte enxuta ... Estava lutando pelo apuro e a precisão, não mais pelo trabalho manual ... Começava a apreciar a importância do acaso. este foi. o verdadeiro início de O Grande Vidro. "22 O rompimento que essa pintura representava em relação às anteriores era mais do que conceitual ~ personificando uma renúncia completa da abordagem subjetiva e romântica. Repudiava, também, a redução cubista da forma em figuras geométricas e a organização dinâmica das mesmas. As diferenças que podemos perceber nas duas versões dão-nos uma medida da evolução dos conceitos de Duchamp que, no curto espaço de um ano, que separa a primeira da segunda versão, deram um grande avanço no sentido do apuro enxuto e da precisão. Em fevereiro de 1923, Duchamp partiu para a Europa, abandonando definitivamente O Grande Vidro. "Nunca concluí O Grande Vidro, pois, ao trabalhar nele durante oito anos, provavelmente me interessei por outra coisa; também estava cansado. Pode ser que subconscientemente jamais pretendesse finalizá-lo, porque a palavra 'finalizar' implica uma aceitação dos métodos tradicionais e toda a parafernália que os acornpanha."23 Mas também é importante lembrar que Duchamp não tomou, em alguma data precisa, uma decisão consciente de parar de trabalhar no Vidro; em vez disso, começou a perder o interesse nele, uma vez que a preocupação se dissipara. "Nunca foi uma decisão; posso pintar amanhã se o desejar. Não vejo a pintura, ou a idéia de pintura, ou do pintor ou do artista, atualmente, como ajustáveis à minha atitude para com a vida. Em outras palavras, a pintura para mim era um meio em direção a um fim e não um fim em si mesma ... A pintura era apenas um instrumento. Uma ponte a transportar-me para outro lugar. Onde, não sei. Não saberia, porque seria tão revolucionário em essência que não poderia ser formulado."24 É difícil aceitar por inteiro a explicação de Duchamp, sendo muito provável que seu abandono da obra tivesse também por base motivações inconscientes. Os quatro elementos ausentes (Tobogã, Luta de Boxe, Malabarista da Gravidade e

Quadro de Sombras Lançadas) possuem, na verdade, uma característica em comum: todos têm relação com o Celibatário. Sabemos que a psique de Duchamp está empenhada aqui muito mais em reprimir os impulsos ativos do Celibatário do que os da Noiva.

5. Continuando O Grande Vidro Os impulsos psíquicos que motivaram a elaboração de O Grande Vidro não perderam força quando a obra foi deixada em seu estado incompleto. Repetidas vezes, e até o fim, Duchamp voltou a seus elementos ou a sua história. Os readvmades, que discutiremos sumariamente, dão evidências convincentes a esse respeito. A maior parte de seus demais trabalhos relaciona-se, com freqüência, diretamente com o Vidro ~ sendo o mais importante a extraordinária "escultura-construção" Étant Donnés: 1 - la Chute d'Eau; 2 - le Gaz d'Éclairage (Sendo Dados: 1 - a Cascata; 2 - o Gás de !luminação), 1946-66, na qual Duchamp trabalhou em segredo por mais de dez anm. ~ difundindo o mito de que após O Grande Vidro não se empenhou em nenhuma atividade artística ~ e que se encontra atualmente no Philadelphia Museum of Art. Discuti essas criações em outra obra 25 e por razões de espaço não poderei voltar ao tema. Gostaria de comentar, entretanto, a colagem de grande importância À la Maniere de Delvaux (À Maneira de Delvaux), de 1942, o desenho para a capa do catálogo First Papers of Surrealism, de 1942, e a série de dezoito águas-fortes dedicadas a O Grande Vidro que ocuparam os quatro últimos anos da vida de Duchamp, de 1965 a 1968, e que, sendo sua última manifestação, bem pode ser considerada como seu testamento espiritual. Todas as obras estão sendo exibidas aqui. À Maneira de Delvaux, feita para reprodução no catálogo da exposição First Papers of Surrealism, mostra o reflexo num espelho dos seios nus de uma jovem, obviamente a Noiva. A colagem circular, inclusive, é inserida numa faixa semi-retangular de papel prateado que representa claramente a Via Láctea do Domínio da Noiva, à esquerda da qual, como nesta colagem, está a Noiva. Além disso, essa obra reproduz um detalhe do quadro Amanhecer de Delvaux, no qual o reflexo no espelho é o do peito de uma das quatro personagens míticas ~ metade mulher e metade árvore i que o rodeiam. Lembremos que, em suas notas, Duchamp referia-se à Noiva como sendo "árvore-tipo". É bastante provável que essa obra testemunhe a realização do impulso voveurista do autor. Como que para reforçar essa interpretação, a quarta capa do First Papers of Surrealism, desenhada por Duchamp, mostra a área dos Nove Tiros, isto é, o elemento do Domínio da Noiva onde seus desejos e os do Celibatário finalmente se encontram.

The Large G!ass and Re!ated Works As dezoito águas-fortes realizadas por Duchamp para ilustrar os dois volumes de The Large Glass and Related Works foram concebidas e elaboradas num período de quatro anos. Constituem-se no mais extenso conjunto de ilustrações dedicado por ele a um livro até então. Sete das nove águas-fortes do Volume I apresentam os sete elementos mais importantes de O Grande Vidro. A oitava e a nona águas-fortes mostram a obra tal como existia antes de

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Criação de Poeira/Dust Breeding, 1920, prova de negativo fotográfico, 1964

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Testemunhas Oculistas/Oculist Witnesses, 1920

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Capa para o Catálogo "Primeiras Cartas do Surrealismo"/Cover for the Catalog "First Papers of Surrealism", 1942

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quebrar-se, em 1927, e como seria seu aspecto caso tivesse sido completada. No Volume 11, Duchamp fixou-se no tema dos Amantes. Nessas nove águas-fortes, encontramos a continuação da odisséia da Noiva e do Celibatário, interrompida em O Grande Vidro num momento crucial ~ exatamente antes de seu encontro. A ordem cronológica em que as nove águas-fortes foram feitas, entretanto, não corresponde à ordem lógica da história. Mas, como que para enfatizar o relacionamento entre a história dos amflntes nesta série e a história da Noiva e do Celibatário em O Grande Vidro, a última água-forte, Morceaux Choisis d'Apres Courbet (Detalhes Selecionados Segundo CourbetJ, remete-nos de volta ao último episódio narrado em O Grande Vidro ~ o momento em que o Celibatário espia a Noiva a desnudar-se. Aqui, o Celibatário aparece sob forma de um pássaro, um falcão que observa a jovem a livrar-se de sua última peça de roupa. Uma outra água-forte mostra A Noiva {Finalmente] Despida . . Cinco dentre as outras mostram os amantes em vários amplexos amorosos: Morceaux Choisis d'Apres Rodin (Detalhes Selecionados Segundo RodinJ, Le Bec Auer (O Bec AuerJ, Morceaux Choisis d'Apres Ingres, I e 1/ (Detalhes Selecionados Segundo Ingres, I e IIJ, e Apres /'Amour (Depois do Amor). O fato de somente o acaso ser responsável pelo encontro dos amantes é enfatizado na água-forte Roi et Reine (Rei e RainhaJ. Na primeira água-forte da série, Morceaux Choisis d'Apres Cranach et Relâche (Detalhes Selecionados Segundo Cranach e RelâcheJ ~ a água-forte que encerra a história ~ encontramos os dois amantes no Paraíso. Fizeram amor, estão conscientes de sua


nudez e logo serão expulsos do Jardim do Éden. Vamo-nos deter, agora, em cada uma das nove águas-fortes do Volume II de The Large Glass and Related Works. Detalhes Selecionados Segundo Cranach e Relâche (dezembro, 1967) Na maior parte das águas-fortes desse grupo, pode-se notar uma atitude mental comum. Duchamp utiliza imagens da mesma forma como se utiliza das palavras em seus trocadilhos. Certo detalhe de alguma pintura, escultura, ou mesmo de um anúncio é isolado de seu contexto, combinado a um ou mais detalhes de uma fonte diferente, resultando numa nova imagem. Por vezes, como no caso de Detalhes Selecionados Segundo Rodin, apenas um detalhe é alterado, sendo, contudo, suficiente para investir uma 'obra antiga de um frescor provocante. A água-forte representa uma seqüência do balé Relâche (1924) de Picabia, com música de Eric Satie, no qual Duchamp personificou o Adão da pintura Adão e Eva de Cranach. Duchamp viu essa pintura pela primeira vez em 1912 durante sua estada em Munique, quando trabalhava em A Noiva.

indicando estarem dormindo. Pode ser uma reminiscência do poema Eternal Siesta, de Laforgue, que Duchamp ilustrou em 1912. No poema de Laforgue, o amante é solitário, mas aqui, 55 anos depois, une-se à parceira num abraço carinhoso. O fato de os amantes estarem dormindo é também significativo. A mitologia e os escritos esotéricos tornaram familiar o conceito de que, quando o tabu do incesto é infringido impunemente, um dos dois parceiros freqüentemente não se encontra em seu estado normal de vigília (está dormindo, ou bêbado, como no caso de Osíris e de Lot). Detalhes Selecionados Segundo Rodin (janeiro, 1968) Esta água-forte é inspirada pela célebre escultura O Beijo de Rodin. A mão foi aqui removida do lado externo da coxa, como no original, para o lado de dentro. "Afinal", comentou Duchamp com um sorriso, "essa deve ter sido a idéia original de Rodin. É um lugar extremamente natural para se colocar a mão". O Bec Auer (janeiro, 1968)

A foto de um anúncio foi o ponto de partida dessa água-forte. Deve-se notar que Duchamp utiliza apenas um detalhe fotográfico e nunca um desenho quando a fonte iconográfica é uma propaganda. Uma diferença entre o retrato original e a água-forte é notável: na água-forte os olhos dos dois amantes estão fechados,

Três diferentes fontes iconográficas podem ser encontradas nessa água-forte. A primeira, que confere a ela seu título, é o bec auer - um tipo especial de lampião de gás, que a mulher na águaforte aparece segurando. Esse lampião pode ser visto num dos primeiros desenhos de Duchamp. O homem deitado de costas foi desenhado a partir de um anúncio, e a mulher nua de uma outra fonte ainda. O papel do gás (identificado com o

Detalhes Selecionados Segundo Cranach e "Relâche"/Morceaux Choisis d'Apras Cranach e "R elâche ", 1967

Depois do Amor/Apras l'Amour, 1967

Depois do Amor (dezembro, 1967)

29


1'1. D.

Detalhes Selecionados Segundo Rodin/Morceaux d'Apres Rodin, 1968

30


h,l),

o

Bec Auer/The Bec Auer, 1968

1),

Detalhes Selecionados Segundo Ingres I/Morceaux Choisis d'Apres Ingres I, 1968

Celibatári%uchamp em O Grande Vidro) já foi discutido, O que é significativo na água-forte é o duplo papel do lampião de gás: por um lado ilumina o local da ação, emprestando-lhe veracidade, mas, por outro, a consciência do que se está passando induz a mulher a manter uma distância - de um braço entre ela e o substituto simbólico do Celibatário: O bec auer! Bec auer é também foneticamente reminiscente de "be aware" ("estar atento", em inglês), Finalmente, o bec auer remete Duchamp de volta à sua juventude, a um período em que não havia nenhuma terceira pessoa a intervir,

anúncio fotográfico, A Noiva sendo despida aparece ajoelhada na atitude de uma menina recebendo a Primeira Comunhão, A identificação da Noiva com a menina é evocativa da personagem feminina em Rapaz e Moça na Primavera, O véu da Primeira Comunhão é identificado com o véu nupcial, e é completamente transparente, "A noiva finalmente foi despida aqui", comentou Duchamp, com um sorriso satisfeito, ao examinar as provas dessa água-forte,

Detalhes Selecionados Segundo Ingres, I (janeiro, 1968)

A mulher deriva de uma das banhistas de O Banho Turco de Ingres; e o homem, do Édipo de Édipo e a Esfinge, também de Ingres, Em O Banho Turco, o seio da mulher é acariciado por mão feminina, sugerindo um relacionamento homossexual entre as duas personagens, Aqui, é Édipo quem acaricia o seio da mulher, Nesta água-forte, a mulher ocupa a mesma posição da esfinge feminina na pintura, Além das óbvias implicações freudianas resultantes da identificação de Duchamp com o Édipo da pintura, emergem analogias mais sutis entre Marcel e S uzanne e os dois protagonistas da pintura de Ingres - Édipo e a Esfinge, Num artigo de grande interesse, "Sur Oedipe", Gérard Legrand examinou o fundo mitológico e psíquico das duas personagens da pintura de Ingres, apontando que a esfinge feminina é manca, tal como Édipo,26 Isso pode indicar uma relação irmão-irmã ou mãe-filho, na medida em que esse aspecto físico é comum a ambos, Mais importante ainda é o fato de a esfinge ser a componente feminina de Édipo, "a projeção, o

O homem deriva da figura à direita na pintura de Ingres, Virgílio Lendo a Eneida para Lívia, Otávia e Augusto, A mulher deriva da figura central tocando alaúde em Banho Turco de Ingres, Virgílio tem, na história, o papel do iniciador, A mulher é a favorita do Sultão (é a única a tocar um instrumento musical), A identificação de Duchamp com Virgílio é clara: sua assinatura na gravura em cobre foi latinizada para Marcellus O, A identificação da mulher com Suzanne também é clara; lembremos que todas as irmãs de Duchamp tocavam instrumentos musicais, A atitude de Virgílio na água-forte, segurando a extremidade do alaúde em forma de falo, é evocativa sob mais de um aspecto,

A Noiva Despida", (fevereiro, 1968) Nesse caso a fonte iconográfica é novamente um

Detalhes Selecionados Segundo Ingres, II (fevereiro, 1968)

31


A Noiva Oespida .. ./La Mariée Mise à Nu .. , 1968

32


j

( Detalhes Selecionados Segundo Ingres IIIMorceaux Choisis d'Apres Ingres 11, 1968

espelho invertido (o enigma) de sua personalidade". Numa água-forte gravada por volta de 1820 por um artista desconhecido, Édipo mata a esfinge e a corta longitudinalmente ao meio com um golpe de espada, revelando, assim, que "ele e sua vítima têm o mesmo perfil!" (tbid.) Isso aponta para o caráter bissexual de Édipo. "Édipo representa o hermafrodita sem jamais conseguir tornar-se." (tbid.) Mais adiante, "Édipo é o homem; ele possui a esfinge-Jocasta (sua componente feminina). A diferença psicanalítica entre ser e ter simboliza, como sabemos, a diferença entre o processo narcisista (em que a criança busca uma identificação com o objeto desejado) e o processo analítico (em que a criança busca a posse do objeto desejado). As obras posteriores de Freud sugerem a perspectiva pessimista do processo analítico que, afinal, é apenas um estratagema do processo narcisista, do qual a fabulosa e típica realização é o Hermafrodita ( ... ). Édipo não esquece o desejo narcisista que o remete de volta à 'irrealidade' (. .. ). Com a Esfinge, ele alcança, por um momento, um equilíbrio perfeito, destruído pelo instinto de morte oculto sob o instinto de vida: não pode satisfazer-se, como outros homens, através do 'sonho' de possuir a Mãe, nem pode tê-Ia - sob a forma de Jocasta 'isento de perigo'" (tbid.) À luz destas observações, e pelo que foi dito no capítulo 3 sobre a obra Rapaz e Moça na Primavera, a escolha por Duchamp do modelo para essa água-forte parece lon"ge de ser casual.

M.D

Rei e RainhalKing and Oueen, 1968

Rei e Rainha (março, 1968) Nessa água-forte, o detalhe central - o acúmulo de dados - deriva do cartaz desenhado por Duchamp em 1925 para o campeonato de xadrez de Nice. As figuras superior e inferior derivam do Rei e Rainha do xadrez que Duchamp desenhou para seu Xadrez de Bolso. Os amantes - o Rei e a Rainha estão separados pelo acaso (e pelo acúmulo de dados). Detalhes Selecionados Segundo Courbet (março, 1968) A mulher é A Mulher de Meias Brancas de Courbet. Duchamp simplesmente acrescentou o pássaro, que é o voveur da situação. "É um curioso", explicou Duchamp, "e, além disso, é um falcão, o que em francês sugere um jogo de palavras [faucon = "mulher falsa"; "falsa vulva"]; assim, aqui podemos ver uma mulher falsa e outra verdadeira."

33


\

I M. D.

I

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V\\

Detalhes Selecionados Seundo Courbet/Morceaux Choisis d'Apres Courbet, 1968

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6. A Mecânica de O Grande Vidro Examinemos, sumariamente, a mecânica de O Grande Vidro, o funcionamento de seus elementos. No Domínio da Noiva (metade superior do Vidro), a Noiva transmite seus comandos, um letreiro tríplice, aos Celibatários (cuja expressão é o gás), através dos 3 Pistons de Corrente de Ar. Os 3 Pistons de Corrente de Ar são envolvidos pela Via Láctea, que é a expressão gráfica das três "florações" da Noiva. A área conhecida como a dos Nove Tiros é o trecho em que os desejos da Noiva se encontram com a expressão dos Celibatários. Os desejos destes deveriam ter encontrado sua expressão gráfica num Quadro das Sombras Lançadas, formado pelo reflexo no espelho da Escultura de Gotas. Na metade inferior do Vidro, batizada por Duchamp de Máquina Celibatária, um gás (cuja origem é desconhecida) é lançado nos Moldes Machos ~ dentro da forma dos nove Celibatários. O Gás escapa dos Moldes através dos Tubos Capilares, onde é congelado e cortado em pedaços reluzentes e, então, convertido numa névoa semi-sólida. Os Tubos Capilares levam os Pedaços Reluzentes até a abertura da primeira Peneira. Sugados pela Bomba-Borboleta, os Pedaços passam pelas sete Peneiras, condensando-se, no processo, numa suspensão aquosa. Esse líquido é despejado no Tobogã e se "espatifa" em sua base. Os borrifos formados pela queda da suspensão aquosa são canalizados para um escoadouro por um Peso Móvel com nove furos que direcionam o fluxo dos Borrifos às Testemunhas Oculistas. As Tesouras controlam o ímpeto dos Borrifos ao saírem das Testemunhas Oculistas. Alguns desses Borrifos irão formar, então, a Escultura de Gotas, que passará pelo Efeito Wilson-Lincoln. O reflexo das gotas passa pelo Traje da Noiva e é refletido para cima, na direção do Domínio da Noiva, para formar o Quadro das Sombras Lançadas mencionado antes. A energia cinética dos outros Borrifos é transformada em energia luminosa ao passar pelos Diagramas Ópticos, o último elemento, que deveria possuir uma lente, cuja posição no Vidro, contudo é apenas indicada por um círculo. Essa lente deveria focar o feixe de energia luminosa no Mármore de Combate, que, sob esse impacto, seria forçado a subir, colidindo finalmente no topo e colocando, assim, em movimento o mecanismo da Luta de Boxe, cujos dois êmbolos se movimentam para cima e para baixo, erguendo e soltando o Traje da Noiva ~ e realizando seu strip-tease. O Operador de Gravidade, cujas três pernas se apóiam no Traje da Noiva, encontra seu equilíbrio ao tombar pelo strip-tease da Noiva, e experimenta dificuldade em deter a queda de uma bola que está balançando sobre a bandeja que segura. O Traje da Noiva, além de atuar como um prisma que desvia para o alto o reflexo das gotas, funciona também como um Esfriador Nervurado, que freia as cálidas atenções do Celibatário; o Traje indica, além disso, o Horizonte Ideal do Vidro. O Moinho de Água é ativado por uma Cascata, enquanto a Carreta é posta em movimento também por meio de uma série de complicados recursos mecânicos. Em seu movimento de vaivém, a Carreta controla a ação das Tesouras e entoa as litanias ouvidas no Cemitério de Uniformes e Librés pelo Gás

Celibatário, enquanto este é introduzido nos Moldes Machos. O Moedor de Chocolate, cuja Baioneta apóia as Peneiras, ilustra um dos traços principais da personalidade do Celibatário, que "mói sozinho o seu chocolate". N o fim das chapas das Peneiras, um mármore deveria ser suspenso como um pingente junto à extremidade das alças das Peneiras. O complexo significado de todos esses elementos é acentuado pelo fato de serem ambivalentes; o aspecto mecânico da Noiva é enfatizado em toda parte, e a analogia com um automóvel é freqüentemente ressaltada. Seu Traje, cuja transparência acentua a qualidade erótica, preenche três funções correlatas no Vidro: na extremidade esquerda, atua como o "esfriador" que discutimos acima; na extremidade direita, é responsável pelo Efeito Wilson-Lincoln nas Testemunhas Oculistas; no meio, indica o Horizonte do Vidro. Este último aspecto permite a Duchamp subverter as leis da perspectiva clássica, deixando indeterminado o espaço do Vidro. O desnudamento da Noiva é resultado de uma "floração" que envolve, assim, três estágios distintos, ou seja, o desnudamento pelo Celibatário, o desnudamento imaginativo da Noiva e o choque entre os desejos do Celibatário e da Noiva ~ a colisão dos dois rituais anteriores. Quanto à Inscrição do Alto, não é somente um meio pelo qual a Noiva transmite "comandos, ordens e autorizações" por intermédio do fluxo de letras que formam suas mensagens ao Celibatário; o subtítulo Via Láctea lembra sua semelhança com nuvens, uma combinação de água e gás, o que indica a natureza andrógina e o papel conciliador desse elemento, tal como é confirmado por outros detalhes. A função dos 3 Pistons (ou Redes) é transmitir as mensagens da Noiva somente depois que estas tentam ser postas "numa espécie de 'código' triplo ... ". Seu papel poderia ser comparado com o do censor que, no processo onírico, camufla os anseios inconscientes e reprimidos que procuram uma satisfação. O último elemento do Domínio da Noiva é a área dos Nove Tiros, que leva a uma conclusão a viagem dos desejos da Noiva. O exercício de apontar para um alvo com um canhãozinho de brinquedo implica claramente em que o alvo é identificado com a Noiva e a região apontada ~ seu Domínio ~ não deixa dúvidas quanto à identidade da pessoa a que se destinam os tiros. Um complexo mecanismo governa o encontro da Noiva e do Celibatário, assegurando que nenhum contato entre os dois é possível. Se os desejos da Nóiva devem transpor muitos obstáculos antes de alcançarem a região em que se confrontam com os desejos do Celibatário, a jornada deste último é ainda mais atormentada. Uma nota de Duchamp caracteriza admiravelmente a psicologia dos Nove Moldes Machos, e revela que o Celibatário possui uma forte inclinação narcisista (um espelho reflete para si sua própria complexidade) e um complexo de castração (ele é atravessado por um plano imaginário, num ponto que Duchamp denomina o ponto do sexo). Tal como a Noiva, os Moldes Machos também são investidos de implicações míticas; seu subtítulo, inclusive, é Eros Mattrix (Matriz de Eros), e Eros foi sempre representado na iconografia clássica como andrógino. Uma matriz, também pode ser entendida como o "negativo" partir do qual se obtém um molde "positivo"; matriz e molde são antitéticos, exatamente corno, na mitologia, Eros e Narciso. Além disso, o número de

a

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o Grande 36

Vidro Completado/The Large Glass Completed, 1965


Moldes, nove, aponta para o caráter ambivalente do Celibatário, sendo o nove um símbolo de fertilidade (ligado ao número de meses do período de gestação humana), enquanto sabemos que os Moldes são todos acéfalos, portanto castrados. No curso de seu trajeto a partir do nascedouro, a Matriz de Eros, na qual o Gás de Iluminação é lançado numa imagem de Narciso, vemos que o Celibatário não apenas se priva de seu caráter "másculo" (malicl, como perde, também, seu estado e condição físicos, desde que apenas sua imagem refletida irá, finalmente, encontrar a Noiva. Os Tubos Capilares e as Peneiras possuem basicamente a mesma função, a de conduzir o Gás de Iluminação, e, em ambos os casos, o Gás se defronta com a castração, durante ou ao término da jornada. Nos Tubos Capilares, a identificação "máscula" é contra balanceada pela castração, exatamente como nas Peneiras o Gás é transformado num "líquido denso" e em vapor, novamente uma combinação de Ar (Narciso) e Água (NoivaJ. Tudo isso sugere que esses elementos também possuam a função de obstruir a jornada do Celibatário. Finalmente, os Tubos Capilares - que devem ser identificados com os filetes das 3 Cerziduras-Padrão - não são vazados, de modo que seria praticamente impossível ao Gás atravessá-los; os Tubos deveriam permitir facilmente a passagem do gás, mas são sólidos, ou demasiadamente delgados. Quanto às Peneiras, estas coletam o Gás liberado pela boca dos Tubos, que "tendem a elevar-se". Também "forçam os Pedaços Luminosos a tomar uma direção que, de outro modo, não seguiriam", observa Duchamp; "os Pedaços vindos dos Tubos Capilares tenderiam a elevar-se em

mo

A Noiva/The Bride, 1965

direção à Noiva ... com demasiada rapidez!" Alternando ocos e sólidos, as Peneiras se constituem num canal que nem é inteiramente livre nem inteiramente obstruído. Finalmente, ao passar pelas Peneiras, o Gás é destituído da maior parte de suas características, ocorrendo simultaneamente, contudo, o processo inverso de ajudá-lo a recuperar sua personalidade; na verdade, o Gás, em sua passagem, atravessa o mesmo processo de identificação, visto que os furos das Peneiras "deveriam dar, sob a forma de um globo, a figura dos Moldes Machos". As Peneiras, nesse ponto, tal como os Moldes Machos são matrizes. Outros elementos, inclusive alguns que

Detalhe: Os Nove Moldes Machos/The Nine Malic Moulds, 1965

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Moinho de Agua/The Water Mill, 1965

Moedor de Chocolate/The Chocolate Grinder, 1965

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faltam, pretendem ajudar o Celibatário a recuperar sua personalidade original. Nas Testemunhas Oculistas, as contradições básicas da psique do Celibatário são reconciliadas após serem, inicialmente, acentuadas. Aqui, a jornada do Celibatário chega a um fim; é daqui que o Gás pode testemunhar a Noiva sendo despida e alcançar, eventualmente, seu domínio, mesmo que apenas como uma imagem refletida. Esse complexo mecanismo é também baseado nas funções e ações ambivalentes do Traje da Noiva, que, por um lado, separa a Noiva do Celibatário e, por outro, é responsável pelo encontro de ambos. Sob esse aspecto, o trajeto do Celibatário também parece motivado pelo esforço da psique dissociada em reconquistar sua própria unidade. Não podemos deixar de notar que as Testemunhas Oculistas também funcionam como Testemunhas Oculares, e que a Testemunha Ocular é, obviamente, um disfarce transparente do voveur. Escotofilia (observação sexual) e exibicionismo são dois aspectos antitéticos da mesma tendência ambivalente. O mecanismo completo que realiza o desnudamento da Noiva contribui para pôr em movimento a maquinaria da Luta de Boxe, ligando, assim, o desnudamento com o tempo. Duchamp enfatizou a importância do elemento tempo ao referirse a seus readvmades; é impossível ficar indiferente à sua analogia entre o readvmade e o ato amoroso em ambos os casos, "o importante" é o tempo. Duchamp chamou o Vidro de um "Retardamento em Vidro", e o readvmade também pode ser visto como criado "com toda sorte de retardamentos". Finalmente, o Vidro é também a história de um encontro entre a Noiva e o Celibatário, da mesma forma que o readvmade é um encontro entre seu criador e a criação. É como se Duchamp almejasse equacionar os dois atos criadores envolvidos no amor e na arte. O título de uma estrutura fálica, realizada em 1951, é a epítome desse conceito: Objet-Dard (Objeto-Dardo), onde também se lê Objet d'Art ("Objeto de Arte", "Obra de Arte"). A ambivalência de todos os elementos do Vidro não é meramente uma expressão da estrutura real da psique - ~uma estrutura aominada pela polaridade nem reflete apenas o conflito entre repressão e satisfação de desejos. Antes, deveríamos ver nessa ambivalência uma característica fundamental de todos os mitos e de suas virtudes terapêuticas. A repetição que encontramos do mesmo tema fundamental é um dos aspectos essenciais da função catártica do mito. A habilidade mitopéica de Duchamp, que encontra sua realização máxima no Vidro, legou-nos uma das obras mais úteis do pensamento ocidental. "Gostamos de imaginar que algo que não compreendemos não nos ajuda sob aspecto algum", observa Jung, "mas nem sempre é assim ... Por seu caráter numinoso, o mito tem um efeito direto no inconsciente, independente de ser compreendido ou não. "27


Esquema de O Grande Vidro, segundo Arturo Schwarz

DOMíNIO DA NOIVA (metade superior do Vidro) 1. Noiva (ou Pendu Femelle = "Enforcado Fêmea", Virgem, Esqueleto). 2. Traje da Noiva. 3. Região do Esfriador Nervurado (placas isolantes). 4. Horizonte. 5. Inscrição do Alto (ou Via Láctea). 6. Pistons de Corrente de Ar (ou Redes). 7. Nove Tiros. 8. Região do Quadro das Sombras Lançadas. 9. Região da Imagem Refletida da Escultura de Gotas. 10. Operador de Gravidade (também chamado Treinador, Manipulador, Vigilante ou Encarregado de Gravidade).

