Catálogo - Encontro Mestres do Mundo (2019)

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TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS


REALIZAÇÃO

RECONHECIMENTO

PRODUÇÃO

APOIO CULTURAL

PARCERIA


XII Encontro Mestres do Mundo Tempo de Amor e Flor para quem sabe Salvaguardar Afetos

Adriano Souza, Lourdes Macena e Aterlane Martins (Organizadores)

Secretaria de Cultura do Estado do Cearรก 2019


FICHA CATALOGRÁFICA E FICHA TÉCNICA Ficha técnica da Publicação Coordenação Editorial - Adson Rodrigo S. Pinheiro Organização - Lourdes Macena, Adriano Souza e Aterlane Martins. Projeto Gráfico e Edição de Arte - Carlos Weiber Revisão de Texto - Edson Alves

Catalogação na fonte Bibliotecária: (incluir nome) XII Encontro Mestres do Mundo - Tempo de Amor e Flor para quem sabe Salvaguardar Afetos - 2018/ XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX (Coordenadores) Fortaleza : (nome da gráfica ), 2019 (incluir n. de Páginas) p, Il. ISBN:

CDD:


TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS


XII ENCONOTRO MESTRES DO MUNDO SECRETARIA DA CULTURA DO ESTADO DO CEARÁ CAMILO SOBREIRA DE SANTANA Governador do Estado do Ceará

MÁRCIA ARAÚJO Coordenadora de Fomento e Incentivo à Cultura

MARIA IZOLDA CELA DE ARRUDA COELHO Vice-governadora do Estado do Ceará

ERNESTO GADELHA Coordenador de Conhecimento e Formação

FABIANO DOS SANTOS PIÚBA Secretário de Estado da Cultura

GORETH ALBUQUERQUE Coordenadora de Políticas de Livro, Leitura e Bibliotecas

SUZETE NUNES Secretária adjunta da Cultura ANDRÉA ROCHA Secretária executiva da Cultura ALÊNIO CARLOS NORONHA ALENCAR Coordenador de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural VALÉRIA CORDEIRO Coordenadora de Artes e Diversidade Cultural da Secult

WALQUÍRIA SANTIAGO Coordenadora Administrativa Financeiro IVNA GIRÃO Coordenadora de Comunicação DALIENE FORTUNA Coordenadora Jurídica ANDRÉ LOPES Coordenador de Governança Digital

SECULT COPAHC Coordenadoria de Patrimônio Histórico e Cultural da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará: Alênio Carlos Noronha Alencar, Alexandre Veras, Ângela Barreto Morais Fernandes, Carlos Vinícius Frota de Albuquerque, Rosana Marques Lima, Lenice de Sousa Leite e Natallie Skeff.

ASCOM Assessoria de Comunicação - SECULT CE Equipe: Adriana Rodrigues, Ivna Girão, Felipe Abud, João Maropo, Lucas Benedecti, Paula Candice e Salvino Lobo. GOVERNANÇA DIGITAL: André Lopes, Alí Nacif e Vanessa Cabral


FICHA TÉCNICA EQUIPE DO PROJETO Coordenação Geral - Adriano Souza Curadoria - Lourdes Macena Assistência de Curadoria - Aterlane Martins Coordenação de Produção - Juliana Lins Administrativo Financeiro - Leonardo Pereira Produção - Georgette Caminha Assistente de Produção - Gilberlan Meneses e Reuber Lopes Cerimonial - Orlângelo Leal Coordenação Secretaria - Ana Calvet Coordenação de Feiras - Georgette Caminha Coordenação Cortejo - Jorgivan Pereira e Wellington Carlos Coordenação de Rodas de Conversa Dalvani Rodrigues Coordenação de Ações Formativas Eliza Gunther e Adson Rodrigo Coordenação de Mobilização de Mestres Ravena Monte e Alana Morais Residência dos Mestres - Orlângelo Leal e Fabiano de Cristo Coordenação Transporte e Hospedagem Andrea Feijão Assistente de Transporte e Hospedagem Dayanna Leroy Coordenação Alimentação - Ana Lúcia Castelo Branco Coordenação Infraestrutura - Jaime Lins Assistência de Infraestrutura - Thiago Baiano

Direção de Palco - Albert Agnis Produção de Palco - Thais Andrade Roadie - Citonio Gomes Assessoria de Imprensa - Helena Félix, Kiko Bloc e Isabelle Vieira Social Midia - Diná Matias Fotografia - Thiago Nozi Audiovisual - Hygor Linhares, Vitor Rasga e Esaú Pereira Projeto Gráfico e Design - Carlos Weiber Intérprete de Libras - José Bezerra MEDIADORES DAS TROCAS EM RODAS: Corpo: Circe Macena Sagrado: Hildebrando Maciel Mãos: Simone Castro Oralidade: Oswald Barroso Sons: Carlos Crisóstomo Semente: Nayana de Castro Cunha PRODUÇÃO DE AÇÕES NO TERRITÓRIO JENIPAPO KANINDÉ Juliana Alves COMITÊ DE MOBILIZAÇÃO Jorgivan Pereira, Wellington Carlos, Aline Level e Rique Lucas

PREFEITURA MUNICIPAL DE AQUIRAZ Edson Sá PREFEITO MUNICIPAL

SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA DE AQUIRAZ William Mendonça Secretário de Cultura Gilvan Santana Secretário Executivo de Cultura

ASSESSORIA INSTITUCIONAL Mônica Lima Marcelo Freitas Pedro Domingues Gigi Borges

ASSESSORIA EXECUTIVA Germana Porto Elisângela Almeida Luiz Amora

APOIO TÉCNICO José Rodrigues Yasmin Loiola Romênia Monte Coelho Sinval Diógenes


FOTOS THIAGO NOZI

SUMÁRIO

22 GIRANDO AFETOS EM RODAS CIRANDEIRAS

24 ENCONTRANDO MESTRES DO MUNDO DANÇANDO E (SALVA) GUARDANDO AFETOS

26 O MUNDO VISTO E VIVIDO DE OUTRA FORMA: O POPULAR E O SAGRADO A PARTIR DOS TESOUROS VIVOS DO CEARÁ

10 A FLOR-SEMENTE QUE BROTA DOS MESTRES E MESTRAS DA CULTURA

12 TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

14 SOBRE FLORES E AFETOS NO MUNDO DOS TESOUROS VIVOS DO CEARÁ

18 SÍNTESE DO TEXTO CURATORIAL

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RODAS DE TROCAS

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VIVÊNCIAS NO TERRITÓRIO JENIPAPO-KANINDÉ


32 SOB A FLOR DO JENIPAPO (MUITO ALÉM DA TRANSMISSÃO DE SABERES DO POVO JENIPAPO-KANINDÉ)

34 CANÇÃO: SALVE MÃE PEQUENA JENIPAPO-KANINDÉ LETRA E MÚSICA: CALÉ ALENCAR

35 OS ENCANTADOS

36

OFICINAS E AULA ESPETÁCULO “O SABER DOS ENCANTADOS”

38 UM PATRIMÔNIO DE TRADIÇÃO E AFETOS: AÇÕES EDUCATIVAS E FORMATIVAS DO XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO

42 MARACATU AZ DE OURO E O SABER DO MESTRE JUCA DO BALAIO

43 JANGADAS E PESCADORES O SABER DE MESTRE OLIVEIRA

44 OS OITO BAIXOS DE CHICO PAES 45 REISADO BOI CORAÇÃO MESTRE LUCIANO - ENCANTADOS...

46 NAU PERDIDA EM BUSCA DE AFETOS: MEMÓRIAS DA EXPERIÊNCIA

50

SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR DE PATRIMÔNIO IMATERIAL

53 II SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR SOBRE PATRIMÔNIO IMATERIAL

56

SIMPÓSIOS TEMÁTICOS

58 ARTESANATO TRADICIONAL E GASTRONOMIA POPULAR TRADICIONAL

59 ARTIGOS 186 CANTIGAS POPULARES

188 GALERIA DE FOTOS


A FLOR-SEMENTE QUE BROTA DOS MESTRES E MESTRAS DA CULTURA Fabiano dos Santos Piúba Secretário da Cultura do Estado do Ceará

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e 21 a 24 de novembro de 2018, o céu e o chão de Aquiraz fizeram-se mais belos. Nesses dias, Aquiraz tornou-se o lugar mais bonito do planeta. Isso porque a cidade recebeu o XII Encontro Mestres do Mundo, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), através do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade e que compõe a política estadual de patrimônio cultural e memória voltada para a valorização e reconhecimento dos Tesouros Vivos do Ceará, por meio dos mestres e das mestras da cultura e dos grupos de tradição popular. O Encontro Mestres do Mundo é uma realização do Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura (Secult-CE) em parceria com o Fórum de Cultura Popular Tradicional do Ceará e com a Comissão Cearense de Folclore, contando nesta edição com o apoio da Prefeitura Municipal de Aquiraz, através da Secretaria da Cultura e com a produção do Instituto Assum Preto, instituição selecionada por meio de edital público para a produção e curadoria. Portanto, um evento realizado por muitas mãos de forma colaborativa, sobretudo pelas mãos dos Mestres e das Mestras da Cultura do Ceará que são, de fato, os que fazem esse Encontro acon-

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tecer. Foram quatro dias de celebração da cultura popular tradicional cearense reunindo uma programação multicultural aberta ao público com atrações regionais, nacionais e internacionais. Mas o Encontro Mestres do Mundo não é só uma programação cultural que se revela na Terreirada noturna onde os mestres e as mestras compartilham suas expressões e manifestações artísticas para o público em geral; tampouco é uma mera feira de comercialização de suas belezas artesanias ou apenas as rodas de memórias e saberes onde os mestres e as mestras renovam suas esperanças, artes e ofícios. É tudo isso, mas é muito mais do que esses elementos. A Terreirada é uma coisa linda, uma fogueira de alegria e de esperança brilhando para o mundo com os fogos acesos pelas artes dos mestres e as mestras da cultura. As rodas de memórias e saberes repletas de solidariedade e de afetos que são trocados e tocados por entre as artes e ofícios. A feira de artesanato é uma oportunidade excelente de renda, como também um ambiente de difusão das peças no couro, no barro, na palha, na madeira, no ferro, no papel, criadas pelas mãos e imaginações dos mestres e as mestras artesãs. Sendo assim, as manifestações apresentadas, as peças expostas e comercializadas, os sabeXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

res e fazeres compartilhados são expressões contemporâneas de suas identidades culturais e territoriais que afirmam e renovam seus ciclos de vidas e de artes. Dentre as várias possibilidades, o Encontro Mestres do Mundo cumpre essa função de renovação de ciclos e de esperanças. Dito dessa maneira, o Encontro Mestres do Mundo é uma grande Festa de Renovação. Não obstante, estávamos dizendo que o Encontro Mestres do Mundo não é só uma programação artística e cultural. O Encontro é uma experiência, uma vivência. É justo isso que queremos enfatizar aqui e, nesta edição, essa percepção ficou mais evidente, a começar pela proposta da curadoria de Lourdes Macena com o tema “Encontro Mestres do Mundo, tempo de amor e flor para quem sabe salvaguardar afetos”. O resultado foi uma experiência onde cultura e natureza se abraçaram numa perspectiva amorosa, afetuosa, singela e solidária em defesa do sentir da vida em toda sua diversidade cultural e humana em harmonia com a Mãe-Natureza. Nesse sentido e sentimento, a vivência na Aldeia Jenipapo-Kanindé foi o momento ápice do Encontro. Melhor dizendo, o momento mágico e mais sagrado. Amanhecemos a sexta-feira de 23 de novembro de 2018, no terreiro da Mestra Cacique Pequena para a “Caminhada Nativa sob a Flor do Jenipapo –


FOTO THIAGO NOZI

O Secretário Fabiano Piúba e a Mestra Cacique Pequena

Vivências no Território Jenipapo-Kanindé”. Era visível a felicidade da Mestra Cacique Pequena em receber seus pares mestres e mestras da cultura do Ceará em sua casa, em seu terreiro, em sua aldeia, em seu território, em sua terra, em seu solo sagrado. Ela recebeu cada um de seus pares como quem recebe um irmão, uma irmã, um companheiro/a de luta e de jornada. Juntos com os mestres e as mestras da cultura um monte de gente boa: jovens estudantes, professores, pesquisadores, artistas, produtores culturais, profissionais

liberais e um tanto de gente que foram vivenciar essa experiência que o Povo Jenipapo-Kanindé ofereceu com tanto amor e cuidado. Foi uma vivência sagrada e harmônica entre a cultura e a natureza. As crianças Jenipapo-Kanindé irradiavam alegria. Caminhamos na duna do Morro do Urubu, banhamo-nos na Lagoa Encantada e dançamos o Toré com os pés no chão do terreiro das mangueiras, entoando: “é que eu vivo na aldeia, enterrada na areia, de pés no chão”, versos de uma das cantigas de autoria da Mestra Cacique Pequena, co-

nectando-nos com o chão e com o céu para além daquele dia. Sementes de memórias vivas. Pois bem, somos semente e flor. Flor-semente e semente-flor brotando dos encontros dos mestres e mestras da cultura que floram e frutificam com suas artes e ofícios, com seus saberes e fazeres uma convivência mais amorosa entre os seres e harmoniosa com a natureza e com os mundos. Gratidão, Mestres e Mestras, por essa conexão orgânica e respeitosa com a Mãe-Natureza por meio de seus saberes culturais.

TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

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TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS Lourdes Macena Profa. Dra IFCE – Curadora Grupo de Estudos em Cultura Folclórica Aplicada - IFCE

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FOTO THIAGO NOZI

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om o tema “Encontro Mestres do Mundo, tempo de amor e flor para quem sabe salvaguardar afetos” procuramos evidenciar as formas de vidas embutidas nas diversas expressões culturais que se projetam a partir dos Tesouros Vivos da Cultura e que vai muito além do saber/ fazer que se deseja salvaguardar e reconhecer. Buscamos promover não apenas a valorização de Mestras e Mestres e seus fazeres, mas sim, possibilitar por meio do contato com estas/estes a singeleza de um mundo necessário hoje, de uma vida amorosa e afetuosa que nos abrace junto à mãe natureza, promotora de toda a vida e possibilitadora da permanência da vida humana. Além de ser uma oportunidade ímpar de vivenciar a diversidade cultural tradicional, esse encontro permite o compartilhar e o sentir de vidas humanas que se doam por meio desse contato com os guardiões das memórias ancestrais do nosso e de muitos povos irmãos. Muito além do saber, do rito e da brincadeira está/estão formas de vidas compartilhadas, vidas que se reinventam, que resistem com o que tem. Produzem a partir do que a natureza lhes possibilita ou refazem o que precisam com o que está a mão. Numa rede de cooperação mútua e

Reisado São Miguel do Mestre Tarcísio (Juazeiro do Norte/CE)

solidária vão tecendo sonhos e construindo realidades mais amorosas e colaborativas. A forma como entendem o mundo, sua cosmovisão está comumente interligada à natureza, a terra mãe que lhe dá abrigo. Independente de estar em territórios do campo, no urbano ou em zonas periféricas seu entendimento é que tudo é aproveitável, pois para estes é considerado pecado o desperdício de objetos, artefatos, comida e vida. Assim vão criando, produzindo saberes, fazeres traçando XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

tramas de receber e dar para aproveitar o que o cosmos lhe doa de graça. Nossa proposta prioriza sim os Tesouros Vivos, suas expressões culturais, mas principalmente deseja fortalecer a compreensão destes como mulheres/homens sementes de memórias vivas, de lógicas melhores que priorizam amores e afetos que necessitam ser alimentados, plantados no coração humano e principalmente de nossas crianças que poderão dar prosseguimento. Nosso símbolo será a flor se-


FOTO THIAGO NOZI

mente/semente flor, especialmente a flor do jenipapo fazendo uma ligação com o povo Jenipapo-kanindé cuja aldeia está em Aquiraz território do evento. Nossos lugares serão marcados, sinalizados por plantas, flores e rosas brasileiras demarcando espaços de amor em saberes que serão compartilhados em momentos sementes como: Cortejos, Acolhida aos Mestres e Mestras, Feira de artesanato e gastronomia familiar; Valores do meu lugar – ações de povo semente; Programação artística noturna (transmissão de saberes em aula/show/espetáculo); Rodas de trocas – terreiros de afetos; Caminhada nativa sob a flor do Jenipapo (transmissão de saberes do povo Jenipapo Kanindé, Tremembé, Tapeba e Pankararu na Lagoa da Encantada);

Seminário Interdisciplinar de Patrimônio Imaterial; Residência uma experiência entre afetos e arte; Fins de tarde no Museu Sacro São José de Ribamar; Roda Semente (Transmissão de saber para gente miúda); Oficina o saber dos encantados e Oficina a Nau Perdida em busca de afetos – memórias vivas do vivido. O patrimônio Intangível, os bens imateriais exige uma relação de conhecimento e uso contínuo por parte da comunidade para sua salvaguarda. Ao pensar na Tradição como repasse de uma geração a outra, podemos associar a salvaguarda do bem intangível como uma metáfora ao ciclo de vida da planta, pois esta começa com uma semente que vai germinar e produzir uma “muda” ainda pe-

quena e imatura, mas que necessita ser regada, cuidada, zelada para crescer até a idade adulta, trazer suas flores e depois seus frutos que dão suas sementes e que após ser plantada de novo volta a um novo começo e eis que a vida se repete de forma nova inovada no contexto do tempo que lhe dão. Assim é a tradição, o repasse do saber que como semente é lançada e a partir de quem dela cuida se transforma em árvore/flor/fruto/semente em um desenrolar infinito. Essa é a nossa proposta, que esse evento (que não é o único, sabemos) possa ser essa semente salvaguarda plantada no coração de cada um, que isso possa povoar suas casas, suas vidas, no uso do saber com seus filhos, familiares e amigos, pois somente isso garante a salvaguarda do Patrimônio Intangível. O Registro serve para guardar a memória e tornar isso história, no entanto, somente o uso no seio da comunidade promove a salvaguarda do bem intangível! O evento Mestres do Mundo é semente em uso lançada a cada ano, como um fruto que se dá a todos, na esperança de ao saboreá-lo e conhecer tudo o que nele está contido, seja possível fazer geminar em cada vida que deste se aproxima, os saberes ali compartilhados, vividos, sentidos, compreendidos. Que os saberes e seus Mestres possam se espalhar numa caminhada de amor e afeto entre todos para possibilitar o sentido na vida do que realmente vale a pena “pois quem vive cirandando o amor de novo sente” e o mundo hoje mais que tudo precisa de amor, de sementes de afetos a partir destes simples saberes.

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FOTO THIAGO NOZI

Mestre Paulão

SOBRE FLORES E AFETOS NO MUNDO DOS TESOUROS VIVOS DO CEARÁ Alênio Carlos Noronha Alencar Mestre em História Social - PUC/SP Coordenador de Patrimônio Histórico Cultural da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará - SECULT/CE Carlos Vinicius Frota de Albuquerque Mestre em Sociologia - UFC Gerente de Patrimônio Imaterial da Coordenadoria de Patrimônio Histórico e Cultural - SECULT/CE 14

XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

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esde 2005, o Encontro Mestres do Mundo reúne, a cada ano, os Tesouros Vivos da nossa cultura, representantes das expressões e dos ofícios populares tradicionais presentes no Ceará. O evento promove um rico encontro e troca de saberes e experiências entre mestres e mestras titulados, mestres locais, de outros estados e países, brincantes, artistas, educadores, pesquisadores, e demais interessados em vivenciar e conhecer melhor as nossas tradições. Por alguns dias no ano, temos a grande oportunidade de encontrar reunidos os guardiões e as guardiãs dos nossos saberes ancestrais e usufruir-


FOTO THIAGO NOZI

Mestre Zé Renato

mos um pouco da convivência com eles, vendo-os(as) contarem e cantarem suas histórias de vida. São bois, reisados, pastoris, poesia popular, literatura de cordel, repentes, aboios, cantoria de viola, bandas cabaçais, maneiro pau, arte circense, culinária tradicional, maracatus, capoeira, dança do coco, escultura, luthieria, diversas tipologias de artesanato, dentre

tantas outras encantadoras manifestações tradicionais ali representadas. A nossa diversidade cultural tem no Encontro Mestres do Mundo um espaço privilegiado para a sua valorização, reconhecimento, promoção e apresentação à população cearense, especialmente às novas gerações. No ano de 2018, por meio do Edital dos “Tesouros Vivos da Cultura”, do Esta-

do do Ceará - 2017”, foram reconhecidos 16 Mestres e Mestras da Cultura, 2 Grupos e 1 coletividade, passando a totalizar 69 Mestres e Mestras da Cultura Tradicional Popular, 11 Grupos e 02 Coletividades, em atividade, como Tesouros Vivos da Cultura do Estado. Expressões até então sem representantes entre os titulados enquanto Tesouros Vivos, como a capoeira (Mes-

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FOTO THIAGO NOZI

Mestra Mãe Zimá

tre Paulão Ceará e Mestre Zé Renato), a umbanda (Mestra Mãe Zimá), o chorinho (Mestre Macaúba) e o artesanato de mosaicos (Mestre Jaime), tiveram alguns de seus mestres reconhecidos. A culinária tradicional também ganhou espaço, com a Mestra Dona Rita e os seus fartes, saborosos doces recheados com castanha de caju e gengibre, bastante conhecidos na cidade de Sobral, e a Mestra Dona Zenilda, com sua linguiça de fabricação artesa16

nal, tão apreciada no município de Assaré na região do Cariri. Algumas expressões, cujos seus Tesouros já haviam se encantado, também tiveram visibilidade com novos titulados a lhes representarem. É o caso do Maracatu (com o Mestre Rainha Almeida e o grupo Maracatu Az de Ouro) e do ofício de mateiro (com o Mestre Zé Carneiro). A cantoria de viola e a poesia popular também receberam destaque, com o reconhecimento de importantes persoXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

nalidades destas expressões: Mestre Pedro Bandeira, Mestre Geraldo Amâncio e Mestre Antônio Rafael. Os novos Mestres e Mestras, grupos e coletividades somaram-se aos demais na composição deste mosaico dos Tesouros Vivos da Cultura, que representam e dão projeção aos saberes e ofícios da nossa cultura popular tradicional, marcando presença e apresentando seus saberes e trajetórias no Encontro Mestres do Mundo.


Até o ano de 2017, as edições do evento foram concentradas nas macrorregiões do Vale do Jaguaribe e do Cariri, nunca tendo ocorrido antes em regiões litorâneas. Em 2018, o XII Encontro Mestres do Mundo levou para Aquiraz, a nossa primeira capital oficial, todo o encantamento dos nossos mestres. O calor, a fluidez e a dinamicidade de nosso litoral contribuíram para aquecer os corações e banhar de emoção este encontro, cada vez mais rico em cores, formas e sentidos. A realização do Encontro em Aquiraz promoveu ainda o diálogo entre o nosso patrimônio imaterial e material, através da integração de importantes espaços, como o Museu Sacro São José do Ribamar e a Casa do Capitão Mor, à programação do evento. Belas exposições puderam ser vistas e admiradas, apresentando os nossos Mestres e as nossas Mestras da Cultura e os marcos da história do Ceará à população local e aos participantes do evento. Em harmonia com as exposições, as narrativas inscritas nestas edificações contribuem para o fortalecimento do sentimento de pertencimento ao nosso Ceará e de identificação com a nossa história, as nossas tradições e as nossas origens. Ao início do Encontro, foi promovida uma vivência reunindo o grande multiartista Antônio Nóbrega, os nossos Mestres dos Sons e os aprendizes da Tapera das Artes. Foi um momento ímpar dentre as diversas edições do evento. Esta reunião de sonoridades encantou os nossos ouvidos e corações, deixando-nos em estado de êxtase durante a exibição do trabalho, realizada na primeira noite de apresentações. Contu-

do, não menos emocionante foi o resultado da residência artística (Residência: uma experiência entre afetos e arte) realizada nas tardes do Encontro, com a coordenação de Orlângelo Leal e de Fabiano de Cristo, e apresentada na última noite do XII Mestres do Mundo, transportando a todos para o mundo mágico tecido pelas cores, cantos, danças, corpos e amores dos nossos Mestres e nossas Mestras. Com o tema “Tempo de amor e flor para quem sabe salvaguardar afetos”, o XII Mestres do Mundo proporcionou ainda a oportunidade singular do encontro com as nossas raízes indígenas, através da celebração da terreirada na terra do povo Jenipapo-Kanindé, às margens da Lagoa Encantada, com a presença do povo Pankaruru, visitantes vindos de Pernambuco, que mostraram um pouco de seus ritos. Repleto de beleza e encantamento, este momento emocionou a todos nós, promovendo o entrecruzamento das nossas matrizes, das nossas expressões e dos nossos valores culturais. A Mestra Cacique Pequena, com toda a sua liderança, força e doçura, conduziu este momento, oportunizando também que cada Mestre e Mestra, assim como os convidados presentes, deixassem ali suas marcas em nossos corações. As diversas flores e amores que compõem o jardim das nossas tradições populares foram ali colhidas e distribuídas, enchendo de perfumes e colorido este momento de vivência e troca de afetos, que foi encerrado ao som dos batuques do Maracatu Nação Fortaleza, com a loa composta por Calé de Alencar em homenagem à nossa mestra anfitriã.

Nesta edição, outro momento importante foi a realização do Seminário Interdisciplinar de Patrimônio Imaterial. Na tarde do dia 22, Gilmar de Carvalho, Regina Machado e Ricardo Nascimento passaram um pouco de seus conhecimentos, reflexões e experiências na pesquisa e na promoção do nosso patrimônio imaterial, passando às nossas mãos flores e sementes que devemos plantar para que germinem nas nossas práticas cotidianas. Além deste momento, a partir de cinco simpósios temáticos (Gastronomia Tradicional Popular; Religiosidade Popular; Danças e Folguedos Tradicionais; Oralidade, Dramas e outros saberes; e Música de Tradição Oral) tivemos a oportunidade de apreciar diversos trabalhos de pesquisadores e estudantes, que têm contribuído para estreitar laços e abraços entre os saberes tradicionais e científicos. Durante os quatro dias do XII Encontro Mestres do Mundo, além desses momentos já relembrados, os cortejos, as rodas de saberes, as oficinas, as feirinhas, as apresentações e as ações de Educação Patrimonial realizadas junto a estudantes da região, dentre vários outros momentos da programação, deixaram suas marcas em nossos corpos, emoções e memórias, envolvendo-nos em cores, formas, cheiros e afetos que representam a nossa diversidade cultural, a diversidade cultural dos nossos Tesouros Vivos da Cultura. Tempo de afetos, flores, amores e cuidado com as nossas tradições, o Encontro Mestres do Mundo nos presenteia com a sabedoria e a força dos nossos guardiões e guardiãs e do seu mundo encantado.

TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

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SÍNTESE DO TEXTO CURATORIAL FOTO THIAGO NOZI

balha em colaboração para consolidar à preservação do patrimônio histórico e cultural e toda a ação se caracteriza muito especialmente, na promoção do direito à diversidade e identidade cultural e de acesso à cultura, pois nosso projeto esteve sempre voltado para os

Grupo Baile de Congo de São Benedito - TICUMBI, Conceição da Barra, ES

Lourdes Macena Dra. Em Artes - IFCE

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tema “Encontro Mestres do Mundo, tempo de amor e flor para quem sabe salvaguardar afetos” chega nesse caótico mundo no qual nos encontramos buscando alimentar a alma com a vida envolvida nessas vidas de outras lógicas e de outros “mundos” no qual o sobreviver e reinventar-se por meio de vidas compartilhadas é a regra primeira. Um mundo

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que promoveu/promove sua própria arte e formas de criação, desta forma pensamos que este mundo é urgente e necessário para salvar o mundo no qual vivemos e assim é por isso que nesse sentido, estamos plantando sementes. Nossa proposta se reveste na programação de contribuições relacionada a promoção dos direitos culturais respeitando a liberdade de expressão de cada grupo participante, a diversidade de etnias nativas e sobre isso compartilha experiências com índios e negros principalmente, traXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

[...] direitos culturais. São eles: o direito autoral (artigo 5º, XXVII e XXVIII), o direito à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (artigos 5º, IX, e 215, §3º, II), o direito à preservação do patrimônio histórico e cultural (artigos 5º, LXXIII, e 215, §3º, inciso I); o direito à diversidade e identidade cultural (artigo 215, caput, § 1º, 2º, 3º, V, 242, § 1º); e o direito de acesso à cultura (artigo 215, §3º, II e IV) (Constituição Brasileira, 1988). Neste contexto de união de práticas, saberes e conhecimentos culturais solidários, o XII Encontro de Mestres do Mundo, PROMOVIDO PELA SECULT – CE, em parceria com o Instituto Assum Preto, preocupou-se com uma programação ampla e diversa divulgando saberes e fazeres e seus Mestres sempre numa lógica amorosa. Promovendo muito especialmente atividades específicas para o público infantil e oportunidades de diálogos e reflexões sobre patrimônio por meio de realização de seminário colocando em foco outros aspectos relevantes do Patrimônio Imaterial.



RODAS DE TROCAS


FOTO THIAGO NOZI


GIRANDO AFETOS EM RODAS CIRANDEIRAS FOTOS THIAGO NOZI

Lourdes Macena Profa. Dra. IFCE Curadora do XII Encontro Mestres do Mundo 2018

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ob os mangueirais, aproveitando as frestas de sol que uma manhã litorânea podia nos dar, fomos realizando esses encontros de vidas na brincadeira de compartilhar saberes realizando rodas de trocas vivas. A Roda dos Sons mediada pelo músico Carlinhos Crisóstomo possibilitou uma aproximação com os sons da Rabeca de mestre Totonho, dos pífanos das Bandas Cabaçais São José, Irmãos Aniceto; da viola, dos cavacos, violões, pandeiros além dos aboios de D. Dina e Pedro Coelho, dos cocos e Maneiro Pau de Mestre Cirilo, do Sino marcante de Mestre Getúlio entre Rimas, cantorias e repentes de Geraldo Amâncio, Lucas Evangelista, Pedro Bandeira e tantos e tantos sons que permeavam a vida musical dos que criam a partir dos sons da vida. Naquele celeiro, jovens músicos aprendentes se enriqueciam com um universo sonoro que muitas vezes o curso de música não lhes possibilita. Na Roda das mãos a juventude brincou de fazer potes, panelas, quartinhas, bonecos observando atentas as mãos habilidosas trabalhando com o barro de D. Branca,

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Roda dos Sons, Mercado de Aquiraz

XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018


Roda das Mãos

Roda Semente

do Ipu, Lúcia Pequeno, de limoeiro do Norte, Maria Cândido, de Juazeiro, D. Francisca, de Viçosa, além de aprender a fazer artefatos de cipós com o Mestre Pedro Balaieiro de Guaramiranga. Claro que estando em Aquiraz em pleno litoral esta roda estava permeada também de rendeiras a encantar a todos com suas tramas feitas com os bilros e suas rendas. Bem perto do Museu Sacro São José de Ribamar uma ciranda cósmica envolveu a todos em um encontro ecumênico na Roda do sagrado. Ali, cada um evocou com seus cânticos votivos um São José, uma Nossa Senhora, uma Oxum, Oxalá, Cabocla Tapuia e Pai Tupã. Foi a propagação do bem, do amor e a proteção do mundo que juntou a todos, cada um com seus ritos e sua fé. A poesia, o cordel, as histórias, os contos, as lendas, os dramas, toda a trama de saberes e fazeres passou pela Roda da Oralidade. Na verdade, as rodas funcionam apenas como um recorte para pro-

mover uma organicidade nos encontros com eles, os Mestres, os Tesouros Vivos do povo cearense pois como sabemos estas zonas de fronteira entre um saber e outro, não existem, já que estes na vida comum, passeiam e transitam sendo um ou outro tudo ao mesmo tempo. Assim, o saber do barro, de fazer a comida, de brincar de boi, de tocar a rabeca e de rezar pro santo, tudo é oral e diante disso tudo cabe nessa roda, além do que diretamente parece. A Roda Semente (Transmissão de saber para gente miúda) foi realizada pela primeira vez neste XII Encontro Mestres do Mundo sendo uma roda exclusiva para crianças. Nela tivemos duas turmas de educação infantil numa grande roda embaixo de uma mangueira a brincar com os saberes de quatro Mestres Tesouros Vivos e um mediador/sensibilizador desenvolvendo rodas afetivas com expressões culturais como: canções de roda, dramas, histórias e contos, aboios, brincadeiras de reisado, bois

e cantos das etnias indígenas, sempre com muita alegria envolvendo a meninada com os sentidos e contextos de cada uma destas brincadeiras. Foi realmente encantador ver uma criança de seis anos aprendendo a tirar versos de improviso com Mestre Zé Pio do Boi Ceará e a brincar com a Mestra Zulene com cocos e cantigas de rodas do Cariri cearense pois entendemos que são das singelezas construídas de afetos que estas crianças poderão incorporar a prática destes saberes em sua vida na contemporaneidade. Além da Roda Semente, no XII Encontro Mestres do Mundo tivemos uma Programação infanto Juvenil diurna no Espaço de saberes múltiplos e a noite na Arena dos Mestres com Teatro de bonecos (Cassimiro Coco), Palhaçaria, Brincando de boi e outras brincadeiras envolvendo não somente os Tesouros diplomados mas também outros Mestres reconhecidos numa relação contínua junto as famílias presentes.

TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

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ENCONTRANDO MESTRES DO MUNDO DANÇANDO E (SALVA)GUARDANDO AFETOS FOTOS THIAGO NOZI

Circe Macena Mestre em Artes - IFCE

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oda roda é um ciclo sagrado, é um lugar onde seres de diferentes naturezas celebram, se olham, cantam e dançam em comemoração ao que se vive agora. A roda de corpo é sempre uma roda festiva de celebração à vida, na qual aprendemos muito mais que passos e ritmos, descobrimos formas de amar o que se faz, o que se é e principalmente o que somos. Mas não adianta amar sem compartilhar o amor, não adianta dançar sem plateia que queira nos ver e não adianta ensinar sem ter aluno para aprender. Sendo assim, que tal levar a roda para a praça? Dessa forma a cidade pode aproveitar para aprender e celebrar conosco... A roda de corpo na praça tornou tudo mais simples e leve. O vento forte que balançava as árvores, também nos balançava nas rodas de Maneiro Pau do Mestre Cirilo (Crato-CE), na Quadrilha improvisada da Mestra Mazé (Caucaia-CE), nos pífanos das Bandas Cabaçais do Crato e nos afetos partilhados por todos, pois pessoas que por ali passavam também nos balançavam, ou melhor, nos abraçavam ao dançar e cantar conosco.

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Roda Semente

XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018


Com um tempo de início da roda, chegaram alunos de uma escola da região. Eles vieram animados, fardados com sorriso no rosto, talvez por saberem que a aula seria na praça, na sombra de uma grande árvore e que esses Mestres seriam seus professores. Definitivamente foi um dia diferente daqueles rotineiros escolares. Também foi um dia diferente para os nossos Mestres, que logo perceberam a grandiosidade do dia, ao ver tantos jovens chegando para aprender com eles. Os Mestres ficaram muito alegres quando esses jovens chegaram, e aumentaram a vontade de ir ao microfone, cantar e dançar. Eles tinham muita água para ensinar e os alunos tinham sede de aprender. Foram muitas as danças que fizemos juntos, dentre elas, destaco um momento divertido, quando os integrantes da Banda Cabaçal São José (Missão Velha- CE) foram fazer uma performance dançante. Primeiro eles chegaram de mansinho, ficaram acompanhando os outros Mestres com os instrumentos e depois de um tempo os convidei para apresentar algo para os jovens. Eles começaram a tocar e a dançar e decidiram apresentar a performance do Tirador de Abelhas. Nessa performance o brincante reproduz a ação de estar fugindo de picadas de abelhas e ele muito rapidamente se esquiva e se coça para tirá-las do corpo. Na medida em que o brincante ia fazendo os gestos, os jovens começaram a tentar reproduzir corporalmente. Os alunos tentavam reproduzir ao mesmo tempo que diziam “Nossa, isso é muito difícil!”, “Que engraçado!”, “Como

Roda do Corpo

ele consegue fazer isso?”. Em meio a tantos risos e comentários, cada um ia criando a sua gestualidade e abrimos a roda para vermos uns aos outros. Foi perceptível que em uma manhã aqueles jovens tiveram muitas lições que um dia comum talvez não daria. As atividades além de estimularem uma melhora na consciência corporal, contribuem com a percepção de ritmo, tempo, espaço, além de colaborar com o entendimento sobre coletividade. Sem contar com a enorme lição de vida de ver esses outros jovens de 70, 80 anos, dançando, cantando e brincando. Imagina se esses alunos tivessem essas atividades com mais regularidade? Como seria a atividade corporal dos jovens? Será que con-

tribuiria para a qualidade de vida desses jovens no futuro? Em uma única manhã, adultos, jovens e crianças conheceram um pouquinho da cultura do Ceará, mais do que talvez vejam nas outras 364 manhãs do ano. Em alguns dias de evento talvez tenhamos colocado algo na cidade de Aquiraz-CE que continue a reverberar com o tempo, e daqui a 20 anos talvez, alguns daqueles jovens pudessem recordar: “Lembra daquele dia que tinha uma roda de dança na praça?”, “E aquela luta de espadas? Foi o Mestre Antônio que ensinou, lembra?” “Filho, você sabia que existe uma dança chamada de Boi? Mestre Zé Pio me ensinou um dia...” E desse modo, pudessem também salvaguardar afetos.

TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

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O MUNDO VISTO E VIVIDO DE OUTRA FORMA: O POPULAR E O SAGRADO A PARTIR DOS TESOUROS VIVOS DO CEARÁ Hildebrando Maciel Alves Doutorando em História Social (UFC) Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio e Memória (GEPPM/CNPq/UFC)

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FOTOS THIAGO NOZI

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ão variadas as formas pelas quais as sociedades veem, interpretam, significam e alteram o mundo. Cada uma possui uma forma de viver, experienciar, traduzir e interpretar a sua existência. As ações, sejam elas coletivas ou individuais, possuem uma relação direta com a natureza, com o cosmos, com os territórios, com os saberes, com os sons, com os sentidos, com os cheiros, com as peles. Estamos diante de experiências que mulheres e homens, crianças e idosos, possuem. O contato com o campo do sagrado é o reencontro consigo mesmo, com sua identidade, com sua história. Nesse breve relato, a intenção é destacar a diversidade existente nas relações de intimidade com o sagrado, a partir dos Mestres da Cultura Tradicional Popular do Estado do Ceará. O XII Encontro Mestres do Mundo veio com a temática: Tempo de amor e flor para quem sabe salvaguardar afetos. Realizado entre os dias 21 a 24 de novembro de 2018, foi um espaço destinado à promoção, reconhecimento, valorização e difusão dos saberes tradicionais populares que constituem a história e a memória

Roda do Sagrado

ancestral do nosso estado. O local escolhido para a realização do evento, que anualmente reúne os Tesouros Vivos do Ceará, foi a cidade de Aquiraz. Distante 32 km de Fortaleza, foi a primeira capital da então província do Siará Grande. Porém, esse não é o único marco relevante para o território: nessas terras vivem os Jenipapo-KaninXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

dé, etnia indígena que possui em Cacique Pequena sua maior liderança. A primeira mulher a tornar-se líder de uma comunidade nativa no Brasil. Um lugar de encontros: assim podemos definir o “Encontro dos Mestres”. Dos mais distantes aos mais próximos, durante os dias que seguem a intensa programação


Mestres Indígenas no Torém

é perceptível a confluência de passados, presentes, e futuros que as Mestras e os Mestres carregam consigo. De forma a promover alguns diálogos, foram identificadas algumas maestrias: os sons, as mãos, a oralidade, o corpo e o sagrado. Longe de estabelecer fronteiras ou critérios de classificação. É o desejo de construir um “inventário de sentidos”, como assinala o historiador Antonio Gilberto Ramos Nogueira. A manhã do dia 22 de novembro foi destinada a essas conexões. A salvaguarda dos afetos, a promoção do amor, da paz e da tolerância, assim como o plantio e o cuidado com a “flor da vida” – que são as manifestações tradicionais populares

– foram algumas das sensibilidades desenvolvidas e notadas na chamada “Roda do Sagrado”. Como anfitriã da grande festa, Mestra Cacique Pequena iniciou o momento com uma mística que evocava a proteção de Tupã, assim como pedia permissão para o uso da terra para aquele momento. A relação das etnias indígenas com a terra é da ordem do espírito. É dela que eles sobrevivem. Uma relação de simbiose, diga-se de passagem. Terra e homem, natureza e cultura, são palavras que deveriam ser conjugadas a partir da mesma semântica. O respeito e a reverência ao chão que tudo dá e nada pede em troca, a não ser respeito e cuidado,

ecoou por todos os momentos e em todos os presentes. Os Mestres Cacique João Venâncio e Pajé Luís Caboclo trouxeram a luta pela demarcação das terras indígenas no Ceará como uma marca peculiar de sua relação com o sagrado. Lutar é sagrado, reivindicar é sagrado, resistir é sagrado. Quando tudo isso é feito pela Mãe Terra, tendo como orientação princípios de ética, amor, respeito e humildade, a espiritualidade desses povos ganha novos contornos. Longe das imagens exóticas e associadas a uma série de preconceitos, a Mestra e os Mestres da cultura indígena nos ensinam uma nova relação com o sagrado, com a natureza e com o mundo. Os relatos de resistência e organização das tribos contra os grandes empreendimentos que anseiam tomar o que há de mais valoroso para esses povos, são narrativas carregadas de símbolos e ritos que significam essas comunidades e fortalecem suas identidades. Mestre Joaquim Roseno, da Dança de São Gonçalo, e Mestra Mãe Zimá, da medicina tradicional de terreiro são ícones para refletirmos acerca do papel do povo negro na espiritualidade brasileira. O primeiro carrega consigo a ancestralidade dos povos quilombolas. O quilombo do Sítio Veiga, em Quixadá, é o palco de uma manifestação que tem na devoção ao santo um dos instrumentos de luta por reconhecimento da ancestralidade africana. O olhar sereno, a voz forte, os passos firmes de quem há mais de cinquenta anos realiza as famosas “jornadas” dialoga harmoniosamente com um sorriso e uma gargalhada leve, de quem tem uma vida sofrida, mas não se esquece

TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

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FOTO THIAGO NOZI

Roda da Oralidade

de sempre agradecer ao Divino por cada dia. Suas filhas, sobrinhas e netas dão sustentação não apenas aos bailados que se executam ao som do violão e do tamborzinho que Mestre Joaquim ganhou de seu pai. Elas são referências no movimento quilombola, fazendo do quilombo e da dança, instrumentos de fé e luta. Cada passo, cada verso, cada palavra, cada gesto é uma forma de resistência. Apresentar a espiritualidade quilombola como parte da cultura tradicional popular cearense, também é uma forma de lutar por reconhecimento e visibilidade. Diplomada em 2017, Mestra Mãe Zimá representa um grande avanço na política dos Tesouros Vivos. Quando falamos de religião ou espiritualidade popular, o catolicismo na sua forma mais heterodoxa é o que prevalece. Figuras 28

como Padre Cícero, Padre Ibiapina, Antonio Conselheiro, Beato José Lourenço permeiam o imaginário popular do sagrado. A umbanda por muito tempo foi criminalizada e, invisibilizada nas narrativas acerca das formas pelas quais o povo foi tendo contato com suas divindades. Sua entrada nesse contexto é fundamental para compreendermos que existem inúmeras formas de alimentar o espírito. São perspectivas que não se distanciam ou anulam. Muito pelo contrário: durante toda a manhã de encontro desses mestres, houve uma convergência muito forte entre os mestres da cultura indígena e a mestra da umbanda. Juntamente com os benditos do penitente Mestre Deca Pinheiro, e as orações da rezadeira Mestra Francisquinha FéXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

lix, o público presente conseguiu vivenciar diversas formas de oração e reencontros com sua alma. A tão desejada tolerância religiosa se fez presente em todos os dias e momentos do Encontro Mestres do Mundo. Não por um direcionamento da programação, ou por mediações externas. A convivência com o diferente, a escuta paciente, o coração e a mente aberta para escutar o outro, a alegria em estar em um espaço de construção coletiva, são características dessas mulheres e homens que possuem uma trajetória de vida sustentada por uma sacralidade: a cultura e o povo. Ser Tesouro Vivo para eles, não é somente preservar as tradições cultivadas ao longo de gerações. Mas também, lutar pela sobrevivência de seu povo diante das adversidades e ameaças que o tempo presente impõe. Não estamos falando aqui de uma luta contra o tempo, de um ímpeto de congelamento das relações sociais, de uma espécie de cristalização das sociedades, onde se encontra uma essência que deve ser preservada. O que marca essas personagens, é justamente o contrário: é o diálogo e a disposição em viver no tempo, em acompanhar as mudanças, indignar-se com elas, aceitá-las de bom grado, negociar para que elas não afetem demais o seu cotidiano. Lutar pela permanência de princípios éticos de sua existência também os faz ser Tesouro Vivo. São compromissos assumidos ao longo da vida, que não podem ser quebrados ou desfeitos por acordos ou circunstâncias passageiras. Uma vida com princípios e atenta às circunstâncias de seu tempo.



VIVÊNCIAS NO TERRITÓRIO JENIPAPO-KANINDÉ


FOTO THIAGO NOZI


Lourdes Macena Profa. Dra. em Artes - IFCE

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ssa atividade ocorreu no território singelo que denominamos “Terra Kanindé da Encantada” que compreende o espaço Sagrado dos Mangueirais onde ocorre o rito do Marco Zero, a Lagoa da encantada e o Morro do Urubu na TI do povo Jenipapo-Kanindé. Neste espaço realizamos atividades com estratégias específicas buscando difundir as etnias indígenas cearenses, principalmente seus saberes e fazeres. Além dos Mestres, acompanhantes e convidados, Atividade 1: Mangueiras – Toré/Torém, vivência com o Sagrado indígena Atividade 2: Mangueiras – Pintura corporal Jenipapo-Kanindé Atividade 3: Lagoa da Encantada – Pontos de Jurema, Oxum, Oxóssi e caboclos da mata, vivência com o Sagrado de matriz afro e indígena. Atividade 4: Morro do Urubu – Trilha do morro. Apesar da indiferença e descaso de muitos a população indígena cearense é formada por cerca de 22 mil índios, que segundo a FUNAI, vivem hoje distribuídos em 14 etnias: Tapeba, Tremembé, Pitaguary,

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FOTOS THIAGO NOZI

SOB A FLOR DO JENIPAPO (MUITO ALÉM DA TRANSMISSÃO DE SABERES DO POVO JENIPAPO-KANINDÉ)

Vivência Toré/Torém com o sagrado indígena

Jenipapo - Kanindé, Kanindé, Potiguara, Tabajara, Kalabaça, Kariri, Anacê, Gavião, Tubiba Tapuia e Tapuba Kariri. A luta pela entrega e manutenção de seus territórios, tem uma relação direta com sua forma de vida e salvaguarda de seus costumes garantindo uma relação diária com a natureza. Assim, a demarcação da terra indígena (TI) é uma devoXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

lutiva justa ao povo que a 519 anos tiveram suas terras invadidas e tomadas. A regularização de seu território de direito é luta também nossa! A devolução da terra indígena é hoje dificultada e impactada devido a especulação de grandes empreendimentos de complexo hoteleiro, campo de golfe, fábricas e empreendimentos do próprio


governo como ferrovias, rodovias estaduais e federais, gasoduto e linhas de transmissões. Interesses dos mais diversos promovem a demora na demarcação da terra indígena e isso traz morte e doença ao povo nativo que têm direitos ao acesso e posse ao território indígena em nossa constituição. A atividade desenvolvida na TI dos Jenipapo-Kanindé teve como objetivo principal favorecer conhecimento e um olhar afetivo sobre a necessidade do território na vida dos índios nativos pois de posse de sua terra além de promoverem seus saberes podem estabelecer suas escolas e seus espaços para garantirem saúde e educação da população respeitando seus costumes. Sob a flor do Jenipapo estavam eles, os Jenipapo-Kanindé e os parentes Tapebas, Tremembéns e os não Índios, mas também seus irmãos, numa ação de vida mútua compartilhada. Ali, comendo do seu beiju, saboreando suco de manga, ao som do Torém, Toré e outras cantigas, no espaço sagrado do marco zero dos Mangueirais dos Jenipapo-Kanindé, foi possível sentir uma espiritualidade cósmica irmanando a todos que deveria ser a mesma da vida verdadeira, pois eles os índios são parte da terra mãe que nos alimenta e da natureza que nos protege pois eles pertencem a terra e assim a terra pertence a eles. Na lagoa da Encantada a água banhou os pés de Mãe Zimá (tesouro vivo da umbanda cearense), Cacique pequena (cacique Jenipapo Kanindé), Luís Caboclo (pajé

Vivência Pintura Corporal

do povo Tremembé), João Venâncio (cacique do povo Tremembé) e todos os que os acompanhavam. Ao som de seus cânticos sagrados sentimos a lagoa da Encantada e Tapuia (entidade cabocla da umbanda) nos visitou promovendo risos, brincadeiras e fé. Foi mágica aquela manhã, pois sentimos todo o encantamento e momento de profunda gratidão por tudo que este planeta nos dá, pelo que é vital e a vida contemporânea teima em querer nos tirar e que infelizmente alguns homens deixaram de sentir e ver e por isso, dificultam a demarcação de terra, continuam numa profunda exploração do solo, da natureza enchendo a vida de veneno. Estar ali foi o melhor momento do XII Encontro Mestres do Mundo. Caminhar

no território indígena, ver e sentir sua vida cotidiana, caminhar no morro do Urubu e poder sentir a brisa no rosto e o calor do sol na pele, ver a paisagem paradisíaca do alto do morro com a juventude indígena e não índia uns aprendendo com os outros foi oportunidade de entender a singeleza do sentido Tesouro Vivo e da ancestralidade que nos alimenta. O Abraço coletivo entre todos sob o canto da Loa em Homenagem a cacique Pequena de autoria de Calé Alencar do Maracatu Nação Fortaleza “Salve Mãe Pequena Jenipapo-Kanindé” encerrou esta atividade no local, porém deixou tudo marcado em nossa pele e nosso coração. Salve mãe Pequena! Salve, salve todos os povos indígenas do nosso pais!

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CANÇÃO: SALVE MÃE PEQUENA JENIPAPO-KANINDÉ

Letra e Música: Calé Alencar FOTOS THIAGO NOZI

Sou Jenipapo da Lagoa Encantada Sou Jenipapo, meu povo é Kanindé Sou dessa terra Salve a Índia Mãe Pequena Gente da pele morena Da jurema e do toré Eu vou me banhar na lagoa Ver a Mãe d’Água No clarão da lua cheia Ó deus Tupã Abençoai nossa nação Bate forte maracá Hoje tem festa na aldeia Mãe Pequena de luz e de fé Sou do Cauim, parente, pajé Mãe pequena de luz e de fé Sou Jenipapo, sou Kanindé Oaparona êtê Jaçanã guirá pendê Ô gurari, ô gurari êtê Jaçanã guirá, ô pendê Jaçanã guirá (BIS)

Vivência com Mãe Zimá e Pajé Luís Caboclo

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Salve Mãe Pequena Jenipapo-Kanindé Calé Alencar

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Espaço cenográfico dedicado aos Encantados

OS ENCANTADOS

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saber dos encantados evidenciou nossa preocupação com os grupos que estão em risco devido a partida de seus Mestres e possibilitou incentivo a continuidade do saber compartilhando com outros, fazeres que se mantem pela memória daqueles que conviveram com Mestres falecidos. A atividade Os encantados se constitui de uma ação criada na edição do X Encontro Mestres do Mundo em 2016 pela mesma curadoria do XII Encontro,

buscando contribuir como incentivo aos grupos de expressões já reconhecidas como tesouro vivo do estado e que tiveram seus mestres falecidos. Esta ação garantiu no evento Mestres do Mundo uma exposição/homenagem sobre estes e seus saberes e incluiu algumas oficinas de suas expressões culturais na programação oficial, sejam estas coletivas ou individuais. Seguindo a fala do bonequeiro Pedro Boca Rica (Ocara/CE) quando disse que “o bonequeiro vai, mas o boneco fica e

assim o boneco se torna imortal” criamos a teoria de que apesar do falecimento do Mestre o saber pode permanecer nas relações sociais e culturais estabelecidas no cotidiano da comunidade. Isto é possível, quando o repasse deste saber ocorre na respeitabilidade e reconhecimento principalmente no território em que vivem/viviam. Assim, entendemos que apesar da morte do Mestre, muitos destes saberes resistem na forma como outros continuam seus guardiões pelo corpo e pela memória.

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OFICINAS E AULA ESPETÁCULO “O SABER DOS ENCANTADOS”


FOTO THIAGO NOZI


FOTO THIAGO NOZI

Atividade de vivência durante o XII Encontro Mestres do Mundo

UM PATRIMÔNIO DE TRADIÇÃO E AFETOS: AÇÕES EDUCATIVAS E FORMATIVAS DO XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO Adson Rodrigo Silva Pinheiro Mestre em História Social – UFC Coordenador de Ações Formativas do do XII Encontro Mestres do Mundo. Aterlane Martins Mestre em História Social – UFC Curador Assistente do XII Encontro Mestres do Mundo. 38

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entre tantos lugares possíveis para aprender, os bens tombados são um habitat significativo. Expressivo porque o patrimônio cultural ativa a memória; faz pensar sobre a constituição, a manutenção e a transformação de nossas identidades; aponta as raízes do tempo, que fixam nossa atenção para os processos de formação histórica, cultural, econômica e sociopolítica da comunidade. Aquiraz, terra colonizada, encontra-se ali um lugar urgido pela tradição dos povos indígenas Jenipapo-Kanindé e de outras etnias, outrora dissipadas, que hoje tem na Cacique Pequena, Mestra da Cultura/ Tesouro Vivo do Ceará, um símbolo que dá materialidade à resistência da ancestral presença indígena e traz, de forma expressiva, o grande arcabouço de saberes e fazeres herdados e continuados no território da Lagoa da Encantada. Resistência e permanência nesse lugar, também, de negros. Desde os tempos da escravidão africana e dos trabalhos nos canaviais e nos engenhos de produção de açúcar, de rapadura e de aguardente, cultura alimentar ainda praticada na região. As comunidades Lagoa de Ramos e Goiabeiras, com os povos que vivem ali, na luta pela sobrevivência e defesa de suas identidades, já que ainda hoje pelejam contra a expropriação histórica de suas terras, consideradas instrumento de trabalho agrícola, contra a invisibilidade realizada pelo processo de “caboclização” do sertanejo e as mudanças da conjuntura rural para a urbana, onde crescente oferta de

trabalho formal aparece, muitas vezes a sobrepor a importância de se manter o trabalho tradicional rural. Ao vislumbrar o conjunto arquitetônico formado pela Igreja Matriz de São José de Ribamar, a antiga Casa de Câmara e a Cadeia, hoje Museu Sacro – onde ao mesmo tempo se faz presente São José, o carpinteiro, e São José de Botas –, o Mercado da Carne e a Casa do Capitão Mor, aproximamo-nos de um território marcado pelas influências diretas da presença lusitana. Também nas expressões populares a Caninha Verde, que dançada pelos pescadores nativos, é uma herança do colonizador retrabalhada na cultura local. Reminiscências presentes no desenho das rendeiras, que cruzando e trocando os bilros tramam poesias em forma de rendilhado, é uma outra herança lusitana. Aquiraz é um lugar habitado pela diferença, pela birra de ser heterogênea; pelas memórias sempre em conflito; dos afetos e desafetos que aproximam e distanciam as pessoas do pertencimento em relação ao lugar; diferenças que se propagam nas identidades transcritas não só no tangível, mas também no intangível. É nesse cenário que fomos convidados a realizar ações formativas do XII Encontro Mestres do Mundo. Atraídos pelo desafio de provocar reflexões sobre as referências identitárias locais, como também fortalecer a autoestima e a subjetividade em relação às experiências entre afetos e arte, promovendo criações coletivas a partir do vivido, sempre sob a ótica patrimonial.

