Caderno 2 | COMO CULTIVAR UMA ÉPICA COMUM?

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LEONARDO MALDONADO FIGUEROA Arquiteto, pintor e empreendedor serial, empenhado em promover a inovação, o empreendedorismo de impacto e a criação de ecossistemas colaborativos. Responsible Leader da rede global BMW Foundation. Coliderou a criação de 4 empresas e 4 movimentos. Cofundador e colíder do Cidades+B /Cities CAN B. Ex-Diretor Executivo do Sistema B Chile. CEO da Gulliver, uma agência de inovação certificada como Empresa B, e cofundador da BOMA Chile. Leonardo também é cofundador e Membro do Conselho do “3xi: Incluir, inspirar e inovar” movimento cidadão criado para promover a cultura do encontro. Coautor, com Greg Horowitt, do livro sobre aceleração de ecossistemas de inovação "Ecossistemas Abertos, seis estratégias para acelerar o florescimento da inovação e doempreendedorismo".

PEDRO VERDUGO ROJAS Economista, empreendedor e consultor sênior em processos participativos de inovação, mudança organizacional e estratégia. Por mais de 20 anos, assessorou grandes organizações em processos de transformação organizacional. É escritor e designer de experiências de aprendizado em programas de formação de executivos, empresários e empreendedores desde 1997. Da mesma forma, tem participado no desenvolvimento e na execução de processos de treinamento deformadores e consultores desde 1999. Cofundador da Gulliver, agência de inovação certificada como Empresa B, da qual participou como sócio até 2018. É sócio e CEO da Gestión & Liderazgo S.A.. Facilitador do livro sobre aceleração de ecossistemas de inovação "Ecossistemas abertos,seis estratégias para acelerar o florescimento da inovação e do empreendedorismo".


CADERNO 2:

COMO CULTIVAR UMA ÉPICA COMUM CADERNO DE COLABORAÇÃO EXTREMA


ESTES CADERNOS FORAM CRIADOS SOB UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS

Primeira edição de junho de 2021


ÍNDICE

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Índice

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Agradecimentos

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Apresentação do caderno 2 O futuro não existe

15 16 19 20 21 24 26

Introdução Feitos de histórias...? Inventamos Seres humanos Onde estão essas histórias, que não estou vendo? Histórias que mudam o mundo Contando histórias

29 30 32

I. Honrando o passado Linhagens e gestos Não apenas o que fazemos, mas quem somos

35 36 39

II. Dançando no presente Hacer salud Uma ponte sobre uma xícara de chá

41 42 43 44

III. Construindo o futuro Profecias e paradoxos E o que aconteceu com a Lua? Um futuro que convoque a todos

49 50 51 52

IV. Construindo a épica Que tipo de história é a épica? Se pudéssemos "decompor" a narrativa da épica O manifesto do Cidades+B

55 58 60 61 62 63

V. O canvas da épica 1. O Passado 2. O Presente 3. O Futuro 4. Pertencimento 5. Acompanhamento

67 Anexos 68 Anexo I: Outras leituras 70 Anexo II: Nossos patrocinadores



AGRADECIMENTOS Esses cadernos são anotações do que temos aprendido nesta aventura maravilhosa chamada Cidades+B, empreendida entre o Sistema B e a Gulliver com o apoio estratégico e fundamental da BMW Foundation. Estas anotações refletem o privilégio de ter participado da criação e do florescimento das diferentes Cidades+B, em um momento em que a humanidade vive o início de uma nova era. Esse privilégio nos trouxe a possibilidade de pensar sobre as novas formas como a humanidade está se organizando para realizar as mudanças de que tanto precisamos. Essas reflexões foram tecidas coletivamete. Elas se deram por meio de conversas abertas e de iniciativas realizadas em conjunto com diversos atores. Por isso, queremos agradecer aos parceiros e amigos da América Latina, dos Estados Unidos e da Europa, que tanto nos ensinaram com sua própria experiência e com o trabalho de campo que estão realizando. Gostaríamos de agradecer sobretudo às equipes do Sistema B de cada um dos países, do B Lab, do B Lab Europa, do Ouishare, do Colaboramérica, da BMW Foundation, da Boma Global e do movimento 3xi. A tantas e tantos que lutaram com paixão e garra por suas cidades muito antes de o nosso movimento existir. Estes cadernos não foram criados do zero. Foram milhares de colegas da América Latina e do mundo que dedicam seu talento e vocação para fazer um mundo mais inovador, mais empreendedor, mais solidário, mais justo, mais integrado com a natureza, mais participativo, mais colaborativo e, acima de tudo, mais sustentável. Podemos apenas imaginar, e agradecer, o trabalho realizado por tantos atores – fundações, empresários, inovadores sociais, lideranças comunitárias, instituições de ensino, profissionais responsáveis pela formulação de políticas públicas, agências governamentais e organizações multilaterais – que nos permitiram chegar aonde estamos. Muito obrigada e muito obrigado pelo que foi construído e por nos permitir contribuir.

Agradecemos também à equipe mais próxima que deu vida a este projeto: Rafael Panteón, Ximena Abogabir, Rodrigo Mobarec, Katie Hill, Santiago Campos Cervera, Delfina Zagarzazu, Pedro Maldonado, Sandra Ortiz, Pablo Reyes, Cristina Umani, Cristina Carrión, Pipo Reiser e a María Emilia Correa, por suas incontáveis contribuições para a profundidade, a coerência e a precisão destas notas. A Sebastián Rodríguez, por liderar com pulso firme uma incipiente tribo de jovens empreendedores de triplo impacto, no âmbito latino-americano, para acelerar a mudança cultural em nossas cidades. A Felipe Contreras-Haye, a Consuelo Encalada e a Marí José Ramírez, por coordenar nossos esforços e nos conduzir a resultados tão satisfatórios; a Francisca Donoso, por contribuir com sua experiência, design gráfico e estratégico; e a Paulo R. A. Cruz Filho por sua contribuição com as traduções. A todos os entrevistados que nos concederam seu tempo e sab doria, Jonathan Hertzfeld, Pedro Tarak, Albert Cañigueral, Jocelyn Bleriot, Katherine Trebeck, Stewart Wallis, Alexa Clay, Santiago Campos Cervera, Guillermo Navarro, Jay Coen, Maggie De Pree, Gonzalo Muñoz, Lara Stein, Rafael Aubad, Francisco Gazmuri, Sergio Cardone, e uma boa parte dos líderes das Cidades+B, Mendoza, Rio de Janeiro, Santiago, Assunção, Edimburgo. Nestas páginas, procuramos dar conta do quanto esses entrevistados nos ensinaram com suas histórias. Caso haja alguma omissão ou erro relevante, a responsabilidade é inteiramente nossa. A todas e todos que participaram da campanha de crowdfunding tornando estes cadernos possíveis, 153 pessoas de 22 países em 4 continentes, que nos apoiaram e financiaram parte dos custos de produção. Um agradecimento especial a Pedro Verdugo, que conseguiu ca turar em palavras cada um dos aprendizados que buscamos registrar nestes cadernos; ao Alejandro Balbontin por, com tanto talento, ilustrar nossas reflexões.


AGRADECIMENTOS

AGRADECIMENTOS PESSOAIS DO TOMÁS Eu acredito firmemente nesta frase atribuída a Benjamin Franklin: "diga-me e eu esquecerei; ensina-me e eu poderei lembrar; envolva-me e eu aprenderei." Os registros destes cadernos refletem uma grande aventura de aprendizado coletivo. Aprendendo de dentro para fora e de fora para dentro. A cada passo que dou estando presente, mais consciência; com cada respiração profunda, mais presença. Algumas experiências na vida nos transformam profundamente. Elas dão forma à nossa caminhada. As que mais me transformaram ocorreram em comunidade, em inúmeras conversas profundas em três organizações, a quem sou extremamente grato: Schumacher College, Sistema B e Ouishare. Sou infinitamente grato a meus amigos e amigas que fazem de suas vidas e trabalhos uma força de transformação positiva. Colegas de muitos países que entendem que o sistema em que vivemos não funciona e que mudá-lo será o resultado de nossas ações e de nosso modo de viver, conviver e trabalhar. Por termos essa consciência, escolhemos fazer o que fazemos, da maneira como o fazemos.

Obrigado por me envolverem em suas jornadas de aprendizado: Pedro Tarak, Jota Larenas, Gabi Valente, Marcel Fukayama, Ana Sarkovas, Luisa Santiago, Julia Maggion, Alda Marina, Paula Quintas, Florencia Estrade, Luciana Nery, Flowi Güenzani, Gonzalo Muñoz, Pancho Murray, Sandra Ortiz, Felipe Contreras Haye, Leonardo Maldonado, Rodrigo Mobarec, Ramsés, Nony, María Jose, Giselle Della Mea, Negro Navarro, Víctor Mochkofsky, Francine Lemos, Dani Weinmann, Dani Lerario, Mari Ostermann, Bruno Temer, Bernardo Ferracioli, Manuela Yamada, Lito, Antonin, Taís Martins e tantas outras pessoas. Obrigada, mãe e pai, pela vida, o maior presente. Este livro é dedicado ao meu primeiro filho recém-nascido, Lui Martins de Lara. Espero que um dia eu possa ensinar a você o tanto quanto você está me ensinando. Encerro minhas palavras citando quem me inspira:

“Nosso verdadeiro lar é o momento presente. Viver no momento presente é um milagre. O milagre não é andar sobre as águas. O milagre é caminhar sobre a terra verde no momento presente." Thich Nhat Hanh

TOMÁS DE LARA

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AGRADECIMENTOS

AGRADECIMENTOS PESSOAIS DO LEONARDO A aventura refletida nestes cadernos não seria possível sem Tomás de Lara, Juan Pablo Larenas, Josefa Monge, Marcel Fukayama, Sandra Ortiz, Markus Hipp, Cristina Umani, Rodrigo Mobarec e Felipe Contreras-Haye. Sem o seu apoio e compromisso infinito, o Cidades+B não existiria e as milhares de pessoas que se mob lizaram em Mendoza, no Rio de Janeiro, em Santiago, em Assunção e em Edimburgo não teriam encontrado um espaço para construir juntos um movimento por cidades mais prósperas, inclusivas e sustentáveis. Estas anotações refletem o que foi aprendido por uma enorme rede de pessoas, movimentos e instituições, aos quais sou profundamente grato, por sua generosidade e dedicação. Pessoalmente, eu gostaria ainda de fazer alguns agradecimentos, citando nomes e sobrenomes. Agradeço a Rafael Panteón, meu irmão adotivo, por ter guiado meu caminho nos últimos 30 anos com sua mentoria e amizade. Obrigado por tantos anos de apoio, conselhos e sabedoria. A dois homens sábios que inspiraram muito do que escrevemos aqui: Thich Nhat Hanh, por me permitir refletir sobre a vida, compaixão e interdependência; e Fernando Flores, pela sua generosidade no ensino, pela sua acuidade intelectual e por me permitir compreender o papel fundamental que o empreendedorismo e a inovação têm na dignidade humana. A dois grandes mestres da "Colaboração Extrema": Alfredo Zamudio e Adam Kahane que nos ensinaram a cultivar espaços de diálogo e construir pontes onde elas não existem.

Ao 3xi, que renova todos os dias em mim a esperança de que podemos nos encontrar, por mais diferentes que sejamos, e podemos criar um país mais solidário, inclusivo e gentil. Agradeço pessoalmente a Teco Cardone, por manter aquele sonho mais vivo a cada dia; e a Ramiro Urenda, por ter sido um apoio fundamental para mim – operacionalmente, emocionalmente e espiritualmente – neste difícil ano de pandemia. A Pedro Verdugo, sem o qual todos os nossos aprendizados teriam permanecido para sempre existindo como conversas, e nunca teriam encontrado o seu lugar nestas páginas; e a Alejandro Balbontin que, como sempre, trouxe arte e beleza a estas páginas. A Felipe Contreras Haye que, nos bastidores, sempre nos empurra para frente, com uma energia inesgotável e, mesmo nas situações mais adversas, torna possível que tudo o que sonhamos juntos. A meus pais, pela formação, carinho e apoio infinito. A minha irmã, que desde criança apoia as loucuras que me ocorrem. A minha companheira Carolina, que preenche cada passo que damos com ternura, coragem, alegria e amor. E a minha filha Sofia, a quem admiro profundamente e em quem encontro todos os dias a fonte de luz que guia o meu caminho. Meus agradecimentos infinitos, foi um privilégio para mim participar desta aventura compartilhada.

A equipe da Gulliver, minha segunda família, que trabalha incasavelmente por uma América Latina mais empreendedora, que sempre alimenta minha alma e torna possível o impossível.

LEONARDO MALDONADO

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APRESENTAÇÃO DO CADERNO 2


APRESENTAÇÃO DO CADERNO 2

Este documento é o segundo de uma série. Se você estiver lendo estas linhas, presumimos que já saiba do que trata a série e talvez tenha lido o caderno 1. Nesse caso, você pode avançar para a próxima seção, sem muita culpa ou curiosidade. A série Cadernos de Colaboração Extrema, como dissemos no anterior, são nossas notas de viagem sobre uma exploração que a humanidade está experimentando e da qual tivemos o privilégio de participar ativamente. Tal exploração é o resultado da tensão entre os enormes desafios que enfrentamos enquanto espécie e as crescentes capacidades que temos graças às tecnologias de informação e da comunicação, e graças às práticas que essas tecnologias tornam possíveis. Somos parte de uma geração que vive o estranho paradoxo de, por um lado, estar sob a ameaça das mudanças climáticas e suas consequências, bem como de outros males igualmente graves e perigosos decorrentes do número elevado de seres humanos e do nosso impacto no meio ambiente e de, por outro, ser o primeiro a ter a extraordinária possibilidade de colaborar em massa numa escala nunca antes sonhada.

É essa capacidade extraordinária que chamamos de "colaboração extrema" que procuramos revelar nestas anotações. Fazemos isso a partir da nossa própria experiência e do trabalho de outras equipes humanas que nos inspiram no dia a dia. Como explicamos no caderno 1, a colaboração extrema é um fenômeno social, político e cultural complexo, que podemos observar em uma série de iniciativas recentes em todo o mundo. Ao mesmo tempo, é uma possibilidade para quem está comprometido com a busca de transformar sua sociedade e ambiente para garantir que as gerações futuras tenham a chance de viver com dignidade e paz. Estes cadernos trazem nosso aprendizado sobre como cultivar a colaboração extrema e transformá-la em uma ferramenta para a mudança global.