MÁQUINA CELIBATÁRIA (metade inferior do Vidro)

11. Nove Moldes Machos (ou Matriz de Eros) formando o Cemitério de Uniformes e Librés. 11 a. Soldado. 11 b. Policial. 11 c. Lacaio. 11 d. Entregador do Grande Magazine. 11e. Ajudante de Garcom. (ou "Cacador de Caft;"/11f. Padre. 11g. Agente Funerário (ou Coveiro!. 11 h. Agente Ferroviário (ou Chefe de Estacão!. 11 i. Guardião da Paz íou Agente de Segurança!. 12. Tubos Capilares. 13. Região da Cascata. 14. Moinho de Água. 14a. Roda-d'Água. 14b. Carreta (ou Trenó, ou Patim). 14c. Patins do Trenó. 15. Moedor de Chocolate. 15a. Tripé Luís XV Niquelado. 15b. Roletes. 15c. Gravata. 15d. Baioneta. 15e. Tesouras. 16. Peneiras (ou Guarda-Sóis, em cujo interior estão os Declives de Drenagem). 17. Região da Bomba-Borboleta. 18. Tobogã (ou Saca-Rolhas, ou Declive de Fluxo!. 19. Região dos Três Choques (ou Borrifosl. 20. Peso Móvel com Nove Furos. 21. Testemunhas Oculistas. 21a, b e c. Diagramas Ópticos. 21 d. Lente (deveria ser uma lente de aumento com foco nos Borrifosl. 22. Mármore de Combate. 23. Luta de Boxe. 23a. Primeiro Êmbolo. 23b. Segundo Êmbolo. 24. Região da Eiócultura de Gotas. 25. Região do Efeito Wilson-Lincoln.

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As Peneiras/The Sieves, 1965

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111. Os Readymades 1. A base teórica o mesmo impulso que fez Duchamp rejeitar as convenções na pintura levou-o mais longe ainda, a especulações e revisões ligadas às convenções sociais e à linguagem. Suas especulações teóricas sobre a linguagem encontraram um importante canal em seu jogo e trabalho com as palavras a nível fonético - sua preocupação com o trocadilho. Na verdade, o primeiríssimo trocadilho publicado de Duchamp (no 391 de Picabia, julho de 1921) revela a ligação íntima vista por ele entre a renovação da linguagem e a exploração da palavra enquanto som. Temos aqui um exemplo concreto da maneira pela qual as novas relações gramaticais seriam estruturadas foneticamente. "Se o que se deseja é uma regra gramatical: o verbo concorda com o sujeito em consonância; por exemplo, le negre agrit, les negres ses s'aigrissent ou m'aigrissent etc." Na atividade de Duchamp, trocadilhos e readymades constituem expressões de uma mesma atitude psicológica; em seus trocadilhos ele redime a palavra do lugar-comum e exibe sua beleza por intermédio de um deslocamento mais ou menos abstrato. Para a revista de André Breton, Littérature, Duchamp concebeu um trocadilho em que atacava a idéia de literatura, equacionando-a a camas e rasuras: Lit et Rasures. Nesse caso, a palavra é removida de seu contexto lógico original e colocada inusitadamente em justaposição a algo diferente. O mesmo processo de deslocamento está

Apolinere Esmaltado/ Apolinere Enameled, 1916-17, réplica de 1965

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igualmente na base da atitude de Duchamp com respeito aos objetos comuns (readymades). Aqui, novamente, o processo pode estar relacionado ao físico ou, de maneira mais abstrata, ao contexto lógico do objeto. O deslocamento do contexto físico é alcançado através da mudança do ângulo visual a partir do qual o objeto é normalmente percebido e do isolamento de seu meio habitual. Esse é o princípio operante em Roda de Bicicleta, de 1913 (o garfo está de cabeça para baixo e preso a uma banqueta de cozinha), Porte-Bouteilles (Porta-Garrafas ou Secador de Garrafas), de 1914 - para ser observado preso ao teto, como o Porte-Chapeau (Porta-Chapéus) e o Trébuchet (Armadilha) - um cabide de parede preso ao chão - ambos de 1917. O deslocamento do contexto lógico usual é alcançado rebatizando o objeto, com o novo título isento de qualquer relação óbvia com o objeto, tal como este é normalmente considerado. Esse processo é exemplificado em Pharmacie (Farmácia), de 1914: gravura popular de uma paisagem à qual Duchamp acrescentou duas minúsculas figuras; em In Advance of the Broken Arm (À Frente do Braço Quebrado, de 1915, originalmente uma pá para neve); em Pulled at Four Pins (Estirado a 4 Alfinetes - expressão idiomática francesa que significa "bem-vestido"), um ventilador de chaminé, em lata, não pintado; e em Fontaine (Fonte), 1917, um mictório de louça de banheiro público masculino. Duchamp teorizou esse processo ao falar da necessidade de encontrar novos títulos e rótulos para um readymade. Disse-me, também, que a prática de dar nome aos readymades derivou de seu desejo de acrescentar ao objeto um "colorido verbal". Afirmou


Farmácia/Pharmacy, 1914, reprodução de 1941

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explicitamente: "Para mim, o título era muito imj:lortante". O relacionamento entre trocadilhos e readvmades fica mais claro ainda quando lembramos que o readvmade, por vezes, é um trocadilho em "projeção tridimensional". Armadilha (TrébuchetJ é, assim, um exemplo não apenas de deslocamento físico, como também de deslocamento lógico, na medida em que a própria palavra é um trocadilho do termo de xadrez, foneticamente idêntico, trébucher, significando, em francês, "tropeçar". O trocadilho é também utilizado nos títulos de Apolinare Énameled (Apolinare Esmaltado), 1916-17; de L.H.O.O.O. (readvmade "corrigido" feito em 1919: reprodução da Mona Lisa com barba e bigode rabiscados a lápis), com um irreverente jogo de palavras no título, cujo sentido está na maneira de ler rapidamente o nome das letras I, h, o, o, q, em francês: elle a chaud au cul - "ela tem fogo no rabo"; e Fresh Widow (Viúva Fresca), 1920, trocadilho com "french window" ("janela francesa"). Os trocadilhos, como a poesia, abalam os pressupostos básicos de uma realidade estática e imutável, visto que estão voltados ao equacionamento de duas realidades distintas. Após alcançar resultados no nível verbal, Duchamp passou a procurar por algo que levasse a resultados em nível físico. Formulou inicialmente a questão indagando a si mesmo de que modo seria possível perder "a possibilidade de reconhecer (identificar) dois objetos similares", sendo que essa possibilidade foi concebida primeiro como puramente mental. Do abalo da capacidade de reconhecimento do similar passou ao abalo do reconhecimento de categorias opostas, abolindo, assim, as pOlaridades tradicionais, como direita e esquerda ou interno e externo. Um paradigma dessas noções teóricas pode ser visto em WhV Not Sneeze Rose Sélavv? (Por Oue Não Espirrar, Rose Sélavv?), de 1921, uma gaiola de passarinho abarrotada com 152 pedaços de mármore cortados em forma de cubos de açúcar. Ao levantar a gaiola, fica-se chocado ao constatar que é bem mais pesada do que o suposto. Essa atitude de indiferença, primeiro com respeito a categorias similares e depois com respeito a categorias opostas, levou Duchamp a uma posição descompromissada quanto ao aspecto estético de uma obra de arte, para a qual reclama a "beleza da indiferença" e sua atitude mais genérica de nãoenvolvimento e suspensão de julgamento. Isso implica uma falta absoluta de dogmatismo, que Duchamp expressou com perfeição numa fórmula: "Não há solução porque não há problema. "28 Encontramos esse pensamento expresso por Ludwig Wittgenstein: "Na realidade, os problemas mais profundos não são problemáticos" já que "a solução do problema da vida é vista no desaparecimento desse problema. "29 André Breton lembra uma anedota notável que demonstra o modo pelo qual Duchamp estava verdadeiramente preparado para viver segundo suas idéias: "Vi Duchamp fazendo algo de extraordinário: lançou uma moeda para o alto e disse, 'coroa, sigo esta noite para a América; cara, fico em Paris'. Não havia nada de indiferença envolvido, é certo que preferia infinitamente ir ou ficar ... "30 Em 1913, as dúvidas de Duchamp levaram-no a perguntar "Será possível fazer obras que não sejam obras de 'arte'?" Deu a si mesmo uma resposta afirmativa, elaborando uma variedade de projetos de obras dotadas da "beleza da indiferença". Assim, fez planos para o uso da amplitude elétrica numa obra de arte e o plano encontrou sua realização no 44

desnudamento da Noiva. O enigmático projeto de uma "pintura de freqüência" o levou a pensar em termos de "d uração plástica", e não em termos de estética plástica, o que pode ser considerado um prelúdio às suas especulações acerca da música e às possibilidades de uma escultura musical. Apesar do caráter abstrato dessas idéias, elas aparentemente levaram Duchamp ao Erratum Musical (Errata Musicaf), de 1913. A obra, uma composição musical, foi seu primeiro trabalho com o acaso; sua teoria era a de Lewis Carrol!, com intervalos musicais em substituição às palavras. Em 1914, menos de um ano após ter-se questionado quanto à possibilidade de fazer obras que não fossem obras de arte, Duchamp se dispôs a examinar a noção de "Nominalismo Pictórico" - o conceito de que a existência da definição não implica a existência do definido nesse caso, que a existência da palavra "arte" não implica a existência da arte em si. Redigiu notas sobre o relacionamento entre O Grande Vidro e o readvmade, onde o Vidro é utilizado como a pedra de toque para a diferenciação entre o readvmade e o objet-trouvé comum. Como extensão e corolário da rejeição de categorias idênticas e opostas, considerava importante que nem o readvmade nem o Vidro fossem um objet-trouvé. Sua semelhança reside no fato de ambos possuírem a mesma qualidade negativa. O primeiro readvmade foi escolhido em 1913; o ano da aplicação do acaso em Errata Musical e da extensão desse princípio a 3 Cerziduras-Padrão foi também o ano da Roda de Bicicleta. A palavra "readvmade" não foi cunhada antes de 1915, pouco depois da chegada de Duchamp a Nova York A descoberta desse novo meio de expressão, ou não-

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Errata Musical/Musical Erratum, 1913, reprodução de 1934


expressão, todavia, não levou Duchamp a perder nada de seu poder de autocrítica. Estava bem alerta para a armadilha do fácil. "Mas logo percebi o perigo de repetir indiscriminadamente essa forma de expressão e decidi limitar a produção anual de readvmades a um número reduzido." Essa limitação foi apenas uma dentre as regras estabelecidas por ele visando a preservar sua liberdade de produção. O readvmade tinha de ser planejado "pará um momento por vir (tal dia, tal data, tal minuto) ... Uma espécie de encontro marcado". Mais ainda, o Readymade precisava trazer uma inscrição que "ao invés de descrever o objeto, como num título, pretendia transportar a mente do espectador em direção a outras regiões, mais verbais". 31 Foi uma legenda, a propósito, a primeira coisa descoberta por Duchamp quando decidiu, em janeiro de 1916, considerar o Woolworth Building um readvmade. Como, todavia, por um motivo ou outro, jamais chegou a encontrar a frase que procurava, o Woolworth Building não pode ser considerado mais do que um readymade latente. Peigne (Pente) recebeu seu nome em 1916, um ano depois de o artista ter concebido um plano para "classificar pentes por seu número de dentes". Em 1915, propôs novamente o uso do pente como um "controle proporcional ( ... ) de outro objeto também formado de elementos menores", e de investigar a possibilidade de uma projeção geométrica do pente no espaço; o título desta nota, Reco-Reco, anuncia o semi-readvmade de 1916 intitulado A Bruit Secret (Com Barulho Secreto). Duchamp retorna a esse tema, alguns anos mais tarde, com um plano de "fazer um readvmade com uma caixa contendo algo irreconhecível pelo som e soldar a caixa". Em outras notas, desenvolve idéias que, futuramente, também seriam formuladas por Christo, em seus "empacotamentos" de pontes e edifícios, e por Arman, em suas "acumulações". Duchamp planejou fazer acumulações de "elementos sim'ilares (stretcher kevs)" ou de "esponjas"; sua idéia de fazer "um quadro doentio de um readvmade doentio" está ligada ao Readvmade Infeliz, de 1919, o livro de geometria que seria pendurado no balcão de sua irmã Suzanne. Seus projetos de "comprar um par de pinças de gelo como um readvmade" e de fazer experiências com a qualidade cortante de lâminas de barbear jamais foram levados adiante. O trajeto da tela para o readvmade foi apenas a primeira metade de um giro completo. Duchamp pensa agora no "readvmade recíproco" - "o uso de um Rembrandt como tábua de passar roupa." Essa idéia foi fruto de um desejo "de expor a antinomia básica entre a arte e os readvmades". E, para fechar o círculo, observa: "desde que os tubos de tinta utilizados por um artista são manufaturados e produtos readvmade, devemos concluir que todas as pinturas do mundo são Readymades 'assistidos'. "32 Mas, voltando a Rembrandtr uma observação final deve ser feita à luz da noção de Duchamp da "beleza da indiferença" e à luz de sua atitude radical de não comprometimento. Se a obra de arte e a obra de "não-arte" são essencialmente uma, e se o objeto comum pode ser elevado. e lançado à atemporalidade por intermédio da escolha do artista, o inverso também deve ser verdadeiro. Uma operação igualmente válida seria retirar um Rembrandt, ou qualquer outra obra de arte, da parede, e transformálo em algo corriqueiro - algo sujeito ao uso, à mudança e à destruição final.

Roda de Bicicleta/Bícvcle Wheel, 1913, réplica de 1

A noção revela algo da qualidade do humor constantemente em atividade no trabalho de Duchamp. E não esqueçamos que o autêntico humor - nas palavras de N imzovich, um grande teórico do xadrez, como o próprio Duchamp - "normalmente contém mais verdade interior do que a mais séria das seriedades".33 O sentido no qual Duchamp empregou o termo "readvmade" é ao mesmo tempo mais amplo e mais estreito do que o sentido assumido pela palavra desde então. André Breton foi dos primeiros a tentar fornecer-lhe uma definição precisa. Para ele, os readymades eram "objetos manufaturados promovidos à dignidade de objetos (obras) de arte através da escolha do artista." 34 Essa definição, porém, é ainda um tanto genérica em excesso, visto que não dá conta de todas as variações e subgêneros passíveis de existência dentro do gênero principal do readvmade. É necessário não tanto faz,er uma definição, mas, antes, uma série de definições. A grosso modo, o readvmade pode ser definido como qualquer entidade comum e elaborada que, unicamente em razão de ter sido escolhida pelo autor, e sem sofrer nenhuma modificação, é consagrada como uma obra de arte. Duchamp enfatizou a importância do fator escolha quando, pouco depois de ter sido acusado de plágio por um grupo de críticos, por ter exposto Fonte na Society of Independent Artists de Nova York, em fevereiro de 1917, escreveu: " O fato de o Sr. Mutt [pseudônimo de Ouchamp na ocasião] ter ou não feito a Fonte com suas próprias mãos, não tem a menor importância. Ele a ESCOLHEU. Apanhou um elemento da vida comum, colocou-o de modo a eliminar seu significado

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Secador de Garrafas/Bottle Drver, 1914, rĂŠplica de 1964

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utilitário sob o novo título e ponto de vista - criando um novo pensamento para aquele objeto" 35 Essas poucas frases sintetizam admiravelmente o significado de sua atitude para com os readymades. O primeiro objeto da obra de Duchamp a encaixar-se em sua definição é o Porta-Garrafas (ou Secador de Garrafas) de 1914. A Roda de Bicicleta, de 1913, pertence mais à categoria do readymade "assistido". Esse tipo de objeto surge quar,do a intervenção do autor restringese à mudança do ângulo a partir do qual um elemento é normalmente percebido, mas sem transformar ou modificar de modo algum o objeto. Outro exemplo desse tipo de obra seria a Fonte de Duchamp, de 1917, ou o Noel Cacodylate, de Picabia, de 1920, um cordão de sapatos colado a uma tela. O termo readymade "assistido" é também aplicável a composições nas quais a intervenção do autor consiste na elevação do objeto à enésima potência. Se Duchamp tivesse levado a cabo as idéias que expressou, nas notas 58 e 59, as.obras resultantes pertenceriam a esta categoria. Sua idéia era fazer a acumulação de "elementos similares (stretcher keys)" ou de "esponjas", para serem comprados na rua 10 de Nova York. Essas explicações dadas por Duchamp prenunciam, de certo modo, as "acumulações" feitas desde então por Arman. A idéia essencial é que o objeto deve ser acrescido a si mesmo, até o momento em que uma massa crítica esteja formada, até o momento em que o último acréscimo determine o que Hegel chama de passagem da quantidade para a qualidade. O readymade "retificado" é outra versão do gênero obtido quando o autor "retifica" um readymade. Exemplos: Farmácia (1914); L.H.O.O.Q. (1919); o Trophée Hypertrophique de Max Ernst (1919); Presente de Man Ray (1921) e Suprématie Commerciale de Picabia (1922). Obtém-se um readymade "retificado e imitado" quando o autor repete e corrige um readymade. Exemplos: _Cheque Tzanck (Cheque Tzanck, 1919), Belle Haleine, Eau de Voilette (Bom Hálito, Água de Violeta ou Água de Veuzinho, 1921); Obligations pour la Roulette de Monte-Carlo (Compromissos para a Roleta de Monte-Carlo, 1924). Finalmente, um "semi-readymade" é obtido quando o autor elabora uma montagem, que é uma combinação de readymades mais ou menos modificados: Por que Não Espirrar? .. (1921). O próprio Duchamp emprega esta definição com respeito a Com Barulho Secreto (1916): "Já feito no readymade das placas de cobre e do rolo de corda" Os trocadilhos são tão importantes na obra de Duchamp que podem ser considerados como uma forma de readymade. O gênero a que pertencem esses trabalhos pode ser definido como readymade "retificado e pintado", e não deve ser esquecido que muitas das obras de Duchamp são a identificação plástica de um trocadilho - Apolinere Enameled, L. H. O. O. Q., Fresh Widow, La Bagarre de A usterlitz, Bell e Haleine ... etc. - ou a projeção futura de sua realização, como em In Advance of the Broken Arm (Á Frente do Braço Quebrado).

2. Os Readymades e O Grande V lígações veladas e desveladas

ro:

Errata Musical, de 1913, é o primeiro e único exemplo de exploração do acaso a resultar no que pode ser denominado um readymade musical: foram

redigidas notas em pedacinhos de papel e depois sorteadas (como na receita de Lewis Carrol para Alice, em que as notas musicais tomam o lugar das palavras). A composição musical resultante seria cantada por Duchamp e suas duas irmãs mais jovens, Yvonne e Magdeleine. A música, segundo a tradição esotérica, é o substituto alegórico da síntese das polaridades, ou a união dos opostos, em primeiro lugar som e silêncio, mas também Terra e Céu e, por extensão, homem e mulher. Desde os tempos mais remotos, a música desempenha um papel essencial na realização de cerimônias sacras e ritos esotéricos. Podemos ver, à luz dessas duas observações, a Errata Musical como o precursor vocal de O Grande Vidro que, afinal, é também a representação de uma cerimônia sacra em que duas polaridades arquetípicas estão envolvidas: a Virgem (personificada aqui pelas irmãs de Duchamp) e o Celibatário. Do ponto de vista técnico, a utilização do acaso na criação de uma obra de arte teria uma aplicação ainda maior no Vidro. Em verdade, Duchamp, no mesmo ano, começou a trabalhar num projeto intitulado "acaso enlatado": 3 Stoppages-Étalon (3 Cerziduras-Padrão), trabalho que levaria aos Tubos Capilares, um detalhe-chave da Máquina Celibatária de O Grande Vidro. Duchamp considera esta obra um dos pontos de guinada de sua vida. "Não foi uma obra de arte importante em si, mas para mim abriu o caminho - o caminho para fugir daqueles métodos de expressão tradicionais por longo tempo associados à arte." De fato, nada poderia estar mais distante do conceito tradicional de arte. Duchamp tomou uma grande tela retangular e pintou-a de maneira uniforme em azulprússia. Cortou, então, três pedaços de um metro de linha branca do tipo usado em cerzidura invisível (stoppage em francês, daí o título dessa obra). Colocando-se acima da tela e esticando a linha, deixou que esta caísse sobre a tela de uma altura de um metro. A forma assumida pelo fio ao encontrar a tela foi preservada, fixando-o com verniz. A experiência foi repetida três vezes. Duchamp cortou, a seguir, a tela em três faixas retangulares, cada qual com seu fio, e colou as faixas em três placas de vidro. 3 Cerziduras-Padrão, definido por Duchamp como "o metro reduzido", tinha um duplo propósito: criar "uma nova imagem da unidade de comprimento" e obter uma espécie de "acaso enlatado". As formas acidentais assumidas pelas três linhas foram projetadas na Rede de Cerziduras (1914), constituída de nove linhas. Essas linhas, isto é, um fio para cada um dos Moldes Machos, fornecem, assim, os contornos utilizados no tracejo das formas dos Tubos Capilares do Vidro. A idéia de criar uma nova imagem da unidade de comprimento, encaixa-se no projeto de organizar as leis e princípios do Vidro numa "física lúdica" segundo a qual o Vidro poderia existir como "uma realidade tornada possível através de uma ligeira distensão das leis da física e da química". A Roda de Bicicleta foi elevada ao status de obra de arte no decisivo ano de 1913, e podemos reconhecer, na roda e em seus raios os antecedentes formais, respectivamente, dos tambores do contemporâneo Moedor de Chocolate n. o 7 e das linhas que percorrem os tambores do Moedor de Chocolate n. o 2, de 1914. Ambas as obras constituem-se, conforme mencionado acima, nos primeiros estudos do elemento homólogo do Domínio do Celibatário. O utra relação, mais sutil, pode ser

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Três Cerziduras-Padrão/Trais Stoppages Etalon, 1913-14, réplica de 1964

Três Cerziduras-Padrão/Trais Stoppages Etalon, 1913-14, réplica de 1964

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estabelecida entre este readymade e o detalhe no Vidro, se percebermos que, nos dois casos, encontramo-nos diante de uma "Máquina Celibatária": lembremos que o herói do Vidro "mói sozinho o seu chocolate" (nota 140), exatamente do mesmo modo que andar de bicicleta é uma atividade solitária. Diz-se normalmente que o artista se revela a si mesmo na criação; muitas realizações literárias de destaque são autobiográficas e, com igual freqüência, importantes retratos são auto-retratos dissimulados. Quando Duchamp pede que Porta-Garrafas (ou Secador de Garrafas), de 1914, À Frente do Braço Quebrado, de 1915, Porta-Chapéus, de 1917, e Air de Paris (Ar de Paris), de 1919, sejam observados pendendo (do teto), faz com que estes compartilhem do destino do Celibatário (cuja pena por transgredir o tabu do incesto é a morte por enforcamento) e da Noiva, que é definida como o "pendu femelle", identificando inconscientemente, assim, esses readymades com o Celibatário de O Grande Vidro. Em 1914, um ano após escolher o readymade "assistido" Roda de Bicicleta de 1913, Duchamp escolheu o primeiro readymade "retificado", Farmácia. No transcorrer de uma conversa gravada, comentou comigo: "Era ainda a idéia de utilizar algo existente, mas já diferenciado do outro readymade que vem um pouco depois, chamado Porta-Garrafas, que era um objeto manufaturado transformado em readymade. Farmácia foi manufaturada somente a um determinado nível. Foi feito por algum artista desconhecido, que executou uma série de paisagens como modelo para escolas de arte. U ma paisagem invernal noturna. Era uma gravura comercial

Á Frente do Braço Quebrado/In Advance of the

Broken Arm, 1915, réplica de 1964

Porta-Chapéus/Hat Rack, 1917, réplica de 1964

Ar de Paris/Paris A ir, 1919, réplica de 1964

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reproduzida em centenas de cópias, possuindo, assim, o mesmo caráter de um objeto manufaturado, no sentido da existência de um grande número deles, da mesma forma que existe um grande número de pás de neve no mundo. "Schwarz - Por que acrescentou os dois elementos? "Duchamp - Para torná-Ia uma farmácia. "Schwarz - U ma referência aos frascos nas janelas das farmácias? "Duchamp - Sim. Além disso, aquela paisagem tinha, na verdade, outra fonte, outra raison d'être, que emergiu numa viagem a Rouen. Vi aquela paisagem na penumbra dentro de um trem, e no escuro do horizonte havia algumas luzes, pois as casas estavam iluminadas, o que me deu a idéia de colocar aquelas duas luzes de cores diferentes, verde e vermelha, para criar uma farmácia ou, ao menos, aquilo me deu a idéia de farmácia ali mesmo no trem, de modo que, quando cheguei a Rouen, no dia seguinte, fiz o trabalho a partir da gravura comercial que encontrei." Novamente em 1914, Duchamp escolheu o Porta-Garrafas, que é seu primeiro readymade no sentido completo da palavra, na medida em que não foi modificado em nenhum aspecto. Esse item foi comprado por Duchamp na loja de departamentos Bazar de I'Hôtel de Ville pouco antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial. É seu primeiro readymade no sentido completo da palavra, visto que não foi modificado em nenhum aspecto. O objeto foi perdido quando, em 1916, Duchamp pediu, de Nova York, a Suzanne e sua cunhada, que retirassem os pertences de seu estúdio na rue Saint-Hippolyte. O óbvio simbolismo fálico não precisa ser enfatizado, mas é interessante notar que a multiplicação dos cabos, lembrando falos em ereção, encontra paralelo na multiplicação da imagem por Duchamp em Nu Descendo uma Escada e Nove Moldes Machos. Um porta-garrafas preenche sua função apenas quando as mesmas são inseridas nos cabos. O porta-garrafas de Duchamp jamais recebeu suas garrafas, de modo que esse item parece simbolizar o status celibatário de Duchamp. Estirado a Quatro Alfinetes, de 1915, foi o primeiro readymade, escolhido por Duchamp na América, pouco depois de sua chegada a Nova Y ork. Ele meramente acrescentou um "colorido verbal", o título, a um ventilador comum de chaminé. O título é a tradução literal da expressão idiomática francesa "Tiré à 4 épingles", que se refere a alguém muito bem-vestido. Duchamp era conhecido por sua elegância e o fato de que um ventilador de chaminé movimenta-se com o vento pode levar-nos a conjecturar que aqui, novamente, o readymade é uma alusão disfarçada a sua pessoa: os ventos da guerra realmente determinaram a direção de seu exílio. O ano seguinte, 1916, foi um dos mais produtivos da vida de Duchamp - cinco readymades foram escolhidos e um sexto começado. O primeiro é um readymade impresso, Rendez-vous du Dimanche 6 Février 1916 (Encontro do Domingo, 6 de Fevereiro de 1916). Duchamp certa vez confidenciou a Lebel que gostava de justapor "pedacinhos de diferentes artes (por exemplo, escrita e desenho) sem conexão alguma entre si (ou o menos possível)" 36 Rendez-vous ... apresenta uma das primeiras aplicações desse processo à escrita. As palavras que formam as frases desse pequeno texto em francês não têm "conexão alguma entre si".