No campo educacional, o entorno da escola, em uma perspectiva que envolve a educação e o patrimônio, é reconsiderado a partir da ocupação dos sítios com outras atividades que não sejam as comuns, mas que acabam atrelando-se ao espaço de vida, à história e fazem parte da produção e vivência cultural que podem ser geradas a partir da convivência das pessoas; nessas relações, memórias e discursos são legitimados e deslegitimados, a partir de manifestações locais ou de outras experiências culturais inseridas ali para apreciação da comunidade. Dar visibilidade às manifestações que ao passar do tempo “andam desaparecendo” ou trazendo um repertório de manifestações cultivadas pelos mestres de tantos lugares do “mundo-Ceará”, é, de certa forma, fazer com que novas histórias sejam vivenciadas e novas visões de mundo sejam possibilitadas. As ações educativas, organizadas na forma de oficinas, aulas e espetáculos, ministradas pelos mestres e seus aprendizes nas tradições escolhidas, possibilitam um processo de conhecimento e de autoconhecimento, não só como “aquiraense”, mas como cearense. Pensar o uso dos bens culturais, não apenas tradicionalmente os de natureza material, mas também os de natureza imaterial, como recursos educacionais, é fazer com que as expressões e os saberes sejam reconhecidos como importantes para a edificação da subjetividade, possibilitando um novo olhar sobre quem somos e onde estamos, levando a com-

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FOTO THIAGO NOZI

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Atividade de vivência no XII Encontro Mestres do Mundo

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preensão que nossa cultura não é isolada, mas compartilhada. Partindo do pressuposto apresentado acima, percebemos a importância da aula-espetáculo Maracatu e o saber do mestre Juca do Balaio realiza pelo Maracatu Az de Ouro. Conhecer o maracatu e os ofícios, os fazeres e os saberes relacionados a ele é tomar para nós a responsabilidade de aproximar os mais jovens das memórias corporais, do processo espiritual, ancestral, linguístico, simbólico e expressivo da manifestação que é signo da presença negra em nosso território. A Oficina Nau perdida em busca de afetos ministradas pelas professoras Lourdes e Circe Macena, possibilitaram uma experiência com o canto, a dança e o teatro do Fandango. A oficina foi realizada com o pescador Seu Manoel, com as crianças e os jovens filhos de pescadores locais. O encontro de gerações é também um encontro dos saberes, um processo de troca e de transformação cultural mútua. No último dia do evento o resultado da oficina foi levado à Arena dos Mestres para a apresentação pública. Outra aula espetáculo foi a Sanfoninha de Pé de Bode com o mestre Galvão. O som da sanfoninha musicaliza a tradição, e diferencia-se do som dos outros instrumentos musicais de mesma natureza, nos levando ao desafio de refletir acerca da necessidade da valorização dos poucos músicos tocadores, da difusão do instrumento e da formação de novos músicos.

AS AÇÕES EDUCATIVAS (...) POSSIBILITAM UM PROCESSO DE CONHECIMENTO E DE AUTOCONHECIMENTO

A aula espetáculo com o grupo Reisado Boi Coração, liderado pelo Mestre Luciano Correia, de Ocara, faz-nos viajar para conhecer os valores e as tradições culturais do Ceará sertanejo, a fim de ampliar atitudes de reconhecimento à criatividade, uma vez que manifestações como essa desenvolvem por meio de atividades com música, enredo, dança, desenho e confecção de personagens tradicionais e de sua renovação. Por fim, a Oficina sobre o Saber da Construção de Jangadas, fez com que os jovens aproximassem-se de técnicas tradicionais da cultura pesqueira e dos modos de fazer a embarcação, assegurando por meio desta formação que os alunos pudessem inter-relacionar o saber e o saber-fazer, a teoria, a prática, a cultura escolar e a cultura do quotidiano. Saber que a pesca faz parte da sua história, das suas origens, da construção de suas identidades, mantendo a sintonia entre as gerações, garantindo e promove a perpetuação dos saberes ancestrais ao longo do tempo.

Desde a edição de 2016, o evento Mestres do Mundo promove em sua programação a ação de educação patrimonial Valores do meu Lugar, que consiste na oportunidade de alunos, sob a orientação de professores, pesquisarem, reconhecerem, registrarem e apresentarem os patrimônios locais do seu bairro, da sua casa, da sua família, inserindo-os no panteão dos mestres da cultura. Através de pranchas com fotografia do bem/agente cultural, de informações resumidas deste e a própria identificação do aluno e escola, é organizada uma exposição visual. Em 2018 foram recebidas 49 propostas, todas incluídas na exposição que se realizou na Casa do Capitão Mor e esteve aberta a visitação pública durante todo o evento. Importante ressaltar que esta atividade contribui para a compreensão dos participantes, dos alunos e dos professores, sobre o patrimônio cultural, sobre os mestres, saberes e fazeres locais, aproximando-os desta realidade, que de outro modo poderia lhes parecer distantes, apenas para apreciação e não para vivência, prática pessoal e cotidiana. Certamente este conjunto de ações formativas e educativas tem contribuído com os distintos públicos do Encontro Mestres do Mundo, mas de forma especial aos mais jovens que podem, muitas vezes, no primeiro contato ter o despertar do interesse e se efetivarem como promotores, senão detentores de saberes, de fazeres e de expressões tradicionais da cultura popular.

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Joaquim Pessoa Araújo, o consagrado Mestre Juca do Balaio, foi um dos mais famosos balaieiros do maracatu cearense. Compôs a sua história desfilando entre as décadas de 1970 e 2000, no Maracatu Az de Ouro, da cidade de Fortaleza, uma das agremiações mais antigas em atividade no Ceará. Ganhou a titulação de Mestre da Cultura Tradicional do Estado do Ceará em 2004 em reconhecimento, não apenas pela sua habilidade ao desfilar com o balaio nos carnavais de Fortaleza, mas pela atenção e dedicação de sua vida ao maracatu cearense, a sua contribuição na formação de tantos outros mestres maracatuzeiros. Em 2006 encantouse desta vida, deixando seu legado a inspirar a luta pela manutenção da tradição dos maracatus na capital cearense, com influências por todo o Estado. No XII Encontro Mestres do Mundo, seu filho e herdeiro da tradição dos maracatus, Marcos Gomes, realizou uma aula espetáculo em sua memória na cidade de Pindoretama-CE, difundindo a cultura do maracatu a partir do trabalho particular do seu pai, o saudoso Mestre Juca do Balaio.

FOTO THIAGO NOZI

MARACATU AZ DE OURO E O SABER DO MESTRE JUCA DO BALAIO

Oficina realizada pelo Maracatu Az de Ouro

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FOTO ATERLANE MARTINS

JANGADAS E PESCADORES O SABER DE MESTRE OLIVEIRA Mestre Oliveira foi pescador na Prainha de Aquiraz e depois um exímio artesão de jangada, promovendo uma peculiaridade em sua obra, pois toda jangadinha trazia a vida dos homens do mar, suas histórias e particularidades. Mestre Oliveira, que foi mestre jangadeiro, faleceu em 2013, sendo hoje um dos Tesouros Vivos encantados. Trouxemos sua vida e presença neste XII Encontro, destacando a jangada de vela promovendo entre a juventude que nos visitou o reconhecimento da arte daqueles que navegam e pescam no mar.

Registro da Oficina Jangadas e Pescadores, o saber de Mestre Oliveira

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FOTOS THIAGO NOZI

OS OITO BAIXOS DE CHICO PAES Chico Paes, velho tocador amante apaixonado pela sanfoninha pé-de-bode, foi amigo e parceiro de Patativa e se tornou famoso aos 84 anos ao se tornar tesouro vivo do Ceará, encantou-se e, desde junho de 2018, está tocando sua concertina de oito baixos na mansão celestial. A sanfona ou harmônica de oito baixos, conhecida popularmente por sanfoninha pé-de-bode, está com poucos tocadores, executores desta, no interior nordestino. Este saber necessita de uma ação para repasse no meio da juventude e buscando contribuir com a difusão deste saber elaboramos esta homenagem a Chico Paes, tesouro vivo, hoje Encantado. Estão se indo pouco a pouco os últimos tocadores de “pé-de-bode”, ou harmônica de oito baixos, do interior cearense. Esta ação evidenciou este saber e tenta promover reflexões sobre políticas públicas necessárias para a sanfonina de pé-de-bode.

Apresentação do Mestre Galvão na sanfona de oito baixos

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REISADO BOI CORAÇÃO MESTRE LUCIANO - ENCANTADOS...

Oficina Saber dos Encantados Boi Coração Mestre Luciano

Líder por muitos anos do Reisado Boi Coração de Ocara, Mestre Luciano Correia dos Santos maravilhava plateias com o seu grupo repleto do colorido de suas roupas, com a animação e peculiaridade dos seus personagens e o comando da musicalidade característica do boi do Estado do Ceará. Imagens da animação do Mestre e o trabalho árduo para o reconhecimento do grupo são lembranças guardadas na memória daqueles que

conviveram e assistiram de perto o trabalho dele. Em 2006, é reconhecido como personalidade ocarense como forma de prestígio pelos trabalhos desenvolvidos em nome da cultura do município ao longo de sua jornada. Nesse XII Encontro Mestres do Mundo, seu saber é rememorado pelo seu grupo que pulsa e persiste, mesmo após o encantamento só mestre, na difusão dos saberes e fazeres do reisado cearense.

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NAU PERDIDA EM BUSCA DE AFETOS: MEMÓRIAS DA EXPERIÊNCIA Circe Macena Mestra em Artes - IFCE Integrante do Grupo Mirara -IFCE

FOTO THIAGO NOZI

Nayana Castro Licencianda em Dança - UFC Integrante do Grupo Mirara- IFCE

Resultado da Oficina do saber dos Encantados - Fandango

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XII Encontro de Mestres do Mundo trouxe, em sua programação, várias atividades relacionadas a manifestações que não estão mais nos circuitos festivos das cidades ou que estão retornando aos poucos seus costumes que porventura tiverem que abdicar em algum momento. Às vezes com o falecimento de um Mestre, um grupo se desestabiliza e enfraquece a sua ação. Eventos como esse podem reacender a chama de grupos adormecidos e efetivá-los em suas comunidades. Dessa forma, previne-se que memórias de um Ceará esquecido ecoe pelo espaço. A brincadeira não se perde totalmente depois que o grupo deixa de fazer. Pois mesmo que deixem de dançar a Cana Verde, por exemplo, muitos ainda irão recordar sobre ela, sobre quando dançaram ou quando viram, até quando leram um trabalho na internet sobre isso. Entretanto, quando uma manifestação deixa de ser vivida por sua comunidade, quando um único ser humano não trouxer em sua memória lembranças do que viu ou viveu, aí sim temos uma grande perda da nossa identidade cultural, perdemos parte do que nós somos enquanto cearenses. Vale ressaltar então a importância de atividades que potencialize as ações culturais que ocorrem antes que elas desapareçam. É importante que todo brincante continue a brincar, que todo pesquisador continue a pesquisar e a registrar, que todo aluno continue a vivenciar, que todo Mestre continue a ensinar e que toda criança continue a aprender. Assim, fortalecemos o ciclo necessário para a preservação natural das nossas identidades.

O FANDANGO É UMA DANÇA DRAMÁTICA DO LITORAL CEARENSE, SUA TEATRALIDADE É ÉPICA E NARRA AVENTURAS DE MARINHEIROS EM ALTO MAR.

Dentro da programação do evento, ocorreu uma oficina chamada “Nau perdida em busca de afetos”. Esta oficina promoveu o encontro do Fandango, brincadeira do bairro do Mucuripe (Fortaleza-CE) que não é mais vivida pela comunidade, com jovens da Escola EMEF Rita Paula, na Prainha – Aquiraz-CE. O Fandango é uma dança dramática do litoral cearense, sua teatralidade é épica e narra aventuras de marinheiros em alto mar. Possui diversos personagens de marinheiros que compõem a embarcação e assim cantam, dançam e lutam contra os

marinheiros mouros que também entram na história para uma grande luta de espadas que caracteriza o conflito. A oficina foi ministrada por Circe Macena e Nayana Castro dançarinas atrizes do grupo MiraIra (Laboratório de Práticas Culturais Tradicionais do IFCE – campus Fortaleza), com a colaboração de dançarinos e músicos também do grupo, como: Marina Leite, Alisson Barbosa e Leticia Rodrigues que contribuíram com o repasse junto aos alunos. O objetivo da oficina é favorecer a experiência da brincadeira para um grupo de alunos da escola e realizar uma apresentação no início da programação noturna do evento, daquele mesmo dia. Para isso, Circe fez uma adaptação do roteiro escolhendo algumas partes do Fandango que mostrasse a diversidade de personagens, ritmos, elementos coreográficos e ainda desse uma ideia de apresentação única para o público, com entrada, apresentação de alguns personagens, conflito e saída. O que se preparou para oficina foi uma construção rápida e eficaz para o objetivo de nossa proposta, que era vivenciar o Fandango e apresentá-lo a noite para o público do Encontro dos Mestres do Mundo. A turma era composta por adolescentes, entre meninos e meninas que foram convocados pela própria escola a participar. Num primeiro momento nos atentamos a envolver e explicar do que se tratava da oficina, quais motivações nos levaram a estar ali, explicar a importância de ações como essa. E assim aos

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Oficina O Saber dos Encantados - Fandango, com jovens da Prainha

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Oficina O Saber dos Encantados - Fandango, com jovens da Prainha

poucos fomos sensibilizando a turma e partirmos para a coreografia. Foram entregues as músicas escritas, para que cada um pudesse acompanhar o enredo da histórias e falas de personagens do Fandango através das canções, que eram tocadas ao vivo pelos nossos parceiros músicos. Escolhemos ir compondo os passos, músicas e danças, ao mesmo tempo que o enre-

do do folguedo ia sendo construído e adaptado às condições do momento, de algumas horas juntos, que tínhamos para apresentarmos na praça do evento a noite. Notamos que aos poucos foi se dando uma compreensão maior do que estávamos arranjando juntos, entre oficineiras, oficineiros e alunos com música, dança e teatro. Os participantes ficaram bem empolgados a medida que a proposta ia

tomando forma, que o perfil dos personagens iam sendo concebidos. Todas e todos se esforçaram para decorar seus passos, as músicas, os pequenos textos rimados (o que colabora tanto no processo de aprendizagem e que é tão incorporado nas nossas brincadeiras populares, uma vez que o ritmo e a musicalidade da palavra dão tom e interpretação ao texto). A noite, os alunos chegaram à praça, pegaram os figurinos que foram cedidos pelo grupo MiraIra e aguardaram muito ansiosos pela apresentação. Depois de fazermos alguns ajustes eles se juntaram e fizeram uma oração em agradecimento ao momento e à experiência. A apresentação foi um momento muito bonito, a concretização de que é possível conectar jovens com a cultura do nosso lugar. Aqueles meninos e meninas estavam tão felizes por terem se apresentado, por terem dançado algo que também fala sobre eles que, parentes de pescadores, que talvez algum dia seus avós ou bisavós já tenham visto ou dançado o Fandango. Naquele dia, eles faziam parte de algo muito maior. Durante a oficina eles entenderam que nossa missão também é repassar nossa cultura, para que ela não se perca na memória, por isso, naquele dia eles pertenciam a esse grupo de protetores e multiplicadores de saberes. Pois, como diz Lourdes Macena “o que temos aprendido na vivência contínua com o patrimônio Imaterial é que saberes coletivos não se vão totalmente com seus Mestres, mas sim permanecem com aqueles que com eles se relacionam”.

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SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR DE PATRIMÔNIO IMATERIAL


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APRESENTAÇÃO DO SEMINÁRIO

Mesa Redonda do Seminário Interdisciplinar de Patrimônio Imaterial

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II Seminário Interdisciplinar de Patrimônio Imaterial trouxe reflexões com questões envolvendo o Patrimônio Imaterial objetivando concorrer para o fortalecimento das políticas de patrimônio. O Seminário possibilitou também mostras de trabalhos acadêmicos de pesquisadores e estudiosos da cultura tradicional popular, distribuídas em cinco simpósios temáticos coordenados

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por profissional relacionado à área específica do estudo. Buscou-se com isso uma ação formativa direcionada principalmente ao docentes por meio do compartilhar de saberes e ações que estão sendo desenvolvidas em muitos territórios. O tema do encontro intitulou-se “Reflexões sobre processos culturais dos Bens Imateriais - Resistência e sobrevivência de práticas coletivas – diálogos XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

interdisciplinares” com a Mesa “Resistência e sobrevivência de práticas coletivas”. Nesta mesa discutiu-se e dialogou-se sobre necessidades de iniciativas que pudessem favorecer a continuidade dos processos de saber/fazer alusivo a práticas coletivas e ou individuais dos bens de natureza imaterial destacando aspectos que envolvem o meio ambiente, sustentabilidade, educação, segurança e atividade comunitária.


II SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR SOBRE PATRIMÔNIO IMATERIAL Poliana Santos Braga Presidente da Comissão Cearense de Folclore Pós-Graduada em Cultura Folclórica Aplicada – IFCE

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Comissão Cearense de Folclore tem sido parceira constante da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, desde o primeiro momento da concepção do projeto Encontro Mestres do Mundo, por acreditar que a memória e o patrimônio cultural de nossa gente merecem ser cada vez mais preservados. O XII encontro Mestres do Mundo é um evento que dá visibilidade as diversas formas de expressão da nossa cultura tradicional popular, enraizada na nossa história e vivida mais precisamente pelos mestres, homens e mulheres, que aprenderam sua arte das gerações anteriores e assim com seus ancestrais têm ajudado a perpetuar estas tradições hoje incorporadas como patrimônio imaterial do povo cearense. O XII Encontro Mestres do Mundo é uma reunião ampliada de várias manifestações da cultura popular tradicional, mestres, brincantes, pesquisadores e estudantes. Na tentativa de se refletir sobre a preservação destes bens imateriais da cultura popular tradicional, a Comissão Cearense de Folclore, organizou junto com a Coordenadoria de Patrimônio Histórico Cultural – COPAHC/SECULT-CE o II Seminá-

rio Interdisciplinar de Patrimônio Imaterial, trazendo a tona diversos trabalhos de diferentes pesquisadores, que têm como objeto de estudo, as crenças, os saberes, as representações, formas de ser, de viver, e de fazer, contribuindo de fato para a fixação da memória destas manifestações no tempo futuro. A programação do II Seminário Interdisciplinar sobre Patrimônio Imaterial foi composta por uma mesa temática e um simpósio com apresentação de trabalhos de pesquisa sobre a cultura tradicional popular. Na mesa temática “Reflexões sobre processos culturais dos bens imateriais”, palestrantes como a professora Regina Machado (USP), Gilmar de Carvalho (UFC), e Ricardo Nascimento (UNILAB), apresentaram e debateram com a plenária, a importância de iniciativas que pudessem favorecer a continuidade dos processos do saber fazer alusivas as práticas coletivas e ou individuais dos bens de natureza imaterial, destacando os aspectos que envolvessem o meio ambiente, a sustentabilidade, a educação, e as atividades comunitárias. Para a programação do Simpósio foram selecionados 22 (vinte e dois) tra-

A PROGRAMAÇÃO FOI COMPOSTA POR UMA MESA TEMÁTICA E UM SIMPÓSIO COM APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS DE PESQUISA SOBRE A CULTURA TRADICIONAL POPULAR. balhos, distribuídos em cinco GT’s temáticos: 1. Artesanato e Gastronomia Tradicional Popular, 2. Religiosidade Popular, 3. Danças e Folguedos Tradicionais, 4. Oralidade, Dramas e Outros Saberes e 5. Música de Tradição Oral. Alguns dos trabalhos apresentados foram relacionados com pessoas que vivenciam em suas rotinas uma profunda ligação com estas manifestações, seja na prática, nos estudos de tais práticas, ou simplesmente por terem ao longo do tempo construído laços de afetividade com estas tradições.

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Mesa realizada durante o Seminário com os convidados

Já alguns anos o Estado do Ceará através do Encontro Mestres do Mundo, vem se destacando como um dos estados que tem feito um esforço muito grande para que estas memórias de mestres e brincantes estejam cada vez mais próximas de nós, não 54

desapareçam com o passar dos anos, que sejam cada vez mais fontes de inspiração, de conforto para alma através do lúdico e do reencontro com a nossa ancestralidade. Desta forma acreditamos que Estado e sociedade civil juntos podem trabalhar XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

no sentido de promover o respeito à diversidade cultural e a criatividade humana, tendo como base a preservação do patrimônio imaterial criado e recriado por mestres e comunidades tradicionais espalhados pelas terras alencarinas.



SIMPÓSIOS TEMÁTICOS


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ARTESANATO TRADICIONAL E GASTRONOMIA POPULAR TRADICIONAL Cláudio Couto Prof. Uece Membro da Comissão Cearense de Folclore (CCF) Coordenador do Simpósio de Artesanato e de Gastronomia do XII Encontro Mestres do Mundo.

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iscorrer sobre quaisquer das áreas folclóricas, mantendo o foco no Ceará é tarefa, ao mesmo tempo, simples (pela enorme diversidade de fatos folclóricos e atores sociais envolvidos) e complexa (pela mesma argumentação exposta), ao extremo. Temos, em toda a extensão de nosso território, uma distribuição mais do que generosa, no assunto. Não seria diferente, consequentemente, enfocando-se Artesanato Tradicional. Imaginar e materializar objetos funcionais e/ou decorativos, produzidos com ferramentas igualmente artesanais, a partir de fontes naturais e industrializados descartados pela sociedade vem ocorrendo em terras alencarinas há séculos, herdeiros que somos da inventividade ameríndia, com fortes injeções daquilo que africanos negros e portugueses nos delegaram na Cultura. Neste processo, aliaram-se a necessidade (pela escassez de alternativas viáveis de sobrevivência em condições precárias) e uma enorme criatividade. Não é novidade para ninguém que uma das primeiras

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imagens evocadas por turistas, referindo-se ao Ceará, é a amplitude e a qualidade de nosso artesanato tradicional. Artesania Tradicional envolve muito mais do que pensar friamente e executar objetos... Fundamental é aceitar que sociabilidades (pensem nas comadres sentadas na calçada, num fim de tarde, bordando...), sentimentos múltiplos (lazer, bem-estar, relaxamento das tensões cotidianas, realização pessoal e profissional, catarse etc.), sustentação econômica (ainda hoje, única/uma das pouquíssimas chances de emprego/renda para milhares de cidadãos domiciliados em povoados e vilas distantes) e herança sociofamiliar (vide a fala de inúmeros artesãos: “... desde que me entendo por gente, toda a minha família faz, eu comecei bem pequeno, minha mulher faz, meus fios também...”) estejam enredados, na composição de significados para essas pessoas. Estudando ocorrências artesanais cearenses, seria interessante apontar uma classificação tipológica (por insumos básicos empregados) predominante. XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

Na verdade, quase todas as alternativas aqui podem ser encontradas. Se o interesse for em cerâmica, há “de ruma” e de qualidade elevada; se madeira for o foco, da mesma forma e em toda parte; couro dá possibilidades de dispersão por quase toda a extensão do Estado, de onde Capistrano de Abreu extraiu suas observações clássicas sobre a Civilização do Couro, que moldou e ainda influencia o pensar e o agir cearenses; fios entrelaçados, igualmente, com prevalência praiana; palhas, principalmente de carnaúba, sustentam e dão dignidade a milhares de nossos conterrâneos, com destaque para as regiões média e baixa jaguaribanas; descartáveis são reciclados de forma inventiva e ecossustentável, quer metais, plástico, papéis, vidro e associações dos mesmos. Interessante seria destacar que, embora não se constitua em uma categoria à parte, o Ceará “criou” sua especificidade artesanal tradicional, ao somar areia em vidro ao arsenal preexistente. Já existem dezenas de Tesouros Vivos da Cultura Popular Tradicional diplomados pelo Ceará. No entanto, muito mais


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Feira Gastronômica com produtos locais da cultura canavieira

importante do que apenas reverenciar e aclamar aqueles apoiados pelo poder público estadual é a constatação de que nosso potencial é muito maior do que o reconhecimento oficial. Pesquisadores atestam a possibilidade de que há Mestres e Mestras a serem “descobertos” e destacados em todos os quadrantes cearenses, de Jijoca de Jericoacoara a Penaforte, de Granja a Icapuí. Para alimentar ainda mais o enlevo de estudar o tema, basta verificar que, apesar da sensível redução de crianças e jovens atraídos à artesania tradicional (afinal de contas, o

Ceará contemporâneo oferece diversos outros atrativos), é quase impossível especular o que o futuro nos reserva... Rendeira de bilro – Prainha, Aquiraz, CE. A Gastronomia Popular Tradicional é uma forma de identificação cultural do povo cearense. Não apenas comemos para “encher o bucho”, mas para afirmar e reafirmar quem somos, nossos anseios, o que apreciamos e aquilo que desvalorizamos no “cumezim” cotidiano; assim como nossa prova de existência, via comidas. Para compreender nossa Cearensidade (ou Pertencimento Cultural)

Gastronômica(o) Popular Tradicional, deveremos nos recordar de nosso processo de formação social, de nossos climas, de características do solo etc. O ditado popular: “Diga-me o que comes, que eu te direi quem és!” se aplica como uma luva no processo de identificação da cozinha cearense tradicional. Hábitos e Costumes, rituais ligados à comida, mitos alimentares, prescrições especiais, o quê comer, como comer, quando e em que companhia (ou não) foram preservados e mantidos por séculos e, ainda hoje, podem ser observados,

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Rendeira de Aquiraz

principalmente quando o objeto de análise for o Ceará Profundo, aquele ainda longe da globalização das comunicações. No entanto, nos últimos 30 anos, as transformações induzidas na sociedade modificaram substancialmente as tradições. Novos alimentos foram incorporados à dieta do dia-a-dia (quem poderia imaginar o sucesso estrondoso do açaí e das massas e dos refrigerantes, mesmo entre os mais humildes, há duas gerações?); enquanto outros foram esquecidos/abandonados (como o cuscuz ou pão de milho)... Os cearenses, na atualidade, têm uma gama bastante expressiva de opções alimentares; ao contrário da tradicionalidade à mesa dos menos aquinhoados. É possível estabelecer-se três categorias básicas de cardápios, fundamentados nas regiões sociogeoculturais tradicionais: a) comida litorânea (com predomínio de frutos do mar, farinha, rapadura, feijão etc; b) comida

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serrana, com fortes ocorrências de frutas e verduras, doces, feijão, farinha e carnes assadas etc.; c) comidas sertanejas, com prevalência de carnes assadas, farinha, rapadura, feijão etc. A Contemporaneidade trouxe uma expressiva vontade de conhecer e consumir novas comidas e outros elementos culturais ligados à alimentação e os jovens estão sempre na vanguarda. A cada dia, mais novidades surgem e são incorporadas ao “comer cearense”. Neste aspecto, contudo, os mais velhos são resistentes e insistem em não abandonar aquilo aprendido com suas avós/ madrinhas - afinal, em todo o mundo, a cozinha sempre foi um espaço feminino, por excelência - desde os primeiros anos de vida. É preciso que os menos vividos percebam que não é porque seus parentes idosos insistem em “comer à capitão” (sem o uso de talheres), que devem ser afastados do convívio social. Desde o Ceará Colônial que as pessoas

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comiam assim (haja visto a fortíssima ascendência indígena da maioria dos cearenses) e tais comportamentos permitiram que seus ancestrais não apenas sobrevivessem, como tivessem criado suas famílias. Comendo “à capitão”. Costume tradicional sertanejo (e em outras regiões) cearense. Alguns ícones alimentares cearenses: Queijo de coalho e manteiga de garrafa. Engenho – desinformando a rapadura Vale destacar que durante o evento Mestres do Mundo houve uma preocupação em estimular a gastronomia familiar local de modo que estes pudessem levar para os visitantes seus sabores e isso tem sido algo muito importante durante o evento considerando que a gastronomia e o artesanato são práticas emergentes surgidas a partir das necessidades cotidianas do grupo social.


GT DANÇAS E FOLGUEDOS TRADICIONAIS

BUMBA-MEU-BOI RESISTÊNCIA: ELEMENTOS AFRO-INDIGENAS RESISTENTES NA MANIFESTAÇÃO DO BUMBA-MEU FORTALEZENCE Pesquisadora: Liana Cavalcante Costa (UNILAB) Orientador: Edson Holanda(UNILAB) RESUMO Este artigo é parte da pesquisa de Mestrado que a autora tem desenvolvido na UNILAB, dentro do Programa do Mestrado Interdiscipinar em Humanidades, com o apoio da FUNCAP e visa sobre elementos afro-indigenas do bumba-meu-boi fortalezence, presente no território do Grande Pirambu. A pesquisa analisa a constituição da brincadeira do bumba-meu-boi, tal como ela se apresenta, refletindo sobre seus enredos, signos e símbolos e fazendo associações dos mesmos com a cultura afro e indígena. Também reflete sobre as pessoas nela envolvidas e como as mesmas se mantêm como brincantes, apesar das necessidades de subsistência impostas pelo capitalismo na urbanidade. Este estudo identifica-se com uma metodologia interdisciplinar, buscando dialogar principalmente com a História, antropologia, sociologia e arte. Identifica-se também com os estudos decoloniais, compreendendo que estudar esta comunidade periférica é dar voz a pessoas historicamente silenciadas, e cuja identidade cultural

foi e ainda permanece sendo negada em detrimento da necessidade de fazer prevalecer a cultura eurocêntrica, mas que encontra no seio do seu território mecanismos de resistência, presente no seu modo de fazer, no seu cotidiano e nos elementos e significados que o acompanham. Palavras chave: Periferia; cultura afro-indígena; decolonialidade; migração; manifestações tradicionais; comunidades, Patrimônio imaterial INTRODUÇÃO Antes de vir a ser uma pesquisa acadêmica, um estudo teórico e científico, essa pesquisa é uma vivência, uma tentativa de envolvimento com a comunidade que passei a habitar, onde desenvolvi, junto a parceiros e coletivos locais, diversas ações culturais comunitárias, tendo assim a oportunidade de envolver-me com a cultura local, deparando-me com um extenso patrimônio imaterial. No território, a brincadeira do Bumba-meu-boi, por exemplo, resiste ao continuar brincando, mantendo seus signos e símbolos afro-indígenas. A resistência também está na vida de cada mestre e brincante, moradores de uma periferia,

em sua maioria negros e pardos e de baixa renda, convivendo diariamente com a necessidade de sobreviver. Sobreviver porque o estado capitalista e colonizador desfavorece aqueles que não são detentores do capital e sobreviver porque o mesmo estado continua propagando o genocídio afro-indigena. Podemos afirmar isso através de pesquisas recentes, como é o caso dos dados levantados pelo “Atlas da Violência 2017”, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Sobre os dados levantados no atlas, o site “Carta Capital” relata que “Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com informações do Atlas, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já descontado o efeito da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência.” Em estudo feito pelo governo do estado do Ceará, no ano 2016, 69% dos adolescentes de 12 a 18 anos mortos no Ceará eram negros. Já no ano 2017, o estudo não traz o recorte racial, porém retrata espacialmente onde estão concentrados o maior número de homicídios na capital cearense.

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A partir dessa realidade, propus-me a refletir sobre a possibilidade de resistir enquanto ser afro-indígena na sociedade capitalista e eurocentrada, onde os territórios de maior concentratação negra têm os mais altos índices de violência, onde a maioria das pessoas mortas são negras e onde ainda parece mais adequado “se embranquecer”, ou seja, parecer o máximo possível com o branco para ser aceito enquanto cidadão legitimo. A pesquisa proposta é uma imersão sobre o território, seguindo as trilhas do bumba meu boi e de seus brincantes. Esta pesquisa adentra a um território onde epistemologias afro-indígenas se desenrolam no próprio modo de vida das comunidades nele inseridos, a fim de reforçar a importância dessas práticas e dos conhecimentos levantados por elas. BUMBA-MEU-BOI RESISTÊNCIA! No Brasil, o boi foi um elemento importante na colonização, primeiramente na produção de cana de açúcar e depois na ocupação do interior. O boi e o negro, com auxílio do nativo, conhecedor dos territórios, permitiram, aos senhores brancos, fazer valer a posse de suas terras, fazendo-as produtivas. Durante muito tempo no processo de escravidão, no inventário de uma família, media-se a riqueza pelo número de escravos e cabeças de gado entre outros elementos. O boi e o negro, associados ao trabalho braçal a serviço do colonizador. O boi vinha para o Brasil nas mesmas caravelas que também transportavam pessoas escravizadas. A figura do Boi está

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diretamente associada neste contexto de colonização à figura do negro. Do mesmo modo que era consumido e transformado todo o ser do boi-animal, era consumido e transformado todo o ser do boi- homem. Porque o boi é por excelência, o animal representativo da servidão. Sua adequação ao arado e diversos outros equipamentos, permitiu uma das primeiras, e podemos afirmar, fundamentais revolução da humanidade: a agricultura, ou seja, a domesticação de plantas. E no contexto do projeto de colonização, ele se tornou, junto com o africano, o código da subserviência e submissão à escravidão. 1 A manifestação cultural do Bumba-meu-boi carrega em seu enredo traços dessa história, facilmente verificados na execução da Matança do Boi. Para bem analisar a experiência do Bumba-meu-boi, é preciso compreender a cultura como um conceito amplo, no qual estão envolvidos vários elementos humanos e desvincular esse conceito do meio elitista e exótico, para considerar seu lugar no meio da população, ou seja, em seu próprio contexto, é preciso compreender os costumes como elementos das ações das camadas populares que evidenciam seu protagonismo social. 2 1 MORAIS, Viviane Lima de. Da subjetividade do homem a materialidade do Boi – recriando áfricas na diáspora. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.2009 pag. 115 2 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Regina Weber. Univer-

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No início do século XX, na busca de compreender a mais ou menos recente nação brasileira, estudiosos debruçaram-se sobre as culturas de origem, buscando entre os populares mitos, lendas e expressões do imaginário que pudessem compor um quadro de referenciais culturais ditos brasileiros. Esses levantamentos, geralmente associados ao primitivo e selvagem denominou esse conjuntos de saberes, práticas e manifestações com a terminologia “folclore”. O termo é, ainda em nossos dias, associado ao passado, estático e exótico. O conceito de “folclore”, como o empregamos socialmente, pouco comunica a respeito da realidade das manifestações culturais populares. Ao contrário de permanecerem estáticas, as manifestações são recriadas a cada dia do fazer, elementos estão continuamente sendo acrescidos em diálogo com a memória dos antigos, pessoas diferentes permanecem e passam pela brincadeira de forma continuada ao longo dos anos. A cultura popular é, ao mesmo tempo, o lugar da resistência das populações subalternas e lugar onde se apoiam as classes dominantes para criar bases de um nacionalismo brasileiro, no entanto, as classes dominantes não referenciam verdadeiramente o sentido desses costumes, fazendo-os parecer uma ilustração, o pano de fundo patriótico da nação brasileira. Os fazedores de tais manifestações têm, em contraponto, seus motivos e metáforas para fazê-los como são, aspectos que obviamente não tem aparecido nas visitas guiadas dos centros e musidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil


seus ou mesmo nos livros didáticos e que revelam a resistência ancestral de seus fazedores afro-indígenas no passado e no presente, apesar da marcante necessidade nacionalista de identificar o Brasil com elementos eurocêntricos. Por muito tempo, argumentou-se que a tradição do bumba-meu-boi tinha seu alicerce no domínio português com a lida do gado, no entanto há muitos elementos que nos levam a afirmar que o boi, em território brasileiro, foi construído sobre alicerces afro- indígenas, e sobretudo sobre alicerces ancestrais africanos. Arthur Ramos, nos fala a respeito do boi como um exemplo de elemento Bantu, resistente no Brasil: “... principalmente o totem do boi que sobreviveu de maneira decisiva no Brasil, reforçado por themas [sic] analogos [sic] do folk-lore caboclo dos vaqueiros, de influencia [sic] amerindia [sic], em certos pontos do nordeste e centro brasileiros. O totemismo do boi é largamente disseminado entre varios [sic] povos bantus onde, em algumas tribus [sic], toma um aspecto francamente religioso.” 3 A relação homem/gado no Brasil está bem mais associada ao vaqueiro, enquanto ser afro-indígena, do que aos cavaleiros medievais europeus. Há inclusive versos de bumba-meu-boi que reafirmam essa identidade, quando o vaqueiro antes de matar o boi pronuncia o aboio: 3 http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/ Dossie_bumba_meu_boi(1).pdf acessado em 10 de maio de 2018.

Te alevanta boi Nós vamos vadiar Tem chuva grossa boi velho Neste lugar Tem chuva fina boi velho Pra se molhar Tu és branquim meu garrote E eu sou um carvão Tu és branquim meu garrote E eu sou azulão 4 Esses aboios, cantados no Bumba-meu-boi, são partes do que há de mais antigo dentro da brincadeira e revelam a condição do vaqueiro enquanto pessoa negra, ao contrário do que se esperava nas pesquisas nacionalistas do início do século XX. É importante entender que, no Ceará, observa-se mais fortemente a presença negra nas criações de gado e serviços domésticos do que na produção açucareira. A históricidade dos negros, sejam eles escravos ou libertos deve ser percebida de acordo com o estabelecimento de fazendas de criação de gado ao longo dos rios. É importante ressaltar que a ocupação do território apresentou um processo diferenciado do restante do nordeste açucareiro, devido as espeficidades da cadeia produtiva bovina. As fronteiras iam sendo rompidas pelo gado, exigindo pouca mão-de-obra e estimulando uma configuração social diversa daquela presente nas sociedades de engenho. 5 4 Música de bumba-meu-boi, Dominio público. 5 CAMINHA, Raquel. “Cultura Negra e o Ceará: uma relação a ser descoberta”. In: Africania e Cearencidade. Catalogo do museu histórico e memorial da liberdade. Ed. Olhar aprendiz. 2011 – pag 28

Percebi no levantamento de dados colhidos de jornais, materiais bibliográficos e vivências nos grupos de Bumba-meu-Boi do Grande Pirambu, que as brincadeiras de boi espalhadas pelo Brasil, bem como pelo Ceará, podem ter sido reflexos de cultos personificados em touros, existentes na África e no Oriente, e as diferenças como cada comunidade as realiza deve variar de acordo com a forma como se efetivaram em cada local. Sabemos que o Ceará herda forte influência de povos Bantu, que devem ter influenciado na formação dos brinquedos de boi e reisado presentes na região. Deparar-nos com as fontes de jornais dando noticias de bumba-meu-boi em Fortaleza em tempos de Império, mobilizou-nos a investigar o que foi o bumba-meu-boi e como se construiu o bumba meu boi como hoje o conhecemos, tendo em vista que as culturas populares são dinâmicas e se renovam junto com seus tempos. Nos registros da brincadeira de boi, encontrados em Fortaleza no período imperial, encontramos presença marcante dos bichos na manifestação, animais que ainda hoje são marcas sem os quais a manifestação não acontece. Em uma sociedade inserida nas relações da colonialidade, as elites exigem o desaparecimento da brincadeira do boi. “Pede-se ao Senhor doutor chefe de policia, que por amor a moral pública, não consita que esse ano ela seja afrontada como tem sido

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nos anteriores, pelo estúpido e imoral brinquedo – bumba meu boi. Já é tempo de irmos prescrevendo esses imorais brinquedos, que tanto depõe contra nossa civilização.” 6 Esse registro traz consigo informações preciosas. A primeira delas é que já contávamos com bumba-meu-boi em Fortaleza no século XIX, e antes mesmo do ano de 1862, já que o autor do anúncio faz questão de destacar a execução do brinquedo nos anos anteriores. Outra é a condição de “imoral” dada ao brinquedo, o que praticamente inviabiliza a ideia de uma origem europeia para o mesmo, tendo em vista a constante necessidade da época em afirmar o mundo “civilizado”, terminologia que, não nos custa lembrar, sempre se remete diretamente a civilização em seu modelo europeu. Também nota-se que o anuncio é publicado em dezembro, antes que o brinquedo viesse a ocorrer, o que nos remete que possivelmente a brincadeira estivesse por ocorrer em 20 de janeiro, que é sua data tradicional. No mesmo Jornal, no ano seguinte, há uma nova citação quanto ao bumba-meu-boi. A mesma trata o teatro como espaço para expressão do nacionalismo, e nota-se bastante desgostoso com a ocupação do teatro para outros fins. E com pejo que noticio que nosso Theatro está sendo occupado por uma companhia de presepeiros, que teem posto a cabeça as voltas de 6 Jornal Pedro II, número 290. Publicação Solicitada. Fortaleza.20 de dezembro de 1862. Pag 3

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muito rapasolla que por ahi anda.E o caso e’ que o empresário tem feito óptimo negocio: são enchentes sobre enchentes.E’ para mim couza inexplicavel, como é que a policia que prohibe esse immoral divertimento nas casas particulares, a portas fechadas, como é que o bispo que fulminou com penas espirituaes todos aquelles que ocorressem directa ou indirectamente para essa piedosa bacanal, consente que no Theatro público se deem representações pastoris, isso, se exerça em larga escala essa perigosa industria! (...) Faço votos que cheue o mais depresa possive a companhia dramatica que o actor de Coimbra foi contratar, a fim de que se retire dentre nós esse exemplo vivo do máo gosto, de atrazo e immoralidade. Se não fora animar-me a esperança de que esse mez deve chegar a companhia dramatica, tinha por certo que teriamos no Theatro publico Bumba meu boi e fandango, tamanha é a bondade da policia. 7 Aqui há reforço de que o Bumba-meu-boi, como o pastoril e o fandango, são impróprias ao Teatro público, e que se esperava intensa fiscalização policial quanto ao banimento dessas brincadeiras, o que levou os jornais a dar destaque, no ano de 1873, ao caso do oficial subdelegado de policia que foi surpreendido enquanto representava o papel de burrinha num Bumba-meu-Boi. Ao relatar o fato ocorrido 7 Jornal Pedro II, numero 40. Correspondencia do Pedro II. Fortaleza, 19 de fevereiro de 1863. Pag 3

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com o subdelegado, identificado como José Baptisma Maia, “O cearense” revela alguns detalhes relevantes quanto à manifestação na época do império, deixando-nos visualizar alguns elementos presentes na brincadeira do boi, como, por exemplo, a presença de pandeiro, maracá e guizos, elementos importantes de demarcação da ancestralidade negra e indígena na manifestação; os versos em forma de quadra cantados pela burrinha, que se mantém ainda em nossos dias, salientando sua relação com a escravidão, com versos que se relacionam diretamente ao amo; a prática de jogar o lenço, presente ainda no quadro da burrinha em algumas brincadeiras do interior e que consiste em devolver o lenço da burra com alguma oferta. O jornal destaca ainda dois personagens “Mateus e Gregório”, protagonizados por dois escravizados. Embora o personagem “Gregório” não seja interpretado na brincadeira em nossos dias, “Mateus” é reconhecido palhaço popular presente em muitas brincadeiras populares e geralmente tem um duplo, ou seja, outro palhaço que o auxilia no jogo com a plateia, que pode ser encontrado com nome de “Bastião”, “Caboré”, dentre outros, sendo assim, imaginamos que “gregório” deveria representar essa figura, o que estabelece a presença dessa dupla cômica já no período imperial. Para não deixar dúvidas sobre a raiz negra da brincadeira, destacamos um trecho do jornal “A nota”, de autor intitulado Cusy d'almeida Junior. Conta o relato de uma festa de pastoril, que teria participado num sábado, onde o mesmo


relata que tendo saído da alta sociedade, fora participar de uma festa de homens rudes e grosseiros. Ele cita o bumba meu boi quando fala: "com franqueza nunca vira o tal pastoril, tão tradicional em nossas terras ate aquela noite, apenas ouvia comentários a respeito, quando se falava nas danças idiotas dos negros como o " Bumba-meu-Boi. 8 CONCLUSÃO Com base na coleta dos dados de Jornais, podemos concluir que o brinquedo do Bumba-meu-boi já existia em Fortaleza desde antes de 1862, que era uma festa popular da classe mais baixa, contando no período imperial com personagens como a burrinha, a andorinha, Mateus e Gregório, além do próprio boi, feito em meio a batucadas e deveria durar toda uma noite. Esses indícios também apontam que o brinquedo ocorria anualmente e era reconhecidamente afro, incorporando elementos indígenas em seu fazer, o que contrasta com a ideia de que houve pouca ou nenhuma expressão de negritude no Ceará no período colonial e imperial. Os mesmos jornais onde foram analisados os registros de bumba-meu-boi conta com anúncios de fugas de escravizados, anúncios de emprego explicitando pessoas cativas ou forras, dentre outros indícios da presença afro na Fortaleza imperial. Observamos também que se esperava que a policia e o clero fiscalizassem e oprimissem a sua realização, tamanha a surpresa do Jornal quando se fazem presentes no brinque8 Jornal A nota. Número 205. O pastoril.(Cussy de Almeida Junior). Recife. 18 de setembro de 1920

do um policial e um padre. Com base nessas informações, considero a possibilidade de o brinquedo ter sido trazido dos ancestrais africanos, como um culto as figuras anímicas dos animais, mobilizadas por personas cômicas. Apesar do termo “animismo” ter sido usado historicamente para desqualificar a cosmologia afro-indígena, acredito na importância de ressignificar essa ideia, saindo da ótica eurocêntrica que, baseada no texto bíblico, condena os cultos ligados a elementos da natureza e mesmo objetos, porém na perspectiva afro, todas as coisas emanam energia, tudo tem Axé, ou seja, força, vitalidade; tudo está conectado e tem sua representação no Orum, ou seja, no plano transcendental. Assim o que o branco considera “fetichismo animista”, é pela matriz africana e também indígena, ato de dar vida ao que é inanimado, reconhecendo sua potencialidade energética e simbólica.9 Certamente, a brincadeira que se faz rito no Pirambu construiu-se a partir das experiências da população, considerando contextos históricos e sociais vivenciados pelos mesmos no processo de colonização e sua dinâmica, bem como a construção de seu enredo foi fortemente marcada, pelo período imperial e o processo abolicionista, os ciclos de migração interior/capital e legalização e expansão das religiões afro-indígenas integradas na umbanda dentro do território cearense. REFERÊNCIAS: ADÃO, Jorge Manoel. Caracteristicas da Cultura e cosmovisão africanas e centra-

lidade do culto aos Orixás no Brasil. Cada vida importa. Comitê cearence pela prevenção de homicidios na adolcência. Governo do Estado do Ceará. Instituto OCN. 2016. CAMINHA, Raquel. “Cultura Negra e o Ceará: uma relação a ser descoberta”. In: Africania e Cearencidade. Catalogo do museu histórico e memorial da liberdade. Ed. Olhar aprendiz. 2011 – pag 28 Jornal Pedro II, número 290. Publicação Solicitada. Fortaleza.20 de dezembro de 1862. Pag 3 Jornal Pedro II, numero 40. Correspondencia do Pedro II. Fortaleza, 19 de fevereiro de 1863. Pag 3 Jornal A nota. Número 205. O pastoril. (Cussy de Almeida Junior). Recife. 18 de setembro de 1920 MORAIS, Viviane Lima de. Da subjetividade do homem a materialidade do Boi – recriando áfricas na diáspora. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.2009 - pag. 115 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Regina Weber. Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil https://www.cartacapital.com.br/ sociedade/atlas-da-violencia-2017-negros-e-jovens- sao-as-maiores-vitimas, publicado 05/06/2017 19h04; acessado em 20/05/2018 as 23:15

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EU, VOCÊ, A ESCOLA E A CAPOEIRA (EVEC)”: ENTRE A GINGA E A ESQUIVA NASCE UM ESPAÇO DE PEDAGOGIA Ariane Ingrid da Silva Botelho 1 Robério Batista de Queiróz 2 RESUMO O artigo objetiva estabelecer as relações propostas, por meio da educação biocêntrica, nas atividades do Programa “Eu, Você, a Escola e a Capoeira (EVEC)”, célula ativa do Centro Cultural Capoeira Água de Beber, recorrendo à capoeira e demais manifestações da cultura afro-brasileira como instrumento educacional, de modo a afirmar a construção identitária e pertencimento ancestral. O Programa atua atento à formação social, à valorização cultural, ao enaltecimento familiar e à sensibilidade quanto à construção dos valores artísticos, morais e

étnicos, respeitando os perfis individuais e comunitários de cada atendido. Além disso, é proposta do plano pedagógico trabalhar a História do Brasil de forma lúdica, dialogando com as leis 10.639/03 e 11.645/08. Este estudo utilizou-se de livros, artigos científicos e teses. A pesquisa de campo foi construída a partir do modelo de Boissivoin (1987) conhecido como “apresentando a amigos de amigos: redes sociais, manipuladores e coalizões”, e de forma empírica, foram aplicados questionários em 14 núcleos do Programa localizados nos Estados do Ceará, Pernambuco, Alagoas e Piauí e, no exterior, Venezuela e Europa, no período de fevereiro a abril de 2017 e reaplicados em novembro de 2017.

Palavras-chaves: Capoeira. Educação. Ancestralidade. INTRODUÇÃO Ao retomarmos a importância atribuída à prática da capoeira, nos primeiros anos do século XX, poderemos apontar elementos que contribuíram histórica e politicamente para manutenção de uma prática cultural de importância ímpar para o povo brasileiro, tais como: emancipação e identidade. Além da frequente correlação da capoeira com os conteúdos relacionados à História e à Cultura Afro-brasileira e dos povos indígenas com as áreas de Arte-e-

1 Autora: Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Foi bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID - CAPES) (setembro/2015 - janeiro/2018). Voluntária do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), (2015 - 2016; 2016 - 2017 e 2017 - 2018), tendo como linhas de pesquisa: capoeira, religião, cultura, sociedade e comunicação. Membro do Grupo de Pesquisa: Estudos Transdisciplinares em História Social - CNPq (2015 - 2018). Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa (GEP – CECAB). E-mail: (ariane_ingrid@hotmail.com). 2 Coautor: Presidente-fundador e Coordenador do Ponto de Cultura Centro Cultural Capoeira Água de Beber (CECAB). Capoeirista desde 1981. Eleito Membro Honorário da Associacion civil FITA en la difusión y enriquecimento de la práctica de la Capoeira en Venezuela (2007). É educador social do Programa Eu, Você, a Escola e a Capoeira (EVEC). Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa (GEP-CECAB). Atua no Brasil, na Venezuela e em alguns países da Europa, como Portugal, Hungria, França e Irlanda difundindo a capoeira e as demais manifestações afro-brasileiras. E-mail: (roberiocapoeira1@gmail.com). 3 Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1º. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

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ducação, Literatura e História, testemunhamos a capoeira sendo indicada como parte dos conteúdos relacionados à Cultura Corporal de Movimento que devem ser ministrados pela área de Educação Física. Concomitantemente a isso, também observamos aparatos legislativos que conferem legitimidade à prática da capoeira em meio ao sistema formal de ensino brasileiro, a exemplo do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases, incluído pela lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003 3. Paralelamente às aproximações com as conformações legais, consideramos que a capoeira como prática educativa não formal é dotada de uma prática pedagógica e de uma formação profissional específica. Essas características podem ter particularidades próprias nos diferentes grupos de capoeira, mas que notadamente vêm promovendo o ensino da capoeira nas dimensões conceituais, procedimentais e atitudinais e independente das normatizações que regem a educação formal. Essa pesquisa se justifica no sentido de que, o ensinamento da capoeira propõe inclusão e acesso, além de ser uma manifestação de saberes. No atual momento da educação brasileira, a escola encontra-se mais aberta para novas abordagens, assim, o caráter criativo e disciplinador da expressão genuinamente brasileira permite ressignificar o ambiente escolar e o despertar dos educandos. Dessa maneira, o estudo tem como objetivo compreender as relações propostas nas atividades do Programa EVEC,

recorrendo à capoeira como instrumento auxiliador na educação. Especificamente, busca-se registrar a metodologia utilizada pelo Programa nos estados do Ceará, Pernambuco, Alagoas e Piauí, como também nos países da Venezuela, França, Hungria, Portugal e Irlanda. O PROCESSO METODOLÓGICO A pesquisa possui embasamento teórico-metodológico contemplados, incialmente, em Vieira (1995), no que toca a capoeira como ancestralidade e resistência ao sistema escravocrata. Nesse sentido, “dificilmente terá existido em toda história do Brasil, um ambiente mais propício para o surgimento de uma modalidade de luta como a capoeira”. apud Mello, p. 03). E Ginzburg. (1987), justificado no conceito de “circularidade” da cultura, problematizado primeiramente por Mikhail Bakhtin e, depois, cunhado por Carlo Ginzburg, que concebe a existência de um relacionamento circular feito de influências recíprocas entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas. Essa circularidade ocorre tanto de baixo para cima como de cima para baixo. Não são as ideias que circulam por si mesmas, mas os homens e suas criações (GINZBURG, 1987). O nosso campo de pesquisa é construído a partir do modelo de Boissivoin (1987) conhecido como “apresentando a amigos de amigos: rede sociais, manipuladores e coalizões”. O autor defende que as relações interpessoais são estruturadas e influenciadas no modo através do qual indivíduos - vistos como empreen-

dedores sociais - procuram manipulá-las para atingir metas e resolver problemas e na organização e dinamismo das coalizões que constroem para atingir seus fins. Esta forma básica de comportamento - a rede social de amigos, parentes, colegas de trabalho, as visitas - são processos de situações com as quais todos nós nos envolvemos e que constituem o material básico da vida social. (BOISSEVAIN, 1987, p. 197-98). Os conteúdos de campo foram registrados por meio de entrevistas e questionários abertos. Neste sentido, foi valorizada a pesquisa empírica, compreendida na atualidade, como o estudo realizado com os educadores sociais direta e indiretamente envolvidos com as atividades do Programa, corroborando com a ideia de que, “empiria e teoria, devem estar coordenadas em um pensamento coerente: toda concepção da teoria é relativamente uma concepção da empiria e vice-versa” (MARTINO, 2010, p. 143). De forma empírica, foram aplicados 13 questionários no período de fevereiro a abril de 2017 e posteriormente reaplicados nos treze e nos novos núcleos em outubro do mesmo ano. Para se apropriar ainda mais sobre o funcionamento do EVEC, também foram realizadas pesquisas de campo por ocasião do Seminário Internacional Capoeira Água de Beber (24 a 30 de julho de 2017), nas Casas de Capoeira localizadas em Fortaleza e Parajuru, na Assembleia Geral do Centro Cultural Capoeira Água de Beber, no dia 09 de outubro de 2017, na Casa de Capoeira, em Fortaleza – CE e

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no 9º Festival Internacional de Capoeira e Tradições Afro Indígena Descendentes (06 a 12 de agosto de 2018), na Universidade Federal do Ceará. O PROGRAMA O Centro Cultural Capoeira Água de Beber é uma instituição fundada no ano de 2002, por Robério Batista de Queiróz e que vêm desenvolvendo cursos de qualificação, pesquisas, festivais e espetáculos relacionados à prática da capoeira. Entre as atividades promovidas por essa instituição, destacamos o “Programa Eu, Você, a Escola e a Capoeira” (EVEC), trata-se de um programa social que trabalha com crianças e jovens no intuito de promover um modelo ativo, inclusivo e crítico de ensino. A instituição exerce suas funções como espaço alternativo de educação, comprometida com ações que possibilitem a valorização das manifestações culturais e a criticidade em torno dos fatores sociais, culturais e étnicos. Dialogando com a lei 10.639/03, que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, como também com a lei 11.645/08, que trata da obrigatoriedade dos estudos da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas oficiais da rede de Ensino Fundamental e Médio, a instituição desenvolve atividades que visam o enaltecimento da valorização da cultural local e da identidade ancestral afro indígena. É proposta do plano pedagógico do Programa trabalhar a História do Brasil

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Figura 1: Logo oficial do Programa Fonte: Acervo do Centro Cultural Capoeira Água de Beber

de forma lúdica. Assim, a capoeira e demais expressões culturais passam a ser vivenciadas e valorizadas além de intervirem como meios para uma construção

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identitária. No entanto, é com os cursos de capacitação para o mercado de trabalho (serigrafia, artesanato, confecção de instrumentos e corte e costura) – ofertado


não só para os jovens – que a amplitude do EVEC se estende ao ambiente familiar. Dessa maneira, não só os filhos são beneficiados pelo Programa, como os pais assumem o compromisso de acompanhar o rendimento escolar e comportamental na sociedade. Como fortalecimento da parceria (CECAB e família), os responsáveis participam, sobretudo, de reuniões, apresentações culturais e festivais. Perguntados como funcionam os ambientes escolares, 14 dos 18 coordenadores afirmam que as atividades desenvolvidas são bem aceitas pelas crianças e adolescentes, outros 5 núcleos apresentam fase de desconstrução. Sobre a resistência no espaço discente, 11 declararam não haver e pelo contrário, a escola age em cooperação, 2 reiteram quanto à resistência a ligação com o candomblé, 5 estão em fase de implantação e 1 recebe apoio da escola, no entanto a arte não é tratada como propriedade. Com relação ao questionamento que se refere à rejeição dos pais, 7 núcleos informaram que há incentivo por parte desses; 4 coordenadores disseram não existir participação dos pais, ora por falta de acompanhamento ora por falta de compromisso; 6 afirmam que os pais relacionam a capoeira com as religiões afro-brasileiras e desses, apenas 2 apoiam.

cimento é apresentada no Gráfico 1. O Gráfico 1 demonstra a taxa de crescimento do programa EVEC, notoriamente positiva de aproximadamente 69% nacionalmente e 252% internacionalmente. Observa-se pontualmente no Gráfico 1 três municípios com redução de pessoas atendidas: Amontada, Cascavel e Fortaleza, entretanto o crescimento das cidades de Caucaia, Boa Viagem, Fortim, Itapipoca, Belém do São Francisco e Arapiraca, fazem com que no geral tenhamos uma evolução entre o primeiro e o segundo Censo.