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Para isso, partimos de certas premissas. A primeira é que os desafios da humanidade são bem representados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) promovidos pela ONU. Bem sabemos que sua articulação ou os indicadores que os dão forma são discutidos em alguns círculos, muitas vezes por motivos que entendemos ou compartilhamos. Mas nos parece que, até agora, são a melhor versão de uma visão abrangente das mudanças de que a humanidade necessita para cuidar de nós, que vivemos hoje, e de quem viverá no futuro. Nossa segunda premissa é que a governança global, ou seja, a rede de instituições públicas lideradas por governos e organizações multilaterais, não é capaz de lidar sozinha com a complexidade dos desafios e com a velocidade que a transformação exige. No caderno 1, discutimos essa premissa mais profundamente, mas basta dizer que, de acordo com relatórios da ONU, mesmo antes da pandemia do COVID-19, nenhum dos ODS estava no caminho de ser cumprido de acordo com os padrões definidos para 2030. Nosso trabalho no contexto do Cidades+B é uma tentativa de contribuir para as mudanças de que a humanidade necessita por meio da transformação das cidades. Escolhemos a cidade como foco da mudança por motivos que explicamos no caderno 1, e embora entendamos que não seja o único caminho, estamos convencidos de que se trata de um "átomo" de mudança que pode fazer uma enorme diferença. Como terceira premissa, portanto, sustentamos a tese de que é nas cidades onde ganharemos ou perderemos a batalha pela sustentabilidade do planeta.


APRESENTAÇÃO DO CADERNO 2

De acordo com a nossa experiência, cultivar a colaboração extrema significa dominar quatro estratégias, e a cada uma das quais dedicamos um caderno. No caderno 1 apresentamos um panorama dessas estratégias, perguntando-nos sobre a escala em que elas podem ser implantadas e, assim, fundamentando nossa escolha das cidades como um espaço de trabalho.

Neste caderno (caderno 2) voltamos a atenção para a primeira dessas estratégias: cultivar uma narrativa comum. No caderno 3 abordaremos a estratégia que chamamos de "entrelaçamento", ou seja, enfrentar o desafio de trabalhar com outras pessoas, mesmo aquelas que costumávamos ver como antagônicas a nós ou entre si.

No caderno 4 traremos um panorama da estratégia de incluir o mundo dos negócios como uma força de mudança adicional, partindo da premissa de que o setor privado tem práticas, energia e recursos diferentes e complementares aos das instituições públicas, oferecendo oportunidades de mudança que de outra forma não seriam possíveis explorar.

No caderno 5 analisaremos a estratégia de promover a liderança cidadã, ou seja como contribuir para que os cidadãos liderem as transformações necessárias.

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APRESENTAÇÃO DO CADERNO 2

O FUTURO NÃO EXISTE Enquanto escrevíamos este caderno, Sir Ken Robinson faleceu. Deixou como legado uma enorme gratidão entre aqueles que partilharam os resultados do seu trabalho e se beneficiaram das transformações que promoveu no mundo da educação.

Com as histórias contidas em seu livro O Elemento, mostrou com profundidade e simplicidade a maneira como as histórias que contamos a nós mesmos determinam nosso futuro.

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Diz-se poeticamente há séculos que os seres humanos são animais que contam histórias. Por trás dessa frase aparentemente óbvia, a nosso ver, está oculta a essência do que somos. Porque para contar histórias devemos ser, primeiro, animais que inventam histórias. Animais que inventam histórias mas, estranhamente, nem sempre as inventamos para contá-las.

Neste caderno, vamos nos aprofundar no fenômeno que se esconde por trás de nossa qualidade enquanto inventores e contadores de histórias.


APRESENTAÇÃO DO CADERNO 2

No Capítulo 1, aprenderemos que inventar histórias muitas vezes "acontece conosco" de maneira involuntária. Iremos questionar como isso acontece e relacioná-lo ao desafio de mobilizar as pessoas em busca dos ODS. Para tanto, tentaremos analisar esse fenômeno que chamamos de "contar histórias".

histórias necessárias para mobilizar os ODS em um território ou em uma cidade.

No Capítulo 2, descobriremos o papel que ocupa o passado nas histórias que nos cativam e mobilizam.

Claro, faremos essa jornada buscando em todos os momentos uma conexão com nosso desafio de promover e acelerar o sucesso dos ODS. Veremos como aprender a elaborar e a contar histórias poderosas desempenha um papel fundamental nos movimentos sociais, culturais e políticos.

No Capítulo 3, veremos como o presente se articula nas histórias que contamos sobre o que fazemos e o motivo pelo qual o fazemos. Finalmente, no Capítulo 4, falaremos sobre o futuro, ou seja, a maneira como configuramos possíveis futuros em nossas histórias. No Capítulo 5, usaremos as distinções1 analisadas para mostrar uma maneira de desenvolver as

No final do caderno você encontrará um conjunto de ferramentas metodológicas que sugerimos para esses assuntos.

Mas este caderno também pretende ser uma história em si. E nenhuma boa contadora ou bom contador de histórias quer estragar sua própria história antecipando o final. Então vamos começar pelo início, combinado? Aconchegue-se em sua poltrona e vamos começar.

Por “distinções” queremos dizer: termos que permitem distinguir coisas (fenómenos, atos, ritos) que de outro modo não vemos. Não se tratam de “definições”, já que não buscam definir, e sim de reconhecer “a coisa” quando a vemos. Por exemplo, usamos a distinção “cadeira” para nos referirmos a objetos que geralmente identificamos como tal, mas que são diferentes entre si. Definir uma cadeira é muito difícil, mas as reconhecemos porque temos uma distinção para o que são 1

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INTRODUÇÃO


INTRODUÇÃO

FEITOS DE HISTÓRIAS...? Em O Elemento, podemos encontrar diversas histórias maravilhosas. Uma delas aparece também na primeira palestra de Sir Ken Robinson no TED. Trata-se da história de Gillian Lynn.

não conseguiam ficar quietas. Pessoas que precisavam se mover para pensar".

Se você não a conhece, o que precisa saber é que nasceu em 1926 na Inglaterra e que, quando tinha cerca de oito anos, não ia bem na escola. Na verdade, ia bastante mal: suas notas eram um desastre e sua mãe recebia reclamações constantes. Os professores diziam que ela não se concentrava e não prestava atenção. Ela se mexia, perturbava seus colegas, olhava para fora. Era impossível lidar com ela na sala de aula. Todos conhecemos alguém assim, não é? Talvez você mesmo ou você mesma...

Gillian começou a frequentar uma aula de dança semanal, para a qual praticava diariamente. Ela teve então uma carreira brilhante como bailarina, seguida por outra carreira brilhante como coreógrafa. Ela foi muito bem sucedida em sua arte, tornando-se uma estrela mundial. Foi também atriz, diretora de teatro e de televisão. Enfim, teve o que chamamos de uma carreira de sucesso.

E então a escola começou a pressionar os pais de Gillian para que a internassem em um centro para crianças com necessidades especiais. Por isso, sua mãe a levou a um psicólogo. Aparentemente, essa foi, a princípio, uma conversa tensa para a garota. Segundo o relato de Robinson, Gillian se lembrava de ter se esforçado para ficar quieta e causar uma boa impressão. Depois fazer algumas perguntas para a mãe, o psicólogo pediu para Gillian esperar no consultório enquanto ele e a mãe saiam para conversar sozinhos. Então ele ligou o rádio e eles saíram. Assim que ela ficou sozinha, Gillian começou a se mover com a música, por todo o consultório. O psicólogo trouxe a mãe para a janela para observar a cena discretamente, e por um momento eles olharam para o quão graciosamente a garota se movia, e quanto prazer ela parecia encontrar nisso. "Sra. Lynne, a Gillian não está doente." Ela é uma bailarina. Leve ela para uma escola de dança”, disse finalmente o psicólogo. Sua mãe acatou o conselho, e Robinson nos conta a maneira como ela o coloca: "Não consigo expressar como foi maravilhoso... Entramos numa sala cheia de pessoas como eu. Pessoas que

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Mas e se Gillian não tivesse ido àquele psicólogo? Naquela época, outros terapeutas poderiam tê-la enviado para uma escola para crianças com necessidades especiais, como sugerido pela escola. Ou tê-la medicado para "se acalmar". Hoje em dia, ela poderia ter sido diagnosticada com TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) e possivelmente também a teriam medicado. Quem ela teria se tornado nesse caso? Não sabemos. Alguém diferente, sem dúvida. Talvez uma pessoa com uma vida "normal", lidando com uma ansiedade cuja origem seria difícil de rastrear. De todo o modo, provavelmente não seria uma estrela da dança. Ken Robinson começa a história dizendo que, aos oito anos, o futuro de Gillian "já estava em perigo". É uma maneira interessante de colocar isso, porque esse futuro agora para nós é um passado que podemos avaliar. Se parássemos em 1934, diante das perspectivas futuras de uma filha como Gillian, o que pensaríamos? O que ela pensaria?


INTRODUÇÃO

Todos nós conhecemos casos de meninas e meninos que se acostumaram a ser avaliados como "inadequados" para o sistema escolar. Meninas e meninos que crescem pensando que há "algo errado" com eles, porque não se enquadram em um determinado modo de ser, o que supõe um desempenho baseado em determinadas habilidades específicas. Além disso, todos nós crescemos com alguma avaliação. "Eu sou ruim em matemática", "eu era o bagunceiro da sala", "nunca fui boa em leitura." De onde vêm essas avaliações? Como as assimilamos? Mas o mais importante, a questão definitiva: como elas determinam nosso futuro? Ficou conhecida a história daquela fábrica de sapato que mandou dois representantes comerciais para a África. Um deles enviou um telegrama dizendo: “situação desanimadora. Ponto. Ninguém usa sapato. Ponto." O outro mandou o seu próprio telegrama: "Maravilhosa oportunidade de negócios. Ponto. Ninguém tem sapato. Ponto."

O que essas histórias revelam é que os eventos não constituem o futuro. Não é que eles não signifiquem nada, obviamente, mas o fator determinante são as histórias que criamos sobre o futuro. O psicólogo Robert Rosenthal e Lenore Jacobson, que era diretora de uma escola em San Francisco, na Califórnia, conduziram um experimento que foi amplamente divulgado. O estudo se chamou "Pigmalião nas salas de aula". Resumidamente, eles reuniram 320 meninos e meninas e aplicaram um teste de QI. Em seguida, alteraram os dados de 65 deles – meninos e meninas cujos testes produziram resultados estatisticamente iguais aos dos outros – e passaram as informações aos professores que os lecionavam, dizendo-lhes que aqueles 65 meninos e meninas tinham uma inteligência extraordinária. Ao final de um ano, os resultados das crianças "comprovavam" que elas eram mais inteligentes do que as outras. Inclusive, um novo teste de inteligência foi aplicado, confirmando esse resultado. Eles aprenderam mais e se tornaram mais inteligentes do que seus colegas. Como isso aconteceu? Rosenthal descobriu que a expectativa em relação aos alunos mudava o comportamento dos professores de uma forma involuntária e imperceptível para eles próprios: tratavam melhor, davam mais conteúdo, faziam mais perguntas e elogiavam mais.

Ou seja, a história que diz “essa menina é mais inteligente” configura para o professor e para sua aluna um futuro condizente com essa história. Você pode imaginar o que acontece quando a história na cabeça do professor é "esse menino é burro"? E os fatos? Se não os conhecemos, nós os inventamos, os imaginamos, ou os ignoramos. Estamos de alguma forma predispostos a certas histórias, e muitas vezes estamos disposto a inventar o que não sabemos.

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INTRODUÇÃO

Esse mesmo mecanismo opera em cada pessoa em relação a si mesma. Aquela menina que se acha muito boa em línguas, se comporta como se o fosse, e acaba "comprovando" suas habilidades, aprendendo idiomas melhor e mais rapidamente do que outros meninos e meninas. O menino que "aprendeu" que é "ruim em matemática" terá dificuldade em estudar as disciplinas que envolvem matemática. Essa é uma parte fundamental da história que Ken Robinson nos conta sobre Gillian Lynne, não é mesmo?

E o Texas que, por sua vez, frente ao desafio de mudar a cultura de sua população em relação a não jogar lixo em locais públicos, tomou como inspiração a famosa rebelião do Texas e cunhou o slogan "Don’t Mess With Texas", que é um jogo de palavras que pode ser traduzido como "Não bagunce o Texas", mas também "Não se meta com o Texas". Essa frase, que foi o slogan da campanha de limpeza lançada pela prefeitura local entre 1986 e 1990, mexia com o sentimento de independência dos texanos e reduziu em até 72% o lixo nas estradas2.

Com os adultos, acontece exatamente a mesma coisa. Em outras palavras, as histórias que contamos sobre nós mesmos, nossos projetos e nossas ambições, definem o que é possível alcançarmos. Quando contamos a nós mesmos histórias que nos limitam, essas histórias restringem nossas possibilidades, tanto individual quanto coletivamente. Quando contamos histórias que abrem possibilidades, um horizonte mais atraente e promissor se estende à nossa frente. Desde já, isso se deve ao poder que damos a essas histórias, que tomamos por "verdade".

E nós, que histórias estamos contando a nós mesmos, talvez sem perceber, sobre nossas cidades, nossos projetos e capacidades?

O psicólogo de Gillian ajudou ela e sua mãe a contarem uma história melhor do que aquela que a escola contava sobre o futuro da menina. Eles mudaram o "é inquieta, é má aluna e não presta atenção ", por "ela é uma dançarina inata."

O mesmo se aplica às histórias que contamos coletivamente. Nossas cidades, por exemplo, vibram e se desenvolvem (ou não) em virtude de uma trama de histórias que seus habitantes nos contam sobre elas e da vida que compartilhamos com elas. Temos o caso de Medellín, que passou de um reduto do narcotráfico a uma capital da inovação mundialmente reconhecida, em algumas décadas.

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Cofield, Aubrey. “Why You ‘Don't Mess With Texas’”. The Culture Trip. 4 nov. 2016. Web. 25 mar. 2021.


INTRODUÇÃO

INVENTAMOS Em 1981, o Prêmio Nobel de Medicina foi para Roger Wolcott Sperry. O que lhe valeu esse reconhecimento foram suas descobertas ao estudar o corpo caloso, que é a parte do cérebro que une os dois hemisférios. No corpo humano, os hemisférios dividem o controle das diferentes funções motoras e perceptivas, mas de forma cruzada, ou seja, o hemisfério esquerdo controla o lado direito do corpo e vice-versa. Sperry concentrou sua pesquisa em elucidar como trabalha cada hemisfério e, para isso, fez uso de experimentos com animais e da observação de pessoas que haviam se submetido a um tratamento para epilepsia que consistia em cortar o corpo caloso, separando os dois hemisférios cerebrais. Foi assim que ele determinou que os hemisférios esquerdo e direito armazenam informações complexas separadamente e as processam de maneira diferente. Uma das consequência de suas descobertas é a noção amplamente difundida de que o hemisfério esquerdo controla as funções da linguagem, raciocínio, escrita, leitura e aritmética. É o hemisfério que analisa, abstrai, conta, mede o tempo, planeja e verbaliza. O hemisfério direito, por outro lado, elabora e recorda imagens. Ele se especializa em sensações, sentimentos, habilidades visuais ou auditivas. Ele é relacionado com o tato e o movimento. Um dos experimentos de Sperry foi mostrar certas imagens a pessoas cujo corpo caloso havia sido cortado, cobrindo um de seus olhos. Quando esses indivíduos observaram a imagem com o olho direito, eles eram capazes de descrever verbalmente o que estavam vendo, mas não necessariamente reconheciam as sensações táteis ou emoções correspondentes. Por outro lado, quando observavam com o olho esquerdo, não conseguiam descrever verbalmente o que estavam vendo.