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Duchamp explicou-me que "haveria um verbo, um sujeito, um complemento, advérbios e tudo perfeitamente correto, enquanto tal, enquanto palavras, mas, nessas sentenças, significado era algo que precisava ser evitado ( ... ), o verbo pretendia ser uma palavra abstrata atuando sobre um sujeito que é um objeto material; dess~ forma o verbo faria a frase parecer abstrata. A construção era muito dolorosa, num aspecto, pois, no minuto em que pensava de fato num verbo a acrescentar ao sujeito, freqüentemente enxergava um significado, e tão logo via um significado riscava o verbo e o modificava, até que, trabalhando ao longo de um número considerável de horas, o texto finalmente podia ser lido sem nenhum eco do mundo físico ... Esse era seu ponto principal". Freud, citando R. M. Meyer, lembra-nos que "é impossível compor nonsense intencional e arbitrariamente", ressaltando que "nada há de arbitrário ou indeterminado na vida psíquica", desde que existem "processos mentais altamente organizados dos quais a consciência não possui o menor conhecimento" 37 Assim, dificilmente causará surpresa o fato de Duchamp ser incapaz de reprimir a emergência de pensamentos interligados. Mesmo com o esforço de "evitar qualquer eco do mundo físico", pelo rompimento do padrão lógico das sentenças, o inconsciente, com sua tenacidade e lógica peculiares, fazia-se presente à mais leve provocação ou relaxamento de censura. É interessante notar que os esforços de Duchamp resultaram numa técnica literária original, que encontrou uma expressão renovada, alguns anos mais tarde, na poesia surrealista. Contudo, apesar de o objetivo ser idêntico em ambos os casos (isto é, o rompimento da seqüência lógica da frase), os caminhos que levam a esse fim têm pontos de partida distintos. Com os surrealistas, a censura ao consciente é deliberadamente dominada, num esforço para alcançar, a nível inconsciente, linhas indisfarçadas de pensamento; com Duchamp, as linhas inconscientes de pensamento que buscam formulação devem disfarçar-se para dominar a censura imposta pelo consciente. O processo psíquico por trás da técnica de Duchamp corresponde intimamente ao processo básico da vida onírica. Em ambos os casos, o conteúdo lAtente deve ser disfarçado para dominar a censura do consciente. O que torna único o texto de Duchamp é o fato de combinar e conciliar as contradições do devaneio em vigília e do sonho. Consciente e inconsciente parecem dar as mãos no que ele uma vez chamou de "um pequeno jogo entre 'eu' e 'mim'''38 (Para uma decodificação completa do texto dos postais, veja o meu The Complete Works ... , págs. 457-460 ) O fato de Duchamp na época ser um recémchegado à América pode ter contribuído para seu interesse na exploração das possibilidades que a nova língua poderia oferecer enquanto "colorido verbal" novo para seus readvmades. Inclusive, os nomes ou títulos da maior parte dos itens escolhidos durante sua primeira estada em Nova York são, também, experiências lingüísticas nas quais o francês e o inglês (duas cores complementares?) são empregados livremente, em justaposições absurdas. É o caso de Peigne, A Bruit Secrer, ... Pliant ... de Voyage (UnderwoodJ, Apo/inere Énameled e Fresh Widow. A inscrição no pente nada tem a ver com o


Encontro do Domingo, 6 de Fevereiro de 1916 .. ./Rendez-vous du Dimanche 6 Février 1916... ,1916, reprodução de 1941

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próprio pente, exatamente como as partes componentes da inscrição não guardam relação alguma entre si. Essa dissociação trabalha em dois níveis e em três dimensões. Temos, assim, mais um exemplo da prática freqüente de Duchamp de associar elementos que nada têm entre si; é uma prática que, quando aplicada à linguagem, tem na imagem poética seu produto final. Três notas da Caixa Verde antecipam esse item; a primeira se refere de modo mais geral ao fato de Duchamp tê-lo datado com grande precisão "planejado para um momento por vir (tal dia, tal data [17 de fevereiro de 1916] tal hora e minuto [11 :OOJ), 'para inscrever um readymade'" (nota 54). As duas outras notas dão conta, mais especificamente, do próprio pente: "Classificar pentes por seu número de dentes" (nota 56), e com a possibilidade de utilizar o pente seja enquanto "controle proporcional" sobre outros objetos ou como ponto de partida para outras criações (nota 57). Essa nota data de setembro de 1915 e antecipa a materialização final do projeto em cinco meses. Para Duchamp, o Pente era uma "observação acerca do infinitesimal". "Duchamp - Os dentes de um pente não são, realmente, um aspecto importante na vida comum. Ninguém jamais se importou em considerar o pente de um tal ângulo. Em outras palavras, quando você olha para um pente e olha para seu cabelo, você o utiliza ou não, mas o número de dentes do pente não é realmente importante ... Fiquei impressionado por essa falta de importância e; assim, a fiz importante para mim ... Suponho que alguns pentes tenham 20 dentes, alguns 29 ou 28, e essa diferença me levou a pensar na classificação dos pentes por seu número de dentes, o que é divertido, ou, ao menos, é uma ironia como afirmação ... Em muitos pontos pode haver também um dente quebrado, e isso torna diferente o relacionamento espacial entre dois dentes. Poderia ser quase comparado a uma secção áurea quando numa relação diferente de comprimento de linhas. Isso é sempre muito artificial, mas sempre fui atraído pelo artificial. "Schwarz - Não entendo o relacionamento entre o Pente e o Reco-Reco, numa de suas notas [57]. "Duchamp - Bem, o Reco-Reco é um brinquedo de criança que faz barulho ao ser girado, e o pente torna-se um gerador de espaço, espaço gerado pelos dentes. "Schwarz - Como o cabo do Moedor de Café. "Duchamp - Sim, mas mais que isso, porque o eixo estaria na extremidade do pente, no lado oposto dos dentes, e estes descreveriam uma série de círculos que não seriam, de fato, absolutamente nada além de um pente em curvas diferentes. Não seria mais um pente plano, mas um pente curvo. Todas essas coisas nunca foram mais além do que a observação que escrevi ali. Mas há uma possibilidade, como falei, de gerar espaço a partir de uma superfície plana. Pode-se conseguir com qualquer superfície."

Pente/Comb, 1916, réplica de 1964

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(Conversa gravada entre Duchamp e o autor.) Em Com Barulho Secreto, de 1916, as palavras inscritas no subtítulo (P.G. Ecide Débarassé - Le Desert. f. urnis. ent/as haw. v. r. cor. ésponds), nada mais eram do que "um exercício de ortografia comparada (inglês-francês). Os períodos devem ser substituídos (com uma exceção: débarrassé [e]) por uma das duas letras das duas outras linhas, mas na mesma vertical em que o período - inglês e francês são misturados sem fazer nenhum 'sentido'. Existem ainda três setas que indicam a continuidade da linha da placa inferior com a outra [superior], ainda sem significado". (Carta de Duchamp ao autor.) Duchamp identifica ... Pliant .. de Voyage (. Dobrável. .. de Viagem, que possui o subtítulo Underwood), de 1916, com uma saia (a da Noiva?) e deveria ser exposta num local um pouco alto para induzir o observador a inclinar-se e ver o que está oculto pela cobertura. Não há nada por baixo, obviamente. Isso está de acordo com a visão expressa por Duchamp, "são os observadores que fazem o quadro."39 Outra idéia envolvida nesse item é a da criação de uma escultura "leve": uma escultura que possa mudar de forma segundo o desejado, ou também de um modo incontrolado, escapando, assim, do aspecto estático e congelado da escultura tradicional. Duchamp comentou para o autor: "Você tem aqui uma outra vítima da gravidade". Finalmente, Linde notou que, em La Bolte-enValise (Caixa-em-Va/ise), o modelo em miniatura desse item encontra-se ao lado da reprodução do detalhe de O Grande Vidro conhecido como Traje da Noiva. "Considerando que a função da Noiva é produzir 'u nidades alfabéticas', seria possível enxergála como uma datilógrafa - e a cobertura ... Dobrável ... de Viagem (ou Underwood) poderia ser sua roupa. Agora, existe apenas um trabalho de Duchamp em madeira (under wood), e este é o 3 Cerziduras-Padrão. Não é mais uma evidência sustentando a visão de que o Traje da Noiva representa as três placas de vidro vistas de perfil"40 Como mencionado por Linde, as três placas de vidro de 3 Cerziduras-Padrão são under wood, porque a caixa de croquê que as contém é feita de madeira. Além disso, a aparência das placas, quando vistas na caixa, é muito semelhante àquela das três placas de vidro que constituem o Traje da Noiva em O Grande Vidro. Em fevereiro de 1917, Duchamp enviou um mictório de louça de banheiro público masculino, Fonte, para uma exposição organizada pela Society of Independent Artists, Inc., na Grand Central Gallery de Nova York. A idéia ocorreu-lhe no curso de uma conversa com Arensberg e Joseph Stella, e os três saíram imediatamente para comprar o objeto. Tudo o que Duchamp fez foi alterar o ângulo de percepção desse objeto, datando-o e assinando R. Mutt 1917 no lado superior direito, de modo que, para que a


Com Ruído Secreto/With Hidden Noise, 1916, réplica de 1964

Caixa-em- Valise/ La Bolte-en- Valise, 1941

Dobrável de Viagem/Traveller's Folding Item, 1916, réplica de 1964

Caixa-em- Valise/ La BOfte-en- Valise, 1941

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FontelFountain, 1917, réplica de 1964

assinatura fosse lida, o objeto teria de ser invertido ao invés de ficar em sua posição usual. A comissão organizadora, à qual ele pertencia, colocou o objeto num local em que dificilmente seria visto, e Duchamp desistiu. "Duchamp conta como Walter Arensberg, sabendo do incidente, foi até a Independent Show e pediu para ver 'a Fonte de R. Mutt'. Os funcionários chamaram os organizadores. Os organizadores disseram que nunca tinham ouvido falar da obra. 'Sei mais do que isso', disse Arensberg. Sua afirmativa seguinte deixou pasmos os organizadores seus colegas. 'Quero comprá-Ia', disse calmamente. Ainda assim, não conseguiram encontrá-Ia. Logo em seguida, Duchamp e Man Ray, procurando minuciosamente, descobriram o ofensivo objeto atrás de uma divisória. Chamaram Arensberg, que tirou seu talão de cheques e anunciou que a compraria em confiança. 'Preencham vocês mesmos o cheque', disse ele, pedindo, então, que o mictório fosse trazido e carregado à vista do público, ao longo da galeria repleta de gente. Sua coleção de Duchamp, possivelmente a maior do mundo, enriqueceu-se de um item. Na porta, enquanto Duchamp e Man Ray estavam parados, segurando a nova aquisição como se fosse uma Afrodite de mármore, Arensberg virouse e, em seu calmo tom de voz, anunciou seu desligamento da Society of Independent Artists." O pseudônimo adotado por Duchamp pretendia reforçar o valor da escolha· "Mutt vem de Mott Works, nome de um grande fabricante de equipamentos sanitários. Mas Mott era muito próximo, de modo que o alterei para Mutt, baseado nas 'tiras' diárias 'Mutt e Jeff' que apareceram na época, e com quem todos estavam familiarizados.

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Assim, desde o início, houve uma interação de Mutt, um homenzinho gordo e engraçado, e Jeff: um sujeito alto e magro ... Queria qualquer nome antigo. E acrescentei Richard ["sacola de dinheiro", na gíria francesa]. Não é um nome para uma pissotiere. Entendeu? O oposto de pobreza. Mas nem tanto assim, apenas R. Mutt"41 Duchamp enfatizou que a razão de sua escolha "originou-se da idéia de fazer uma experiência ligada com o gosto: escolher o objeto que menos chance tinha de agradar. Um mictório - poucos imaginam que haja algo de maravilhoso num mictório. O perigo a ser evitado está no deleite estético" 42 A observação de Duchamp, em 1914, "Tem-se apenas: o mictório por fêmea e vive-se em função dele" (nota 88) revela a motivação latente em sua escolha de 1917, apontando a castração simbólica auto-erótica do mictório e suas implicações hermafrod itas. Trébuchet (Armadilha), de 1917, pode ser considerado um "trocadilho tridimensional", um termo utilizado inicialmente por Duchamp em 1949 com referência a uma obra de A rp 43 Dessa vez, empregou um termo do xadrez, trébuchet (oferecer um peão na esperança que o oponente possa ser "derrubado"), para definir um cabide que prendeu ao piso de modo que as pessoas pudessem tropeçar (trébucher). Um pequeno trecho do Ulisses, de Joyce, pode iluminar as motivações internas latentes nesse readvmade: "Ter-lhe-ia servido perfeitamente se tivesse tropeçado por acidente em algo propositalmente, usando seu salto alto francês para fazê-Ia parecer alta e levar um belo tombo. Tableau! Teria sido uma apresentação muito encantadora a ser


Armadilha/Trébuchet, 1917, réplica de 1964

testemunhada por um cavalheiro como aquele" 44 Na pintura Tu m' (Tu m') percebem-se as sombras lançadas por dois readymades (a Roda de Bicicleta e o Porta-Chapéus), assim como o de um saca-rolhas. Assumindo que o saca-rolhas poderia ser também um readymade, escrevi a Duchamp pedindo informações. Duchamp respondeu: "Pode-se considerar a sombra do saca-rolhas como um readymade, em vez do próprio saca-rolhas. Nenhuma inscrição no sacarolhas. Data: os seis primeiros meses de 1918". Esse é o elemento mais imaterial da obra de Duchamp. Tão imaterial quanto o emprego da amplitude elétrica numa obra de arte (nota 39). Caso não tivesse sido utilizada na pintura Tu m', nenhum de seus traços teria restado. U ma nota da Caixa Verde sugere a importância desse item: os planos de fluxo do Tobogã, um detalhe não realizado de O Grande Vidro, deveriam ser na forma de um sacarolhas (nota 118). O Readymade Infeliz, de 1919, era um livro didático de geometria pendurado do lado de fora de uma janela pela irmã de Duchamp, Suzanne. O original foi destruído e suas dimensões não estão registradas. A primeira referência indireta a esse item pode ser encontrada no projeto de Duchamp para fazer um "quadro doentio de um readymade doentio" (nota 61). O projeto foi concretizado quando Duchamp encontrava-se em Buenos Aires. Com a intenção de fazer um presente de casamento para sua irmã Suzanne, que acabava de se casar, em abril de 1919, com o pintor dadaísta Jean Crotti, Duchamp escreveu-lhe para Neuilly dando instruções para a preparação desse presente de casamento. "Ela deveria prender um livro de geometria, através de

cordas, ao balcão de seu apartamento; o vento passaria pelo livro, escolheria os problemas, arrancaria fora suas páginas e as rasgaria. Suzanne pintou uma pequena tela sobre o tema: Le Readymade Malhereux de Marcel (O Readymade Infeliz de Marce/). Foi tudo o que restou do objeto, visto que o vento o dilapidou. A idéia de introduzir o conceito de feliz e infeliz nos Readymades me pareceu divertida, e a chuva, o vento e as páginas a voar também eram uma idéia divertida"45 Exposto, assim, à intempérie, "o trabalho sofreu seriamente os fatos da vida" .46 "Sabia que cairia chuva, que o vento sopraria e que o livro se sentiria infeliz por estar ao ar livre daquele jeito" (para o autor). Já discutimos a identificação de Duchamp com sua criação, e o fato de que o estado desse readymade sugeria os sentimentos de Duchamp à época, assim como seu desejo de relembrar S uzanne da intimidade maior de seus tempos escolares. A escolha do presente por Duchamp salvou-se de assumir um caráter pouco condizente com sua atitude não romântica, tanto pelo toque de humor, evidenciado por esse trocadilho tridimensional com o conceito da geometria espacial, como pelo interesse idêntico em desacreditar "da seriedade de um livro repleto de princípios" 47 A relação de L.H.O.O.Q. de 1919 (uma reprodução comum da Mona Lisa de Leonardo, à qual Duchamp acrescentou, a lápis, um bigode e um cavanhaque), com a Noiva de O Grande Vidro pode ser sintetizada numa prática popular de Argos, em que as noivas costumavam colocar uma barba postiça em sua noite nupcial (Plutarco, As Virtudes da Mulher). O acréscimo da barba e do bigode à reprodução não era apenas um gesto iconoclasta;

55


L.H.O.O.Q., 1919, rĂŠplica de 1964

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enfatizava, novamente, a predileção de Duchamp pelo indeterminado. Suspeita-se, com freqüência, que a Mona Lisa seja o retrato de um jovem; Duchamp, acrescentando barba e bigode, transforma a Mona Lisa num travesti "com fogo no rabo". Pouco depois, Duchamp escolheu para si próprio um pseudônimo feminino (Rose Sélavy). O trocadilho desse nome, o momento em que foi escolhido (logo após o término da Primeira Guerra Mundial), as muitas implicações derivadas desse gesto, tudo tende a confirmar o fato de que mesmo os atos mais simples de Ducnamp guardam em si um conteúdo maior do que o aparente à primeira vista. Para pagar a seu dentista, Daniel Tzanck, pelo tratamento recebido, Duchamp deu-lhe uma versão bastante aumentada e pessoal de um cheque com a soma exata devida. Essa questão teve para Duchamp um aspecto não meramente humorístico, mas também um grande significado enquanto gesto. O estudo preliminar do cheque mostra a maneira como foi cuidadosamente planejado e desenhado. Posteriormente, comprou de volta esse cheque do dentista, por uma quantia superior àquela pela qual fora desenhado. Como foi ressaltado por Michel Leiris, isso é também uma forma irônica de afirmar que o valor comercial de uma obra de arte deriva enormemente, em nossos dias, da assinatura do artista 48 Fresh Widow, de 1920, pode ser considerado um trocadilho dimensional (Fresh Widow / French Window!. O trocadilho, porém, não termina no título. Estende-se da esfera verbal para a plástica. O couro preto e polido sobre os painéis da janela induz o observador a acreditar que o ambiente para o qual a janela se abre esteja às escuras, um ardil repetido em Por Que Não Espirrar, Rose Sélavy?, em que as peças de mármore dão a ilusão de serem torrões de açúcar. A idéia subjacente a esse processo é, obviamente, a mesma que está por trás da metáfora poética. Aqui, Duchamp fornece mais evidências de seu desejo de romper completamente com toda ortodoxia.

/

Um artista normalmente começa com tinta, tela ou qualquer outra superfície, e pincéis. Neste caso, algo já existente (uma janela) é utilizado c.omo ponto de partida para o que poderia tornar-se uma série infindável de variações sobre o tema básico (na verdade, somente uma única variação foi feita sobre o tema da janela: La Bagarre d'Austerlitz [Tumulto em Austerlitz}). Duchamp disse ao autor: "Em vez de ser considerado um pintor, gostaria, naquela ocasião, de ser imaginado como um fenêtrierf" A última palavra, um neologismo intraduzível, deveria transmitir a idéia de um "janeleiro" - não um artífice de janelas, mas alguém preocupado com os possíveis desenvolvimentos pelos quais uma janela pode passar. Em resposta a uma pergunta colocada por Serge Stauffer, Duchamp escreveu que era guiado pela "idéia (sempre) de fazer algo que não pudesse ser chamado de quadro (nesse caso, 'fazer janelas')." Resumindo, nas próprias palavras de Duchamp: "Algo que já existe (não necessariamente um objeto manufaturado) serve como ponto de partida para elucubrações". O simbolismo da castração nesse item fica claro se lembramos que o termo coloquial francês para guillotine é "janela". Assim, essa "janela francesa" pode ser uma metáfora da vagina dentata, que pode ser reconhecida num detalhe da Noiva de O Grande Vidro. Janelas, evidentemente, são símbolos sexuais ambivalentes. Freud percebeu que representam os orifícios do corpo. Nesse sentido, o tema da castração, nesse item, é enfatizado não apenas pelo significado manifesto da janela (a guillotine) , como também pelo simbolismo latente da janela (o órgão sexual). O adjetivo fresh (fresco), então, define perfeitamente um órgão sexual masculino que não se detém diante do incesto e que, portanto, sofre a penalidade reservada aos transgressores desse tabu - a castração. O fato de Fresh Widow ser o primeiro item da obra de Duchamp a ser assinado com um pseudônimo feminino parece confirmar o simbolismo da castração no trabalho. A origem desse pseudônimo e a razão da nova grafia de Rose com

11J J

t t

l/f: Cheque Tzanck/Tzanck Check, 1919

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Por Que Não Espirrar, Rose Sélavy?/Why Not Sneeze Rose Sélavy?, 1921, réplica de 1964

erre duplo (adotado pela primeira vez em 1921 no Tumulto em Austerlitz) foi discutido em meu The Complete Works ... , págs. 587-88. Pqr Que Não Espirrar, Rose Sélavy?, de 1921, foi encomendado por Dorothea Dreier, irmã de Katherine S. Dreier. Duchamp recebeu carte blanche, de outro modo não teria aceito a incumbência. Contudo, a gaiola de pássaros não agradou a nenhuma das irmãs Dreier, que pediram a Duchamp que a vendesse. Cerca de três anos depois, Walter Arensberg adquiriu esse item por 300 dólares, soma que havia sido paga por Dorothea Dreier, que recebeu, então, seu dinheiro de volta. Os cubos de mármore parecem torrões de açúcar, de modo a perder-se "a possibilidade de reconhecer dois objetos similares" (nota 31), têm também "densidade oscilante" (nota 130); quando se ergue a gaiola, esta, surpreendentemente, é bem mais pesada do que se teria imaginado, "é verdadeiramente essa densidade oscilante que expressa a liberdade da indiferença" (nota 130). A "liberdade da indiferença" é um tema a que Duchamp retoma com freqüência; nesse caso, é também representado pelo ponto de interrogação ao fim da sentença na base da gaiola. A gaiola incorpora, também, um termômetro, a ser utilizado para medir a diferença de temperatura entre os frios cubos de mármore e os torrões de açúcar, mais quentes. Contém, além disso, um osso de siba (molusco marinho, também chamado sépia, do qual se obtém uma tinta escura usada em artes plásticas), para deixar claro que se trata de uma gaiola onde se colocam passarinhos ou outros animais. Numa entrevista à televisão francesa, Duchamp fez o seguinte comentário acerca de sua obra: "A

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gaiola com cubos de açúcar chama-se Por Que Não Espirrar ... ? e, obviamente, o título parece estranho, na medida em que não há, realmente, relação alguma entre cubos de açúcar e um espirro ... Inicialmente, há o hiato da dissociação entre a idéia de espirrar e a idéia de ... 'Por que não espirrar?' pois, afinal, você não espirra deliberadamente; normalmente você espirra à revelia. Portanto, a resposta à pergunta 'Por que não espirrar?' é simplesmente que você não pode espirrar por querer! E, depois, há o aspecto literário, se é que posso chamar assim ... mas 'literário' é uma .palavra tão idiota ... não quer dizer nada ... mas, de qualquer modo, há o mármore com sua frieza, e isso significa que você pode até dizer que está com frio, por causa do mármore, e todas as associações são permitidas" 49 Em Bom Hálito, Água de Violeta/Veuzinho, de 1921, Wanted/$2000 Reward (Procurado/$2000 de Recompensa), de 1923, e em Compromissos Para a Roleta de Monte Carlo, de 1924, a foto de Duchamp é o ponto de partida para um readymade "retificado" Nos três casos, a referência ao Celibatário de O Grande Vidro é bastante clara. Bom Hálito ... , é um exemplo de combinação de um readymade "assistido" e "retificado" com um "trocadilho tridimensional". O ponto de partida foi o rótulo de um vidro de perfume (Rigaud, Paris), trazendo as palavras un air qui embaume. Quando Duchamp e Man Ray concluíram seu trabalho nesse rótulo, pouco restou do original, exceto o desenho geral. Un air qui embaume foi substituído pelo trocadilho Belle Haleine/Eau de Voilette, e as iniciais de Rigaud pelas de Duchamp (R.S.: Rrose Sélavy) vistas num espelho ("retorno espelhado"), e o


Um Cartaz Dentro de Um Cartaz/ A Poster Within a Poster, 1963

Rrose Sélavv, 1939

Obrigação de Monte Carfo/Monte Carfo Bond, 1924

endereço original (Paris) foi estendido, tornando-se Nova York/Paris. O retrato no rótulo original foi substituído por uma foto, feita por Man Ray, de Duchamp vestido de mulher. A reprodução dessa colagem foi utilizada na capa do New York Dada em 1921 e como substituto do rótulo original num legítimo frasco de perfume Rigaud. Este item é o primeiro no' qual Duchamp aparece fotografado sob esse disfarce de mulher, e surgiu poucos meses depois de Fresh Widow, primeiro item assinado por Duchamp com seu pseudônimo feminino. Desse ponto em diante, veremos freqüentemente Duchamp disfarçado de mulher. Além das obras descritas neste Catálogo, há diversas outras oportunidades em que ele pôs em evidência essa inclinação. Por exemplo, o "retrato imaginário" que escolheu para si em First Papers of Surrea/ism é o de uma velha senhora. Em um de seus trocadilhos, alterou a fórmula usual de conclusão de cartas em francês, Mes salutations tres distinguées para Mes salutations tres Mistinguett, adotando a identidade da célebre atriz do music-hall. Numa foto tirada em 1921, o cabelo de Duchamp, na parte de trás da cabeça, aparece cortado numa forma de estrela - um estilo que lembra a tonsura dos padres católicos. O corte de cabelo é um substituto simbólico da castração. O destino de Sansão, a calvície dos hierofantes egípcios, a tonsura dos padres católicos e monges budistas são exemplares nesse aspecto. As motivações psicológicas da escolha de Duchamp por um pseudônimo feminino, e sua propensão para adotar uma identidade feminina também pode ser

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conseqüência de um sentimento inconsciente de culpa (quando está envolvida a castração), assim como do esforço para alcançar uma personalidade integrada, em termos junguianos, de realizar a individuação, quando está envolvida a androginia. Em Compromissos Para a Roleta de Monte Carla, o Celibatário assume um aspecto de fauno, enquanto que no Procurado ... , além de ser um transgressor da lei, também assume, novamente, uma identidade feminina (a última linha do cartaz especifica que o criminoso é também conhecido como Rrose Sélavy). Porte, 11, Rue Larrev (Porta, Rua Larrev, 11), de 1-927, é outro item que ilustra a "liberdade da indiferença" de Duchamp e sua rejeição às soluções precisas. "Não há solução porque não há problema." Jean van Heeckeren e Jacques-Henry Lévesque comentaram esse item pela primeira vez em 1933: "No apartamento que Marcel Duchamp construiu inteiramente por conta própria, há, no estúdio, uma porta de madeira natural que dá para o quarto. Quando essa porta se abre para que se entre no quarto, fecha a entrada para o banheiro; e quando aberta para que se entre no banheiro, fecha a entrada para o estúdio; está pintada de branco num dos lados, como o banheiro. 'Uma porta deve estar aberta ou fechada', pareceu-me sempre uma verdade insofismável; mas Duchamp conseguiu construir uma porta que ficava ao mesmo tempo aberta e fechada" . 50 Portas, em geral, representam uma ambigüidade fundamental, uma síntese de chegadas e partidas. Duchamp observou que a porta deriva seu nome de Jano, de dupla face. 51 E 8achelard observou que há dois seres na porta.