O Gráfico 1 demonstra a taxa de crescimento do programa EVEC, notoriamente positiva de aproximadamente 69% nacionalmente e 252% internacionalmente. Observa-se pontualmente no Gráfico 1 três municípios com redução de pessoas atendidas: Amontada, Cascavel e Fortaleza, entretanto o crescimento das cidades de Caucaia, Boa Viagem, Fortim, Itapipoca, Belém do São Francisco e Arapiraca, fazem com que no geral tenhamos uma evolução entre o primeiro e o segundo Censo.

ANÁLISE QUANTITATIVA A Figura 1 apresenta o resultado do censo de pessoas atendidas pelo EVEC. Nota-se um aumento de cidades e de pessoas envolvidas no Programa. A taxa de cres-

Figura 2: Primeiro Censo (abril/2017) Fonte: Acervo do Centro Cultural Capoeira Água de Beber

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A ATUAÇÃO

Figura 3: Segundo Censo (outubro/2017) Fonte: Acervo do Centro Cultural Capoeira Água de Beber

Gráfico 1:Taxa de crescimento do Programa EVEC por núcleo Fonte: Projeto Político-Pedagógico do CECAB 4

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A metodologia do “Eu, Você, a Escola e a Capoeira” caracteriza-se por sua eficiência enquanto instrumento pedagógico, social e auxiliador de extensão escolar, ainda como partem de um processo de resistência proveniente do pós-abolição, atribuindo valor ancestral e identitária em seu método de ensino. Dessa maneira as crianças e adolescentes aprendem a reconhecer a importância de sua cultura, da sua origem e dos mais antigos, por meio de práticas lúdicas, que levam a compreender a história de um povo. A equipe de educadores (coordenador, responsável pela comunicação direta com a coordenação geral e por supervisionar o núcleo; secretário, responsável pelas reuniões e relatórios; e oficineiro, responsável pelas aulas) executa a função de adulto-referência, sendo os responsáveis por desempenhar atividades nos contraturnos da instituição de ensino ou em espaços públicos, a fim de valorizá-lo e reavivá-lo. Além disso, por desenvolver a temática sugerida nos encontros bimensais de formação, fortalecer as realizações cognitivas, (por meio de atividades que estimulem a relação psicomotora), vivenciar os desdobramentos culturais e conduzir o treino físico. É incumbência do Programa: Atuar atento à formação social, à valorização cultural, ao enaltecimento familiar e à 4 Documento interno do Centro Cultural Capoeira Água de Beber (CECAB) lançado no dia 20 de abril de 2018, em Fortaleza-CE.


sensibilidade quanto à construção dos valores artísticos, morais e étnicos, respeitando os perfis individuais e comunitários de cada atendido, uma vez que, a cada ano que se passa o EVEC vai dando continuidade a um formato de como se educar com capoeira. [...] esse trabalho que a Capoeira Água de Beber está fazendo é diferente, porque antes nós fazíamos para o próprio capoeirista, esse é um trabalho feito de dentro da capoeira para fora, para as pessoas de fora da capoeira. (QUEIRÓZ, 2017). De um modo geral, à idade média dos atendidos atinge entre 2 e 18 anos de idade, com perfis variados: alunos de escola pública, particular e moradores da comunidade, inseridos num contexto de marginalidade social, como também de classe média a crianças portadoras de distúrbios como TDA e TDAH, cadeirantes e autistas. Alguns núcleos já trabalham com os idosos e chegam a atender pessoas de até 75 anos de idade em aulas alternadas de 2 a 4 dias semanais. A capoeira não seleciona por características físicas, pois, o movimento corporal deve conter um significado amplo na vida das pessoas e ir além dos estereótipos construídos na sociedade. Talvez o maior benefício [da capoeira] seja o envolvimento com uma prática que lida com os

Figura 4: Núcleo com os pais: Reunião com os pais e os alunos Fonte: Acervo do Centro Cultural Capoeira Água de Beber

Figura 5: Vivência em Parajuru-CE Fonte: Acervo do Centro Cultural Capoeira Água de Beber

direitos individuais de participação, autonomia e auto-determinação em busca da melhoria da qualidade de vida. (MEDEIROS, J. C; SILVA, A. P, p. 02).

No decorrer das atividades anuais, os núcleos abordam temáticas relacionadas à sustentabilidade econômica na capoeira, atividades lúdicas (jogos e brincadeiras), Consciência Negra, ancestralidade

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de educacional, respeita-se a argumentação de que,

Figura 6: Núcleo Itaitinga: Atividade de Reisado Fonte: Acervo do Centro Cultural Capoeira Água de Beber

Figura 7: Ação em espaços públicos. Fonte: Acervo do Centro Cultural Capoeira Água de Beber

na capoeira (história, musicalidade, roda e toques), identidade cultural, cultura afro-indígena, escravidão, História do Brasil, cultura e descendência africana, manifestações de tambor, história negra na América Latina, processo de escravização na América Latina, relação cultural Brasil - Venezuela. Atividades artísticas e culturais (e suas diversidades), atividades 72

físicas adaptadas, igualdade racial e social, folclore, datas comemorativas. Meio ambiente e ecologia, ervas e plantas medicinais, reciclagem. Combate as drogas, cidadania, questões de gênero, acessibilidade, direitos humanos, valorização da escola, valores morais, violência na escola, bullying. No que toca a capoeira como atividaXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

é preciso entendê-la a partir dos referenciais históricos, sociais e culturais sobre os quais foi construída. Desde seus primórdios até os dias atuais, a capoeira construiu sua identidade por meio da luta e da resistência social contra as desigualdades e injustiças. É essencial respeitar o aluno e tudo o que ele traz consigo na sua bagagem de vida. Considerar as particularidades de cada aluno é dialogar com a sua identidade, sua história de vida e sua v0isão de mundo. (SILVA; HEINE, 2008, p. 117). As atividades desenvolvidas possuem ênfase nas histórias da capoeira, ginga, esquivas, acrobacias, jogos lúdicos, fundamentos da roda e toque de instrumentos de capoeira, cirandas, brincadeiras populares tradicionais, contações de histórias, músicas, desenhos, pintura e danças, atividades em contato com natureza. Aulas de maculelê2, jogos afro-indígenas, atividades como Chuveirinho do capoeira, Brincando no Quilombo 5. Entrega de cordas, bate papos sobre direitos humanos, história e gêneros, reuniões com os pais, revitalização dos espaços públicos, intercâmbio, visitas nas comunidades, museus, escolas formais e agrícolas. Aula 5 Tais atividades consistem numa maneira lúdica de contar o processo de escravidão, abolição e pós-abolição, por meio dos movimentos da capoeira, enfatizando a resistência do escravizado nos diversos cenários como: quilombo, senzala, casa-grande e centros urbanos.


de percussão, lutas, jogos, fabricação de artesanato e instrumentos de capoeira e danças afro-brasileiras e espetáculos com temas afro-indígenas. Quanto ao principal recurso financeiro da instituição para o investimento nessa célula, tinha como origem o fato do CECAB ser considerado Ponto de Cultura desde 2013, através do Convênio 028/2013 com o Ministério da Cultura, suspenso em 2017. Hoje, o Centro Cultural Capoeira Água de Beber caminha para a autonomia sustentável, promovida por alunos e amigos por intermédio da ação de Sustentabilidade Econômica e Solidária (SES) 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Observou-se em primeira análise, a atuação nas lacunas da educação, como a aplicação por parte das escolas da lei 10.639/03, que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, como também com a lei 11.645/08, que trata da obrigatoriedade dos estudos da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas oficiais da rede de Ensino Fundamental e Médio. Compreendeu-se que o Programa, não diz respeito apenas à parte estética da capoeira, mas alcança o ambiente escolar, como instrumento para a cons6 A célula Sustentabilidade Econômica Solidária - SES do Centro Cultural Capoeira Água de Beber tem por objetivo promover a consciência coletiva em prol da autogestão e sustentabilidade da associação. Trata-se, portanto, de um desdobramento das ações intitulado Fundo Rotativo Solidário da Economia do Negro da associação, bem como a construção social e sustentável da Rede de Desenvolvimento Econômico e Sustentável da Capoeira no Ceará realizadas pelo CECAB.

trução da ludicidade, passando pela relação entre as pessoas quem compõem aquele meio e finando na apropriação dos ensinamentos ancestrais, onde toda simbologia envolta a mística da capoeira ganha força, energia e se tornam parte daquela identidade. Os educadores do EVEC trabalham de forma coletiva com o público beneficiário, comunidades e famílias. Dessa maneira, consequentemente, pais e filhos participam de atividades culturais, reuniões de planejamento, reflexão e avaliação, além de exercerem uma postura pedagógica a partir da estrutura estabelecida pelo programa, intervindo de forma unânime nos espaços educacionais. O projeto ganhou visibilidade, tornou-se um programa transformador, atendendo atualmente 1.392 crianças, jovens e idosos no Brasil e na Europa. O que antes acontecia apenas em Fortaleza, de forma paulatina, passou a abranger as localidades cearenses de Boa Viagem, Cascavel, Itapipoca, Parajuru, Itaitinga, Caucaia, Amontada, Riacho Doce e Lagoa de Itaperaoba. A posteriori, as unidades de Arapiraca – AL, de Belém do São Francisco – PE, de Madeiro – PI e dos países da Venezuela, França, Portugal, Hungria e Irlanda também passaram a integrar a escola como núcleos do EVEC. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOISSEVAIN, Jeremy. Apresentando “Amigo de Amigos: redes sociais, manipuladores e coalizões”. In: FELD-

MAN-BIANCO, Bela.(Org.) Antropologia das Sociedades Contemporâneas: métodos. São Paulo: Global Universitária. 1987. p.195-223. GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. MARTINO, Luiz Claudio, Panorama da pesquisa empírica em comunicação. In: BRAGA, José Luiz; LOPES, Maria Immacolata Vassalo de; MARTINO, Luiz Claudio (orgs.). Pesquisa empírica em comunicação. São Paulo, Paulus, 2010, 135-160. MELLO, André da Silva. A história da capoeira: pressuposto para uma abordagem na perspectiva da cultura corporal. Espírito Santo: Centro Universitário Vila Velha, S/D. Disponível em: <http://www.geocities.ws/ capoeiranomade/A_historia_da_capoeira_na_perspectiva_da_cultura_corporal-Andre_Mello.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2018. QUEIRÓZ, Robério Batista de. Programa EVEC: depoimento fev. 2017. Entrevistadora: Ariane Ingrid da Silva Botelho. Casa da Capoeira, Fortaleza, 2017. Entrevista gravada em formato MP3. SILVA, G. O.; HEINE, V. Capoeira: Um Instrumento Psicomotor para a Cidadania. São Paulo, Phorte, 2008.

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HERDEIRA DA BRINCADEIRA: A MAESTRIA NO REISADO DEDÉ DE LUNA

Gustavo Marques de Sousa RESUMO Mazé de Luna é mestra do grupo de reisado Dedé de Luna, do Crato-CE. Após a morte de seu pai, ela teria herdado brincadeiras [práticas culturais que enquadramos no campo da cultura popular] para dar continuidade ao legado. Pensando nisso, este trabalho busca compreender como esta mulher se entende na dimensão da maestria e como foi representada por veículos de comunicação nessa categoria. Para essa análise, versamos nosso estudo nas discussões de memória, identidade e tradição, buscando compreender a brincadeira do reisado nos fluxos dos tempos, em que está viva e em movimento. Palavras-chave: Mestre. Cultura popular. Reisado. Memória. INTRODUÇÃO A mestra Mazé de Luna, ou Maria José Luna Oliveira, tem 58 anos e reside no bairro Muriti, em Crato-CE, distante aproximadamente 500 km de Fortaleza. Sua 74

ocupação, entre outras atividades do seu dia a dia, está em organizar e administrar os grupos de reisado, coco e lapinha. Pareceu-nos muito interessante a analise que faremos por existirem representações que dizem que no seu grupo de reisado, o Reisado Dedé de Luna, cruzam as ideias de tradição e de inovação: Tradição e inovação são características do Reisado Dede de Luna no Bairro Muriti no Cidade do Crato. O reisado teve sua primeira formação em 1955, no sítio Cobras constituída por homens que animavam as renovações em sítios do Município, as brincadeiras duravam de um dia para o outro. A segunda formação ocorreu em 1984 já no Bairro Muriti e tendo a frente as filhas do Mestre José Francisco Luna popularmente conhecido como Dedé de Luna. (BLOG DO CRATO, 2010, grifo nosso) Tradição e inovação têm significados opostos. A primeira remete a práticas que são conservadas através de proces-

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sos complexo no tempo, como a oralidade por exemplo. Já inovação parte da ideia do novo, de algo que tem pouco, ou quase nada, do que antes já fora criado. O papel da/do mestra/mestra nas brincadeiras da cultura popular, nesse contexto, é imprescindível, esses sujeitos comandam os grupos e repassam conhecimentos. Foram versados na tradição, durante infância e fase adulta, aprenderam brincando e repetindo. [Re]visitar o passado é uma forma de legitimar e reafirmar a identidade. O objetivo a se cumprir nesse texto é analisar, a partir das memórias da mestra Mazé de Luna, quais sentidos ela dá para a dimensão de ser mestra de um grupo da cultura popular, buscando compreender à luz da discussão feita por Candau (2011) na qual avalia jogos sociais protagonizados pelas memórias e pelas identidades. Como fonte principal, temos uma entrevista com a mestra. A análise foi empreendida graças à ferramenta metodológica oferecida pela história oral. Para Jucá (2011), essa metodologia permite “a descoberta de sujeitos na História, renovando métodos e fontes adotadas, que permitem uma relação mais significativa com o tema estudo” (p. 52). Outras fontes cotejadas foram uma


matéria do jornal Diário do Nordeste e outras publicações. Elas foram utilizadas para que pudéssemos dialogar e trazer outras percepções sobre a nossa análise. O uso da memória projeta contribuições para a construção das identidades dos indivíduos. A definição de tradição não é uma tarefa das mais simples. Muitas vezes ela é abordada de forma despretensiosa ou sem reflexão, em outras é ligada a noção de tempo que se repete, da transmissão de dados do passado que estão sempre vindo à tona, direcionando-se até mesmo para o futuro. Ela ainda pode ser uma adjetivação dada a eventos e a práticas para dá-los prestígio por serem antigos, trazendo o entendimento de algo consolidado. Hobsbawn (1997) estruturou uma noção que nesse momento nos é cara: a de tradições inventadas. Ela diz respeito a tradições institucionalizadas, o autor nos indica que são tradições forjadas nas quais os recortes de tempos são indefinidos ou recentes. Essa ideia, por tanto, esta atrelada a ideia de repetições e costumes já que tradição tem um caráter de não variação. Entendendo as tradições inventadas, pode-se dizer que são um conjunto de práticas [ritualizadas ou dotadas de signos] que se repetem e buscam referências no passado, uma espécie de validação histórica. O argumento que irá conduzir esse debate é de que as práticas de um passado são resinificadas e que existe apelo à tradição para que elas continuem pujantes. São as misturas das noções e categorias do tempo, um passado no presente.

Para que possamos entender que práticas são essas vamos caracterizar o que é brincadeira e reisado. DESENVOLVIMENTO Câmara Cascudo, em seu Dicionário do folclore brasileiro, traz o significado de brinquedo/brincadeira e diz que podem ser sinônimos de “jogos, rodas, divertimentos tradicionais infantis, cantados, declamados, ritmados ou não, de movimento, etc.” (CASCUDO, 1998, p. 188). Essa noção está ligada em outras duas, na de folclore e de tradição. Essas brincadeiras estão sempre se transformando com o passar do tempo, sendo assim, não significa que elas se perdem no tempo. Diferente da noção apresentada por Cascudo, há folcloristas que fazem uma junção entre os conceitos de brincadeira e de folguedo. O escritor do Dicionário não menciona folguedo, ele fala apenas da ação de brincar. As semelhanças entre ele e os outros folcloristas é de que seus conceitos referem-se à tradição e ao folclore. Para Ortencio (2004) brincar e brinquedo podem ser significados de brincadeira; uma é a ação e o outro, além disso, pode ser o objeto que se brinca. Esse autor a relaciona a folguedo e diz que eles são brincadeiras de adultos, não limitando apenas a jogos e a práticas de entretenimento e/ou esportivas. Mas o que seriam os folguedos/ folganças? Eles são: [...] brincadeiras, divertimentos para adultos. Em geral são

danças e cantigas ou cantorias, quando há um ajuntamento de pessoas, podendo ser esse ajuntamento de caráter religioso, ou não, como quando há reunião de pessoas que vão a um mutirão, para uma traição, ou mesmo para o aniversário de uma pessoa importante ou muito querida na região, ou a um casamento. Em qualquer um desses ajuntamentos sempre há de sair folguedo (brincadeira, como dizem os participantes). Também são folguedos: corridas a cavalo e touradas. (ORTENCIO, 2004, p. 65, grifo nosso) Na visão de Ortencio (2004) os folguedos mais conhecidos no Brasil seriam: a catira, dança-dos-congos, samba-de-roda, arrasta-pé, coco, quadrilha, pastoris, maneiro pau, bumba-meu-boi, entre outros. Para Macena (2003) eles têm caráter popular, são herança dos colonizadores do Brasil, da cultura africana e indígena, e são marcados pela presença de danças, músicas e dramatizações mentidos pela oralidade. Edison Carneiro (1982), na sua obra Folguedos tradicionais, revela que “[...] as festas tradicionais são a moldura necessária e própria à existência dos folguedos populares” (p. 16). As festas são, segundo Guarinello, [...] uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num tempo e lugar definidos e especiais, implicando a concentração de

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afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes. (2001, p .972, grifo nosso) Como uma celebração, as festas que carregam símbolos advindos das tradições e de identidades dão a face às folganças. Folguedo é um termo utilizado pelos folcloristas. Contudo, a noção de brincadeira já era usual na segunda metade do século XX por sujeitos que experimentavam essas práticas culturais nos seus cotidianos. Como podemos observar no trabalho de Maurício (1978) em que estudou arte popular, nas décadas de 1960 e 1970. O autor selecionou sujeitos que se reconheciam como mestres e suas práticas como brincadeira. Ele definiu as brincadeiras como “atividades artísticas, danças e representação dramáticas, que ocorrem durante determinados períodos do ano, obedecendo a maioria das vezes, o ciclo anual de festas religiosas que envolvem determinada comunidade” (MAURÍCIO, 1978, p. 61). Somando a essa ideia, nós entendemos a brincadeira como uma performance, uma representação das práticas culturais. Em que se juntam elementos como dança, canto, dramatizações e poética. Para compreender o que é performance recorremos

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a Zumthor (1997). O autor nos indica que é um ato complexo em que há emissão e recepção, ao mesmo tempo, de mensagens poéticas e no mesmo espaço. Realçamos o que diz Martins sobre performance: [...] é a de que o corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que performaticamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão de memória do conhecimento, seja estético, filosófico, metafísico, científico, tecnológico, etc. (2003, p. 66, grifo nosso) Brincadeira, como uma performance, remete aos sujeitos e a seus corpos, em que realizam ações onde conhecimentos prévios vem à tona, com uma forma estética estabelecida, em que elementos da memória são recorrentes e reelaborados em atos. Nas coletividades, as quais apresentam essas manifestações, existe uma figura importante, a do mestre. Ele “é aquele que executa e lidera um desses tipos de brincadeira, exercendo, também, sua lide-

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rança sobre a comunidade onde tem influência” (MAURÍCIO, 1978, p. 61). Mestre, em Cascudo, é: O que ensina, mestre de cavalos, mestre-escola. É uma reminiscência, como nome de tratamento respeitoso, do artesão medieval, consciente de sua dignidade funcional. No sertão nordestino, ninguém dizia “seleiro” mas “mestre seleiro”, respeitando uma propriedade no ritual, que a tradição conserva. Nome dos espíritos que “acostam”, “baixam” nas “mesas” (sessões) do catimbó, mestre, mestra. (1998, p. 575, grifo nosso) Costa (2017) afirma que caracterizar o que é ser um mestre na cultura popular é muito delicado e discorre: Primeiramente, destaca-se no mestre a sua condição de detentor de um conhecimento. O mestre reúne em sua memória um conjunto de técnicas e informações que o permite elaborar manualmente determinado produto. Esse saber não se encontra registrado em suportes mais sofisticados do que a memória física do mestre ou o próprio resultado final – saber materializado. (COSTA, 2017, p. 75, grifo nosso) O mestre da brincadeira, nesse sentido, é aquele que foi versado na tradição. Cresceu e desenvolveu práticas e conhecimentos que vêm das suas ancestralidades.


Barroso (2004) diz que nos grupos que são verificados como autênticos a figura e a presença da maestria é indispensável, sem ele pode-se classificar uma coletividade que reproduz as brincadeiras como para folclórico. A dádiva do mestre é o repasse, ele não é um simples guardião de memórias colocado em um pedestal. Ele é uma pessoa, em fluxos de transformações, que tem uma vida dedicada a suas práticas culturais e que se preocupa em repassá-las. Sua função ainda é administrar e resolver questões burocráticas e estruturais dos seus grupos. Como veremos a seguir, existe a presença do mestre no reisado: Performances meio teatrais e cânticos – chamados de peças pelos seus brincantes. A “brincadeira”, como é chamada pelos seus brincantes, é uma encenação de batalhas, de forma lúdica, e o sentido principal dessa manifestação é comemorar o nascimento do menino Jesus. Essa alusão ao nascimento do menino Deus é percebida, principalmente, nos cânticos, muitas vezes compostas por Mestres de Reisado, que são aqueles comandam a brincadeira. (VENÂNCIO, 2017, p. 179, grifo nosso) Reisado é de um folguedo do ciclo natalino. Segundo Silva (2011), em sua origem, na época do Brasil Império, era uma ferramenta usada por católicos e brancos para introduzir os cativos, negros, aos valores

da Igreja Católica. Podemos observar, a partir disso, uma mistura nas culturas lusa, africana e brasileira. Cascudo diz que “é uma denominação erudita para os grupos que cantam e dançam na véspera de dia de Reis (6 de janeiro)” (1998, p. 774). Dentro da festividade de reis que, por sua vez, “foram festas populares na Europa (Portugal, Espanha, França, Bélgica, Alemanha, Itália, etc.) dedicadas aos três Reis Magos em sua visita ao Deus Menino” (CASCUDO, 1998, p. 774). Então se trata de um brinquedo natalino que tem no enredo a visita dos Reis Magos a Jesus. Nessa brincadeira existem dois aspectos, os rituais e a dramatização. É dividido em vários momentos, como: abrição de portas, louvação ao divino, dança, guerra, entre outras. Existem muitos personagens, a exemplo: o Rei, Rainha, Mateu, Catarina, entremeios, figuras. Formado os cortejos pelo grupo, misturam o sagrado e o profano. Saem nas ruas anunciando e louvando a chegada de Jesus, entrando nas casas e pedindo regalos. Entrevistamos a mestra, ela revisita o passado e narra suas memórias sobre seu grupo: Bem, nosso reisado ele foi fundado pelo meu pai que é o Mestre Dedé de Luna, ele foi fundado no ano de 1955, né, meu pai. E teve um tempo que parou um pouco e devido às condições financeiras, aí depois ele atualizou de novo o grupo e com a morte dele, ele

pediu que a gente ficasse assumindo o lugar dele como mestre, né? Principalmente a minha pessoa. É eu e mais duas irmãs que levamos esses grupos. E desde então, de 2002, que eu venho tomando de conta, na frente desse trabalho, né? E a lapinha também foi por parte da minha mãe. Que a minha mãe era uma apaixonada pela lapinha. Sempre ela dançou no Juazeiro, também com a idade de sete anos ela dançou muita lapinha e formou uma lapinha aqui no Muriti, né. E da mesma forma ela pediu que a gente não deixasse essa tradição acabar. A gente leva até hoje esse trabalho com a lapinha. (Entrevista. Mestra Mazé de Luna, Crato – CE, 30 de jul. 2017, grifo nosso) Antes o reisado se chamava Decolores, quando o mestre Dedé de Luna faleceu passou a ter seu nome, em sua homenagem. Em 2001, o mestre morreu e no ano seguinte sua filha Mazé deu continuidade as atividades. Foi uma forma de manter a tradição que aprendeu com seu mestre, seu pai. Ao dar sequência, a ela foi conferido o reconhecimento de mestra. Em 2007, o jornal Diário do Nordeste, publicou uma matéria com o seguinte título: “Mazé é herdeira da sabedoria popular” (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2007). O texto apresentava a mestra do grupo de Reisado Dedé de Luna:

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Maria José de Oliveira Luna, Mazé de Luna, é herdeira de uma das maiores fortunas culturais da região: a sabedoria popular e o talento. Bens plantados em sua alma pelo seu pai, o Mestre Dedé de Luna, um dos ´cones da cultura folclórica cearense, falecido em 19 de março de 2001. Nascida no Crato, em 28 de março de 1959, ela é filha do agricultor José Francisco Luna, o Dedé de Luna, e de Maria Celina Luna. Teve uma infância alegre e, ao mesmo tempo, sofrida no Sítio Pau Seco, próximo a Juazeiro do Norte. Ela viveu privações comuns a uma família pobre do interior, mas já sendo forjada na cultura popular, participando dos dramas, lapinhas e cantos religiosos na Igreja Católica. (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2007, grifo nosso) Dona Mazé, teria herdado os conhecimentos da tradição e, com a morte do seu pai, continuou com as brincadeiras que aprendeu na infância. A partir dessa citação, podemos visualizar que esse jornal tinha a intensão de criar um perfil para a mestra e legitimar o legado do grupo, do mestre Dedé e da sua, como chamaram: herdeira, Mazé. Utilizam o termo de patente para a classificação de mestre: Em 1977 passou acompanhar o pai no reisado masculino. Sua função

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era cantar e ajudar na confecção dos trajes, o que lhe trouxe competência para criar peças (rimas) e ter esmero na estética e indumentária do grupo. Em 1999, o Mestre Dedé de Luna concedeu a “patente” a Mazé, que desde esse tempo brinca como Mestre de Reisado. (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2007, grifo nosso) Candau (2011) estudou sobre o “jogo social da memória e da identidade”, no contexto em que observa uma “obsessão” pelo patrimônio e um “transtorno” identitário causado pela profusão de representações da ordem da memória. O “jogo” seria basicamente uma sistematização de estratégias de invenção, reconstrução, tradição, esquecimento, reprodução de memórias que forjam identidades. Nessa senda, a partir da transmissão dessas, orais ou escritas, as memórias são operadas para dar sustentação a representações que os indivíduos desejam construir. Esse tipo de memória construída, na fonte revelada acima, é uma criação usada para legitimar o lugar da mestra, através da descrição de uma genealogia e das trajetórias das vidas dessas pessoas. Diante disso, é selecionado o que lembrar, autenticando, a partir do passado, o status de mestre “herdado” por dona Mazé. Perguntamos a ela como era ser uma mestra: [...] mas eu me considero uma mes-

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tre porque, por causa do meu trabalho, por causa do meu carinho, por causa do... que eu gosto de fazer tudo. Sabe... Se eu quiser fazer uma peça de reisado, Deus me dá aquela memória, aquelas palavras vem na minha cabeça pra fazer uma peça de reisado. É, as roupas que a gente confecciona das meninas, a gente quem cria o modelo, a gente que faz, cria os passos do reisado. Eu acho que isso aí eu já me considero como uma mestra, né? (Entrevista. Mestra Mazé de Luna, Crato – CE, 30 de jul. 2017, grifo nosso) Dona Mazé se vê mestra por desenvolver seu trabalho no reisado, por criar peças [músicas, passos, cantos e dramatizações] e também confeccionar as indumentárias. Ela revela o papel da memória no seu trabalho, ela é uma memória herdada e uma ferramenta imprescindível para que possa manter no presente os conhecimentos que aprendera no passado. Desta forma, recorre ao papel da tradição como um elemento que legitima suas manifestações culturais e sua identidade. Essas são representações que os sujeitos têm de si e que os outros também as percebem, fazendo que o outro seja reconhecido. Para Pollak (1992), as memórias, sejam elas coletivas ou individuais, são seletivas e criam um espírito de identidade nas pessoas. Para o autor, a “construção da identidade é um fenômeno que se produzem referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade,


de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros” (POLLAK, 1992, p. 204). Notamos, nas nossas fontes, a partir da fala da mestra e nas publicações analisadas, o apelo à tradição para a legitimação de uma identidade. Candau diz: “O ato da memória que se manifesta no apelo à tradição consiste em expor, inventando se necessário, ‘um pedaço do passado moldado às medidas do presente’ de tal maneira que possa se tornar uma peça do jogo identitário” (2011, p 122). Portanto, a legitimação se dá no presente a partir da alegação de um passado supostamente coeso que confere sentido de autenticidade. Sobre a continuidade da tradição, Candau (2011) ainda dá sua contribuição tratando tradicionalização como um modo de legitimação, anunciando como tradição tradicionalizada. No nosso caso estudado, aplica-se o tradicionalismo formal, que por sua vez é aquele que mantém nas suas práticas algumas formas herdadas, porém seus conteúdos são modificados. Ou seja, recebem outros sentidos, mas continuam com formas similares aos dos antepassados. CONCLUSÃO A mestria na cultura popular é uma figura muito importante, pois é através dela que podemos ter acesso a memórias e a sabedorias que fizeram parte da formação de um povo que a história, por muito tempo, não levou em conta. São mestres por exce-

lência, pois repassam esses conhecimentos adquiridos por meio de sociabilidade com os mais velhos. Mazé de Luna nos recebe em seu terreiro, um quintal amplo na frente da sua casa, jovens da comunidade em que está inserida. Lá ensaia e repassa seus conhecimentos das brincadeiras a essas pessoas. Não somente as ditas sabedorias tradicionais, mas também procurar formar cidadãos, buscando passar sua moral e seus valores. O mestre não parou no tempo, não cristalizou. Apreciemos a seguir o que foi publicado no site da Bienal internacional de par em par de dança do Ceará, em 2010. A apresentação do reisado é composta por três marchas (Marcha de Chegada do Reisado, Marcha de Apresentação do Reisado Dedé de Luna e Marcha Atrações da Noite), que são seguidas por peças de tradição popular, como o Jaraguá, o Burrinha e o Boi Bumbá, todos adaptados pelo grupo. O encerramento inclui uma luta de espadas. Direção Maria José de Luna Coordenação Penha Luna Interpretação, figurino e música Brincantes do Reisado Dedé de Luna. (BIENAL INTERNACIONAL DE DANÇA DO CEARÁ, 2010, grifo nosso) A mestra aparece como diretora de um espetáculo de reisado. No mundo das artes, o diretor é aquele que comanda, que cria e decide as formas da apresentação. É interessante analisar como a representação se adequa a perspectiva da

espetacularização, que é possível entender como uma: operação típica da sociedade de massas, em que um evento, em geral de caráter ritual ou artístico, criado para atender a uma necessidade expressiva específica de um grupo e preservado e transmitido através de um circuito próprio, é transformado em espetáculo para consumo de outro grupo, desvinculado da comunidade de origem. (CARVALHO, 2010, p. 47) Podemos, portanto, compreender que as brincadeiras saíram do seu lugar, estavam inseridas nos festejos e nos fazeres da vida para a lógica da apresentação. No caso do reisado, uma brincadeira do ciclo de festas do natal passam a ser apresentadas durante todo ano em diversos tipos de eventos. Nesse contexto, analisando as memórias, da mestra Mazé de Luna e outras construídas a partir do seu papel como mestra, visualizamos o apelo à tradição para que legitimasse sua maestria, voltando-se ao passado, aos feitos, as pessoas. Porém não tratamos de um caso em que se buscou cristalizar os períodos transcorridos. Hall (2005) quando estudou sobre as identidades dos indivíduos na pós-modernidade as entendeu como híbridas. As identidades estão em processos constantes de reelaboração de acordo como os sujeitos vivenciam novas experiências.

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HERDEIRA DA BRINCADEIRA: A MAESTRIA NO REISADO DEDÉ DE LUNA Izaura Lila Lima Ribeiro¹ Este artigo versa sobre o Maracatu como importante festa popular do folclore cearense. O objetivo do trabalho é apresentar de forma sucinta, porém esclarecedora, como se dá essa manifestação da cultura popular. A metodologia está baseada em revisão bibliográfica sobre as temáticas das festas populares, do folclore e do maracatu, como também através de estudos e vivência realizada durante o carnaval cearense. INTRODUÇÃO O Maracatu é uma manifestação que possui um grande valor cultural, pois cada vez que se apresenta resgata a herança do povo negro existente no nosso estado, atrelada a outras culturas, como por exemplo, a cultura indígena. Além disso, percebi que o maracatu tem a capacidade de encantar as pessoas, e isso é notório quando observamos o orgulho e a alegria dos brincantes quando estão representando os personagens que compõem a brincadeira, pois naquele momento eles se transformam em grandes índios guerreiros, em belas baianas ou em grandes reis e rainhas. Podemos dizer que o maracatu é um cortejo carnavalesco que acontece anualmente na Avenida Domingos Olímpio

...PERCEBI QUE O MARACATU TEM A CAPACIDADE DE ENCANTAR AS PESSOAS, E ISSO É NOTÓRIO QUANDO OBSERVAMOS O ORGULHO E A ALEGRIA DOS BRINCANTES QUANDO ESTÃO REPRESENTANDO OS PERSONAGENS QUE COMPÕEM A BRINCADEIRA, POIS NAQUELE MOMENTO ELES SE TRANSFORMAM EM GRANDES ÍNDIOS GUERREIROS, EM BELAS BAIANAS OU EM GRANDES REIS E RAINHAS.

e conta com a presença de vários grupos espalhados pelos bairros da cidade. Porém ele não se faz presente apenas no período do carnaval, pois os seus organizadores e brincantes se reúnem ao logo do ano para preparar os próximos desfiles, como também fazer com que o maracatu permaneça vivo dentro da cidade e dos seus bairros. Com seu ritmo dolente, porém marcante, com a diversidade de personagens e fantasias e com o seu falso negrume, o maracatu atrai diversos brincantes, moradores e curiosos que todos os anos vão para o desfile a fim de conhecer essa manifestação ou torcer pelo seu maracatu do coração. Diante disso, esse artigo propõe apresentar sucintamente as características das festas populares, para que nesse contexto possamos falar sobre o Maracatu cearense. A construção do texto se dá através de revisão bibliográfica, com o intuito de dialogar com estudiosos das temáticas abordadas. 1. FESTAS POPULARES As festas populares participam do cotidiano do ser humano desde as antigas civilizações. No antigo Egito eram realizadas grandes festas e oferendas aos deuses, com o objetivo de deixá-los felizes para que os mesmos pudessem mandar

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prosperidade na vida, sorte nas colheitas e sucesso nas guerras. Já na Grécia o calendário anual era cheio de festividades e feriados, as comemorações marcavam o cotidiano do povo, e era comum ser decretado feriado nos dias de festejo. Toda festa comportava geralmente uma procissão, um sacrifício e um banquete. Foram nelas que floresceram o teatro, a música, a poesia e as competições atléticas por meio dos diversos concursos que se realizavam. E a organização desses eventos sempre era feita pelo governo da cidade, a qual se beneficiava com as trocas comerciais e culturais; sobretudo com o sentimento dos grupos de pessoas que se sentiam pertencentes a algo maior, a cidade-estado. (MARTINS, 2007, p. 08). As festas eram realizadas também para cultuar os deuses, durante o calendário as principais festas eram para comemorar a boa colheita, para cultuar Dionísio e para celebrar a fecundidade das mulheres. Em Roma também eram realizadas várias festas em homenagem aos deuses, existiam festas saturnais, que duravam sete dias e tinham grande influência econômica, pois os escravos nesse período eram libertos, além disso, a população costumava trocar presentes. Existiam também as festas em homenagem ao Deus Marte, que aconteciam nos meses de fevereiro e março e era, nesse período, que se organizava atividades 82

militares, já que Marte era Deus da guerra. Os cultos agrários foram à origem das festas populares. Com danças e cânticos em torno de fogueiras, logo incorporando máscaras e adereços, os festejos eram dedicados aos deuses para a proteção do plantio e da colheita. Comemorando a entrada da primavera, o nascer do sol e a prosperidade da comunidade, essa prática difundiu-se por toda a bacia do Mediterrâneo no mundo antigo. (SILVA, 2008, p. 96). O povo romano também festejava as estações do ano, a fertilidade do solo, os períodos de colheita, entre outros. Podemos observar que assim como na Grécia os romanos também fazia comemorações em homenagem ao Deus Baco, que na Grécia era chamado de Dionísio. Ele era conhecido como Deus do vinho e as suas festas eram denominadas de bacanais, ou seja, comemorações em homenagem ao Deus Baco regadas com muito vinho, músicas, danças e orgias. Já o povo brasileiro é característico por ser festeiro e por possuir um calendário cheio de festas populares ao longo do ano nas variadas regiões do país. As festas populares e especificamente cearenses podem ser divididas por ciclos, ou seja, podem participar do Ciclo Carnavalesco, do Ciclo Junino ou do Ciclo Natalino, além disso, percebemos também que ocorrem diversas festas em homenagens a santos padroeiros e também em comemoração ao surgimento das cidades.

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Com seus cânticos, ritmos, danças, instrumentos, figurinos e adereços característicos, celebrados em forma de procissão, de romaria, de roda, de bloco ou de desfile, nossas festas traduzem nossa diversidade multicultural e multirracial, fazendo do Brasil o grande laboratório cultural da Idade Moderna. (SILVA, 2008, p. 98 ). Essa diversidade de festejos faz do Brasil um país plural, que possui um povo festeiro e uma infinidade de manifestações culturais e populares, que possuem características das diversas regiões do país, demonstrando as características de cada povo e de cada cidade. Podemos perceber também que a grande maioria das festas populares brasileiras são caracterizadas por serem originalmente religiosas, que apresentam um lado sagrado e profano. A partir disso observamos como a religiosidade é algo forte e marcante no povo brasileiro, pois através das festividades mostramos a nossa devoção e o sincretismo religioso existente nas manifestações folclóricas e culturais do país. É no momento da festa que o povo mostra a sua alegria e expressa através dos seus cânticos e das suas danças, a sua vida cotidiana, é um momento de lazer, onde através das manifestações folclóricas podemos observar a identidade cultural existente nas cidades brasileiras. As festas são, sobretudo, eventos e celebrações nos quais é mais


claramente percebido o caráter dinâmico da cultura popular. Ao mesmo tempo em que enraízam em cada membro do grupo social, seus valores, suas normas e suas tradições abrem espaços, continuamente, para novas maneiras de representar o sentir, o ser e o viver no mundo atual, numa lenta – às vezes mesmo imperceptível, o que não quer dizer inexistente -, mas efetiva mudança de mentalidade. (SILVA, 2008, p. 192). As Festas populares possuem a capacidade de apresentar o povo da forma que ele é, mostrando suas manifestações artísticas, seus agradecimentos, suas alegrias e comemorações. Diante disso, percebemos que essas comemorações populares a cada ano estão atraindo mais turistas, pois ao mesmo tempo que se realiza um turismo de eventos pode ser realizado também um turismo comunitário e cultural, ou seja, os turistas podem participar e conhecer um pouco da realidade da comunidade, participando de atividades lúdicas e conhecendo a cultura popular local. Podemos dizer também que além do aspecto lúdico as festas podem mexer diretamente com a parte econômica das cidades em diversos setores, pois no período das comemorações as cidades recebem um grande número de visitantes que utilizam setores do ramo hoteleiro, alimentício, transportes, entre outros, possibilitando um desenvolvimento da economia local. Entretanto, o fenômeno festa tem

também dois aspectos a serem examinados: como fator econômico, visto que tem dado excelentes resultados como ‘mercadoria’ para a expansão do turismo e como instrumento privilegiado para o entendimento dos fenômenos de comunicação das classes subalternas. ( FERREIRA, 2006, p. 62). Dessa forma, percebemos que as festas populares além de apresentar a cultura popular local, podem também auxiliar no processo de desenvolvimento e divulgação das localidades. Podemos citar como exemplos grandes festas populares brasileiras, como é o caso do Maior São João do mundo em Campina Grande ou das festas de São João e dos encontros de boi no Maranhão. É fundamental dizer que o principal objetivo das festas populares deve ser trazer alegria para o povo, pois é nesse momento que ele pode celebrar as suas tradições, através da brincadeira e do festejo. Porém percebemos que em diversas localidades do país as festas para o povo acabaram se modificando, sendo transformadas em festas elitizadas e turísticas, como é o caso do carnaval do Rio de Janeiro e Salvador. Percebemos que esses carnavais foram crescendo no decorrer dos anos e se desenvolvendo cada vez mais, porém a essência da festa foi esquecida, se transformando em um grande espetáculo, com altos custos no qual a população que deveria participar ativamente acaba sendo deixada de lado. O atual processo de globalização, propagado pelas mídias, encabe-

-ça mecanismos de alienação que estão presentes no caráter sedutor das mercadorias e das práticas de consumo em geral, pois preconizam a padronização e a uniformização de hábitos, valores e ideologias, interferindo fortemente nos processos identitários das pequenas comunidades, mais expostas ao turismo massificado. (FERREIRA, 2006, p. 66). Diante disso, observamos que as festas populares podem se modificar ao longo dos anos, perdendo sua essência, por isso é fundamental que essas festas sejam preservadas, acompanhando as mudanças que ocorrem no mundo, porém mantendo as suas tradições. As festas populares podem se modificar ao longo dos anos, perdendo sua essência, por isso é fundamental que essas festas sejam preservadas, acompanhando as mudanças que ocorrem no mundo, porém mantendo as suas tradições. As festas populares brasileiras possuem uma grande riqueza cultural, pois são cheias de manifestações artísticas e culturais do povo brasileiro, podemos encontrar diversas danças folclóricas e folguedos como coco de praia, coco de sertão, pau de fitas, quadrilhas juninas, tambor de crioula, de São Gonçalo, maneiro pau, reisados, bois, entre outros, como também observamos diversas manifestações que caracterizam o catolicismo popular existente nas festas religiosas, como é o caso das procissões, novenas, trezenas, cânticos, danças em

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homenagem a santos, entre outros. É fundamental dizer que esses festejos são de fundamental importância para a realização do turismo cultural, pois como agrega diversas manifestações culturais em um só momento permite que o visitante vivencie um pouco do cotidiano do povo da localidade, conhecendo os seus usos, costumes e tradições. As festas populares expressam as formas identitárias de grupos locais, onde o motivo de encontro, de fé ou simplesmente de celebrar atrai e identifica a devotos e indivíduos de mesma identidade. Neste caso o turismo pode causar estranhamento nos locais, uma vez que não seja negociada a participação e pior ainda se não forem negociados os papéis de cada grupo envolvido. (RIBEIRO, 2004, p. 49). Podemos dizer que a realização do turismo nas festividades populares pode trazer conseqüências benéficas e maléficas para as localidades, pois alguns grupos por influência de governantes, ou da mídia com objetivo de atrair turistas acabam espetacularizando as manifestações, deixando para trás as principais características das festividades que são promover uma alegria compartilhada, priorizando a simplicidade e essência do povo local. É importante fazer a devida distinção entre o evento / espetáculo e a festa popular, feita para celebrar um acontecimento, agrícola ou re84

PODEMOS DIZER TAMBÉM QUE ALÉM DO ASPECTO LÚDICO AS FESTAS PODEM MEXER DIRETAMENTE COM A PARTE ECONÔMICA DAS CIDADES EM DIVERSOS SETORES

ligioso que faz parte do cotidiano, possui sua organização no seio da comunidade, a partir da arrecadação de recursos e da ajuda do poder municipal, esta concepção está mais de acordo com os símbolos do lugar, compondo a identidade do grupo social que promove. (RIBEIRO, 2006, p. 48). Desse modo, observamos que o turismo pode se utilizar desse caráter dinâmico existente na cultura popular como um todo e principalmente nas festas populares, pois elas se transformam em um grande momento de lazer. É nesse tempo livre de obrigações

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e regras, que encontramos crianças, jovens, adultos e idosos, se divertindo com espontaneidade, promovendo um encontro com a sua identidade cultural e estreitando laços com costumes do passado que permanecem vivos no tempo presente. 2. O MARACATU NO CEARÁ O Maracatu é uma manifestação folclórica marcante pelos elementos da cultura negra existentes nele que teve grandes influências de festas que ocorreram na cidade de Fortaleza até o início do século XX. Como por exemplo as coroações de reis negros na Irmandade do Rosário, como também os autos de reis de congo que ocorriam nas ruas e terrenos baldios de Fortaleza. É importante considerar ainda, que a presença de uma corte negra em Fortaleza, independente do tempo em que ocorre – festa do Rosário, ciclo natalino ou no Carnaval -, ajuda a perseverar elementos culturais de raízes africanas, certamente ressignificados, mas que vão permitir a esse desfile de uma corte liderada pelos “reis congos” ser uma “tradição” negra que perdure na cidade. (MARQUES, 2009, p.185). Podemos perceber então, que alguns costumes e tradições dos negros no Ceará foram fundamentais para marcar a presença deles na cultura local como também reestruturar manifestações folclóricas.


Contextualizando a história do Maracatu no estado, podemos dizer que o primeiro maracatu oficial da cidade surgiu na década de 30, porém no século XIX estudiosos como Gustavo Barroso conta que os maracatus já desfilavam pelas ruas, esses maracatus eram compostos por duas fileiras de negros que saiam pelas ruas, com máscaras no rosto, tocando tambores e maracás, dançando e cantando, fazendo uma grande batucada. Os maracatus do século XIX costumavam vim de bairros próximos ao centro da cidade, como por exemplo, do Morro do Moinho que fica próximo a estação João Felipe. O primeiro Maracatu que surgiu nos anos 30 foi o Az de Ouro, fundado pelo senhor Raimundo Alves, que também era conhecido como Raimundo Boca Aberta. Alguns estudiosos contam que Raimundo Alves viajou para Pernambuco e Alagoas, que conheceu os maracatus e após alguns anos criou o Az de Ouro, porém com algumas peculiaridades, como o rosto pintado de preto. O maracatu foi bastante apreciado no carnaval, e por conta disso, nos anos 40 recebeu a Taça da Usina Colombina. Assim que o maracatu foi inserido no carnaval de Fortaleza, foi perceptível a influência da cultura negra nessa manifestação, por conta da musicalidade, como também pelos personagens que formavam o cortejo. Para a sociedade da época o maracatu foi algo diferenciado que surgiu no carnaval, pois contava com personagens diferentes com rostos pintados de preto, que evidenciavam a presença negra na cidade e apresentavam para o público os seus modos e costumes, além de divulgar

ASSIM QUE O MARACATU FOI INSERIDO NO CARNAVAL DE FORTALEZA, FOI PERCEPTÍVEL A INFLUÊNCIA DA CULTURA NEGRA NESSA MANIFESTAÇÃO, POR CONTA DA MUSICALIDADE, COMO TAMBÉM PELOS PERSONAGENS QUE FORMAVAM O CORTEJO.

as religiões de matriz africana, alvo de bastante preconceito na sociedade. O Maracatu cearense possui diversas peculiaridades e uma delas é o ritmo dolente e cadenciado, estudiosos afirmam que nos anos 30 quando surgiu o Maracatu Az de Ouro ele possuía um ritmo mais acelerado, possivelmente por influência do maracatu pernambucano que já tinha sido visitado por Raimundo Alves. Porém nos anos 70 foi perceptível que o maracatu adquiriu um ritmo mais cadenciado, inserido pelo Mara-

catu Rei de Paus, porque nesse período as fantasias da corte começaram a ser mais luxuosas e pesadas, por isso o ritmo mais dolente, para que houvesse também uma evidência dessa figura da corte. Também na década de 70 a característica dos maracatus de pintar o rosto de preto foi bastante evidenciada em músicas de compositores locais. Borges fala um pouco desse costume. Uma das explicações para esse costume é a de que se trata de buscar mimetizar-se com os negros vindos da África, visto que se supunha e se afirmava que no Ceará não existiam negros. Como essa foi a explicação admitida pelo fundador do maracatu Raimundo Alves Feitosa, que possuía traços negróides, ela corresponde à ideologia do branqueamento, isto é, o preconceito aos negros e aos seus descendentes introjetado pelos próprios negros, numa estratégia de assimilação usual em nossa sociedade. Segundo Mestre Juca, a máscara negra foi trazida por Raimundo Alves Feitosa do maracatu alagoano, por onde viajara, e dos reisados de Fortaleza, de que participava. (BORGES, 2007, p. 206). Além do rosto pintado de preto o maracatu cearense possui outras características, como por exemplo, ele é um grande cortejo que é dividido por alas. Primeiro vem o baliza e o porta estandarte que são responsáveis por abrir o desfile, anuncian-

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do que o maracatu chegou na avenida, a primeira ala é a dos índios, que são marcantes por representaram uma tribo de guerreiros e utilizam roupas cheias de penas, arcos e flechas. Vale ressaltar que na ala indígena, os brincantes não precisam pintar o rosto de preto, porém chamam atenção do público pelas suas fantasias, cheias de penas coloridas e as suas roupas utilizando normalmente tecidos com estampas de bichos, além disso, possuem uma coreografia própria e bem ensaiada pelos brincantes. A próxima ala é a das negras que vem seguida da ala das baianas, que giram pela avenida e chamam atenção pela beleza das suas roupas de renda. As baianas giram a renda das suas saias e mostram a sua alegria, encantando o público. Além disso, a indumentária usada pelas baianas faz uma alusão às roupas usadas nos terreiros de candomblé, deixando clara a influência das religiões de matriz africana. As baianas abrem caminho para o balaieiro que traz um enorme cesto de frutas na cabeça e dança durante todo o desfile com ele, normalmente o cesto vem com uma diversidade enorme de frutas e quanto maior o balaio percebemos quanto é grande a destreza do balaieiro. Vale ressaltar que a figura do balaieiro também pode ser um símbolo de fartura, por conta disso que os seus balaios são cheios de frutas. Pode representar também a figura dos escravos que saiam nas ruas para vender as coisas produzidas nas fazendas dos seus senhores. Continuando o desfile, surge o casal de

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pretos velhos, que representam a ancestralidade e influência negra nos desfiles. Normalmente os pretos velhos participam do desfile com cachimbos na boca e bengalas, valorizando o respeito aos mais velhos existentes com muita força nas religiões de matriz africana. E então surge a figura da dama do paço, carregando a calunga, a boneca preta do maracatu, que segundo estudos realizados por Marques afirma que ela veio de Angola. A boneca preta do maracatu (calunga), vinda da capital angolana (atravessou o Oceano Atlântico), dançava nos congos e nos maracatus. Era, pois, essa iniciativa de trazer elementos de raízes africanas, somada à força criativa dos sujeitos dessas festas, que enfim, impulsionava um constante reelaborar de uma cultura afro-cearense, que, no meu entendimento, possibilitou a perpetuação de práticas culturais negras na cidade, e que chegam aos dias atuais em boa parte amalgamadas (mas não cristalizadas nos maracatus). (MARQUES, 2009, p. 189). Essa influência negra nos maracatus é perceptível pelos diversos elementos que encontramos durante o desfile. Podemos dizer que assim como a figura da Calunga que veio da África, também observamos no desfile uma homenagem aos reis e rainhas negros, com a ala da corte, que possui princesas, príncipes, o rei e a rainha, que é coroada durante o desfile

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Um dos momentos mais esperados do desfile é quando a corte surge com seus vassalos, príncipes, princesas e com o rei e a rainha, no momento em que a corte passa pela avenida, é comum observarmos o público deslumbrado com a beleza e nobreza da corte, que possui roupas muito luxuosas, cheias de brilhos, pérolas e muitos enfeites. O momento da coroação da rainha também transmite uma grande emoção para os brincantes e para o público. E para finalizar o desfile a última ala é formada pelos macumbeiros, nome que recebe os tocadores, pois as músicas tocadas nos maracatus podem ser chamadas de loas ou macumbas. A ala dos macumbeiros é responsável por animar o desfile com as loas e com o som dos instrumentos característicos como o ferro, as caixas, o surdo, entre outros. A ala dos macumbeiros ou batuqueiros é responsável por animar o desfile, pois são eles que utilizam os instrumentos tradicionais que dão ao maracatu cearense essa batida dolente, porém cheia de vida, que contagia os brincantes e o público. As loas são as músicas feitas para o desfile e todos os anos ela tem um tema diferente, o tirador de loa ou macumbeiro é o responsável por comandar o desfile com sua voz. Percebemos que o Maracatu Cearense é uma manifestação que possui uma enorme riqueza cultural, pois mescla elementos históricos do povo cearense, focalizando características da cultura negra no estado. Podemos dizer então que


ela apresenta um grande potencial turístico, pois utiliza a dança, a música e a representação teatral, para construir lindos desfiles carnavalescos que se tornam grandes espetáculos a céu aberto. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos que o Maracatu cearense é uma manifestação que apresenta um grande valor cultural e histórico, pois em seus cortejos resgata a herança do povo negro existente em nosso estado, misturando elementos de outras culturas. Além disso, o maracatu também consegue agregar diversos tipos de pessoas de variadas classes sociais e idade, fazendo com que os brincantes consigam participar de todo o processo que se consolida no dia do desfile, são momentos importantes que agregam um sentido de valor ainda maior a essa manifestação, pois esses momentos de preparação de figurino, ensaios e organização do desfile fazem com que os brincantes tenham um sentimento de pertencimento ainda maior a cerca desta manifestação. Diante disso, é fundamental que as festas populares e as manifestações folclóricas sejam divulgadas, pois elas fazem parte da memória e da história da cidade, como também do seu povo. REFERÊNCIAS BORGES, Vanda Lúcia de Souza. Carnaval de Fortaleza: tradições e mutações. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial

para obtenção do grau de Doutora em Sociologia, 2007.