Mas demostravam emoções e sensações físicas. Isso aconteceu, por exemplo, com sujeitos observando, digamos, uma imagem erótica, apenas com o olho esquerdo. Quando seus rostos ficavam vermelhos, eram questionados sobre o motivo do rubor, mas não conseguiam verbalizar o que viam (o hemisfério da linguagem não teve acesso à imagem). O que você acha que eles faziam? Inventavam: "Eu corei porque está quente aqui", ou qualquer coisa parecida. Inventamos histórias que nos permitem escapar de problemas. Nossa mente é uma máquina de inventar histórias. Por sermos seres linguísticos, passamos a vida pensando e conversando, ou seja, construindo relatos que nos sirvam para criar uma certa coerência em relação ao que estamos vivendo e, sobretudo, que nos permitam encontrar uma maneira "segura" de continuar. Vamos lembrar de histórias que vemos com frequência. Os enlutados olhando para o falecido e comentam "agora ele está em um lugar melhor". Temos certeza disso? Não. É uma história que nos acalma em um momento de dor. Se um dos nossos pneus fura no meio da estrada. Sentimos a vibração no volante. Qual é a primeira coisa que pensamos? "Deve ser o vento que me empurra para a direita." "É possível que o terreno seja irregular". E assim por diante, por alguns segundos, enquanto permanecemos em negação para não termos que enfrentar o fato de que teremos que trocar o pneu sob o sol forte, nos atrasar, ter uma experiência desagradável enquanto isso. Bem, a menos que a gente goste de trocar pneus. Mas ainda não encontramos ninguém dizendo "que oportunidade maravilhosa de estrear meu macaco!"

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INTRODUÇÃO

SERES HUMANOS a chance de se reconhecerem uns aos outros e de colaborarem. Maturana e seus colaboradores apontaram justamente essa inflexão, essa revolução cognitiva, como o momento em que nossa espécie deixou de ser apenas Homo sapiens sapiens para se tornar o que chamamos de seres humanos. Para Maturana e Varela, é uma forma de "estar no mundo", uma forma de viver com outras pessoas na qual "quem somos" permanece para sempre ligado a quem somos dentro da comunidade em que vivemos, deixando de ser uma qualidade pessoal.

"Nós nunca vamos convencer um macaco a nos dar uma banana com a promessa de que depois de morrer terá um número ilimitado de bananas à sua disposição no "paraíso dos macacos"3. Com essa frase, o historiador israelense Yuval Noah Harari nos mostra uma característica central da maneira como nossa extraordinária capacidade de contar histórias nos torna seres únicos. A linguagem tem a propriedade de fazer aparecer na frente de outras pessoas algo que eles não necessariamente podem experimentar. Há macacos que têm algumas “palavras”, ou seja, ruídos que fazem outros membros da sua comunidade se inteirarem alguma coisa: por exemplo, que vem um leão. Mas encontrar um leão é uma experiência que aqueles macacos tiveram. No nosso caso, a linguagem permite contar histórias que fazem outros seres humanos imaginarem coisas que nunca viram, tocaram ou ouviram. Além disso, somos capazes de convencer muitas outras pessoas de que as coisas que imaginamos (ou seja, que nós mesmos não vimos, tocamos ou ouvimos) são verdadeiras. Não é uma faculdade extraordinária? Harari chama de "revolução cognitiva" o fenômeno de nós, os sapiens, sermos capazes de inventar e difundir ficções e transformá-las em histórias aceitas como verdadeiras em toda a comunidade. Imagine passar da mensagem do macaco – "um leão está chegando!" – a esta história fantástica: “o leão é o espírito guardião da nossa tribo”. Vistas assim, as histórias de Harari dão a grandes grupos de pessoas

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Harari, Yuval Noah. “Sapiens - Uma Breve História da Humanidade” L&PM Editores 2015”

MATURANA

Para o biólogo Humberto Maturana, famoso por suas descobertas na biologia do aprendizado, os seres humanos existem na linguagem. Em outras palavras, é a "linguagem" que nos constitui enquanto seres humanos. A linguagem não é "uma ferramenta" do ser humano, e sim parte essencial da experiência de sermos seres humanos.


INTRODUÇÃO

ONDE ESTÃO ESSAS HISTÓRIAS, QUE NÃO ESTOU VENDO? Se tivéssemos que visualizar isso de alguma forma, teríamos que imaginar uma rede de histórias, no meio das quais nos movemos. Histórias que constroem pontes entre nós e nos constituem. Acordamos de manhã em um país.

É verdade todos têm, por exemplo, uma história sobre o país que querem construir. Também temos a nossa, claro, mas talvez sejamos daqueles que não gostam de divulgá-las nas redes sociais (temos uma história sobre a privacidade).

O país é uma história sobre quem somos nós que vivemos naquela terra, o que nos une, o que nos caracteriza, o que nos divide. Abrimos nossos apps de redes sociais e, entre outras coisas, somos bombardeados por histórias que outras pessoas têm sobre o mesmo país, muitas vezes sob o rótulo de "notícias", ou seja, histórias que contam com atributos que as caracterizam como mais "verdadeiras" ou mais válidas que outras.

Tomamos nosso primeiro café antes de sair de casa. Fazemos isso porque gostamos e porque o café nos acorda, uma história que não comprovamos cientificamente, mas não importa. No final das contas é porque gostamos. Beijamos nossa companheira, ou nosso companheiro, que também se prepara para sair. Murmuramos uma palavra afetuosa, que na verdade é uma brincadeira entre nós, uma frase que ninguém mais entenderia, mas que é o jeito engraçado com que uma de nossas sobrinhas se despede. Ela tem dois anos e por isso a pronuncia de forma estranha e engraçada. Essa é outra história, dentre outras milhares que estão entrelaçadas em nossa vida diária.

E essas histórias são confrontadas ou complementadas pelas nossas. Se gostamos de um candidato ou candidata à presidência ou de outro. Se o governo está fazendo um ótimo trabalho ou não. Se há espaço para imigrantes ou não. Se nosso sistema educacional é adequado para o futuro de nossos meninos e meninas ou não. Se a história dá razão aos que estão de um lado ou de outro. Se somos melhores do que o país vizinho e por quê. E de alguma forma, essas histórias são combinadas ou encadeadas em algum ponto com nossas histórias pessoais. Se minha família vem desta ou daquela cidade. Se meus avós são daqui ou se são imigrantes. Se minha origem é uma vantagem ou uma desvantagem.

Estamos dizendo que repassamos essa lista todas as manhãs? Não é exatamente assim: não há uma lista de pontos a serem verificados. Mas essas inúmeras histórias emaranhadas e interconectadas "nos habitam", por assim dizer. Elas estão presentes e influenciam a nossa maneira de ver o mundo.

Pegamos o metrô e, em cada cartaz publicitário, alguém tenta nos contar uma história. Nós as ignoramos, porque temos nossa própria história sobre não participarmos de bom grado na festa do consumo, ou porque estamos lá rezando para as férias chegarem, porque construímos com nosso parceiro ou com nossa parceira uma linda história sobre o que seria bom e desejável fazer no verão. O metrô para no meio do túnel, sem avisar. As luzes se apagam. Uma senhora idosa que está no mesmo vagão nos conta que parece que alguém pulou nos trilhos. Como ela sabe? É que ela viveu algo assim uma vez, anos atrás, ela mal se lembra. Mas logo depois de nos movermos novamente. Não era isso. A história do suicídio nos trilhos acaba sendo "apenas uma lenda urbana", não como as outras histórias que contamos a nós mesmos e que são "verdadeiras". Nós nos pegamos pensando sobre isso assim: "apenas uma lenda urbana", e talvez, apenas talvez, percebamos que mesmo isso é outra história: uma história sobre o que é verdade e o que não é. Chegamos ao escritório e olhamos para o enorme edifício corporativo por um momento. Moderno, elegante. Algo em que alguém

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INTRODUÇÃO

concebeu antes que existisse, mesmo antes de haver um projeto ou terreno. Como esse prédio apareceu lá? Alguém contou a alguém uma história sobre um edifício moderno e elegante que seria muito lucrativo se fosse construído naquele terreno que estava à venda. Ou talvez tenha sido o projeto primeiro e depois o terreno. Alguém (um executivo sênior de uma agência imobiliária) decidiu, com a ajuda de um comitê de especialistas, que o investimento valia a pena. Eles contrataram alguém para fazer o projeto: um escritório de arquitetura liderado por um profissional talentoso e relativamente jovem que não se pergunta se vão lhe pagar o combinado porque, de acordo com sua experiência, uma imobiliária de prestígio e solvente paga sempre na hora certa. Isso também é uma história. O prédio possui todos os tipos de dispositivos inteligentes. A administração gerencia, entre muitos outros, um pequeno exército de cinquenta eletricistas e muitos outros funcionários e funcionárias para mantê-lo funcionando. Cada uma dessas cinquenta pessoas tem sua própria história sobre o motivo pelo qual vale a pena trabalhar lá, terceirizada, correndo alguns riscos, que felizmente consideram controlados. Assim, infinitamente. Milhões de histórias.

Para resolver essa confusão, vamos propor por um momento a seguinte questão: quais são as principais histórias que contamos a nós mesmos sobre o sentido do que fazemos, do que cuidamos, do que é importante para nós? E o que aconteceria se as descartássemos? Considere uma senhora que se levanta de manhã e faz uma lista das histórias "inventadas" que a levam a fazer o que ela faz todas as manhãs.

Com "cartesiana" queremos referir-nos a uma abordagem com a qual somos capazes de observar uma realidade "objetiva" que está fora de nós e da qual não fazemos parte. Em vez disso, afirmamos que fazemos parte do meio ambiente e somos biológica e historicamente determinados em nossa maneira de perceber o mundo.

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De vez em quando, acontece que, quando mostramos que somos feitos de histórias, de repente vemos o rosto de um membro da plateia se encher de alegria. Você está pensando "é claro, finalmente tenho uma maneira de detectar a quantidade de histórias inúteis que contamos quando falamos… quando o que importa são os fatos!". Você acabou de ficar sabendo que somos animais interpretativos, e que aquelas histórias que contamos a nós mesmos são interpretações que elaboramos sobre nós mesmos, sobre o mundo onde habitamos, etc. E até agora tudo bem, mas acontece que na sua cabeça essas histórias, por serem interpretações ou "invenções", têm menos validade do que os fatos da "realidade". Essa cegueira cognitiva, que vem de uma educação profundamente cartesiana4, tende a nos mover nessa direção. Todos nós fomos, até certo ponto, essa pessoa.


INTRODUÇÃO

Digamos que ela escreve em um pedaço de papel: • • •

Meus filhos são a coisa mais importante da minha vida. Uma boa educação é essencial para que tenham um bom desempenho na vida. Educá-los significa não apenas colocar eles na escola, mas também oferecer oportunidades de fazerem atividades esportivas ou artísticas fora da escola. Meu parceiro e eu temos independência e cada um de nós constrói sua trajetória profissional de forma independente. No trabalho, posso aspirar ter mais responsabilidade e influência caso o projeto que estou liderando seja bem sucedido. Minha fé me obriga a respeitar certos princípios éticos, em virtude dos quais dedico tempo aos pobres em um programa de voluntariado, porque é meu dever fazer isso. E porque Deus está observando. Meus pais envelheceram e precisam cada vez mais da minha ajuda para coisas práticas. Eu tenho que mantê-los mais perto. Posso morar em uma cidade como esta sem carro, se puder usar minha bicicleta. Com incentivo e apoio, meu irmão mais novo pode terminar os estudos. Eu posso ajudar ele com as duas coisas.

E então essa pessoa decide descartar essas histórias. Admitir que são "inventadas" e que, pela mesma razão, são inúteis. O que sobraria? Como seguiria a vida a partir daí? Não teria como! Histórias não são apenas palavras... as histórias mais relevantes para nós estão “incorporadas”, ou seja, já fazem parte da nossa biologia, do nosso corpo, das nossas emoções. Removê-las do nosso corpo produz, literalmente, dor física e, portanto, não são intercambiáveis. Vamos pensar nos casos em que nos sentimos traídos por um ente querido: as implicações pragmáticas do que aconteceu nos afeta, mas também ficamos profundamente magoados por sentir que as histórias que contamos sobre ele e sobre nós mesmos são "mentiras".

Os seres humanos são constituídos por esse quadro interpretativo, que dá sentido às nossas vidas. Sem nossas histórias, não somos humanos.

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INTRODUÇÃO

HISTÓRIAS QUE MUDAM O MUNDO Em O fator humano, John Carlin conta uma das histórias políticas mais fabulosas de todos os tempos. Poucos meses antes das eleições em que Nelson Mandela seria eleito presidente da África do Sul com o apoio de 80% da população negra do país, o general Constand Viljoen foi convocado por setores da extrema direita para organizar um movimento armado para impedir as referidas eleições. Viljoen era um líder muito popular do Exército da África do Sul, que esteve ativamente envolvido na guerra contra Angola. Carlin relata que Mandela, ao saber que Viljoen contava com cerca de 50 mil paramilitares armados, convidou-o para uma reunião. Imagine, por um momento, que seu pior inimigo, o sujeito que quer destruir tudo em que você acredita, convide você para uma reunião. Bem, talvez você seja uma dessas pessoas boas que estão sempre dispostas a conversar... Mas Viljoen era um soldado que já havia passado pela guerra e que tinha seu próprio exército. De alguma forma, com a ajuda de um irmão do general, que era contra o apartheid, Mandela conseguiu fazê-lo aceitar a reunião. Uma reunião secreta, em um local escolhido pela equipe do líder negro. O próprio Viljoen conta que, ao entrar no local da reunião, esperava encontrar-se com um terrorista cheio de ódio e ressentimento por vinte e sete anos de prisão, querendo chegar ao poder para se vingar. Mas, em vez disso, ele foi recebido por um cavalheiro impecavelmente vestido, que mal o viu entrar, saudou-o e se preparou para servir chá para os dois. Parece que a frase "chá é a melhor coisa que os ingleses deixaram para nós" foi dita por Mandela na época e mais tarde usada pelos roteiristas de Clint Eastwood em uma cena diferente do filme Invictus. O que é certo é que eles se sentaram para conversar, como duas pessoas civilizadas, e lá Mandela contou a ele uma história que mudaria o futuro da África do Sul para sempre. Ele disse que sabia que Viljoen tinha um exército bem armado para impedir as eleições. Mas ele também lhe disse – e naquele momento o espanto do general aumentou ainda mais – que entendia perfeitamente o motivo dele estar fazendo aquilo. Que ele entendeu que

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ele, Viljoen, desejava proteger aquelas pessoas que considerava seu povo. Mais especificamente, protegê-los do tremendo risco de que os negros, finalmente no poder, quisessem se vingar, destruir suas casas e negócios, e massacrar suas famílias. Disse que compartilhava esse sentimento, de querer proteger os seus. E também disse que o problema era que, ao fazer isso, ele desencadearia uma guerra civil.