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Fechadura de Segurança com Colher/Verrou de SOreté à la Cuiller, 1957

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Porta: Rua Larrev, lI/Doar: 11, Rue Larrev, 1927, réplica de 1963


Xadrez de Bolso/Pocket Chess Set, 1943

Homenagem a Caissa/Homage to Caissa, 1966

"O homem é aberto apenas parcialmente ... A Porta! A porta é todo um cosmos do Parcialmente~Aberto. É sua imagem primitiva, a origem de um devaneio em que os desejos e as tentações se acumulam, tentações de revelar as dimensões mais profundas do ser, desejo de conquistar todos os seres reticentes ... E, então, para que e em direção a quem abrem~se as portas? Abrem~se para o mundo dos homens ou para o mundo da solidão?"52 O significado fundamentalmente andrógino da porta que não está nem aberta nem fechada torna~se ainda mais claro se tivermos em mente o simbolismo sexual de portas e quartos. Três de seus últimos readymades - os dois Xadrez de Bolso, de 1943 e 1961~64, e Hommage à Caissa (Homenagem a Caissa), de 1966, retomam um tema de sua juventude. Uma água~forte de 1904 de Villon, mostrando Marcel jogando xadrez com sua irmã Suzanne, é uma evidência de que a paixão de Duchamp por esse jogo começou bem cedo. Tinha dezoito anos em 1904, mas suas lembranças datam sua primeira partida de xadrez com a idade de treze anos, quando seus irmãos ensinaram~lhe simultaneamente a pintura e o xadrez. Jogadores e peças de xadrez são um tema constante na obra de Duchamp. Uma de suas primeiras e grandes pinturas, a maior que já executara até então, La Partie d'Échecs (O Jogo de Xadrez), de 1910, retrata seus dois irmãos jogando uma partida no jardim de Villon em Puteaux. Durante o mês de outubro de 1911, seis estudos preliminares abriram o caminho para as duas pinturas a óleo Les Joueurs d'Échecs (Jogadores de Xadrez) e Portrait de Joueurs

d'Échecs (Retrato de Jogadores de Xadrez), de dezembro de 1911, onde Jacques~Villon e Raymon Duchamp~Villon são novamente retratados. No ano seguinte, um Rei e uma Rainha de xadrez míticos são o tema de uma série de esboços que culminaram numa das obras~primas de Duchamp, O Rei e a Rainha Cercados de Nus Velozes, de 1912, atualmente no Philadelphia Museum of Art. Em agosto de 1952, durante o banquete da Associação de Enxadristas do (New YorkState Chess Association), Estado de Nova York, Duchamp declarou: "Objetivamente, um jogo de xadrez parece muito com um desenho a bico~de~pena, com a diferença, contudo, de que o jogador de xadrez pinta com formas em preto e branco já preparadas, ao invés de inventar formas, como no caso do artista. O desenho assim formado sobre o tabuleiro não possui, aparentemente, nenhum valor artístico visual, sendo mais parecido a uma partitura musical, que pode ser tocada repetidas vezes. A beleza no xadrez não parece uma experiência visual, como é a pintura. A beleza no xadrez está mais próxima da beleza na poesia; as peças de xadrez são o alfabeto de madeira que dá forma a pensamentos; e esses pensamentos, embora configurando um desenho visual no tabuleiro, expressam sua beleza de maneira abstrata, como um poema. Na verdade, acredito que cada jogador de xadrez experimenta uma mistura de dois prazeres estéticos, .primeiro, a imagem abstrata, afim da idéia poética da escrita e, segundo, o prazer sensual da execução ideográfica daquela imagem nos tabuleiros. A partir de meu contato pessoal com artistas e jogadores de xadrez, cheguei à conclusão pessoal de que, enquanto nem todo artista é um jogador de

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xadrez, todo jogador de xadrez é um artista". Esta última afirmação, de que todo jogador de xadrez é um artista, remete-nos de volta a uma tendência básica na obra de Duchamp, responsável por seu envolvimento com os readymades e os conceitos correlatos de supressão das distinções entre arte e vida e entre o artista e o leigo. Podemos perceber aqui, novamente, a força da dupla inclinação de Duchamp por categorias indiferenciadas e por atividades criativas que ampliam o conceito tradicional de arte. Essa atitude pode, também, derivar do estilo de vida não restrito e não restritivo de Duchamp um estilo determinado pela consciência da servidão imposta ao indivíduo pelas obrigações sociais. A contestação global de Duchamp a essas obrigações dirige-se contra categorias pré-constituídas, seja no plano prático ou semântico. Vimos que os readymades e O Grande Vidro são o resultado final da intenção de Duchamp de afastar-se do aspecto físico da pintura, na crença de que esta deveria ser posta novamente a serviço do pensamento. Para Duchamp, o xadrez bem pode ser o melhor exemplo dessa forma livre e desinteressada de arte mental. "Há uma finalidade mental implícita quando se olha para a formação das peças sobre o tabuleiro. A transformação do aspecto visual em massa cinzenta é o que sempre acontece no xadrez e deveria sempre ocorrer na arte. "53 "A imaginação do movimento ou do passo é o que produz a beleza nesses casos. Está completamente em nossas massas cinzentas. "54 O jogo de precisão envolvido no xadrez é um aspecto da "beleza da precisão", que Duchamp advoga para a arte. E, nesse aspecto, o xadrez também pode ter fornecido a resposta afirmativa à pergunta de Duchamp: "Será possível fazer obras que não sejam obras de arte?" Percebemos a relutância de Duchamp em buscar o lado utilitário de suas atividades. Podemos ver nessa atitude outro ponto de contato entre o xadrez e os readymades. Em ambos os casos, o resultado da atividade criadora não deveria ter nenhuma destinação social, nem garantir retorno financeiro algum. O

xadrez é "socialmente mais puro do que a pintura, pois não se pode ganhar dinheiro com o xadrez".55 Em outra ocasião, enfatizou: "0 xadrez não possui nenhuma destinação social. Isso é o que para mim é especialmente importante".56 Tanto quanto o fato de que "ao fim do jogo você pode anular a pintura que está fazendo".57 Estas últimas palavras antecipam toda a tendência da arte moderna que encontrou um de seus primeiros expoentes depois da guerra, em Tinguely, e sua escultura autodestrutiva exposta nos jardins do Museum of Modern Art, de Nova York, março de 1960. A atividade de Duchamp, é claro, tem coerência com sua indiferença, desde muito tempo declarada, às formas tradicionais da arte. O fator tempo é tão importante no xadrez como na alquimia ou nos escritos esotéricos. No xadrez, o simples fato de o Branco ter o movimento inicial, determina toda a estratégia do jogo - agressiva para o Branco, defensiva para o Preto. A perda de um lance, de um andamento, pode facilmente levar à derrota. Na alquimia, o problema da conquista da Pedra Filosofai se reduz à procura dos meios para acelerar o ritmo evolutivo natural do chumbo. O alquimista está convicto de que se dando ao chumbo o tempo adequado, este eventualmente irá "transformar-se" em ouro. Os ensinamentos mais esotéricos estão novamente ligados ao tempo, na medida em que a doutrina almeja mostrar o caminho para a duração infinita da vida humana. O xadrez pode ser, então, uma espécie de projeção secular, no plano lúdico, das disputas míticas e dos jogos sacros freqüentes nos escritos esotéricos. O xadrez enquanto arte (que é ao mesmo tempo um jogo para iniciados) fornece o modelo metafórico ideal para a vida e a obra de Duchamp. A capa desenhada por Duchamp para o catálogo da exposição Le Surrealisme en 1947, assim como para o Couple of Laundress's Aprons (Par de Aventais de Lavadeira), de 1959, lembram nova e inequivocamente a Noiva e o impulso exibicionista do Celibatário. No primeiro caso, o peito róseo de espuma e borracha (de um jogo de readymades

p DE

()[

Capa para o Catálogo "Le Surréalisme en 1947"/Cover for the Catalog "Le Surréalisme en 1947"

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Par de Aventais de Lavadeira/Couple of Laundress's Aprons, 1959

Agua e Gás em todos os Andares/Water & Gas on Every Floor, 1958

Bouche-Evier, 1964, edição de 1967

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"falsos") é acompanhado da injunção Priere de toucher, que o Celibatário não pode levar a cabo no Vidro, desde que se encontra separado da Noiva por três faixas paralelas de Vidro que separam a Noiva do Domínio do Celibatário (haverá uma alusão tripla, nas três faixas de Vidro afiadas, à espada de Tristão que o separa de Iso Ida ?) No Par de Aventais de Lavadeira, os dois protagonistas da saga de O Grande Vidro, engajam-se numa enérgica atividade exibicionista. Os três últimos readymades de nosso interesse ampliam as características dos três elementos-chave do Domínio do Celibatário. Gilet (Colete), de 1958, foi preparado para um leilão em benefício do poeta surrealista Benjamim Péret. O colete, com listras vermelhas e pretas, é o típico libré usado por camareiros e sua forma lembra um dos Moldes Machos do Celibatário no Cemitério de Uniformes e Librés. O segundo readymade, Eau et Gaz à tous les Étages (Água e Gás em todos os Pavimentos), de 1958, é o fac-símile das piacas esmaltadas que costumavam ser afixadas na França, no início do século, nos novos edifícios, indicando a existência dessas duas comodidades. Somos novamente remetidos de volta ao tempo em que o desejo do Celibatário pela Noiva é despertado. Além disso, água e gás de iluminação têm papel dos mais importantes no Vidro. Água é a força motora do Moinho d'Água, cuja função é ativar as castradoras tesouras no alto do Moedor de Chocolate. O Celibatário viaja pelos Tubos Capilares sob forma de gás de iluminação, a caminho da área dos Nove Tiros, onde seus desejos encontrarão os da Noiva. As sete manchas de

".

Quatro Readymades/Four Readymades, 1964

Bouche-Évier (Boca-Pia), de 1964, lembram vagamente a configuração dos nove tiros no Vidro. Se nos lembramos que a função dessa rolha era a de impedir o escoamento da água para fora do chuveiro de Duchamp, percebemos que o Celibatário almeja, inconscientemente, impedir que a água chegue ao Moinho. Ao ler as provas de The Complete Works ... Duchamp exclamou: "De fato, em toda minha vida, como você acertadamente ressaltou, não fiz mais que uma obra, O Grande Vidro". (pág. 140) Tentei, com essas observações preliminares, demonstrar essa afirmação e evidenciar a notável continuidade da atividade criadora de Duchamp.

P.S.

Mareei Duehamp: o

Homem, Mesmo

Estirado a Quatro Alfinetes/Tiré à Quatre Epingles, 1959

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No início dos anos 50, eu tinha um sonho inquietante ligado a alguém que nunca encontrara fisicamente, mas que perseguira meus pensamentos pelos dez anos anteriores. Compartilhei minha visão com aquela pessoa, e Duchamp respondeu prontamente, embora eu lhe fosse um completo estranho na época. Começou, assim, um relacionamento que me levou, em 1956, a começar a trabalhar num projeto, concluído dez anos depois, com um ensaio publicado em 1967 numa edição limitada, ilustrado por uma extraordinária série de águas-fortes. Quando Harry Abrams lançou a edição comercial, em 1969, Mareei nos deixara havia um ano. As obras e as palavras de Duchamp persistiram


Colete/Waistcoat, 1958 em meus olhos e povoaram minha mente desde 1942 - tinha dezoito anos e começava a observar obras de arte com a surpresa de Alice no País das Maravilhas. La Phare de la Mariée, de Breton (que lera muitos anos antes de sua primeira publicação na edição de 1935 do Minotaure) , foi minha primeira iniciação nos Mistérios de MareeI. Mencionei alhures o modo como a observação de Bachelard sobre a alquimia enquanto uma ciência de celibatários, de iniciados, levou-me a verificar se, num mundo pragmático, prosaico e fragmentado como o nosso, uma avenfura irracional, poética e holística ainda poderia ser vivida. Cheguei à conclusão de que ninguém senão Duchamp poderia ser seu herói; nenhuma obra senão O Grande Vidro poderia alcançar a complexa transparência da Pedra FilosofaI. Trabalhei, ao longo de anos, próximo a Mareei e experimentei algumas das emoções mais enriquecedoras que uma amizade pode oferecer. Ele era, sob todos os aspectos, um maitre-à-penser; para mim era mais ainda, ouso dizer que era um guru, no sentido indiano da palavra. Ele, evidentemente, não gostaria de ser chamado assim, e certamente não se considerava nem um nem outro. Sua simplicidade era um modo de ser; a modéstia nunca foi uma "pose" para ele, mas sim algo natural como sua respiração. Era generoso e compreensivo; se você lhe expunha algum problema, ele se interessava verdadeiramente, participava e tornava-se imediatamente perceptivo. Seu conselho podia não ser sábio e sua preocupação jamais seria visceral. Ainda assim, suas maneiras eram discretas, na mesma medida em que seus sentimentos eram secretos. O calor de sua amizade desafiava o tempo, a distância e diferenças ideológicas. Duchamp sobreviveu a Picabia e Breton, que, juntamente com Man Ray, foram seus mais antigos amigos. Em ambos os casos, encontrou as palavras mais tocantes para lembrar suas partidas. Numa cópia de um livro que dedicou a Man Ray, escreveu: "A Man, en éternelle amitié" ("Para Man, com eterna amizade") e, nesse caso, a palavra éternelle não soava afetada. Uma atidude constante de tolerância, de não comprometimento, de inconsistência alegremente aceita - que Keats definiria melhor como "capacidade negativa" - era o resultado de seu anseio exigente e imperioso de liberdade. Duchamp estava ciente de que o mundo dos valores não é um

mundo de lógica polarizada; colocado entre os ditames das falsas antinomias, recusava-se a fazer uma escolha definitiva entre valores mutuamente exclusivos, preservando, assim, sua independência espiritual. A vida continuamente nos coloca em situações alternativas, entre duas portas em que em ambas se lê Entrada e em nenhuma se lê Saída. Duchamp inventou a porta que não está nem aberta e nem fechada. A inconsistência é mais praticada do que proclamada. Fez-me a seguinte observação certa vez: "Veja, não quero ficar preso a nenhuma posição. Minha posição é a ausência de uma posição, mas, é claro, não se pode nem falar a respeito; no instante em que você fala estraga todo o jogo." Prosseguindo, agora discutindo arte, acrescentou: "A pintura é uma linguagem própria. Não se pode interpretar uma forma de expressão com outra forma de expressão." Embora o que tenha sido dito aqui dê a impressão de que, em sua atividade artística ou poética, Duchamp tivesse uma atitude livre, não é preciso lembrar que, quando sua imaginação criadora estava em funcionamento, nada era deixado ao acaso ou à improvisação. Até mesmo a escolha de um readvmade era regulada por normas estritas e sujeitas a um complicado ritual; isso para não mencionar as centenas de notas e estudos preliminares que precederam e acompanharam a elaboração de O Grande Vidro. Ser um poeta, para Duchamp, era, no mínimo, tão importante quanto ser um artista. Personificou, com mais consistência do que qualquer outro artista que eu conheça, o conceito do homo faber em sua conotação mais abrangente de poeta, artista e artífice; três palavras que, a propósito, eram sinônimos perfeitos na antiga Grécia (poietes designava tanto o artífice quanto o poeta, exatamente como demiurgàs era ao mesmo tempo o artista e o poeta) e na India Sânscrita (Karaka refere-se ao artista e ao artífice). D uchamp consegu iu transceder o poeta e o artista no demiurgo que, unicamente por sua decisão, pode salvar da banalidade o objeto pronto (readvmade) e comum, e elevá-lo ao nível de uma obra de arte. A arma favorita de Duchamp para destruir absolutos e certezas era o humor; ser humorístico era outra maneira de reafirmar sua liberdade, de defender o individualismo. Uma pessoa "séria" é uma pessoa consistente e a consistência leva ao fanatismo, enquanto a inconsistência é a fonte da tolerância. Através do amor, Duchamp aboliu, também, a diferença entre o que possui uma qualidade estética e o que não possui. Sua "ironia de afirmação" levou naturalmente à "beleza da indiferença". Mantinha um agudo senso de humor em todas as circunstâncias - mesmo em sua morte. Uma última lembrança. A noite de 1. o de outubro de 1968 foi particularmente agradável - ele jantara em sua casa em Neuilly, na companhia de Man Ray e de Robert Lebel. Aconteceu súbita e calmamente, pouco depois de seus convidados terem ido embora. Estava pronto a recolher-se e seu coração simplesmente parou de bater à uma e cinco da manhã. Encontrei-o, naquela manhã, deitado em sua cama. Belo, nobre e sereno. Apenas levemente mais pálido que o normal. Um sorriso brando nos lábios. Parecia feliz por ter pregado sua última peça na vida, saindo à francesa. Milão, junho de 1987 Arturo Schwarz 65


Notas 1. Citado em meu The Complete Works of Mareei Ouehamp (Nova York, Harry Abrams, 1969, pág. 39), daqui em diante abreviado: The Complete Works ... 2. Idem, pág. 143. 3. James Johnson Sweeney, "Eleven Europeans in America", The Museum of Modem Art Bulletin (Nova York, XIII, n.os 4-5,1946, pág. 20). 4. Marcel Duchamp entrevistado por Laurence Gold em "A Discussion of Marcel Duchamp's Views on the Nature of Reality ... ", tese de doutoramento não publicada, Princeton University Press, 1958, pág. 111. 5. "Le Phare de la Mariée", em Minotaure (Paris, 11, 6, inverno de 1935, pág. 9). 6. DUCHAMP, Marcel. Notes and Projeets for the Large Glass. Seleção, organização e introdução de Arturo Schwarz (Nova York, Harry Abras, 1969). 7. JUNG, C.G. Man and His Symbols. Londres, Aldus Books, 1964, pág. 28. 7a. Idem, The Arehetyps and the Colleetive Uneoneious. Londres, Routledge & I<egan Paul, 1959, pág. 352. 8. Sweeney, op. eit., pág. 20. 9. Idem, págs. 20 e 21. 10. De "Uma Conversa com Marcel Duchamp e James Johnson Sweeney", entrevista dada no Philadelphia Museum of Art, que constituiu a trilha sonora de um filme de 30 minutos feito em 1955 pela NBC. Trechos adaptados e traduzidos para o francês por Michel Sanouillet em Marehand du Sei (Paris, Le Terrain Vague, 1959, págs 149-61). 11. I<UH, Katharine. The Artist's Voice. Nova York, Harper & Row, 1962, pág. 89. 12. Marcel Duchamp, citado por Calvin Tomkins em The Bride and the Bachelors (Nova York, The Viking Press, 1965, pág. 24). 13. Idem, págs 29-30. 14. ELlADE, Mircea. Le Chamanisme et les Techniques Archaiques de l'Extase. Paris, Payot, 1949, págs. 122-25. 15. Ver ELlADE, Mircea. Pattems in Comparative Religion. (Cleveland, Meridian Books, 1949, págs. 265-330) e DURAND, Gilbert. Les Structures Anthropologiques de /'Imaginaire (Paris, Presses Universitaires de France, 1963, págs. 365-72). 16. LEBEL, Robert. Mareei Ouchamp. Com capítulos por Marcel Duchamp, André Breton e H.P. Roché. Tradução de George H. Hamilton (Londres e Paris: Trianon Press, 1959; Nova York: Grove Press; Cologne: DuMont Schauberg Verlag). Label escreve que "Duchamp admite reconhecer a si próprio no trem para Rouen" (pág. 9). E, para Pierre Cabanne, Duchamp confirmou que o nu aparece fumando um cachimbo para indicar sua identidade (Pierre Cabanne, Entrétiens avee MarcelOuchamp, Paris, P. Belfond, 1967, pág. 55). 17. FREUD, S. The Interpretation of Oreams. Londres, G. Allen & Unwin Ltd., 1937, pág. 240. 66

18. Idem, págs. 238-39. 19. Veja o catálogo First Papers of Surrealism. Coordinating Couneil of French Relief Societes, Inc., Nova York, 14 de outubro-7 de novembro de 1942, não paginado. 20. DURAND, op. cit., pág. 116. 21. FRANGER, Wilhelm. The Millennium of Hieronymus Bosch. Londres, Faber and Faber, 1952, pág. 138. 22. SWEENEY, op. cito 23. Marcel Duchamp, citado por I<atharine I<uh, op. cit., pág. 81. 24. Marcel Duchamp, citado por William C. Seitz, "What's Happened to Art? .. ", Vogue (Nova York, nO 4, fevereiro de 1963, pág. 113). 25. The Complete Works ... , op. cito 26. LEGRAND, Gérard. "Sur Oedipe", L'Arehibras (Paris, nO 3, março, 1968) 27. JUNG, C.G. "On the Psycology of the Trickster Figure", in The Trickster, de Paul Radim (Nova York, BeU Pub·lishing Company, 1956, pág. 207). 28. Citado por H.P. Roché em seu artigo "Souvenirs sur Mareei Duchamp". La Nouvel/e NRF. (Paris, I, nO 6, junho de 1953, pág. 1136) 29. Tractatus Logico-Philosophicus, 4003 30. BRETON, André. "Marcel Duchamp", in Littérature (Paris, NS, n. ° 5, outubro de 1922, pág. 9). 31. O primeiro esboço dessa palestra foi publicado em Art and Artists (Londres, I, nO 4, julho de 1966, pág. 47). Minhas citações são extraídas de um texto definitivo e não publicado entregue a mim por Duchamp. 32. Ibid. 33. Citado por Philip Hereford em Aron Nimzovich, My System (Londres, G. Bell & Sons, 1929, pág.6). 34. BRETON, A. Op. cit., pág. 7. 35. DUCHAMP, Marcel. "The Richard Mutt Case", In The Blind Man PBT (Nova York, nO 2, maio, 1917, pág 5). 36. LEBEL. Op. cit, pág. 165. 37. FREUD, S. Psychopathology of Everyday Life. Harmondsworth, Penguin Books, 1942 págs. 148, 150 e 154 . 38. I<UH, Katharine. Op. cit, pág. 83. 39. SCHUSTER, Jean. "Marcel Duchamp, Vite", entrevista em Le surrealisme, Même (Paris, n. ° 2, 1957, pág. 143). 40. LINDE, Ulf. "MARiée CELibatalre", in Marcel Ouehamp/Ready-Mades etc. Milão, Galeria Schwarz, 1964, pág. 60. 41. HAHN, Otto. "Passport n. ° G255300", entrevista em Arts and Artists. (Londres, I) 4, julho, 1966, pág. 10. 42. Idem, "Marcel Duchamp", entrevista a L 'Express (Paris), nO 684, julho de 1964, pág 22. 43. DUCHAMP, Marcel [33 Criticai Notes], em Col/ection of the Société Anonyme: Museum of Modem Art (New Haven; Yale University Art Gallery, 1950, pág 69). 44. JOYCE, James. Ulvsses (1922) (Londres; The Bodley Head, 1960, pág 468) 45. CABANNE, Pierre. Entrétiens avec Marcel Ouchamp (Paris; Pierre Belfond, 1967, págs


111-12). 46. JANIS, Sidney e Harriet. "Mareei Duchamp, AntiArtist", em View (Nova York, V, 1, março, 1945, pág. 24), 47. HAHN, Otto. 1966, op. cit., pág. 10. 48. lEIRIS, Michel. "Arts et Métiers de Mareei Duchamp", em Fontaine (Paris, n. o 54, 1946, pág. 191). 49. DROT, Jean-Marie. "Jeau d'Échecs avec Mareei Duchamp", entrevista não publicada, que constituiu a trilha sonora de um filme realizado para a Televisão Francesa (ORTF), 1963. 50. VAN HEECKEREN, Jean. "la Porte de Duchamp", em Orbes (Paris, 11,2, 1933, pág. XIV). 51. DURAND. Op. cit., pág. 312. 52. BACHElARD, Gaston. La Poétique de /'Éspace (1957) (Paris; Presses U niversitaires de France, 1961, págs. 200-01). 53. GOlD. Op. cit., pág. VIII. 54. CABANNE, Pierre. Opc cit., pág. 24. 55. AVEDON, Richard. Observations (Nova York; Simon & Schuster, 1959, pág. 55). 56. CABANNE, Pierre. Op. cit., pág.24. 57. THARRATS, Joan-Josep. "Mareei Duchamp", entrevista em Art Actuel International (lausanne, n. o 6, 1958, pág. 1).