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RIBEIRO, Benjamin Adiron. Noções de planejamento urbano: lições práticas e teóricas de planejamento urbano. São Paulo: O Semeador, 1998. RIBEIRO, Marcelo. Festas Populares e Turismo Cultural – inserir e valorizar ou esquecer? O caso dos moçambiques de Osório, Rio Grande do Sul en PASOS –Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. Vol 2 n. 1 págs 47 – 56. 2004. SILVA, Ana Cláudia Rodrigues da. Vamos Maracatucá!! – um estudo sobre os maracatus cearenses. Dissertação submetida à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2004. SILVA, René Marc da Costa. Cultura Popular e educação – Salto para o futuro / René Marc da Costa Silva, organizador. Brasília, 2000 à 2008.

MARQUES, Janote Pires. Festas de negros em Fortaleza: territórios, sociabi-

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O MARACATU CEARENSE COMO CULTURAL POPULAR TRADICIONAL William Augusto Pereira RESUMO: O presente artigo relatará a experiência de que em um folguedo, como o Maracatu cearense, encontramos a possibilidade de uma práxis vinda da congada. Trata-se do Maracatu de Fortaleza, capital do Ceará. Nele, experimentamos a convivência entre as religiosidades cristã, indígena e afrodescendente. Nessa festa, estamos aprendendo a ver a beleza se contrata com o sagrado de forma cultural e sutil. Em uma brincadeira ensaiamos tornar étnica nossa Leitura Popular do Maracatu cearense. Palavras-chave: Religiões. Maracatu. Etnia. Comunidade negra. INTRODUÇÃO Com o surgimento do Ceará como unidade administrativa, em 1799, com 14 municípios, após separação de Pernambuco, visibiliza-se a existência de inúmeras comunidades negras e quilombolas urbanas e rurais espalhadas por todo o território cearense. Bernardo Manuel de Vasconcelos foi nomeado o primeiro governador pelo início da urbanização de Fortaleza. No município mais antigo, Aquiraz, fundado em 88

1699, existia as comunidades quilombolas de Goiabeiras, Lagoa do Ramo, Catolé dos Pereira, Pereiral e Cinzenta. Em Tauá, Tururu, Crateús, Itapipoca, Tamboril, Umari, Parambu, Iracema e outros, é notado a grande presença negra nessas vilas. Com a Independência do Brasil, as províncias foram organizadas, em 1823 e nesse ano o território já estava dividido em mais quatro cidades. Durante todo o período imperial do Brasil foram criadas mais 44 cidades desmembrando-se vilas das já existentes. Em pouco mais de um século, o estado do Ceará passou de 62 para 184 cidades que a partir da constituição de 1988 passaram a ser unidades constitutivas da união em patamar igual aos estados. O sistema cria a ideologia da invisibilidade após abolição dos negros escravizados no Ceará, que é uma ideologia de propagar que no Ceará não havia negros, empregado pela elite do estado e fazendo com que as comunidades negras, ou agrupamentos, ou territórios afros, desapareçam das estatísticas do governo cearense como um passe de mágica, ressurgindo nos anos 80 com a resistência do movimento social negro cearense. A origem do maracatu cearense se desenvolve nesse período, o qual iremos contextualizar mais adiante nessas reflexões. O Maracatu cearense, enquanto folguedo popular, foi uma ferramenta de resisXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

tência cultural para o momento lincada com outras realidades culturais do país. Como no período da escravidão, depois da abolição o negro resiste à dominação em suas novas formas. Desde as revoltas dos marinheiros negros com João Cândido em 1910, às organizações negras. Em 1931 nasce a Frente Negra Brasileira que foi cassada pelo Estado Novo, ao transformar-se em partido político, em 1937. Segundo Lima, 2003: No Ceará, havia a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário em Aracati, em Icó e em Fortaleza. Durante as festas das irmandades, os negros escravizados tinham certa liberdade, pois eram as figuras principais do cortejo. Eles se apresentavam como o Rei, a Rainha, o mestre de cerimônia e os mestres de campo. Havia também nas Irmandades as “açafatas”, que eram fidalgos que serviam na Corte do ritual. Essas pessoas carregavam um cestinho de vime chamado de “açafato”, em que se traziam rendas e brocados. Em Fortaleza, no final do século XIX, os negros já festejavam a coroação de sua rainha em um cortejo que saía do Morro do Moinho, por trás da estação João Felipe, no Centro de Fortaleza, e seguia rumo à


Igreja de Nossa Senhora do Rosário (LIMA, 2003, p. 4). E, Porto (2005), muito bem frisa ao afirmar sobre a presença vida do maracatu cearense: Os últimos Reis do Congo que houve em Fortaleza, minha terra natal, foram o negro Firmino, ex-escravo de meu pai, e a negra Aninha Gata. Esta ainda conheci aí por volta de 1897 ou 1898, com pequena quitanda na antiga travessa das Flores, entre as ruas Major Facundo e a da Boa vista, hoje Floriano Peixoto. A tradição do Maracatu surgiu, sem dúvida, dessas irmandades, que tiveram um papel muito relevante na sociedade colonial, entre os séculos XVII e XIX. Hoje, o Maracatu é uma procissão solene, sagrada e profana, que restou do antigo Auto dos Congos realizado pelas irmandades católicas, que simbolicamente coroavam a nobreza africana exilada (PORTO,2005). O Maracatu As de Paus foi fundado em 20 de janeiro de 1960, pertencente à família Silva. Família esta oriunda de Aracati, berço da Irmandade Religiosa Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da cidade de Aracati e que festejava o Rei de Congo. No governo de exceção de 1964, como o de 1930, paralisa e desagrega todas as organizações políticas e populares, atingindo também as comunidades negras, organizações culturais de resistência negras. Ob-

serva-se, no entanto, a afirmação negra nos Estados Unidos, com Martin L. King e o Black Power; e na África, com a independência das colônias portuguesas, coincide na Bahia com o surgimento do Bloco carnavalesco Ilê Aiyê, em 1974, formado só por negros da periferia, que afirmavam o valor da raça e da cultura negra como uma verdadeira revolução cultural. Com o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU) e do Grupo de união e Consciência Negra. O maracatu cearense está literalmente ligado a cultura negra no estado. Diferentemente do que possa imaginar o estado do Ceará abrigou inúmeros redutos negros; famílias negras agruparam-se e isolaram-se por décadas em todo o território cearense. Nesse sentido, várias manifestações culturais podem ser acompanhadas ao longo do tempo e observa-se a influência e presença, tanto indígena quanto negra, nessas manifestações populares. O maracatu cearense teve fortes influências aborígenes. Tanto é verdade que na formação de um grupo de maracatu conta-se com um grupo de índios. Um dos motivos a essa presença foi a afinidade religiosa e cultural do negro que aportou na terra do siará. Trazia consigo a cultura Banto11. Costumes, como, por exemplo, dar um pouco de cachaça para o santo, antes de ingeri-la, são tipicamente banto. Temos o costume, de antes de comer primeiro agradarmos ao nosso ancestral, ao nosso antepassado. Na tradição de Angola, no tocante à religião, para ser iniciado, o seguidor, 1 Temos um país com alma banto. Sua influência marcante na cultura e na alma brasileira é muito forte; também na música, na dança, no samba, no carnaval e principalmente no maracatu cearense.

tem que ter um parente consanguíneo, de primeiro ou segundo grau, falecido; a alma daquela pessoa será a sua sorte, caso contrário a pessoa não terá condições de passar pelo processo iniciático, diferente da tradição Ioruba. O brasileiro pouco sabe que as primeiras divindades em terras brasileiras são as divindades da tradição banto, denominadas de Nkisi (magia), Nkisi para o Kikongo e Mukixi para o Kimbundu (Angola). As culturas bantos tradicionais religiosas são divididas em segmentos. A cultura de Nkisi cujo desenvolvimento do processo não cheguei ainda a entender, não dá para entender como é o povo de Angola que deixa a maior marca na cultura brasileira, no tocante à questão religiosa do candomblé (da nação Angola). O que mais permanece é o Nkisi Congo, sendo os costumes. Aqui também precisamos entender como, sendo maior o contingente de escravos que vem de Angola, o angolano que restou de significativo foi o Nkisi que veio do Congo. A religião africana perpassa o quotidiano do negro, não é algo que guarda para vivenciar nos fins de semana. Ora, o exílio não poupou a religião negra, estreitamente ligada ao ambiente doméstico, aos manes ancestrais, reais ou lendários, totêmicos ou não, onde o sacerdócio era privilégio do patriarca. Diante deste esfacelamento, bantos e sudaneses reagiram de forma diferente dentro do Brasil Colonial. (Mira, 1983 p. 105).

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No caso singular da província do Ceará, que culturalmente teve forte influência da cultura banto, os Bantos2, cujo culto estava intimamente ligado à adoração dos mortos33, isso significa dizer que os povos aborígenes e africanos que aqui conviviam estavam acostumados a ligar a dimensão temporal com as noções de transformação, de envelhecimento, de começo e fim, de passado imutável. Tudo isso remonta a uma lógica formal, isto é, o fundamental é a coerência e não a verdade. E, à medida que a vida passa há mesmo tantas e tantas situações que se fixaram, que não mais podem ser mudadas e nas quais, como Jean Paul Sartre o formulou, o homem fica preso mesmo a esses costumes que alimenta suas vidas. Apesar de tudo isso, porém, não podemos esquecer a outra dimensão do tempo que passa. E para o povo negro e indígena essa dimensão que denominamos de cíclica o ajudar a reerguer-se a cada momento. É a dimensão cíclica, pela qual, sempre há novo começo. A noite não fica definitiva e toda meia-noite é também o começo de novo dia. Por causa desta dimensão cíclica do tempo permanece acesa, também na cultura banto, uma esperança, pois, enquanto a vida dura, haverá sempre novo amanhã. Isto significa que nossos atos podem ser corrigidos. Significa que em muitos e muitos casos, podemos recomeçar, 2 Segundo Walmir Damasceno a cultura Banto está na alma do povo brasileiro. A palavra negra é pertencente ao dialeto kimbundu, a palavra quitanda que quer dizer ir ao mercado, assim como samba, zumbi, xinga, jinga que é a corruptela de uma das grandes heroínas que lutaram pela libertação de Angola quando chegou o colonizador Diogo Cão, a rainha Jinga ou Zinga. 3 A cultura banto trouxe a dimensão temporal e cíclica que acrescentou a cultura brasileira.

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podemos refazer amanhã aquilo que hoje fizemos mal, e por minha falha de ontem, posso desculpar no futuro. Com a morte, porém, o homem sai da dimensão temporal, e com isso também de seus ciclos de fazer e refazer. O indivíduo retorna em corpo glorioso para os seus antepassados, isto na concepção da cultura banto. Na morte não há mais possibilidade de refazer e também acabou a certeza de que haverá repetição. Na morte acabou também a possibilidade de corrigir ainda alguma de nossas obras. Elas ficam assim, como são; nada mais pode ser mudado, tudo se tornou definitivo. Nesse sentido terão duas saídas, segundo Roger Bastide: 1.Conforme a primeira, a alma retornava “post-mortem” ao país dos antepassados, reencarnando os seres livres, ou aumentando o número de ancestrais deificados. Esta solução foi mais própria dos membros da família exilada, não de grupos inteiros. Daí que não era de estranhar que muitos africanos deste grupo partissem para o suicídio como forma de mais rapidamente encontrar os seus antepassados. O que não invalidava, também a busca do suicídio devido aos maus tratos sofridos na escravidão Cearense. Em muitos momentos ela era melhor remédio. Falo isso para, de antemão, identificar e combater certas opiniões divulgadas sobre a escravidão no Ceará como branda. A segunda saída seria fazer uma releitura das religiões católicas e indígena à luz do culto dos mortos44. Para isso, esta 4 Quando os iorubas aqui chegaram já encontraram os bantos, semeando toda esta beleza no nosso país. Aqui é terra banto. A cultura banto dar importância ao antepassado, ao morto.

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última muito se prestava pelo fato de seus sacerdotes (pajés) fazerem os mortos falarem, entrando as índias em transe. Eis porque os bantos entraram em harmonia com o catimbó e a pajelança. Consultamos o nosso antepassado para tudo, até para o que vamos falar, ou antes, de tomar qualquer decisão. Eu tenho meu avô, minha avó e meu irmão mais velho. Nós chamamos de sombra. Se não tiver a sombra de um parente, a pessoa não tem condições de passar pelos ritos de iniciação. Não se podem reverenciar pessoas que tenham sido assassinadas, ou seja, suicidas. É diferente da tradição Ioruba, porque o tratamento desta questão do ancestral tem um culto próprio. Em uma cerimônia religiosa ioruba, se uma pessoa é tomada, este espírito é afugentado, na tradição banto, ele recebe uma espécie de doutrina. Se por exemplo meu vizinho morrer e tiver sido uma boa pessoa, eu posso invocar o seu espírito para fazer parte de minha casa. O Ioruba chama isto de Egum. Uma entidade ioruba não se manifestaria se estivesse uma pessoa tomada por um ancestral. Na tradição banto, o tratamento do morto tem importância fundamental e isso também está na alma do povo brasileiro, como por exemplo, ao reverenciar as fotos dos mortos. Percebe-se que índios e negros no Ceará caminham com objetivos comuns, herdados das culturas semelhantes. Mas o que isso tem haver com o maracatu cearense? É que o maracatu cearense passa por esse processo. E com a formação do maracatu no Ceará não foi diferente. Os passos no cortejo diferenciam com leves


gingados e instrumentos percussivos diversos mais artesanalmente trabalhados com características muito próximas. Muitas são as fontes documentais e bibliográficas que se referem sobre os índios do Ceará, a grande maioria de tribos indígenas cearenses desenvolvem a cerâmica e a cestaria, como trabalho de subsistência. Os cestos são, em sua grande maioria, produzidos a partir de folhas de palmeiras e usados para guardar alimentos. Já na cerâmica, são produzidos vasos e panelas através do barro modelado. Tanto na cerâmica como na cestaria são usados também pintura (a mesma de seu corpo) e desenho abstratos para colorir seus trabalhos. Os índios também valorizam muito a música. Muitos instrumentos musicais foram criados pelos indígenas, como flautas e chocalhos. A música era usada por todas as tribos como passatempo ou em rituais sagrados. identificando sua diversidade étnica. Leite assim compreende: Ao mesmo tempo em que não os diferencia, os coloca como de natureza semelhantes – não em cultura, mas no trato para com os europeus, pois teriam um caráter indômito. (...) populações indígenas situadas entre as proximidades do rio siará e as fraldas serranas próximas a Maranguape eram compostas de índios potiguares genealogicamente ligados aos que se mantinham nos sertões de Capoaba, Rio Grande e Paraíba, dos quais noticia o padre Francisco Pinto em Interessante

carta de 1599 ( LEITE, 1945, p. 521). Acrescentamos uma observação que na mesma margem do situado rio habitava um aglomerado de negros vindo ou forçado a saírem do Jacarecanga e permaneceram nessa área hoje denominada de Arpoador, Goiabeiras e Barra do Ceará. Em Maranguape notícia se tem de populações negras, algumas escravizadas nos arredores do lugarejo. Esses negros bantos misturavam-se com os índios e conviviam naturalmente. A população negra no continente é, em sua maioria, pobre. A situação de pobreza em que vive não eliminou sua tradição de luta, resistência, fé e seus valores étnico-culturais. O “estado de pobreza”, muitas vezes, apresenta desafios, situações quase impossíveis de solucionar. A pobreza traz toda sorte de carências. Desestrutura a vida emotiva, as relações com os outros, impede a vocação essencial do ser humano de desenvolver e expandir suas capacidades para além do instinto de sobrevivência. A situação de pobreza leva ao ódio, à inveja, à violência contra os que mantêm os pobres em tal situação, ao desespero contra Deus e, às vezes, faz levantar o punho contra o céu. Para ordenar a administração dos negros trazidos como escravos para o Brasil a partir de 1538, os colonizadores portugueses incentivaram a instituição de reis e rainhas negros protegidos pelas irmandades de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. As Irmandades negras foram, no Brasil Colônia, um fiel espelho da sua divisão em classes e castas; espaço não carente

de uma certa ambiguidade, pois enquanto possibilitavam a organização de negros e escravos, ao mesmo tempo permitiam o controle do poder sobre estes grupos. Nesse sentido Russelwood (1999,p.525) faz um destaque que nos chama atenção: É importante destacar que as populações negras buscaram se organizar por meio de irmandades religiosas para promover a ajuda mútua, propalando também suas práticas culturais religiosas no universo do catolicismo, num processo de construção e reconstrução de sua identidade na América, embora houvesse a existência da diáspora africana, do tráfico negreiro e da escravidão empreendidos no Novo Mundo. As mazelas sociais que atingiam as populações negras, influenciaram o aumento do número de irmandades religiosas nas regiões de mineração (Russelwood, 1999, p. 525). Ainda no século XVIII, elas reuniam e distinguiam brancos, negros, pardos, escravos e livres, e tiveram mais peso social do que as corporações de ofícios (Silva,1008).5 As irmandades serviam também de função de auxiliar na alforria dos negros escravizados e de promover status social que foi decaindo a partir do século XIX, com a abertura de outros canais de ascensão social, mas a preocupação com os mais pobres, as mulheres desampara5 Segundo relato do agente de Pastoral Walter Soares de Oliveira que me atendeu no dia 29 de maio de 2009 quando visitava a capela com o objetivo de obter informações a respeito daquele templo religioso.

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das, a saúde e os enterros dignos continuou mantendo em pé várias irmandades. Nesse sentido Chiavenato (1980, p.113) nos alerta ao afirmar: A origem das irmandades, que exerceriam um papel importante no Brasil, principalmente na Bahia e em Minas durante a mineração, remonta ao ano de 1264, quando o papa Urbano IV inventou a festa do Santíssimo Sacramento e criou as irmandades ou confrarias para comemorá-la. As irmandades mineiras e baianas (e também as cearenses, grifo meu) nasceram daí e serviram no Brasil menos para a festa do Santíssimo Sacramento e mais para o “amansamento” dos negros, afastando-os também das igrejas dos senhores. Não deixa de ser interessante que essas irmandades copiam o modelo racista dos brancos e acabam por permitir apenas negros na sua formação, cumprindo assim tranquilamente o seu papel: os negros têm a “sua” igreja, a sua irmandade, não precisam ir à igreja dos brancos. Satisfazem-se com isso; a divisão pacífica entre negros e brancos nas irmandades é bem visível em Ouro Preto de 1715 a 1743, (mas também muito forte em Fortaleza e Iço e Sobral, grifo meu). Em 1637 os holandeses constroem em Fortaleza, próximo ao riacho Pajeú, o Forte Schoonenborch. E dentro do mesmo terreno militar é erguida a Igreja de Nossa Se-

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nhora do Rosário em 1730 com a mão de obra negra, escravizada e livre e que contribuíram com a elite da época, oriundos de Aquiraz. Após a sua expulsão em Pernambuco, entregam o forte aos portugueses, que contando com o apoio dos índios e negros livres, restabelecem o poderio português, rebatizando-o de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. A igreja de Nossa Senhora do Rosário foi duas vezes catedral de Fortaleza. Em seu piso de madeira oco no centro do templo contém jazidas onde estão sepultados 54 corpos. 50 de adultos e 4 crianças. Os corpos das crianças se encontram na primeira fileira da entrada principal do templo religioso. Observa-se na entrada nove jazidas as quais os corpos das crianças serão da quarta a sétima jazida, portando na porta principal.6 Os corpos encontrados na Igreja de Nossa Senhora do Rosário foram reconhecidos como sendo de negros, provavelmente de pessoas com muita influência para a comunidade local. Podemos crer ser de negros pertencente a Irmandade e baseados nas observações de Silva (1998,p.79) que confirma: Terceiros seculares são aqueles que vivendo no século, debaixo da direção de alguma ordem e conforme o espírito da mesma, se esforçam por adquirir a perfeição cristã de uma maneira acomodada à fé cristã. As Associações de fiéis que tenham sido erectas para exercer alguma obra de caridade ou piedade, se denominam pias-uniões; as quais, se estão constituídas em or-

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ganismos se chamam Irmandade. E as irmandades que tenham sido erectas ainda mais para o incremento do culto público recebem o nome particular de Confrarias. As irmandades e confrarias que gozam da faculdade para agregar a si, outras da mesma espécie, se chamam arquiirmandades ou arquiconfrarias. (Silva, 1998, p79) A Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Fortaleza abriga, também os restos mortais de Major Facundo de Castro Menezes, vice-presidente da província, assassinado a 8 de dezembro de 1841, sendo presidente José Joaquim Coelho. Quanto aos negros ali enterrados sendo da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário é provável que os mesmos tivessem uma forte ligação tanto com o clero, bem como com a comunidade negra livre e escrava que habitava Fortaleza no século XVIII, pois tinham essa Irmandade a política de associação religiosa colonial e principalmente no caso das Irmandades negras visava ser um complemento na obra da evangelização. A Igreja que, juntamente com o estado, lucrava com a escravidão, não podia permanecer indiferente à problemática do negro escravizado, deveria tomar alguma posição, por superficial que fosse. A política da irmandade foi uma saída. Foi durante a existência das irmandades religiosas que surgiram as Congadas e o maracatu, ou seja, a coroação de um Rei Congo no Brasil, nas festas religiosas e populares. As Congadas são manifestações das práticas culturais religiosas das


populações negras. Elas foram permitidas pelos representantes da Igreja católica no período do Brasil colonial, porque eram organizadas pelos negros das irmandades religiosas. Na América portuguesa, os representantes eclesiásticos católicos consentiram que as populações negras se organizassem por meio das irmandades religiosas. Embora eles procurassem controlar a manifestação das práticas culturais religiosas dos negros na colônia. Naquele contexto histórico, as irmandades religiosas eram associações de suma importância, pois procuravam possibilitar a ajuda mútua às populações negras, constituindo-se em espaços de convivência social, onde podia se preservar aspectos das práticas culturais do continente de origem, a África. Mesmo participando de atividades que compunham o calendário da Igreja católica, religião oficial do período. Nessas festas, havia uma forte presença dos elementos do catolicismo e também da música e da dança trazidas da África. Orientam-nos, com convicções, Araújo (2003, p.40) ao afirmar: Por isso, as coroações de Rei Congo não foram proibidas. Os negros cantavam misturando a língua africana com a portuguesa. Dançavam e festejavam fora dos padrões dos europeus. Em contrapartida, “os membros da Igreja e da elite escravista achavam, ou preferiam achar, que se tratava de uma manifestação da fé cristã”. Isso propiciou proteção às irmandades e permitiu as populações negras relem-

brarem e conservarem traços das práticas culturais de uma África anterior à escravidão, empreendida pelo homem branco. (Araújo, 2003, p. 40). O Maracatu é uma beleza silenciosa que aparece, para alguns uma vez ao ano. Mas a vida dos barracões é muito diferente, trabalha-se o ano todo para concretizar esse silêncio belo. O Maracatu tem seu projeto de cidadania. O carnaval de Rua em Fortaleza iniciou-se no final do Século XIX, mas foi proibido por um período, em 1905, pelo intendente Guilherme Rocha. Nos desfiles da época eram comuns pessoas fantasiadas chamadas de “papangus” e “dominós”. Havia também os ´caboclos´, remanescentes dos indígenas de Porangaba (NIREZ, 1993, p. 3). De acordo com Nirez (1993): o carnaval de Fortaleza era mais ou menos animado, conforme a situação econômica e social da época. Em tempo de revolta ou guerra, era desanimado e em tempo de paz e harmonia era muito animado. Nas décadas de 1910 e 1920, predominava o carnaval de clubes. Na década de 1930, o carnaval de rua começou a se tornar mais popular, quando blocos foram formados por músicos, comerciários e trabalhadores, denominados ´brincantes´, com a orquestra na retaguarda. Na frente havia sempre um baliza, que fazia acrobacias com bastão à mão. Esses blo-

cos tinham compositores próprios que geralmente faziam marchas especiais para o Carnaval. Mais tarde surgiram os blocos que dançavam ao som de samba. O primeiro desses blocos foi o ´Prova de Fogo´, seguido da ´Escola de Samba Lauro Maia´, que se transformaria, mais tarde, na ´Escola de Samba Luiz Assunção´. O desfile, chamado de ´corso´, nas décadas de 1930, 1940 e 1950, teve várias formas. Os blocos se reuniam na Praça do Ferreira e desciam para a Avenida Duque de Caxias, fazendo o retorno ao ponto inicial. Mais tarde, passaram a fazer um círculo, voltando por outras ruas. Por fim, a concentração passou a ser no Passeio Público, seguindo o desfile pela Rua Major Facundo até a Praça do Ferreira, onde atravessavam em diagonal, retomando pela Floriano Peixoto, indo até a Avenida Duque de Caxias, voltando pelas Ruas Senador Pompeu e João Moreira e desfaziam-se quando chegavam novamente ao Passeio Público. Houve anos em que o desfile foi feito pelas grandes avenidas, como a Tristão Gonçalves, a Duque de Caxias e a Dom Manuel (NIREZ, 1993). O pesquisador ainda afirma que: Os blocos de Maracatus em Fortaleza surgiram em meados da década de 1930 e eram diferentes dos Maracatus de Recife. Enquan-

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to os pernambucanos vêm de uma tradição secular, os de Fortaleza era somente uma brincadeira de carnaval. Como nos Maracatus originais do Recife, os Maracatus de Fortaleza tinham várias vestimentas dentro de um mesmo bloco, com a rainha, o rei, o índio, as baianas, o baliza, e outros. Vários blocos carnavalescos fizeram parte do carnaval de rua de Fortaleza no início do século XX e entre eles encontravam-se os blocos de Maracatus, como o Az de Ouro, o Az de Espadas, o Estrela brilhante e o Rei de Paus (NIREZ, 1993). A cadência própria e original do ritmo do Maracatu cearense foi adquirida ao longo do tempo. De acordo com Calé Alencar (2000), presidente do Maracatu Nação Fortaleza. O Maracatu do Ceará é a mais tradicional manifestação cultural de origem afro presente na cultura popular cearense e em especial no carnaval de rua de Fortaleza, onde se impôs como força representativa apresentando seu cortejo com imponência e beleza. Em suas apresentações, os batuqueiros e os tiradores de loas, responsáveis pela parte musical do cortejo, entoam cânticos homenageando orixás e figuras expressivas da cultura e da história afro-brasileira. Os Maracatus Az de Ouro, Rei de Paus, Vozes d´África, Nação Baobab e Rei de Espada desfilam em Fortaleza regularmente com seu séquito, trazendo a representação do cortejo real africano em homenagem à Rainha N´Ginga N´Bandi e reproduzindo as coroações

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dos Reis do Congo organizadas no século XIX pelas Irmandades religiosas (ALENCAR 2000). José Augusto Lopes (2004, p. 5) afirma que: ´[...] os cearenses nunca figuraram entre os mais entusiasmados brincantes do Brasil. Há quem atribua essa evidência à existência de poucos afro-brasileiros no Ceará´. Entretanto, ´apesar de seus limites o carnaval de rua fortalezense teve suas peculiaridades. Uma delas eram os exuberantes carros alegóricos das prostitutas, todas elas residentes nas inúmeras ´pensões alegres´ então existentes no Centro da cidade´. Além dos carros alegóricos os blocos de Maracatu sempre enriqueceram e animaram o carnaval de rua de Fortaleza. Lopes (2004). CONCLUSÃO No Ceará, o Maracatu é a mais tradicional dança dramática de origem afro descendente presente na cultura do povo cearense, configurando um cortejo formado por baliza, porta-estandarte, índios brasileiros e nativos africanos, negras e baianas, negra da calunga, negra do incenso, balaieiro, casal de pretos velhos, pajés, tiradores de loas e batuqueiros, em reverência a uma rainha negra e sua corte real. No Ceará, o povo caboclo usa uma mistura de fuligem, talco, óleo infantil e vaselina em pasta para tingir o rosto de negro.

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O ritmo do maracatu cearense é apresentado por um grupo de percussão no qual incluem-se caixas, utilizadas sem esteira para acentuar a batida grave, surdos, bumbos, ganzás, chocalhos e triângulos, também chamados de ferros, confeccionados com molas de transporte pesado, o que lhes confere um timbre característico e uma sonoridade acentuada, destacando-se dos demais instrumentos. O macumbeiro ou tirador de loas é quem canta as toadas, nas quais são geralmente enfocados temas ligados à cultura, à religião e à história da África e do Brasil. Em Fortaleza, conforme registrado no livro Ideias e Palavras, existiam os maracatus do Morro do Moinho (Arraial Moura Brasil, por trás da Estação Central), do Beco da Apertada Hora (atual rua Governador Sampaio), da rua de São Cosme (atual rua Padre Mororó), do Outeiro (Aldeota antiga, atual região do Colégio Militar) e o do Manoel Furtado. O maracatu cearense chegou ao carnaval, desfilando oficialmente como agremiação carnavalesca, em 1937, através de um convite feito pelo então Rei Momo Ponce de Leon ao Maracatu Az de Ouro, fundado em 1936 por Raimundo Alves Feitosa, compositor e tirador de loas também conhecido como Raimundo Boca Aberta. A partir da década de 1950 surgiram outros grupos como Estrela Brilhante, Az de Espada e Leão Coroado, agremiações de grande destaque nos desfiles carnavalescos, contribuindo com a riqueza de seus cortejos para a consolidação do maracatu cearense como uma das mais importantes expressões de cultura popular tradicional do Ceará.


Na história dos maracatus em Fortaleza registra um expressivo número de grupos, muitos deles extintos, como é o caso dos maracatus Rancho Alegre, Nação Africana, Rei de Espada, Rei dos Palmares, Nação Uirapuru, Nação Gengibre, Nação Verdes Mares e Rancho de Iracema. Nas décadas de 70 e 80, durante a ditadura militar, o maracatu cearense sofreu uma decadência, tanto na qualidade dos desfiles, quanto na quantidade, chegando ao ponto de só haverem 2 maracatus em atividade. Nesse período, os desfiles de maracatu foram incoerentemente obrigados a apresentar um enredo, apresentando-se na avenida como se fossem as escolas de samba do carnaval carioca. Felizmente, o maracatu cearense incorporou algumas modificações construtivas, como algumas modificações nas vestimentas e a inclusão dos capoeiristas, e abandonou as modificações inadequadas ao maracatu, como os enredos e os carros alegóricos. Atualmente, no Ceará, existem grupos na região do Cariri, Sobral, Pindoretama, Itapipoca e Fortaleza. Em 1981 desfilaram no carnaval de Fortaleza os maracatus: Ás de Ouro, Leão coroado, Nação Africana, Rei de Paus, Rei de Espada e Vozes da África. O ritual de coroação teria dado origem à vários autos e danças, incorporados ao folclore brasileiro desde o século XVII. Entre eles, o Auto dos Reis de Congo, a Congada e o Maracatu. De fato, o maracatu é parecido com o ritual: um cortejo com música para a coroação de uma rainha negra. Nos registros mais antigos, os desfiles de maracatu em Fortaleza ocorriam nas

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

...O MARACATU CEARENSE INCORPOROU ALGUMAS MODIFICAÇÕES CONSTRUTIVAS, COMO ALGUMAS MODIFICAÇÕES NAS VESTIMENTAS E A INCLUSÃO DOS CAPOEIRISTAS, E ABANDONOU AS MODIFICAÇÕES INADEQUADAS AO MARACATU, COMO OS ENREDOS E OS CARROS ALEGÓRICOS.

-www.maracatu colonia. História do maracatu. Visitado em 15/07/2017. -Portal do Maracatu Nação Fortaleza, Endereço: http://www.batoque.com/ fortaleza, Acesso em 15 julho de 2018. ALENCAR, C.Origem e evolução do maracatu no Ceará, Fortaleza: Banco do Nordeste, 2007, 54p. MIRA. A evangelização do negro no período colonial brasileiro. 1983, p. 105 OLIVEIRA, Paulo Tadeu Sampaio de. Pequenas e Média empresas. Perspectivas organizacionais para o maracatu cearense. Fortaleza. Tese de mestrado. Universidade estadual do Ceará. SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. Pequena história da telefonia no Ceará. Fortaleza: Teleceará, 1982

festas do ciclo natalino, nas festas da Nossa Senhora do Rosário e de Corpus Christi, onde não eram bem aceitos. Á partir de 1937, com o desfile de estreia do maracatu Az de Ouro, criado por Raimundo Alves Feitosa (Raimundo Boca-aberta) em 1936, o maracatu cearense passou a assumir a formação de um bloco carnavalesco e a desfilar durante os carnavais, como ocorre até hoje. Além de ter criado o maracatu Az de Ouro, existente até hoje, e ter adaptado o maracatu para os desfiles carnavalescos, Raimundo Boca-aberta foi um dos maiores compositores de loas de que se tem notícia e um compositor dos mais notáveis.

LEITE, Maria Amélia. RESISTÊNCIA TREMEMBÉ NO CEARÁ – DEPOIMENTOS E VIVÊNCIAS In: NA MATA DO SABIÁ CONTRIBUIÇÕES SOBRE A PRESENÇA INDÍGENA NO CEARÁ. 2009. Fortaleza-Ceará. LIMA, Maria Batista/ CUNHA JUNIOR, Henrique. Repertórios culturais de Base africana, identidades de base afrodescendentes e educação em Sergipe. Série pensamentos negros em educação. Florianópoles: 2000. NIREZ, Miguel Ângelo. Carnaval sobrevive apesar da decadência: regulamentos descaracterizaram o carnaval. Jornal o Povo. Fortaleza, 28 de fevereiro de 1987.

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REISADO DA FAMÍLIA RAMOS: O ITINERÁRIO DE UMA TRADIÇÃO Maria Silma Moreira Magalhães

permanência das manifestações populares no atual contexto do campo.

RESUMO

Palavras chave – Cultura oral, assentamento, transmissão de saberes, comunidade tradicional, reisados.

O presente artigo intitulado “Reisado da Família Ramos: o Itinerário de uma Tradição”, traz o relato da pesquisa do mesmo nome, cujo objeto de estudo é o sistema de funcionamento do reisado e os seus processos de transmissão de saberes a partir dos elementos constitutivos da tradição. Utilizo como referencial teórico-metodológico, a pesquisa etnográfica, a qual busca compreender a sociedade e os processos sociais sob o ponto de vista das pessoas que nela vivem, entendendo que é necessário observar o que as pessoas fazem, quais as ferramentas por elas utilizadas no fazer diário e como elas se relacionam. Trata-se de uma investigação da vida comunitária, vivenciada com os sujeitos constituintes da prática do reisado. Como resultado da pesquisa, obtive a compreensão do sistema de funcionamento do reisado, a partir do registro de seu itinerário, sob o olhar de várias gerações, com a identificação das principais mudanças ocorridas na sua dinâmica, bem como das tensões causados pelas novas regras que se contrapõem aos modos de transmissão de saberes das culturas populares e os desafios da 96

DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO O Reisado da Família Ramos é patrimônio imaterial, que tem como territorialidade a Comunidade Jacinto, no Assentamento Ipueira da Vaca, localizado no município de Canindé. Assim, o presente estudo tem como delimitação do seu objeto a investigação do sistema de funcionamento do reisado e dos seus processos de transmissão de saberes. Desde os elementos constitutivos de sua tradição, levantei as seguintes questões: - Como a brincadeira do reisado da família Ramos vem sendo repassada de geração em geração por quase um século? ii - Como o reisado se organiza? iii - Como é feita a transmissão de conhecimento do reisado ao longo desse percurso? A escolha do tema justifica-se pelo trabalho de fortalecimento do grupo de reisado que realizo, para viabilizar o acesso deste às políticas públicas de cultura, as quais geram novas dinâmicas nas suas relações internas, e com o seu público, mas a principal motivação é a relevância do tema da reXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

produção e a transmissão de saberes para os mestres e brincantes de manifestações das culturas populares, os quais temem pelo desaparecimento de suas tradições. Para Carlos Sandroni (2005), a questão fundamental para as culturas populares é a reprodução e transmissão, e não apenas a divulgação e difusão. Ele questiona que muitos grupos populares, ao se deslocarem para os circuitos de mercado, deixam de se reproduzir nas suas comunidades, perdendo prestígio. O interesse da pesquisa é entender como nesses contextos de comunidades, onde se configuram universos culturais tradicionais, vêm se dando esses processos de transmissão da manifestação cultural do reisado. O que motiva os jovens a permanecerem nele? E se novos elementos são aportados? No percurso da pesquisa, adotei como referencial teórico metodológico a pesquisa etnográfica, compreendendo a sociedade e os processos sociais sob o ponto de vista das pessoas que nela vivem, observando ainda o que as pessoas fazem, quais as ferramentas utilizadas pelo grupo no seu fazer diário e como eles se relacionam entre si. Para isso, duas ferramentas metodológicas fundamentais foram aplicadas: a interação prolongada entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa; e a interação mais próxima com o universo pesquisado. O pesquisador


é um observador participante, o que implica que deve estabelecer uma relação dialógica num processo de interlocução com os entrevistados. No processo de investigação, realizei entrevistas estruturadas e semiestruturadas, e inclui como interlocutores além dos brincantes das várias gerações inclui também como interlocutores ex-brincantes do reisado e pessoas da comunidade que acompanham a brincadeira e exercem ou exerceram funções de mediação, junto às instituições públicas. Entrevistei também os pais dos jovens e crianças, buscando perceber a influência destes na participação dos filhos e quais elementos foram acionados como estímulo às novas gerações. A pergunta de partida foi mantida, mas surgiram elementos novos que passaram a reposicionar a problematização do tema no itinerário do reisado, ao longo dos três períodos da sua existência, definidos a partir dos mestres: O Reisado de Zé Ramos, O Reisado de Nel Ramos e o reisado no seu momento atual, com duas formações - o Reisado adulto e o Reisado Infantil Nel Ramos. Observamos nesse itinerário, o sistema de funcionamento do reisado, e particularmente, como o papel da família, no processo de transmissão de saberes, torna-se um elemento chave na continuidade da brincadeira. É no seio da família e das comunidades tradicionais que surgem a maior parte das manifestações populares, e é nesse ambiente, com predominância de modos de vida ligados às tradições, que surgem os reisados. Segundo Thompson [1998, p.17]:

nas sociedades rurais, como também nas áreas manufatureiras e mineiras densamente povoadas, encontramos uma herança importante de definições e expectativas marcadas pelo costume. O aprendizado como iniciação em habilitação dos adultos [...] também serve como mecanismo de transmissão entre gerações. A criança faz seu aprendizado do primeiro junto à mãe e avô... Embora a vida social esteja em permanente mudança e a mobilidade seja considerável, essas mudanças ainda não atingiram um ponto em que se admite que cada geração sucessiva terá um horizonte diferente. O reisado é uma brincadeira tradicional que tem sofrido pequenas variações ao longo do tempo, mantendo-se, por meio da repetição e da imitação, elementos constitutivos da tradição. Segundo Oswald Barroso [2013, BARROSO P.25], em sua definição, o reisado é um folguedo tradicional do ciclo natalino que se estrutura na forma de um cortejo de brincantes, representando a peregrinação dos Reis Magos para Belém,e que se desenvolve eu autos, como uma rapsódia de cantos, danças e entremeses, incluído obrigatoriamente o episódio do boi. São identificados vários tipos de reisados: o Reisado do Congo, o Reisado de Bailes e o Reisado de Caretas. O reisado da família Ramos se inclui na definição do reisado de caretas, ou reisado de couro, um reisado típico do sertão do gado que tematiza as relações entre o fazendeiro (amo, capitão ou

patrão) e seus moradores, os caretas. A família Ramos, portadora da tradição do reisado nos sertões de Canindé1, é originária da comunidade de Teodósio, no município de Quixadá, hoje pertencente a Choró, região do sertão central do Ceará. José Ramos Silva,o grande mestre desse reisado, é mais conhecido como Zé Ramos. Filho de agricultores, tendo nascido e crescido na roça. Casado com dona Maria Silva Ramos, Zé Ramos foi morador da Fazenda Feijão, onde plantava algodão de meia, feijão, milho, fava e mandioca. Depois de muitos anos trabalhando nessa fazenda, seu Zé Ramos foi expulso com seus filhos por não concordar em colocar o gado do patrão na sua roça de mandioca. Mas segundo nos conta seu filho Cosme (conhecido como Luiz Ramos), o encarregado da fazenda, na época, já vinha perseguindo seu pai, pois não gostava do reisado, alegando que, durante o período da brincadeira, eles abandonavam a fazenda e não trabalhavam. Foi no ano de 1950 que a família Ramos chegou a Canindé, fazendo a caminhada de milhares de camponeses em busca de terra para morar, plantar e, no caso específico da família, brincar o reisado. Porém, foi somente em meados da década de 70 que a família Ramos concretizou o sonho de ter uma terra para nela viver e trabalhar. É no Jacinto, área pertencente à fazenda de Ipueira da Vaca, depois transformada no assentamento Ipueira da Vaca, que Zé Ramos constrói o seu barracão do reisado, e 1 Oswald Barroso entrevista, em outubro de 1989, doze (12) caretas de diferentes reisados, sendo que, dentre esses, três (3) caretas são da Família Ramos; os demais eram integrantes dos grupos de reisado dos Targinos e do bairro João Paulo II, em Canindé. Apenas o reisado de Ipueira da vaca, da família Ramos, está em atividade.

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continua plantando e colhendo da sua roça, mandioca, milho e feijão, mas, agora, sem temer os donos do latifúndio. O assentamento Ipueira da Vaca2, com uma área de, aproximadamente, 7.500,658 ha, fica a 60 km da sede do município de Canindé. Sua população estimada é de 500 pessoas, com 115 famílias assentadas e 33 agregadas3. As localidades que compõem a unidade territorial do assentamento são: Três Barras, Sabina, Logradouro, São Miguel, Serrote Branco, Ipueira da Vaca (sede) e Jacinto. As famílias plantam milho, feijão, mandioca; outras se dedicam ao plantio do algodão. Uma parte dessas famílias são beneficiadas por Programas Sociais. Segundo Orlando Paz, as atividades da agricultura estão diminuindo cada vez mais. Há uma menor produtividade do solo agravado pelos quatro anos consecutivos de seca. Como na maioria das comunidades rurais, há um grande êxodo da juventude que se desloca em busca de trabalho. Orlando revela ainda que, na comunidade do Jacinto, todos os jovens maiores de 18 anos foram embora; Muitos foram trabalhar em Fortaleza; e retornam para o assentamento no final de semana e no período do inver2 O assentamento Ipueira da Vaca, em Canindé, é originário de três fazendas (São Miguel, Ipueira da Vaca e Logradouro) adquiridas, nos anos de 1973 e 1974, pela Diocese de Fortaleza com recursos oriundos de doação internacional dos Estados Unidos e Canadá. Posteriormente, a fazenda foi doada ao INCRA para criação de uma área de assentamento: Resolução n° 4, de 08/11/1986. 3 Famílias agregadas, para o INCRA, são aquelas famílias, na sua maioria, filhos de assentados(as) que casam, constroem suas casas no assentamento, mas não têm direitos aos benefícios da política de reforma agrária por não serem cadastradas. O número de famílias cadastradas por assentamento é definido em função do número de hectares disponível.

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no. A questão da educação é outro grande problema, pois existe apenas uma escola de Ensino Fundamental I na localidade de Serrote Branco, para cursar o Fundamental II, as crianças se deslocam para o distrito de Targinos e todas as escolas de nível médio estão localizadas na sede do município. As festividades religiosas animam a vida comunitária, tendo como ponto culminante as festas dos padroeiros, com suas novenas, celebrações, leilões, além da missa do vaqueiro, que é celebrada nas comunidades de Três Barras e São Miguel e que reúne vaqueiros de toda região. Mas é no Jacinto, localidade do assentamento, que se concentra o maior número de brincantes do reisado, onde identificamos como origem de sua formação cultural as tradições orais dos repentistas, violeiros, cordelistas e do reisado, sendo portadores dessa tradição as famílias Ramos, Cruz, Paz e Marreiro. No Jacinto, a arte e a vida não se separaram e ainda fazem parte do cotidiano das pessoas. É nesse espaço de sociabilidade, lugar de moradia e trabalho, onde convivem valores da tradição e da modernidade, presentes na agricultura camponesa, nas culturas de tradição oral, que a família Ramos e o seu Reisado, entrelaçando-se com as famílias Cruz, Marreiro e Paz, vem há mais de 60 anos mantendo vivo um patrimônio imaterial da nossa cultura. Para os brincantes da família Ramos, o reisado significa algo que vem do começo do mundo, que envolve a fé e a alegria e é repassado através das gerações. Para Luís Ramos, um dos caretas do reisado, “é uma brincadeira que vem do começo do mun-

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do”, definição esta que é complementada por seu irmão João Ramos que nos diz: “é brincadeira e divertimento”; Caboclo, outro brincante, afirma: “é devoção a santos reis, é parte da cultura, a cultura do reisado”. Encontramos esse mesmo significado, conceituado por Manuel Ramos, uma criança de 12 anos em fase de iniciação no reisado: “é brincadeira do começo do mundo, que passa de geração em geração”. Segundo Oswald Barroso [2013,BARROSO,p.64], pesquisador dos reisados, os brincantes tiram o significado pela origem, e, em vez de registrar a origem na história, empregam-na em um tempo mítico, em um tempo divino. Mircea Eliade, na sua definição da noção do sagrado, comum às sociedades primitivas e tradicionais, informa-nos que: Visto que o Tempo sagrado e forte é o Tempo da origem, o instante prodigioso em que uma realidade foi criada, em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente, o homem esforçar-se-á por voltar a reunir-se periodicamente a esse tempo original (...). A festa não é a comemoração de um acontecimento mítico e, portanto, religioso) mas a sua reatualização (ELIADE, 1996:73). O reisado dos Ramos tem origem na década de 20, quando seu Zé Ramos começou a brincar de dama no reisado dos Felinta, no município de Choró, conforme nos conta seu filho João Ramos. Assim, como muitos brincantes do reisado, seu Zé se inicia na brincadeira para cumprir o pagamento de


uma promessa feita a Santos Reis do Oriente “Ele tinha feito a promessa de brincar o reisado até o fim da vida”. É o que nos informa João Ramos, e Caboclo, outro careta do reisado, nos confirma: Padrinho Zé Ramos tinha devoção a santo rei, ele tinha uma devoção muito forte, tão forte que quando ele já estava doente e não podia botar a brincadeira, ele passava a noite toda sozinho no terreiro, ele sapateava, ele topava o boi, a ema, fazia tudinho... A Maria esposa dele chamava e dizia: vem pra dentro Zé e ele respondia... Deixe Maria eu cumprir minha missão, uma missão, era assim uma missão.4 Antes de falecer, Zé Ramos pediu aos filhos para nunca deixarem acabar a brincadeira. Com sua morte, seu filho Manoel Ramos, o Nel Ramos, assume a condução do reisado. “Foi ele que ficou lá no Jacinto, eu não pude assumir não, Mas o Nel assumiu” (Luiz Ramos). A morte súbita de Nel Ramos, em 2009, causa grande comoção à família, trazendo também preocupação com a continuidade da brincadeira. Segundo sua filha, Francisca Sousa, não houve tempo dele fazer um pedido, mas ele sempre falava para nunca deixar o reisado morrer: “Ele não falou não, porque não teve tempo, mas ele já estava com as crianças,então, entendo que a continuidade é com o reisado das crianças’ e é a filha dele quem assume, a partir desse 4 Entrevista concedida a pesquisadora no dia 15/11/2014 em Canindé.

momento, a responsabilidade com o reisado das crianças, que passa a se chamar Reisado Infantil Nel Ramos. Atualmente, o reisado da família Ramos tem duas ramificações: o reisado adulto e o reisado Infantil Nel Ramos. Na década de 1920, quando Zé Ramos começa a brincar, e depois cria o seu próprio reisado,ele saía em cortejo executando, no caminho, suas funções. O grupo era formado por um número de 20 a 25 pessoas. O percurso era feito a pé e os animais serviam para carregar os mantimentos. O trabalho era pesado a gente só andava a pé. O pai ia num jumento o outro era para a comida e bebida. A caminhada se iniciava no dia 25 de dezembro e terminava no dia 06 de janeiro. A gente brincava 12 noites, as vezes brincava em duas casas, a gente saia nas casas brincando, chegava na casa, o dono saia, a gente cantava e depois ia embora. O pagamento era feito com bode, carneiro e galinha (Luis Ramos). A apresentação era sempre realizada nos terreiros das casas e durava, às vezes, toda a noite.“A brincadeira começava às 7h da noite e terminava de madrugada, a gente ia até de madrugada porque se um fizesse melhor, o outro mandava repetir, aí botava a burra duas vezes, o boi duas vezes” (Luís Ramos). Como nessa época existiam muitos reisados na região, e estes saíam todos os anos, as pessoas eram familiarizadas com a brincadeira. A função era apresentada obedecendo

a uma estrutura definida: iniciava-se com a abertura de porta, seguida da topação do boi, o entremeio mais importante no reisado, encerrava-se com a despedida. “No reisado não há uma estrutura narrativa linear, nem uma seqüência obrigatória, mas alicerçada numa base mínima de elementos fixos e uma grande liberdade de movimentos” (2013, BARROSO, pg.103). Segundo João Ramos, eles apresentavam vários entremeios como: o ribiquinha, o macaco, o doutor, a vitalina, a baiana, o boi, a burrinha, o cavalo e a ema. A Festa do dia de Reis encerrava-se com os folguedos e sempre acontecia na Casa de Zé Ramos. “Quando fazia a festa eram três dias de festa, nós saía todos esses dias e só voltava para a festa... a festa era medonha, era na casa de papai, tudo tirava a gente comia na festa” (Luis Ramos).Thompson, ao relatar os dias festivos e os dias de festivais especiais, nos dá uma referência desse ambiente das festas populares realizadas nas sociedades rurais no século XVII. “Muitas semanas de trabalho pesado e dieta escassa eram compensadas pelas expectativas (ou lembranças) dessas ocasiões quando a comida e a bebida eram abundantes” (1998, THOMPSON, pg.52). Com a morte de seu pai, Nel Ramos assume o reisado de Ipueira da Vaca, contando com o apoio de Antonio Guilhermino, seu genro, filho de um mestre de reisado da comunidade de Grossos/Choró, recém-chegado no Jacinto. Nessa época, o reisado ainda saía em cortejo pelas comunidades rurais. Segundo Caboclo, “no tempo de Nel Ramos, a brincadeira ainda era feita de porta em porta, a gente respeitava o tempo”.

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A presença das crianças sempre foi recorrente no reisado. Zé Ramos, Nel Ramos e outros caretas colocavam os filhos para brincar, sendo estes iniciados como dama e/ou cadete. A iniciação se dava com as crianças, participando junto com os adultos, ou em outros espaços, como fazia Zé Ramos. “Depois da festa de reis, o pai organizava três dias de brincadeira só com meninos” (Luis Ramos). A formação de um grupo exclusivo de crianças era um sonho de Nel Ramos, cuja preocupação era renovar e garantir a continuidade da tradição Esse grupo estava sendo organizado por ele e contou com o apoio do Projeto Arte e Cultura na Reforma Agrária/PACRA/INCRA5 por meio do Projeto Sertão da Tradição. O aprendizado do reisado começa em casa, no seio da família e da comunidade, assim como o aprendizado da agricultura camponesa, onde, desde cedo, a criança aprende a lidar com a terra. Essa transmissão de saberes é portadora de valores como respeito, autoridade, ou seja, valores de uma comunidade tradicional. De manhã cedo vamos pra roça, ajudar o pai a arar a terra, com um cultivador de tração animal, o pai faz a cova, a gente coloca a semente, depois a gente vai limpar e colher o 5 O PACRA é um Projeto cultural desenvolvido há 11 anos pela Superintendência Regional do INCRA no Ceará. E tem entre seus objetivos fortalecer, valorizar e apoiar os processos de transmissão e difusão da cultura popular nos assentamentos, atuando como articulador para o acesso das políticas de cultura nos assentamentos, e também no apoio ao reisado de Ipueira da Vaca que já vem desde 2005. O sertão da Tradição foi um Projeto patrocinado pela Petrobras, realizado pelo PACRA, em parceria com a Produtora Caldeirão das Artes.