E que uma guerra como aquela seria longa e atroz. "Você tem muitas armas, mas nós somos muito mais." Era impossível prever com antecedência quem venceria, mas o que estava claro, continuou, é que no decorrer da referida guerra muitas das famílias que Viljoen buscava proteger sofreriam perdas terríveis, e teriam que lamentar incontáveis mortes e tragédias. Ou seja, ele concluiu, que o que o general estava tentando evitar seria desencadeado precisamente por suas ações para evitá-lo. Era um paradoxo do qual parecia impossível sair. Um pesadelo. Mas Mandela podia se oferecer para ajudar. Se o general confiasse e depusesse as armas, Mandela garantiu que não haveria vingança nem massacres de qualquer tipo. E com certeza você já conhece o fim dessa história. Assim disse Viljoen, nas palavras de Justo Barranco: “Acreditava que os negros estavam lá para servir aos brancos. Acreditava na segregação racial para manter as regras e os critérios ci-


INTRODUÇÃO

vilizados dos brancos. Acreditava que eram os mestres e senhores da África do Sul, o povo escolhido, e que teriam seu próprio paraíso separado das raças inferiores. Acreditava que deviam proteger o país do comunismo ateísta do negros. E havia lutado por isso. Afinal, é o que lhe haviam ensinado."5 Nos termos das páginas anteriores, essas eram as histórias que habitavam Viljoen. Pois bem, aquele homem, apesar de todas aquelas histórias em que acreditou durante tantos anos, depôs as armas, permitindo que ocorressem as eleições e Mandela foi o primeiro presidente negro da África do Sul, iniciando um período de governo no qual trabalhou incansavelmente para reconciliar um país dividido e torná-lo um.

O que você acha desse poder? Uma história que transformou um inimigo mortal em um aliado. Aqui é necessário olhar com mais atenção de onde vinham as histórias de Viljoen. Eram, sem dúvida, histórias ensinadas em sua família, desde a infância, equivalentes às histórias que todos aprendemos a partir do momento em que aprendemos a falar. É importante ver dessa forma, porque nos revela que Viljoen não poderia ser diferente do que era, nem contar outras histórias além das que se contava, pois isso era consistente com suas experiências anteriores. O mesmo ocorria com Mandela, sentado à sua frente, revelando uma história sobre a possibilidade de um futuro comum que ele mesmo havia deslumbrado em seus anos na prisão, talvez em resposta à sua própria dor. Da mesma forma, se tivéssemos nascido na Itália em meados do século 20, teríamos 5

presumido que a Terra é redonda, mas se tivéssemos vindo ao mundo no mesmo lugar, quinhentos anos antes, teríamos a convicção oposta. Somente nascendo onde nascemos somos lançados em um mundo feito de um emaranhado de histórias que dão sentido a tudo o que vemos e vivenciamos. Se tivéssemos vivido na Atenas da antiguidade clássica, para nós a escravidão teria sido algo absolutamente natural e inquestionável. Mas hoje ficaríamos horrorizados em saber que nosso vizinho mantém um escravo em casa. E não se trata apenas de uma questão temporal e sim, sobretudo, cultural. Se você nasceu em uma família profundamente islâmica, pode ser alarmante para você caminhar pelas praias de Ipanema e ver tanta gente seminua ignorando princípios que para você são inquestionáveis. Por outro lado, alguns desses turistas brasileiros podem ficar angustiados por simplesmente ver uma mulher muçulmana usando uma burca sob o sol forte. Mas na cena de Mandela e Viljoen que acabamos de relatar, não só estão em jogo as histórias que cada um traz, mas a forma como Mandela contou a sua história. A história é mais do que a história. O terno de Mandela, a decoração do lugar, o gesto do chá, a frase sobre os ingleses... Todas essas coisas ajudaram a contar aquela história de paz e futuro que Mandela queria compartilhar com seu inimigo, sabendo que esse futuro só aconteceria se o general concordasse em seguir um caminho que até então parecia impossível. Chamamos isso de a arte do storytelling. Um termo que está na moda, em grande parte graças às palestras promovidas pelo Ted.

Barranco, Justo. “Cómo Mandela evitó una guerra civil”. La Vanguardia (Barcelona, España). 13 mar. 2019: s.p. Web. 31 mar. 2021. 25


INTRODUÇÃO

CONTANDO HISTÓRIAS Contar histórias é uma prática humana que existe desde o início dos tempos. A imagem de um grupo de humanos primitivos, em torno de uma fogueira, ou de refugiados em uma caverna, contando histórias uns para os outros, é recorrente. Se por um lado as histórias constituem o ser humano, por outro, elas nasceram conosco. Mas no decorrer dos últimos séculos perdemos parte desse hábito, porque começamos a confundir histórias com informações. Para ser claro: o que diferencia uma história do que costumamos chamar de "informação"? Uma história é organizada com o propósito de produzir um efeito, que geralmente está relacionado à forma como uma ou mais pessoas vão agir a partir dela. Quer estejamos falando de uma história, no sentido de uma história que tem personagens, conflitos e ações que podem ser "narradas", ou que envolvem interpretações sobre o sentido do trabalho, da vida, da convivência social ou do motivo pelo qual escolhi salada hoje para o almoço, as histórias são contadas para que alguém possa mudar a forma como agiria caso não tivesse ouvido e acreditado naquela história. Esse alguém pode ser eu mesmo, que me conto a história que preciso ouvir para me permitir fazer o que estou fazendo: "não comi salada hoje porque mereço ter um dia por semana de batatas fritas e isso não afeta meu planejamento de controle de peso". Se olharmos para o mundo das religiões e os mitos que as originaram, encontraremos um fenômeno semelhante. Histórias profundas e complexas que buscam impactar toda a Humanidade, muitas vezes articuladas ao longo de muitas gerações, sem um único autor. As histórias que conhecemos sobre Jesus, por exemplo, dão sentido à vida de seus fiéis e os conecta a um mundo espiritual governado por um Deus que envia seu filho para sofrer a pior tortura possível para mostrar ao seu povo o seu amor incondicional. E desde que essas histórias foram contadas, bilhões de pessoas têm tentado o seu melhor para dar sentido às suas vidas, fazendo o que antes acreditavam que atendia às expectativas de Deus e de Seu Filho. Mas de então até agora, muitas interpretações diversas surgiram, moldando variantes da mesma história, desde aquelas que justificaram as Cruzadas e a Inquisição até aquelas que motivaram a

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Reforma e a Contra-Reforma. O mesmo ocorre com o budismo, para citar outro caso. A figura do Buda deu origem a uma intrincada rede interpretativa de histórias que inclui centenas de escolas e linhagens espalhadas por todo o mundo. E o que essas histórias produzem, ou melhor, o que procuram produzir? A adesão de milhões de pessoas a um modo de vida, que inclui uma linha divisória entre o bem e o mal, ou entre o certo e o errado, ou entre uma vida com propósito e uma vida sem ele. É assim que as histórias funcionam. A informação, por outro lado, é conteúdo, geralmente verificável, muitas vezes entediante, geralmente incapaz de fazer quem as escuta mudar de opinião ou se comprometer com um novo rumo. Bem, claro que há exceções: a informação de que a ponte que nossa tia Iracema estava atravessando desabou vai nos fazer sofrer. Mas quando você pensa em trazer outras pessoas para colaborar com você, informação é um insumo. Esse insumo pode ser usado para o que é realmente importante: fazer um futuro diferente aparecer no horizonte e tornar esse futuro atraente para aqueles que queremos convocar. Um futuro deste tipo: "nunca mais permitiremos a construção de pontes defeituosas para que pessoas inocentes não morram por conta delas novamente.' O ser humano age quando a informação adquire relevância em um determinado contexto, delineando de alguma forma um futuro que nos atrai ou que, por oposição, nos soa melhor do que aquele que nos oprime ou assusta. Pense em Eduardo pedindo Monique em casamento. Imagine se ele dissesse: "Veja, Monique, proponho que nos casemos porque fomos feitos um para o outro: você tem 1,73 cm de altura, que é a minha altura ideal, e seu cabelo é da cor Pantone 7587 CP. Mas também a cor predominante em sua íris é 2193 CP. Outro argumento a favor é que há exatamente três anos, sete dias, três horas e trinta e sete minutos de diferença entre o seu nascimento e o meu. Eu sou mais velho do que você exatamente esse tempo."


INTRODUÇÃO

Se Monique respondesse sim, a única coisa que teríamos garantido é que ela é de outra espécie ou de outro planeta. Mas não, o que Eduardo diz a Monique é algo como: "Você é a mulher mais maravilhosa que já conheci e não suporto a ideia de uma vida sem você". Nem um só dado! Nem um pingo de informação!

A história é uma parte do que chamamos de “épica”. A história como um pano de fundo sobre o qual se constituem os demais elementos da épica: as práticas, as emoções, os rituais e mesmo as instituições que vão promover o futuro que estamos buscando. Para ter sucesso ao mobilizar outras pessoas, você deve estruturar as histórias que contamos e a forma como as contamos. Histórias que fazem você sonhar com futuros atrativos, o que significa entender e honrar o passado que nos trouxe até aqui. Falaremos sobre isso no próximo capítulo. Vejamos as diferentes dimensões que essas histórias precisam abordar.

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I. HONRANDO O PASSADO


I. HONRANDO O PASSADO

LINHAGENS E GESTOS Imagine a seguinte cena: um homem baixo, vestido de militar no estilo do século XIX, com uma jaqueta azul sobre um terno quase todo branco, posando para um quadro. Até aí, poderia ser uma pessoa qualquer, certo? Ou seja, qualquer militar poderoso que já viveu naquela época, pelo menos na Europa ou nas Américas. Mas se somarmos o detalhe da mão direita enfiada no colete, na frente, na altura da barriga, e um grande chapéu grande e comprido nos lados, o mais provável é que reconheçamos de relance um dos grandes forjadores da Europa do início daquele século: o próprio Napoleão. Diz-se dele que foi um homem de inteligência extraordinária, que combinou os dons de um talento militar incomparável e um estadista ambicioso, destinado a deixar sua marca na história, liderando um país que não era o seu. Evidentemente, pelo mesmo motivo, ele é uma figura controversa. Genial, mas sem escrúpulos; visionário, mas mesquinho; trabalhou incansavelmente construindo um império francês para colocar uma coroa de imperador em sua cabeça, sem levar em conta os mortos... Enfim... Mas por que o reconhecemos tão facilmente nessa imagem? Não nos aprofundaremos nesse assunto, mas temos uma boa hipótese: em muitos casos, isso se deve à mão no abdômen, postura em que aparece imortalizado em inúmeros quadros. Claro, nem TODAS as pinturas que foram feitas dele figuram a mão no

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abdômen, mas muitas o fazem. O suficiente para que seja um gesto deliberado. Algo que o próprio Napoleão escolheu repetidas vezes, ao posar para os artistas da época. Essa repetição do gesto explica em parte por que se disseminou a ideia de que ele sofria de uma doença estomacal (câncer gástrico ou coisa do gênero). São muitas as pinturas em que Napoleão está em tal posição. Além disso, o fato de identificarmos Napoleão com esse gesto se reflete na quantidade incontável de imagens disponíveis onde "algum Napoleão" posa da mesma forma. Atores que o interpretam em filmes, pôsteres, piadas, memes, bem... até mesmo o seu boneco de Lego. Nos parece reveladora essa tentativa deliberada de Napoleão de ser visto com a mão no abdômen, pois envolve uma interpretação política que ele tinha e que está relacionada à importância dos gestos. Digamos antes de mais nada que aquele gesto não foi criação dele. Muitos políticos e celebridades haviam se retratado assim antes dele. Existem pinturas nas quais o gesto é repetido por outros


I. HONRANDO O PASSADO

personagens relevantes da história: George Washington; Mozart (quando criança); Francisco Pizarro, o conquistador do Peru. E se formos a fundo, poderíamos rastrear esse gesto até a Grécia antiga, onde alguns dos oradores mais renomados punham as mãos na mesma posição, mas com a túnica da época, como um sinal de boas maneiras para falar em público6. O relevante é que não se trata um gesto de Napoleão, e sim de um gesto que ele apreciava e cultivava em suas imagens públicas, como um símbolo de poder. A origem do gesto remonta a milhares de anos e provavelmente se perdeu para sempre. As pessoas que recorreram a ele viveram e morreram, mas o gesto persistiu através dos séculos e aparece até nas fotografias mais recentes de pessoas poderosas. Aparentemente, o que acontece com esse gesto, acontece com muitos outros. Gestos que são repetidos recorrentemente em uma cultura ou através de uma linhagem familiar. Poderíamos muito bem dizer então que não somos nós, as pessoas, que "temos gestos", mas o contrário: os gestos "nos têm". O mesmo gesto é repetido por muitas pessoas, perpetuando-se no tempo, para além do horizonte de vida de quem o realiza. No nosso dia a dia, todos ouvimos histórias de família de um neto que tem um gesto igual ao do avô. Ou uma garotinha que anda como a tia. O mesmo ocorre em relação às palavras. Ao conhecer uma nova família você percebe que eles possuem frases que são típicas daquela família, piadas e anedotas que fazem parte da história daquela família. E essas coisas passam de geração em geração, de modo que se alguém pudesse rastrear um gesto ou palavra, talvez tivesse que voltar muitas gerações no tempo para encontrar a origem daquele gesto ou daquela palavra.

Isso quer dizer que o passado está presente em nós de muitas maneiras, e assim como se manifesta por meio dos gestos, também se manifesta por meio das palavras e das ideias e histórias que aparecem em nossa maneira de olhar o mundo e na forma como nos colocamos nele. Isso não significa que estejamos "presos no passado”, e sim que há uma continuidade que às vezes é imperceptível para nós, mas que enraíza as nossas ações. Construímos permanentemente sobre essas raízes e não em uma folha em branco, embora em nossa arrogância às vezes sintamos que estamos inventando algo novo do nada. Se tivéssemos que identificar o que há de original em nós, o que trazemos de novo, o que encontraríamos? O idioma que falamos, por exemplo, é o resultado de milhares de anos de "ruídos" (palavras) e significados sobrepostos – por assim dizer – isso permitiu que sucessivas gerações fizessem distinções, e se coordenassem para viver em comunidade.