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Cronologia de Mareei Duehamp Arturo Schwarz 1887. Henri-Robert-Marcel Duchamp nasce, a 28 de julho, em Blainville, cidade próxima a Rouen, filho do tabelião Justin Isidore Duchamp (1848-1925), e sua mulher, Lucie Caroline Nicolle. É sobrinho de Émile Frédéric N icolle (1830-1894), conhecido pintor e gravador que estuciava com Meryon. Seus dois irmãos mais velhos também eram artistas: Gaston (1875-1963) abandonara seus estudos de Direito para dedicar-se à pintura em 1894, adotando o pseudônimo de Jacques Villon - em homenagem ao poeta que tanto admirava, François Villon - e Raymond (18761918), que se tornaria um importante escultor cubista, sob o pseudônimo de Raymond Duchamp-Villon. Enquanto as duas irmãs mais jovens, Yvonne (1895) e Magdaleine (1898), não eram artistas, a mais velha, Suzanne ('1889-1963), era pintora e se casaria com o pintor dadaísta Jean Crotti, 1893-1896. Duchamp guarda vívidas lembranças dos brinquedos que ele e Suzanne compartilhavam. Construíam caminhõezinhos de madeira para fazê-los rodar pelas rampas do jardim de Blainville, Freqüenta a escola em sua cidade natal e obtém o Certificat d'Études Primaires em 1896, 1897. Aprende latim com o padre da paróquia, preparando-se para entrar no Liceu. Em outubro é admitido como interno na École Bossuet, em Rouen, para seguir os cursos do Lycée Corneille. 1902, Duchamp tem quinze anos quando começa a pintar. As primeiras telas, Paysage à Blainville (Paisagem em Blainville), Église à Blainville (Igreja em 81ainville) e Jardin et Chapelle à Blainville (Jardim e Capela em Blainville) sofrem a influência do impressionismo. 1903. Dedica-se ao desenho, Esboça retratos dos membros da família. 1904. Em julho obtém o Baccalauréat de Philosophie no Lycée Corneille de Rouen. Em outubro vai ao encontro dos irmãos em Paris e passa a viver com Jacques Villon. Estuda na Academie Julien por um ano apenas, até junho de 1905 (cansado das lições acadêmicas, passava mais tempo no bilhar do que nas salas de aula). Pinta o Portrait de Mareei Lefrançois (Retrato de Mareei Lefrançois), sua primeira obra de reação ao impressionismo, 1905. Duchamp alista-se como voluntário no Exército, para usufruir os últimos meses de validade de uma lei que concedia redução do tempo de serviço militar (de três anos para um) aos doutores, advogados e artesãos. Começa a trabalhar com um gravurista, ficando assim em condições de provar à Comissão de Exame Militar que tem direito à isenção, distribuindo gravuras que pessoalmente reproduzira de algumas águas-fortes de seu avô. A família Duchamp transfere-se para Rouen, onde residirá ininterruptamente até 1925, ano da morte do casal. 1906. Em outubro recomeça a pintar em Paris, 1907. Duchamp não tem preocupações financeiras, pois o pai lhe manda 150 francos por mês. (Todos os filhos recebem a mesma quantia e tudo o que lhes era dado seria descontado da parte que lhes caberia como herança.) Pinta Maison Parmi les Pommiers (Casa Entre as Macieiras) e Maison dans le Forêt (Casa na Floresta), primeiras obras que mostram alguma influência fauve. Em Dans les Écueils (Nos Rochedos), pintado na costa da Normandia, a

influência do último Manet une-se ao intimismo de Bonnard. Começa a fazer ilustrações para jornais humorísticos como Le Rire, Le Sourire e Le Courrier Français, Continua a colaborar nesses jornais até 1910, recebendo dez francos por trabalho de um quarto de página. Ilustrar não é, efetivamente, algo que o satisfaz, e para fugir a isso aventura-se nas mais diversas atividades artísticas. 1908. Em julho transfere-se para Neuilly, onde viverá até outubro de 1913, Suas pinturas dessa época, como Peônias em um Vaso, são influenciadas pelos intimistas (especialmente Bonnard, Vuillard, Manguin e Othon Friesz, que expõem no Salon d'Automne), Em Casa Entre as Macieiras é dominante a influência dos fauves. 1909. Toma parte nas reuniões dominicais de artistas e poetas, que começam a ocorrer no jardim do estúdio de Raymond Duchamp-Villon. Além dos três irmãos Duchamp, freqüentam esses encontros artistas como Albert Gleizes, Henri Le Fauçonnier, Roger de la Fresnaye, Fernand Léger, Jean Metzinger, Francis Picabia e outros, assim como poetas e críticos: Apollinaire, Gabrielle Buffet, Olivier Hourcade, Pierre Reverdy, Maurice Raynal, Georges Ribemont-Dessaignes etc. Pinta o Portrait de Yvonne Duchamp (Retrato de Yvonne Duchamp), no qual retoma as cores mais escuras como reação às primeiras experiências com os fauves e à incursão no intimismo de Bonnard, duas tendências que, todavia, deveriam incidir sobre suas obras também nos anos futuros, Recebe pela primeira vez um convite para expor no Salon dos Indépendants, onde apresenta dois trabalhos, um dos quais é Paysage, de 1908, e no Salon d'Automne, para o qual manda três pinturas, entre elas Nos Rochedos, A tela classificada como Veules (Ég!ise) no catálogo do Salon d'Automne é provavelmente aquela conhecida hoje como Saint-Sébastien (1909), esboço a óleo que representa uma escultura na fachada da igreja em Veules-Ies-Roses. Tanto Paysage como Saint-Sébastien sugerem uma tendência à pintura fauve mais contida que nas obras precedentes. 1910. Duchamp vê as primeiras pinturas de Cézanne em casa de Vollard e familiariza-se com alguns dos melhores exemplos do estilo fauve. Em novembro, no Salon D'Automne encontra Picabia; que lhe é apresentado por Pierre Dumont, um amigo pintor de Rouen. É a época das mais importantes obras juvenis de Duchamp, que passa do impressionismo à pintura fauve para em seguida adotar influências de Cézanne e abandoná-Ias pouco tempo depois, numa rápida sucessão de estilos que já demonstra seu irrequieto espírito de pesquisa. Duchamp parece divertir-se pintando quadros à la maniere de, exercitando-se dessa forma em cada estilo antes de descartá-lo. Nu assissur un Tonneau (Nu Sentado em um Tone/) é um trabalho moderadamente fauve; em Nu aux Bas Noirs (Nu de Meias Pretas), Bateaux-Lavoir, Portrait en Buste de -Chauvel (Retrato a Meio-Busto de Chauve/) e Nu Rouge (Nu Vermelho), a influência fauve torna-se cada vez mais forte até culminar nesta última obra. Diferentes intensidades de fauvismo estão presentes no Portrait du Docteur Dumouchel (Retrato do Dr. DumouchelJ em que se pode notar certa influência do 69


fauvismo de Van Dongen, e em Femme Brune (Nana) ou Col/ant Vert (Mulher Morena [NanaJ de Corpete Verde), onde é clara a influência de Matisse. A de Célanne é evidente tanto no Portrait du Pere du Artiste (Retrato do Pai do Artista) como em La Partie d'Échecs (O Jogo de Xadrez), sua maior tela até o momento. O Retrato do Dr. Dumouchel é o terceiro e último trabalho da série de retratos psicológicos que realiza no período. Como sustentáculo ao uso que Duchamp faz da cor, neste quadro ainda mais violento que o dos fauves acentua-se também notavelmente o caráter cerebral. Paradis (Paraíso), onde Dumouchel representa Adão, fornece a ponte que levará Duchamp desses três retratos pSicológicos aos três alegóricos que executará no início do ano seguinte. 1911. Neste ano e no seguinte Duchamp pinta praticamente todos os seus quadros a óleo mais conhecidos. Nos anos anteriores expressava-se através dos mais variados estilos vanguardistas do impressionismo, do fauvismo e do "cézanismo". Agora volta as costas à mais recen·te escola, o cubismo, e começa a manifestar a própria personalidade, desenvolvendo um estilo absolutamente individual. La Buisson (A Moita), Bapteme (Batismol. Courant d'Air sur les Pommiers du Japon (Corrente de Ar nas Macieiras do Japão) são as primeiras composições da trilogia de caráter alquímico que antecede em poucos meses o mais significativo quadro alquímico de Duchamp, Jeune Homme et Jeune Filie dans le Printemps (Rapaz e Moça na Primavera). Outras importantes telas deste ano são Sonata, Les Joueurs d'Échecs (Jogadores de Xadrez), Portrait des Joueurs d'Échecs (Retrato dos Jogadores de Xadrez), Dulcinea, (Oulcinéia), Yvonne et Magdaleine Dechiquetées (Yvonne, e Magdaleine Esfarrapadas). À propos de la Jeune Soeur (A Propósito da Irmãzinha), Mou/in à Café (Moedor de Café), a primeira "máquina" de Duchamp e claro antecedente do tema de Broveuse de Chocolat (Moedor de Chocolatel. Duas pinturas da trilogia do auto-retrato em nu concluem a rica produção deste ano: Jeune Homme Triste dans un Train (Jovem Triste num Trem), Nu Descendent un Ésca/ier n. o (Nu Descendo uma Escada n. o 1), que serão seguidas, um mês depois, em janeiro de 1912, do famoso Nu Descendant un Esca/ier n. o 2. 1912. Em janeiro Duchamp pinta Nu descendo uma Escada n. o 2; em maio Le Roi et la Reine Entourés de Nus Vites (O Rei e a Rainha Cercados de Nus Velozes), em julho e em agosto, em Mônaco, Le Passage de la Vierge à la Mariée (Passagem da Virgem à Noiva) e La Mariée (A Noiva). Essas quatro obras pintadas em rápida sucessão constituem o ápice formal e temático da série iniciada um ano antes com Rapaz e Moça na Primavera. A extraordinária continuidade lógica e formal das obras desse período torna-se clara quando considerada sob o seguinte aspecto: o Jovem do quadro de 1911 é, efetivamente, o Nu Descendo uma escada: o Nu é transfigurado no Rei de O Rei e a Rainha Cercados de Nus Velozes; e o próprio Rei tornar-se-á o Cé/ibataire mítico de O Grande Vidro. Identicamente, reconheceremos o ambíguo Jovem de 1911 na Rainha de O Rei e a Rainha Cercados de Nus Velozes, que, por sua vez, irá transformar-se primeiro na Virgem e depois na Noiva que vemos na pintura homônima e em O Grande Vidro. O ano de 1912 assinala para Duchamp a superação das tradições da vanguarda, tanto em

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relação ao tema quanto ao estilo pictórico. Sua última obra, A Noiva, é um triunfo de técnica e de sensualidade, o mais alto ponto que teria alcançado empregando os meios tradicionais da pintura, compreendida precisamente como meio. Tendo exaurido as possibilidades de renovação nos limites da pintura sobre tela tradicional, inicia a conquista de um conceito de arte absolutamente novo, procurando "colocar, uma vez mais, a pintura a serviço da mente". E, quando Duchamp usa aqui a palavra "mente", pensa na palavra francesa "esprit", na totalidade de seus significados: intelecto, espírito, humor". Duchamp pensa na pintura como "um meio de expressão, jamais como única razão de vida, do mesmo modo como penso que a cor é apenas um meio de expressão na pintura, e não deveria ser seu último escopo. Em outras palavras, a pintura não deveria ser apenas visiva para a retina; deveria relacionar-se com a matéria cinzenta de nosso intelecto, em vez de ser apenas endereçada para o sentido físico da visão". No outono faz uma viagem com Apollinaire, Picabia e Gabrielle Buffet Picabia. Escreve a Rota Jura-Paris, primeira nota da série reunida em 1934 na BOlte Verte (Caixa Verde). Essas notas referem-se a um ponto de partida completamente novo para a arte, dizem respeito a uma forma de arte mais mental que visual, que será materializada nos readvmades e em O Grande Vidro. Em companhia de Apollinaire e Picabia assiste à representação, em Paris, da obra de Raymond Roussel, Impressions d'Afrique. 1913. Duchamp transfere-se de Neuilly para a capital francesa, onde passa a viver numa casa ainda em construção. Durante o verão permanece na Inglaterra, em Hern Bay, onde continua as pesquisas dos readvmades e de O Grande Vidro. Essas pesquisas encontram manifestação prática no Erratum Musical (Errata MusicaIJ, seu primeiro e único readvmade musical; na Roue de Bicvclette (Roda de Bicicleta), seu primeiro readvmade "assistido", que já aparece nos estudos iniciais para O Grande Vidro (esquema a lápis sobre tela); e em La Machine Cé/ibataire (Máquina Celibatária) ~ planta e desenho da metade inferior de O Grande Vidro. Pinta também Moedor de Chocolate n. o 1, primeiro estudo do elemento central de A Máquina Celibatária, e esboça o Cimetiere des Uniformes et Livrées (Cemitério de Uniformes e Librés), isto é, Neuf Moules Ma/ic du Grand Verre (Nove Moldes Machos do Grande Vidro). Esboça Combat de Boxe (Luta de Boxe), para um detalhe não realizado de O Grande Vidro. No outono, Maurice Davanne, tio de Picabia, ajuda Duchamp a obter o posto de bibliotecário na Bibliothéque SaintGeneviéve. Duchamp fica portanto livre para concentrar-se em suas atividades artísticas, que resultavam em obras não vendáveis. O Nu Descendo uma Escada n. o 2 torna-se um motivo de escândalo no Armory Show em Nova York. Apollinaire publica Les Peintres Cubistes, primeira avaliação profética a respeito de Duchamp: "O papel de reconciliar a arte e o povo provavelmente será desempenhado por um artista como Marcel Duchamp, desligado de preocupações estéticas tradicionais e interessado nas coisas da mente". 1914. Toda a produçãQ deste ano diz respeito ou aos readvmades ou a O Grande Vidro. Compra numa casa especializada em artigos para artistas, em Rouen, três reproduções de uma paisagem invernal assinada por um artista desconhecido "da pior espécie" (Duchamp), acrescenta dois pequenos


personagens, um vermelho e um verde, dá à reprodução o nome de Pharmacie (Farmácia), põe data e assinatura. É seu primeiro readvmade "retificado". Alguns críticos vêem nessa obra a possibilidade de uma referência "ciumenta" ao casamento de sua irmã Suzanne, ocorrido em 1911, com um farmacêutico de Rouen, pois Duchamp nutria pela irmã uma possessiva afeição. Compra no Bazar do Hôtel de Ville, em Paris, um porta-garrafa. No anel inferior Duchamp grava um texto, e põe data e assinatura na obra. Este é seu primeiro readvmade no sentido completo da palavra: Porte-Boutei/le (Porta-garrafas, ou Secador de Garrafas). Completa os Trois Stoppages-Étalon (Três Cerziduras-Padrão) começados no ano anterior e trabalha neles para obter ainda uma outra variação sobre o tema do readvmade. Concebe idéias e esboços para O Grande Vidro, escolhe um desenho e dezesseis notas manuscritas, que fotografa para obter três séries completas que são colocadas em uma caixa comum para chapas fotográficas: La BOlte de 1914 (A Caixa de 7914!. Completa duas importantes telas que são estudos preliminares para os elementos do Domaine du Célibataire dans le Grand Verre (Domínio do Celibatário no Grande Vidro): Moedor de Chocolate n. o 2. (tela final sobre o tema do Moedor de Chocolate, resultante de quatro estudos preliminares do mesmo anol; e Réseaux de Stoppages (Rede de Cerziduras), estudo para os Tubes Capil/aires (Tubos Capilares) que se dividem nos Nove Moldes Machos. Segundo e,studo para os Nove Moldes Machos. Cemitério de Uniformes e Librés n. o 2. Pistão de Corrente de Ar: fotografia para um detalhe de Inscription du Haut (Inscrição do Alto), que, por sua vez, é um elemento do Domínio da Noiva, a metade superior de O Grande Vidro. Eclode a guerra. Duchamp é dispensado do serviço militar por apresentar distúrbios cardíacos. 1915. Primeiros seis meses em Paris, onde completa suas duas primeiras obras em vidro, os Nove Moldes Machos e o Traineau (Trenó) - que serão detalhes da Máquina Celibatária em O Grande Vidro. Chega a Nova York no dia 15 de junho. Walter Pach vai esperá-lo e apresenta-lhe Walter e Louise Arensberg, com os quais estreita uma amizade que durará a vida inteira. Compra duas enormes chapas de vidro para começar a trabalhar em O Grande Vidro. Escolhe os dois primeiros readvmades americanos: Pulled at Four Pins ou Tiré à 4 Épingles (Estirado a Quatro Alfinetes), um ventilador de lareira em lata, e An Advance of the Broken Arm ou En Avance du Bras Casé (À Frente do Braço Quebrado), um removedor de neve em ferro galvanizado. Cunha o termo readvmade. Encontra outros exilados franceses: Picabia, Jean Crotti, Albert Gleizes etc. Primeiro encontro com Man Ray e outros artistas e poetas americanos. Primeira entrevista: "A Complet Reversal of Art Opinions by Marcel Duchamp Iconoclast", in Arts and Decoration (Nova York, V, nO 11, set. de 1915, págs. 427-28 e 4421 Alfred Kreymborg e Frederick Macmonnies citam entrevistas com Duchamp em periódicos: Boston Transcript, Current Opinion e New York Tribune. Participa de uma mostra coletiva na Carrol Gallery, Nova York. 1916. Escolhe e elabora quatro readvmades: Peigne (Pente), trocadilho com a palavra francesa "dente", À Bruit Secret (Com Ruído Secreto) presente para os Arensberg - , Scene de Bataille (Cena de Batalha), um afresco no Café des Artistes em Nova York, no qual Duchamp apõe sua

assinatura, e. Pliant.. de vovage (.. Dobrável. de Viagem), também chamado Underwood. Torna-se membro fundador da Associação dos Artistas Independentes em Nova York. Nixola Greely-Smith cita uma entrevista com Duchamp e Crotti no The Evening World (Nova York, 4 dE: abril de 1916, pág. 3), Participa - com quatro trabalhos de pintura e dois readvmades - da Mostra de Arte Moderna nas Bourgeois Galleries, em Nova York, Participa com Gleizes, Metzinger e Crotti, da mostra The Four Musketeers, na Montross Gallery de Nova York, Encontra Katherine S, Dreier. 1917, Escolhe ou completa outros quatro readvmades: Apolinere Enameled (Apolinere Esmaltado), iniciado um ano antes; Fontaine (Fonte), um mictório de louça de banheiro público masculino; Trébuchet (Armadilha); Porte-Chapeau (Porta-Chapéus!. Constrói uma Sculpture de Vovage (Escultura de Viagem) cortando em pedaços toucas de banho ·coloridas unidas ao acaso e amarradas a cordinhas que seriam depois estendidas nos cantos de seu estúdio, Pretendia preencher toda a área do aposento com essa estrutura, Desliga-se da Society of Independents Artists quando Fonte (o mictório), assinado com o pseudônimo R, M utt - sua contribuição à primeira mostra - é recusado, Edita, em colaboração com Henri-Pierre Roché e Beatrice Wood, as duas primeiras publicações protodadás americanas: The Blind Man (que dura dois números) e Rongwrong. 1918, Primeiros sete meses em Nova York, Pinta Tu m'(Tu m'}, seu último trabalho a óleo, para a biblioteca de Katherine Dreier, Embarca para Buenos Aires, onde chega em meados de setembro, Joga xadrez furiosamente e desenha peças para os tabuleiros, Estuda um outro detalhe, sempre em vidro, para O Grande Vidro: À Regarder (/'Autre Coté du Verre) d'un Oeil, de Pres, Pendant Presque une Heure - Para ser observado (do outro lado do vidro) com um olho, de perto, por quase uma hora, Morrem Raymond Duchamp, irmão do artista, e Guillaume Apollinaire. 1919, Primeiros seis meses em Buenos Aires, Completa uma série de peças para xadrez e Stéréoscopie à la Main (Estereoscópio Manual), No dia 14 de abril, Suzanne Duchamp casa-se em segundas núpcias com Jean Crotti. Duchamp manda à irmã, em Neuilly, seu presente de núpcias: Instruções para fazer o Readvmade Malheureux (Readvmade Infeliz!. Volra para a França no começo de agosto, Celebrado o Armistício em novembro, embarcaria de novo para Nova York, no mês seguinte, Em Paris vê ainda uma vez Picabia, Pierre de Massot e Georges Ribemont-Dessaignes. Primeiro encontro com André Breton e outros poetas do grupo da vanguarda (dadaísta àquela época, surrealista em 1924): Louis Aragon, Paul Éluard, Philippe Soupault, Jacques Vaché - que têm o hábito de reunir-se no Bar Certa, Encontrará Benjamin Péret e Jacques Rigaut na segunda metade do ano seguinte. Durante a breve estada em Paris elabora ainda três readvmades: L.H.O,O,Q" (jogo de palavras cujo sentido está na maneira de ler rapidamente o nome das letras em francês: elle a chaud au cul - "ela tem fogo no rabo"), reprodução da Mona Lisa à qual acrescenta, a lápis, bigode e cavanhaque; Cheque Tzanck (Cheque Tzanck), ampliação de um cheque dado a seu dentista; Air de Paris (Ar de Paris), uma ampola de vidro contendo ar de Paris, que leva de presente a Walter Arensberg, Elabora um trabalho de 71


fotografia: Tonsure (Tonsura), o primeiro exemplo da bodv-art: um auto-retrato que é a contraparte de L. H. O. O. Q. Aquela obra antecipa o pseudônimo feminino Rose Sélavy, que Duchamp assumirá no ano seguinte. 1920. Chegá a Nova York nos primeiros dias do ano. Em abril funda, com Katherine Dreier e Man Ray, a Société Anonyme, Inc., que realiza 84 mostras até 1939, além de promover numerosas conferências e editar publicações. Em 1941 toda a coleção seria doada à Yale University Art Gallery. Assume o pseudônimo de Rose Sélavy (em meados do ano seguinte Duchamp escreverá Rose com dois erres, Rrose). Elabora duas diferentes variações de readvmades: Fresh Widow (que em inglês significa "viúva fresca" e é um trocadilho com a expressão French Window = "janela francesa") e Elevage de Poussiere (Criação de Poeira), uma fotografia de O Grande Vidro, que jaz horizontalmente com áreas cobertas de poeira. Constrói sua primeira máquina óptica a motor: Rotative Plaque Verre (Optique de Précision) - Chapa Rotativa de Vidro (Óptica de Precisão) - e tenta, com a ajuda de Man Ray, produzir seu primeiro "filme em relevo", baseado no princípio do anáglifo (figura que combina duas imagens obtidas de pontos de visão diferentes e impressas em cores contrastantes de modo a produzirem ilusão de profundidade quando vistas através de óculos com essas cores). Esboça Témoins Oculistes (Testemunhas Oculistas) sobre papelcarbono que será usado para transferir o desenho para o Grande Vidro. Entra no Marshall Chess Club, onde por quase quatro anos joga xadrez toda noite, quando se encontra em Nova York. Volta a Paris na segu nda metade do a no. 1921. Parte para Nova York no início de janeiro. Produz dois outros readvmades: Belle Haleine, Eau de Violette (Bom Hálito, Água de Violeta), - trocadilho com Belle Heleine ("Bela Helena" ou "Bom Hálito"), e com Eau de Violette ("Água de Violeta" ou "Água de Veuzinho") - , colagem fotográfica feita em colaboração com Man Ray, que deveria ser usada como etiqueta para um frasco de perfume; e WhV not Sneeze Rose Sélavv? (Por que não Espirrar, Rose Sélavv?), 152 cubos de mármore em forma de torrões de açúcar com um termômetro e um osso de siba, ou sépia (molusco marinho de que se obtém uma tinta escura) em uma gaiola de passarinhos. Ainda com Man Ray publica, em abril, o único número do New York Dada. Em maio volta a Paris, onde se encontra com Man Ray. Elabora La Bagarre d'Auster/itz !O Tumulto de Auster/itz}, variação sobre o tema de Fresh Widow. Assina o trabalho de Picabia, Oeil Cacodeleto, com um jogo de palavras, do qual deriva o ,erre duplo em Rrose Sélavy. Assina o manifesto dada, Dada Souléve Tout. Primeiros jogos de palavras publicados em 391 de Picabia (Paris, nO 15, julho de 1921, página 4). 1922. Volta para Nova York. Continua a trabalhar em O Grande Vidro. Intensifica sua atividade de enxadrista, tornando-se membro da equipe de xadrez do Marshall Chess Club e campeão da Metropolitan League. A 29 de novembro joga contra Capablanca. Executa a paginação para uma coleção de trabalhos de crítica de arte de Henry McBride, Some French Moderns Savs McBride. Inicia experiências com a lei da probabilidade dos números, que antecedem a obra Ob/igations pour la Roulette de Monte Carla (Obrigações para a Roleta de Monte Carla), de 1924. André Breton publica o primeiro e fundamental

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trabalho sobre Duchamp no encarte da revista Littérature, (Paris, n.o 5). No encarte de dezembro, da mesma publicação, Breton escreve um outro importante ensaio, desta vez dedicado ao jogo de palavras de Duchamp, "Les Mots sans Rides". Publica a matéria "Pode uma Fotografia Ter Significado como Obra de Arte?", em resposta a uma pesquisa promovida pelo jornal Mónuscripts (Nova York, n. 4, dezembro de 1922, pág. 2). Na gráfica, trabalhando em Some French Moderns Savs McBride, encontra Mary Reynolds, que se tornará sua amiga e companheira por muitos anos. Instala com o exilado francês Léon Hartl, uma pequena tinturaria, que fechará seis meses depois. 1923. Decide abandonar A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo, isto é, O Grande Vidro, em seu "estado de inacabado". Para sublinhar o aspecto espectral de sua presença na arte, projeta o readvmade "retificado" Wanted/S 2000 Reward (Procura-se, 2.000 Dólares de RecompensaJ. Em fevereiro embarca para Bruxelas. Entra no clube local de xadrez. Toma parte no primeiro importante torneio da Europa, em Bruxelas, classificando-se em terceiro lugar. Volta para Paris, onde se fixa até 1942, embora faça algumas viagens ocasionais a outros países europeus, ligadas a sua atividade enxadrística; três visitas aos Estados Unidos (1926-27,1933-34 e 1936). Desenha os Disques avec Spirales (Discos com Espirais), estudos preliminares para cinco dos dez Discos Ópticos que aparecerão no filme Anémic Cinéma (1925-26). 1924. Em janeiro Duchamp entra para o clube de xadrez de Rouen. Participa de numerosos campeonatos e torneios: em agosto vai para Estrasburgo para o campeonato francês; em setembro para Rouen, onde obtém o primeiro lugar no campeonato da Alta-Normandia. Projeta a Obrigações para a Roleta de Monte Carlo, destinada aos defensores de seu sistema para roleta, com o qual "não se ganha nem se perde". Esboço para Rotative Demi-Sphere (Optique de Precision) - Rotativa SemiEsfera (Óptica de Precisão), guache branco sobre papel negro. Aparece com Man Ray no filme de René Clair, Entracte, projetado durante o intervalo do balé Relâche, de Picabia e Satie. Em dezembro personifica o Adão do quadro de Cranach Adão e Eva (Eva era personificada pela senhorita Bronsdorff) no Tableau-Vivant de Brogna Perlmutter preparado para Cinésketch de Picabia. Publicação de dezesseis jogos de palavras, a maior seleção surgida até aquele momento, na última página da capa de The Wonderful Book - Reflections on Rrose Sélavv, de Pierre de Massot (Gráfica Ravilly, Paris-Passy). 1925. Desenha o cartaz para o campeonato francês de xadrez, que ocorreria em N ice, em setembro. No decorrer desse torneio conquista o título de campeão da Federação Francesa de Xadrez. De Nice vai para a Itália: Florença, Roma, Anticoli Corrado (vilarejo internacionalmente conhecido como local de veraneio de artistas). Completa a segunda máquina óptica, a Semi-Esfera Rotativa (Óptica de Precisão), para Doucet. Morrem a mãe e o pai de Duchamp. 1926. Em janeiro participa do torneio de xadrez entre as equipes de Notre-Dame e de Rouen. Em maio faz breve viagem à Itália, visitando Milão e Veneza; em setembro participa de uma competição a quatro, em Nice, tendo como adversários Renaud, Halberstadt e Railly. Participa da realização do filme Anémic Cinéma, em colaboração com Man Ray e