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feijão, ai vai todo mundo junto (Jeferson, 14 anos). Leandro (12 anos) complementa a explicação: “ano passado aprendemos a colher o milho na hora certa, a gente tirava a espiga antes de tá madura e estragava parte do milho.” No reisado dos Ramos, é na casa e na roça que, desde criança, a maioria dos brincantes se inicia na brincadeira. No tempo do papai Zé Ramos , ele juntava tudinho pra brincar o reisado, depois do dia de Santos Reis ele fazia três dias de reisado só para as crianças. Eu comecei a brincar com meu pai com idade de 10 anos (Luís Ramos). Poucos começaram a brincar com idade mais avançada, como é o caso de Zé Percy, que faz a velha no reisado adulto. Comecei a brincar o reisado com seu Nel Ramos, quando já tinha 30 anos, entrei logo de velha, assim de cara, fiz bem, todos elogiaram, e nunca mais deixei, agora tou pensando em deixar pelos problemas. Antônio Guilhermino veio de outra família de reisado, do município de Choró, e nos conta a sua história: Eu comecei a brincar no reisado do meu pai com 12 anos e vejam eu aprendi a topar o boi sozinho. Um dia faltou o caboclo de boi, adoeceu e meu pai perguntou, enfrenta topar o boi e eu enfrentei, antes eu brincava em baixo do boi a burra eu também fazia. Pegava três estacas

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pra fazer o mourão e ficava dançando sozinho no roçado. Com os brincantes do Reisado Infantil Nel Ramos, cuja faixa etária varia entre seis a quinze anos, não foi diferente, pois houve incentivo dos pais, como nos conta Manuel Ramos:“pai me incentivava, ele ficava inventando verso para eu querer brincar, até que um dia o reisado veio brincar aqui perto de casa, eu botei a calça e a máscara e nunca mais parei”. A lembrança da convivência com o avô e o sentimento de responsabilidade para com a tradição da família permanece.“Eu não quero que acabe nunca, nós pagamos a promessa do meu avô” (Jeferson Ramos). As mulheres vêm conquistando cada vez mais espaço na sociedade contemporânea. Essas conquistas também ocorrem na brincadeira do reisado, onde elas têm abandonado os papéis secundários e assumido papéis importantes na sua estrutura. No reisado de Zé Ramos, a única mulher que o acompanhava era sua esposa, Maria Ramos, cuja função era apenas de cozinhar para o grupo. Os papéis femininos de dama eram executados somente pelos meninos. A justificativa era de que, pelos costumes da época, não ficava bem uma mocinha andar com muitos homens, sem contar com o problema na hora da troca de roupas. Porém, Marciana Sousa, neta de Nel Ramos e bisneta de Zé Ramos, mudou essa realidade, sendo a primeira menina a brincar no reisado. Começou de baiana, depois cadete, agora é careta. Além de Marciana Sousa, brincam de dama Júlia Ramos, Marcela Canuto e Ana


Adélia Sousa; Maria Joana Sousa é a Capitã e Francisca Sousa coordena o reisado infantil. Essas transformações ocorrem de forma lenta, porém consistente, com as mulheres se inserindo cada vez mais no universo das brincadeiras populares, historicamente formadas por homens. A ação do PACRA é mencionada pelos brincantes como significativa para o reisado,o que me levou a incluir, ainda que superficialmente, alguns aspectos dessa ação cultural na nossa pesquisa. O PACRA, entre as suas atividades, tem atuado na difusão da brincadeira em eventos culturais. O grupo, ao participar de festivais e mostras culturais, o faz fora do calendário do ciclo natalino, período em que ocorre tradicionalmente a brincadeira, alterando o seu sistema de funcionamento, conforme nos relata Caboclo: “depois como a senhora nos acompanhou a gente começou a fazer fora das datas aí nós começamos a deixar tudo preparado, pois podia chegar um convite para ir para Fortaleza, Quixadá”. A participação em eventos, com uma programação extensa, leva à diminuição do tempo da brincadeira, que vai sendo assimilada pelos brincantes. Em relação à redução, diz Luis Ramos: “a gente se acostumou com essas apresentações mais rápidas em Fortaleza,mas no interior o pessoal gostava tinha prazer”. Porém, outra fala demonstra o orgulho pela resistência do seu reisado.“outros reisados abandonaram, só não abandonou nós. Acabou o reisado dos Targinos e do Cametá”. ( Luis Ramos) A gravação do documentário e a publicação de Cordéis sobre o Reisado de Ipueira da Vaca é percebido como um incentivo.

coisa plantada para filhos e netos. Até eu mesmo quando começou vamos gravar um CD, um DVD, me incentivou mais ainda, a gente pode até imaginar que lá fora muita gente conhece a tradição da minha família, o reisado de Ipueira da Vaca (Antonio Filho Ramos). Para Orlando Paz, o fato do grupo ter um vídeo exibido em canais de televisão e na internet e expandir a brincadeira do reisado para Fortaleza e outras cidades cearenses, traz o reconhecimento dos seus brincantes como artistas, valorizando e animando a nova geração. Eles se influenciam, porque se tornam artistas, eles se vêem como artistas do reisado, e vêem feito por eles obras criadas, são obras criadas.Eles vem de uma família de reisado, mas os avos deles, os pais não tiveram essa oportunidade. Caboclo, em suas palavras, também nos diz: Nós crescemos só com a força dele e agora vem a força do INCRA. Vem grupo de fora, vamos ver grupos la fora. Ver uns mais fortes outros mais fracos. La no INCRA a gente viu a importância da cultura para o mundo. Nós crescemos muito, ficamos para o mundo todo, ta gravado, ficou bom gostei. Foi bom o trabalho da senhora. Gostei desse resgate que fizeram. O filme foi bom,

As inovações na estrutura interna da brincadeira ocorrem principalmente pelo contato entre os brincantes. A chegada de Guilhermino, em Ipueira da Vaca, introduz uma nova toada no entremeio do boi e da ema, além de uma aceleração no ritmo da música. Segundo ele, “Quem trouxe o Olê boi dá e a toada da ema: ecoa, ecoa, caminho de casa eu já me vou fui eu que trouxe lá do reisado do meu pai e a pisada eu acelerei”. Uma alteração significativa identificada pelos brincantes se relaciona com o encurtamento da brincadeira, mas, ao contrário do que se pensa, ela não diminuiu só em função da participação destes em eventos, mas foi se dando ao longo dos tempos, com a redução dos procedimentos dos entremeios e do número de relaxos declamados.“Aí nós tiramos o ribiquinha as pessoas não esperam mesmo” (João Ramos).Tudo isso é decorrente de mudanças nos hábitos e costumes das pessoas do campo, que foram geradas a partir dos processos de modernização da sociedade, principalmente com o acesso aos meios de comunicação, a exemplo da TV. Também em razão de uma maior mobilidade somada ao medo da violência, infelizmente uma realidade já vivenciada nas comunidades rurais. Hoje a gente vê uma mudança muito séria e a gente disse no tempo do padrinho (Zé Ramos) a gente abandonava a casa e ficava de casa em casa... No tempo dele não tinha isso, a gente deixava a casa, deixava

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tudo, não tinha historia de transporte e ia cumprir a missão, hoje também não dá para deixar a casa só, então tem uma mudança muito grande (Caboclo). Sujeitos políticos e culturais, os brincantes fazem um balanço dessas mudanças ressaltando os seus aspectos positivos e negativos. Para João Ramos: No tempo do meu pai era diferente, para umas coisas era melhor, para outras não. Era pior para o trabalho que era muito pesado, a gente só andava a pé... a gente ficava enfadado, a gente andava até três horas da tarde ai almoçava, começava a brincadeira as 7h da noite e terminava uma hora da manhã. O melhor era a moral do velho ele coordenava tudo, ele fazia todas as figuras, ele começava e todo mundo ajudava. Caboclo, outro careta, também faz o seu balanço: Eu fico lembrando do tempo de padrinho Zé Ramos. As coisas novas foi bom, cresceu e nós temos que mostrar em que tá crescendo e produzindo e a gente tá mostrando. Na época do padrinho Zé Ramos, não tinha o que a gente tá vendo, hoje a gente vê novas culturas e vai incluindo, cair as coisas velhas não, deve incluir e que seja concreto. Coisas novas, finanças, participação de outros grupos, de outros encontros,

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para você analisar no seu sentido... isso é crescimento ver 12 grupos que apresentou na Cachoeira do Fogo. Percebo um certo saudosismo dos mais velhos diante da percepção das mudanças na relação de autoridade exercida pelo mestre e também da menor disponibilidade de tempo das pessoas para apreciarem o reisado. Verifico também que demonstram sabedoria ao manter a tradição do reisado, ou seja, incluir o novo sem descartar o velho. Identifico aqui um dos aspectos dos modos tradicionais de percepção de acordo com Burke (2010, p. 96): ‘Eles vão se alimentando de ideias, imagens; se não forem compatíveis com as antigas, serão rejeitadas. Os modos tradicionais de percepção e intelecção formam uma espécie de crivo, que deixa passar algumas novidades e outras não. Ocorre uma dilatação desse universo, não mais circunscrito à comunidade e ao seu entorno, pois agora eles interagem com o universo mais amplo, corroborando com a concepção de Thompson no sentido de que há um conjunto de diferentes recursos, havendo sempre trocas entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole [1998, p.17]. Como observa Marciana Sousa Brasilino: O nosso bisavô nunca sonhava em entrar em um pau de arara para ir a Fortaleza, meu avô já foi a lugares mais distantes, cachoeira do fogo, Fortaleza, nós já fomos para Juazeiro muito mais longe e quem sabe não vamos ainda a lugares mais

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distantes que o nosso avô nunca sonhou. O reisado é uma prática de incorporação e para tal dependem de seus modos de existência e aquisição, que só existem nas suas execuções, sendo características das práticas incorporadas como as cerimônias comemorativas. Ambas se preservam apenas pela realização pela performance e guardam certas seguranças contra questionamentos e mudanças” (BARROSO, 2013, p.18]. O reisado vem, ao longo das gerações, mantendo o seu processo de transmissão de saberes de acordo com a tradição, sendo as crianças iniciadas em casa com seus pais, ou avós, ou mesmo vendo os adultos brincarem, sendo depois chamadas para brincar junto com os mais velhos. Essa prática se sucedeu por décadas no reisado de Ipueira da Vaca6. O último período dos ensinamentos realizado por Nel Ramos, junto às crianças mostra-nos dois momentos desse processo: um,com seus netos; e o outro, com um grupo maior para a formação do reisado infantil, conforme nos relata Francisca: 7 No caso do Jeferson, do Leandro e 6 Antes de falecer, Nel Ramos estava organizando o reisado das crianças, com o apoio do Projeto Sertão da Tradição. O grupo, na época, tinha doze crianças quando se organizou. E quando começou a fazer apresentações, contava com dezenove; hoje tem dezoito integrantes, mas, dessas crianças, sete saíram e foram substituídas. Poucas dessas crianças, apenas alguns de seus netos e alguns bisnetos brincaram com eles e participaram do reisado com os adultos, são eles: Marciana, Aline, Jonas, Jeferson e Leandro. 7 Entrevista concedida por Francisca Sousa Ramos à pesquisadora, no dia 05/01/2015, na comunidade de Jacinto, assentamento Ipueira da Vaca.


do Jonas ele ensaiava em casa, depois ele começou a ensaiar com os outros meninos, mas começou mesmo quando chegou aquele projeto, ele tinha as crianças do grupo que era as damas, hoje as damas dele são os soldados do reisado infantil. Ele ensaiava só com a família, ele ensaiava em casa pegava o surdo... Ele ficou uma base de 05 anos, ele só ensaiava, não tinha apresentação ao público, os meninos que brincavam eram os que ele colocava no reisado adulto. Ele não chegou a ver os meninos brincando se apresentando ao público. Ele saiu em junho, são 05 anos que está formado o grupo. Uma nova realidade se configura após a morte de Nel Ramos.O grupo das crianças começa a fazer apresentações e as crianças ao serem reconhecidas como os sucessores de Nel Ramos,tendo contribuído para essa dinâmica a aprovação do Projeto Reisado Infantil Nel Ramos e o Prêmio de Culturas Populares Edição Mazzaropi.8 Esse prêmio mobilizou todos os envolvidos com o reisado e, nas palavras de José Alves deve ser visto: “como reconhecimento a tradição do reisado da família dos Ramos, um reconhecimento á cultura da comunidade e é isso o que fica para sempre com essas crianças e com os novos que venham a brincar, o prêmio em dinheiro vai se acabar”. Inicialmente, o reisado infantil ficou sob 8 Projetos elaborados e acompanhados pelo PACRA, o primeiro aprovado no Edital do Programa BNB de Cultura, Edição 2011, e o segundo Prêmio Nacional concedido pelo Ministério da Cultura de

a responsabilidade da Francisca Sousa e de Antonio Guilhermino, que substituiu Nel Ramos na função de mestre. Porém, sem ter condição, naquele momento, de exercer a função por problemas pessoais, ele resolve se afastar. Foi um período muito difícil, conforme nos conta Francisca:“Eu chorei e pensei que o sonho do meu pai não ia ser realizado... ai eu pedi para ele dar uma luz e acordei com a idéia de gravar o CD”. Pedi para Geraci fazer um copia do cd eu tirei um Xerox, aí eles decoraram, nem todo mundo pelo menos os cabeça tem tudo decorado, eu acho assim que foi o espírito, o anjo da guarda sei lá do pai que me deu essa idéia dos meninos fazerem isso, hoje eles não precisam mais do papel, porque eles já tem decorado, as vezes eles se esquecem e olham lá´.Mas história mesmo surgia assim deu mandar copiar eles estudarem decorarem e eu ensaiava com eles, então não precisava ninguém ensaiar com eles. Agora eles sabem, mas antes era assim olhando no papel. Foi assim. O reisado sim a gente diminuiu para os meninos decorarem, mas alguma coisa tá diferente não mais do jeito do pai, a gente diminuiu sim para eles decorarem. A partir desse momento, Francisca Sousa assume também a função de coordenar o processo de aprendizado, e lança mão de um novo método de aprendizagem ao gravar as músicas, transcrevê-las para o papel,reproduzi-las e distribuí-las para

as crianças. Com essa técnica,os meninos, assim como na escola formal, podem ler e decorar as músicas e os versos, ocorrendo também uma substituição da voz e da memória dos mais velhos. Assim, o reisado, como manifestação da cultura oral, traz o fenômeno da poesia, articulando voz e memória (ZUMTHOR, p.36): “A voz é querer dizer e vontade de existência, lugar de uma ausência que nela, se transforma em presença”. Sem a voz e a memória e o contato direto com os mais velhos, fica ameaçado o sistema de transmissão dos saberes da brincadeira do reisado. O careta e topador da ema, João Ramos 9, quando indagado sobre o reisado das crianças, nos fala: Estão indo mais ou menos, não estão indo melhor porque não procuram fazer nada para elas só do papel, e a senhora sabe, um reisado de papel é só um reisado de papel. Para mim o inteligente é o que sabe fazer de tudo, pode-se fazer de cabeça... para brincar reisado tem que ser quase um cantador. De tudo se pode fazer um verso de boi. Um cabra que não sabe fazer verso num é um caboclo de boi. As crianças tem que estar muito atento ao que se está fazendo, tem que prestar atenção, que era o que nós fazíamos. Eles iam brincar era uma tropa e nós ficava só apreciando, aí aprende, se ficar só no papel... 9 Entrevista concedida por João Ramos, na comunidade do Jacinto, assentamento Ipueira da Vaca, no dia das comemorações dos cinco anos do Reisado Infantil e das celebrações do falecimento de Nel Ramos.

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Para o caboclo de boi, Guilhermino: “para aprender tem que fazer sozinho e não é só para repetir o verso dos velhos e escrever verso no papel também não serve, só ensaiar também não aprende”.Essa rejeição ao uso da escrita nos é explicada por Zumthor, para ele: O uso da escrita implica uma disjunção entre o pensamento e a ação, um nominalismo natural ligado ao enfraquecimento da linguagem como tal, a predominância de uma concepção linear do tempo e cumulativa do espaço,o individualismo, o racionalismo, a burocracia[1997,ZUMTHOR,pg.36] Na perspectiva da nova geração, Jeferson Sousa, 15 anos, mestre do reisado infantil, demonstra, na sua fala, ter consciência de que ouvir a gravação do CD e ler os versos ajudaram muito o grupo do reisado Nel Ramos, mas é insuficiente para a formação dos novos brincantes e de um caboclo de boi, que deve saber fazer versos improvisados e interagir com o público. Jeferson Sousa ainda nos diz:10 Depois que ele partiu nos ficamos ensaiando e decorando as coisas para dizer na hora, no tempo deles se dizia as coisas na hora. Agora é mais difícil, não e tão difícil se tivesse uma aula para ensinar poesia com esse motivo ficava mais fácil. Aqui tem quem faça o Guilhermino 10 Entrevista concedida por Jeferson Sousa à pesquisadora na comunidade de Jacinto, assentamento Ipueira da Vaca, no dia 05/01/2015.

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olha para uma coisa e faz verso, nós mesmos conseguimos fazer, não do jeito dele. Tem verso que dá para fazer na hora e complementa mudou as coisas, naquele tempo qualquer um que morava no sertão sabia fazer poema fazer verso, era a coisa mais fácil que tinha, hoje não, tem coisa que tira a gente do foco da poesia e vai esquecendo como fazer. As falas dos caretas nos remetem ao cerne dos elementos da transmissão oral, em que a capacidade de improvisar e criar versos são fundamentais; apenas decorá-los, não credencia um brincante a ser um caboclo de boi, personagem fundamental do reisado: “Um cabra que não sabe fazer verso não é um caboclo de boi” (Luis Ramos). Nessa concepção, os versos não são apenas para serem decorados e repetidos, mas para serem criados, alimentando, assim, a recriação e a inovação dessa cultura, conforme nos diz Burke [2009,BURKE, p.159 maior parte dos casos, eles não decoram a cantiga ou a história, mas a recriam-na a cada apresentação, procedimento que dá espaço para a inovação. Observo outros aspectos conflituosos estabelecidos entre o modo tradicional de funcionamento do reisado e a forma burocrática da organização do reisado infantil. Regras estranhas ao mundo tradicional foram introduzidas, tais como ensaios marcados, frequência das crianças e a entrada em cena de uma nova função – a de coordenação, cujas atribuições são: organizar o grupo para apresentações, manter as figuras e fazer contatos externos, papel este

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desempenhado no reisado pelo mestre ou capitão/capitã. Esse incômodo é revelado na fala de Antonio Guilhermino, mencionada antes de uma brincadeira das crianças que aconteceria junto com os brincantes do reisado adulto: “é muita regra, reisado não tem regra”. Em outro momento, ele também comentava: “pra que freqüência, não precisa de freqüência, quem quiser brincar brinca”. Na perspectiva da coordenadora do Reisado Infantil, Francisca Sousa: É um trabalho e uma responsabilidade grande, tem que se preocupar com o vestuário e o sapato dos meninos, tem que ver se as roupas estão prestando. Quando vai para os cantos é uma responsabilidade grande, pois a maioria dos pais não acompanha. Mas quando eu saio e é realizada a história é uma alegria. Essa nova dinâmica está em desacordo com a história da tradição do reisado, estamos, portanto, diante de uma situação de tensão na família do reisado. Os caretas mais velhos buscam trazer a memória coletiva da brincadeira para se afirmar no presente e salvaguardar a tradição,cumprindo, assim, com o seu papel de transmitir a brincadeira de geração a geração, como sempre foi feito desde o começo do mundo. “Na parte do compadre Nel Ramos ele gostava antes de sair se sentar com a gente e combinar. Ele falava o que cada um ia fazer, o papel de cada um, para não tomar o lugar do outro” (Caboclo).A gente fica meio triste porque a gente já não pode mais fazer o que a gente fazia e os meninos não apren-


deram (Luis Ramos). Por outro lado, percebe-se que a estratégia de gravar e copiar as músicas e versos, naquele contexto, foi importante para manter o grupo das crianças reunidas em torno do reisado. Ainda que pareça rejeitar os princípios da tradição, essa fórmula é dada num universo místico, pois é em sonhos que Nel Ramos volta para ajudar o grupo diante do impasse vivido. Ao mesmo tempo em que a fórmula encontrada, naquele momento, conseguiu fazer com que as crianças se sentissem confiantes para apresentar o reisado, ela também levou a um distanciamento das crianças com os mestres, sendo insuficiente para garantir a tradição do reisado. Verifica-se ainda que, do grupo de reisado infantil, apenas cinco dos seus netos e um bisneto conviveram com Nel Ramos e durante um tempo não muito longo; os outros brincantes, somente por um período muito curto; e alguns nunca conviveram nem com os outros caretas. O reisado de Ipueira da Vaca (adultos) tem diminuído muito as suas brincadeiras nesses cinco anos, com poucas oportunidades das crianças assistirem os mais velhos brincando, ou mesmo interagirem com eles. Essa situação levou os mestres a proporem um sistema de brincadeiras e encontros entre os reisados da família Ramos para retomarem o processo de transmissão de saberes dentro da tradição. Nós temos que fazer o papel de ser professor deles... Nós somos do padrinho Zé Ramos. As Crianças tem que ficar observando, você observando você ver e aprender. Não é

querer derrotar as crianças. Nós temos que ser professores deles Eles tem que observar. Depois nós vamos observar eles. Depois nós vamos chamar o caboclo de bois deles e aí dizer para eles. Vamos ensinar o pilão, a mina, ai puxa lá do tronco velho do padrinho Zé Ramos, até chegar a galhada (Caboclo). A importância de aprender com os mais velhos é também sentida pelos brincantes do reisado Nel Ramos, segundo Jeferson Sousa: É bom porque ali está mostrando, eles estão passando o que aprenderam para nós, estão passando de geração em geração, eles já aprenderam com os outros, até que caboclo brincou com o vovô Zé Ramos, e passa o que aprendeu com ele, Guilhermino, o que aprendeu com o pai dele, e soma com o pouco que aprendi com o avô, um pouco de um, um pouco de outro e soma e dar o que temos um bom caboclo de boi é aquele que faça, eu não me sinto um bom caboclo, é aquele que faz um verso, aqui na hora, brinca com um, brinca com o outro, que interage com o povo que está ali. Saber fazer a sua parte e interagir com os outros. A proposta de brincarem juntos os caretas mais velhos com os mais novos, tem para Francisca Sousa, algumas restrições:

Eu mandei resumir porque ficava muito grande para eles decorarem e quando os meninos vão brincar eles não acompanham. Se adultos forem brincar junto com os meninos atrapalham, o que ajuda é os meninos ficarem vendo os adultos brincarem. Eles viram pouco, e pouco, quando a gente vai para um canto que é tudo junto, eles se espatifam e não ficam prestando atenção. A reaproximação entre os mais velhos e os mais jovens é vital para a continuidade da tradição. Sem essa reaproximação, o reisado tende a perder força, pois, sem dominarem toda a sua sistemática e a sua história, as novas gerações se enfraquecem no seu repasse. Logo, encontrar novas formas de fazer a brincadeira com todos e rediscutir alguns elementos introduzidos na organização do reisado infantil é hoje o maior desafio. Favorecer o diálogo entre as gerações também foi uma das minhas tarefas na etapa final da pesquisa. Num encontro com os mestres, foi proposto a criação de espaços de aprendizagem entre os brincantes. Segundo eles, seria uma espécie de escola, só que eles seriam os professores, já que o saber está inscrito nos seus corpos, nas suas vozes e em suas memórias. CONSIDERAÇÕES FINAIS As culturas populares vêm resistindo, mantida por famílias, a partir da sua fé e devoção, e fortalecida nos laços de solidarie-

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dade e afetos. É um espaço onde a vida se renova, como nos ensina o sábio Caboclo. O reisado, como nos diz Orlando Paz, É uma cultura e nós devemos segurar e levar adiante, pois diante de tantas novidades ele pode desaparecer. O reisado é do tempo dos bonecos, do violeiro, do forró pé de serra, mas com o avanço da tecnologia isso pode desaparecer como desapareceu muita coisa. O medo do desaparecimento das culturas populares está sempre presente, circunscritas ao local, e, muitas vezes, discriminadas e desvalorizadas, elas podem acabar desaparecendo. Nos sertões de Canindé, inúmeros grupos deixaram de brincar o reisado. Ficou em atividade apenas o Reisado dos Ramos, que resiste há quase um século. Uma cultura viva repassada entre as gerações, e que na última década contou com um apoio institucional através do PACRA , que possibilitou um pequeno apoio material e o reconhecimento do estado, através da concessão de um Prêmio. Na pesquisa, não foi possível um maior aprofundamento sobre essa questão, mas é possível considerar, que esse apoio pode ter desempenhado um papel importante para o grupo, ao aportar condições materiais e simbólicas para o seu fortalecimento. O momento atual do reisado exige a construção de diálogos entre a tradição e as novas regras burocráticas. O reisado das crianças, ao se constituir como grupo e num contexto diferenciado, passa a ter uma identidade própria e aciona outros elemen-

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tos estranhos ao mundo da tradição, o que provoca tensão e medos. No entanto, eles sabem, com sua sabedoria, que é necessário experimentar novas formas de transmissão dos saberes dentro da tradição, mas a partir do diálogo com a realidade vivida pelas crianças. Outra preocupação que identifico estar relacionada com o contexto mais amplo em que está inserido o reisado, ou seja, as condições de permanência dos jovens no campo. A estrutura do reisado reflete a situação das comunidades rurais, e se verifica que a sua população está envelhecendo. No reisado adulto, por exemplo, os mais novos têm mais de 50 anos; já no reisado Nel Ramos, a mais velha tem 22 anos, e os outros estão com a idade entre 15 anos, a 06 anos. Mas eles têm o sonho de não deixarem morrer o reisado, porém, querem estudar e se formar. Então, surge a pergunta: Quantos sucederão seus pais na agricultura camponesa? E quais oportunidade de trabalho e renda eles terão na sua comunidade? Qual o futuro dessas crianças do século XXI no semiárido cearense? A família e a comunidade são a base da existência e permanência das culturas populares, porém, necessitam de outros elementos para fortalecê-las, numa sociedade em constante transformação. No contexto atual, o fortalecimento das culturas populares passa pela valorização do campo, da sua biodiversidade, da sua diversidade cultural. Envolve a implementação de políticas públicas culturais e em especial para a juventude rural, que incluam a cultura como um componente estruturante do desenvolvimento.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS THOMPSON, E. P. Costumes em Comum – Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. Companhia das Letras, São Paulo, 1998. OLIVEIRA, Roberto Cardoso – O Trabalho do Antropólogo. Revista de Antropologia, vol. n°1,1996. VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In NUNES, Edson de Oliveira – A Aventura sociológica. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. BOGDAN, Roberto C. BIKLEN, Sari Knopp – Investigação Qualitativa em Educação. Porto Alegre, Porto Editora, 1994. GEERTZ, Clifford – Novo Olhar sobre a Antropologia. Rio de Janeiro, Jorje Zahar Editor, 2001. BARROSO, Oswald – Teatro como Encantamento. Fortaleza, Armazém da Cultura, 2013. ZUMTHOR, Poul – Introdução à Poesia Oral. HUCITEC EDUC, São Paulo 1997. PONTES, Márcio de Araújo – O Drama em si: Histórias e Memórias de Mulheres Dramistas nas comunidades de Tucuns, Pindoguaba e Poço de Areias em Tianguá/Ceará. Fortaleza, 2011. LEGOFF, Jacques – História e Memória.Editora UNICAMP, São Paulo, 1994. BURKE, Peter – Cultura Popular na Idade Moderna,Editora Companhia da Letras, São Paulo, 2010.


UM SANTO, UM BAILADO, UMA FESTA: A DANÇA DE SÃO GONÇALO DE LISIEUX – CEARÁ Nayana de Castro Cunha1 Simone Olivera Castro 2 RESUMO Este artigo conversa sobre o processo de retomada da Dança de São Gonçalo que ocorreu em Lisieux, no interior do Ceará, feita em 2011. O trabalho se pergunta como as danças tradicionais podem contribuir para a qualidade de vida de pessoas idosas. Uma vez que o fazer da tradição, seja ela dança, música, teatro, nos revela sobre identidade de um povo, melhorando assim a auto-estima, o condicionamento físico, tempo de lazer e etc dos seus brincantes. A metodologia utilizada neste trabalho está baseada em pesquisa bibliográfica, pesquisa de campo e relatos de experiência. PALAVRAS-CHAVE: Danças Tradicionais; Dança de São Gonçalo, Qualidade de vida. INTRODUÇÃO 1 Licencianda em Dança na Universidade Federal do Ceará (UFC); Membro do Grupo de Pesquisas em Cultura folclore do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE); Brincante do Grupo Mirai Ira (IFCE). E-mail: nayanadec@gmail.com 2 Profª Dra. Simone Oliveira de Castro – Orientadora Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). E-mail: simone@ifce.edu.br.

As manifestações populares, de um modo geral, é um espaço importante para as comunidades, pois este agrega manifestações tradicionais diversas, dá espaço a arte do povo e ao corpo brincante. São nelas que estão inseridos os tipos humanos, que através de suas danças, folguedos, cantorias, dramas, músicas modificam e reinterpretam o seu cotidiano, fazendo isso de forma alegre e espontânea, divertindo a si próprio e os seus para reinventar o contexto do seu lugar. Neste contexto de festividade e tradição observamos que há nessa conjuntura um tipo de lazer, dando a ver momentos de criatividade e espontaneidade coletivos, impulsionado pela cultura e saber popular. Notamos aí um potencial sobre a promoção da qualidade de vida, do bem estar comum, da socialização, do interesse coletivo para todas as pessoas, através dos seus brinquedos dançados e cantados. Analisando esse contexto, tomamos como objeto de estudo o processo de retomada da dança de São Gonçalo de Lisieux que iniciou seu processo em 2011, impulsionada pelo Centro Cultural de Lisieux - CCL, pois esta dança é uma das poucas manifestações locais e que não era dançada há muitos anos pelos moradores do recente distrito de apenas 51 anos. Esta pesquisa foi realizada a partir de levantamento teórico, pesquisas bibliográficas que envolvessem os temas sobre lazer, cultu-

ra popular, saúde e qualidade de vida, dança, danças tradicionais. Levantamento de dados também por observação, com idas ao local observando os idosos, o meio em que vivem. Também foram feitas entrevistas com roteiros pré-esquematizados com os brincantes. 2. AS DANÇAS TRADICIONAIS COMO LEGADO DE QUALIDADE DE VIDA Para falar sobre as danças folclóricas, precisamos falar dessas pessoas que são geralmente idosas, esses homens e mulheres que fazem a festa acontecer, que provocam o riso, a dança, o envolvimento e a alegria da comunidade, através dos seus brinquedos dançados e cantados, nas suas manifestações tradicionais. Conrado (2008, s/p) apud Roberto Benjamin (1989, p.21), os brincantes são “os indivíduos que brincam e exercem um personagem, ou seja, que exerce um papel nos folguedos populares.” Mas para, além disso, o brincante é dono do seu fazer e o seu fazer dentro das festas populares é o seu brincar, manifestar-se de forma espontânea diante de seu público, ou da sua fé, para celebrar. E é neste momento que tudo se modifica, é hora de ele estar em cena e entoar suas cantigas, ritmos e melodias do cancioneiro popular, dos seus ritos como um todo, com suas toadas, danças, louvação ao seu santo,

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vestimentas, personagens, mitos e ladainhas. Os brincantes são todos aqueles que detêm o sentimento de pertença da sua festa, do seu brinquedo, da sua gente. Juliana Manhães complementa: Os brincantes são aqueles que brincam, se divertem, são aqueles que têm o compromisso de “segurar e sustentar” a brincadeira ano a ano, são os integrantes dessa irmandade coletiva, são indivíduos que participam criativamente da sua atuação, fazendo da encenação uma brincadeira popular, onde a comunicação com o público é fundamental para firmar uma rede de comunicação; ou simplesmente, esta platéia se mistura a essa manifestação, se unificando corporalmente aquela situação, aquela performance. (MANHÃES, s/d, s/p) Nessa visão, percebemos que os idosos que são as raízes dessas manifestações são ativos, e são ativados individualmente em seus corpos: as memórias e as alegrias para se divertirem uns com os outros. É aí que o grupo se solidifica e as relações se fortalecem, num momento de lazer em comunidade. Nesse mundo real que não se sabe ao certo se é, ou não, imaginário, os brincantes têm um papel social a desempenhar em sua comunidade, um compromisso para com os seus espectadores, que “após desfrutar de várias emoções expressas pelos atores por meio de palavras, gestos e sentimentos, sentem prazer, etc.” (OLIVEIRA, 2005, s/p). São essas ações que implicam nas mudanças da vida cotidiana, da luta diária, em que muitos

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desses idosos ainda trabalham sendo agricultores. Para além dessa abordagem, as manifestações folclóricas por, na maioria das vezes, serem feitas por muitas pessoas, acabam por adquirir um senso comum de coletividade, despertando a cooperação e a auto organização de grupo (SIMÕES, 2004). Acarretando também uma liderança dentro da brincadeira, cada um tendo o compromisso e a função para com a brincadeira e a comunidade. A maioria dessas pessoas que ocupam essa função são os chamados Mestres da Cultura Popular, os brincantes líderes que são pessoas idosas que trazem a tradição oralmente passada por seus antepassados. São considerados verdadeiros tesouros vivos, patrimônio cultural humano. Entretanto, as pessoas que assistem às danças e brincadeiras do nosso folclore, também bebem da alegria dessa fonte. Pois é no calor da convivência festiva que as pessoas querem vivenciar o festejar mais de perto, o fazer dos brincantes, “a intenção em tal encontro é menos de aprender a técnica da dança e mais de imbuir-se do jogo, da brincadeira, da ação circular e grupal, da troca.” (OLIVEIRA, 2005, s/p). É neste ambiente de festejos, que o corpo, muitas vezes velho e cansado, fala dentro das suas brincadeiras, fala de como é a sua simbologia, seu ritual, sua performance e como tudo isso dialoga com o ambiente em que está inserido, seja ele geográfico, político, social, cultural e pessoal. O corpo de quem brinca, além de ser lugares efêmeros de memória(s), ele se constitui na multiplicidade de eventos e das histórias que o atravessam (cotidiano, fes-

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tas, religiosidade...), esse corpo acaba sendo também um lugar de trajetória, dono de uma ancestralidade, da alegria que é passada dentre as gerações quando se fala em brincar de reisado, de bumba-meu boi, tocar na banda cabaçal, representar os dramas, foliar no maracatu. Juliana Manhães (s/d) se refere “a um corpo marcado por sua própria história, sua vida cotidiana, que traz na sua gestualidade sinais do seu trabalho e suas espiritualidades. Muitas danças são relacionadas com ciclos de plantação, colheita, atividades pesqueiras ou agrícolas.” Muitas dessas brincadeiras e danças ainda existem graças à “prática constante de instrumentos vivos de convivência”. (OLIVEIRA, 2005, s/p). De gente velha que continua enfeitando os salões das paróquias, os seus terreiros, nas casas de vizinhos... 3. A MELHOR IDADE DE LISIEUX O distrito de Lisieux está localizado no estado do Ceará, na parte norte do município de Santa Quitéria. Distando a 45 km da referida sede. É considerada a maior cidade em extensão no interior noroeste do estado. Lisieux é considerado um dos maiores distritos desta cidade. Tendo uma área de aproximadamente 20 km de raio. Pesquisas apontam que a localidade era apenas uma fazenda, que se estendia da Serra do Pajé, até a outra fazenda de nome Jardim. Este povoado começou a ser habitado a partir da construção da igreja de Santa Terezinha, há 51 anos, por doação do terreno de um dos habitantes e da ajuda dos moradores para a construção da mesma. Foi por devoção do padre de Aracatiaçu (CE), Padre Odilon Marinho Pinto que deu o novo nome ao povo-


ado. Batizado de Lisieux, em homenagem a Santa Terezinha que havia nascido na França, em Lisieux. Têm-se pelo início de sua povoação a celebração da primeira missa na capela de Santa Terezinha, ainda em construção, no dia 20 de dezembro de 1960, tendo apenas duas casas em seus arredores. No setor da cultura conta com o GRECELI – Grêmio Recreativo de Lisieux, hoje Centro Cultural de Lisieux, que desenvolve programa apoiado pelo Ministério da Cultura. Foi fundado em 1987 e é coordenado por Paulo Régis Araújo Moura e Antônia Araújo de Souza. É um espaço público e comunitário. Este núcleo tem por objetivo desenvolver atividades artísticas e culturais, bem como, contribuir para o crescimento sociocultural da população, levando atividades recreativas, educacionais, religiosas e sociais para todos. No Grêmio há o salão comunitário, onde se fazem eventos não só do Centro Cultural, mas todo o povoado, a Rádio e a Biblioteca Pública. Um dos objetivos do Centro Cultural de Lisieux (2009) é o de realizar diversos cursos e oficinas e incentivar a continuidade de atividades que promovam e valorizem a história e a cultura popular locais, dentro deste contexto foi levantada a importância da Dança de São Gonçalo para a região, como instrumento de reestruturação dessa manifestação por meio da memória das pessoas que já brincaram. 4. “SÃO GONÇALO VEM, SÃO GONÇALO VAI...” – A DANÇA DE SÃO GONÇALO DE LISIEUX A dança de São Gonçalo feita em Lisieux na verdade é um apanhado de memórias da população mais velha que dançava em outros

locais, geralmente em cidades vizinhas, a convite dos pagadores de promessas. Esta é realizada mediante uma graça alcançada. Pelas pesquisas realizadas no distrito, percebemos que, geralmente, essas pessoas faziam diversos tipos de promessas. Um exemplo é quando queria encontrar um local adequado para abrir um poço onde pudesse encontrar água. Porém, ouve-se também promessas sobre a cura de doenças, entre outras. A partir disso começam-se os festejos ao Santo no sertão, a partir do convite aos moradores e localidades vizinhas para se pagar a promessa feita ao santo. Organiza-se tudo para a dança no próprio terreiro em que se foi alcançada a graça. É preparado um altar especial para o São Gonçalo, faz-se um arco de palha de coqueiro em que é enfeitado com frutas: abacaxi, coco, laranja, banana, entre outras frutas, pois este será leiloado entre uma jornada e outra. Sendo que um dos guias improvisa um verso para o São Gonçalo indicando o momento do leilão. Também pode ser ofertado dinheiro no altar do santo. Todos os brincantes vão até a casa da pessoa onde está o santo e saem em procissão cantando até o local do altar de São Gonçalo para se começar a dança de fato. Há também a promessa de algum dos participantes sentirem necessidade de segurar a imagem, geralmente no lugar onde se sente uma dor ou se está enfermo. A dança de São Gonçalo dessa região da parte norte do nosso estado é feita com nove jornadas, quatro só feita por homens e 5 somente por mulheres. Estas por sua vez são os momentos das dançadas, havendo uma pausa de versos cantados entre uma dançada e

outra, de acordo com o tempo do guia. A dança é feita a partir de poucos versos e poucas variações de passos, não há um tempo certo, podendo durar a noite inteira. Para se depois dançar o forró. Nas jornadas, já separadas de homens e mulheres, as pessoas se dispõem em duas fileiras, uma do lado direito, onde está o guia e outra do lado esquerdo que está o contra guia, seguindo os passos numa espécie de valseado. Nesta dança há a presença de dois guias e de dois contra guias, nesta posição dançam somente quatro homens. São como mestres, eles ficam a frente durante toda a dança, tanto nas jornadas dos homens, quanto das jornadas das mulheres conduzindo os brincantes durante toda a coreografia. Há os músicos que tocam pandeiro, triângulo, sanfona e zabumba e as cantadeiras de São Gonçalo. São eles que dão o ritmo e as pausas entre uma jornada e outra de acordo com o comando do guia. Segundo memória de alguns deles, antigamente eram os guias e contra guias que cantavam e tocavam as músicas. E assim se segue a dança de São Gonçalo até completar as 4 jornadas de homens e depois começarem as 5 jornadas das mulheres. Vale ressaltar que não há versos específicos para homens e mulheres, vai depender de quem está cantando e do comando do guia. Durante a coreografia da Dança de São Gonçalo em Lisieux, há um momento específico em que os brincantes chamam de “Beija pé”, que consiste em cada um dos integrantes, no ritmo da música e ainda cumprimentando-se, vai até o altar de São Gonçalo, beijar os pés da imagem que fica numa mesma

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na mesa e sair em seguida. Pelas memórias dos brincantes, não há um grupo fechado para se dançar São Gonçalo. As pessoas simplesmente são convidadas a participar, como também não há figurino específico, as pessoas simplesmente chegam e entram na brincadeira. 5 CONCLUSÃO Como vimos, a vontade de dançar passa por uma série de motivações, dança-se por atividade física, por prazer, para encontrar pessoas, para pagar promessa, etc. Assim dançar não importando o motivo faz as pessoas se sentirem melhores, gerando uma infinidade de benefícios para além da saúde do corpo, que são as relações interpessoais e papéis sociais que geralmente quando chegamos à terceira idade vamos perdendo esse espaço na sociedade. Isso nos leva crer que através da dança podemos ter novas oportunidades de nos relacionar conosco, com o outro e com o meio em que vivemos. Nas danças tradicionais há nos idosos um interesse em particular, pois se dança sem muitas pretensões, de forma mais livre e espontânea, a motivação é a própria dança feita por motivo de fé e diversão. Por outro lado, percebe-se que outros benefícios estão implícitos quando os entrevistados da Dança de São Gonçalo falam da importância desta manifestação para eles mesmos, para o seu bem estar, para o seu convívio e para a sua saúde. A maioria dos brincantes ao relatar seu envolvimento na manifestação respondeu que achava dança de São Gonçalo muito bonita e alegre e isto os impulsionou a dança-

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rem pela primeira vez. Porém é importante lembrar que além dos benefícios individuais há uma preocupação, por parte dos idosos de Lisieux com a disseminação da cultura do lugar, para eles também é importante dançar o São Gonçalo para divulgar as manifestações culturais, a identidade do lugar, fazer com que os jovens se importem com os usos e costumes da comunidade, desenvolvendo assim dentro de cada um dos idosos uma função de socialização, um papel de transmissor de cultura, histórias e memórias de Lisieux. Mesmo com todas as sabedorias que cercam a terceira idade, alguns brincantes de São Gonçalo se deram a chance de viver novas experiências e com isso aprender cada vez mais, mesmo sobre uma manifestação que já permeavam suas memórias, pois os encontros e os ensaios lhe proporcionaram mais conhecimento diante do contato com pesquisadores de cultura popular. Pois foi através desse processo da Dança de São Gonçalo que estes idosos se sentiram mais informados. Portanto vimos que independente da idade que se tenha, a Dança de São Gonçalo promoveu a estes idosos conhecimento, valores de disseminadores da cultura do lugar para os jovens. Dando a eles outra função social, agregando mais valores àquilo que fazem brincando. Portanto, vemos a dança como uma atividade integradora, entre o corpo e a mente. Trazendo ao indivíduo uma melhor forma de lidar com o meio social e familiar em que vive. Nas danças tradicionais esses benefícios também se dão, mesmo tomando como modelo uma dança simples, com poucas variações de movimentos, que é a Dança de São Gonçalo feita em Lisieux. Levantando também a ques-

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tão do meio social em que vivem esses idosos, vemos a influência da comunidade em estar mais unida durante essa retomada, e que isso também influencia a saúde dos idosos envolvidos, pois somos formados por corpo, mente e o meio em que vivemos. REFERÊNCIAS CENTRO CULTURAL DE LISIEUX. Disponível em: <http://ccllisieux.blogspot.com.br/> Acesso em: 12 de outubro de 2018. CONRADO, Margarete de Sousa. Corpo Mestiço: metáforas do encontro sagrado e profano nos cortejos do Maracatú Nação. IV Enecult, 2008. UFBA – Bahia. Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14351.pdf> Acessado em: 12 de outubro de 2018. MANHÃES, Juliana Bittencourt. A performance do corpo brincante. Disponível em: < http://www.portalabrace.org/vreuniao/ estudosperformance.html> Acessado em: 15 de maio de 2011. OLIVEIRA, Joana Abreu Pereira. Tradição e contemporaneidade – elementos em diálogo no fazer do brincante. 2005. Disponível em: <http://www.geocities.ws/ coma_arte/2005/papers/joana_abreu. doc.> Acessado em: 27 de março de 2012. SIMÕES, Rosa Maria Araújo. Artes Cênicas e Música: expressões do Lúdico no Folclore Brasileiro. SCHWARTZ, Gisele Maria (Org.). Dinâmica Lúdica: Novos olhares.Burueri – SP: Manole, 2004.


SARRABULHO: PATRIMÔNIO GASTRONÔMICO DOS MERCADOS Carlos Eduardo Almeida de Farias RESUMO O presente artigo objetiva apresentar uma síntese de uma pesquisa bibliográfica sobre a relevância da gastronomia como prática intercultural destacando a Gastronomia dos Mercados como potencializadora da cultura popular. Compreendemos que se faz necessário um estudo mais aprofundado sobre a Gastronomia dos Mercados cearenses visando catalogar dados históricos desse ofício. INTRODUÇÃO Gastronomia é estudo de alimentos, bebidas e hábitos alimentares de cada região com o intuito de reunir práticas, técnicas e conhecimentos alimentares para o preparo de uma alimentação de alta qualidade. Usamos o termo gastronomia para definir o hábito alimentar tradicional de uma determinada região, por exemplo “Gastronomia Nordestina” termo que usamos para definir pratos típicos da região Nordeste brasileira. Devemos lembrar que o preparo dos pratos sofrem influências geográficas, culturais e religiosas, portanto o presente artigo objetiva conceituar a Gastronomia como Patrimônio Imaterial

e discutir a Gastronomia dos Mercados abordando a importância histórica e cultural desse patrimônio popular cearense, o objeto de estudo abordado será o Sarrabulho, prato tão genuíno em nossa cultura alimentar com origem na Região do Minho em Portugal, que ao ser trazido para o Brasil sofreu algumas alterações em seu preparando ganhando uma identidade bem própria em relação ao famoso prato português. Apresentaremos nesse artigo uma síntese de uma pesquisa bibliográfica sobre a relevância da Gastronomia como um elemento de integração cultural e agente socioeconômico. Destacamos a Gastronomia dos Mercados por considerarmos como um elemento de afirmação de nossa identidade cultural. A GASTRONOMIA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL Compreendemos que o bem cultural é um recurso para a construção e solidificação da identidade cultural de uma sociedade. Essa construção resulta do conhecimento dos valores, do entendimento do passado, da compreensão histórica local e do exercício da cidadania. O Patrimônio Cultural pode ser definido como um bem (ou bens) de natureza material e imaterial considerado

importante para a identidade da sociedade. O patrimônio material é formado por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza: arqueológica, paisagística e etnográfica; histórica; belas artes; e das artes aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis – núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais – e móveis – coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos. O patrimônio oral e imaterial da humanidade é uma distinção criada em 1997 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO - para a proteção e o reconhecimento do patrimônio cultural imaterial, ou seja, as manifestações da cultura popular e os locais de expressão popular. Os bens culturais imateriais estão relacionados aos saberes, às habilidades, às crenças, às práticas, ao modo de ser das pessoas. Desta forma podem ser considerados bens imateriais: conhecimentos enraizados no cotidiano das comunidades; manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; rituais e festas que marcam a vivência coletiva da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; além de mercados, feiras, santuá-

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rios, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais. O Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, de acordo com a UNESCO, órgão das Nações Unidas, compreende as expressões de vida e tradições que comunidades, grupos e indivíduos em todo o mundo recebem de seus ancestrais e repassam a seus descendentes. No Brasil, 38 manifestações culturais imateriais já foram reconhecidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O ofício das Paneleiras da cidade de Vitória, Estado do Espírito Santo, foi o primeiro bem imaterial inscrito no livro de registro dos saberes do IPHAN em 2002. É uma tradição indígena de mais de 400 anos e consiste em um modo artesanal de fazer a panela de barro. Destas manifestações registradas no Brasil, cinco estão inscritas na UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. São saberes, celebrações e formas de expressões: •

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Frevo: É uma expressão artística musical, coreográfica e poética do carnaval de Recife no Estado de Pernambuco. O gênero musical urbano surgiu no final do século XIX, no carnaval. As bandas militares e suas rivalidades, os escravos libertos, os capoeiristas, a nova classe operária e os novos espaços urbanos definiram a configuração do frevo caracterizado pelo jogo de braços

e pernas e dança frenética. •

Festa do Círios de Nossa Senhora de Nazaré: É uma celebração religiosa Católica realizada na cidade de Belém do Pará, no Estado do Pará. Também considerada uma das maiores do mundo. Instituído em 1793, no segundo domingo de outubro, o traslado da imagem de Nossa Senhora de Nazaré percorre cinco quilômetros, da Catedral da Sé, na Cidade Velha, onde Belém nasceu, até a Praça do Santuário, no bairro de Nazaré. Os paraenses consideram a festa um grande momento anual de demonstração de devoção e solidariedade, de reiteração de laços familiares e manifestação social e política.

Roda de Capoeira: É uma mistura de dança e luta que originou no período da escravidão. A capoeira desenvolveu-se como rito social e de solidariedade entre os escravos. É uma manifestação cultural que reúne canto, toque dos instrumentos, dança, golpes, jogo, brincadeira, símbolos e rituais africanos. Na roda de capoeira, os mestres, formados na tradição, transmitem o saber aos demais.

Samba de Roda: É uma expressão musical, coreográfica,

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poética e festiva das mais importantes da cultura brasileira. Exerceu influência no samba carioca e, até hoje, é uma das referências do samba nacional. Está presente em todo Estado da Bahia. A herança negro-africana no samba de roda se mesclou de maneira singular a traços culturais trazidos pelos portugueses. •

Arte Kusiwa: A pintura corporal e arte gráfica dos povos indígenas Wajãpi, no Estado do Amapá, sintetizam o modo particular de conhecer e agir sobre o universo. São 48 aldeias onde vivem mais de mil índios. A arte está vinculada à organização social, uso da terra e conhecimento tradicional.

De acordo com a Convenção da Unesco (2003), o reconhecimento das manifestações imateriais deve partir do envolvimento, da participação ativa e consentimento das comunidades, grupos ou indivíduos detentores dos saberes, e, não exclusivamente, de entidades. A gastronomia é um Patrimônio imaterial caracterizada por um modo coletivo de fazer uma alimentação em um convívio cultural. A dieta mediterrânea é um bem cultural imaterial em Portugal e reconhecida pela Unesco como Patrimônio da Humanidade. Conforme o site Dieta Mediterrânea, a “dieta mediter-


rânea é um conjunto de competências, conhecimentos, práticas e tradições relacionadas com a alimentação humana, que vão da terra à mesa, abarcando as culturas, as colheitas e a pesca, assim como a conservação, transformação e preparação dos alimentos e, em particular, o seu consumo”. Os ingredientes principais são o azeite da oliveira, os cereais, as frutas e verduras frescas ou secas, uma proporção moderada de carne, peixe e produtos lácteos, abundantes condimentos e cujo consumo à mesa é acompanhado de vinho ou infusões, respeitando sempre as crenças de cada comunidade. Compreendemos que para além de fortalecer e preservar a cultura de um povo, a gastronomia permite o desenvolvimento da criatividade e a integração entre as culturas. A gastronomia e a cultura de um País estão intimamente interligadas. Ela é integrada com a alma de um povo, com seu patrimônio, com seus valores, costumes, com a história, a geografia, a agricultura, a religião. Quando uma sociedade se alimenta e tem consciência da natureza cultural da sua alimentação, ela valoriza os vínculos com a história do lugar e fortalece sua identidade. A cultura gastronômica oferece informações importantíssimas sobre um grupo étnico, do qual a comida não é apenas o alimento, mas revela um modo e um estilo. Da mesma forma, o modo de comer define não só aquilo que se come, mas também a pessoa que o ingere, ou seja, revela sua origem, seus hábitos e

costumes. A memória gastronômica permite construir práticas identificadoras e reflexivas dos bens culturais e naturais formadores das identidades e das singularidades dos sujeitos. O conceito de memória apontados por diversos autores, entre eles (MENESES, 1990), (D’ALÉSSIO, 1993) e (KENSKI1, 995), corresponde a um processo em constante construção, que é seletivo, pois carrega consigo aquilo que lhe é mais significativo. A memória é um processo vivido, conduzido por grupos vivos, portanto em evolução permanente e “vulnerável” a todas as manipulações. “(...) Para as lembranças não há diferença entre passado e presente. por ser vivida, a memória é um fenômeno sempre atual. Não tem passado porque se reporta eternamente à herança, à tradição, ao tempo indiferenciado do mito. (D’ALÉSSIO, 1993)”. Dessa forma, a memória se torna, mais uma vez, um ato de resistência aos entraves proposto pela sociedade capitalista. A teima em preservá-la, revela a qualidade de homens que têm a coragem de serem cidadãos, que lutam pela sua identidade e que não se cansam de cavar fundo no seu solo cultural, em busca de raízes mais profundas. Reconhecemos que os saberes e sabores gastronômicos são bens culturais imateriais considerados relevantes para manutenção da memória de uma determinada comunidade. Assim sendo, a preservação desses saberes e sabores representa uma verdadeira forma de resistência diante dos entraves da

sociedade capitalista que impõe a padronização dos alimentos e da forma de se alimentar. O patrimônio cultural imaterial desperta atitudes e valores diferenciados do imposto pelos padrões de consumo, ao mesmo tempo em que desperta sentimentos de surpresa e curiosidade. Resgatar as memórias gastronômicas significa, também, estimular as capacidades reflexivas dos sujeitos para o conhecimento de si mesmo, bem como sobre o contexto que o rodeia. Na realidade, a noção sobre o patrimônio não se aprende, vive-se. É por isso que preservar, difundir e valorizar o Patrimônio Cultural de um País é fundamental. Seu objetivo é fazer com que o homem passe a reconhecer o valor do seu próprio patrimônio e o do outro, para que possa, dessa forma, “... comprometer-se com ações em prol da preservação e valorização...” desses bens. (IPHAN, 2005). A GASTRONOMIA COMO CONVÍVIO INTERCULTURAL A União Europeia desenha fenómenos migratórios devido às típicas migrações laborais por parte de pessoas que abandonaram o seu próprio país devido a guerras e/ou busca de novas expectativas de vida. Tal situação provoca frequente guetização das comunidades estrangeiras nos contextos urbanos, devido a um desconhecimento cultural preponderante, e que acaba por gerar situações xenófobas de recusa e de não-aceitação do estrangeiro.