6 Não vamos nos aprofundar na historiografia do assunto aqui, mas se tivermos despertado sua curiosidade, você encontrará um vídeo no canal "Vox" do YouTube que conta parte da história em um tom bastante cômico. Chama-se Napoleon's missing hand, explained.

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I. HONRANDO O PASSADO

NÃO APENAS O QUE FAZEMOS, MAS QUEM SOMOS Alguns de nós que escrevemos este livro somos chilenos, ou seja, filhos de um país que foi fundado, como tal, em uma revolução que compreendeu um levante contra o domínio espanhol, no início do século XIX. Essa revolta ocorreu quase simultaneamente em todo o continente americano. Naquela época, a Espanha havia caído sob o domínio do império francês liderado por Napoleão, que colocou seu irmão, José Bonaparte, para governar a Espanha, nomeando-o José I. Nesse contexto, alguns dos homens mais poderosos das colônias americanas decidiram que aquela era uma oportunidade para se livrarem da pressão econômica imposta sobre eles pelas regras do intercâmbio comercial imposto pela Espanha. No caso do Chile, o Cabildo Abierto de 1810 tomou a forma de declaração de lealdade ao rei Fernando VII, prisioneiro de Napoleão. E nesse ato, que desencadeou uma guerra, nasceu essa história que chamamos de Chile. Enquanto isso, uma parte da Espanha permanecia não ocupada e lutava ao lado de Portugal contra os franceses, em uma guerra que custava milhares de vidas. Podemos dizer que, assim como os gestos ou as palavras, as histórias fluem por linhagens familiares e redes de relacionamento entre pessoas que formam a mesma comunidade. A interpretação do que significa ser cidadão ou cidadã para os chilenos, argentinos ou espanhóis, a história que cada pessoa conta sobre sua própria identidade nacional é algo que herdamos primeiro de nossos pais e mães, e que depois forjamos em nosso contato com a escola e com outros espaços comunitários que frequentamos. São coisas que não escolhemos. Ao nascer, somos lançados nelas. Coisas como nossa religião (ou a aversão a ela), nossa língua, nossa nacionalidade e um grande número de crenças aparecem dessa forma em nosso tempo de vida. Elas vêm com o ambiente familiar e social que nos coube.

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Coletivamente, o que somos é resultado de nosso passado comum, ou seja, da multiplicidade de gestos, palavras e ideias do passado que se manifestam em cada um ao interagirmos e convivermos. Se não honramos esse passado coletivo, estamos olhando com desdém para quem somos e, ao sonhar com um futuro comum, a visão que teremos dele será fraca, parcial, inautêntica e insustentável.


I. HONRANDO O PASSADO

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I I. DA N Ç A N D O N O PRESENTE


II. DANÇANDO NO PRESENTE

HACER SALUD Assim como o passado, o presente é, em parte, uma coleção de histórias. Mas essas histórias se referem ao que estamos vivenciando, aos desafios que enfrentamos, aos problemas que temos, às oportunidades e ameaças que vemos diante de nós, e falam sobre quem estamos nos tornando ao lidar com isso. O COVID-19 nos oferece lições importantes sobre nossa capacidade de interpretar o presente (afinal, é apenas a maior pandemia global do último século!). Pense nisso: apesar das evidências abundantes e avassaladoras sobre o vírus, suas rotas de contágio e suas possíveis consequências, existem movimentos negacionistas, principalmente ilustrados por teorias conspiratórias, que argumentam que existem poderes ocultos por trás das notícias, orquestrando uma grande falácia global que envolveria governos, ministérios da saúde e profissionais da saúde em quase todos os países. Há também grandes grupos de pessoas que argumentam que, embora o vírus exista, ele não é de fato tão perigoso para a saúde, exceto se você já estiver muito doente e, nesse caso, que os riscos seriam mais ou menos os mesmos de se pegar uma gripe forte. Da mesma forma, apesar de reconhecer a existência do vírus e seu possível perigo, há quem argumente que o impacto que a manutenção de quarentenas e a paralisação das economias terá sobre toda a população mundial será muito pior do que a taxa de mortalidade que o vírus apresenta atualmente, mesmo caso maior parte da população se contagie. O maior número de mortes por COVID-19 ocorre consistentemente nos dois países cujos líderes se esforçaram para negar a importância da crise: Estados Unidos e Brasil7.

a partir desses fatos, desses números e dessas coisas observáveis. Se os dados bastassem, o COVID-19 haveria apenas uma resposta possível, e adotar acordos sobre como segui talvez fosse mais fácil. Cada um dos posicionamentos que descrevemos é uma história diferente, que reflete uma forma de ver as consequências que uma determinada forma de agir terá no futuro imediato e no longo prazo, tanto para aqueles que aderem a eles quanto para aqueles que não o fazem. Isso faz parte de um fenômeno natural. Uma vez que todos podemos interpretar o que observamos e construir histórias diferentes com isso, é possível ter tantas histórias diferentes quanto o número de observadores do mesmo fenômeno. O que fazer então? Quanto ao presente, a épica que estamos construindo deve incorporar uma história que nos permita produzir um alinhamento em grande escala em relação ao futuro para o qual queremos contribuir, mas ao mesmo tempo que deixe espaço para que o maior número possível de iniciativas e esforços sejam acomodados. Por exemplo, continuando com o exemplo da COVID, pode- ríamos concordar que é praticamente impossív e l sustentar a economia de um país operando minimamente por dois anos, sem sofrer com isso grandes perdas humanas, além de perdas econômicas. Afinal, a economia não vive em um plano

Isso quer dizer que há muitas tomadas de posição frente a um desafio que, pela primeira vez, é visível e categórico para praticamente todas as nossas espécies, e para o qual há uma abundância de dados como raramente houve sobre qualquer assunto. Mas a questão, como já dissemos, não são os números, nem os fatos, nem as coisas observáveis. O verdadeiro ponto real são as histórias que elaboramos

De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), até a data de publicação deste caderno, os Estados Unidos registram mais de 585 mil mortes, e o Brasil, mais de 450 mil, sendo os dois países os mais afetados em termos absolutos. Esses dados são atualizados diariamente no site www.covid19.who.int.

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II. DANÇANDO NO PRESENTE

do universo diferente do das pessoas: a economia é um dos espaços onde as pessoas interagem e é onde se cria a possibilidade de termos os recursos necessários para viver e produzir. Mas, ao mesmo tempo que concordamos com isso, poderíamos também concordar que é necessário que, até que haja uma vacina, devemos minimizar a possibilidade de infecções, especialmente entre aqueles que fazem parte da população de maior risco. Se a história que contamos a nós mesmos sobre o presente – um presente onde o COVID-19 é uma grande ameaça – diz que temos que nos alinhar em torno de uma rápida saída desta pandemia, então devemos tirar proveito de todas as forças à nossa disposição para promover iniciativas que contribuam para esse objetivo. E podemos discordar sobre qual é a melhor iniciativa ou qual é o melhor conjunto de iniciativas para lidar com a ameaça. No entanto, se um grupo de cientistas direcionam seus esforços para encontrar a vacina enquanto outro direciona suas pesquisas para melhorar a eficácia dos tratamentos e medicamentos para prevenir os piores resultados para qualquer paciente infectado, ambos podem colaborar e coexistir. Da mesma forma, uma associação civil de pacientes com doenças crônicas pode se organizar para obter itens como máscaras e protetores faciais para distribuir para suas as famílias, ou ensinar outras práticas de autocuidado que aprenderam ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, um grupo de estudantes de engenharia pode projetar e fabricar respiradores artificiais para contribuir com o esforço dos hospitais, enquanto os profissionais de saúde aprimoram seus protocolos e estabelecem sistemas de turnos para garantir que os recursos disponíveis para cuidar dos pacientes sejam otimizados. Poderíamos continuar com muitas páginas de exemplos. Tudo o que dissemos nessas linhas são iniciativas reais que estão ocorrendo neste momento, lideradas por pessoas que compartilham uma história mais ou menos semelhante em relação ao presente e ao COVID-19. Mas, no presente, outras coisas emergem e são cultivadas, tão importantes quanto as histórias que nos movem para a ação: as práticas. Elas andam de mãos dadas com as histórias, que muitas vezes as determinam, mas operam em outro plano. Trata-se das

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coisas que fazemos, de forma recorrente, para dar força ao que interpretamos como importante de ser alcançado em um determinado momento. Usaremos um exemplo real sobre o COVID-19 para ilustrá-lo. O Chile celebra os feriados nacionais em setembro, uma comemoração questionável para o dia em que nosso país declarou sua independência da Espanha... para apoiar o rei. Normalmente, os chilenos comemoram se reunindo com a família e amigos, comendo carne assada na grelha com empanadas8 e vinho. Também se costuma dançar cueca, que é a dança típica nacional, e muitos outros ritmos que, embora não façam parte das nossas raízes folclóricas, são incorporados aos ritos habituais de celebração dessas datas. Em 2020, no contexto da pandemia, em uma medida bastante polêmica, o governo flexibilizou as condições de quarentena em grande parte do país, mantendo algumas restrições importantes, a fim de permitir que muitas famílias façam uma pausa e comemorem juntas. Os detalhes curiosos dessa medida não deixaram de ser anedóticos e por alguns dias foram assunto das redes sociais. De acordo com a opinião de alguns, as regras para reuniões eram tão confusas, que não havia como entendê-las. Mas o mais relevante era o risco aceito de que, quando os grupos que haviam permanecidos separados durante a quarentena se reunissem, a taxa de infecções poderia disparar. Em resposta a esse medo, surgiu a campanha Hagamos salud promovida pelo Nuevo Pacto Social, uma rede de organizações solidárias que reúne boa parte do universo das ONGs e organizações da sociedade civil do país. O nome é um jogo de palavras. Em chileno (porque devemos confessar que, a rigor, não falamos espanhol) "hacer salud" significa fazer um brinde. “Hagamos salud por los novios”, pode ser ouvido em qualquer festa de casamento entre nossos compatriotas, com o sentido de fazer um brinde para os noivos. Mas, ao mesmo tempo, "hacer salud" soa como um slogan contra o contágio, certo? Bem, esse jogo de palavras fazia parte do jogo. Uma campanha que tem todos os tipos de ilustrações para o nosso exemplo. Todas as pessoas que trabalha-

Uma empanada é uma massa de farinha de trigo recheada com uma mistura de carne, cebola, azeitonas e ovo. 37


II. DANÇANDO NO PRESENTE

ram nela, desde aquelas que sugeriram sua criação até a agência de publicidade, as produtoras e seus profissionais, trabalharam gratuitamente para a campanha. E em que consistia? Em vídeos onde um protagonista real propõe "hagamos salud", enfatizando o autocuidado. Uma enfermeira, uma mulher que cozinha para um refeitório comunitário (uma sala de jantar solidária onde quem não tem comida pode comer) e um barbeiro que perdeu o emprego aparecem nos vídeos falando com o espectador. Todos abrem dizendo: "yo también quiero hacer salud" (Eu também quero "hacer salud"), e depois dizem algo relacionado à sua própria história de pandemia, incentivando o autocuidado. Os três também dizem: "que se acabe la cuarentena no significa que se acabe la pandemia" (o fim da quarentena não significa o fim da pandemia), para então encerrar com outra frase que se repete nos três vídeos: "Hagamos salud, pero salud en serio y ahora" ("Façamos um brinde/ saúde, mas saúde para valer e agora"). O que vemos nesses vídeos? Pessoas reais nos questionando com autenticidade a partir de sua experiência na crise sanitária. Pessoas que podem mostrar com seu trabalho, empenho e sofrimento, a importância de cuidarmos uns dos outros. E, ao mesmo tempo, uma chamada à ação do tipo "por favor, tome cuidado", ou "faça saúde cuidando de si mesmo". Ou seja, pessoas que propõem uma história sobre o presente que clamam pelo cultivo de práticas que não são ditas explicitamente, mas que aparecem sugeridas nessas frases. A enfermeira diz isso colocando a máscara. Recorrendo a nossas distinções, onde está a história sobre o presente? Nas três frases que se repetem nos três vídeos. Por sua vez, as práticas aparecem sob o rótulo de "se cuidar", que significa usar máscara, lavar as mãos, manter distância social, evitar encontros com outras pessoas, e assim por diante. O passado nos dá raízes comuns, mas é no presente que nos é oferecida a possibilidade de agir.

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II. DANÇANDO NO PRESENTE

UMA PONTE SOBRE UMA XÍCARA DE CHÁ Voltemos por um momento aos gestos de Nelson Mandela. Na cena em que ele se encontra com o General Viljoen, Mandela serve uma xícara de chá ao seu interlocutor, dizendo: “Chá é a melhor coisa que os ingleses deixaram para nós."9 Essa frase e o próprio chá, como símbolo, fazem uma alusão ao passado comum. Mandela sabe que Viljoen é um homem branco que vem de uma tradição familiar e de uma formação social e cultural da qual um governante negro deve naturalmente desconfiar. Para encurtar essa distância, ele propõe nesse simples gesto a interpretação de que há um elemento comum na história de ambos: o chá. E, por trás do chá, os ingleses.

Com esse gesto, Mandela reconstrói o passado comum, faz uma ponte ao presente e, assim, torna possível um futuro que não era possível até aquela xícara de chá.

No filme Invictus, foi incluída essa cena, com essa frase, mas em vez de Viljoen, quem a fala é o capitão do time de rúgbi, François Pienaar. A cena original está relatada no livro Fator humano.