Marc Allegret. Em novembro retorna a Nova York para preparar a primeira mostra de Brancusi. Permanece lá até fevereiro de 1927, fazendo apenas uma pequena viagem para Chicago, onde prepara a mostra de Brancusi no Arts Club daquela cidade. Pela primeira vez O Grande Vidro é exposto, na International Exhibition of Modern Art organizada pela Societé Anonyme no Brooklin Museum. Na viagem de retorno à casa do proprietário, O Grande Vidro é quebrado. Duchamp só o repararia parcialmente dez anos depois, em 1936. Sob o nome de R rose Sélavy, escreve e edita 80 Picabias, sob a forma de um folh~to volante que serve de introdução a um catálogo de obras de Francis Picabia - aquarelas e desenhos pertencentes a Duchamp, vendidas em leilão no Hôtel Drouot, em Paris. 1927. Retorna a Paris. Picabia apresenta-o a Lydie Levassor-Sarrazin, com quem se casa a 8 de julho, divorciando-se em janeiro do ano seguinte. Permanece em Paris até 1942, quando partirá para os Estados Unidos. Constrói a Porta que tanto pode estar fechada como aberta, ao mesmo tempo. 1928. Nos seis anos seguintes se ocupará exclusivamente do xadrez. Em janeiro vence o torneio de Hyere; em junho participa do Torneio Internacional de Paris. Em julho e agosto, na qualidade de membro da equipe francesa, joga na Segunda Olimpíada de Xadrez em Haia, classificando-se em segundo lugar. Em setembro segue para Marselha e participa do Sexto Campeonato da França, classificando-se em sétimo lugar. Organiza, com Alfred Stieglitz, uma mostra de Picabia na Intimate Gallery de Nova York. 1929. Visita a Espanha com Katherine Dreier. Participa do Torneio Internacional de Paris. 1930. Em fevereiro, participa do Torneio Internacional de Nice, obtendo o nono lugar. Em maio joga no torneio de Paris; em julho encontra-se em Hamburgo, onde participa da Terceira Olimpíada de Xadrez como membro da equipe francesa, que inclui o melhor jogador da época, Alekhine. Joga contra Frank Marshall, campeão dos Estados Unidos, obtendo meio-ponto de empate, decisivo para a classificação da equipe francesa. Louis Aragon escreve sobre Duchamp na Peinture au Défi (Galerie Goemans, Paris, 1930). 1931. Participa, em março, de um Torneio de Xadrez em Nice. Em julho integra a equipe francesa, juntamente com Alekhine, na Quarta Olimpíada de Xadrez de Praga. Torna-se membro do Comitê da Federação de Xadrez Francesa e delegado desse comitê na Federação Internacional de Xadrez (FIDE), posto que ocupará por sete anos. 1932. Escreve, em colaboração com Vitaly Halberstadt. uma importante contribuição à literatura enxadrística sobre finais de partida, L 'Opposition et les Cases Conjuguées sont Reconciliées; (Edmond Lancei, Bruxelas, capa desenhada por Marcel Duchamp). Em maio participa, com a equipe francesa do clube de xadrez parisiense Caissa, de uma partida via rádio contra o Clube Argentino de Xadrez, em Buenos Aires. Em agosto vence o Torneio de Xadrez de Paris, derrotando Znosko-Borovsky, um dos mais importantes enxadristas europeus. Em setembro obtém o quarto lugar no campeonato francês realizado em La Baule. Encontra Raymond Roussel no Café de la Régence, famoso ponto de encontro dos enxadristas parisienses. 1933. Em junho realiza seu último importante torneio de mesa: como membro da equipe francesa (com Alekhine, Betheder, Kahn e Voisin) participa da

Quinta Olimpíada de Xadrez em Folkestone. Traduz para o francês uma obra clássica da literatura enxadrística, Comment /I Faut Commencer une Partie d'Échecs, de Znosko-Borovsky. Em outubro embarca para Nova York para organizar uma segunda mostra de Brancusi, inaugurada a 17 de novembro na Brummer Gallery. O periódico Art News (Nova York, XXXII, n. o 7, novo de 1933, págs. 3 e 11) publica: "Marcel Duchamp, de Volta à América, Concede Entrevista", artigo de Laurie Eglington. 1934. Volta para Paris. Lança La Mariée Mise à Nu par ses Célibataires, Même (A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo) sob o título geral de BOfte Verte (Caixa Verde), embalagem contendo 93 documentos (desenhos e notas manuscritas) usados na elaboração de O Grande Vidro. 1935. Rotoreliefs (Rotorrelevos - Discos Ópticos), série de seis discos de papelão com desenhos coloridos nos dois lados, é exposta no Concurso Lépine, sendo "surpreendentemente ignorados", segundo nota H. P. Roché. O "Phare de la Mariée", 1e André Breton, primeira análise de O Grande Vidro de Duchamp, aparece no encarte de inverno de Minotaure (Paris, n. o 6). Duchamp desenha-lhe a capa. Desenha também uma capa para Ubu Roi de Alfred Jarry. Participa da Primeira Olimpíada Internacional de Xadrez por correspondência, como capitão da equipe francesa. A olimpíada dura quase quatro anos e termina com a vitória de Duchamp pela mais alta contagem individual (nove pontos sobre onze). No mesmo ano concluirá um outro torneio de xadrez por correspondência, da FS B, classificando-se em primeiro lugar (nove pontos sobre onze), sem perder nenhuma partida. É a última vez em que Duchamp se empenha em um torneio internacional na Europa. 1936. Duchamp desenha capas para La Septiéme Face du Dé, livro de poesias de Georges Hugnet, e para encartes especiais dos Cahiers d'Art (Paris, XI, nOs 1 e 2). Parte para Nova York e em julho e agosto encontra-se em casa de Miss Dreier, em West Reding, dedicando-se a consertar partes de O Grande Vidro, estilhaçado em 1927. Faz breve viagem à Califórnia para visitar os Arensberg, em Hollywood. Volta para Paris em setembro. Seis de suas obras são expostas na mostra Fantastic Art, Dada, Surrealism, organizada por Alfred H. Barr Jr. no Museum of Modern Art de Nova York. 1937. Em março começa a escrever uma coluna sobre enxadrismo no diário parisiense Ce Soir, dirigido por Aragon. Projeta a porta de vidro para a Galeria Gradiva de André Breton. Desenha a capa do encarte de inverno de Transition, de Nova York. Primeira individual no Arts Club de Chicago. 1938. Prepara 1.200 sacos de carvão para serem suspensos no teto, sobre um braseiro, na Exposition Internationale du Surréalisme na Galerie des BeauxArts de Paris, onde ele expõe também Rrose Sélavy, manequim feminino em tamanho natural, vestido com roupas de Duchamp (a parte inferior do corpo está nua). Prepara para a galeria londrina de Peggy Guggenheim, Guggenheim Jeune, mostra de escultura contemporânea, escolhendo obras de Arp, Brancusi, Calder, Duchamp-Villon, Pevsner e outros. 1939. Publica Rrose Sélavy (Paris, GLM), primeira antologia dos jogos de palavras de Duchamp. Desenha a capa de Hebdomeros, de Giorgio De Chirico, e da Anthologie de /'Humaur Nair, de André Breton. Eclode a Segunda Guerra Mundial. 1940. Instalado em Paris, dedica a maior parte do

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tempo a completar um projeto iniciado em 1935: Por ou de Mareei Duchamp ou Rrose Sélavy, conhecido também como La Boí'te-en-Valise (Caixa-em-Valise), museu portátil de Duchamp, contendo cópias em miniatura e reproduções em cores de suas obras mais significativas. André Breton publica Anthologie de /'Humour Noir (Paris, Editions du Sagittaire), onde, num breve ensaio, introduz uma seleção dos jogos de palavras e dos aforismos de Duchamp. 1941. Em maio desenha Bigode e Barba de L. H. O. O. Q., um pochoir feito para uma poesia de George~ Hugnet. Publica seu museu portátil Por ou de Mareei Duchamp ou Rrose Sélavy. Vai para Sanary-sur-Mer. 1942. Em maio embarca para Nova York via Casablanca. Passa três semanas em Casablanca em um acampamento, dormindo no chão do banheiro. Chega a Nova York no início de junho, após uma breve estada nas Bermudas. PeggyGuggenheim e Max Ernst dão-lhe as boas-vindas em Staten Island. Em Nova York encontra muitos amigos surrealistas e imediatamente começa a trabalhar com eles Com Breton organiza a mostra das Primeiras Cartas do Surrealismo. Faz os preparativos da mostra Dezesseis Milhas de Barbante, a compilação e a capa do catálogo, para o qual elabora uma colagem A la Maniere de Delvaux (À Maneira de Delvaux). Peggy Guggenheim apresenta-o a John Cage. 1943. Trabalha para a exposição de La Part du Diable, de Denis de Rougemont, na vitrine da Livraria Brentand. Desenha Achiquier de Poche (Xadrez de Bolso), projeta a capa da VVV (Nova York, n. Os 2 e 3, março de 1943), revista surrealista publicada por Breton e Max Ernst; executa a combinação Allégorie de Genre - George Washington (Alegoria de Gênero - George Washington), sua participação no concurso organizado pela revista Vogue para um retrato de George Washington. Assina o manifesto La Parole Est à Péret, datado de 28 de maio, juntamente com André Breton, Charles Duits, Max Ernst, Matta, Yves Tanguy e em nome de outros dezoito surrealistas para apresentar o prefácio de Benjamin Péret a sua Anthologie des Mythes, Légendes et Contes Populaires d'Amérique (Paris, Albin Michel, 1960). 1944. Primeira mostra dos irmãos Duchamp na Yale University Art Gallery. Desenha Tabuleiro de Xadrez de Bolso com Luva de Borracha. Primeiro desenho da Mariée (Noiva) que ele planeja ser a parte central da obra que na época intitula Étant Donés le Gaz d'Éclairage et la Chute d'Eau (Sendo Dados o Gás de Iluminação e a Cascata), na qual trabalhará de 1946 a 1966. 1945. Desenha a capa do número especial da revista Wiewdedicado a ele (Nova York, V, nO 1, março de 1945); e do catálogo da mostra de Man Ray Objetos do Meu Afeto, na Julien Levy Gallery, abril de 1945. Projeta a vitrine para Arcane 17 de B reton, no Gotham Book Mart, e para Le Surréalisme et la Peinture, na Livraria B rentand. 1946. Começa a trabalhar em Sendo Dados: 1 A Cascata, 2 - O Gás de Iluminação, hoje no Philadelphia Museum of Art, que absorverá a maior parte de sua atividade criativa pelos vinte anos seguintes. Em fevereiro passa a fazer parte do Clube de Xadrez London Terrace. Desenha outras duas capas: para o catálogo Tentação de Santo Antão e para a coletânea de poesias de Breton, Young Cherry Trees Secured Against Hares (Nova York, Wiew Editions, 1946) No verão volta para Paris, onde, em colaboração com Breton, organiza a mostra O

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Surrealismo, na Galeria Maeght. Desenha também a capa do catálogo. Volta a Nova York antes da abertura da mostra. É entrevistado por James Johnson Sweeney - "Eleven Europeans in America" - para The Museum of Modem Art Bulletin (Nova York, XIII, nOs 4 e 5,1946, págs. 19-21). 1947. Passa todo o ano pensando e sonhando com o Étant Dones = 1 - La Chute d'Eau; 2 - Le Gàz d'Eclairage (Sendo Dados: 1 - A Cascata; 2 O Gás de Iluminação!. Exerce intensa atividade de enxadrista. 1948. Faz um esboço para o catálogo Through the Big End of the Opera Glass, mostra coletiva com trabalhos de Joseph Cornell, Mareei Duchamp e Yves Tanguy na Julien Levy Gallery, Nova York. Vence o torneio de Classe A da Associação de Enxadristas do Estado de Nova York 1949. Completa a pequena combinação iniciada no ano anterior - Sendo Dados, o Gás de Iluminação e a Cascata. O nu desta combinação é o estudo em escala menor para a Noiva em Sendo Dados: 1 - A Cascata; 2 - O Gás de Iluminação. Na mostra Arte do Século XX, da coleção de Louise e Walter Arensberg, no Instituto de Chicago, foram incluídas trinta obras de Duchamp, a maior coleção até aquela data. A contribuição de Duchamp para seu círculo internacional de amigos-artistas de vanguarda é citada no artigo "The Western Round Table on Modern Art (1949)" publicado em Modem Artists in America (Primeira Série, ed. Bernard Karpel, Roberto Motherwell, Ad. Reinhardt; Nova York, Wittenborn Schultz Inc., 1951, págs. 27 a 37). 1950. Executa Not a Shoe (Nenhum Sapato), pequena escultura, primeiro estudo para o cinto da escultura Coin de Chasteté (Cinto de Castidade) que seria realizada em 1954. Cria a Feuille de Vigne Femelle (Folha de Videira Fêmea), pequena escultura em gesso galvanizado, que planeja dar de presente a Man Ray. Viaja para Paris. Retorna a Nova York. Publicação de Collection of the Societé Anonyme: Museum of Modem Art, 7920. Yale University Art Gallery, que compreende 33 notas críticas que escreveu entre 1943 e 1949, referentes a muitos artistas representados na coleção. 1951. Dedica a maior parte do tempo a Sendo Dados: 1 - A Cascata; 2 - O Gás de Iluminação. Cria o Objet-Dart (Objeto-Dardo), escultura em gesso galvanizado em forma de falo, com uma costela de chumbo. Essa escultura situa-se entre o objet trouvé e o readymade. Na época imagina colocá-Ia diretamente sob o peito da Noiva em Sendo Dados: 1 - A Cascata ... , onde serviria para pendurar uma pele de vaca. Participa do Torneio de Xadrez do Estado de Nova York. 1952. Dá uma palestra na Associação dos Enxadristas do Estado de Nova York sobre três aspectos principais do jogo de xadrez. O texto foi transcrito por Arturo Schwarz em seu The Complete Works of Mareei Duchamp, pág. 68. Uma carta de Duchamp sobre O Grande Vidro é citada por Eleanor Bitterman em Art in Modem Architecture (Reinhold, Nova York, pág. 152). Escreve o prefácio para o Catálogo da mostra da coletânea de Katherine Dreier (falecida em março deste ano). Esse prefácio serviria de orientação para a mostra da Yale University Art, que se realizaria em dezembro. 1953. Executa o esboço do catálogo Dada 1976-7923 (Sidney Janis Gallery, Nova York). Passa o verão em Blaswood (Minnesota), onde desenha o Clair de Lune sur la Baie à Blaswood (Luar Sobre a


Baía de Blaswood), uma das duas fontes para a paisagem no fundo de Sendo Dados: 1 - A Cascata; 2 - O Gás de Iluminação (a outra fonte é o primeiro trabalho de Duchamp, Paisagem em Blainville, de 1902). No artigo de Henry-Pierre Roché, "Souvenirs sur Mareei Duchamp" são citados trechos de uma conversa com Duchamp (La Nouvelle Revue Française, Paris, I, nO 6, junho de 1953, págs. 1.13338). 1954. Produz o Coin de Chasteté (Cinto de Castidade), escultura em duas partes que se encaixam - um cinto de gesso galvanizado e uma base de resina de prótese dental - para dá-Ia como presente de núpcias para Alexina (Teeny) Sattler, com quem Duchamp se casaria ainda em janeiro. É a terceira parte da trilogia de esculturas eróticas iniciada com a Folha de Videira Fêmea e o Objeto-Dardo. Passa a viver no apartamento anteriormente ocupado por Max Ernst. Ainda em janeiro, morre Walter C. Arensberg, amigo e protetor de Duchamp. O Philadelphia Museum of Art expõe a coleção de Walter e Louise Arensberg, que compreende 43 obras de Duchamp, entre elas muitas das mais significativas, como O Grande Vidro. Expõe pela primeira vez na Itália, em uma mostra na Galeria Schwarz, em Milão. Michel Carrouge publica Les Maehines Célibataires (Paris, Arcanes). Entrevista com Michel Sanouillet: "Dans I'atelier de Mareei Duchamp", em Les Nouvelles Littéraires (Paris, n. o 1.424, 16 de dezembro de 1954, pág 5). 1955. James Johnson Sweeney: Uma conversa com Mareei Duehamp ... , entrevista no Philadelphia Museum of Art, que constitui a trilha sonora de um filme de 30 minutos de duração, produzido no mesmo ano pela N BC e apresentada pela primeira vez na televisão americana no programa Elderly Wise Men, em janeiro de 1956. Uma carta de Duchamp a André Breton é publicada em Medium (Paris, nO 24, jan., pág. 33). Em La Parisienne (Paris, nO 24, jan., págs. 63-69), aparece um artigo de Henry-Pierre Roché, "Vie de Mareei Duchamp", que cita vários trechos de uma conversa mantida pelo autor com o artista. 1956. Desenha Veste (Paletó) para a capa de Modem Art USA, de Rudi Blesh (recusada pelo editor, Alfred A. Knopf). Esse livro cita trechos de algumas entrevistas com Duchamp. 1957. Duchamp desenha a capa para Jaeques Villon, Raymond Duchamp-Villon, Mareei Duehamp, Catálogo de uma importante mostra de Duchamp e de seus irmãos no Solomon R. Guggenheim Museum, Nova York. Cria Gilet (Colete), em lã verde, com os cinco botões contendo as letras do apelido da mulher de Duchamp, Teeny. No ano seguinte faz outros dois coletes semelhantes, um para a mulher do filho de Teeny (Sally), Paul Matisse, e o outro para o poeta surrealista Benjamin Péret. Participa de um ciclo de debates sobre arte realizado no Hotel ShamrockHilton com a palestra "The Creative Act". Integram o evento personalidades como William C. Seitz, moderador, e outros palestrantes, como Rudolph Arnheim e Gregory Bateson. O texto de Duchamp é publicado em Art News (Nova York, LVI, nO 4, 1957, erroneamente datado de 1956, pág. 28-29). Dá entrevista a Jean Schuster ("Mareei Duchamp, Vite"), publicada em Le Surréalisme, Même (Paris, nO 2, 1957, págs. 143-145). 1958. Desenha a capa para o Catálogo da mostra Le Dessin dans l'Art Magique, da Galeria Rive DroTte, em Paris. Colabora na parte gráfica de Sur Mareei Duchamp de Robert Lebel (Paris, Ed. Trianon), que

seria publicado em 1959, constituindo-se no mais completo estudo sobre Duchamp realizado até aquela época. É publicado o Marchand du Sei, Écrits de Mareei Duchamp (compilação realizada por Michel Sanouillet, Paris, Le Terrain Vague), a mais completa coleção de escritos de· Duchamp. Laurence S. Gold entrega os originais da tese de doutoramento: A Discussion of Mareei Duehamp 's Views on the Nature of Reality and Their Relation to the Course of His Artistic Career (Princeton University, 1958, págs. XVIII-54). "La Letre de Mareei Duchamp a Tristan Tzara (1921)" é publicada por PAB (Pierre André Benoit), em Ales (Gard). Concede entrevista a Alain Janffroy, "". II n'Est pas Certain que je Revienne à La Peinture", a propósito da publicação de "Mareei Duchamp" de Robert Lebel em Arts (Paris, nO 694, pág. 12). Concede entrevista a Jean-Josep Tharrats: "Mareei Duchamp", em Art Actuel International (Lausanne, n. o 6, 1958, pág. 1). Jean Crotti, o pintor dadaísta marido de Suzanne Duchamp, morre a 30 de janeiro. 1959. Transfere-se para o Greenwich Village. Colsalités, desenho a pena e a lápis, fornece um novo destino à saga de O Grande Vidro. Produz With my Tongue in my Cheek (Com a Língua no Ro:;to) autoretrato em desenho e escultura; Torture-Morte (Tortura-Morta), molde realista da planta de um pé humano com moscas mortas que faz sátira ao gênero natureza-morta, demonstrando o "poder do cavalete como instrumento de tortura", e Sculpture-Morte (Escultura-Morta) - duas esculturas executadas para um livro projetado por Robert Lebel. Cria o Couple de Tabliers (Par de Aventais), readymade feito para a edição especial do Catálogo da Exposition Internationale du Surréalisme, 1950-1960, organizada por André Breton e Mareei Duchamp na Galerie Daniel Cordier, em Paris. Produz Pulled at Four Pins, água-forte executada para ilustrar uma seleção de quatro poesias de um velho amigo de Duchamp, Pierre de Massot, Tiré à 4 Épingles, publicada por PAB (Pierre André Benoit) em Ales (Gard). A entrevista "Mareei Duchamp Speaks", com George H. Hamilton e Richard Hamilton, é transmitida pela BSC, no terceiro programa da série Art, Anti-Art, incluindo comentários de Charles Mitchell. 1960. Desenha a capa para o Catálogo Surrealist Intrusion in the Enehanters' Domain, exposição realizada na Gallerie d'Arcy, Nova York, dirigida por André Sreton e Mareei Duchamp, e organizada por Edouard Jaguer e José Pierre. Laurence D. Steefel Jr. entrega os originais da tese de doutoramento "The Position of La Mariée Mise à Nu par Ses Célibataires, Même (1915-1923) in the Stilistic and Iconographic Development of the Art of Mareei Duchamp" (Princeton University, 1960, pág. 423). Entrevista com Duchamp citada por Mareei Jean em The History of Surrea/ist Painting (Londres, Weidenfeld & Nicholson). Dokumentation über Mareei Duchamp, mostra no Kunstgewerben Museum de Zurique, Catálogo com textos de Max Sill, Hans Fischli, e Serge Stauffer. The Bride Stripped Bare by Her Bachelors, Even, primeira tradução completa de George H. Hamilton da Caixa Verde (Londres, Percy Lund, Humphries & Co.; Nova York, Wittenborn). Participa do simpósio "Devem os Artistas Freqüentar a Universidade?", no H ofstra College, Hempstead, Nova York. 1961. Anagrama para Pierre de Massot, guache em papel negro coberto de papel encerado, gravado com os contornos de um mictório público (executado 75


para ser vendido em leilão em benefício de Pierre de Massot). Rébus, água-forte feita para Surrealism Between the two Wars, volume segundo da série "The Forerunners of the Avant-Gard", Milão, Galeria Schwarz, 1965. Em novembro, a Wayne State University confere a Duchamp o título ad honorem de doutor em letras. Frank R. Brady: "Duchamp, Art and Chess", em Chess Life (Nova York, XVI, n. ° 6, junho de 1961, págs. 168-69). Herbert Crehan: "Dada", trechos de uma entrevista com Duchamp em Evidence (Toronto, n. O 3, págs. 36-38). Duchamp dá uma palestra no Philadelphia Museum COllege of Art, "Were do We Go From Here", outra no Museum of Modern Art de Nova York: "Apropos of Readymade". Publicação de The Artíst's Voice: Talks with Seventeen Artists (Nova York and Evanston Harper & Row) de Katharine Kuh, que traz importante entrevista com Duchamp nas págs. 81-93. 1962. Profere conferências sobre seu trabalho no Mount Holyoke College (Massachusetts) e na Norton Gallery em Paim Beach (Flórida). 1963. Aimer Tes Héros (Amar Teus Heróis), rébus desenhado que acrescenta novo capítulo à saga de O Grande Vidro. Desenha o manifesto para a mostra do cinqüentenário do Famous International Armory Show. Exposição individual na Galeria Burén, Estocolmo. Na mesma época, Ulf Linde publica o ensaio Marcel Duchamp. Desenha o manifesto e a capa para o Catálogo de sua primeira importante retrospectiva no Art Museum de Pasadena (114 peças). William C. Seitz: "What's Happened to Art?", entrevista com Duchamp na Vogue (Nova York, n. ° 4, fevereiro de 1963, págs. 28-29). Profere a conferência "Apropos of Myself" no Baltimore Museum of Art (Maryland) e na Brandeis University Waltham (Massachusetts). Man Ray publica seu Self-Portrait (Boston e Toronto, Little, Brown and Company, 1963; Londres, André Deutsch), que traz muitas referências a Marcel Duchamp. Morte dos irmãos de Duchamp, Jacques Villon e Suzanne Duchamp. 1964. Colabora na preparação e na publicação de Marcel Duchamp - Readymades etc. de Arturo Schwarz, Catálogo para sua primeira retrospectiva européia, com 108 trabalhos, na Galeria Schwarz em Milão. Essa mostra será depois exibida na Kunsthalle de Berna; na Gimpel Fils de Londres; no Museum Haus Lange di Krefeld e no Kestner Gesellschaft, Hannover. Por ocasião do cinqüentenário do primeiro readymade, Duchamp projeta e manda executar, em colaboração com a Galeria Schwarz, uma edição assinada e numerada de catorze de seus mais importantes readymades em tamanho natural, sobre a base de um esquema tírado de fotografias do original perdido ou, existindo o original (em sete casos), sobre a base de fotografias, cópias, dimensões e informações dadas pelo proprietário da obra. A edição era limitada a oito exemplares assinados e numerados. Dois exemplares - não postos à venda - foram reservados para Duchamp e para Schwarz. Eis a relação dos catorze readymades escolhidos por Duchamp para essa edição comemorativa: Roda de Bicicleta, Três Cerziduras-padrão, Saca-Rolhas, Pente, Com Ruído Secreto, Á Frente do Braço Quebrado, ... Dobrável ... de Viagem, Apolinere Enameled, Fonte, Porta-chapéu, Armadilha, Ar de Paris, Fresh Widow, Por que não Espirrar, Rose Sélavy?, Quatro Readymades e Certificad de Lecture (Certificado de Leitura), duas litografias para 11 Reale Assoluto, coletânea de poesias de Arturo Schwarz 76

publicada pela Galeria Schwarz, Milão. Reflet du Miroir (Reflexo do Espelho), Pulled at Four Pins (Estirado a Quatro Alfintttes), águas-fortes de dois readymades, respectivamente a Fonte de 1917 e Tiré a 4 Épingles de 1915. Como o último desses readymades foi perdido antes que fosse fotografado, a água-forte é sua única reprodução existente. Bouche-Évier, tampão de chumbo executado para a banheira do apartamento de Duchamp em Cadaqués (Espanha). Horloge à Profil (Relógio de Perfil), "dobrável" em papel fino que desenvolve um elemento da Caixa Verde, feito para ser inserido na edição numerada de La Double Vue - Suivi de L'lnventeur du Temps Gratuit, de Robert Lebel (Paris, Le Soleil Noir). Jeu d'Échecs avec Mareei Duchamp, filme de Jean-Marie Drot, produzido para a televisão francesa em 1963, obtém o primeiro prêmiO no Festival Cinematográfico de Bérgamo. Entrevistas com Duchamp citadas por Alain Jouffroy em seu livro La Révolution du Regard (Paris, Gallimard). Otto Hahn publica uma entrevista com Duchamp no L 'Express (Paris, n.o 684). Louis Goldaine e pierre Astier publicam entrevistas com Marcel Duchamp no volume Ces Peintres vous Parlent (Paris, Éditions du Temps, pág. 46). Conferência "Apropos of Myself" no Vity Art Museum de Saint Louis. 1965. Pistão de Corrente de Ar, gravura positiva sobre celulóide, obtida da única fotografia existente feita em 1944 por Duchamp para determinar a forma de um dos Três Pistões de Corrente de Ar em O Grande Vidro. Executa uma série de nove águasfortes - sete das quais mostram detalhes de O Grande Vidro e duas O Grande Vidro e O Grande Vidro como seria se fosse completado - para ilustrar "The Large Glass and Related Works", volume I, de Arturo Schwarz. "Not Seen and - or Less Seen of - by Marcel Duchamp - Rrose Sélavy 1904 a 1964", a mais importante retrospectiva de Duchamp jamais organizada em uma galeria particular até aquele momento, Cordier & Ekstrom, Inc., Nova York. Calvin Tomkins: The Bride and the Bachelors: the Heretical Courtship in Modem Ar (Nova York, The Viking Press). Duchamp concede uma entrevista à televisão alemã por ocasião de sua retrospectiva no KestnerGesellschaft, Hannover. Essa entrevista constitui a trilha sonora do filme de quinze minutos Marcel Duchamp, dirigido por Günter Tovar, transmitido em outubro de 1965 pela NordClieustscher Rundfunk, Hamburgo. Hans Richter cita algumas entrevistas com Duchamp no seu Dada: Art and Anti-Art (Londres, Thames & Hudson, págs.87-99 et passim; Colônia, Dumont Schauberg, 1964). 1966. Completa Sendo Dados: 1 - A Cascata; 2 O Gás de Iluminação, no qual trabalhara nos últimos vinte anos. Hommage a Caissa (Homenagem a Caissa), um tabuleiro de xadrez normal, em madeira, anunciado em uma edição de trinta exemplares assinados (da qual apenas foram feitos quatro), cujo desenho é semelhante ao pavimento do Sendo Dados: 1 - A Cascata ... Dore Ashton: "An Interview with Marcel Duchamp", em Studio Internacional (Londres, vol. 171, n.o 878, págs. 244-247). Número especial dedicado a Duchamp de Art and Artists (Londres, I, n.o 4), que compreende "Apropos of readymades" (1961) e uma entrevista com Otto Hahn. "The Almost Complete Works of Marcel Duchamp", primeira retrospectiva de Duchamp na Inglaterra, na Tate Gallery. Duchamp profere uma conferência na noite da inauguração. Rebel - Readymade, filme de Tristam Powell produzido pela BBC. Morte de André