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Uma sociedade renovada deve, portanto, visar uma educação para a diferença e para a integração. Deve ser uma educação por meio da qual o estrangeiro possa ser considerado como sujeito não estranho à sociedade acolhedora. De facto, em contexto multicultural, o que muitas vezes se manifesta, é uma predisposição para anular as diferenças, atitude essa que leva as minorias a assimilar os hábitos culturais da sociedade dominante. Em contrapartida, pode também acontecer que o migrante recuse a cultura do país acolhedor, e permaneça então numa situação de isolamento constante, devido ao qual acaba por não ter a oportunidade de tornar parte do novo contexto. Para sermos capazes de relativizar nossa própria maneira diante do mundo e atribuir-lhe sentido, é necessário que experimentamos uma intensa interação com diferentes modos de viver e se expressar. Não se trata de momentos pontuais, mas da capacidade de desenvolver projetos que suponham uma dinâmica sistemática de diálogo e construção conjunta entre diferentes pessoas e/ou grupos de diversas procedências sociais, étnicas, religiosas, culturais, etc. O “empoderamento” tem também uma dimensão coletiva, apoia grupos sociais minoritários, discriminados, marginalizados, etc., favorecendo sua organização e participação ativa em movimentos da sociedade civil. As ações afirmativas são estratégias que se situam nesta perspectiva. Visam a melhores condições de vida para os grupos mar-

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ginalizados, à superação do racismo, da discriminação de gênero, de orientação sexual e religiosa, assim como das desigualdades sociais. Urge a necessidade de se trabalhar as questões relativas ao reconhecimento e à valorização das diferenças culturais numa perspectiva intercultural. O multiculturalismo admite uma pluralidade de significados. Compactuamos com a interculturalidade aberta e interativa que constrói sociedades democráticas e fortalece políticas de igualdade com políticas de identidade e reconhecimento dos diferentes grupos culturais. A interculturalidade que afirma as diferenças étnicas, de gênero, orientação sexual, religiosas, entre outras que se manifesta de modos plurais, assumindo diversas expressões e linguagens. As problemáticas são múltiplas, visibilizadas especialmente pelos movimentos sociais que denunciam injustiças, desigualdades e discriminações, reivindicando igualdade de acesso a bens e serviços e reconhecimento político e cultural. A Interculturalidade é um instrumento para assunção de cidadania plena, visando combater a discriminação e a exclusão social e se propõe a edificar vias alternativas e inovadoras de intervenção e participação social dos cidadãos. A educação intercultural reconhece a diversidade como fonte de aprendizagem para todos. É um método de alfabetização cultural, porque resgata a memória de um lugar e gera um processo de pertencimento e identificação. Portanto é um método pedagógico

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de resgate da identidade, da memória e da cultura. Ao ensinar a ver, conviver e dialogar com o diferente, contribui com a quebra de paradigmas, preconceitos e práticas xenofóbicas. Ela produz recursos, informação e formação para integração cultural. Quando diversos grupos étnicos entram em contato, todos evoluem e a sua culinária também, por adotarem algum ingrediente, prato ou técnica de outro grupo. À medida que se mesclam as culturas culinárias, quando as mulheres dos diversos grupos étnicos dos imigrantes de um lugar trocavam pratos entre si, tanto a cultura local quanto as diversas culturas fundiam-se e democratizavam-se. A gastronomia se constitui num elemento de identidade e pertencimento, que de certa forma, por seus gostos e sabores, favorece a identificação, pois ela é reveladora, expõe as crenças, valores, costumes, topografia, clima, relevo, gostos, agricultura, pecuária, a verdadeira essência do povo ao qual pertence. Na perspectiva histórica, a cultura gastronômica constitui-se numa importante representação étnica da cidade, permeando o imaginário pelos sentidos:olfato, paladar, gosto e visão. A cultura de uma cidade, transmitida de geração a geração, é expressa de várias formas por seus habitantes. A gastronomia, como um bem cultural, é uma prática própria de cada grupo social. Portanto, vai além do simples ato de se alimentar, pois é a construção de uma identidade específica. Essa especificidade


é própria dos alimentos e das práticas alimentares de cada cultura e, portanto, contribui para uma diferenciação social. Cada cultura tem práticas alimentares diferentes que pode reconhecer e ser reconhecido, a partir de cada especificidade, tanto em relação ao uso de ingredientes específicos quanto aos hábitos alimentares. A comida, como bem cultural, é definida não apenas como uma substância alimentar, mas como um estilo de comer que afirma uma identidade e o sentimento de pertença a um contexto social e cultural. Consideramos a comida e a alimentação como símbolos de identidade e de pertença, é importante sublinhar como isso pode desempenhar um papel fundamental naquele que é o processo de adaptação ao contexto do país de acolhimento. Sabemos como esse processo é complexo, e quantos são os obstáculos que os migrantes têm de enfrentar todos os dias para poderem sentir-se parte da sociedade que os acolhe. GASTRONOMIA DOS MERCADOS: PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ATRAÇÃO TURÍSTICA Hoje, uma das fontes de riquezas mais explorada em todo o mundo é o turismo, dentre as inúmeras vertentes existentes nesse ramo, podemos destacar o Turismo Gastronômico que constitui na descoberta por parte do visitante dos pratos e bebidas típicas de uma determinada região, essa atividade vai desde a demonstração da fabricação de tais pratos e bebidas até ao prazer da degustação.

O Ceará é um rico exemplo para abordagem da discussão em torno do Turismo Gastronômico, pois é um estado que possui uma gastronomia própria e vasta, com sabores típicos de cada região. Podemos destacar nessa deliciosa viagem pelo território cearense algumas iguarias, ao chegar no litoral temos inúmeros pratos como peixe frito, camarão, caranguejo e nossa famosa lagosta seguindo viagem ao sertão a culinária é repleta de pratos bem específicos como panelada, buchada e o nosso sarrabulho que tem origem em Portugal, esses pratos são bem típicos nos mercados do nosso estado, não podemos deixar de citar nessa maravilhosa viagem o cuscuz que nasceu na África caiu nas graças dos árabes os quais levaram para Portugal e que por sua vez desembarcam aqui com essa iguaria que se tornou parte da nossa cultura, ainda temos a cocada que é uma herança dos escravos, a cajuína que cá surgiu e se tornou patrimônio piauiense e nossa famosa tapioca que herdamos dos indígenas e é prato de fundamental importância na mesa cearense, desde o café da manhã até a janta. A cada ano que se passa o turismo cresce em nosso estado e todos que aqui visitam se encantam com nosso bom humor, maravilhosa hospitalidade, sertão peculiar, com as belezas de nossas serras, com um litoral lindíssimo e único e a variedade e sabores da nossa rica arte gastronômica. A diversidade gastronômica encontrada nos mercados cearenses representa muito a nossa identidade cultural sertaneja, são pratos considerados populares e “pesados” a base de sangue, carnes, vísce-

ras, gorduras e muito sabor, alguns exemplos tradicionais dessa gastronomia que cada vez mais é descoberta pelas turistas e redescoberta pelos cearenses são a panelada, a buchada de bode, o guisado de porco, a nossa paçoca, a galinha à cabidela e o nosso sarrabulho, prato muito comum em todo o Nordeste brasileiro, mas que se originou em Portugal, ao longo dos tempos tal prato sofreu várias modificações evoluindo até a receita tão apreciada nos dias de hoje em nossos mercados. Em Fortaleza é comum aos fins de semana os boxes da praça de alimentação do Mercado São Sebastião ficarem lotados de cearenses e turistas que procuram se deliciarem com tais iguarias ao saírem das festas, ou antes de irem à praia e/ou mesmo para um almoço tradicional, mas se engana quem acha que tais quitutes são procurados apenas nesses dias, bastar passar qualquer dia da semana em qualquer mercado público de nosso estado para observar que o povo não abre mão de uma alimentação tradicional e de “sustança”, termo popular para definir tais pratos bem autênticos da nossa cultura. Ao buscarmos no dicionário a palavra sarrabulho descobriremos que essa palavra significa grande confusão e/ou desordem significado esse que explica muito o delicioso guisado a base de sangue coagulado com rins e fígados de porco ou carneiro. O sarrabulho surgiu no século XIV em Portugal, mais precisamente na Região do Minho, nesse período a Europa como um todo atravessava uma enorme crise alimentícia e a maioria da população alimentava-se basicamente de pão, durante o

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inverno as famílias mais abastadas matavam os porcos e os carneiros e ofereciam o sangue aos mais pobres, os mesmo por sua vez cozinhavam o pão nesse sangue dando origem assim as famosas Papas de Sarrabulho que ao longo dos anos se tornaram popular entre os portugueses minhotos ao ponto de surgirem derivações desse prato como o Arroz de Sarrabulho e o Doce de Sarrabulho, pratos típicos que ganharam um evento próprio a Feira do Porco e Delícias de Sarrabulho onde milhares de pessoas anualmente se deliciam com esses pratos por toda Região Norte portuguesa e principalmente na vila de Ponte de Lima que pertence ao município de Viana do Castelo. Ao se lançarem ao mar, durante as grandes navegações, os portugueses levaram a receita do nosso prato para suas colônias tanto para o Brasil como para colônias portuguesas na Índia. Esse prato se popularizou no nordeste brasileiro evoluindo da receita original a um guisado que aqui ganhou um sabor próprio ao ter ingredientes retirados e outros acrescentados. CONSIDERAÇÕES FINAIS A gastronomia é um bem cultural imaterial importante para preservação e empoderamento da identidade das comunidades étnicas e regionais. Com ela, podemos construir processos educativos que permitam conhecer e valorizar as diversas noções de Patrimônio Cultural , mas também, promover a integração dos sabores e texturas com os saberes e valores das diferentes culturas.

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Nessa perspectiva que compreendemos a Gastronomia dos Mercados um espaço fértil de fortalecimento das culturas populares e merecedora de visibilidade. É necessário empreendermos ações dos setores público e privado para inserir a Gastronomia dos Mercados na rota turística cearense. Com uma vasta riqueza de cultura, história e identidade podemos concluímos que se faz necessário um estudo mais aprofundado da nossa Gastronomia dos Mercados para que possamos catalogar dados históricos desse ofício que merece ser tombado como Patrimônio Imaterial Gastronômico Cearense, um Patrimônio rico que contribuirá para o crescimento do Turismo Histórico Gastronômico em nosso Estado e na afirmação de nossa cultura gastronômica. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ATOS LEGISLATIVOS. sobre o Ano Europeu do Património Cultural (2018). DECISÃO (UE) 2017/864 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO Jornal Oficial da União Europeia. Acesso em: 28/12/2017. Disponível em: https://www.portugal2020.pt/Portal2020/ Media/Default/Docs/Legislacao/Comunitaria/DecisaoUE2017_864.pdf. Acesso em 28/12/2017. DÁLÉSSIO, M. M. 1993. Memória: leituras de Halbwaschs e P. Nora. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 13, nº 25/26, p.97-103, ago. DICIO Dicionário Online de Português https://www.dicio.com.br/gastronomia/

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FRANZONI, E. 2016. A gastronomia como elemento cultural, símbolo de identidade e meio de integração. Dissertação Mestrado. Universidade Nova de Lisboa. FUNARI, P. P. de A. 1993. Memória histórica e cultura material. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 13, nº 25/26, p. 17-31, ago. GRAVE, J. Dicionário do Folclore Brasileiro. Editora: Livraria Chandron: Rio de Janeiro, 1ª edição, 1954. GRAVE, J. Dicionário do Folclore Brasileiro. Editora: Livraria Chandron: Rio de Janeiro, 3ª edição, 1972. GRAVE, João e COELHO NETTO: LELLO UNIVERSAL EM 2 VOLUMES. Novo Dicionário Encyclopédico Luso Brasileiro. Pôrto: Lello & Irmão Editores, s.d. 1946. KENSKI, Vani. 1995. Sobre o conceito de memória. In: A Pesquisa em educação e as transformações do conhecimento. Ivani Fazenda (org.) Campinas: Papirus. MENESES, U. B. 1984. Identidade Cultural e arqueologia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. n. 20, p. 33. UNESCO. 2006. Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Realizado em Paris em 17 de outubro de 2003. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf . Acesso em 28/12/2017.


CORDEL E CAPOEIRA: DIÁLOGOS NA ORALIDADE COM O MESTRE ZÉ RENATO Antonio Helonis Borges Brandão1 RESUMO Essa comunicação trata da relação que se estabelece no discurso da oralidade entre a capoeira e o cordel brasileiro como práticas errantes e em constante atualização. No relato de memória sobre a vida e a obra do mestre de capoeira Zé Renato, expressa na escrita oralizada do cordel, buscamos as possíveis aproximações sobre as práticas, expressões culturais e patrimônios imateriais da cultura brasileira. Palavras-chave: Capoeira; Cordel; Oralidade; Patrimonialização; Práticas culturais. INTRODUÇÃO A capoeira e o cordel brasileiro, hoje, já são reconhecidos como dois dos mais significativos patrimônios imateriais da cultura brasileira. A primeira, arte múltipla expressa através de ritual de dança, música e canto coletivo em jogo teatralizado, de mímica e expressões corporais das práticas e saberes ancestrais forjados na consciência e resistência afro-brasileira. O segundo, forma fixa de poesia brasileira, expressa múltiplos saberes e usos diferenciados 1 Doutorando em História UFF/URCA, professor de História na Rede Estadual e cordelista.

como meio de informação, formação e entretenimento, ancorado sob práticas que se movem no terreno da resistência e da consciência cultural. O que queremos discutir são as possíveis similaridades e diálogos construídos entre ambas expressões culturais que se perpetuam de forma movente, na errância da voz, além de perpetuadas através de uma contínua reinvenção e atualização de suas práticas, construção coletiva no tempo. Para tanto nos utilizaremos do discurso sobre a capoeira expresso através da forma fixa do cordel brasileiro para refletir as estratégias de subversão ao discurso oficial que muitas vezes as põem em uma redoma estática, idealizadas como vitrine cultural para o mundo e folclorizadas como expressões não passíveis de mudança. O objetivo é de apontar no discurso idealizado do “popular”,2 os possíveis riscos que uma noção estática e unicamente preservacionista da patrimonialização pode acarretar para as sempre criativas expressões da cultura e dos saberes brasileiros. Indo de encontro ao discurso sobre a “beleza do morto”,3 que põe em evidência uma cultura que não mais existe, apenas retratada de 2 Ver: ABREU, Martha. “Cultura popular, um conceito e várias histórias” In: ABREU, Martha; Soihet, Raquel. Ensino de história, conceitos temáticas e metodologias. Rio de janeiro: Casa da Palavra, 2003. 3 CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995. p. 56.

forma estática nos escritos dos especialistas sobre o que já não existe, a não ser que preservado nos arquivos e museus, a questão que levantamos é a da necessidade emergente de fomentar salvaguardas que vá além da mera preservação em arquivos e museus, mas indutivas, de fomento, educativas e construtivas, que reinvente práticas e atualizem os usos. DESENVOLVIMENTO Nos folhetos de cordel vamos encontrar variadas expressões e práticas culturais, diversidade de vozes e infinidades de interesses, através dele podemos perceber quão rico pode ser as formas de apreensão da realidade construída e constituída pela voz, memória e na experiência coletiva, como por exemplo na da capoeira. Refletir sobre a voz da capoeira no discurso do cordel é estabelecer uma ponte entre expressões culturais distintas, possibilidade que se faz possível através da transcriação de relatos do Tesouro Vivo da Cultura Cearense, o mestre de capoeira José Renato Vasconcelos ou simplesmente Mestre Zé Renato, no qual buscaremos aproximações e similaridades na forma de escrita oralizada de dois folhetos de cordel. O primeiro “Capoeira. A História do Mestre Zé Renato”, é da autoria do poeta e

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capoeirista José Bento de Carvalho Filho, e o segundo, Intitulado “Salve o Mestre Zé Renato. Tesouro da capoeira”, cujo autor é o poetas e historiador Antonio Helonis Borges Brandão, que também escreve este artigo. A proposta é fazer a leitura dos dois textos a partir da poética do cordel brasileiro4 e das práticas da capoeira na oralidade própria a uma memória da voz e dos saberes que expressa como patrimônio imaterial da cultura brasileira, além de perceber a própria materialidade do formato e das práticas editoriais embutidas no mesmo que também o significa enquanto texto oralizado o relato do personagem abordado. A finalidade é de refletir neles, textos, autores, personagens e público de leitores, as possíveis salvaguardas do patrimônio imaterial que possam ser também comuns. A relação estabelecida entre a capoeira, prática cultural múltipla e Patrimônio Imaterial do Brasil, título concedido em 2008 pelo IPHAN, além de Patrimônio Imaterial da Humanidade, reconhecimento dado pela UNESCO em 2014, 5 e o cordel brasileiro, prática cultural e gênero literário, também reconhecido em 2018 como Patrimônio Imaterial do Brasil,6 pode ser expressada pela forma movente, atualiza4 Sobre uma teoria crítica do cordel brasileiro, ver: LUCIANO, Aderaldo. História crítica do cordel brasileiro. Rio de Janeiro: Edições Adaga; São Paulo: Luzeiro, 2012. 5 FLORES, Alice Lacerda Pio Flores. Mestres de capoeira: memória e salvaguarda no século XXI. 2017 6 O processo, iniciado em 22 de fevereiro de 2010, teve por proponente a Academia Brasileira da Literatura de Cordel (ABLC), com o apoio do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP). Ver:http://portal. iphan.gov.br/pagina/detalhes/426;http://portal.iphan. gov.br/noticias/detalhes/4833/literatura-de-cordel-ereconhecida-como-patrimonio-cultural-do-brasil. Acesso em 23 set. 2018.

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dora e coletiva em que os saberes, as práticas, a memória construída são transmitidas pela voz dos agentes produtores, seja o poeta cordelista ou o mestre, contramestre, instrutor, professor de capoeira. Essa ideia de proximidade na transmissão dos saberes através da oralidade é o que nos leva a refletir esse discurso da capoeira no cordel através de dois folhetos que agora passamos a analisá-los. O primeiro deles “A História do Mestre Zé Renato”, da autoria de José Bento de Carvalho Filho, tem formato de um livreto e é todo escrito na forma de décimas setessilábicas. Publicado em Fortaleza, no ano de 1997, portanto há mais de 20 anos, já se encontra em sua 3ª. edição. Na capa traz uma ilustração do próprio autor, que assina como Zelito, com o desenho do mapa do Ceará sobre uma mão e dentro dela dois capoeiristas, um pandeiro e um berimbau, o que logo nos remete ao tema que será desenvolvido. Na página de rosto, além do título, local e data da publicação, há uma dedicatória “A memória dos imortais mestres Bimba e Pastinha”, os dois maiores ícones da capoeira brasileira, e em seguida o oferecimento “Aos mestres Zé Renato e Lula”, os dois mestres do autor, também um praticante da capoeira. Essa reverência também é própria ao discurso do cordel, em que há os mestres, os autores canônicos que tal qual os Mestres Bimba e Pastinha, desenharam um roteiro para os que o seguiram. Na página seguinte o próprio autor faz uma apresentação da obra com o seguinte esclarecimento “Apesar de tratar-se de uma história contada através de versos,

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A FINALIDADE É DE REFLETIR NELES, TEXTOS, AUTORES, PERSONAGENS E PÚBLICO DE LEITORES, AS POSSÍVEIS SALVAGUARDAS DO PATRIMÔNIO IMATERIAL QUE POSSAM SER TAMBÉM COMUNS.

coloquei nela apenas o que me foi relatado pelo Mestre ZÉ RENATO(...), o que ressalta ser verdadeiro pois “não abrangendo nada mais do que sua trajetória documentada e contada de boca em boca por uma parcela considerável da massa capoeirista”. O discurso da oralidade na memória da capoeira parece ter o mesmo grau de veracidade de qualquer outro documento, também nos parece que ao ser expresso na forma de cordel é um modo de o aproxima ainda mais da verdade como relato poético. A décima inicial parece mais a abertura de uma roda de capoeira quando diz: “Prezado leitor, saúde/Que vá bem no seu caminho/Que nunca viva sozinho/Pois a solidão


é rude/Peço a Deus que lhe ajude/Pois ele é dono da glória/E pode lhe dar vitória/ Contra o inimigo astuto/Só lhe peço alguns minutos/Para contar-lhe uma história”. É o mesmo tipo de discurso de louvação do cordel e que foi inserido sem qualquer prejuízo para o início do enredo sobre a vida do Mestre Zé Renato. No desenrolar o mestre oraliza, e o poeta escreve, sobre como conheceu os seus maiores referenciais de mestres e modalidades desenvolvidas na capoeira: “Começou logo rasteiro/Com o seu corpo de mola/Mestre Bimba disse: é Angola/O seu jogo é bem maneiro/Foi o que ensinei primeiro/Antes da regional/Pode deixar, não faz mal/Vou mandá-lo ao Pastinha/Era a opção que tinha/O Zé Renato afinal”. O relato sobre a memória do primeiro grupo de capoeira a atuar no Estado do Ceará, é dita da seguinte forma: “Mas foi em setenta e quatro/Que ninguém esqueça pede-se/Que no Presidente Médici/Teve início de fato/O Xangô de Zé Renato/Cheio de arte e grandeza/Pra glória de Fortaleza/E também de todo o Estado/Que aprendia o gingado/A malandragem, a defesa”. A oralidade expressa no poema ganha o status de expressão da voz de um documento vivo e de uma história pouco conhecida e ainda não escrita sob os parâmetros tradicionais. É o que faz o autor que ao concluir após as 47 décimas sobre a vida e a obra de uma lenda viva, nos diz: “Tudo que aqui narrei/É verdade que acredito/Foi pelo mestre me dito/É por isso que eu sei/Mentiras não inventei/ Pra não deturpar os fatos/Fui honesto com o relato/Essa história é verdadeira/

A ORALIDADE EXPRESSA NO POEMA GANHA O STATUS DE EXPRESSÃO DA VOZ DE UM DOCUMENTO VIVO E DE UMA HISTÓRIA POUCO CONHECIDA E AINDA NÃO ESCRITA SOB OS PARÂMETROS TRADICIONAIS.

Quem trouxe a capoeira/Ao Ceará foi Zé Renato”. O que é dito pelo mestre é verdade incontestável e o poema de escrita oralizada é a forma de sua expressão, o lugar em que a capoeira e cordel se encontram como patrimônio imaterial da cultura brasileira, e não passíveis de qualquer contestação quanto a isso, mas moventes e dialógicos como é a poesia e a expressão corporal.

O segundo poema “Salve o mestre Zé Renato. Tesouro da capoeira”, da nossa autoria, é um misto de documento de História Oral, pois baseado nos relatos do próprio personagem retratado, e expressão de memórias na visão particular do autor sobre o vivenciado quando da diplomação do Mestre Renato como “Tesouro Vivo da Cultura” no Estado do Ceará. Publicado como folheto, nele consta 32 septilhas de sete sílabas. Também traz na capa um desenho como ilustração em que aparece um capoeirista em salto mortal sobre os instrumentos usados para marcar o ritmo da capoeira, pandeiro, atabaque, caxixi e berimbau. Na estrofe inicial a louvação é à própria literatura de cordel ao introduz o assunto e personagem abordado: “A nossa literatura/De cordel é verdadeira/ Seja cantada em sala/Ou declamada na feira/E na forma dela eu trato/Sobre o Mestre Zé Renato/Tesouro da capoeira”. O enredo se desenvolve conforme a memória e a voz do personagem que relata como um documento vivo sua trajetória de vida na capoeira. O relato de alguma forma é coincidente com o texto anterior, o que difere é a poética desenvolvida por cada um ao falar do contato de Zé Renato como os seus mestres na Bahia “Pois lá conheceu aqueles/Que lhes deram inspiração/Os Mestres Bimba e Pastinha/ Cada qual na sua função/De uma forma magistral/Viu Bimba no Berimbau/Pastinha jogar no chão”. Sobre o grupo Xangô que iniciou a capoeira no Ceará, foi o próprio Zé Renato que nos falou sobre a questão ainda con-

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troversa de outros capoeiristas que atuaram no Ceará antes dele, mas com a ressalva de que não deixaram continuadores ou discípulos conhecidos. A o contrário do mestre de quem se sabe exatamente quem são e onde estão os seus discípulos: “Pois se para ser um mestre/É preciso seguidores/E que formem outros alunos/Sendo os continuadores/Pois Zé Renato no meio/Isso falo sem receio/É mestre dos precursores”. O texto chega ao seu ponto final com a diplomação do Mestre Zé Renato como Tesouro Vivo da Cultura, fato acontecido no último dia 25 de junho de 2018, momento de coroamento de toda uma trajetória de vida na capoeira “Ao receber seu diploma/ Como reconhecimento/Por mais de 40 anos/ De luta, fé e fomento/O mestre pediu palavra/E o que saiu da sua lavra/Foi puro agradecimento”. A fala mediatizada pela forma poética do cordel expressa a voz no momento da emoção “Lembrou dos seus companheiros/Naqueles primeiros anos/ Daqueles que ele ajudou/Alegrias, desenganos/Que trilhou na capoeira/Uma arte verdadeira/E de Deus por esses planos”. Assim, os dois poemas se aproximam como discurso do cordel sobre a capoeira. O primeiro uma elaboração de um poeta do meio da capoeira, o outro um relato de um estudioso do próprio cordel, mas ambos associando o relato do personagem sobre a sua trajetória de vida como mestre e precursor da capoeira cearense. Se antes de ser Tesouro Vivo da Cultura, no já longínquo 2007, há uma memória construída e sedimentada na oralidade sobre o personagem retra-

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tado, em 2018 quando ela se institucionaliza como patrimônio vivo da cultura cearense há o risco de se cristalizar, indo de encontro ao que têm de mais sagrado, sua movência,7 dinâmica e inventividade toda própria à memória compartilhada de forma coletiva e múltipla. As salvaguardas para que a memória possa ser vivenciada não somente como identidade e tradição, mas principalmente como cultura viva e em permanente atualização, passam pela transmissão às gerações futuras, pelas políticas públicas de valorização desse patrimônio vivo, pelas práticas dessas expressões culturais na escola, pelas rodas de conversas e ida dos mestres aos locais de ensino, pela publicação de materiais sobre a temática da capoeira e do cordel, com a devida discussão em sala de aula, enfim que não esteja estáticos com autênticas, originais e genuínas expressões de uma cultura “popular”, uma invenção de intelectuais, mas que sejam valorizadas no que são, expressões culturais múltiplas e ricas em expressividade. CONCLUSÃO A patrimonialização das práticas culturais que se expressam fortemente através da oralidade, a exemplo da capoeira e do cordel brasileiro, devem ter uma cuidadosa política de salvaguarda a partir do que tem de mais importante a sua constante mudança, atualização da memória e dinâmica das práticas. Caso contrário há sem7 LEMAIRE, Ria. “Tradições que se refazem”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 35, pp. 17-35, 2010.

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pre o risco de se colocar numa redoma protetora o que é errante, movente, atualizador e em constante transformação. BIBLIOGRAFIA ABREU, Martha. “Cultura popular, um conceito e várias histórias” In: ABREU, Martha; Soihet, Raquel. Ensino de história, conceitos temáticas e metodologias. Rio de janeiro: Casa da Palavra, 2003. CERTEAU, Michel de. “A beleza do morto” In: A cultura no Plural. Campinas\São Paulo: Papirus, 1995. BRANDÃO, Antonio Helonis Borges. Salve o Mestre Zé Renato. Tesouro da capoeira. Crato: Ed. Pé Duro, 2018. 8 p. FILHO, José Bento Carvalho. Capoeira. A História do Mestre Zé Renato. Fortaleza: s.ed., 1997. 20 p. FLORES, Alice Lacerda Pio Flores. Mestres de capoeira: memória e salvaguarda no século XXI. 207 f. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagens, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, 2017. LEMAIRE, Ria. “Tradições que se refazem”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 35, pp. 17-35, 2010. LUCIANO, Aderaldo. História crítica do cordel brasileiro. Rio de Janeiro: Edições Adaga; São Paulo: Luzeiro, 2012.


“QUE CABOCLO SÃO VOCÊS?” : A CONSTRUÇÃO ARTÍSTICA DO GRUPO DE MÚSICA PERCUSSIVA ACADÊMICOS DA CASA CAIADA Catherine Furtado dos Santos Jean Oliveira Brito Victor da Silva Ramos RESUMO O objetivo deste artigo é apresentar os principais elementos artísticos na construção artística de um grupo percussivo. O Grupo de Música Percussiva Acadêmicos da Casa Caiada da Universidade Federal do Ceará é um projeto de extensão do curso de licenciatura em Música, que promove o ensino e aprendizagem de percussão da música popular brasileira. Neste ano de 2018, concebeu a formação de um trabalho artístico baseado na Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade, de 1938, e a partir disso iniciou a produção do espetáculo Que Caboco São Vocês. Através de ensaios semanais com atividades de musicalização, técnica instrumental e marcação cênica, o grupo montou um repertório com música que representam a diversidade rítmica e cultural do Brasil. O presente trabalho se baseia nos estudos de Coopat e Mattos (2012), Santos e Resende (2009), Santos (2013), Guerreiro (2000). Assim, o trabalho artístico já realizou apresentação em eventos e palcos renomados de Fortaleza, e promove

a formação musical e docente dos seus 20 integrantes. 1. INTRODUÇÃO O Grupo de Música Percussiva Acadêmicos da Casa Caiada (GMPACC) é um projeto de realização artístico-cultural do curso de Música – Licenciatura da Universidade Federal do Ceará (UFC), interligado ao Programa da Secretaria de Cultura Artística da UFC. Fundado em junho de 2008, atualmente, o grupo é composto por 20 integrantes, é coordenado e regido pela Profª. Drª. Catherine Furtado dos Santos, conta com a participação dos bolsistas (regentes em formação) Victor S. Ramos, Áquila Rebeca e Jean Brito, e desenvolve atividades voltadas ao ensino e a pesquisa no âmbito percussivo popular, aliado a propostas de formação artísticas. Durantes os dois encontros semanais, cada um dos regentes do GMPACC se responsabilizam por determinada parte do ensaio, que envolve atividades como: alongamento e aquecimento corporal, exercícios de estimulação rítmica, estudo técnico para instrumentos de percussão, ensaio da estrutura musical e marcação. Todo esse trabalho que envolve a música percussiva é sustentado pela transmissão oral, corporalidade e improviso. Se-

gundo Guerreiro: Uma das principais características da linguagem percussiva popular é a oralidade, a transmissão oral de conhecimento, que lhe confere o status de música popular, deixando-a definitivamente fora do polo erudito. A linguagem percussiva é transmitida por observação e audição seguidas de imitação. Trabalha principalmente com a exploração do som e com a improvisação. (GUERREIRO, 2000, p. 271) Nesse ponto, destacamos a importância dada ao corpo para uma sensibilização musical e corpórea antes de executar um instrumento percussivo, ao passo que essa tem ligação direta com o toque de um tambor e com o movimento corporal. Além do movimento que também pode ser trabalhado como expressão corporal dentro de um contexto musical, a utilização da voz – canto – como recurso pedagógico também é muito presente nas práticas percussivas desenvolvidas no GMPACC, pois trabalha, além do corpo, com o instrumento primordial do ser humano: a voz. Dentro desse contexto, entra em

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cena outro elemento significativo: a formação de regência. Esse processo é amplamente desenvolvido durante os ensaios, conforme a coordenadora e os bolsistas se dividem nessa função, seja na direção de alguma seção da aula, como na condução de algum arranjo musical percussivo. Como consequência, os bolsistas, além de incumbências de caráter administrativo e organizacional, têm uma formação docente aperfeiçoada, baseada na construção do regente do GMPACC. Desde o semestre 2017.2 o grupo prepara-se através de ensaios – prática instrumental e de expressão corporal – para o 4º espetáculo cênico-percussivo. Para este trabalho, as atividades musicais buscam estudar, conhecer e executar alguns ritmos nordestinos, como cabocolinho, maracatu, boi, coco, tendo como inspiração a Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade de 1938. Tal trabalho, de rememoração destas ricas manifestações da cultura popular, nos apresenta os registros trazidos através da pesquisa que percorreu a região Norte e Nordeste do Brasil. Assim, folguedos, loas, expressões de fé, do mundo lúdico e festivo da cultura popular ganham cena na construção do repertório de Música Percussiva do GMPACC. O objetivo deste artigo é apresentar esse processo de construção do repertório através da apresentação de três músicas representativas dessa composição: Muriquinho, Caboclinho e Reisado.

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2. DESENVOLVIMENTO O espetáculo Que Caboco São Vocês? apresenta a diversidade rítmica do Brasil, através de três grandes seções que dividem as músicas com base na sua principal representação étnica: bloco da matriz indígena, bloco da matriz afro e bloco da matriz luso. 2.1 CABOCLINHO Em agosto de 2017, marcando o retorno das atividades do Grupo de Música Percussiva Acadêmicos da Casa Caiada (GMPACC), após o período de férias acadêmicas, iniciamos os estudos de alguns ritmos nordestinos – como cabocolinho, maracatu, boi, coco –, tendo como inspiração a Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade, de 1938. A Missão é um projeto de grandes proporções que foi realizado no Brasil, destinado a realizar gravações de música popular tradicional, que se transformou em um compilado de registros de vários locais das regiões Norte e Nordeste do país. Motivados por tal trabalho de pesquisas folclóricas, o GMPACC dedicou-se a fazer a rememoração destas ricas manifestações da cultura popular, e a primeira delas foi o caboclinho. Segundo Coopat e Mattos (2013), o caboclinho, ou caboclinhos, é um folguedo do Estado de Pernambuco, cuja tradição é transmitida sobretudo com base na oralidade, e que representa o evento ápice da performance das agremiações carnavalescas. Além disso, “também integra um complexo tradicional que, além de música e fantasia, envolve religiosidade, ances-

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tralidade, magia, encantamento, política, competição, agonia, abstinência, disciplina e muito mais. ” O termo designativo tem mais de um significado: é um tipo de agremiação popular e o nome dos integrantes dessa agremiações; é a denominação dada à música e à dança, às vezes focalizada individualmente; é também o nome da própria brincadeira e a totalidade dos participantes costuma chamá-lo caboclinho – diminutivo de caboco (SANTOS; RESENDE, 2009, p. 110). Nesse contexto, foram investigados os principais elementos musicais que compõem a música do caboclinho, como o instrumental mais característico dos agrupamentos que tocam essa música, as nuances rítmicas, desde padrões a variações. Diante disso, encontramos em arranjos de diferentes músicas de caboclinho a presença de diferentes gêneros musicais, como a guerra, o perré, a macumba de caboclo, e o toré. A partir dessa diversidade rítmica, as músicas de caboclinho se figuram como extensas faixas de música, com uma variedade de ambientes, delineando uma complexa sequência musical percussiva. Percebemos também que os instrumentos mais presentes nessa manifestação são o tarol, o surdo, o caracaxá1, e a preaca2. 1 Instrumento tradicional do caboclinho, feito de uma longa estrutura cilíndrica e oca, cujas extremidades são três pontas de metal de um lado, e duas pontas do outro, preenchida de pequenas bolas de metal que sacudidas dentro do instrumento produzem um som estridente. 2 No Tesauro de Folclore e Cultura Popular Brasileira, preaca é "um instrumento de percussão cujo som é


Durante semanas, o GMPACC empenhou-se em executar um arranjo inspirado pelo conjunto Caboclinhos Sete Flexas do Recife, cuja sequência musical se inicia com a guerra, seguida pelo baião, pelo perré, pela macumba de caboclo, e finaliza com a guerra. Para tal feito, foram necessárias algumas adaptações instrumentais por causa do difícil acesso aos instrumentos tradicionais do caboclinho, como o tarol, que foi substituído por zabumbas e caixas com esteira, e a gaita, que foi substituída por um pife. Além dos aspectos particulares da música do caboclinho, o GMPACC realizou o estuobtido pela fricção da flecha através de um orifício localizado no arco. Apresenta estrutura semelhante à do arco para lançamento de flechas [...]. É utilizado para a marcação da pulsação rítmica no folguedo caboclinho" in:http://www.cnfcp.gov.br/tesauro.

do das outras características do caboclinho, e constatou que este compreende vários elementos, desde a indumentária – que compreende saiotes, tangas, colares, túnicas, quase tudo revestido de coloridas plumagens –, até a forma como os integrantes dos caboclinhos brincam – descalços, em fileiras, estalando as suas flechas, ao mesmo tempo que dançam saltitando, agachando e levantando. A partir dessa brincadeira, os caboclinhos constroem e exibem as manobras. Suas danças, chamadas manobras, evocam movimentos de guerra, envolvendo avanços, recuos, saltos, agachamentos, trançados e rodopios, por meio de uma sucessão de passos cujas variações envolvem o cruzamento e o descruzamento

de pernas e o gesto de atirar com o arco e flecha que têm nas mãos, para muitas direções. (VIANA; ASCELRAD, 2017, p. 148) Após a análise das possibilidades coreográficas, o GMPACC criou uma sequência, baseada em manobras apreendidas em ensaios de grupos folclóricos de dança, que desenvolviam um trabalho coreográfico de caboclinho. 2.2 MURIQUINHO Na construção do espetáculo, o grupo GMPACC buscou contemplar, não apenas a riqueza musical nordestina, mas também, a pluralidade étnica existente na região. Assim, para representar a cultura quilom-

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bola, buscamos uma canção que retratasse um pouco da realidade vivida pelos antepassados desse povo, e foi quando encontramos a composição de Clementina de Jesus – Canto dos escravos II. A letra da canção conta a história de um menino escravo que consegue fugir para um quilombo, enquanto outros meninos choram por não poderem ir. “Muriquinho piquininho, muriquinho piquininho, oi parente, de quissamba na cacunda. Purugunta onde vai, Purugunta onde vai, oi parente. Pru quilombo do Dumbá. Ê chora, chora, mgongo, oi deverá. Chora, mgongo, chora. Ê chora, chora, mgongo, oi cambada. Chora, mgongo, chora...” Em outubro de 2017, o GMPACC começou a construir o arranjo de “Muriquinho” (como passamos a chama-lo). Originalmente, a peça é um jongo, contudo, o grupo inseriu uma nova roupagem à música, baseada na utilização de células rítmicas de uma das raízes da música brasileira, o lundu – ritmo de influências africanas, que se torna o primeiro de tal origem a ser aceito pela elite brasileira da época. Originalmente uma dança sensual praticada por negros e mulatos em rodas de batuque, só tomaria forma de canção nas décadas finais do século XVIII. [...] o lundu surgiu da fusão de elementos musicais de origens branca e negra, tornando-

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-se o primeiro gênero afro-brasileiro da canção popular. (SEVERIANO, 2008, p.19) O arranjo do GMPACC compreende instrumentos que compõem a formação instrumental original de um lundu, tocado no século XIX, como os atabaques, e possui algumas adaptações feitas com alfaias, caixas e blocos sonoros, em uma produção que busca representar a euforia do menino ao sentir-se livre. 2.3 REISADO Em novembro de 2017, dando continuidade a construção do seu repertório, o GMPACC iniciou os ensaios da música Boa Noite Minha Gente, composição de Ezequias Arruda, integrante do grupo Brincantes do Cordão do Caroá3, que apresentas músicas e encenações de reisado – conhecido também como terno de reis, tiração de reis, folia de reis, boi, rancho de reis guerreiros –, além de outras manifestações de tradição oral cearense e nordestinas. Essa canção integra o CD Cordão do Coroá, gravado com percussão, voz, cavaquinho e violão, lançado em janeiro de 2013. O interesse do GMPACC por essa peça musical foi com a intenção de inserir uma representação do reisado, que, segundo Coopat e Mattos (2012), é, simultaneamente, rito, auto-épico, brincadeira de terreiro, 3 Movimento cultural desenvolvido pelo Programa de Extensão da UFC, que promove práticas artísticas com o interesse de revelar uma gama de possibilidades do papel e das qualidades que as culturas populares assumem na formação do ser humano, através de discussões sobre as suas sonoridades poéticas.

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cortejo de brincantes, ópera popular e teatro tradicional. É rito porque encena o mito de origem do mundo cristão popular, com o nascimento do Divino. Auto-épico porque narra a saga dos Reis Magos a Belém, em busca do Menino Deus. Brincadeira de terreiro porque se dá em roda, com a participação ativa da comunidade. Cortejo de brincantes porque se constitui em caminhada festiva de atores brincantes. Ópera popular porque reúne o conjunto das linguagens artísticas (música, teatro, dança, artes visuais – nos figurinos e adereços), numa só apresentação. Teatro tradicional porque se trata de manifestação cênica construída secularmente pela coletividade (COOPAT; MATTOS, 2012, p. 22). A partir desse entendimento, estudamos as várias formas desse rito, procurando identificar as particularidades rítmicas e instrumentais que compõem as suas músicas. Com isso, percebemos que os instrumentos percussivos mais presentes nestas são a zabumba, a caixa, o ganzá, e o triângulo. Além disso, usamos o cavaco para acompanhamento harmônico para compor nosso arranjo, que conta ainda com o canto de Boa Noite Minha Gente: Boa noite minha gente Foi agora que eu cheguei Vou nas peças de reizado Que é um samba diferente.


No batuque ao Pagim Ciço Fiz a gira no sertão Pois é homem bom e digo Esquecer tem jeito não. Venceu a guerra com os homens Feito a força do divino Pois é homem de coragem Seu batuque é muito fino. Canto dia e de noite Guiado ao som da espoleta Meu quilombo é Juazeiro Minha princesa é Violeta. 3. CONCLUSÃO O presente artigo apresentou a base da construção do repertório de Que Caboco São Vocês?, espetáculo do GMPACC, produzido desde julho de 2017. Inspirados pela Missão de Pesquisas Folclóricas, de Mário de Andrade (1938), que percorreu na região Norte e Nordeste do Brasil e pesquisou manifestações da cultura popular, selecionamos três músicas que expressam a essência desse projeto: caboclinho, Muriquinho e reisado. A partir de tal concepção, nos fundamentamos no material desenvolvido por Viana e Acselrad (2017), Santos e Resende (2009), Coopat e Mattos (2012), Santos (2013), Severiano (2013) e Guerreiro (2000). Os ensaios do GMPACC que proporcionaram a produção desse repertório basearam-se em atividades de criatividade e habilidade, alongamento e aquecimento corporal, exercícios de estimulação rítmica, estudo técnico para instrumentos de percussão, ensaio da estrutura musical e marcação cênica. Nesse processo, aplicou-

NESSE PROCESSO, APLICOU-SE A METODOLOGIA CARACTERÍSTICA DA LINGUAGEM PERCUSSIVA POPULAR, QUE SE CONSTITUI É DA TRANSMISSÃO ORAL DE CONHECIMENTO, DA CORPORALIDADE E DO IMPROVISO.

-se a metodologia característica da linguagem percussiva popular, que se constitui é da transmissão oral de conhecimento, da corporalidade e do improviso. Durante esse ano de produção artística, o GMPACC apresentou o repertório musical de Que Caboco São Vocês? em diversos eventos de Fortaleza, como: o Corredor Cultural Benfica, em 2017 e 2018; no Evento Discutindo Políticas Públicas no Atendimento às Mulheres na Universidade (UFC) e no Encontro de Tambores RIO-FOR, em setembro de 2018; no Tambores Carnavalescos, no pré-carnaval da Praia de Iracema, em janeiro de 2018. A concepção do espetáculo representa a pluralidade musical e cultural não só cearense e nordestina, como brasileira. A pesquisa de diversos ritmos de diferentes

regiões do país proporcionou o aprendizado de particularidades de cada manifestação estudada. A perspectiva do GMPACC é estrear Que Caboco São Vocês? em março de 2019, com uma temporada de apresentações durante o primeiro semestre do ano. REFERÊNCIA COOPAT, Carmen; MATTOS, Márcio. Agrupamentos da Música Tradicional do Cariri Cearense. 2012. GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de salvador. São Paulo: Ed: 34, 2000. SANTOS, Catherine Furtado. Casa Caiada: formação humana e musical em práticas percussivas colaborativas. 2013. 173f. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. SANTOS, Climério de Oliveira; RESENDE, Tarcísio Soares. Caboclinho: batuque book. Recife: Funcultura, 2006. SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2008. VIANA, P. A. R. ; ACSELRAD, M. .Dançando contra o estado: análise descoreográfica das forças em movimento entre os Caboclinhos de Goiana/Pernambuco. REVISTA ÑANDUTY, v. 5, p. 146-166, 2017.

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SABERES PERCUSSIVOS NAS ESCOLAS PÚBLICAS DA CIDADE DE FORTALEZA – CE. Catherine Furtado dos Santos RESUMO: Este trabalho apresenta a pesquisa de doutorado que investigou os saberes percussivos produzidos pelos grupos de Maracatus e Banda Marcial-Show nas escolas públicas da cidade de Fortaleza. No espaço escolar, a partir das literaturas na área e dos dados empíricos coletados através da pesquisa de campo, identificou-se que as práticas percussivas em coletivo são desenvolvidas, principalmente, por grupos de maracatus e fanfarras, constituindo-se como grupos de atividades extracurriculares que realizam ensaios, atividades e apresentações artísticas. Tal fenômeno propiciou a problematização sobre a existência desses grupos como geradores de conhecimento, porém, sem uma articulação com as atividades educativas da escola. Portanto, diante desse conjunto de práticas na realidade escolar, a pesquisa afirma a existência dos saberes percussivos através das dimensões educativas do saber epistêmico, de identidade e social com base na teoria da relação com o saber de Charlot (2000) e propõe uma reflexão nos termos das epistemologias do sul, de Santos (2010), para uma possibilidade educacional construtiva e válida a partir das práticas percussivas em coletivo nas escolas públicas. Através das entrevistas semiabertas - com os sujeitos

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escolhidos - a pesquisa identificou as práticas percussivas desenvolvidas e compreendeu os sentidos atribuídos pelos sujeitos nesse processo de aprendizagem. Assim, esse trabalho traz contribuições ao campo da educação musical a partir de uma perspectiva dos saberes ressoados no contexto socioeducativo do espaço escolar. Palavras-chave: Saberes percussivos. Escola pública. Maracatus e Banda Marcial-Show. INTRODUÇÃO O presente artigo versa sobre os saberes percussivos desenvolvidos a partir de dois grupos de maracatus cearenses1 (Nação Fortaleza e Nação Pici), e uma banda marcial-show2 - a Banda de Metais e Percussão Solares. Os grupos estão localizados em distintas escolas públicas da cidade de Fortaleza, ambas localizadas em bairros da periferia. Centra-se especificamente na prática percussiva do maracatu Nação 1 Maracatus cearenses: são manifestações que dramatizam a coroação de reis negros através de cortejos. Na cidade de Fortaleza, os maracatus ganham destaque nos desfiles carnavalescos na Avenida Domingos Olímpio. Ver Cruz (2011), para maiores informações sobre maracatus cearenses. 2 Banda marcial-show: modalidade de Banda Marcial influenciada pela da cultura de bandas escolares e de competições esportivas dos Estados Unidos em sua constituição e funcionalidade conhecida como as “marching band”. Ver Silva (2012), para maiores informações sobre banda marcial-show.

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Fortaleza na Escola Municipal (E.M) Dom Manuel da Silva Gomes, localizada no bairro Jardim América, bem como no maracatu Nação Pici e sua parceria com a Escola Municipal (E.M) Adroaldo Teixeira Castelo, localizada no bairro do Pici. Focaliza-se ainda a Banda de Metais e Percussão Solares, cuja prática ocorre na escola Escola Estadual (E.E) Deputado Paulo Benevides, localizada no bairro Messejana. Cada grupo é constituído, principalmente, por estudantes e ex-estudantes, das escolas, e pelos moradores da comunidade do bairro. Os grupos contam com a participação, em média, de 80 a 100 pessoas, tendo a presença de crianças, jovens e adultos. Na parte específica dos integrantes que tocam percussão - os percussionistas ou batuqueiros3-, é comum observar a entrada de crianças e, ao longo do tempo, tornam-se adolescentes atuantes ainda no grupo. A faixa etária deles, geralmente, inicia-se aos 12 e segue até aos 18 anos de idade. É possível observar que, esses jovens, possuem baixa renda, sendo necessário muitos trabalharem em comércios para ajudar a família. As despesas para aquisição de figurino, participação nos ensaios (passagens de ônibus, 3 Percussionistas ou batuqueiros: para alguns instrumentistas da área percussiva há uma diferença entre percussionista e batuqueiro. O primeiro termo é mais utilizado para os músicos de banda (conjuntos musicais) e, batuqueiro, para os integrantes que tocam tambor nos grupos populares. Adiante os termos serão explicados com as devidas particularidades.


quando necessário) e nas apresentações, são, normalmente, custeadas pelo próprio grupo através de atividades colaborativas como auxílio aos integrantes com baixas condições financeiras. As três escolas onde funcionam os ensaios dos grupos pesquisados fazem parte da rede de ensino público de Fortaleza e, os bairros, Jardim América, Planalto do Pici e Messejana, são considerados como espaços urbanos que, no perímetro de funcionamento das escolas, há alto índice de tráfico de drogas e demandas de infraestrutura (saneamento, segurança) por parte da comunidade. A relação da escola com a comunidade é uma constatação notória para observação das perspectivas educacionais que se envolvem com a realidade social também presente nesta relação de convivência. Nesse universo é interessante pensar que crianças e adolescentes utilizam do espaço das escolas para realizarem práticas percussivas de caráter extracurricular, ou seja, trabalham conteúdos musicais através da percussão em coletivo sem as exigências e uma sistematização formal exigida pela matriz curricular das escolas. Entende-se aqui por práticas percussivas em coletivo no sentido de Schrader (2011, p. 07): “os saberes e as informações sobre uma cultura musical percussiva coletiva são dimensões importantes desse estudo que se transformam em ideias concretas para uma experiência com percussão em espaços escolares e acadêmicos”. Diante dessa perspectiva, esclareço que, a prática percussiva em coletivo, mesmo sem ser realizada dentro da forma escolar

tradicional4, aponta para experiências importantes através de manifestações artísticas que congregam pessoas em atividades musicais de ensaios, processos de ensino e de aprendizagem, execução de repertórios e apresentações. Tal fenômeno das práticas percussivas nas escolas públicas chamou-me atenção a partir da minha experiência como professora do ensino superior da disciplina de estágio supervisionado e práticas percussivas no curso de música – licenciatura da Universidade Federal do Ceará (UFC). Como professora de estágio, ao visitar as escolas públicas, deparei-me com a realidade extensa da presença de Fanfarras e atuação desses grupos em competições dentro do espaço escolar da cidade de Fortaleza. Além disso, há também constatações de grupos de maracatus nas escolas, sendo anunciados os resultados das competições de bandas e grupos. Por exemplo, as Fanfarras são predominantes em eventos de campeonatos nacionais e regionais e, no caso dos Maracatus, a competição na Avenida Domingos Olímpio, nos desfiles carnavalescos da cidade de Fortaleza. Neste caso, refiro-me, especialmente, por ter observado a presença de instrumentos percussivos na escola, mas sem um direcionamento de aula por parte de um profissional da área (percussão) e a não articulação com os grupos pre-

4 Aponto o termo forma escolar tradicional consequente da obra de Charlot (2013) que se refere às práticas pedagógicas, principalmente, do século XIX, baseadas no rigor da disciplina, da norma, do controle do corpo e no triunfo do intelecto. Tais valores, ainda hoje, são apontados pelo autor como padrões tradicionais que se impõem pela própria estrutura de organização da escola, do seu espaço físico, da segmentação de conteúdos e da avaliação individual.

sentes, sobretudo, a escolha ao interesse de crianças e jovens e adultos em realizar tal prática nesses espaços escolares. Percebi que a ala do batuque (naipe de percussão) era o interesse principal dos participantes para preparação do desfile de carnaval de caráter competitivo e as competições dos eventos. Foi ainda importante observar que a escola representava para os integrantes um lugar de segurança para realização dos ensaios e para guarda do instrumental do grupo. Dados os aspectos apontados, alguns questionamentos surgiram: Quais os saberes percussivos desenvolvidos pelos três grupos selecionados nas escolas? quais os sentidos atribuídos por sujeitos (alunos, ex-alunos, comunidade etc) às práticas percussivas em coletivo do maracatu e banda marcial-show quando as mesmas são praticadas em espaços escolares específicos? E ainda, quais os sentidos atribuídos pelos sujeitos às escolas onde os grupos desenvolvem suas atividades percussivas? A partir dessas questões tem-se como objetivo geral desta tese: analisar os saberes percussivos desenvolvidos pelos três grupos selecionados nas escolas. Outras indagações também emergem, sendo configuradas como objetivos específicos: identificar as atividades percussivas realizadas no espaço escolar e compreender os sentidos atribuídos pelos sujeitos às práticas percussivas em coletivo no espaço escolar público. A TRAMA DOS TAMBORES Para pensar tais questões Charlot

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(2000) a partir da teoria da relação com o saber coloca-se como autor importante na discussão sobre os sentidos produzidos pelos sujeitos em torno das práticas percussivas. Compreende-se que o conceito de saber representa o domínio do mundo no qual o ser humano vive, comunica-se e partilha com outros seres. O saber é envolver-se em um conjunto de relação e processos que se constituem em um sistema de sentidos e, portanto, não há saber sem relação com o saber. Desta afirmação, “não há saber sem relação com o saber”, compreendemos o saber como algo relacionável que, segundo Charlot (2000), essa relação é existente dentro de três processos: as atividades, as mobilizações e os sentidos. Tais processos são imbrincados em uma relação espaço-tempo partilhado entre os sujeitos e, com isso, Charlot (2000), trabalha com a relação de saber baseado nos conceitos de epistêmico, identidade e social, apontas essas como dimensões dos saberes produzido pelo ser humano. Dadas as observações de campo parto do pressuposto, fundamentado nos conceitos teóricos de Charlot (2000), especificamente “saber”, bem como de “práticas percussivas em coletivo” (Santos, 2013, Schrader, 2011) que saberes percussivos são mobilizados por sujeitos no contexto das escolas a partir da interação com maracatus e bandas marcial-show. Vale destacar que os Maracatus e a Banda Marcial-Show são agrupamentos musicais que se constituem por uma série de atividades para além da percussão, trazendo nos figurinos, nos adereços, nas danças, nas coreografias e

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nos enredos temáticos toda uma trama que se constrói as dinâmicas desses grupos. O foco de maior interesse para essa pesquisa é o que se desenvolve pelos sujeitos através das práticas percussivas em grupo, ou seja, no naipe da percussão5 ou, como também reconhecido, na ala do batuque6. Desta forma, trago o argumento que nos dois grupos de maracatus e na banda marcial-show se configuram como espaços de saber dentro de outros espaços, neste caso, a escola pública. Neles, a partir do conjunto de atividades musicais desenvolvidas pelos sujeitos, há a produção dos saberes percussivos. No enfoque sobre os processos educativos através das práticas percussivas em coletivo acontecem, muitas vezes, nas manifestações da cultura popular onde a percussão é a tônica da prática musical. Segundo Tanaka (2009) e Prass (2004), ambas investigaram as práticas educativas inseridas em escolas de samba, utilizando-se da etnografia para observação das rotinas de ensaio, configuração instrumental, os ritmistas, os mestres de bateria, os processos de ensino e aprendizagem e a representatividade dos valores e construções dos participantes. E, como resultante comum destes trabalhos, os processos de oralidade, imitação e repetição formam a base prioritária desses ensinamentos grupais. Nesta vivência, em espaços não institucionalizados educacionalmente também 5 Naipe de percussão: conjunto de instrumentos percussivos organizados no mesmo grupo. 6 Ala do batuque: conjunto musical constituído de instrumentos de percussão que acompanha um cortejo de maracatu. Ver em Lima (2007).