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III. CONSTRUINDO O FUTURO


III. CONSTRUINDO O FUTURO

PROFECIAS E PARADOXOS Édipo é o protagonista de uma das mais famosas histórias da mitologia grega. Segundo ela, Édipo era filho de Laio, rei de Tebas, e de sua esposa, Jocasta. Mas o oráculo de Delfos havia anunciado ao rei que, se ele tivesse um filho, esse filho o mataria e se casaria com sua esposa, de modo que ele decidiu abandonar a criança, certo que ela morreria. Mas o pequeno Édipo não morreu. Ele foi acolhido por alguns pastores e entregue à custódia dos reis de Corinto, que o criaram como se fosse seu próprio filho. Já um jovem rapaz, Édipo visitou o oráculo de Delfos, que repetiu para ele a profecia que havia dito a Laio: que ele assassinaria seu pai e se casaria com sua mãe. Mas como Édipo pensava que seus verdadeiros pais eram os reis de Corintos, ele fugiu da cidade decidido a não voltar. No caminho, conheceu seu verdadeiro pai, mas não o reconheceu e, em uma discussão, assassinou-o, sem saber, além disso, que era o rei de Tebas. Em seguida, viajou para aquela cidade, onde acabou se casando com sua mãe, que também não conhecia, cumprindo assim plenamente a profecia do oráculo. O interessante sobre essa história é que o gatilho da tragédia de Édipo parece ser o oráculo, que instala em seus protagonistas uma visão de futuro a respeito da qual cada um empreende ações que acabam por resultar naquele outro futuro que desejam evitar a todo custo. Ninguém pode prever o futuro, mas ele é moldado pelas histórias que contamos a nós mesmos sobre ele, individual e coletivamente. Aqui, novamente, podemos recorrer a uma ilustração de Yuval Harari. Entre os cenários que o autor imagina, a incidência da tecnologia nas possibilidades da humanidade são imensas, como nunca antes na história. Não apenas será verdade que os avanços da medicina irão prolongar nossas vidas, diz ele, mas também será possível combinar nossa vida orgânica com extensões ou aprimoramentos resultantes tanto da cibernética quanto da genética. Ou seja, será possível pensar que uma pessoa que perdeu um braço pode ter braço um biônico – para chamá-lo de alguma forma – mas não será mais apenas algo que substitua o membro perdido, e sim talvez algo melhor. Além disso, será possível pensar que o corpo de uma pessoa pode ser reconfigurado para ter capacidades que o nosso

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hoje não tem, ressalta. Por sua vez, a genética permitiria escolher características e qualidades que otimizariam as capacidades dos futuros humanos para determinados fins. Essas tecnologias já existem, assegura ele, e para ilustrar conta como em alguns laboratórios foi possível modificar a genética de camundongos para produzir seus próprios espécimes extremamente inteligentes ou extremamente corajosos. Mas as coisas não param por aí: estamos avançando rumo à possibilidade de criar vida, e não apenas vida orgânica, mas tipos de vida que, combinando o orgânico e o cibernético, podem dispor de inteligência artificial autônoma em relação à nossa espécie. Quando isso acontecer, pode ser que aqueles que governam a Terra sejam, a rigor, seres de uma espécie diferente da nossa, pelo menos na forma como a entendemos hoje. Mas como já dissemos, o futuro se configura a partir das histórias que contamos sobre ele, ou seja: é possível que Harari, com sua história, não esteja apenas antecipando alguns dos cenários possíveis, mas também contribuindo para que eles ocorram. No final, uma coisa é a tecnologia dispor de certas possibilidades, e outra bem diferente é as sociedades adotarem essas possibilidades e transformá-las nas práticas e padrões que governam o modo como vivemos.

Com isso não queremos dizer, de modo algum, que exista algum futuro predefinido, ou que acreditemos em qualquer hipótese específica sobre as próximas décadas da humanidade. Pelo contrário, sustentamos que o futuro não existe. Não há um futuro determinístico único em direção ao qual estamos avançando. O que existe é o que vai emergindo, momento a momento, das histórias que contamos a nós mesmos sobre o futuro.


III. CONSTRUINDO O FUTURO

E O QUE ACONTECEU COM A LUA? Considere por um momento a corrida espacial durante o governo Kennedy, alimentada pela preocupação americana em competir com os soviéticos para se contrapor à imagem pública de superioridade tecnológica que os soviéticos haviam adquirido graças aos seus avanços na exploração espacial. Essa competição acabou mandando homens para a lua. Um imenso esforço que demandou milhões e milhões de dólares, só fazia sentido no contexto de uma narrativa sobre o futuro, que buscava evitar o perigo percebido pelos americanos em virtude do poder soviético. A interpretação de que era um componente crítico nesse novo tipo de guerra, onde literalmente tudo estava em jogo, e as histórias de como vencê-la, moldaram um futuro em que era necessário que os Estados Unidos acordassem e canalizassem as capacidades humanas disponíveis entre seus habitantes para explorar os horizontes além de nosso próprio planeta. Mas o homem nunca voltou à Lua, e a corrida espacial limitou-se ao envio de pequenos robôs para explorar lugares mais remotos e inóspitos, como a superfície de Marte. A grande história que deu vida aos esforços da corrida espacial desapareceu junto com a União Soviética e com o fim da Guerra Fria.

Em relação ao que é relevante para este caderno, o que temos que ver é a maneira como as histórias que articulamos sobre o futuro podem convocar outras pessoas a colaborar conosco e entre si na construção de um futuro que seja atraente para todos.

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III. CONSTRUINDO O FUTURO

UM FUTURO QUE CONVOQUE A TODOS Para concluir nosso exemplo de Mandela, eis a história contada no filme Invictus, de Clint Eastwood, sobre o que Mandela faz para garantir que a Copa do Mundo de Rúgbi seja realizada na África do Sul durante seu mandato. O recém-eleito presidente da África do Sul transformou o rúgbi em símbolo da unidade nacional, construindo o "nós" de que país precisava. John Carlin conta em O fator humano alguns detalhes desse processo. Lembremos que Mandela havia chegado à presidência como resultado de um processo político iniciado anos antes, desde sua prisão, onde a balança de poder vinha se inclinando a favor da maioria negra do país. Esse processo foi uma longa negociação, por meio da qual o famoso político havia oferecido à minoria branca que estava no poder um caminho para um estado das coisas que aliviasse a tensão no país, ao desmilitarizar o conflito interno. Uma vez eleito presidente, começou a construir uma identidade nacional que incluísse negros e brancos. Se olharmos mais de perto a política sul-africana da época, descobriríamos que as coisas eram muito mais complexas, porque nem todos os brancos, nem todos os negros, eram a mesma coisa. Havia importantes nuances históricas e étnicas. Um país composto por uma miríade de etnias de diversas cores de pele e origens culturais. Mas, por enquanto, podemos abstrair disso para examinar o processo mais geral.

Lá estava Mandela, começando a liderar um país irreconciliavelmente dividido por séculos de segregação racial, política colonial e cicatrizes das guerras dos Bôeres, entre outras. Assim, a população branca sucumbiu ao medo de uma vingança negra que reverberava com cada vez mais força na mídia, nas manifestações e nos discursos de

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alguns políticos. E, por outro lado, grande parte da população negra foi seduzida justamente pelas tentações capciosas da vingança, embora isso nem sempre significasse ações violentas. Um desafio complexo, sem dúvida. Em tal situação, o que pode ser feito? Como encontrar os símbolos, as histórias, os heróis que dão forma a um único "nós"? E o que seria esse "nós"? Lembre-se de que a resposta geralmente é encontrada vasculhando o passado. Mas o que fazer quando, aparentemente, o passado só oferece oportunidades para ódio e vingança? Para Mandela, o "nós" era a África do Sul democrática, onde deveria haver espaço para todas e todos. Mas não bastava dizer isso. Na verdade, ele já havia dito isso em seus discursos. Não era suficiente porque sentir-se incluído, ou sentir-se chamado a construir com os outros não é uma questão ra-


III. CONSTRUINDO O FUTURO

cional. Um bom motivo não é suficiente para acabar com o medo. Nem com o ódio. De modo mais geral, não podemos acessar a emoção por meio da razão. Temos que conversar sobre isso, que é o cerne da questão, mas primeiro precisamos terminar a história de Mandela e do rúgbi, o que nos ajudará a entender melhor. Mandela notou o amor dos africânderes pelo rúgbi durante seus 27 anos na prisão, por meio da observação e da amizade que desenvolveu com alguns de seus carcereiros. O rúgbi foi para eles o que o futebol é para muitos sul-americanos e sul-americanas. Uma fonte de paixão e inspiração, cuja expressão máxima era a seleção nacional: os Springboks. Por outro lado, o país havia sido impedido de participar nos últimos campeonatos mundiais dessa modalidade, excluído pela comunidade internacional devido às políticas segregacionistas do apartheid. Portanto, havia uma pista: a população branca amava o rúgbi, mas durante anos eles não puderam participar das grandes ligas. O que tudo isso tem a ver com o "nós" sul-africano? A princípio, nada. A genialidade de Mandela é que ele viu nisso uma oportunidade que, para se materializar, exigia uma mudança cultural. A chave está no amor da população branca por esse esporte. O amor daquela população derrotada que, mesmo sendo minoria, tem poder militar e econômico. Se esse amor se tornasse um amor unificador para todo o país, as coisas seriam muito diferentes, certo? Mas justamente porque a população branca amava o rúgbi, a população negra o odiava. Afinal, era o amor do inimigo.

África do Sul, por ter se tornado democrática. Mandela converteu o evento esportivo em uma questão de prioridade estratégica nacional. Além de estádios construídos e reformados e cidades preparadas para receber milhares de visitantes, algo muito mais importante foi feito: atrair a população negra. O presidente percebeu isso antes de qualquer outra pessoa: supomos que ele tenha imaginado estádios cheios de sul-africanas e sul-africanos de todas as cores torcendo fervorosamente pela equipe de rúgbi sul-africana. Ele imaginou que se esse fervor fosse acompanhado de vitórias, e não de derrotas heroicas, um novo orgulho surgiria, unificador, para contribuir com a sensação de "fazer parte" de uma nova África do Sul. E, em busca dessa visão, ele lançou uma campanha nacional de rúgbi. O filme de Eastwood omite uma parte importante da história, ou melhor, a resume de uma forma que torna impossível compreender a profundidade do esforço do governo. Referimo-nos à campanha que fez para mobilizar a adoção do rúgbi como esporte preferido pela população que não era branca. Trata-se de um esforço que por meses colocou equipes de atletas e educadores para realizarem aulas e treinos de rúgbi com crianças da maior parte da população negra do país, chegando a cada canto, a cada bairro, a cada escola, ensinando as regras e

Só que, segundo Mandela, a população branca não era mais o inimigo. A África do Sul conseguiu o direito de sediar o Campeonato Mundial de Rúgbi de 1995, firmando um marco na história da modalidade, por ser a primeira vez que isso era realizado em um único país. Era como se o mundo desse boas vindas à população branca da

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III. CONSTRUINDO O FUTURO

fornecendo o equipamento necessário para que meninos e meninas aprendessem a jogar rúgbi. A campanha conquistou os corações das famílias dessas crianças, que se apaixonaram pelo esporte, de forma que quando o campeonato mundial finalmente aconteceu, todos entenderam do que se tratava o jogo e, para todos, aquela seleção nacional de rúgbi era a seleção deles. Isso provavelmente aconteceu sobretudo durante o campeonato, que foi amplamente transmitido por todos os meios de comunicação à disposição no país naquele momento. Provavelmente também a mensagem de "um time, um país" foi uma das mensagens épicas mais transcendentes da história política do século XX. Por outro lado, Mandela estava encarregado de apoiar, material e psicologicamente, os Springboks, para dar a eles a chance de vencer a final, o que fizeram, em um dos eventos esportivos de maior conteúdo político da história, contra o grande favorito: os All Blacks da Nova Zelândia. A genialidade dessa campanha, a nosso ver, consiste em ter tirado um símbolo do coração do mundo africânder e tê-lo tornado o centro do novo "nós" que agora incluía a todos. E para provar isso, ele conseguiu fazer com que o time, geralmente composto apenas por atletas brancos, incluísse um jogador negro. Onde está a épica aqui? Em uma narrativa que equipara a adesão a um time e suas façanhas com a adesão a um projeto de país e suas façanhas. Um time, um país. A épica é esse relato: a "história" por trás da identificação com um "nós", que nesse caso é uma nova África do Sul. E como toda boa história, há heróis e heroínas, há objetivos, e há dificuldades que precisam ser superadas. Um relato que te convida a fazer parte, ou seja, onde o protagonismo tem lugar reservado para cada um dos convocados e convocados. Poderia haver uma visão mais atraente de futuro para aqueles que estão atolados nas misérias do ódio racial por séculos?

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O que é relevante nessa história é que Mandela percebeu que o passado comum da população negra e da população branca da África do Sul oferecia poucas interpretações livres de ódio e ressentimento, e que um ponto de inflexão era necessário para construir uma nova identidade nacional. Um símbolo unificador que colocasse todos no mesmo caminho, diante de um “inimigo” comum. Essa nova identidade nacional teve que ser construída de tal forma que todos pudessem aderir a ela. Por que ele escolheu o rúgbi em vez do futebol, por exemplo? É muito provável que você tenha avaliado e visto que transformar o futebol em um esporte nacional significava mudar a predileção da população branca pelo rúgbi e que, em vez disso, transformar o rúgbi em um esporte nacional significava mudar a predileção da população negra pelo futebol. Talvez a escolha do rúgbi tenha sido uma decisão tática. Afinal, Mandela era o líder da população negra, não da branca. Ele havia sido eleito presidente por votação em massa da população negra da África do Sul, que representava uma grande porcentagem de todo o país. Portanto, parecia mais fácil conduzir aquela população negra na inflexão necessária para se aproximar da população branca do que o contrário. Provavelmente o protagonismo do próprio Mandela em cada uma das instâncias públicas relativas ao mundial de rúgbi também foi decisivo para alcançar o enorme apego do povo sul-africano ao esporte da população branca. O certo é que eles ganharam o campeonato mundial contra todas as probabilidades e, por trás dessa conquista, um país inteiro se uniu para comemorar a mesma vitória. Juntos, pela primeira vez.

Todos e todas nós, em menor ou maior grau, compartilhamos o desafio de Mandela: articular uma visão do futuro que convoque as vontades e a capacidade de ação do maior número possível de stakeholders. No Cida-


III. CONSTRUINDO O FUTURO

des+B, isso implica articular uma visão de futuro que convoque o maior número de atores e atoras da cidade a colaborar para promover a pauta dos ODS. O objetivo de morar em uma cidade mais próspera, inclusiva, sustentável e gentil só pode ser alcançado se formos capazes de uma mudança cultural massiva. Esse chamado para participar da façanha de uma cidade inteira exige a construção de um sonho que emociona e envolve boa parte dos cidadãos.

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IV. CONSTRUINDO A ÉPICA


IV. CONSTRUINDO A ÉPICA

QUE TIPO DE HISTÓRIA É A ÉPICA? Aristóteles dizia que a tragédia descreve o ser humano tal como ele é. E que comédia o descreve pior do que é. Que a epopeia o descreve melhor do que é. Para que serve este último um gênero teatral? Resposta rápida: para inspirar. A épica, no mundo grego, eram as histórias de heróis, destinadas a inspirar uma maneira melhor de ser. Em As Aventuras do Barão Munchausen, o diretor Terry Gilliam faz uma piada sobre isso. A ação se passa em uma cidade europeia sitiada pelos turcos em algum momento do século 18. Um encontro entre o prefeito Horatio Jackson e o alto comando militar é interrompido por dois oficiais, que trazem consigo um terceiro, e o apresentam como exemplo de heroísmo. Após um breve diálogo, fica claro que em seu último feito, o Oficial Heróico (assim chamado no roteiro, e que no filme é representado por Sting, o famoso músico) destruiu seis canhões inimigos e libertou dez de seus companheiros, prisioneiros do exército turco. O prefeito Jackson comenta que já ouviu falar dele e que sabe que não é a primeira vez que arrisca heroicamente a vida. E então, quase na mesma frase, ele ordena que seja executado. Enquanto os soldados saem, Jackson explica aos outros participantes da reunião, que o encaram perplexos: “Esse tipo de comportamento é desmoralizante para soldados comuns e cidadãos que tentam levar uma vida normal, simples e não excepcional. Acho que as coisas já são difíceis o suficiente sem essas pessoas emotivas balançando o barco"10. Jackson é um burocrata. Ele vê perigo no heroísmo porque, para ele, os heróis não fazem com que outros os imitem ou os sigam, mas, ao contrário, eles os mergulham na compreensão angustiada de uma mediocridade da qual não podem escapar. Mas, ao contrário, os gregos pareciam buscar nas histórias épicas justamente a inspiração, ou seja, a visão do melhor que podemos nos tornar. E não só eles. A história humana está cheia de exem-

No original, em inglês: This sort of behavior is demoralizing for the ordinary soldiers and citizens who are trying to lead normal, simple, unexceptional lives. I think things are difficult enough as it is without these emotional people rocking the boat.