Breton. Duchamp exprime sua emoção em duas entrevistas, uma a André Parinaud, publicada em Arts-Loisirs (Paris, nO 54, out., 1966, págs. 5-7), e outra a Jean Schuster, transmitida pela ORTF francesa a 19 de outubro. 1967. Detalhes Selecionados Segundo Cranach e Relâche e Apres L 'Amour, as duas primeiras águasfortes de uma série de nove, completada no ano seguinte, para ilustrar The Large Glass and Related Works, volume 11, de Arturo Schwarz. As dezoito águas-fortes que Duchamp fez para ilustrar os dois volumes de The Large Glass and Related Works foram concebidas e elaboradas em um espaço de quatro anos. São as mais importantes séries de ilustrações que jamais dedicou a um livro. Para o segundo volume Duchamp concentrou-se no tema dos Amantes. Nestas nove águas-fortes encontramos a continuação da odisséia da Noiva e do Celibatário, interrompida em O Grande Vidro em um momento crucial - justo antes que se encontrassem. Para sublinhar a relação entre a históri.a dos amantes nessa série de águas-fortes e a história da Noiva e do Celibatário em O Grande Vidro, a última água-forte, Detalhes Selecionados Segundo Courbet, remete ao último acontecimento narrado em O Grande Vidro: o momento em que o Celibatário espia a Noiva que se despe. Aí o Celibatário aparece sob forma de ave, um falcão que observa a jovem senhora enquanto ela se liberta da- última peça de roupa. Uma outra água-forte mostra a Noiva (finalmente) toda nua ... Outras cinco mostram os amantes em vários abraços: Detalhes Selecionados Segundo Rodin, Le Bec Auer, Detalhes Selecionados Segundo Ingres I e /I e Depois do Amor. O fato de que apenas o acaso é responsável pelo encontro dos amantes é destacado na água-forte Rei e Rainha. Na primeira água-forte da série, Detalhes Selecionados Segundo Cranach e "Relâche", a água-forte que conclui a história - os dois amantes se encontram no Paraíso. Tinham feito amor, estavam cientes de sua nudez e dali a pouco seriam expulsos do jardim do Éden. "Os Duchamps", primeira retrospectiva de Duchamp na França: Musée des Beaux-Arts de Rouen e Musée d'Art Moderne de Paris, Catálogo com texto de Bernard Dorival. Pierre Cabanne: "Entretiens avec Mareei Duchamp" (Paris, Pierre Belfond; tradução inglesa, Londres, Thames 8Hudson, e Nova York, The Viking Press, 1971). Á f'/nfinitif (The White Box) traduzido por Cleve Gray (Nova York, Cordier 8- Ekstrom), coletânea de notas inéditas a respeito de O Grande Vidro. "Mareei Duchamp Maintenant e lei", entrevista de Robert Lebel em L'Oeil (Paris, n.o 149, maio, 1967, págs. 1823, 77). A Coleção Mary Sisler (90 peças mais miscelânea) é apresentada na Nova Zelândia e na Austrália, começando na City Aukland Art Gallery. A mostra viajará até 1968, passando por outras cinco galerias australianas. 1968. Cheminée a Cadaqués (Lareira em Cadaqués), duas vistas estereoscópicas do projeto de Duchamp para um atalho que deveria ser construído em sua residência de verão de Cadaqués, e Cheminée anaglyphe (Lareira Anaglífica), desenho

estereoscópico a lápis azul e vermelho, são suas duas últimas obras. Mareei Duchamp morre a 2 de outubro, em Neuilly. É sepultado no jazigo da família, no monumental cemitério de Rouen. Na tumba, de conformidade com seu desejo, foram gravadas as seguintes palavras: "D'ailleurs c'est toujours les autres qui meurent" ("Aliás, são sempre os outros que morrem"). Publicação da obra de Octavio Paz, Mareei Duchamp ou le Château de la Pureté (Paris, Galerie Givaudan). "Mareei Duchamp, Mine de Rien", artigo de Denis da Rougemont que relata uma série de conversas com Duchamp durante a última estada em Lake George (Nova York) em 1945, in Preuves (Paris, XVIII, n.o 204, fev. de 1968, págs. 43-47); pensamentos de Duchamp são relatados por De Rougemont no Journal d'une Époque, 1926-1946 (Paris, Gallimard). Entrevista para a BBC feita por Joan Bakevell para o programa Late Night Line Up, por ocasião da conferência de Arturo Schwarz no ICA, de Londres, "The Large Glass and Related Works". 1969. Primeira retrospectiva de Duchamp organizada 'na Tchecoslováquia por Jindrich Chalupeckye Arturo Schwarz na Galeria Spal, Praga. Publicação do ensaio Sendo Dados: 1 - A Cascata; 2 - O Gás de Iluminação - Reflections on a New York by Mareei Duchamp, de Anne D'Harnoncourt e Walter Hopps, primeiro estudo monográfico sobre o environment secreto de Duchamp, montado em julho no Philadelphia, M useum of Art. The Complete Works of Mareei Duchamp, de Arturo Schwarz (publicado por Harry Abrams, Nova York, e por Thames 8- Hudson, Londres). Notes and Projects for the Large Glass, escolhidas e ordenadas por Arturo Schwarz, que também escreveu o prefácio (Harry Abrams, Nova York, e Thames 8- Hudson, Londres). O encarte n.o 4 de Art in America é dedicado a Mareei Duchamp. 1971. Primeira retrospectiva da obra de Duchamp em um museu italiano: Galleria Civica D' Arte Moderna, Palazzo dei Diamanti, Ferrara, Catálogo de Arturo Schwarz. 1972. Primeira retrospectiva da obra de Duchamp em um museu israelense: The Israel Museum, Jerusalém, Catálogo de Yona Fischer e Arturo Schwarz. "Mareei Duchamp: 66 Creative Years From the First Painting to the Last Drawing", Catálogo para a primeira mostra da coleção completa de Vera e Arturo Schwarz (compreendendo mais de 200 obras) realizada conjuntamente pelas Galerias Schwarz, e L'Uomo e l'Art, Milão. 1973. Abre-se a mais importante retrospectiva de Duchamp organizada até o momento, no Philadelphia Museum of Art; no Museum of Modern Art, Nova York, e no Art Institut of Chicago, sob a direção de Anne D'Harnoncourt e Kynaston McShine. O Catálogo, uma monografia, reúne textos de David Antin, Anne D'Harnoncourt, Richard Hamilton, Robert Lebel, Lucy R. Lippard, Kynaston McShine, Octavio Paz, Michel Sanouillet, Arturo Schwarz, Lawrence D. Steefel Jr. e John Tancok.

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Catálogo Parte um: "A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo" e trabalhos relacionados 1.

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Nu em Pé/Standing Nude, 1911 Tinta da índia e carvão, 62,5 x 47,8 cm (estudo) SCR* n. o 161 Rapaz e Moça na Primavera/Young Man and Girl in Spring, 1911 Oleo sobre tela, 65,7 x 50,2 cm SCR n° 162 Moedor de Café/Coffee Mil!, 1921 Água-forte de Marcel Duchamp e Jacques Villon a partir do Moedor de Café/Coffee Mil!, 1911, de Duchamp, 18 x 8 cm (placa), 25,5 x 20,3 cm (folha) Não catalogada Nu Descendo uma Escada/Nude Descending a Staircase, 1937 Reprodução colorida do Nu Descendo uma Escada, n. o 2/Nu Descendant un Escalier n. o 2, 1912, 35 x 20cm SCR nO 414 Noiva/Bride, 1934 Água-tinta de Marcel Duchamp e Jacques Villon a partir de A Noiva/La Mariée, 1912, de Duchamp, 49,5 x 31 cm (placa), 65 x 50 cm (foíha) Não catalogada Noiva/Bride, 1937 Reprodução colorida de A Noiva/La Mariée, 1912, de Duchamp, 33,8 x 19,5 cm SCR n. O413 Máquina Celibatária/Bachelor Apparatus (Planta), 1913, reprodução de 1934 Reprodução impressa em azul, 25,5 x 31,1 cm SCR n. o 198a Máquina Celibatária/Bachelor Apparatus (Elevação), 1913, reprodução de 1934. Reprodução impressa em azul, 25,5 x 31,1 cm SCR n. o 198a Pist[o de Corrente de Ar/Draft Piston, 1965 Cópia positiva sobre celulóide para determinar a forma de um dos Três Pistões de Corrente de Ar em O Grande Vidro, 1914,29,9 x 23,7 cm SCR n. 0379 Criação de Poeira/Dust Breeding, 1920, prova de 1964 Prova do negativo original da fotografia de Marcel Duchamp e Man Ray, 24 x 30,5 cm SCR n. Os 269,269 a Testemunha Oculista/Oculist Witnesses, 1920 Lápis sobre o avesso de papel carbono, 50 x 37,5 cm SCR n. ° 270 c A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo (A Caixa Verde!/The Bride Stripped Bare bV Her Bachelors, Even (The Green Box!, 1934 Placa de uma cor e 93 documentos reproduzidos em colotipia, guardados na Caixa Verde, 33,2 x 28 x 2,5 cm SCR n. ° 293 À Maneira de Delvaux/ln the Manner of Delvaux, 1942 Colagem: folha de estanho sobre papelão e foto, 34 x 34 cm SCR n. 0312

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Capa para o Catálogo Primeiras Cartas do Surrealismo/Cover for the Catalog First Papers of S urrea/ism, 1942 Brochura, 52 páginas ilustradas, 26,6 x 18,4 cm SCR n. ° 313 A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo/The Bride Stripped Bare bV Her Bachelors, Even, 1958 Fotografia de O Grande Vidro colorida a mão por Duchamp, 30,8 x 21,2 cm SCR n° 345 A Noiva/The Bride, 1965 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x 25 cm S C R n. ° 382 a, b, c A Inscrição do Alto/The Top Inscription, 1965 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x 50cm SCR nO 383 a, b, c Os Nove Moldes Machos/The Nine Malic Moulds, 1965 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x 25 cm S C R n. ° 384 a, b, c O Moinho de Água/The Water Mil!, 1965 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x 25cm SCR n. o 387 a, b, c Moedor de Chocolate/The Chocolate Grinder, 1965 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x 50cm SCR n. o 388 a, b, c As Peneiras/The Sieves, 1965 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x 25cm S C R n. ° 385 a, b, c A Testemunha Oculista/The Oculist Witnesses, 1965 Agua-forte sobre papel pergaminho japonês, 33 x 25cm S C R n. ° 386 a, b, c O Grande Vidro/The Large Glass, 1965 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50 x 33cm S C R n. ° 389 a, b, c O Grande Vidro Completado/The Large Glass Completed, 1965 Água-forte colorida sobre papel pergaminho japonês, 50 x 33 cm SCR n. O390 O Grande Vidro e Trabalhos Relacionados/The Large Glass and Related Works (Vol. I), por Arturo Schwarz, 1967 Livro ilustrado com nove águas-fortes originais (acima citadas) e 144 reproduções de notas e estudos preliminares, de Duchamp, para O Grande Vidro, 42,2 x 25 cm SCR nO 395

* Schwarz Catalogue Raisonné


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Capa para À l'lnfinitif/Cover À l'lnfinitif, 1967 Reprodução em off-set de 79 notas referentes a O Grande Vidro, guardadas em uma caixa de plexiglass com lU mal reprod uçãoido i Planador Contendo um Moinho de Àgua/Glider Containing a Water Mill na capa, 33,3 x 29 cm SCR n. 0393 Detalhes Selecionados Segundo Cranach e "Relâche"/Morceaux Choisis d'Aprês Cranach et "Relâche", 1967 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 x 32,5 cm S e R n. o 398 a, b, c Depois do Amor/ Aprês /'Amour, 1967 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 x 32,5 cm S e R n .o 399, a, b Detalhes Selecionados Segundo Rodin/Morceaux d'Aprês Rodin, 1968 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 x 32,5 cm S e R n. o 400 a, b O BecAuer/The BecAuer, 1968 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 x 32,5 cm SeR n.o401 a, b, c Detalhes Selecionados Segundo Ingres li Morceaux Choisis d'Aprês Ingres I, 1968 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 x 32,5cm SeR nO 402 a, b, c A Noiva Despida ... / La Mariée M ise a Nu ... , 1968 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 )( 32,5 cm S e R n. o 403 a, b, c Detalhes Selecionados Segundo Ingres IIIMorceaux Choisis d'Aprês Ingres 11,1968 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 x 32,5 cm S e R n. ° 404 a, b, c Rei e Rainha/King and Queen, 1968 Água-forte sobre papel pergaminho Japonês, 50,5 x 32,5 cm S e R n. ° 405 a, b, c Detalhes Selecionados Segundo Courbet/Morceaux Choisis d'Aprês Courbet, 1968 Água-forte sobre papel pergaminho japonês, 50,5 x 32,5 cm S R n. ° 406 a, b. c

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Parte dois: Os readymades

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Errata Musical/Musical Erratum, 1913, reprodução de 1934 Readymade musical: tinta sobre papel com pauta musical, 31,2 x 24,2 cm SeR nO 196 b Roda de Bicic/eta/Bicvcle Wheel, 1913, réplica de 1964 Readymade assistido, 126,5 cm SeR n. o 205 e Três Cerziduras-Padrão/Trois Stoppages Etalon, 1913-14, réplica de 1964 Assemblage montada no interior de caixa de madeira, 129,2 x 28 x 23 cm seR n. o 206 c Farmácia/Pharmacv, 1914, reprodução de 1941 Reprodução colorida do Readymade retificado, 22,2 x 16,2 cm SeR n. o 208 b

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Farmácia/Pharmacv, 1914, réplica de 1945 Readymade retificado colorido a mão por Duchamp, 22 x 15,6 cm Secador de Garrafas/Bottle Drver, 1914, réplica de 1964 Readymade: ferro galvanizado, 64,2 cm SeR nO 219 d Estirado a Quatro Alfinetes/Pulled at Four Pins, 1964 Água-forte, 64 x 46,5 cm (única representação do readymade Pulled at Four Pins, 19151 SeR n. ° 372 a À Frente do Braço Quebrado/In Advance of t.'7e Broken Arm, 1915, réplica de 1964 Readymade: madeira e ferro galvanizado, 132 cm SeR n° 233 c Encontro do Domingo, 6 de Fevereiro de 1916 ... / Rendez-vous du Dimanche 6 Février 1976... , 1916, reprodução de 1941 Readymade verbal: texto datilografado sobre um bloco de quatro cartões postais, 24,2 x 14,3 cm SeR nO 236 Pente/Comb, 1916, réplica 1964 Readymade: aço cinza, 11,6 x 3 x 0,3 cm SeR nO 237 b Com Ruído Secreto/With Hidden No/se, 1916, réplica de 1964 Semi-Readymade: bola de barbante contendo um objeto com ruído secreto entre duas placas de latão, 12,9 x 13 cm, sustentadas por quatro parafusos, 11,4 cm SeR n. o 238 b Dobrável de Viagem/Traveller's Folding Item, 1916, réplica de 1964 Readymade: capa de máquina de escrever Underwood, 23 cm seR n° 240 b Apolinêre Esmaltado/ Apolinêre Enameled, 191617, réplica de 1965 Readymade retificado: cartão e propaganda pintada em folha-de-flandres, 24,5 x 33,9 cm SeR n. o 243 b,c Fonte/Fountain, 1917, réplica de 1964 Readymade assistido: mictório masculino em louça 62,5 cm SeR n.O 244 d Armadilha/Trébuchet, 1917, réplica de 1964 Readymade assistido: porta-casaco preso ao chão, 11,7 x 100 cm SeR n.O 248 a Porta-Chapéus/Hat Rack, 1917, réplica de 1964 Readymade assistido: porta-chapéu suspenso no teto, 23,5 x 14 cm (diâmetro da base) SeR n.O 249 a L.H.O.O.Q, 1919, réplica de 1964 Readymade retificado: lápis sobre reprodução de Mona Lisa, 33,2 x 25,5 cm SeR n o 261 e Cheque Tzanck/Tzanck Check, 1919 Imitação do Readymade retificado: impressão em vermelho com borracha, 21 x 32,2 cm SeR n. ° 263. Ar de Paris/Paris Air, 1919, réplica de 1964 Readymade: ampola de vidro de 50 cc, 13,3 cm SeR nO 264 c

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Viúva Fresca/Fresh Widow, 1920 Semi-Readymade: miniatura de janela-francesa pintada de verde-claro, com as vidraças cobertas com couro preto, 77,5 x 45 cm (janela), 10 x 53,3 x 1,5 cm (base) SCR n. o 265 b Por que Não Espirrar, Rose Sélavv?/WhV not Sneeze Rose Sélavv?, 1921, réplica de 1964 Semi-Readymade: 152 cubos de mármore em forma de torrões de acúcar, com termômetro e osso de siba, em uma pequena gaiola de pássaros, com quatro barras de madeira, 11 A x 22 x 16 cm SCR n. o 274 b Um Cartaz Dentro de um Cartaz/ A Poster Within a Poster, 1963 Reprodução do Readymade retificado, Procura-se, 2.000 Dólares de Recompensa/Wanted, $ 2,000 Reward, 1923, 87,5 x 69 cm SCR n. 0363 Obrigação de Monte Carlo/Monte Carlo Bond 1924 Imitação de Readymade retificado: Litografia colorida com foto de Marcel Duchamp por Man Ray, sobre papelão, 31 x 5 x 19,5 cm SCR n. Os 280, 280 a, b Porta: Rua Larrev, 17 /Door: 17, Rue Larrev, 1927, réplica de 1963 Fotografia colorida, em tamanho natural, do ambiente onde foi instalado o Readymade assistido, montada sobre madeira, 250 x 100 cm SCR n. o 291 b Rrose Sélavv, 1939 Brochura, 20 páginas não numeradas, 16 x 12 cm SCR n. ° 308 Bigode e Barba de L.H.O.O.O./Moustache and Beard of L. H. O. 0.0., 7947 Desenho feito como frontispício para um poema de Georges Hugnet, intitulado "Marcel Duchamp", 9,5 x 14,6 cm (página inteira) SCR n. 0310 Xadrez de Bolso/Pocket Chess Set, 1943 Readymade retificado: tabuleiro em couro, celulóide, alfinetes, 16 x 10,5 cm SCR nO 318 Xadrez de Bolso/Pocket Chess Set, 1961-64 Segunda série de tabuleiros sobre plástico magnetizado (eliminam a necessidade dos alfinetes), 15 x 12 cm Capa para o Catálogo "Le Surréalisme en 7947"/ Cover for the Catalog "Le Surréalisme en 7947" Brochura, 146 páginas ilustradas, 23,5 x 20,5 cm SCR n. ° 328 Colete/Waistcoat, 1958 Readymade retificado: flanela listrada em vermelho e preto, 60 cm SCR n" 342 b Fechadura de Segurança com Colher/Verrou de Sareté à la Cuiller, 1957 Fotografia original do Semi-Readymade: colher fixada em uma fechadura, 24 x 18 cm SCR nO 343

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Água e Gás em Todos os Andares/Water & Gas on Everv Floor, 1958 Imitação de Readymade: Inscrição em branco sobre placa esmaltada azul imitando os cartazes afixados nas casas-apartamentos da França, no começo do séc. XIX, 15 x 20 cm SCR n. o 347 Par de A ventais de Lavadeira/ Couple of Laundress's Aprons, 1959 Imitação de Readymade retificado: tinta de tinturaria sobre um pequeno pedaço de pano branco, 20,5 x 19,8 cm (figura feminina), 20,3 x 17,7 cm (figura masculina) Estirado a Ouatro Alfinetes/Tiré à Ouatre Épingles, 1959 Água-forte original a partir do Readymade verbal sobre o título em inglês Pulled at Four Pins, 1915, 11,5 x 11,5 cm SCR n. ° 357 Ouatro Readvmades/Four Readvmades, 1964 Litografia original a partir de quatro Readymades realizados entre 1913-1917, 32 x 23,2cm SCR nO 367 Certificado de Leitura/Certificat de Lecture, 1964 Litografia original, 32 x 46,5 cm SCR n. o 368 Reflexo do Espelho/Mirrorical Return, 1964 Água-forte original a partir do Readymade de 1917,26,5 x 19,5 cm SCR nO 370 a Bouche-Évier, 1964, edição 1967 Readymade: tampão de chumbo feito para a banheira do apartamento de Duchamp, 0,5 cm x 7,5 cm (diâmetro) SCR n. o 371 b L.H.O.O.O. Barbeada/L.H.O.O.O. Shaved, 1965 Readymade: reprodução da Mona Lisa, 8,8 x 6,2 cm SCR n. ° 375 Homenagem a Caissa/Homage to Caissa, 1966 Readymade: tabuleiro de xadrez de madeira, 48 x 48 cm SCR nO 391 Caixa em Valise/La Boite-en-Valise, 1941 Caixa dentro de valise de cartão contendo: réplicas em miniatura, fotografias e reproduções coloridas das obras de Duchamp, 40,7 x 38,1 x 10,2 cm Moderna Museet de Estocolmo


L.H.O.O.O. Barbeado/L.H.O.O.O. Shaved, 1965

Bigode e Barba de L.HO.O,O./Moustache and Beard of L.HO.O.O., 1941

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Duchamp na . nal Em março de 1949, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, promotor das primeiras bienais, é inaugurado oficialmente com a exposição DO FIGURATIVISMO AO ABSTRACIONISMO. Essa mostra, cuja organização ocupou quase todo o ano de 1948, previa, em seu projeto inicial, a participação de artistas dos Estados Unidos e da Europa. A seleção dos trabalhos vindos dos Estados Unidos estava a cargo de Mareei Duchamp, Sidney Janis e Leo Castelli, mas, por divergências quanto às verbas de seguro das obras, a representação americana não veio. A carta de Mareei Duchamp aqui reproduzida, que pertence ao acervo do Arquivo Histórico da Fundação Bienal de São Paulo, insere-se no contexto de organização dessa primeira grande exposição feita pelo MAM, sob presidência de Francisco Matarazzo Sobrinho e direção de Léon Degand V.d'H.