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se desenvolve processos de compartilha e colaboração que, para área de Educação musical, nos amplia a percepção de etapas formativas para o ensino de música. Os momentos de ensaios, os cortejos, as apresentações e a dinâmica dos encontros dos grupos como escolas de samba, maracatus, congadas, reisados etc. são inseridos na sonoridade dos diversos tipos de tambores, contemplando também a participação de várias pessoas que pertencem a uma comunidade, a uma agremiação, ou seja, a uma representatividade coletiva. 2.2 PRÁTICA PERCUSSIVAS NA CULTURA POPULAR A constituição da cultura percussiva no Brasil possui uma trama simbólica representada, principalmente, pelo instrumento tambor e as manifestações da cultura popular brasileira, assumindo, de acordo com a região, o período festivo e o estilo musical suas configurações sonoras, modelos e nomenclaturas específicas. Dentre essas representações a configuração artística é baseada em um enredo pelas manifestações da cultura popular através de grupos percussivos como, por exemplo: as Escolas de Samba, os Maracatus, os Cabocolinhos, as rodas de Capoeira, o Bumba-meu-boi, os Afoxés, os Grupos de Cocos, os Reisados, as Congadas e as Bandas de Fanfarra etc. Para Coopat (2012), esses grupos se constituem como agentes do ativismo social e em instituições da cultura popular, adaptadas às formas de se manifestar à dinâmica sociocultural e em novos estilos da modernidade. Através desse contexto cul-


tural, representado por toques, figurinos e personagens narram, em um calendário festivo, o entrelaçado simbólico das músicas em um fazer artístico. São o caso do samba, maracatus, afoxés e cabocolinhos, práticas culturais atuantes nas festas carnavalescas. Têm-se os reisados e bumba-meu-boi no período natalino e as bandas de fanfarras no período do desfile cívico no dia 07 de setembro. Desta forma, o calendário festivo brasileiro pode ser apresentado em três importantes ciclos: o carnavalesco (primeiro trimestre do ano), junino (junho) e natalino (novembro e janeiro). Para cada região brasileira é possível identificar uma manifestação popular a partir dos seus costumes, heranças, tradições, instrumentos musicais e dinâmicas culturais. Conforme os estudos de Lucas (2014): Os rituais do Reinado de Nossa Senhora, ou Congado, constituem uma das mais importantes expressões da religiosidade e da cultura afro-brasileira presentes em Minas Gerais. A cada ano, sob o comando dos tambores, das caixas e demais instrumentos, milhares de pessoas, das pequenas vilas à capital, cantam e dançam sua fé, prestando homenagens a Nossa Senhora do Rosário, aos seus antepassados e aos santos de sua devoção, sobretudo os negros, Santa Efigênia e São Benedito, reatualizando e recriando a memória ancestral. (LUCAS, 2014, p. 15)

Na percussão, há uma terminologia extensa que característica cada tipo de tambor, a saber: tambor árvore, tambor chacoalhado, tambor de lata, tambor de língua, tambor crioulo, tambor indígena, tambor de fricção, tambor com esteira, tambor de mão, tambor de tablas, tambor militar etc. Tambor de madeira: Nome de instrumentos feitos por pedaços de madeira que são total ou parcialmente escavados, geralmente, percutidos com “baquetas”. Após a escavação podem ser feitos furos ou cortes nas superfícies (os cortes são geralmente longitudinais). É encontrado em inúmeros tamanhos, sendo os grandes (entre 25’’ até 3m de comprimento) construídos com troncos de árvores escavados nos quais é feito um corte longitudinal, formando uma só boca (chamado “tambor de fenda” ou “tambor de lábio”) ou com 2 ou mais cortes longitudinais paralelos, formando “lâminas”, chamados “tambor de língua”. (FRUNGILLO, 2003, p. 328) Neste contexto, de acordo com Guerreiro (2000) o tambor representa “o mundo da percussão tão vasto quanto a variedade de ritmos, melodias e sonoridades de seus instrumentos” Em função dessa diversidade rítmica, de acordo com Rocha, podemos citar: A música brasileira possui uma diversidade rítmica muito grande

e imensa gama de instrumentos percussivos, em sua maioria, muito específicos de cada região. Assim, através da análise das características de um instrumento, é possível identificar seu local de origem. Há instrumentos usados em várias regiões brasileiras e outros que são conhecidos apenas na região onde são tocados. (ROCHA, 2005, p.3) Nos estudos de Guerreiro (2000), as atividades percussivas são marcadas, geralmente, pelo aspecto popular e da coletividade, permeando uma transmissão de saber através da oralidade, corporalidade e improviso. Uma das principais características da linguagem percussiva popular é a oralidade, a transmissão oral de conhecimento, que lhe confere o status de música popular, deixando-a definitivamente fora do pólo erudito. A linguagem percussiva é transmitida por observação e audição seguidas de imitação. Trabalha principalmente com a exploração do som e com a improvisação. (GUERREIRO, 2000, p. 271) Diante disso, Carvalho (2008, p.287) chama a “atenção para a arte percussiva porque ela obviamente desafia uma sensibilidade auditiva colonizada pela estética musical eurocêntrica. Sua reivindicação significaria, nesse contexto, a afirmação de um espaço público de expressão musical africana no Brasil”.

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Na cidade de Fortaleza, é possível perceber através das publicações e literaturas que as práticas percussivas estão presentes em pelo menos quatro formas de organizações na cidade: instituições religiosas, período carnavalesco (pré-carnaval e desfiles na avenida), universidade e escolas públicas. Conforme Guerreiro (2000), a ascensão da percussão popular começa a entrar em pauta das atividades sociais e exerce seu fascínio, anunciando a extrema diversidade desse mundo musical, típico das camadas populares dos grandes e pequenos centros. Nas instituições religiosas, segundo Viana Júnior (2000), através da pesquisa intitulada por “Os elementos rítmicos advindos da música dos cultos de Candomblé praticados atualmente em Fortaleza”, a primeira casa de Candomblé, no Ceará, foi o Ilê Ibá (Casa de Reza ou Feitiço) inaugurada por volta de 1967, situada no Bairro do Itaperi. Para o funcionamento das atividades de um terreiro a música possui um papel fundamental para realização das cerimônias, cultos, festejos e trabalhos religiosos. Viana Júnior (2000) aponta os atabaques denominados por rum, rumpi e lé, e o idiofônico, o agogô, um dos principais instrumentos que compõe o culto do Candomblé. Para cada ritmo executado há uma correlação direta para cada orixá cultuado, cabendo ao ritmo uma importância fundamental na celebração que constitui as cerimônias do Candomblé. No contexto das casas da umbanda, segundo Pereira (2000) pela pesquisa “A

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umbanda em fortaleza: análise dos significados presentes nos pontos cantados e riscados nos rituais religiosos” compreende-se os terreiros de Umbanda, organizaram-se em padrões com o auxílio do Espiritismo, passando então a se mesclar com suas práticas, defendendo essa “mistura” com o objetivo de torná-la legitimamente aceita, com o status de uma nova religião. A umbanda também trabalha com instrumentos percussivos nos seus trabalhos e cerimônias. Pereira (2000) também cita a Festa à Iemanjá que ocorre no dia 15 de agosto na Praia do Futuro, em Fortaleza. Esse encontro teve início no ano de 1967 e, atualmente, conta com diversos cortejos de terreiros e organizações diversas, como a União Espírita de Umbanda, Federação Espírita de Umbanda, Sindicato dos Umbandistas e Candomblecistas do Estado do Ceará, afoxés, terreiros da capital, zona metropolitana e interior e organizações diversas. Como apresenta Pereira, há nessa festa a participação de Afoxés que são grupos percussivos com características profanas, tendo os atabaques, agogôs e agbês como os principais instrumentos para realização do toque do Afoxé, o Ijexá. Atualmente, nesse campo religioso, realiza-se também uma perspectiva das práticas percussivas dentro de uma casa espírita7 em Fortaleza. Ressalta-se que

7 Vale ressaltar que no ano de 2016 a Casa espírita Casa da Caridade, no bairro Jangurussu, de periferia da cidade de Fortaleza, acolheu no seu projeto Casa da Música aulas de percussão para comunidade. O grupo conta com a minha regência, participação de 40 pessoas. As aulas possuem uma proposta artística e terapêutica. O grupo foi batizado por Ilé Anu pelo mestre de cultura Descartes Gadelha. A madrinha do grupo é Dona Isabel (in memoria) mãe de santo (umbandista). O grupo

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essa inserção não é voltada aos trabalhos religiosos, mas, sim, com uma concepção terapêutica e de aulas de músicas através da percussão. A partir do contexto carnavalesco, desde o ano de 2002 até os dias atuais, é possível perceber uma expansão acelerada e em grande quantidade na criação de grupos, eventos e movimentos percussivos em atuação. Segundo Schrader (2011) aconteceu uma proliferação da música percussiva na cidade de Fortaleza, na última década, ganhando destaque e estímulo, principalmente em função do período momino, com o surgimento de blocos carnavalescos com suas bandinhas de sopro, metais e percussão; e em alguns casos, grandes baterias com um elevado número de ritmistas. Para Schrader (2011) o aumento do número de agremiações carnavalescas que desfilam durante o período de carnaval, contribuiu para o incremento da atividade percussiva na cidade, possibilitando o acesso de jovens e crianças aos batuques e baterias dos maracatus e escolas de samba. No ano de 2017, atualmente, a cidade consta com 15 grupos de maracatus, 04 grupos de afoxés, 09 escolas de samba e 14 blocos que desfilam na Avenida Domingos Olímpio no período do carnaval. No pré-carnaval, com a contemplação de 58 blocos carnavalescos em 11 pólos espalhados por toda a cidade. Fonte: https://confiramais.com. br/carnaval-de-fortaleza-programacao/ acessado em 20 de abril de 2016. já realizou 10 apresentações, dentre elas, um desfile carnavalesco na Avenida Domingos Olímpio e conta com um repertório de 10 músicas para produção de um espetáculo percussivo.


É importante acrescentar que há na história da cultura carnavalesca e percussiva da cidade de Fortaleza a contribuição significativa e atuante do pintor e músico Descartes Gadelha como apresentado no início desse trabalho. Segundo Schrader (2011), para além do trabalho em artes plásticas, Descartes é responsável pela grande contribuição e ligação com as manifestações da cultura popular carnavalesca, principalmente a música percussiva, participando, incentivando, organizando, transformando e criando batuques de maracatus, baterias de escola de samba e grupos percussivos na cidade de Fortaleza/CE. Descartes Gadelha trabalhou e ainda trabalha incansavelmente na fundação de grupos de maracatus, compõe sambas-enredos para escolas de samba, loas para os Maracatus e defende com veemência a importância da música percussiva do Candomblé. As atividades de Descartes Gadelha como ritmista e difusor de conhecimentos percussivos não ficaram restritas a um único grupo. Várias agremiações carnavalescas, principalmente escolas de samba e blocos, tiveram o apoio e a influência das suas ideias artísticas, musicais e percussivas, fundando, organizando, criando alegorias, figurinos e muitas vezes tocando junto com a ala de ritmistas para dar suporte técnico e musical durante os desfiles de carnaval.

(SCHRADER, 2011, p. 145) Entende-se que essa presença da música percussiva em Fortaleza realizada através dos grupos sociais e religiosos é muito incentivada, realizada e conduzida pelas colaborações e participações do Mestre Descartes Gadelha. Todo trabalho percussivo desenvolvido por ele ganhou destaque no cenário carnavalesco da cidade e tornou-se referência “para a criação, organização e condução dos batuques das novas agremiações que começaram a surgir no início do novo milênio” Schrader (2011, p.155). Pode-se afirmar que Descartes Gadelha é um multiplicador da atividade percussiva na cidade de Fortaleza. A partir desses dados da pesquisa é notório perceber a escassez do ensino das práticas percussivas coletivas baseadas nas manifestações populares nos currículos acadêmicos universitários. Como constata Schrader (2011), não se observa atividades percussivas coletivas direcionadas para a formação de escolas de samba ou de grupos de maracatus. Atualmente, a realidade do curso de música – Licenciatura da UFC apresenta uma conquista das práticas percussivas no âmbito acadêmico. A disciplina de Percussão que, em 2006, era disciplina optativa do curso de música tornou-se de caráter obrigatória a partir de 2015 na atualização do Projeto Político Pedagógico do curso, apresentando as seguintes perspectivas no plano pedagógico: Como projeto de cultura-artística de caráter extensionista, vinculado à

Secretaria de Cultura Artística (Secult) da UFC existe ainda o Grupo de Música Percussiva Acadêmicos da Casa Caiada que funciona nas dependências da UFC e conta com a participação de alunos do curso de música, alunos de outros cursos e de toda comunidade. Este projeto é de extrema importância para o acesso às práticas percussivas de forma inclusiva e democrática, oferecendo instrumental percussivo amplo e diversos para atender aos participantes através de um ensino de percussão em coletivo e gratuito. O enfoque que contribui para este trabalho apresenta-se na possibilidade de pensar as práticas percussivas como um mediador de formação nos processos educacionais, compreendendo essas experiências carregadas de conhecimentos culturais, artísticos e musicais envolvidos em uma trama inspirada nas manifestações da cultura popular brasileira. CONCLUSÕES Este trabalho apresentou os saberes percussivos nas escolas públicas da cidade Fortaleza através do conjunto de atividades e sentidos atribuídos pelos sujeitos integrantes dos grupos de Maracatus e Banda Marcial-Show. Desta forma, contribuiu diretamente aos estudos da área da Educação Musical e Práticas Percussivas em coletivo. Através da pesquisa em campo, delimitei a investigação a partir de dois grupos de maracatus e uma banda marcial-show que ensaiavam nas escolas públicas da cidade por mais de 06 anos, trazendo como

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o objetivo analisar os saberes percussivos desses grupos. A investigação ocorreu durante o período de janeiro a julho de 2016, observando as principais atividades de ensaios desenvolvidas para as apresentações nos desfiles carnavalescos e campeonatos. O pressuposto central de construção para essa tese é que as práticas percussivas em coletivo são realizadas dentro de um contexto escolar em condições que, mesmo configurando-se como espaços de saberes através dos grupos de maracatus e banda marcial-show, não há, por parte da escola, uma articulação efetiva às atividades curriculares. Foi perceptível que mesmo com a presença de instrumentos percussivos, distribuições de “Kits percussivos” e modalidades curriculares para percussão nas escolas públicas de Fortaleza não há ainda profissionais direcionados à área e, principalmente, os grupos acabam por se utilizarem do espaço da escola apenas como uma relação que possibilite o uso do espaço físico à guarda dos instrumentos e aos ensaios para o desfile carnavalesco, no caso dos maracatus, e, às competições, no caso da banda marcial-show. Nas concepções teóricas para embasar a construção dessa tese a teoria da relação do saber de Charlot (2000) trouxe o direcionamento necessário para as análises partir das dimensões dos saberes epistêmico, de identidade e social emergidos diante das atividades (práticas percussivas em coletivo) e pelos sentidos atribuídos pelos sujeitos dos grupos. Dadas essas condições, o questio-

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namento central da pesquisa voltou-se para quais e como são realizados os saberes percussivos nos espaços escolares através dos grupos selecionados. E, com isso, o objetivo mais importante foi analisar esses saberes a partir das práticas percussivas identificadas e dos sentidos atribuídos pelos sujeitos no espaço escolar público. Diante da realidade dos grupos nas escolas selecionadas encontrei que os três grupos se apresentam como atividades artísticas independentes do currículo formal do ensino de música na escola, contrário ao que prevê a Lei 11.679/2008 sobre a obrigatoriedade do conteúdo de música na escola. Além disso, as produções, a constituição, o funcionamento e a manutenção do grupo são realizados pelos próprios líderes, a comunidade, estudantes da escola e, em determinado momento, contam com o acolhimento e auxílio da direção da escola. A comunidade do bairro e os estudantes da escola são os principais pilares de sustentação dos grupos. É notório que para os integrantes os grupos representam uma “escola”. Esta que não é a instituição formal de ensino (que inclusive a maioria do elenco é matriculada na escola formal), mas, sim, trazem o sentido de uma escola com que envolve a percussão através do ensino dos instrumentos, ensaios e produções artísticas. Uma “escola” que convive com os desafios constantes da música no espaço escolar. Desafios que ainda são entraves e problemas sérios onde muitas vezes foge do alcance de resolução des-

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ses grupos. Nesse percurso propõe-se a partir da concepção das epistemologias do sul por Santos (2010) a necessidade de repensar esse conjunto de atividades como saberes produzidos efetivados por relações sociais legítimas e válidas e que, a partir dos conhecimentos gerados por esses grupos desenvolvidos nos espaços escolares, constituem-se como saberes existentes na contextualização epistemológica do sul. Com base nisso, a pesquisa apresenta através das descrições e depoimentos coletados, que os ensaios rotineiros, o preparo ao carnaval e competições, aprender a tocar percussão e o ato de ensinar foram as principais atividades citadas pelos sujeitos em que a partir dessas as relações com o grupo constata-se que houve processo educacional, aprendizado musical (letramento e prática) e formação de contramestres. Dessa forma, foi importante perceber que os sentidos, principalmente, o termo “escola” dão o sustento da afirmação que há nesses grupos saberes percussivos, gerando mobilizações nas atividades executadas e proporcionando o desejo de aprender e ensinar através de uma prática musical em coletivo. Embora esses grupos, maracatus e banda marcial-show, possuam concepções artísticas diferentes como o repertório, as técnicas e a própria organização do grupo, foi perceptível a existência e permanência da produção de um saber baseado nas dimensões epistêmicas, de identidade e social que se apresenta no


desenvolvimento de suas atividades e, com isso, gera uma produção artística contínua e significativa com a participação dos estudantes da escola e da comunidade dos bairros. Diante das práticas percussivas em coletivos, conclui-se que os três grupos apresentaram os seguintes processos de aprendizagem na área musical através da percussão, sendo possível atribuí-los aos respectivos saberes. 1) Maracatu Nação Fortaleza: atividades de apreciação musical e conhecimento da cultura local – saber social; 2) Maracatu Nação Pici: a formação de contramestre e o conhecimento do manuseio instrumental – saber de identidade e 3) Banda de Metais e Percussão Solar: desenvolvimento da habilidade técnica e leitura de partitura – saber epistêmico. Diante dessa pesquisa, espera-se contribuir aos estudantes de música, instituições de ensino formal e às gestões educativas para reflexões e aquisições educativas à área a partir desses saberes que se constituem como processos valiosos e fundamentais aos propósitos em formação humana, musical, artística, cognitiva e cultural através das práticas percussivas. Assim, a tese afirma que as práticas percussivas em coletivo nas Escolas Públicas de Fortaleza realizadas através dos Grupos de Maracatus e Banda Marcial – Show é uma relação válida com um saber legítimo e relevante, definido nos termos das epistemologias do Sul de Santos e na teoria da relação com o saber. Esse saber é construído através

de um conjunto de práticas e sentidos através dos processos de aprendizagens pelas rotinas de ensaios, no ensino de música, na produção artística (desfiles e apresentações), formação de competências (mestres e contramestres) e a participação da comunidade. Assim, conclui-se como saberes construídos por sujeitos que se expressam musicalmente através da arte percussiva, batucando nos aprendizados de si mesmo (saber de identidade), da escola (saber epistêmico) e da Vida (saber social). REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO CARVALHO, José Jorge de. A tradição musical ioruba no Brasil: um cristal que se oculta e revela. In: TUGNY, R.; QUEIROZ, R. (Org.). Músicas africanas e indígenas no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.265 - 292 CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000. CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013. COOPAT, Carmen María Saenz; Mattos, Márcio. Agrupamentos da música tradicional do cariri cearense. Juazeiro do Norte: Quadricolor, 2012. FRUNGILLO, Mário. Dicionário de Percussão. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador. São Paulo: Ed.34, 2000. JÚNIOR VIANA, Gerardo Silveira. Os elementos rítmicos advindos da música dos cultos de candomblé praticados atualmente em Fortaleza. 2000. 63f. Monografia (Bacharel em Música). Curso de bacharelado em música. Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza. LUCAS, Glaura. Os sons do rosário: o congado mineiro do Arturos e Jatobá. 2ªed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. PRASS, Luciana. Saberes musicais em uma bateria de escola de samba: uma etnografia entre os Bambas da Orgia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. ROCHA, Éder O. Zabumba moderno. Vol.1. Recife: Nordeste, 2005. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010. SCHRADER, Erwin. Expressão musical e musicalização através de práticas percussivas coletivas na Universidade Federal do Ceará. 2011. 397f. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós- Graduação em Educação Brasileira. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. TANAKA, Harue. Diário de uma ritmista aprendiz. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009.

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A CULTURA TRADICIONAL E POPULAR DO DRAMA: UM RESGATE DAS DANÇAS E CANTOS EFETIVADO PELAS DRAMISTAS DO BAIRRO DE LAGOA REDONDA DA CIDADE DE FORTALEZA/CE Tânia Noemia Rodrigues Braga Maria Alice Tavares Vieira RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal mostrar a importância do resgate da cultura tradicional e popular do drama, enquanto patrimônio imaterial, efetivado através do Grupo Dramistas do bairro de Lagoa Redonda, da cidade de Fortaleza/CE. O trabalho desenvolve-se através de pesquisa bibliográfica, leitura de textos, sites e depoimentos das Dramistas da Lagoa Redonda. Enfocará aspectos referentes à conceituação de ‘drama’, ao histórico e sua gênese no contexto cultural, bem como se desenvolvem as atividades do grupo por meio de danças (ensaios) e aprendizagem das músicas, escolha de personagens, etc. e apresentação do espetáculo do drama. O trabalho introduz uma discussão sobre o Drama, com base nos pressupostos teóricos e práticos de autores (FERREIRA, 1996), (PONTES, 2011), dentre outros, e relatos das Dramistas da Lagoa Redonda, tendo como base a importância dessa prática como forma de expressão que 134

se efetiva através da participação das dramistas em espetáculos que trazem danças e cantos, tendo em vista divulgar a manifestação do drama no estado do Ceará. PALAVRAS-CHAVE: Cultura Popular e tradicional. Dramas. Resgate. 1 INTRODUÇÃO O Ceará possui um riquíssimo patrimônio no campo da cultura popular, sendo singular pela sua pluralidade gerada pelo seu hibridismo etnográfico, racial, social, religioso desde a sua formação. As ações culturais são elementos determinantes para mudança de comportamento de um povo, repassar os valores culturais aos mais novos tem sido cada vez mais difícil principalmente pelo avanço das novas tecnologias que muitas vezes se sobrepõe às tradições de nossa gente. O aumento da violência, as vulnerabilidades sociais, o uso de drogas lícitas e ilícitas, o tráfico de entorpecentes e a sensação de insegurança são outros fatores que contribui para o afastamento dos jovens e adolescentes das manifestações culturais. XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

Pensando assim nos surgiu uma inquietação: Como poderíamos atingir uma boa parcela da comunidade de Lagoa Redonda ao acesso à cultura popular? E, por intermédio das atividades do grupo ‘As Dramistas da Lagoa Redonda’ propõem resgatar a arte do Drama como uma linguagem de expressão artística capaz de comunicar ideias e emoções na qual as participantes, na maioria, idosas, se unem em torno da cultura dramista e encenam e cantam cantigas. Este coletivo se sente motivado por que nos encontros semanais se trabalha o desenvolvimento do pensamento crítico, a valorização da cultura, a formação, o fortalecimento de vínculos, possibilitando a descoberta de novos talentos, contribuindo para a afirmação da identidade cultural e a transmissão de valores, da diversidade, favorecendo o resgate do patrimônio imaterial local. Com essa dinâmica, pretende-se amenizar a situação de precariedade no âmbito da cultural e social a que os jovens e os idosos do bairro de Lagoa Redonda estão inseridos, uma vez que a área focal das ações do grupo está loca-


ESTE COLETIVO SE SENTE MOTIVADO POR QUE NOS ENCONTROS SEMANAIS SE TRABALHA O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO CRÍTICO, A VALORIZAÇÃO DA CULTURA, A FORMAÇÃO, O FORTALECIMENTO DE VÍNCULOS, POSSIBILITANDO A DESCOBERTA DE NOVOS TALENTOS, CONTRIBUINDO PARA A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL E A TRANSMISSÃO DE VALORES, DA DIVERSIDADE, FAVORECENDO O RESGATE DO PATRIMÔNIO IMATERIAL LOCAL.

lizada em uma região bastante vulnerável da cidade de Fortaleza. As atividades do grupo das dramistas de Lagoa Redonda se mostram como um dos instrumentos utilizados para redução dos danos e conflitos sociais, principalmente para proporcionar aos moradores da grande Lagoa Redonda uma convivência saudável e um desenvolvimento cultural. Outros fatores associados aos benefícios das atividades culturais são os estímulos aos processos criativos e cognitivos, promovendo o aumento do nível de conhecimento e capacidade de superação das dificuldades oriundas de conflitos da vida urbana, proporcionando melhor qualidade de vida e autoestima das dramistas, como protagonistas de uma cultura viva. Dessa forma pretende-se agregar valores, conhecimentos e vivências sobre a cultura popular e tradicional do Drama, despertando o sentimento de pertencimento dessa cultura, de forma que a mesma venha se perpetuar culturalmente pelas gerações vindouras.

mente através das gerações. Os dramas são espetáculos de variedades, em que se encenam pequenos romances com diálogos cantados, canções e bailados (BARROSO, 2000). De acordo com Pontes (2011) o drama é uma mistura de encenação e música cantada pelas dramistas (participantes do Drama). As dramistas cantam e dançam o bailado, acompanhadas pelos tocadores. O resultado de tudo isso é um conjunto de práticas que combinam representação dramática, indumentária e expressão corporal. Nesse contexto, Holanda (2015, p.60)) delimita o Drama em dramas cantados e dramas populares (comédias de dramas/pecinhas) e conceitua:

2.1 O DRAMA: CONCEITOS E HISTÓRICO

São pequenas esquetes nas quais os diálogos acontecem em forma de poesia cantada e, às vezes dançada (bailados) pelas próprias atrizes, conhecidas por dramistas, que se caracterizam de acordo com o tema apresentado. Não raro os cantos são realizados à capela, isto é, sem acompanhamento musical (HOLANDA, 2015).

Mulher dramista é aquela que participa de um coletivo chamado de um drama. Com base nessa ideia surge a seguinte pergunta: O que é um drama? O drama é uma manifestação folclórica comum na primeira metade do século XX. As participantes encenam e cantam cantigas que são passadas oral-

Em outras palavras, percebem-se que as temáticas das canções e encenações dos grupos em geral são situações do cotidiano, do trabalho, casamento, romances proibidos ou histórias reais ou não. Sempre com teor de comédia ou humor. (HOLANDA, 2015). O Drama pode ser considerado uma

2 DESENVOLVIMENTO

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tradição oral. Esses grupos espalhados em diversos pontos do Brasil apresentam muitos personagens em comum, porém, entre uma apresentação e outra as melodias se diversificam, assim como as letras cantaroladas sofrem mutações. As letras e melodias eram passadas oralmente ao longo dos anos, sendo comuns as canções semelhantes, mesmo com Dramas locais ou cidades diferentes (BARROSO, 2000; HOLANDA, 2015). De acordo com estudos realizados por Barroso (2000), Pontes (2011), Pontes (2014) e Holanda (2015), o Drama tem origem nas zonas rurais, composto na sua maioria por mulheres que buscavam burlar esse controle patriarcal e transformar em festa as apresentações que reuniram públicos diversos. Não se sabe bem a verdadeira origem do Drama acredita-se “que foi característica de uma época, na primeira metade do século XX”. (VEIRA; COUTINHO, 2002, p.75), porém sabe-se que essas tradições foram influenciadas pela vivência de uma época. 2. DRAMISTAS DA LAGOA REDONDA: GÊNESE, FORMAÇÃO E MANUTENÇÃO DO GRUPO O grupo nasceu da necessidade de expandir a cultura dos “Dramas” muito visto dentro das escolas, nas colheitas do café, farinhadas, moagem de cana-de-açúcar e em festejos como festas juninas, festas natalinas, quermesses, brincadeiras de roda, homenagens fa-

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COM AS MUDANÇAS TECNOLÓGICAS, A INTERFERÊNCIA DAS MÍDIAS, A FALTA DE APOIO DE PROJETOS CULTURAIS E A POUCA ADESÃO DESSA MANIFESTAÇÃO CULTURAL PELAS GERAÇÕES RECENTES, O DRAMA VEIO CAINDO NO ESQUECIMENTO AO LONGO DOS ANOS.

miliares (aniversários, batizados, casamentos etc.). Em sua autobiografia Maria Guiomar, relata que ela e Enóia foram as pioneiras no Drama do bairro de Lagoa Redonda. Após assistirem Dramas em outros locais da cidade de Fortaleza, e inspiradas escreviam e dirigiam os dramas. Realizaram a sua primeira encenação no ano de 1928, com o Drama intitulado o ‘Conto do Beija-flor’ (FERREIRA, 1996). XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

Por se tratar de um bairro bem bucólico, o Drama era encenado no terreiro (quintal) das casas onde era montado o “circo” feito de palha de coqueiro e madeira. Não existia energia elétrica no bairro naquela época, utilizava-se lampião ou lamparinas para iluminação (VIEIRA; COUTINHO, 2002). E os meios de transporte eram animais. Guiomar, ao longo dos anos, repassou a tradição do Drama as suas filhas, sobrinhas e parentes. Em meados de 1964 o grupo foi fundado, confeccionando seu primeiro figurino de papel crepom. Maria Alice conta que encenou o Drama influenciada por Guiomar e relata “Na época não tinha divertimento, não tinha televisão em nossas casas. Quando fazíamos o Drama o povo gostava, durava mais de quatro horas” (VIEIRA, 2017, entrevista). Por um longo espaço de tempo o grupo parou suas atividades, impulsionado pelas atividades diárias das pessoas, algumas se casaram, outras se mudaram para outros locais, dentre outros fatores. Com as mudanças tecnológicas, a interferência das mídias, a falta de apoio de projetos culturais e a pouca adesão dessa manifestação cultural pelas gerações recentes, o Drama veio caindo no esquecimento ao longo dos anos. Sendo somente reprisados por ocasião dos aniversários de Guiomar Tavares, dirigidos por ela com a participação de seus filhos, netos e parentes. Somente no ano de 2015, depois de 51 anos, o grupo se recompôs e retomou a arte do Drama no bairro de Lagoa Redonda e as participantes resolveram


dar continuidade à tradição. Com quase toda sua formação inicial e lideradas por Maria Alice, contemporânea de Guiomar Tavares, atualmente são chamadas “Dramistas da Lagoa Redonda”. Nos anos de 2016 e 2017, o grupo foi selecionado no Edital Ceará Natal de Luz da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, sendo reconhecido como o único grupo de Drama em atividade na cidade de Fortaleza. Hoje, o grupo conta com 18 integrantes (todas mulheres) de diferentes faixas etárias, incluindo as remanescentes do ano de 1964. São mulheres mais variadas idades, com idade entre 15 a 75 anos, de diferentes profissões, classes sociais e condições financeiras, ressaltando a importância da mulher dramista independentemente da idade. As Dramistas da Lagoa Redonda trazem a estética visual e as artes cênicas em suas apresentações que podem envolver paródias, comédias, histórias de amor, poemas cantados e outros. Com maquiagem e roupas de brilho transformam-se em índias, pescadores, baianas, caçadores, ciganas, empregadas e matutas, etc., num universo criativo de personagens e situações. O grupo “As Dramistas da Lagoa Redonda” atua na preservação da cultura tradicional e popular e se embasa nas ideias que possibilitem perspectivas de um futuro melhor, especialmente para as idosas que integram a manifestação, e se sentem motivadas pela alegria de recriar suas experiências cotidianas e com perspectivas de transmitirem a tradição cultural para outras gerações,

mantendo o drama vivo no tempo e nos espaços da comunidade. 3 CONCLUSÃO Para concluir, foi gratificante o meu próprio aprendizado e a ampliação de meu embasamento teórico a partir das leituras realizadas e aqui apresentadas, À guisa de conclusão, tomamos como referências as vivências das dramistas no decorrer do processo de resgate do drama e o resultado das experiências das participantes. Pois é importante compreender que o drama faz parte de uma construção coletiva que mistura danças, cantos, teatro, crenças, ideias, sentimentos extrapolando os limites do imaginário presentes nos momentos de interação do grupo. “Ser dramista é um resgate da minha infância, onde me recordo de todos os momentos dos ensaios acompanhados com instrumentos de sanfona. Isto me traz a juventude aflorando novamente, apesar dos meus sessenta anos de idade. Atuo com prazer e alegria. É um alimento físico, corporal e a alegria me contagia. É bom demais!” (Fátima Pessoa). “Ser dramista é trazer um pouco da infância em que me reuni com irmãs e primas para brincar de dramas. E esse resgate me faz bem e ter contato com outras pessoas nos deixa envolvida de emoções, par-

tindo do grupo e da plateia. É dar continuidade a essa cultura popular me deixa orgulhosa em dar a minha parcela de contribuição a arte do drama.” (Francisca Tavares). “Para mim ser dramista é uma festa, pois estou fazendo parte da cultura popular e me sinto feliz e orgulhosa de estar esse grupo. E gratificante interagir com pessoas alegres e divertidas nas apresentações.”(Francisca Almeida – Cineida). “O Drama faz parte da cultura popular e o nosso papel é o de resgatar essa tradição e que aos poucos poderá de esquecido”(Augusta Tavares). “Ser dramista é viver o ontem no hoje moderno. Saudosismo da infância. Podemos repassar essa cultura para a nossa juventude, pois ele não pode ficar esquecido, fazer acontecer esse momento tão especial para nós. Sinto orgulho de ser participante e contribui mais e mais com a arte do drama” (Lourdes Tavares). “Representar o passado no hoje que nós vivemos dessa arte tão linda e mágica. Importante ser dramista e me orgulho de fazer parte desse grupo, onde só damos valor as tecnologias e a modernidade” (Yasmim Tavares). “O drama representa a maturida-

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de dos mais idosos como viés de modernidade. É um resgate do passado trazendo para os mais novos que não viveram esse momento para que se encantem com as músicas, os figurinos e a forma de atuação das dramistas” (Ytrilene). “A arte sempre fez parte de minha vida. E não poderia ser diferente quando fui convocada para participar do drama. Dançar é viver. Não participei da formação inicial. Mas me entreguei por completo a essa expressão artística que transforma o nosso ser deixando-nos alegres e participativos. Ser DRAMISTA vai além da própria palavra, transcende em tudo: anima a alma e o corpo. Representar personagens diferentes como se fossemos nós mesmas. E maravilhoso! Além de mostrar a importância da arte para uma comunidade através das apresentações do drama” (Tânia Noemia). E para finalizar os depoimentos sobre o nosso grupo a mestra e coordenadora Maria Alice resume o que é ser dramista: “É estar representando um personagem e reviver os momentos de prazer e alegria que o drama traz para todas que fazem parte desse grupo. As dramistas representam vários papéis que nos faz sentir diferen-

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tes e únicas. A cultura do drama aconteceu para ocupar o meu ócio e das demais do grupo além de me sentir útil como ser humano.

tura dramista, podemos resgatar o drama como forma de expressão cultural na comunidade de Lagoa Redonda. 4 REFERÊNCIAS

Sei que estou contribuindo para a manutenção da cultura popular para que o drama não caia no esquecimento. Quando estou representando me sinto feliz esqueço de todos os problemas do cotidiano. A arte do drama me leva para o meu passado quando eu tinha 13 anos representando as personagens. Hoje com 69 anos de idade, dançando o drama me sinto como aquela criança de 13 anos, é como se o tempo não tivesse passado, sendo protagonista de minha própria história nesse momento da representação dos papéis. Quando estamos representando os nossos papéis ficamos com autoestima elevada e nos transformam em seres mais humanos e felizes e bem com a vida” (Maria Alice, mestra do grupo As dramistas da Lagoa Redonda). No que tange às intenções deste trabalho, constatei que o seu principal objetivo foi alcançado. De fato, a partir da análise da temática trabalhada foi possível perceber que com o engajamento das mulheres “livres, libertas pela arte” em torno da cul-

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BARROSO, O. Ceará uma cultura mestiça. Ceará: 2000. Disponível em: http://digitalmundomiraira.com.br/Patrimonio/CearaCulturaContextos/Diversificado/Ceará%20 -%Uma%20cultura%20%mestiça.pdf. Acesso em 26 de out. 2017. FERREIRA, G. T. Lembranças de mim. Fortaleza: [s.a], 1996. HOLANDA, F.J.V. Os dramas cantados em Guaramiranga – Ceará: memória, identidade e convívio. 2014. 205 f. Tese (Doutorado) – Curso de Doutorado em Artes, Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. PONTES, M.A. O drama em si: histórias e memórias de mulheres dramistas nas comunidades de Tucuns, Pindoguaba e Poço de Areias em Tianguá-Ce. Fortaleza: Secult, 20011. _______, M.A. O que é ser mulher dramista? CONTRAPONTO: Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI. Teresina, v.3, n. 1, agosto de 2014. VIEIRA, S.S., COUTINHO, M.M.F. Pássaros que cantam, árvores que acalantam: Lagoa Redonda, ontem e hoje – documentário. Fortaleza: Seri&a, 2002. 100 p.


CORDELÍRICAS NORDESTINAS: VOZES QUE CANTAM, CONTAM E ENCANTAM Alexandre Ferreira dos Santos11 Érica Conceição Silva Lima22 RESUMO: Este breve artigo relata a experiência ocorrida entre 2012 e 2013 com a produção do documentário Cordelíricas Nordestinas e que teve desdobramentos em 2016 com a formatação da série audiovisual homônima. 1 INTRODUÇÃO Cultura popular é uma expressão que caracteriza um conjunto de elementos culturais específicos da sociedade, de uma nação ou região. E caracteriza-se como um conjunto de manifestações que são criadas por um grupo de pessoas e que necessita de uma participação ativa nestas manifestações para que efetivamente ela possa existir. Em outras palavras, é a cultura feita pelo povo e para o povo. Uma considerável parte da cultura popular é transmitida através da oralidade, de geração a geração. A Cultura Popular se configura em diversas nuances de acordo com as regiões onde se desenvolve, ganhando aspectos próprios e dinâmicos, 1 Graduado em Comunicação Social, Especialista em Artes Visuais e Mestre em estudos da Mídia pela UFRN 2 Graduada em Comunicação Social (UFRN) Especialista em Gestão Cultural (UFRPE), Mestra em Gestão de Processos Institucionais(UFRN)

esse processo sociocultural abrange, entre tantos outros, crenças, artes, hábitos, tradições, usos e costumes e folclore. Dentro dessa vastidão de elementos formadores da identidade cultural do povo brasileiro, está profundamente enraizada a Literatura de Cordel, uma espécie de poesia popular impressa e divulgada em folhetos ilustrados com o processo de xilogravura, expostos ao povo, amarrados em cordões, estendidos em pequenas lojas de mercados populares, em barracas de feiras livres, recitado em saraus poéticos ou difundido através dos tradicionais meios de comunicação como rádio e televisão. O cordel em sua origem traz a particularidade da tradição oral e se desenvolveu no nordeste brasileiro, sobretudo adotado pela população mais carente e analfabeta que através dos poetas populares que disseminavam seus versos de forma oral. A respeito do cordel, ANDRADE, 2004 é citado por SILVA, 2007: O cordel é uma forma poética rica, complexa e viva, que exprime uma mentalidade, uma visão de mundo popular. Suas narrativas são histórias criadas mais para o ouvido do que para os olhos, ou seja, sua recepção pelo público pressupõe o canto,

a recitação ou a leitura em voz alta, feita por alguém situado no meio de um círculo de ouvintes que acompanham atenta e coletivamente o desenrolar das aventuras. (ANDRADE, 2004 apud SILVA, 2007). Mas foi graças a criação da imprensa que os folhetos foram formatados como os livretos com capas que utilizam as técnicas de xilogravura que são gravuras feitas à mão e entalhadas em madeira, quase sempre manufaturadas pelo próprio cordelista. Desde o seu surgimento aos dias atuais muita coisa mudou mas a essência do cordel continua a mesma. Com o advento das mídias eletrônicas (Rádio, Cinema, TV e Internet), o cordel ganhou um novo espaço para difusão. Neste sentido, o audiovisual, o cinema e a televisão têm cumprido um papel importante na salvaguarda e divulgação desta autêntica manifestação cultural brasileira. Aliás, em 19 de setembro de 2018, a literatura de cordel, foi reconhecida pelo Conselho Consultivo do IPHAN como Patrimônio Cultural Brasileiro. Este breve artigo relata a experiência ocorrida entre 2012 E 2013 com a produção do documentário Cordelíricas Nordestinas e que teve desdobramentos em 2016 com a formatação da série audiovisual homônima.

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CORDELÍRICAS NORDESTINAS Cordelírcas Nordestinas é um documentário produzido por uma equipe potiguar tem como tema a Literatura de Cordel no Nordeste. A Produção foi patrocinada pelo Ministério da Cultura. Nesta produção a literatura de cordel ganha destaque especial pois a obra retrata a poesia popular, reunindo depoimentos de poetas e pesquisadores sobre diversos aspectos que envolvem a Literatura de Cordel. O documentário faz um passeio poético, o cordel é apresentado em todas as suas formas de expressão: declamado, escrito no repente dos violeiros, no aboio e na embolada. O caminho é repleto de versos, poéticas e depoimentos que levam a refletir sobre as diversas nuances dessa arte. Para guiar esse passeio, os produtores do vídeo foram em busca das vozes e vivências de quem produz e valoriza a Literatura de Cordel no Nordeste. Leandro Gomes de Barros fez o cordel no passado João Martins de Athaide também foi conceituado mas só que o cordel da gente se encontra modernizado. José Ribamar (Caraúbas - RN) O documentário Cordelíricas Nordestinas, produzido pelo coletivo de produtores independentes Caminhos Comunicação & Cultura, foi originalmente patrocinado com recursos do Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel do

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Ministério da Cultura, na edição 2010, que homenageou o poeta Patativa do Assaré. O documentário foi finalizado em 2013 e em 2016 se tornou também uma série audiovisual composta por 14 episódios de curta duração, com três minutos cada. O filme e a série Cordelíricas Nordestinas têm como objetivo principal contribuir com a valorização da Literatura de Cordel do Nordeste brasileiro, através de uma linguagem lúdica e didática que apresenta o trabalho de poetas e pesquisadores que se destacam no segmento da poesia popular, sobretudo no Rio Grande do Norte, muito embora conte com as participações de poetas de Pernambuco, Ceará e Paraíba. O Cordel que se caracteriza como uma arte popular caracterizada por uma sequência de versos que se encadeiam para contar uma história, no documentário, essa arte é retratada com o objetivo de valorizar a riqueza das raízes populares brasileiras de maneira lírica. O documentário destaca a figura do poeta sertanejo e os diversos aspectos que compõem a Literatura de Cordel. A tradição do cordel, as normas técnicas, a métrica, a poética, entre outros aspectos são evidenciados através de depoimentos de cordelistas e também de pesquisadores da cultura popular com foco no cordel nordestino. Na produção os próprios cordelistas definem a literatura de cordel: “O cordel é poesia, é cultura popular, é história narrativa, é a arte de

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rimar, cordel é coisa da gente, é canção, rima e repente, tudo num mesmo lugar”. José Acaci (Parnamirim-RN) Essa descrição em forma de versos do cordelista José Acaci, resume de forma lírica as formas de expressão que a literatura de cordel abrange, um dos aspectos retratados na obra. Cordelíricas Nordestinas aborda também a história do cordel, uma arte originária da trovadoresca Europa medieval, que há muito tempo foi incorporada e ressignificada, constituindo-se numa das identidades do povo sertanejo. Para o cordelista e pesquisador Crispiniano Neto, um dos entrevistados do documentário, o cordel é o primeiro exemplo de comunicação multimídia por abranger poesia, musica, performance de representação dramática e artes visuais através da xilogravura, o que segundo Crispiniano eleva o cordel à categoria de arte popular. Para pesquisadora Julie Cavignac “dois critérios parecem determinantes na definição de uma literatura popular. Considerada como a expressão ingênua da alma do povo , ela se distingue da literatura erudita, antes de tudo, pelo seu público e pela sua forma” (CAVIGNAC, 2006. p.69). O período de produção, incluindo pré-produção, filmagens, edição e finalização durou cerca de dois anos. Foram entrevistados mais de 30 nomes representativos do cordel do Rio Grande do Norte e de outros estados nordestinos. Entre eles, os paraibanos


Medeiros Braga, cordelista que publicou vários livros e mais de 80 títulos em cordel, e Bráulio Tavares, que além de compositor, também é cordelista e pesquisador dessa arte. Guiando o passeio, os poetas potiguares Antônio Francisco, um dos cordelistas de grande destaque no Nordeste, e Crispiniano Neto, que escreve versos há cerca de 20 anos, falam a partir de suas vivências sobre as características do cordel nordestino. No Rio Grande do Norte, além de Natal e Mossoró, foram realizadas filmagens em Parnamirim, Acari, Serra do Mel, Sítio Novo e Venha-Ver. Além da gravação de depoimentos, foram acompanhados também eventos que fazem parte do universo dos cordelistas, cantadores de viola e repentistas. Em Mossoró, a equipe gravou durante o I Festival de Cantadores do Nordeste, evento que reuniu alguns dos melhores cantadores do Nordeste para apresentação de versos de improviso. A narrativa do documentário foi construída através do diálogo com as diversas vozes populares que compõe a produção audiovisual. Uma dessas vozes é a do poeta Antônio Francisco da cidade de Mossoró que se apresenta através de versos: “Meu nome é Antônio Francisco de Melo Nasci onde às vezes neblina e não chove em mil novecentos e quarenta e nove num berço pequeno, pacato e singelo o chão Mossoró foi meu reino e

castelo meu mundo encantado, meu norte fecundo de gosto me deu este gosto profundo de andar por aí de cidade em cidade regando poesia e plantando amizade e esperança, em todo o lugar do mundo Antônio Francisco (Mossoró-RN) CONCLUSÃO De acordo com o que dissemos anteriormente os meios de comunicação social tem um papel fundamental na difusão da cultura popular e a literatura de cordel tem evoluído juntamente com os meios eletrônicos de comunicação. O cordel teve sua era de ouro nas décadas de 1940 e 1950 mas assim como ele evoluiu com a chegada da imprensa, ele também esteve e continua presente no rádio, na televisão e na internet. Produzir o documentário Cordelíricas Nordestinas e mais tarde a série audiovisual, foi antes de tudo contribuir com a difusão cultural desta que é uma das mais autênticas formas de expressão popular. O documentário audiovisual dá vez e voz aos poetas e poetisas, faz suas vozes chegarem mais longe, contribuindo com a valorização da Literatura de Cordel do Nordeste brasileiro, através de pequenas narrativas que apresenta o trabalho de poetas e pesquisadores que se destacam no segmento da poesia popular. Acreditamos na força popular e no poder da comunicação e avaliamos

como positiva a experiência de produzir produtos audiovisuais dialógicos que divulgam aspectos importantes de nossa cultura. Apesar dos avanços tecnológicos e da modernização do cordel, ele ainda traz suas características originais da tradição oral e o contato com os fazedores do cordel, sejam os declamadores a, os cantadores, emboladores, aboiadores ou poetas de bancada, nos faz acreditar cada vez mais na força transformadora da cultura. São pessoas simples mas grandiosas no saber e na criação que se alimenta da sabedoria popular. Cordelíricas Nordestinas é uma produção plural e uma justa homenagem aos cordelistas do Nordeste e do Brasil. REFERÊNCIAS CAVIGNAC, Julie. A literatura de cordel no Nordeste do Brasil. Natal, RN: EDUFRN Editora da UFRN, 2006. CEARÁ, Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social. Antologia de Literatura de Cordel. Fortaleza, 1978. Trabalho elaborado pelos pesquisadores do Projeto Literatura de Cordel. SILVA, Gonçalo Ferreira da. Vertentes e evolução da literatura de cordel. Brasília: Ensinamento, 2011. CORDELÍRICAS NORDESTINAS, filme produzido pelo Coletivo Caminhos Comunicação & Cultura. Duração: 50 minutos , HDTV , COR. 2013.

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HISTÓRIAS QUE OS ROSTOS TRILHAM: UMA ETNOGRAFIA DESENHADA RESUMO: Esta experiência etnográfica é um esboço das minhas conversações com quatro moradores da Comunidade do Trilho, quatro falas que me levaram a desenvolver e refletir sobre traduções intersemióticas, partindo da oralidade-memória para a escrita alfabética e o desenho. Este ciclo de traduções transmodais liga-se a um modo de perceber a antropologia; aquela com uma atenção voltada aos processos de tradução, entre os distintos meios semióticos (oral, escrita, plástico) que colocam como desafios técnico, epistêmico e ético o estatuto da produção do conhecimento. Desenvolvi estes trabalhos na série que chamei de “História que os Rostos Trilham” (2017)1. Neste artigo, descrevo os processos destas traduções, visando a uma reflexão sobre o que pode ser uma etnografia desenhada. INTRODUÇÃO: DESCENDO AO TRILHO A Comunidade do Trilho está situada ao lado da Via Expressa no tramo do Bairro de Aldeota, Fortaleza, Ceará. A comunidade passa por processos de desapropriação de 1 A série compreende 4 desenhos tipográficos, de 51cm x 36cm. A obra foi exposta nos seguintes espaços: Mostra Experimentações na Galeria do Instituto Cultural de Artes da UFC do 4 ao 13 de julho de 2017; Exposição/ Fórum Arte Descolonial do 09 a 30 de setembro de 2017, Sobrado José Lourenço, Fortaleza- CE; -Exposição do 68º Salão de Abril Sequestrado do 03 de outubro a 27 de outubro, Galeria Sem Título Arte-CE. As peças originais da série pertencem aos moradores do Trilho.

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suas casas, devido ao projeto do governo estadual, VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos), que visa a unir os bairros de Parangaba a Mucuripe.2 Atualmente, poucas famílias ficaram com suas casas; estando em meio a um bairro nobre, os moradores vivem um processo violento de gentrificação. A minha travessia, com os moradores, começou em junho de 2017. Com o intuito de conhecer suas histórias, passei a visitá-los toda semana. Para reconstruir imageticamente suas memórias, pretendia inicialmente pegar fotografias dos moradores, para ver e traduzir a história da comunidade, antes das mudanças advindas com o VLT. A primeira casa que visitei, por indicação, foi a de Dona Edinelsa, que gentilmente escutou as minhas palavras, porém não pôde me mostrar fotografias, por não tê-las. Indicou-me que as únicas imagens que possui eram recortes de jornais, que guardou, sobre os conflitos da desapropriação. E percebendo, quiçá, meu desconserto, convidou-me para ir à missa de domingo, pois lá eu poderia conhecer outros moradores do Trilho e com eles conversar. No primeiro encontro com o chão da comunidade, consegui perceber também

outras particularidades. Junto com Dona Edinelsa, percorri parte do Trilho, e comecei a recriar um mapa mental do lugar. A comunidade vai desde a avenida Santos Dumont até a avenida Padre Antônio Tomás. É possível dizer que as casas que restam têm duas caras, uma que dá para a rua do Trilho, outra que dá para a rua paralela, Marechal Rondon. No centro, há uma Igreja de Nossa Senhora das Graças e uma pequena praça. Aos arredores, prédios de luxo com infraestrutura, que não foram afetados com o VLT.

2 O projeto VLT atinge 22 bairros, causando a remoção de famílias. As obras começaram em 02/04/2012 e tinham, inicialmente, previsão final estimada em dezembro de 2013. Como parte das obras para a Copa de 2014, o VLT representava a maior intervenção urbana, com 12,7 km de extensão, sendo 11,3 km de superfície e 1,4 km em elevado.

DESENVOLVIMENTO: CONVERSAÇÕES

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Imagem 1: Meu Mapa mental da Comunidade do Trilho.

Nas semanas seguintes, visitei o casal Dom Antônio e Dona Fátima e, depois, a Dona Josefa. Em ambos casos, quando so-


licitei fotografias não obtive sucesso, pois, como a Dona Edinelsa, não possuíam. Foi assim que meu plano de catar fotografias, para traduzir as histórias, cessou. Agora, lançava-me ao projeto de escutar atentamente as falas, para depois traduzi-las em letras, escrita alfabética, como a etnografia o faz, por meio dos textos. Um texto etnográfico constituiria a tradução entre culturas, a minha e a de meus interlocutores, porém percebendo e levando a cabo as diferentes perspectivas em jogo. Tal como pontua Clifford (1986, p.11), “as metáforas predominantes na pesquisa etnográfica têm sido a observação- participante, a coleta de dados, e a descrição cultural, todas elas pressupõem um ponto de vista externo —observando, objectificando, ou, de alguma forma próxima, ‘lendo’ uma realidade dada”. Contudo, esta metodologia teria mudado, na medida em que “as culturas não [seriam] “objetos” científicos. A cultura, e as nossas perspectivas sobre “ela”, [seriam] produzidas historicamente, assim como ativamente contestadas” (CLIFFORD, 1986, p.18). Assim, poder-se-ia compreender o campo da etnografia como configurado por traduções não objetivas das culturas, em que o antropólogo é um ser com autoridade em determinar o que é relevante ou não, num processo de seleção de informação. Para Asad (1986, p.162), o antropólogo tradutor seria análogo a um psicanalista, pois é ele quem tem a autoridade final em determinar os significados dos objetos e desta forma viraria “o autor real” deles3. 3 Nos termos de Asad (1986, p.161): In short, the work of the social anthropologist may be regarded as a highly complex act of translation in which author and translator collaborate.

A cada semana, eu ia escutando as falas-memórias dos meus interlocutores do Trilho e decidi entrar na conversação não como um observador externo, e sim como parte dela. Metodologicamente, eu estava presente com eles. Todos os dias, depois de nossas conversas, chegava em casa e escrevia o que ouvi, porém admitia, de forma libertadora, que minhas traduções do mundo deles eram provisionais, parciais (Clifford, 1986, p.7) e continham uma dívida4 com as histórias originais. Por meio de meus textos (traduções das memórias dos outros), eu aceitava que apenas podia evocar a presença daquelas histórias. “Evocar” em lugar de “representar” liberta a etnografia de suas mimeses e a seu inapropriado modo de retórica científica que vincula “objetos”, “fatos”, “descrição”, “induções”, “generalizações”, “verificações”, “experimento”, “verdade”, e conceitos parecidos, a exceção de invocações vazias, sem ter ponto de comparação com a experiência de campo da etnografia ou a de escrever etnografias (Tyler, 1986, p.130) Viveiros de Castro (2014) irá ainda substituir o termo “evocação”, por “equivoA more precise analogy is that of the relation between the psychoanalyst and his subject. The analyst enters the private world of the subject in order to learn the grammar of his private language. If the analysis goes no further it is no different in kind from the understanding which may exist between any two people who know each other well. 4 Tomando de empréstimo Derrida, “a tradução torna-se a lei, o dever e a dívida, mas dívida que não se pode mais quitar” (2006, p.25). Ou seja, a tradução não poderá trasladar o original, apenas invocá-lo como presença. A tradução não é nem uma imagem nem uma cópia.”