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plos onde algum general ou estadista mostra deliberadamente os heróis e heroínas como o norte a ser seguido. Os propagandistas políticos entendem isso bem. No meio da Segunda Guerra Mundial, com os alemães avançando em direção a Moscou, um Stalin à beira da catástrofe lança um discurso surpreendente para a época, onde chamou os russos de "irmãos" e propôs como exemplo seguir o de Alexandre Nevskí, uma figura militar histórica que havia lutado contra os cavaleiros teutônicos. O interessante é que até aquele dia, Nevskí e outros heróis militares da era czarista haviam sido banidos do discurso oficial, justamente porque haviam sido símbolos do poder czarista. Porque isso foi feito? Porque Stalin e seus assessores entenderam que era necessário convocar também as forças daqueles que resistiram ao regime, mostrando um inimigo comum e deixando em segundo plano as coisas que até então os dividiam. É claro que Stalin não é exatamente um exemplo de colaboração ou cuidado com os cidadãos, mas essa história mostra nele uma sensibilidade à épica que nos permite ilustrar uma parte do fenômeno.


IV. CONSTRUINDO A ÉPICA

SE PUDÉSSEMOS "DECOMPOR" A NARRATIVA DA ÉPICA Então, estamos dizendo que precisamos de heróis ou heroínas e façanhas nas cidades? Não exatamente. Quando falamos de épica, nos referimos a essa visão que nos diz que um futuro comum é possível e que vale a pena trabalhar por ele: é um sonho coletivo que nos inspira e nos une. Lembremo-nos de que, no caderno anterior, delineamos a relação entre a épica e o "nós". Nesse contexto, quando o que procuramos é articular um conjunto de histórias que mobilizem os cidadãos para a ação em busca de grandes objetivos comuns, a épica tem que propor um “nós” que seja melhor do que o que temos disponível até agora; um nós" que nos inclua a todos e todas, sem um "eles" ou um "elas" que nos segregue e nos separe. Um "nós" ao qual possamos aspirar. O "nós" de Mandela era um país unido, sem discriminação racial. O "nós" de Hagamos salud é uma cidadania que se preocupa em deter a epidemia.

A épica inclui uma narrativa que propõe de forma articulada uma nova leitura do “nós”, que gera adesão, pertencimento e uma vontade de agir que assume a responsabilidade pelos desafios que o presente nos oferece. Essa narrativa é composta por: 1.

Uma interpretação convincente do passado, onde se constró esse "nós", que inclui: histórias, marcos importantes, exemplos a serem seguidos, símbolos, rituais, práticas e instituições.

2.

A articulação de quem somos no presente e os desafios que enfrentamos. Esse "quem estamos sendo" é construído mostrando aos stakeholders atuais, que são os que agem diante dos desafios, com suas histórias, muitas vezes em desenvolvimento. Inclui também as declarações e coordenações que determinam a forma como os cidadãos são convocados a participar.

3.

A visão de um futuro atrativo e convocatório, onde "nós" somos melhores do que somos agora, e nossos desafios atuais foram superados. Essa visão também tem suas histórias, que se combinam com as ambições comuns aos que estão participando e sendo convocadas e convocados, bem como com os compromissos que constituem esse futuro.

Mas, como já dissemos, a épica não termina com as histórias. Ela incorpora práticas para recompensar socialmente aqueles que incorporam os valores centrais e as interpretações da rede das histórias, e que o fazem de uma forma que, por sua vez, incorpora o modo de ser que aspiramos coletivamente. Pense no rúgbi da África do Sul. Pense na máscara da enfermeira (que representa uma das heroínas de uma épica de cuidado para um país inteiro). Pense no lenço feminista que centenas de milhares de mulheres de todo o mundo usavam no pescoço quando apareceram dançando nas ruas e cantando: “el patriarcado es un juez” (o patriarcado é um juiz). 11

Esta frase é o primeiro verso da música Un violador en tu camino (Um estuprador no seu caminho, em tradução livre), composta no Chile pelo coletivo Las Tesis. Ela se tornou um hino feminista que incluía uma performance e foi aprendida e executada por milhões de mulheres em todo o mundo entre o final de 2019 e o início de 2020.

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IV. CONSTRUINDO A ÉPICA

O MANIFESTO DO CIDADES+B Um manifesto é uma boa maneira de expressar a épica. Ele não dá conta de tudo o que ela representa, porque a épica inclui todos os outros elementos que vimos, mas permite dar-lhe expressão poética. Compartilhamos aqui o manifesto que criamos para o Cidades+B:

MANIFESTO Acreditamos que o caminho que estamos percorrendo não é sustentável e que, enquanto espécie, estamos provavelmente enfrentando um dos nossos maiores desafios na história. Mas também somos uma daquelas pessoas que acreditam que ainda há tempo para mudar de rumo. Nossas preocupações vão desde a crise climática, a igualdade racial e de gênero, a poluição nos oceanos, o desmatamento e a justiça, até a pobreza e a fome. Não inventamos esses desafios, eles estão incluídos nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, assinados por 193 países. Estamos convencidos e convencidas de que, se continuarmos no ritmo atual, não seremos capazes de resolver esses problemas a tempo. A abordagem atual, de esperar que governos e organizações internacionais os resolvam, não é suficiente. Não podemos, enquanto cidadãos, apenas sentar e esperar que os outros nos salvem. Todos e todas devemos participar e nos comprometer totalmente com a ação se quisermos atingir esses objetivos. Acreditamos que não basta mudar individualmente. O que realmente precisamos é de uma mudança sistêmica, de uma nova forma de pertencer à sociedade e ao nosso planeta, com novas responsabilidades. Para fazer parte da solução, cada pessoa deve primeiro entender que, no momento presente, também somos parte do problema.

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IV. CONSTRUINDO A ÉPICA

Acreditamos no que chamamos de “colaboração extrema”, em trabalharmos juntos de uma forma que não exclua ninguém e acreditamos que não precisamos concordar em tudo para isso. Nós temos a tecnologia para colaborar enquanto espécie pela primeira vez na história, e isso é urgentemente necessário. Acreditamos que seja cultural, não apenas operacional. É mais do que outra maneira de fazer as coisas; é uma maneira completamente diferente de estarmos juntas e juntos no mundo. Temos plena consciência da importância da cidade moderna nas sociedades humanas. As cidades são o espaço e o estopim para uma transformação profunda. Aceitamos que existem outras maneiras de abordar isso, mas nossa cidade é o espaço onde escolhemos trabalhar porque acreditamos que são nelas onde podemos nos comprometer e onde o caminho para a ação parece mais próximo para o cidadão comum. Argumentamos que a mudança cultural que buscamos exigirá uma nova forma de compreender as nossas instituições públicas, de criar e administrar as nossas empresas privadas e de exercer o nosso papel de cidadãos. Devemos fazer isso de forma que todos sejamos responsáveis por nossos impactos sociais e ambientais. Esses novos caminhos já estão surgindo e nosso desafio é acelerar esse processo. A esperança das gerações futuras depende do que fazemos hoje. Nossa responsabilidade é garantir que essas gerações também tenham a oportunidade de viver uma vida feliz e gratificante. Não podemos nos render. Nosso destino está nas mãos de nossa geração e de mais ninguém.

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HONRANDO O PASSADO

DANÇANDO NO PRESENTE


V. O CANVAS DA ÉPICA

CONSTRUINDO O FUTURO


V. O CANVAS DA ÉPICA

Neste capítulo, mostramos uma ferramenta prática que desenvolvemos em nossos anos de caminhada promovendo a colaboração extrema e aprendendo com ela. Chamamos de CANVAS da épica e é a forma de gerar o conteúdo para nutrir o instrumento apresentado no caderno 1. Um canvas é uma tela, ou seja, um espaço em branco que, a partir de certas perguntas, nos permite desenvolver os esboços da épica que precisamos cultivar para ter sucesso na convocação e mobilização dos indivíduos e grupos que constituem a comunidade cuja colaboração extrema buscamos.

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V. O CANVAS DA ÉPICA

Um detalhe sutil, mas importante, é entender que a épica não é algo que vamos desenvolver de uma vez e depois "usá-la". Lembremos que é um conjunto de narrativas e símbolos, práticas e rituais, interpretações e estados de espírito que, juntos, produzem um modo de agir coletivo. Mantê-la viva, isso é, atualizada e com poder de mobilização, é um trabalho permanente. O CANVAS da épica está estruturado, como é de se esperar, em torno das três dimensões temporais que vimos, cada uma com suas próprias definições.

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V. O CANVAS DA ÉPICA

1. O PASSADO No primeiro exercício, procuramos mostrar aos participantes algumas distinções básicas sobre o que trazer do passado como elemento para a épica. Fazemos isso mostrando um bom exemplo que seja conhecido pelos facilitadores, para que possam esclarecer qualquer dúvida que surja. Por se tratar de um workshop, e não de uma aula, é importante que essa primeira parte seja curta (não mais que dez ou quinze minutos). Os elementos constitutivos da dimensão do passado na épica são: • Histórias: Os relatos que, como vimos, nos permitem moldar um passado comum, que unifica e alinha as vontades em torno de um único "nós". • Heróis e heroínas: Os protagonistas das histórias que moldam o passado comum. Pessoas reais que viveram ou fizeram coisas extraordinárias, com quem podemos nos identificar e que podem nos inspirar. • Marcos: São momentos-chave que as histórias contam, em que há uma mudança relevante em uma ou mais variáveis consideradas essenciais para a comunidade. • Ritos: São atividades recorrentes que realizamos, que visam entusiasmar os participantes e os observadores, com uma carga simbólica associada às histórias que dão sentido ao passado. • Práticas: São atividades recorrentes que podemos observar, e que sem ter a carga emocional ou simbólica dos ritos, fazem parte do "modo de ser" que convocamos na nossa articulação do passado. • Instituições: São organizações, mas também grupos humanos e/ou conjuntos de ritos que dão sentido ao passado. Nem as histórias, nem os heróis ou heroínas precisam ser de tempos remotos. Uma história épica recente que mostre como uma pessoa superou a adversidade oferecendo-nos uma fonte de inspiração pode ser mais poderosa do que os feitos gloriosos de alguns heróis adormecidos nos livros de história de alguns séculos atrás.

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Tomando a história de Mandela como exemplo:

Histórias

Temos em comum o legado que os ingleses nos deixaram.

Heróis

Os jogadores de rúgbi.

Marcos

Não ter podido participar da última copa mundial de rúgbi. As guerras dos bôeres.

Ritos

Tomar chá.

Práticas

Jogar rúgbi.

Instituições

O governo nacional. O Exército. O time do Springboks.


V. O CANVAS DA ÉPICA

Para reunir esses elementos, após mostrarmos brevemente as distinções e um exemplo, fazemos um brainstorm com a seguinte questão: quais elementos do passado podemos destacar para nos conectar com nossas raízes e cultivar a gratidão e o orgulho de sermos quem somos, construindo o “nós” que procuramos mobilizar? Uma vez que os participantes e as participantes propõem suas ideias, como é de costume em um exercício de brainstorm, eles são agrupados para elencar as ideias que se repetem ou que sejam mais consensuais entre os participantes, até chegar a um conjunto de elementos que abordem cada uma das categorias indicadas (histórias, heróis, marcos, etc.). No caso de haver categorias sem respostas, pedimos aos participantes para propor elementos para aquela categoria específica, com uma pergunta do tipo: "E considerando os elementos que já vimos, que ritos poderíamos incluir?"

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V. O CANVAS DA ÉPICA

2. O PRESENTE Como no exercício anterior, oferecemos primeiro aos participantes distinções sobre o que olhar no presente, novamente usando um exemplo. O ideal é que o exemplo seja o mesmo, para que tenham uma ideia do mapa completo que precisam elaborar. Os elementos da dimensão presentes são: • Histórias: Ao contrário das histórias do passado, essas histórias procuram articular o presente e o desafio que ele nos coloca. • Lideranças: É a identificação de líderes-chave para o desafio. É uma peça muito importante do CANVAS porque permite acolher todas as lideranças que permitem mobilizar a comunidade. Deixar uma pessoa que exerce uma liderança importante fora do mapa pode ser tão prejudicial quanto trazer alguém que exerça liderança negativa e dar-lhe palanque. • Coordenações: É o registro dos acordos necessários para a realização de ações conjuntas entre diferentes pessoas e organizações. • Declarações: São "Atos de Fala"12 que alguém com autoridade suficiente (pode não ser uma "autoridade oficial") faz para determinar possíveis objetivos e cursos de ação.

Continuando com a história de Mandela:

Histórias

Em uma guerra civil, perderíamos todos. Se o Springboks vencer, todos venceremos.

Liderança

Mandela. O capitão do time de rúgbi. O General Viljoen.

Coordenações

Declarações

Coordenação com bairros para treinar as crianças. Coordenação com o resto do mundo para organizar o mundial. As cores das camisetas não serão alteradas. Ambos os hinos serão tocados nas partidas.

O exercício é facilitado de forma semelhante ao anterior. Uma vez que as distinções são apresentadas aos participantes, elas e eles são convidados a propor elementos do presente a serem destacados. A questão norteadora deve ser: "Quais partes do que estamos fazendo e o do que está acontecendo em nossa cidade é relevante destacar e colocar como elemento central, a fim de fortalecer o “nós” que queremos cultivar?” É necessário que haja respostas para cada categoria. Se houver tempo suficiente, pode-se colocar as perguntas uma a uma "que histórias do presente é relevante destacar? quais lideranças é relevante destacar?”. E assim por diante.