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Tradução 210 West 14th Street New York City 5 de Agosto de 1948. Senhor Recebi sua amável carta de 19 de Julho e o senhor sabe como eu que o sr. Castelli já havia respondido a quase todas as suas perguntas. Espero que o senhor esteja satisfeito com a forma que toma a exposição de São Paulo. De minha parte, devo dizer que as cerca de quarenta telas que o sr. Janis, Castelli e eu escolhemos formam um conjunto bastante representativo do movimento abstrato dos Estados Unidos. Acrescentamos ainda, aqui e ali, alguns semiabstratos para tirar a monotonia de certo rigor teórico. Além dos Mondrian, Miró, Tanguy e Matta, muitos pintores americanos quase desconhecidos fora dos Estados Unidos se impõem por seu valor e eu lamento muito que o sr. Castelli, que reuniu com tanto amor esse conjunto, não esteja em São Paulo para apresentá-lo com conhecimento de causa. Com todos nossos votos de um grande êxito, queira receber, senhor, a certeza de meus melhores sentimentos. Mareei Duchamp

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Diagrama de O Grande Vidro, segundo R. Hamilton

AURÉOLA

HALO DA NOIVA

DESENVOLVIMENTO CINEMÁTICO

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INSCRiÇÃO DO ALTO

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Níveis de Significado de. O Grande Vidro Obra buscada por mais de uma dezena de anos, cujos elementos iniciais aparecem desde 1912, e deixada "definitivamente inacabada" em 1923, O Grande Vidro provocou, mais do que qualquer outra obra plástica do século XX, uma massa de comentários críticos, destinada, também esta, a permanecer em estado de definitivo inacabamento. Examinaremos a seguir as diversas "chaves" usadas comumente pelos críticos: Esoterismo André Breton, em 1935, em Phare de la Mariée (Farol da Noiva),foi o primeiro a tentar uma definição de O Grande Vidro: "Troféu de uma caça fabulosa por terras virgens, nos confins do erotismo, da especulação filosófica, do espírito de competição esportiva, das últimas descobertas das ciências, do lirismo e do humor". Ele também inicia uma interpretação: "Nós nos encontramos aqui em presença de uma interpretação mecanicista, cínica, do fenômeno amoroso: a passagem da mulher do estado da virgindade ao estado de não-virgindade, tomado como tema de uma especulação de natureza não sentimental - como se um ser extra-humano estivesse tentando imaginar esse tipo de operação" A contenção de Breton, sua vontade de permanecer fiel - não obstante sua própria concepção do Amor e do prodigioso - ao temperamento seco e cínico de Duchamp, contrastam com a idéia que o próprio Breton faz da poesia, assimilada da alquimia, como testemunha o Segundo Manifesto do Surrealismo, de 1929: "Eu peço que se observe bem que as pesquisas surrealistas apresentam CIma notável analogia, no seu objetivo, com as pesquisas da alquimia: a pedra filosofai não é nada mais do que aquilo que deveria permitir à imaginação do homem assumir a responsabilidade por uma ruidosa vingança sobre todas as coisas". Entretanto, é apoiando-se de alguma forma nessa poética de Breton e, portanto, surrealizando Duchamp, que os comentaristas seguintes vão recorrer à alquimia para "explicar" O Grande Vidro. Em 1958, Michel Sanouillet, em seu prefácio para o Marchand du Sei (Mercador de Sa/), retoma por sua vez a comparação com a alquimia: "Uma idéia, uma palavra, duas semicolcheias, uma desarmonia de cores, desde que sejam inventadas, bastam para desencadear um verdadeiro processo de transmutação ( ... ). Assim o homem importante nos aparece como este alquimista cuja obra (. .) pode operar essa transmutação", (o grifo em como é nosso). No ano seguinte, em 1959, Robert Lebel vai um pouco além: "Vendo-se um homem que se fecha em segredo, que obedece visivelmente a uma regra, que se ocupa com trabalhos estafantes dos quais toma o cuidado de não se vangloriar nem aproveitar e que ele subitamente abandona sem motivo aparente - não será razoável estabelecer uma ligação entre ele e as indagações filosóficas?" (Bibl. nO 67, págs. 74-75). Da imagem poética passou-se à conjectura. O tom permaneceu prudente e interrogativo, mas o que não era ainda mais que pura imaginação entrou no campo do possível: Duchamp não teria sido, de uma forma autêntica, um iniciado? Nove anos mais tarde, um historiador de arte dará

o passo decisivo: em 1968, no catálogo da exposição "A Máquina Vista no Fim da Era Mecânica", K.G. Pontus Hulten divulgava as pesquisas de Ulf Linde. O ponto de partida de sua tentativa era a curiosa analogia, temática e formal ao mesmo tempo, que se encontra entre um desenho preparatório de O Grande Vidro, intitulado, a Noiva Despida por seus Celibatários, datado de 1912, e uma ilustração tirada de um tratado de alquimia de Solidonius e publicada em 1964 por Eugene Conseliet no seu Alchimie (Alquimia), mostrando dois homens desnudando uma Virgem. O despojamento da Virgem, da futura Noiva, é a ilustração da perda de cor que a prima matéria do alquimista sofre nas operações de liquefação e transmutação. Como conseqüência, assim como O Grande Vidro alquímico é a produção de ouro pelo casamento filosófico de um elemento viril, seco - o enxofre - com um elemento feminino e volátil - o mercúrio - geralmente representados respectivamente por um Rei vestido de vermelho e por uma Rainha vestida de branco, assim O Grande Vidro seria a representação dessa Grande Obra, que superpõe o Domínio da Noiva, o mercúrio, ao Domínio dos Celibatários, o enxofre. Em 1976, entretanto, Ulf Linde, consultando o manuscrito original de Solidonius, na Biblioteca do Arsenal, em Paris, e constatando o quanto ele divergia da versão reproduzida por Canseliet, modificou seu ponto de vista e apresentou uma análise muito mais convincente das ligações que Duchamp poderia ter estabelecido com o saber alquímico (Cf. Linde, Ulf, L'Ésoterique, vol. 111). Arturo Schwarz publicaria em 1968 sua monumental monografia, Sem ter conhecimento da tese de Ulf Linde, ele desenvolvia por sua vez uma explicação de O Grande Vidro que deriva amplamente da alquimia e dos arquétipos de Jung. Um elemento freudiano, ou pseudofreudiano, no entanto, se acrescentou: a hipótese ( ... ) de uma atração incestuosa de Marcel Duchamp por uma de suas irmãs, a mais velha, Suzanne, Era isso que ele acreditava ver no quadro de 1912, Rapaz e Moça na Primavera, onde o jovem anteciparia os Celibatários e a jovem a Noiva de O Grande Vidro. Na tradição alquímica, ressaltava ele, o casal incestuoso Irmão/Irmã simboliza o casal SollLua. Sua união reconstitui a unidade original do ser primordial, o andrógino hermético, imortal. O título de O Grande Vidro, "La Mariée Mis à Nu par Ses Célibataires, Même", "A Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo", tornava-se então: "A Noiva Despida por seus Celibatários, M8 Ama" (Même = M'Aime), título de uma história de amor impossível entre uma esposa semicomplacente e um celibatário. A expressão da qual se serve Duchamp, nas notas da BOlte-Verte (Caixa Verde), para designar o Vidro, "máquina agrícola" tornava-se a de um casamento simbólico entre o Céu e a Terra. Schwarz transpunha daí a conjunção dos opostos (coniunctio oppositorum) , a androginia alquímica, a quase todos os aspectos da produção de Marcel Duchamp: da nuvem da Via Láctea, na qual coexistem harmoniosamente o gás masculino e a água feminina, até a Mona Lisa ornamentada com bigodes masculinos, e até a porta da casa da Rua Larrey n. o 10, que, por ser ao mesmo

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tempo aberta e fechada, revelava seu caráter andrógino ... As comportas dando passagem à polissemia simbólica, o crítico de arte americano Nicolas Calas, em 1969, em um artigo da revista Art in America, retomava a tese de Ulf Linde, mas a enriquecia, ou a complicava, introduzindo um tema que daí por diante iria fazer furor: o Tarot. O autor podia assim escrever: "Mesmo que não se encontre, na Caixa-Verde, nenhuma menção ao jogo do Tarot, Duchamp certamente deve tê-lo tido em mente ... "; e ele via em cada figura do Vidro a configuração de uma carta: no Carro, uma alusão à Carta do Carro; na roda do moinho, a imagem da Roda da Fortuna; na Mulher Enforcada (Pendu Feme/le, ou Enforcado Fêmea), a Carta do Enforcado etc. Essa hermenêutica encontrava um vértice provisório no ensaio de um outro americano, Jack Burnham, "O Significado do Grande Vidro", que a revista VH 101 publicaria em francês em 1972. Burn retomou a alquimia e o Tarot, a eles acrescentando um novo ingrediente: a Cabala, transformando Duchamp em gnóstico: "A mensagem do Vidro está contida por inteiro no valor dos números do título. A soma das letras até o primeiro corte - "A Noiva Despida por" é 18. Na seção seguinte, ". .seus Celibatários, Mesmo", essa soma chega a 19. Dezoito reproduziu os 18 mistérios do Tarot, a Lua que governa o período de ruína completa. Sabendo-se que a Lua é fêmea e controla os poderes das forças da água, Duchamp liga esse Mistério à Noiva. Dezenove, por outro lado, significa os primeiros passos da regeneração física através do Sol viril. Com essa tirada Burnham acreditava também descobrir através da decifração desta obra - que seria, diz ele, inteiramente numerada pelos Tarots e pelas letras do alfabeto hebraico ~- uma escatologia de toda a arte do Ocidente, desde suas origens até a arte de hoje: a simbologia dos quatro elementos na obra de Duchamp anunciaria as correntes mais atuais da arte de agora: a earth art e a land art. Assim ele interpretava a figura dos "Nove Tiros" como uma profecia de Duchamp: "É preciso perceber neste processo a mais crucial fase de sua atividade cabalística, porque ela significa a longa viagem em direção ao Kéther, a reintegração da cultura completamente submetida durante um período de dois mil anos.

Os Celibatários tornam-se os "celi-battiori", os "batedores celestes", os cônjuges celestes da Virgem. As Testemunhas Oculistas, compostas de três elementos em elipse (comparadas a auréolas ou a nimbos), aos quais se acrescenta um disco, compõem quatro figuras para estabelecer os quatro Evangelistas. Estes quatro elementos heterogêneos (3+ 1) tornam-se, todavia, três, se os juntarmos aos Nove Moldes Machos, compondo assim os Doze Apóstolos. Por que "oculistas", se interroga Calves, em lugar de "oculares"? Porque eles são as testemunhas oculares do oculto: "testemunhas ocultistas". Indo além dessa iconografia religiosa assim "desviada", Calvesi tenta em seguida definir o conteúdo hermético, identificá-lo por sua vez, e, depois de Schwarz, com os elementos alquímicos. A Noiva é seguramente Maria, a Virgem, a Esposa. É a água mercurial dos filósofos, quer dizer, a água depois de ter sido purificada dos enxofres com os quais ela se casou em sua mina. O desnudamento é a operação pela qual ela reencontra sua virgindade, que a libera das escórias do casamento corporal para prepará-Ia para o casamento espiritual. É a passagem do negro para o branco: o branco da sublimação ou da depuração. A Via Láctea é, desde então, o "leite da Virgem", o metal vivo sublimado. "A Árvore-Tipo" da qual fala Duchamp a propósito da Noiva, não é outra senão a "arbor philisophica" ao longo da qual se inscrevem as operações sucessivas da transmutação. Não nasce ela, diz Duchamp, em "ramos cobertos de geada de níquel e platina"? Ora, níquel e platina são metais brancos. Falta o "mesmo" do título, o obstáculo imprevisto para todas essas exegeses. Como Burnham, Calvesi chama então a Cabala em seu socorro. Segundo o ocultista Enel, diz ele, "A letra MEM (no alfabeto hebraico) é o princípio feminino, passivo, símbolo de água. É a raiz MA, a matéria passiva, coisa da qual e pela qual tudo se faz: é a água. Por outro lado, MA expressa a mulher, a mãe. É a primeira palavra articulada pela criança em quase todas as línguas". O que Duchamp teria querido dizer, falando de sua "Noiva Despedida por Seus Celibatários, Mesmo", seria: "A Virgem Maria Transportada às Nuvens por Seus Batedores Celestes, MEM" ..

Religião

Marcados por uma linha mais historicista, mais atentos às diferenças de tempo, um certo número de comentadores tentou restituir a obra de Duchamp ao clima particular de sua época, ou seja, o Simbolismo. Octavio Paz, em Le Chateau de la Pureté (O Castelo da Pureza), lembra o quanto Duchamp amava Mallarmé e aproxima assim O Grande Vidro da poética mallarméana. O Nu Descendo uma Escada seria a ilustração da descida de Igitur, e O Grande Vidro o equivalente do Un Coup de Dés, "à procura de significação." Toda a obra duchampiana, enfim, seria na sua recusa de encarnação sensível alguma coisa de muito próxima da liberdade mÇlllarméana. John Golding, em um ensaio recente, lembra igualmente a importância que tinham tido, aos olhos de Duchamp, poetas como Laforgue e Mallarmé, ou escritores formados pelo clima simbolista como Jarry, Apollinaire e Roussel, e um pintor literário, enfim, como Odilon Redon. Desse modo ele aproxima, de maneira convincente, certos temas do Vidro, como hermafroditismo e esterilidade, e seu tom geral, uma irônica desesperança, de uma obra como Herodiade.

Desde 1951, Harriett e Sidney Janis encaravam O Grande Vidro como a figuração abstrata de uma moderna Ascensão da Virgem; a parte inferior representaria "o mundo secular e suas motivações", a parte superior "o reino do mecanismo interior e do espírito interior". Um quarto de século mais tarde, o historiador de arte italiano Maurizio Calvesi retomava essa tese. Segundo ele, o título da obra "A Noiva Despida ... " deve ser interpretado como "Maria (a Virgem) transportada às nuvens ... " A partir daí, Calvesi se entrega a uma leitura sistemática de seus diversos elementos. Os três quadrados brancos que se inscrevem na nuvem (Os Pistons de Correntes de Ar da Via Láctea) são a Santíssima Trindade. Para evocar esta nuvem, Duchamp não fala de "coroa", de "auréola"? A forma de paralelepípedo do Carro, na parte inferior, não é senão uma representação do sepulcro vazio da Virgem. Tanto mais que ele recita "litanias".

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Simbolismo


Esquema de O Grande

- -- -

idro, segundo Jean Suquet - - - - - - - - - - 1 1 1 1 . Carro la. Roda d'Água (ou Moinho de Àgua) 1b. Pinhão (eixo do Moinho de Àgua) - . . " ('Ali 1c. Alçapão Abrindo Sobre o Subsolo 1d. Roldana de Queda 1e. Revolução da Garrafa de Licor Bénédictine (Cascata) 1f. Patins de Trenó 19. Carreta 2. Cemitério de Uniformes e Librés (ou Matriz de Eros) 2a. Padre 2b. Entregador do Grande Magazine 2c. Policial 2d. Soldado 2e. Guardião da Paz 21. Agente Funerário 2g. Lacaio 2h. Ajudante de Garçom ("Caçador de Café") 2i. Agente Ferroviário ("Chefe de Estação") 3. Tubos Capilares 4. Peneira 5. Moedor de Chocolate 5a. Tripé Luís XV Niquelado 5b. Roletes 5c. Gravata 5d. Baioneta I!i 6. Grandes Tesouras

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Noiva : 7a. Anel de Suspensão do o~~~~=l7. Enforcado-Fêmea

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3

! i! ~

7b. Encaixe-Rótula 7c. Cabo conduzindo a matéria com filamentos 7d. Vespa 8. Via Láctea (carne) 9. Pistons de Corrente de Ar 10. Bomba-Borboleta 11. Tobogã (ou Declive de 6 Fluxo) ~:::::::::::::::~ 12. Região dos Três Choques (ou Borrifos) 13. Horizonte - Vestes da Noiva 13a. Ponto de Fuga da Perspectiva do Celibatário 13b. Região do Efeito WilsonLincoln e 9 Buracos 14. Luta de Box 15. Testemunhas Oculistas 16. Diagrama Óptico (LupaLente da Kodak) 17. Nove Tiros 18. Operador de Gravidade 18a. Tripé 18b. Haste Estabilizador

14

u;O l

19

~

: Viagem do Gás de Iluminacão

__ : Linguagem da Noiva

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É ainda à "explicação" simbolista que se pode ligar o ensaio de Michel Carrouges, "Les Machines Célibataires" ("As Máquinas Celibatárias"), escrito em 1950, mas publicado somente em 1954. Carrouges vê no Vidro, que superpõe um conjunto "maquinal" ~ a Máquina Celibatária ~ e um conjunto "orgânico" ~ a Noiva ~, entre os quais se estabelecem relações completas de atração, de recusa, de gozo e de morte, o protótipo estrutural de outras máquinas fantásticas aparecidas, em literatura essencialmente, mais ou menos no mesmo momento, entre 1880 e 1920: Le SOrmale, de Alfred Jarry, as maquinarias maravilhosas inventadas por Matial Canterel no parque de Locus Solus, de Roussel, a Eve Future, de Villiers de L'lsleAdam, o leito de suplício de A Colônia Penal, de Franz Kafka etc. Nessa aparição de máquinas fantásticas onde se entrecruzam o erotismo e a morte, o ateísmo e a mistagogia, e especialmente neste "grande totem" que é O Grande Vidro, ele vê a mitologia essencial de nossa época. Psicanálise

Já vimos a importância das teorias de Jung nas intepretações de Arturo Schwarz. Menos amável é a interpretação de René Held, que explica O Grande Vidro "pelos aspectos psicopatológicos evidentes da personalidade de Duchamp, antes de mais nada colocada sob o signo da neurose obsessiva" e que assegura: "O que permitiu a tantos autores diferentes dizer tantas coisas diferentes em relação às ( ... ) elucubrações duchampianas de O Grande Vidro é o tato de que se pode projetar com a maior facilidade não importa o que sobre uma tela transparente onde se encontra preparado não importa o que prestes a receber as ditas projeções". Contrasta com essa resistência em ver o Vidro outra coisa além de um ardil a importância dada a O Grande Vidro na problemática desenvolvida por Deleuze e Guattari, no Anti-Oedipe: a máquina celibatária no interior de uma economia libidinosa sucederia à máquina paranóica e à máquina miraculosa para "formar uma nova aliança entre as máquinas desejosas e os corpos sem órgãos para o nascimento de uma nova humanidade ou de um glorioso organismo". Essa nova máquina desenvolveria um prazer automático, "como se o erotismo 'maquinal' liberasse outros poderes ilimitados" . Várias outras explicações apareceram recentemente, menos preocupadas em geral com uma interpretação livre do que com uma volta ao texto de Duchamp e, por conseqüência, caracterizam-se por ser mais rigorosas e metódicas. Pode-se citar o ensaio de Jean Suquet, Le Guéridon et la Virgule, e o de Jean-François Lyotard, no catálogo das "Máquinas Celibatárias", que vêem nas engrenagens do Vidro a recorrência a uma maquinaria sofisticada de espaços com n dimensões". O recurso neste caso à filosofia pré-socrática põe em evidência que, curiosamente, nenhum lingüista se debruçou ainda seriamente sobre a obra de Duchamp, apesar de ele ter mostrado um vivo interesse por tudo aquilo que resulta dos jogos de linguagem (Roussel, Brisset etc.) e aquilo que o positivismo lógico anglo-saxão chama de significado do significado" (meaning of meaningJ. Textos extraídos do Catálogo L 'Oeuvre de Mareei Duchamp, organizado por Jean Clair, Centre National d' Art et de Culture Georges Pompidou/ Musée National d'Art Moderne, Paris, 1977. 88

Estética e Filosofia Já se disse que o processo artístico de Mareei Duchamp é parecido com o do filósofo, que esse artista filosofa enquanto trabalha sua obra. Concomitantemente, ao falar sobre o fenômeno da criação artística, muitas inteligências do mundo moderno e do século XX também construíram discursos no âmbito da filosofia. É o caso de pensadores como os alemães Nietzsche, Schelling e Adorno, os franceses Sartre, Bachelard, MerleauPontye Michel Foucault, o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Octavio Paz. Deste último é o importante ensaio Mareei Duchamp ou O Castelo da Pureza (Editora Perspectiva, coleção Elos, São Paulo, 1. a edição, 1977), que ilumina o próprio discurso contemporâneo sobre o significado da criação artística ao introduzir o conceito de mito crítico/mito da crítica. Eis alguns trechos que explicitam esse conceito no livro: "O Renascimento foi o princípio da dissolução da grande Idéia greco-cristã da divindade, a última fé universal (no sentido restrito do termo: igual à comunidade de povos europeus e eslavos, igrejas do Oriente e do Ocidente). Certo, a fé medieval foi substituída pelas imponentes construções da metafísica ocidental mas, a partir de Kant, todos esses edifícios desmoronaram e desde então o pensamento foi crítico e não metafísico. Hoje temos crítica e não idéias, métodos e não sistemas. Nossa única Idéia, no sentido reto deste vocábulo, é a Crítica. O Grande Vidro é pintura de idéias porque (. .. ) é um mito crítico. Mas se fosse unicamente isso, seria só uma obra a mais e a empresa teria fracassado parcialmente. Sublinho que também e sobretudo é o Mito da Crítica: a pintura da única idéia moderna. Mito Crítico: crítica do mito religioso e erótico da Noiva Virgem em termos do mecanicismo moderno e, simultaneamente, mito burlesco de nossa idéia da ciência e da técnica. Mito da Crítica: pinturamonumento que conta um instante das transformações da Crítica no mundo dos objetos e das relações eróticas. Ora, do mesmo modo que a pintura religiosa implica que o artista, inclusive se é anti-religioso, creia de alguma maneira no que pinta, a pintura da Crítica exige que ela mesma e seu autor sejam críticos ou participem do espírito crítico. Como Mito da Crítica, O Grande Vidro é pintura da Crítica e crítica da pintura. É uma obra voltada sobre si mesma, empenhada em destruir aquilo mesmo que cria. A função da ironia aparece agora com maior clareza: negativa, é a substância crítica que impregna a obra; positiva, critica a crítica, nega-a e assim inclina a balança para o lado do mito. A ironia é o elemento que transforma a crítica em mito. "Não é ilícito chamar O Grande Vidro de o Mito da Crítica. É um quadro que faz pensar em certas obras que anunciam e revelam o mundo moderno, sua oscilação entre o mito e a crítica. Penso na epopéia burlesca de Ariosto e no Quixote, que é uma novela épica e uma crítica da épica. Com estas criações nasce a ironia moderna; com Duchamp e outros poetas do século XX, como Joyce e Kafka, a ironia se volta contra si mesma. O círculo se fecha: fim de uma época e começo de outra. O Grande Vidro está na fronteira de um e outro mundo, o da "modernidade" que agoniza e o novo que começa e que ainda não tem forma. Daí sua situação paradoxal, semelhante à do poema de Ariosto e ao romance de Cervantes. A Noiva .. continua a grande tradição da pintura do Ocidente, interrompida pelo aparecimento


da burguesia, o mercado livre de obras artísticas e o predomínio do gosto. Como a dos "religiosos", esta pintura é signo, Idéia. Ao mesmo tempo, Duchamp rompe com esta tradição. O Impressionismo e demais escolas modernas e contemporâneas continuaram a tradição do ofício da pintura, embora tenham extirpado a idéia na arte de pintar; Duchamp aplica a crítica não só à Idéia mas ao próprio ato de pintar: a ruptura é total. Situação singular: é o único pintor moderno que continua a tradição do Ocidente e é um dos primeiros que rompe com o que chamamos tradicionalmente arte ou ofício de pintar. Dir-se-á que muitos artistas atuais foram pintores de idéias: os surrealis1;as, Mondrian, Kandinsky, Klee e tantos outros. É certo, mas suas idéias são subjetivas; seus mundos, quase sempre fascinantes, são mundos privados, mitos pessoais. Duchamp é, como Apollinaire o adivinhou, um pintor público. Não faltará quem assinale que outros artistas também foram pintores de idéias sociais: os muralistas mexicanos. Por suas intenções a obra destes pintores pertence ao século XIX: pintura-programa, algumas vezes arte de propaganda e outras veículo de idéias ( ... ) sobre a história e a sociedade. A Arte de Duchamp é intelectual e o que nos revela é o espírito da época: o Método, a Idéia crítica no instante em que reflete sobre si mesma - no instante em que se reflete sobre o nada transparente de um vidro. L .. ) A moderna beatice que rodeia a pintura e que nos impede de vê-Ia, é apenas idolatria pelo objeto, adoração por uma coisa mágica que podemos apalpar e que, como as outras coisas, pode vender-se e comprar-se. É a sublimação da coisa em uma civilização dedicada a produzir e consumir coisas. Duchamp não padece desta cegueira supersticiosa e sublinhou com freqüência a origem verbal, isto é, poética, de sua obra ( ... ). "( ... ) A história da pintura moderna desde o Renascimento até nossos dias, poderia descrever-se como a paulatina transformação da obra de arte em objeto artístico: trânsito da visão à coisa sensível. Os readymade foram uma crítica tanto do gosto como do objeto. O Grande Vidro é a última obra realmente significativa do Ocidente; e o é porque, ao assumir o significado tradicional da pintura, ausente na arte retiniana, dissolve-o em um processo circular e assim o afirma. Com ela termina nossa tradição. Ou seja: com ela e diante dela deverá começar a pintura do futuro, se é que a pintura tem um futuro ou o futuro há de ter uma pintura." (Octavio Paz, Mareei Ouchamp ou o Castelo da Pureza.)

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Planta da Exposição

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------1 I

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I

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____________________________________________________________________________________________________________________________________________ ...1I

ANDAR TÉRREO

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índice íNDICE Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 9 O Grande Vidro e os Readymades, Mesmo ........ 11 I. Introdução ................................. 11 11. A Noiva Despida por seus Celibatários, Mesmo. 12 1. O tema ................................. 12 2. Um rompimento radical com as tradições técnicas e iconográficas ................... 13 3. O desenvolvimento iconográfico ........... 17 4. Estágios iniciais de O Grande Vidro ......... 21 5. Continuando O Grande Vidro .............. 25 The Large Glass and Related Works ...... , .. 25 Detalhes Selecionados Segundo Cranach e Relâche .................... 29 Depois do Amor ...................... 29 Detalhes Selecionados Segundo Rodin .. 29 O Bec Auer .......................... 29 Detalhes Selecionados Segundo Ingres, I 31 A Noiva Despida ....................... 31 Detalhes Selecionados Segundo Ingres, 1131 Rei e Rainha ......................... 33 Detalhes Selecionados Segundo Courbet 33 6. A Mecânica de O Grande Vidro ............ 35 111. Os Readymades ............................ 42 1. A base teórica ........................... 42 2. Os Readymades e O Grande Vidro: ligações veladas e desveladas ..................... 47 P.S. - Mareei Duchamp: o Homem, Mesmo ... 64 Notas ..................................... 66 Cronologia de Mareei Duchamp .............. 69 Catálogo .................................. 78 Anexo I: Duchamp na Bienal. ................ 82 Anexo 11: Níveis de Significado de O Grande Vidro ...................................... 85 Esoterismo .............................. 85 Religião ................................. 86 Simbolismo ............................. 86 Psicanálise .............................. 88 Estética e Filosofia ....................... 88 Bibliografia selecionada ...................... 90 Planta da Exposição ......................... 91



Edição do Catálogo Editores - Copytexto Serviços Editoriais S/C Ltda.: Maria Otília Bocchini (coordenação) Marcos Gomes Paulo Gusmão Concepção Gráfica e Programação Visual Milton Medina Documentação e Catalogação Ivo Mesquita Preparação e Adaptação do Texto Marcos Gomes Secretaria Editorial Beatriz Carolina Gonçalves (coordenação) Elisa Marcia Pinto Braga Pesquisa Monica Ester Struwe Razuk Mônica Raisa Schpun Revisão de Texto Cássio de Arantes Leite Crivo Editorial Ltda. Imprensa Oficial do Estado S.A. IMESP Márcia Accioli Gatto Vania Marino Veballos Tradução Júlio Fischer Thaís R. Manzano Vera D'Horta Zilda Abujamra Daeir Serviços Editoriais Auxiliares Ana Maria de Castro David Fernandes da Silva Márcia Regina Vanzo Sanches Salime Aoum Fotografia Attilio Bacci Enrico Cattaneo Glória Flügel (reproduções) Capa Milton Medina - sobre Fresh Widow (1920), obra de Rose Sélavy (Marcel Duchamp), réplica de 1964. SRC nO 265b. Uma realização da Fundação Bienal de São Paulo

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