Chamamos "Atos de fala” a um conjunto de coisas que dizemos (mesmo em linguagem não verbal) e cujo objetivo básico é a coordenação com outras pessoas. A disciplina filosófica chamada "Hermenêutica Pragmática", liderada por Fernando Flores, estabelece uma taxonomia para esses gestos, em função da forma como eles estabelecem espaços de relacionamento e coordenação entre as pessoas. Neste texto, nos referimos a declarações. 12

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V. O CANVAS DA ÉPICA

3. O FUTURO Novamente começamos o exercício oferecendo aos participantes as distinções necessárias para articular coletivamente a visão que buscamos. Os elementos constituintes da dimensão futura são: • Histórias: São os relatos que dão vida à visão de futuro. • Ambições comuns: São articulações das ambições que, majoritariamente, todas e todos queremos para nossa comunidade. • Compromissos: São declarações que fazemos sobre o que realizamos juntos e as ações que tomaremos no futuro para expressar esse cuidado. Continuando a história de Mandela:

Histórias

É possível construir um país onde possamos viver juntos sem violência ou vingança. É possível que todos ganhem, não é um jogo de soma zero, ou seja, para uma parte do país ganhar não é necessário que a outra perca.

Ambições comuns

Coexistência pacífica. A justiça. Ganhar o mundial.

Compromissos Trabalhar juntos por isso.

Para realizar o exercício, uma vez apresentadas as distinções e visto o exemplo, trabalhamos com a pergunta: "Que elementos podem ser destacados para articular uma visão de futuro que possa convocar o maior número possível de stakeholders para sonhar com uma cidade mais inclusiva, mais participativa e que avance a agenda local dos ODS?". Idealmente, você pode trabalhar um por um em cada categoria.

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V. O CANVAS DA ÉPICA

4. PERTENCIMENTO Nesta última etapa, o “nós” que surgiu na conversa sobre passado, presente e futuro se articula numa mesma visão.

Os seguintes elementos, que devem ser desenvolvidos, manifestam o "nós" e podem incluir:

Neste ponto do trabalho, para a maioria dos participantes, uma ideia desse "nós" foi se relevando nos elementos decorrentes das questões anteriores. O que é necessário agora é dar-lhe expressão. Isso não é feito no mesmo workshop, mas pode ser abordado como parte do trabalho conjunto nos dias e semanas seguintes. O primeiro passo para isso é construir um manifesto, tarefa que pode ser confiada a um pequeno grupo de pessoas, a partir das contribuições recebidas no workshop. Sua estrutura desse se assemelhar a:

Arte •

• "Nós, que somos_ (passado) ____, que estamos fazendo __ (presente) ___, e que queremos alcançar _ (futuro) _____; nós, aqui presentes, estamos comprometidos com ___________ ". Essa primeira versão do manifesto será modificada ao longo do tempo, mas tê-la por escrito é um marco importante, pois dá expressão ao "nós" pela primeira vez, e serve de inspiração para as próximas etapas. O manifesto do Cidades+B, visto no Capítulo 5, é um exemplo disso.

Estética Logo Pagina de Internet Cores Símbolos Música Hinos Canções Poesia Peças publicitárias Relatos de heroínas e heróis

Marcos e ritos • Eventos de encontros cotidianos. Por exemplo, sessões de trabalho, reuniões de coordenação, etc. • Ações simbólicas, como a inauguração de um mural pintado, a recepção de novos participantes, ou a entrega de um selo de reconhecimento ou bóton. • Eventos de encontros especiais: celebrações, comemorações, etc. • Rituais cotidianos • Rituais em cerimônias Continuando com o exemplo de Mandela:

Nós

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Nós, sul-africanos, pertencemos a um mesmo país, independentemente da cor, língua ou religião, e queremos construir juntos o nosso futuro.


V. O CANVAS DA ÉPICA

5. ACOMPANHAMENTO Como saber se estamos cultivando uma épica poderosa? É preciso manter a questão viva e, para isso, sugerimos estes critérios, que podem nos orientar:

1.- Os stakeholders da nossa cidade terão uma identidade coletiva que lhes gere estima, orgulho e compromisso. 2.- Nossa cidade será capaz de atrair e reter talentos. 3.- Haverá uma interpretação poderosa o suficiente para inspirar sistematicamente os diferentes stakeholders da cidade para desenvolver e implementar iniciativas que visem produzir as mudanças que são necessárias.

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ANEXOS

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ANEXOS

ANEXO I: OUTRAS LEITURAS LIVROS Adner, Ron. The Wide Lens: What Successful Innovators See That Others Miss. Anderson, Chris. The Long Tail: How Endless Choice is Creating Unlimited Demand. Ariely, Dan. Predictably irrational. Carlin, John. El Factor Humano. Nelson Mandela y el Partido que salvo a una nación. Catmull, Ed. Creativity Inc. Diamandis, Peter & Kotler, Steven. Bold. Dreyfus, Hubert. Being in the world. Enriquez, Juan. As the Future Catches You. Enriquez, Juan & Gullans Steve. Evolving Ourselves: Redesigning the Future of Humanity--One Gene at a Time. Enriquez, Juan. Right/Wrong: How Technology Transforms Our Ethics. Feld, Brad & Hathaway, Ian. Start Up Communities. Flores, Fernando. Understanding Computers and Cognition: A new foundation for design. Espinosa, Charles; Flores, Fernando & Dreyfus, Hubert L. Disclosing New Worlds: Entrepreneurship, Democratic Action and the Cultivation of Solidarity. Flores, Fernando & Gray, John. Entrepreneurship and the wired life. Work in the wake of careers. Hagel III, John; Seely Brown, John & Davison, Lang. The power of pull. Hamel, Gary & Prahalad, C.K. Competing for the future. Hanh, Thich Nhat. Call Me by my true names. Hanh, Thich Nhat. Being Peace. Heimans, Jeremy & Timms, Henry. New Power: How Power Works in Our Hyperconnected World, and How to Make It Work for You. Hidalgo, César. Why Information Grows. Hwang, Victor W. & Horowitt, Greg. The Rainforest. How to build the next Silicon Valley. Johnson, Steven. Emergence. Johnson, Steven. Future Perfect: The Case for Progress in a Networked Age. Kahane, Adam. Colaborar con el Enemigo. Cómo trabajar con quien no estás de acuerdo, no te agrada o no confías. Kawasaki, Guy & Moreno, Michele. Rules for revolutionaries. Kelly, Kevin. Out of Control. Kelly, Kevin. The inevitable. Understanding the 12 Technological Forces That Will Shape Our Future. Kelly, Kevin. What technology wants. Lessig Lawrence. Free Culture: The nature and future of creativity. Lessig Lawrence. Remix: Making Art and Commerce Thrive in the Hybrid Economy. Li, Charlene & Bernoff, Josh. Groundswell. 68


ANEXOS

Locke, Christopher et al. The Cluetrain Manifesto. Maturana, Humberto & Varela, Francisco. El árbol del conocimiento: Las bases biológicas del entendimiento humano. Maturana, Humberto & Varela, Francisco. De máquinas y seres vivos. Mayer-Schonberger, Viktor & Cukier, Kenneth. Big Data: A Revolution That Will Transform How We Live, Work and Think. McGonigal, Jane. Reality is Broken: Why games make us better and how they can change the world. Raymond, Eric S. The Cathedral & the Bazaar. Estados Unidos: O’Reilly Media, 2001. Rifkin, Jeremy. The Zero Marginal Cost Society: The Internet of Things, the Collaborative Commons, and the Eclipse of Capitalism. Robinson, Ken. The Element. Scharmer, Otto & Senge, Peter. Theory U: Leading from the Future as It Emerges. Seligman, Martin. Flourish. Shirky, Clay. Here comes everybody: The power of organizing without organizations. Singer, Saul. Start-Up Nation. The Story of Israel's Economic Miracle Tapscott, Don & Tapscott, Alex. Blockchain Revolution. Taylor, Charles. The Ethics of Authenticity. Varela, Francisco & Hayward, Jeremy W. Un puente para dos miradas. Conversaciones con el Dalai Lama sobre las ciencias de la mente. Varela, Francisco. Conocer: Las Ciencias Cognitivas, tendencias y perspectivas. Weber, Steven. The success of Open Source. Zuboff, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power.

ARTIGOS E OUTRAS PUBLICAÇÕES Apuzzo, Matt; Gebrekidan, Selam & Pronczuk, Monika. La vacunación en Europa falló. Estas son las razones. The New York Times. 20 mar 2021. Costa, Camilla & Tombesi, Cecilia. Covid-19: cuánto tiempo se demoró en encontrar la vacuna para algunas enfermedades (y por qué este coronavirus es un caso histórico). BBC News Mundo. 11 dic 2020. IPCC, Grupo Intergubernamental de Expertos sobre el Cambio Climático. Calentamiento global de 1,5°C. Organización de las Naciones Unidas. Desafíos Globales. Población. Disponible en el sitio oficial de la ONU. Organización de las Naciones Unidas. Objetivos de Desarrollo Sostenible. Sección del sitio oficial de la ONU. Organización de las Naciones Unidas. Informe de los Objetivos de Desarrollo Sostenible 2020. Publicado por ONU, 2020. Quoidbach, Jordi; Gilbert, Daniel T. & Wilson, Timothy D. The End of History Illusion. Science Ene. (2013): 96-98. Tapscott, Don. Introducing Global Solution Networks. Understanding the New Multi-Stakeholder Models for Global Cooperation, Problem Solving and Governance. Innovations (2014): 3-46. TED Talk. Sanación 11-S: Madres que encontraron perdón y amistad. De Lara, Tomás & Della Mea, Giselle. Seis princípios da “colaboração extrema”. Blog Ciudades + B. Colaboración Extrema. 19 nov. 2020.

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ANEXO II: NOSSOS PATROCINADORES ALEMANHA JESSICA VON-FARKAS ARGENTINA FRANCISCO MURRAY ALEJO CANTON PEDRO TARAK AUSTRÁLIA CAROLINA VELLOSO BRASIL ALDA MARINA CAMPOS ANA LUCÍA VICOSO DIANA BEHRENS BRUNA HIRSZMAN DANIELA LOMPA DEISA CRISTINA NICOLETTO FLAVIA PASCOWITCH FRANCINE LEMOS MARCELA MIZUGUCHI PEDRO TELLES URSULA ARAUJO CANADÁ ROBERT AGOURI CHILE ALEJANDRA MUSTAKIS ALEJANDRO HORMANN ALFONSO GÓMEZ

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ALFREDO ZEPEDA ALVARO GONZÁLEZ ANDREA BRANDES ANTONIA HUCKE BENJAMIN COFRE CARMEN PAZ PEÑA CAROLINA CONTRERAS CAROLINA MUÑOZ CATALINA BOETSCH CATALINA TACCONE CATHERINA CABALIN CECILIA PILAR GONZÁLEZ CECILIA RODRÍGUEZ CONRAD VON IGEL CONSUELO ENCALADA CRISTÓBAL ARANCIBIA DANIELA ROJAS EDUARDO CONTRERAS EMILIA MOBAREC EMPATTHY ENZO TACCONE FELIPE ARRIGORRIAGA FELIPE CONTRERAS FRANCISCA CHEREAU FRANCISCA DONOSO GABIRIELLA LANDA GIORGIO GALGANO GLORIA MALDONADO GONZALO MUÑOZ JACKELINE PLASS JAIME AYALA JAIME RIESCO

JOAQUÍN PAREDES JONATHAN HERZFELD JORGE BIZAMA JOSÉ ORTIZ ACEVEDO JOSÉ SAN FUENTES JOSEFA MONGE JUAN FELIPE LÓPEZ JUAN PABLO LARENAS MAGDALENA DÍAZ MANUEL CONEJEROS MANUEL RIVEROS MARCELO MOBAREC MARCO KUTULAS MARÍA EMILIA CORREA MARIA JESÚS ALDUNATE MARÍA JOSÉ ARIAS MARÍA JOSÉ RAMÍREZ MARIANNE CHARNAY MAURICIO CARRASCO NELLY HASBUN NELSON RODRIGUEZ NICOLÁS FUENZALIDA PABLO JOSÉ VILLOCH PAMELA HENRÍQUEZ PAULA MOBAREC PAVEL FRIEDMANN PEDRO GONZÁLEZ PEDRO MALDONADO PEDRO PABLO DÍAZ PILAR GOYCOOLEA PRISCILLA ZAMORA RAMIRO URENDA


RENEE MATELUNA RODRIGO MOBAREC ROMAN YOSIF SANDRA CARTES SEBASTIÁN RODRÍGUEZ SEBASTIÁN SALINAS SILVIA GONZÁLEZ TATIANA CAMPOS THOMAS KIMBER TOMÁS DEL CASTILLO TOMÁS GUENEAU VALENTINA RODRÍGUEZ VALESKA SEGURA XIMENA CABRERA COLÔMBIA FELIPE CHAJIN JUAN HOYOS DINAMARCA NILLE SKALTS EQUADOR ADRIANA VALLADARES DANIELA PERALVO FELIPE PASTOR MARIUXI VILLACRES ESCÓCIA DELFINA ZAGARZAZU NIGEL TOPPING

ESPANHA MARIANA MARTÍNEZ PABLO SÁNCHEZ VERÓNICA DEVENIN ESTADOS UNIDOS JORDAN JACKSON STEPH RYAN BEN ANDERSON LOTUS DAVIL WILCOCK CRISTÓBAL GUTIÉRREZ THE CREATIVE FUND FRANÇA B LAB FRANCIA HELLE LIAUTAUD MÉXICO RAMSÉS GÓMEZ HOLANDA ELA KABARA

PERU EVELYN GÓMEZ PORTUGAL PEDRO DÍAZ REINO UNIDO B LAB EUROPA CHRIS HILL JAMES PERRY KATIE HILL MAGALI LEWIS MARTIN ROBERTSON RODRIGO BAUTISTA SUÍÇA JONATHAN NORMAND URUGUAI BEBO GOLD GISELLE DELLA MEA LORENA MUINO STEPHAN HEIT

PANAMÁ ELISSA PATINO PARAGUAI BRUNO DEFELIPPE FERNANDO DUARTE SANTIAGO CAMPOS WILLIAM CAMPOS

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ILUSTRAÇÕES ALEJANDRO BALBONTÍN


TOMÁS DE LARA Cofundador e colider do Cidades+B /Cities CAN B, membro do conselho diretor do Sistema B Brasil, conselheiro do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável) e do empreendimento agropecuário Estância do Chalé. Tecelão de redes e organizações. Tomás é formado em administração, mestre em comunicação digital e leciona aulas sobre inovação econômica no Brasil e no exterior. É Responsible Leader da rede global BMW Foundation, membro do WWF Global Markets Institute Thought Leader Group, Membro da rede Tendrel Global e membro da rede Well Being Economy Alliance (WE All). Cofundador dos Hubs da Global Shapers do Rio de Janeiro e de Porto Alegre. Apaixonado por estudos de cosmologia, biologia evolutiva, Vedanta, e pela prática de meditação e natação no mar. O seu trabalho concentra-se na criação e na expansão de organizações que trabalham em rede e promovem uma economia focada no desenvolvimento humano e integrada com a natureza.


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