É POSSÍVEL DIZER QUE AS CASAS QUE RESTAM TÊM DUAS CARAS, UMA QUE DÁ PARA A RUA DO TRILHO, OUTRA QUE DÁ PARA A RUA PARALELA, MARECHAL RONDON. NO CENTRO, HÁ UMA IGREJA DE NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS E UMA PEQUENA PRAÇA. AOS ARREDORES, PRÉDIOS DE LUXO COM INFRAESTRUTURA, QUE NÃO FORAM AFETADOS COM O VLT

cação”, pois sempre há uma equivocação na tradução, e recomenda apelar a uma “equivocação controlada”, no sentido em que, numa metáfora, se pode dizer que andar é como cair de modo controlado. A isto, adiciono a citação que Derrida (2006, p.61) faz de Dalloz: “o risco de um erro ou de uma imperfeição tem por contrapartida a perspectiva de uma versão autêntica,

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que implica um perfeito conhecimento das duas línguas, uma abundância de escolhas judiciosas e, portanto, um esforço criador”. Pergunto-me, então, quais seriam as imperfeições controladas que posso me permitir para traduzir as histórias de Dona Fátima, Dom Antonio, Dona Josefa e Dona Maria do Carmo? De que forma traduzir as histórias dos outros que nos são contadas? Ainda continua sendo uma pergunta sem resposta fechada. Para os etnógrafos, os diários e os textos ocupam um lugar privilegiado, mas estes recursos são limitados para traduzir algumas coisas, não contempladas no texto tradicional (a escrita alfabética euroamericana, marcada, dentre outras coisas, por coordenadas tais quais escrever da direita para esquerda, de cima para baixo). Levo em conta que a escrita alfabética carrega uma fama de fiabilidade, da qual expressa seu poder, mas tons de voz, tato, imagem e cheiros ainda se apresentam como ruído importante para nossas traduções. Questiono, até que ponto será possível transcriar esses sistemas? Como é possível traduzir estas experiências levando a sério, até onde der, o desafio de operacionalizar traduções transmodais? Com o tempo, percebi que um texto tradicional não dava conta da entextualização das memórias do Trilho. Uma mídia limitada para a tradução de histórias com as quais eu estava lidando. Asad (1986, p.159), em sua reflexão sobre a tradução na antropologia (britânica), coloca uma questão importante: “a etnografia apresenta ‘o texto’ como forma repre-

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Imagem 2: Josefa Endereço atual: Rua Marechal Rondon 450 e 453

Imagem 3: Maria do Carmo Monteiro Bezerra Endereço atual: Rua do Trilho 3870 e Rua Marechal Rondon 447

Imagem 4: Antonio Vieira Filho. Endereço atual: Rua Marechal Rondon 305

Imagem 5: Maria de Fátima Silva Vieira Endereço atual: Rua Marechal Rondon 305

sentacional do seu discurso, porém nem sempre esta seria uma boa alternativa para traduzir uma cultura estrangeira, na medida em que, em certas circunstâncias, uma performance dramática, a execução de uma dança, ou tocar uma peça musical poderiam ser qualificados como meios mais aptos. Estes não seriam produções do original e nem meras interpretações: antes são instâncias transformadas do original, e não representações autoritárias textuais dele”.

Assim, na procura por uma transcri(a) ção5 adequada, proponho uma etnografia desenhada, na qual a memória, que é traduzida em fala, seja entextualizada em letras, para serem re-traduzidas em desenhos de rostos. Cheguei a esta diretriz após meu encontro com Dona Maria do Carmo, foi com ela que percebi o pouco que se enxergava das histórias do Trilho. Todos haviam me

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5 No sentido que Rattes (2017) confere, ao lidar com as traduções dos textos míticos dos Mbya.


OS RETRATOS SÓ PODEM TENTAR TOCAR AS IMAGENS MENTAIS QUE OS MORADORES DO TRILHO GUARDAM NA MEMÓRIA. OS ROSTOS DELINEADOS COM LETRAS SÃO HISTÓRIAS QUE ESCUTEI DELES EM ENTREVISTAS E CONVERSAS; SÃO MEMÓRIAS QUE SE MISTURARAM COM AS MINHAS E ASSIM SE CONTAMINAM TAMBÉM COM QUEM SOU EU. COM MEU PORTUGUÊS AINDA SE DESENVOLVENDO, TENTEI LER AS MEMÓRIAS DE MEUS INTERLOCUTORES, OS SEUS RELATOS DE ALEGRIAS, TRISTEZAS E LUTA.

dito dela, por ser a mulher mais idosa que morou na comunidade e que levava na memória o nascimento do Trilho. Dos 72 anos de vida, morou 62 anos na comunidade. Com voz baixa, mas firme e lúcida, Dona Maria do Carmo contou-me detalhes da luta da comunidade. Percebi que os meus conceitos e chão linguístico eram muito diferentes dos dela. Era um limite que dificilmente podia entender, não por causa da língua, e sim pelas experiências profundas da alteridade que eu, no máximo, só conseguia imaginar. O meu entendimento do que significa “moradia”, “luta”, ou os sentidos da “saudade”, diferiam dos dela. O que significa uma casa, quando ela é um lugar que sempre está na incerteza de ser derrubada e, contradizendo meu conceito, ela não assegura a proteção dos que a habitam? Afecções, como esta, me colocavam no que o filósofo Flusser chama de situação de fronteira6, em que eu, tradutora, me exponho ao nada, no sentido em que, no meu repertório de conceitos, não encontro analogias parecidas com as que Dona Maria do Carmo me explicava de modo paciente.

6 O que Flusser (1966, p.168) nomeia de situação de fronteira: é nessa situação que o ser se revela [...] o amor, a doença, a derrota, ou, mais radicalmente, a morte. Nessas situações, o ser é exposto ao nada. O chão da realidade é tirado de debaixo dos pés, e é dessa forma que se pode transcendê-la. Pois sugiro aos senhores que a situação da tradução é exatamente uma destas situação, embora sem a dramaticidade das demais situações de fronteira. Por ser uma situação corriqueira, por podermos vivenciá-la todos a toda hora, permite uma análise cuidadosa.

UMA ETNOGRAFIA DESENHADA Assim, fiquei mais apta a traduzir através das imagens tipográficas. Para desenhar as histórias, foi necessário primeiro fazer fotos dos rostos, gerar uma versão digital em preto e branco dos retratos, ressaltando os contrastes de luzes e sombras. Após, foram impressas em folhas A3 e expostas a contraluz via uma lâmina de vidro, para, enfim, serem usadas como base do desenho manual das histórias. Os relatos dos moradores foram gravados e transcritos nos retratos, porém algumas das histórias escritas não são legíveis, pois formam parte das sombras / altos contrastes de luz da fotografia. Este fenômeno é, justamente, a tentativa de querer delinear as experiências deles, porém vejo este desejo como a manifestação de uma impossibilidade. Os retratos só podem tentar tocar as imagens mentais que os moradores do Trilho guardam na memória. Os rostos delineados com letras são histórias que escutei deles em entrevistas e conversas; são memórias que se misturaram com as minhas e assim se contaminam também com quem sou eu. Com meu português ainda se desenvolvendo, tentei ler as memórias de meus interlocutores, os seus relatos de alegrias, tristezas e luta. A memória deles é a obra de arte, que meu desenho talvez só consiga apontar, pois pouco foi o que eu consegui enxergar com minha caneta: mas, talvez, seja também esta uma

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questão do cerne da antropologia, em meio à tradução cultural. CONCLUSÕES: PERGUNTA ABERTA O quanto podemos ler da história do outro? Deixo esta pergunta em aberto. Considero que, no contexto social e político, é pertinente se deter para questionar o tema, que, por sua vez, involucra empatia e uma urgente necessidade de olhar para a alteridade. Fazendo um último diálogo com o pensamento de Flusser e a tradução de culturas na antropologia, deixo a questão: Se a tradução não fosse possível, os homens se movimentariam em seus diversos universos linguísticos em forma de mônadas. Eles não conheceriam nada acerca da limitação de seu ponto de vista específico [...] Todos viveriam em um mundo fechado em si, mas em última instância significativo. A possibilidade de tradução aniquila esse isolamento e esse refúgio autossuficiente de universos paralelos. (GULDIN, 2010, p.38) Assim, a tradução nos liberta para o conhecimento de outros chãos linguísticos, porém cabe nos questionar como vamos a assumir esse papel. Para Clifford (1986, p.14), o etnógrafo, como personagem de ficção, está no centro do palco. Eu diria, ele é o autor do roteiro, quem fazendo uso do poder da escrita, faz suas escolhas e trans-

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cria suas verdades através do texto. Contudo, “Como são as verdades que levaremos em conta das culturas? Quem tem a autoridade de separar ciência de arte? Realismo de fantasia? Conhecimento de ideologia?” (CLIFFORD, 1986, p.25). “A etnografia é ativamente situada entre poderosos sistemas de significado. Ela coloca suas questões nos limites das civilizações, culturas, classes, raças e gêneros. ” (CLIFFORD, 1986, p.2) E segundo Tyler (1986, p.138): “Nenhum objeto de qualquer tipo precede e restringe a etnografia. Ela cria a seus objetos próprios em seu trabalho e o leitor fornece o resto”. Por conseguinte, os tradutores de culturas (tanto o etnógrafo-tradutor como o leitor-tradutor), carregam em seu domínio da escrita o peso da realidade e o privilégio da fantasia. Lidar com este paradoxo, penso que, é a inefável tarefa do tradutor. Um ser que tenta ler um enigma, porém, que é parte dele de modo inevitável.

ethnographic allegory In Writing culture: The poetics and politics of ethnography, p. 1-26, 1986.

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UM ESTUDO SOBRE A LENDA DA CARIMBAMBA NO BAIRRO VILA UNIÃO FORTALEZA – CEARÁ Poliana Santos Braga Comissão Cearense de Folclore Especialista em Cultura Folclórica Aplicada RESUMO As lendas são fatos narrativos fantasiosos que sofrem alterações ao longo do tempo, talvez estas modificações aconteçam por conta da sua forma de repasse, que se dar através da tradição oral, geralmente quem conta vai acrescendo novas perspectivas e pontos de vistas, bem como parte de seus misticismos interiorizados. Em sua maioria servem para explicar fatos reais, mas que geralmente estão envoltas em mistérios e crenças em torno dos elementos que a compõe. A lenda da carimbamba é um uma lenda da cidade de Fortaleza, do Bairro Vila União, tomamos conhecimento através de uma música explorada em sala de aula durante o curso de especialização em cultura folclórica aplicada do IFCE. Pretendemos através deste trabalho sondar a que ponto esta lenda ainda está presente no imaginário da população residente no bairro que a originou, bem como registrá-la para que continue fazendo parte do acervo cultural da oralidade do povo da cidade de Fortaleza. Palavras-Chave: Lenda; Oralidade; Carimbamba

INTRODUÇÃO Desde os tempos mais remotos, as lendas fazem parte da história da humanidade, que viam, neste tipo de manifestação oral, uma forma de manter vivas as crenças, os mitos, os valores e tradições de seus povos. Não se sabe ao certo como surgem as lendas, na sua maioria são acompanhadas de fatos e acontecimentos comuns, parecendo existir um núcleo verdadeiro, acrescentados de outros fatos recriados, são narrativas que enfeitam e caracterizam o lugar, acompanhadas de mistérios, assombrações e medo, sempre ilustradas por cenários exóticos e de curta extensão. A lenda Carimbamba, restrita ao município de Fortaleza, corre risco de desaparecer nas brumas do tempo, haja vista que na época de nossa visita nem os moradores mais antigos da localidade, souberam relatar ou se quer já ouviram falar no assunto. O estudo da cultura popular é algo de muita importância. O trabalho do estudioso é de difícil realização, ainda mais em um país cujas proporções são continentais. Faz se necessário pesquisar nas regiões que ainda preservam esses costumes. Investigar de forma criteriosa antigos registros para que o material recolhido transforme-se em eficiente material de estudo.

Este trabalho de pesquisa tem a pretensão de resgatar e registrar a lenda da Carimbamba, como parte integrante da cultura oral do povo de Fortaleza, servindo inclusive para consultas para pesquisas futuras de outras pessoas que por ventura sejam portadores de interesse congênere. A aplicação de recursos metodológicos mistos para a confecção deste trabalho, foi necessária dado a importância do resgate desta lenda para o legado cultural oral da cidade, incorporados hoje como Patrimônio Imaterial do povo de Fortaleza. Se fez necessário também a realização de pesquisa bibliográfica com o intuito de consultar livros que abordassem o tema, como livros com estudos mais contemporâneos, revistas especializadas, artigos, e sítios na internet etc. A pesquisa de campo foi também um recurso metodológico utilizado para a coleta de dados empíricos, além do registro fotográfico, audiovisual, e entrevistas estruturadas e semi-estruturadas. LENDA E NARRATIVA POPULAR Todo ser humano traz uma história consigo como forma de passar informações através do tempo, algo que ouviu dos familiares mais antigos, ou de pessoas sem parentesco. Por muito tempo grupos utilizavam a narrativa oral para passarem seus conhecimentos, costumes, crenças, mitos e

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valores a serem preservados. Na verdade a grande dificuldade encontrada hoje é de manter essa tradição dos fatos sendo narrados como antigamente, os ensinamentos vão ficando esquecidos na memória dos mais velhos sem que haja uma renovação de uma geração para outra. De acordo com Câmara Cascudo (1984), na obra Literatura Oral no Brasil, a denominação aconteceu em 1881 com Paul Sebillot, criando a expressão “La litteature oral comprend ce qui, por ler peuple quin e lê pás, resplance lês production literaires”, sendo uma literatura limitada aos provérbios, adivinhações, contos, frases feitas, orações e contos, ampliando-se e alcançando novos horizontes bem maiores tendo como características a persistência pela oralidade. Há duas fontes permanentes e vivas mantendo essa corrente literária, a primeira exclusivamente oral (história, canto, dança de roda cantadas e de divertimento coletivo, ronda e jogos infantis e cantigas de embalar). A outra fonte é a reimpressão dos antigos livrinhos (Espanha/Portugal), que são convergência de motivos literários compreendidos entre os séculos XIII ao XVI, como Donzela Teodora, Imperatriz Porcina, Princesa Magolana, Doze Pares da França e outros, apesar desses folhetos serem assinados, esses conteúdos pertencem à literatura oral. De origem letrada, lenda vem do latim “legere” que significa ler. Segundo Afonso Arinos no seu livro Lendas e Tradições Brasileiras (1966), o nome lenda foi criado nos mosteiros quando eram feitas as leituras 148

NA VERDADE A GRANDE DIFICULDADE ENCONTRADA HOJE É DE MANTER ESSA TRADIÇÃO DOS FATOS SENDO NARRADOS COMO ANTIGAMENTE, OS ENSINAMENTOS VÃO FICANDO ESQUECIDOS NA MEMÓRIA DOS MAIS VELHOS SEM QUE HAJA UMA RENOVAÇÃO DE UMA GERAÇÃO PARA OUTRA.

diárias sempre às refeições, essas leituras tinham como tônica, o exagero das boas qualidades dos santos ou benfeitores e o reforço da maldade dos vilões, o tempo encarrega-se de somar outros exageros, assim na hora da refeição ouvia-se episódios cada vez mais fantástico, ligando definitivamente à idéia de fantasia a lenda. Podemos então definir lenda, como sendo em exagero de um fato qualquer somado a imaginação popular, tal narrativa pode sofrer alterações e deformações continuamente ao longo do tempo. As características da lenda são basicamente duas: a precisão geográfica e a anonimato. Com a precisão geográfica é possível chegar ao local ou a região onde o fato aconteceu. A segunda o anonimato, é possível a identificação dos personagens, no entanto não chegaríamos ao nome de quem deu a origem ao processo de exageração da lenda. São classificadas de acordo como são transmitidas, do ponto de vista religioso divide-se em sagradas e profanas, quanto à forma ou tipo de comunicação é feita com versos e prosas. Sua vitalidade encontra-se na força da tradição oral transmitida de geração a geração. Para Câmara Cascudo “As lendas são episódio heróico ou sentimental com elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral e popular, localizável no espaço e no tempo. De origem letrada, lenda, legenda, “legere” possui características de fixação geográfica e pequena deformação e conservam-se as quatros características do

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conto popular: antigüidade, persistência, anonimato e oralidade. É muito confundido com o mito, dele se distancia pela função e confronto. O mito pode ser um sistema de lendas, gravitando ao redor de um tema central com área geográfica mais ampla e sem exigências de fixação no tempo e no espaço...” Este tema central serve de base para uma exageração, no caso da lenda da Carimbamba, a história está centrada no desaparecimento de uma moça chamada Rosabela, talvez esta história tenha sido criada com a finalidade de originar medo nas crianças. Segundo relato do Sr. José Maria Silva (Zé do Búzio), tempos atrás numa época em que Fortaleza ainda não tinha iluminação pública em todos os bairros, era costume dos moradores próximo a lagoa do Opaia tomar banho em noites de lua cheia, muitas crianças também acompanhava os adultos nesta espécie de lazer noturno, algumas sem o consentimento dos pais, deduzimos desta forma que possivelmente o medo dos filhos se afogarem, fez surgir à lenda cuja finalidade era evitar que crianças e moças, desacompanhadas freqüentassem a lagoa. A professora Miriam Carlos, da cadeira de folclore da Universidade Estadual do Ceará reforça em seu depoimento, dizendo “Fortaleza possui muitas lagoas, e o fato poderia ter acontecido em qualquer uma delas, a verdade é que a lagoa da Opaia estava em evidência e talvez por isso, tenha sido associado a ela o acontecimento da lenda”.

Nem os moradores mais antigos, entrevistados como é o caso do Sr. Zé do Búzio, sabe relatar a lenda, ou mesmo do que se trata, nos conta apenas que ouviu dizer que na lagoa do Opaia, havia uma grande cobra que comia as pessoas e um jacaré que assombrava as crianças mas foi morto pelas moradores. Quanto à cobra na verdade nos parece outra lenda urbana comum a maioria das comunidades que circundam as muitas lagoas de Fortaleza, já que de concreto nada foi visto ou confirmado por ninguém. A Carimbamba, tal como outras aves de hábitos noturno que pouco podem ser vistas, mas podem ser escutadas muito bem, povoam de imaginação, preconceitos e superstições a mente das pessoas. Pode ter sido este o ponto de partida para a criação desta lenda, já que o seu canto “Amanhã eu vou” é uma onomatopéia que tinha função hipnótica. A Carimbamba é uma lenda cantada da tradição do folclore nordestino. Sua magia esta no poder encantatório da música, do canto e da voz. Vem da lagoa o canto que ecoa “amanhã eu vou, amanhã eu vou”, inspirando também a artista e cantores da época, há inclusive um registro fonográfico na voz de Luiz Gonzaga, que gravou em 1951, a música de autoria de Beduíno e do próprio Gonzaga, “amanhã eu vou” que retrata em síntese o panorama desta lenda. Amanhã eu vou Beduíno e Luiz Gonzaga Era uma certa vez Um lago mal assombrado

A noite sempre se ouvia A carimbamba cantando assim Amanhã eu vou, amanhã eu vou Amanhã eu vou, amanhã eu vou, eu vou Amanhã eu vou, amanhã eu vou Amanhã eu vou, amanhã eu vou, eu vou, eu vou A carimbamba, ave da noite Cantava triste lá na lagoa Amanhã eu vou, amanhã eu vou E rosabela, linda donzela Ouviu seu canto e foi pra lagoa E rosabela, linda donzela Ouviu seu canto e foi pra lagoa A taboa laçou a donzela Caboclo dágua ela levou A carimbamba vive cantando Mas rosabela nunca mais voltou Amanhã eu vou, amanhã eu vou Amanhã eu vou, amanhã eu vou, eu vou Amanhã eu vou, amanhã eu vou Amanhã eu vou, amanhã eu vou, eu vou, eu vou BREVE HISTÓRICO DO BAIRRO VILA UNIÃO O local do presente estudo é o bairro Vila União que foi fundado pela Prefeitura de Fortaleza em 23 de Agosto de 1940. Seu nome foi concebido pelo Dr. Manoel Sátiro, que adquiriu as terras de uma família que morava no local e loteou, colocando a ven-

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da. Como o Dr. Sátiro, tinha vindo da cidade de União, hoje conhecida como Jaguaruana, deu o nome de loteamento Vila União. O progresso do bairro veio de forma lenta, não havia luz elétrica e a água usada era proveniente de cacimbas e da lagoa que também abastecia o bairro. A lagoa era chamada de lagoa do paia, passando depois a ser chamada de Lagoa do Opaia. Transporte não havia, e quem fosse ao centro de Fortaleza, por exemplo, tinha que pegar o transporte no Benfica ou na Aerolândia, algum tempo depois a empresa Nossa Senhora de Fátima, começou a operar no bairro com linha regular. A estrada de ferro que passa pela Vila União ligando a Parangaba ao Mucuripe foi construída em 1942, os nomes das ruas iniciais possuíam nomes de santos, que depois substituídos por outros nomes. Um fato histórico que marcou com muita tristeza o bairro foi a marcha dos “pracinhas” rumo a Segunda Grande Guerra Mundial, os mais antigos lembram do fato com uma ponta de tristeza. A pracinha do bairro foi inaugurada no dia 08/12/1968, dia consagrado a Nossa Senhora da Conceição. Alguns moradores mais antigos são conhecidos por seus feitos próprios e são mais fáceis de identificá-los pela alcunha que receberam que pelo próprio nome de batismo, é o caso do Sr. Zé do Búzio “O informador de ruas”, e o falecido João birro “contador de mentiras” Francisco Jacinto de Sousa “Caboclo do Olho Cego” e Jair Morais pelo jeito folclórico de cantador.

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A LENDA DA CARIMBAMBA NO BAIRRO

DIZIAM QUE ERA UMA LINDA MOÇA DE CABELOS LISOS E COMPRIDOS, PELE MORENA E OLHOS AMENDOADOS, DONA DE UMA BELEZA ANGELICAL E TODOS A CHAMAVAM PELO NOME DE ROSABELA, SUA FAMÍLIA VIVIA NUMA CASA SIMPLES, PORÉM MUITO ACONCHEGANTE. TINHAM CONHECIMENTO QUE ALI PRÓXIMO NA LAGOA DO OPAIA, HABITAVA UMA AVE QUE ATRAIA PARA O FUNDO DA LAGOA ATRAVÉS DE SEU CANTO MÁGICO, MOÇAS QUE DE ALGUMA FORMA LHE DESPERTAVA O INTERESSE.

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O local de ocorrência desta lenda é o bairro Vila União, localizado em Fortaleza - Ceará, onde residiam uma jovem e seus pais. Diziam que era uma linda moça de cabelos lisos e compridos, pele morena e olhos amendoados, dona de uma beleza angelical e todos a chamavam pelo nome de Rosabela, sua família vivia numa casa simples, porém muito aconchegante. Tinham conhecimento que ali próximo na Lagoa do Opaia, habitava uma ave que atraia para o fundo da lagoa através de seu canto mágico, moças que de alguma forma lhe despertava o interesse. Rosabela era alertada sempre por seus pais que quando ouvisse o canto da Carimbamba resistisse e fosse para o mais longe possível a fim de evitar este fatal encontro que poderia dar fim a vida da jovem. Rosabela, no entanto ignorou os avisos e passou a ouvir com freqüência o canto triste da Carimbamba, acordava durante a noite e ficava olhando para a lagoa até o nascer do dia. A mãe da moça, observando esse costume e preocupada com o comportamento da filha, tratou de mandá-la para passar uma temporada na casa de familiares que residiam próximo do mar. Rosabela se encantou com o mar, e suas belezas, esqueceu daquele hábito de acordar durante a noite, agora dormia tranqüila, as ondas e o azul do mar lhe faziam muito bem. Ao retornar para casa, Rosabela parecia outra pessoa, brincava, sorria alegremente e dormia sem interrupções. Mas numa certa noite, Rosabela teve um sonho agitado, acordou meio sonâm-


bula, ouvindo o canto da Carimbamba, e saiu em direção a lagoa, já passava de meia noite, a lua cheia clareava toda a lagoa, a moça não se dava conta do que fazia e pouco a pouco como se estivesse encantada ia entrando na lagoa, cada vez mais fundo até desaparecer coberta pelas águas da lagoa. Quando o dia amanheceu os pais de Rosabela não a encontraram em casa e temendo o que podia ter acontecido foram até a lagoa procurar por ela, mas não encontraram, todas as noites iam com freqüência ao local ver se Rosabela aparecia por lá, passaram muitos dias sem saber notícias da moça, até que numa noite de lua cheia, resolveram voltar a lagoa para procurá-la, a medida que se aproximavam da lagoa, ouviam o canto da Carimbamba, cada vez mais perto, até que ouviram uma segunda voz que na hora reconheceram, Rosabela e Carimbamba agora cantavam juntas no fundo da lagoa. Numa releitura da lenda da Carimbamba, no poema Feitiços de Carimbamba e Paixão de Rosabela, Natanael Gomes de Alencar personifica a Carimbamba como a própria imagem do mal, expulsa do céu e transformada em ave, o Carimbamba vingava-se atraindo com seu canto jovens moças donzelas e as aprisionava no fundo da lagoa. Adicionou a lenda um personagem novo, Quincas, um jovem de origem também humilde, mas com a mesma coragem dos heróis gregos, que prometeu a família de Rosabela resgatá-la do fundo da lagoa. Descobriu que a única forma de entrar naquele mundo da Carimbamba era aprisionando por determinado tempo, o

sol, a lua e a terra durante um eclipse, usou para isso uma flecha que uniu os três astros, criando um portal mágico que trazia a tona o submundo de Carimbamba, e assim Quincas lutou e derrotou Carimbamba, salvou Rosabela e casou se com ela, livrando ainda aquela localidade para sempre dos domínios da ave agourenta. CONSIDERAÇÕES FINAIS Acreditamos ter conseguido realizar nosso objetivo, que era o registro da lenda Carimbamba, que consideramos importante para a preservação da tradição oral da cidade de Fortaleza. A lenda da carimbamba chegou ao nosso conhecimento durante uma aula do curso de especialização em cultura folclórica aplicada no IFCE. Realizamos algumas visitas ao local de origem da lenda, o bairro Vila União, onde conversamos com vários moradores, e alguns não sabiam relatar ou ouviram falar da lenda. A investigação de fatos folclóricos é sempre muito difícil, pois uma dos principais metodologias aplicadas para obtenção de resposta é a entrevista in loco, que se revelou insuficiente, restando-nos apenas o que foi encontrado em pesquisas de cunho bibliográfico. Em caso entendemos e acreditamos ter cumprido o objetivo precípuo deste trabalho que era o registro desta lenda contribuindo para a perpetuação desta através da manutenção da oralidade, sendo esta uma das principais características das lendas.

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O USO DAS ARTES DA TECELAGEM E DO BORDADO COMO INSTRUMENTOS DE RESISTÊNCIA FEMININA Solange Maria Soares de Almeida1 RESUMO: Na literatura clássica, variadas são as narrativas que apresentam lãs, fios, fusos, tecidos e demais elementos ligados à tecelagem capazes de atribuir poderes, algumas vezes, extraordinários, às mulheres que os utilizam. Há diversas passagens nas epopeias gregas que apresentam o tecer como uma tarefa de valor, capaz de conferir fama e glória a quem a executa. Na Ilíada e na Odisseia, de Homero, Penélope e Helena surgem fortemente ligadas à imagem da tecelã, caracterizando-se como exemplos perfeitos de personagens mulheres que usam o tear como arma contra a opressão. A proposta deste artigo é apresentar o uso das artes da tecelagem, na antiguidade clássica, e do bordado à mão livre, na contemporaneidade, como instrumentos de resistência feminina. Para isso, serão discutidas algumas cenas das famosas personagens homéricas, Penélope e Helena, e apresentada parte da história das arpilleras. A arpilleria foi bastante utilizada pelas mulheres, no Chile, como 1 Pesquisadora na área de literatura clássica e artes manuais contemporâneas. Doutoranda em Letras, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGLetras, com área de concentração em Literatura Comparada, pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Integrante do Grupo de Estudos da Comédia Aristofânica - GECA e do Grupo Iluminuras - Literatura e Bordado, ambos pela UFC. solangemsalmeida@gmail.com

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forma de denunciar as atrocidades cometidas pela ditadura militar (1973-1990). No Brasil, desde 2013, o Coletivo Nacional de Mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), inspirado pelo poder de transgressão dessa arte, tornou o bordado instrumento de denúncia. O que antes era uma forma de subsistência é agora uma ferramenta de luta. TECELAGEM E ANTIGUIDADE CLÁSSICA Na literatura clássica, existem diversos mitos, presentes nas epopeias, nas tragédias, e até mesmo nas comédias, que apresentam elementos ligados à tecelagem: Quem não conhece o mito das três irmãs que presidem o nascimento, a vida e a morte e que têm como seus instrumentos de controle a roca e o fio? Cloto tece o fio, Láquesis cuida de sua extensão e direção e Átropos o rompe ao final de cada existência. E o que dizer sobre Ariadne e Medeia? Será que Teseu e Jasão teriam sido heróis sem a ajuda dessas mulheres? O fio de Ariadne possibilita a vitória de Teseu sobre o temido Minotauro e Jasão deve às artes da feiticeira Medeia a conquista do velo de ouro. Há também o mito de Procne e Filomela, na tragédia Tereu de Sófocles, e reescrita posteriormente em Metamorfoses de Ovídio. Impedida de falar, após ser violada e ter a língua mutilada pelo cunhado, Filomela usa uma nova voz ao tecer, com

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fios purpúreos sobre um alvo tecido, toda a violência perpetrada por Tereu e fazer com que esse tecido chegue às mãos de sua irmã Procne. Essa mesma voz é utilizada por Aracne para narrar as traições de Zeus em uma disputa com Atena, deusa das fiandeiras e das tecedeiras. Vendo que sua desafiante passara dos limites, a deusa destrói seu impecável trabalho e a fere com uma naveta. Desesperada, Aracne enforca-se, mas é impedida de morrer por Atena, que a transforma em uma aranha para que ela passe o resto dos seus dias a fiar e a tecer. Também nas epopeias homéricas, há diversas passagens que apresentam o tecer como uma tarefa valorosa e que confere fama e glória às mulheres que a executa. Na Odisseia, de Homero, Penélope é vista fazendo uso do tear como arma contra a opressão. Diante da longa ausência de Odisseu, o destino de Penélope em Ítaca torna-se instável. Vendo-se pressionada por cento e oito pretendentes a tomar o lugar de seu marido e rei, a astuta mulher cria um ardil a fim de adiar essa decisão: Jovens, porque já não vive Odisseu, me quereis como esposa. Mas não insteis sobre as núpcias, conquanto vos veja impacientes, até que termine este pano, não vá tanto fio estragar-se, para a mortalha de Laertes herói, quando a Moira


funesta da Morte assaz dolorosa o colher e fizer extinguir-se. Que por Aquiva nenhuma jamais censurada me veja por enterrar sem mortalha quem soube viver na opulência (Od.19.141-147). Então, em um grande tear, Penélope passa a tecer durante o dia e a destecer durante a noite a veste mortuária do sogro. As ações de fazer e desfazer o tecido são emblemáticos para essa instabilidade: a rainha governa o destino de Ítaca “analisando” sua trama a cada noite. Assim, na atividade têxtil noturna da “mente feminina mais poderosa entre as mulheres gregas”, para usar o modo de Odisseu destacar a inteligência extraordinária de sua esposa, Penélope toma as rédeas de sua própria vida. Transformando uma atividade que deveria ser comum e corriqueira em um modo de resistir ao destino que lhe fora imposto. Numa conversa com Odisseu, ainda disfarçado de mendigo, a tecelã confessa seu estratagema: Dessa maneira falei, convencendo-lhes o ânimo altivo. Passo, depois, a tecer nova tela mui grande, de dia; à luz dos fachos, porém, pela noite desteço o trabalho. Três anos isso; com dolo consigo embaiar os caios. Mas quando o quarto chegou, das sazões no decurso do estilo, ao se acabarem os meses, e os dias, por fim, se alongarem, por intermédio das criadas, cachorras sem pingo de medo, fui surpreendida por eles, que muitas censuras

me fazem, tendo-me visto obrigada a acabar o trabalho, por força (Od.19.148-156). Apesar de Penélope ter sofrido uma violenta interrupção na sua trama, é possível afirmar que seu plano teve sucesso, pois adiou a escolha de um dos pretendentes por quase quatro anos, tempo suficiente para que Odisseu retornasse e retomasse o seu reino. Mas não é somente Penélope que nos é apresentada por Homero como uma grande tecelã. Na Ilíada, Helena maneja o tear com maestria, quando a deusa Íris vai ao seu encontro para avisá-la do duelo entre Páris e Menelau: Íris a Helena, de braços bonitos, foi dar a notícia, tendo assumido as feições da cunhada Laódice, esposa do grande chefe Helicáone, filho do justo Antenor, a mais formosa e elegante entre todas as filhas de Príamo. Foi encontrá-la na sala, sentada no tear, quando um duplo manto tecia de púrpura. Nele bordava os combates que os picadores troianos e aqueus de couraça de bronze, por sua causa, travavam sob o ímpeto de Ares violento (Il.3.121-128,). As narrativas tecidas por Helena podem ser comparadas às narrativas orais do próprio Homero, pois ambas relatam os mesmos fatos de maneira diferente. A tecelagem propiciava às mulheres uma forma de romper com o silêncio a elas imposto. Na Odisseia, assim como ocorre na Ilía-

da, na sua primeira aparição, no Canto IV, verso 120ss, a personagem entra em cena acompanhada de criadas que lhe oferecem instrumentos para tear como: uma roca de ouro e um cestinho rodado, todo de prata, áureas eram, no entanto, as bordas. Foi precisamente este que a dedicada Filo ofereceu a Helena, provido de fios elaborados, sobranceira fulgia a roca, aparelhada de violáceo velo. Acomodada na poltrona, Helena descansou os pés na banqueta (Il.4.131-136). Esses elementos assim apresentados fazem com que relacionemos a personagem à imagem da tecelã. Adiante, Helena acrescenta aos presentes de hospitalidade ofertados a Telêmaco uma veste tecida por ela mesma: Chegados à câmara onde estavam guardados os tesouros, Menelau selecionou uma taça de duas asas e pediu que seu filho Megapentes apanhasse uma cratera de prata. Helena dirigiu-se às arcas onde estavam guardados os vestidos que ela mesma confeccionara com todo o esmero. Helena, a divina entre as mulheres, tomou um deles, o mais bem trabalhado –, era vaporoso, emitia raios de estrela. Ela o estendera embaixo dos outros. Juntos atravessaram o palácio para o lugar em que se encontrava Telêmaco (Il.14.101-110).

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O vestido é entregue pela própria rainha com a recomendação que seja usado pela futura esposa de Telêmaco no dia de seu casamento e que até a data ele seja confiado à guarda de Penélope e ainda acrescenta, ciente do tesouro que tem nas mãos: “Este presente, querido filho, deverá gravar em tua memória o nome de Helena” (versos 125-126). Com esses versos postos na boca de personagem, Homero afirma que a mulher pode alcançar glória e fama através do trabalho de tecelagem. Outra questão importante é o uso do verbo “tecer” (ὑφαίνω-huphainô) nas epopeias homéricas. “Tecer” tanto é usado em sua forma literal, como “tecer vestes”, ou de forma metafórica, como “tecer uma astúcia” (Canto IV, 678) ou “tecer um dolo” (Canto V, 356). Essa dubiedade do verbo confere ao trabalho de tecelagem um duplo resultado: um palpável (tecer vestes), outro metafórico (tecer tramas). Esse silêncio imposto às mulheres precisa ser transformado em algum tipo de fala, seja ela oral ou visual, como já vimos em algumas passagens comentadas aqui. Assim como na epopeia homérica a tecelagem pode ser considerada uma forma de resistência feminina, nos dias atuais há o uso do bordado à mão livre. BORDADO E CONTEMPORANEIDADE Para este estudo, o bordado escolhido foi a técnica das arpilleras. Em espanhol, arpilleras é um tecido grosseiro, geralmente, estopa, juta ou outro tipo de fibra similar. Em português, seria serapilheira, palavra

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pouco usada que possui o mesmo significado. No início, essa arte era executada em pedaços de sacos de mantimentos, que, após a lavagem, eram cortados em seis partes e distribuídos entre as bordadeiras. Originada em Isla Negra, no Chile, a arte das arpilleras servia como forma de subsistência para as mulheres da região, e, durante os dias sombrios da repressão militar no país, como uma potente arma política. Gritos de luta e de luto foram costurados pelas mulheres do subúrbio de Santiago com as roupas dos seus desaparecidos e espalhados pelo mundo, desafiando o silêncio imposto pelo regime de Pinochet e denunciando as diversas violações de direitos humanos cometidas contra aqueles que se colocavam contra o governo. Uma das grandes curadoras e entusiastas da técnica, a folclorista Violeta Parra declarou que “arpilleras são como canções que se pintam”. Através de um trabalho antes invisível, as chilenas protagonizaram a resistência contra a ditadura. Arpilleras tornou-se sinônimo de transgressão. Inspiradas na determinação das suas criadoras chilenas em transgredir, em todos os sentidos, o papel feminino na sociedade, mulheres de várias nacionalidades: peruanas, espanholas, inglesas, irlandesas e brasileiras aprenderam essa técnica, que incorpora elementos tridimensionais e retalhos de tecido aplicados sobre suporte de juta. Desde então, a linguagem e a arte de fazer arpilleras têm inspirado outras mulheres no mundo, que continuam a documentar, através da costura, tanto suas experiências vividas quanto suas respostas a abusos de direitos humanos.

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No Brasil, desde 2013, a técnica tem sido resgatada pelo Coletivo Nacional de Mulheres, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Através de oficinas, mulheres atingidas por projetos hidrelétricos, das cinco regiões do país, utilizaram a costura para contar as violações cometidas na construção de barragens. De acordo com a última estimativa da Comissão Mundial de Barragens, realizada em 2000, foram construídas duas mil barragens no Brasil, que provocaram a expulsão de um milhão de pessoas de suas próprias casas. Dessas, 70% não receberam nenhum tipo de indenização. Foram biografias inteiras alagadas pelo discurso do desenvolvimento. Desenvolvimento para quem? Inúmeros direitos humanos são negados durante o processo de construção de uma barragem. Os atingidos não têm direito à informação, à memória e à terra. As mulheres, que já sofrem com a opressão de gênero, são as mais afetadas pelas situações de miséria e desestruturação social, familiar e individual. Para essas, as violações são ainda maiores, pois há uma ampliação dos casos de assédio sexual, tráfico de mulheres, prostituição e estupro, por exemplo, com a chegada de milhares de operários nos pequenos municípios que abrigam os canteiros de obras das hidrelétricas. Em 2008, com o início da construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, Porto Velho registrou um aumento geral nos índices de violência. De acordo com o relatório da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Cultu-


rais e Ambientais (DHESCA), em dois anos o número de estupros cresceu 208%. Por isso, como forma de denunciar esses graves crimes contra as mulheres atingidas por barragens, a técnica das arpilleras vem sendo resgatada e difundida país afora pelo Coletivo Nacional de Mulheres, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). O bordado tem-se tornado a voz dessas mulheres violadas e silenciadas. Cleidiane Vieira, que faz parte da coordenação do MAB-Pará, explica que um dos resultados do trabalho com as arpilleras é o fortalecimento na organização das mulheres, assumindo o papel de protagonistas de fato e de direito: O trabalho das arpilleras tem possibilitado às mulheres se expressarem. Muitas não conseguiam, tinha dificuldade de falar, então através das arpilleras tem sido um trabalho interessante porque as próprias mulheres conseguem bordar as violações que sofrem – os sentimentos – as questões políticas, de como é a realidade da construção das barragens. Fazendo uso da força e da potência dos bordados, as denúncias podem ser expandidas. Há mulheres de todas as regiões do Brasil contando suas histórias e sua luta contra as violações dos direitos humanos. Os tecidos bordados pelas mãos destas mulheres farão a “costura” de região para região. Na luta permanente pelo direito à informação, à memória e à terra são

muitas as ferramentas: palavras, lãs, fios, teares, tecidos, arpilleras. Será que alguma caneta gravaria tão perfeitamente as dores dessas mulheres quanto uma agulha? Ao invés da tinta, a linha, ao invés da escrita, o bordado. O projeto brasileiro “Arpilleras: bordando a resistência” visa transgredir o papel da costura, que historicamente serviu para reforçar o lugar imposto às mulheres: dentro de casa. Para fortalecer este sentimento de luta, lembro o poema de Consuelo Lins: Tentaram nos convencer que éramos divinas E nos negaram os bens da terra Tentaram nos convencer que éramos santas E nos negaram o prazer da vida Tentaram nos convencer que éramos escravas E nos negaram a liberdade Agora nos falam que somos mais competentes E ganhamos menos por trabalho igual Insistem que devemos ser poderosas E brigamos com os companheiros Somos simplesmente mulheres E só isto já é uma imensidão Mulheres do ventre à mente, unidas e conscientes Juntando nossa luta, à luta da gente

A força das mulheres sempre estará nelas próprias, no âmago de cada uma, e a luta pelos direitos adquiridos é permanente. O silêncio imposto às mulheres deve ser transformado em voz de todas as maneiras possíveis, e, principalmente, através das artes manuais. Tudo o que pode ser fonte de subsistência também pode ser forma de sobrevivência em meio à opressão e à violência. REFERÊNCIAS HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Coleção Biblioteca Universal - Grécia. Vol. 11. Rio de Janeiro: Editora Três, 1974. HOMERO. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, 1962. https://www.brasildefato.com. br/2017/08/21/arpilleras-documentario-registra-luta-e-empoderamento-de-mulheres-atraves-do-bordado/ http://www.mabnacional.org.br/content/ mulheres https://operamundi.uol.com.br/ samuel/40155/arpilleras-mulheres-atingidas-por-barragens-usam-bordados-para-denunciar-violacoes-de-direitos-em-megaobras https://www.revistaforum.com.br/revolucao-costurada-as-mulheres-que-bordam-a-propria-resistencia/

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OUTROS OLHARES SOBRE O CALDEIRÃO DO BEATO JOSÉ LOURENÇO: A LITERATURA DE CORDEL E A XILOGRAVURA EM DESTAQUE Ana Cláudia Veras Santos1 RESUMO: A literatura de folhetos de cordel é uma poética que passa por transformações do ponto de vista da condução argumentativa ao versejar fenômenos associados às ditas "minorias" populares, como é caso do Caldeirão do beato José Lourenço. O intuito deste trabalho é observar narrativas desse fenômeno, como a xilogravura, em diálogo com o cordel. A partir do cotejo dessas representações foi possível balizar quebras de paradigmas na condução das narrativas, num esquema de mudança processado pelo poeta que rompe com a tradição da poesia popular e passa a se valer de "assinaturas de prestígio" como fontes para sua poética (BOURDIEU, 2002). Essa nova situação de legitimação argumentativa se configura como medida de rebate àqueles que colocam o cordel numa subcategoria em relação à literatura considerada por muitos como “hegemônica”. Desse modo, o cordel se insere num terreno movediço e forma1 Professora de Língua Portuguesa da Secretária de Educação do Estado do Ceará, Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Ceará, Pesquisadora de Cultura Popular com ênfase em Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, Literatura de Cordel e Xilogravura. claudiaverass@gmail.com

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do por contrassensos, sobretudo, quando narra conflitos históricos que continuam em desenvolvimento. Caso das narrativas aqui apreciadas que cerca de oitenta anos após seu acontecimento, quando se deu a invasão do Caldeirão, em 1930, no Cariri cearense, são (re)criadas. Seus rumores tiram do esquecimento o conluio personificado no Estado, na Igreja Católica e nos grandes proprietários que ao “temer” uma nova Canudos, teria destruído aquela comunidade "modelo de reforma agrária". Nesse sentido, a conduta dessas narrativas reunidas num corpus composto por folhetos remanescentes do fenômeno, mais os produzidos em 1970, 1980, 1990, 2000 e 2010, a colocaria num patamar de documento literário e histórico e imaterial, juntamente com outras performatividades que representam o Caldeirão em oposição às elites detentoras da linguagem. Propomos analisar essas narrativas, suas memórias e os diálogos que constituem essa teia de sentidos, a partir da sentença que elevaria a poesia a uma forma líquida em torno da qual as potencialidades de "compartilhamento de códigos" (BARTHES, 2004) e as “intertextualidades” estariam a seu serviço. Palavras-chave: Literatura de cordel. Xilogravura. Caldeirão do beato José Lourenço. Diálogos.

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INTRODUÇÃO: A poesia de folhetos de cordel que ora se apresenta é parte de uma poesia que considero sinônimo de resistência, que assim se configuraria desde o seu suporte editorial, primeiramente, perpassando pela organização e defesa de seus pontos de vista, na condução dos argumentos e buscas por legitimidade. Ao versejar, por exemplo, fenômenos de revoltas associados às “minorias” populares, como o episódio do Caldeirão do beato José Lourenço, tema desta pesquisa, as potencialidades podem ser observadas pelo público leitor e/ou ouvinte. O intuito é apresentar narrativas sobre o Caldeirão e temas correlatos a partir de representações como a xilogravura, por exemplo, que é também poesia talhada em madeira como diria Carvalho (1998), em diálogo com a poesia de folhetos. De acordo com estudo comparativo realizado anteriormente, essa poética popular está em um processo de constante movimento de mudança e adaptação quanto aos seus referenciais. A partir do cotejo estabelecido entre essas representações, foi possível observar quebras de paradigmas na condução das narrativas efetuadas pelo poeta que


rompe com a tradição da poesia popular em versos e passa a se valer de "assinaturas de prestígio", como fontes para sua poética (BOURDIEU, 2002). Talvez tal medida condiga com uma busca por legitimação argumentativa e rebate àqueles que colocam a literatura de folhetos de cordel em uma subcategoria em relação à dita literatura hegemônica. A fim de ilustrar essa conjuntura, exponho o tratamento que o poeta popular dá as suas fontes. Vejamos: Em 1982, Cláudio Aguiar fez o romance Caldeirão, nesse mesmo ano Rosemberg Cariry e Oswald Barroso lançam Cultura insubmissa. Em 1985, Cariry estréia o filme Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, despertando nos espectadores sentimentos de toda ordem e promovendo em alguns o interesse em conhecer mais essa história, como ocorreu com o Régis Lopes, que mais tarde, em 1991 lançaria Caldeirão, com depoimentos de remanescentes e também influenciando outros estudos e produções, como foi o caso do poeta Paulo de Tarso, que escreveria sua representação no cordel um ano depois. Fato é que essas iniciativas foram fundamentais para a elaboração dos folhetos dessa geração. Dispomos de quatro títulos desse período, todos tendo como ponto comum, além da temática, o argumento de terem sido feitos à luz de outro trabalho, como os acima citados. É de 1981, o cordel O beato Zé Lourenço e o boi Mansinho ou: a chacina do Caldeirão, de J. Normando Rodrigues, que traz na quarta capa, a seguinte explicação:

Crato, junho de 1981. Além das histórias ouvidas da boca de quem viveu essa aventura, pesquisei os livros, CULTURA INSUBMISSA - Rosemberg Cariry e Oswald Barroso. CANGACEIROS E FANÁTICOS – Rui Facó – MILAGRE EM JUAZEIRO – R. Della Cava. NAÇÃO CARIRY – Revista nº 9/83 – Edições Folha de Piqui – Distribuição Bolart (Jackson Bantin) – agradeço o apoio de Eloi Teles e Expedito Sebastião da Silva (Poetas Cordelistas). Impresso na Gráfica ABC – Juazeiro do Norte. (RODRIGUES, 1981, p. 16). Dessa forma procedeu Francisco Artur Pinheiro Alves com o cordel de 1984, Pequena história do Caldeirão: à guisa do romance popular, onde diz nos créditos iniciais: “Inspirado na obra “CALDEIRÃO” de Cláudio Aguiar” (ALVES, 1984). Igualmente, o poeta Paulo Nunes Batista, com a História do Boi Mansinho e o Beato José Lourenço, de 1988, ressalta em nota: “Estes versos foram inspirados no trabalho “O Beato José Lourenço, o boi mansinho e o problema social do Caldeirão”, de Fátima Menezes” (BATISTA, 1988, p. 20). O Beato José Lourenço e o Caldeirão, 1ª edição de 1992, com autoria do poeta Paulo de Tarso B. Gomes, que na última capa traz a seguinte explicação: O Caldeirão, de Régis Lopes, resgata um momento importante da história dos movimentos populares do Ceará. É um livro definitivo que coloca na ordem do dia este

tema de tão escassa bibliografia. A partir do trabalho de estréia de Régis Lopes, o poeta e estudante de história Paulo de Tarso Bezerra Gomes transpôs para os códigos da literatura popular em verso o relato da comunidade do beato José Lourenço. É uma forma de levar este episódio de resistência a um público mais amplo. A ADUFC apoia esta iniciativa cultural que considera de maior relevância. (GOMES, 1992 – grifo nosso). Conforme podemos observar, essas narrativas têm um ponto de partida em comum, foram inspiradas por outras produções. E, a partir dessa constatação e do que os próprios autores falaram acerca de seus trabalhos, o ponto de chegada também pode ser vislumbrado, ou seja, a ideia é que os acontecimentos que envolveram o beato José Lourenço e suas comunidades chegassem, segundo Gomes (1992), ao conhecimento de “um público mais amplo”, que caso não tivessem acesso à literatura erudita ou às demais artes anteriormente citadas, se deparariam com a leitura ou audição dos versos populares sobre esse fenômeno, de modo que esta performance2 acompanharia o entendimento das pessoas sobre a realidade assistida no Caldeirão. Portanto, percebemos discursos definidos nessas representações aqui dispostas. Desde aquele pautado sob a ótica religiosa fundamentada no ideal de liberdade, salva2 Poderíamos inferir que dentro do contexto de poesia oral, “a performance manifesta a ligação primária entre o corpo humano e a poesia. ” (ZUMTHOR, 2010, p. 221).

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ção, fé e política, juntamente com o discurso de levar para o povo a história do povo, com influências sistematicamente associadas ao seu contexto histórico e condizentes com o lugar ocupado pelo seu emissor. Essa situação de busca por referenciais teóricos se estende aos folhetos da década de 2000. O Caldeirão dos esquecidos, de Ulisses Germano (2016), cita Firmino Holanda como seu influenciador. Fco Edésio Batista, com O Caldeirão e o Beato Zé Lourenço (2002), faz referência a um artigo de Zuza da Botica quando do centenário da invasão do Caldeirão. Geraldo Amâncio, com O terrível massacre do Caldeirão do Beato Zé Lourenço (2001), alude a Rosemberg Cariry, Chico Sá e Oswald Barroso, por exemplo. Interessante apontar que os folhetos dialogam entre si e que corroboram em muitos aspectos, como a situação de fartura, união, fé e trabalho no Caldeirão e acerca das injustiças que as comunidades lideradas pelo beato foram sofrendo ao longo do tempo. É possível pensar também que o recurso de estabelecer elos com a literatura considerada canônica seja uma forma de sobrevivência no meio de produção, edição e recepção do poeta e de sua poesia. Afinal, muitos finais não felizes já foram atestados para o cordel. Certamente, seus tempos áureos, de “glamour” ficaram com os seus mestres, todavia, deixaram uma arte que continua viva, já não é mais uma menina vinda das obsoletas máquinas de impressão, mas que permanece como parte de uma cultura sólida, que como faz parte do curso natural das coisas, passa por transformações.

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DESENVOLVIMENTO: Assim, ao romperem com o silêncio imposto às “minorias”, entre as quais, incluo, o próprio suporte do folheto, que é muitas vezes considerado uma literatura menor em comparação com as literaturas, ditas hegemônicas, estabelece um elo de diálogo com alguns segmentos sociais e tira da borda da história (também literária), as memórias constituídas, as memórias em constituição e as memórias a se constituírem em torno da comunidade liderada pelo beato José Lourenço. Daí, destacamos as múltiplas possibilidades de significados em torno das leituras das poesias de folhetos, quando versejam fenômenos históricos, a exemplo do Caldeirão. Concordo que a literatura, elaborada por inúmeras linguagens, tem potencial para tirar do esquecimento entraves históricos, além de modificar pontos de vista já estabelecidos e reescrevê-los, através de

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diálogos entre representações que constituem polifonias e intertextualidades. Não há um ponto final acerca da história do Caldeirão, nem tão pouco das narrativas e seus rumores. Aspecto que considero relevante pontuar, é em relação ao procedimento de escolha que envolve as capas dos folhetos. Seguindo o raciocínio do “compartilhamento de códigos” entre o poema do folheto e o poema da madeira, observamos certas incidências como a do folheto que abre a série desse novo recorte analítico sobre o Caldeirão do beato José Lourenço, feito mais especificamente dos anos 2000 em diante. O terrível massacre do Caldeirão do Beato José Lourenço, de Geraldo Amâncio (2001), traz na sua capa uma xilogravura do poeta e também xilógrafo J. Normando Rodriguez, cuja xilogravura de 1981, é uma alusão ao arquétipo dos santos guerreiros, como São Jorge e São Miguel, por exemplo, compondo uma transmissão de


símbolos, uma vez que o herói montado no cavalo, pretende ser o beato José Lourenço sobre o seu Trancelim, assim como, a figura de um soldado sob a lança do cavaleiro, representaria uma transposição com o dragão legendário. Vejamos duas capas, cujas publicações estão distantes no tempo e no espaço, por praticamente três décadas e compactuam da mesma arte, eis um belo exemplo de compartilhamento de código. As estampas permanecem no imaginário, como parte de uma cultura imaterial pulsante, vibrante, viva e atuante, que associadas às rimas do cordel, formam um importante documento no registro de uma comunidade exemplo de ideal humanitário, fraternal, comunitário e precursor de uma reforma agrária justa. A imagem é interessante porque nela se (r)estabelece a ideia de vitória, não de derrota. José Lourenço teria saído vitorioso da luta, não vencido como a História registrou. Nesse ponto de vista é significativa a forma como o poeta do verso e/ou do talhe escolhe compor sua narrativa, decidindo quem será o forte, o digno, o redentor, em oposição aquele que sugestionaria o mal. Ainda acerca desse exemplo, é de valia apontar que J. Normando Rodrigues elaborou um cordel em torno do Caldeirão do Beato José Lourenço, em que inaugura a xilo em questão. O folheto de Rodrigues, “O beato Zé Lourenço e o boi Mansinho ou: a chacina do Caldeirão” direcionou o exemplo da comunidade do beato José Lourenço para além da condição religiosa do Caldeirão, associando-o a ideais políticos, fazendo valer sua opinião de poeta sobre aquela situação, de modo que a figura do beato não é a mais im-

portante, mas o comportamento dos membros do Caldeirão como um todo, o conjunto fez a força nos versos de Rodrigues.

pobres do meu sertão só lhes resta a UNIÃO na luta do camponês.

E assim foi o destroço daquele povo ordeiro que só fazia rezar trabalhar o dia inteiro que só puderam viver até meu Padim morrer e proteger os romeiros

Quando forem a Juazeiro não deixem de visitar o túmulo desse beato que em vida soube lutar um exemplo de Justiça seu viver SOCIALISTA o povo deve imitar

Quando o rico fazendeiro que a pobreza explorava se juntou o falso padre que só dinheiro buscava foi destruída a cidade e o sonho de liberdade que nosso sertão criava

E quando o sertão tiver a união conseguido do camponês explorado sem terra desassistido Padre Cícero sorrirá E pro beato dirá: “NOSSO EXEMPLO FOI SEGUIDO”. (RODRIGUES, 1981, p. 16 – grifo nosso).

Foi uma dura lição pro povo pobre aprender que não é só com santo e reza que ele vai se valer além de muita união trabalho e organização CORAGEM pra se defender (RODRIGUES, 1981, p. 15). A narrativa termina com um recado ao leitor, ao povo que quando diante de uma situação de submissão ou de exploração deve seguir o exemplo de Lourenço e do Patriarca de Juazeiro: Morreu o Beato Lourenço no ano de quarenta e seis cercado de sua gente mostrou o caminho a vocês

O poeta usou letras maiúsculas para destacar expressões que quis evidenciar ao longo do texto, que talvez condigam com a movimentação política e ideológica do seu meio social. Juntas essas expressões formam a seguinte ideia: “JOSÉ LOURENÇO CORAGEM UNIÃO SOCIALISTA “NOSSO EXEMPLO FOI SEGUIDO””. A reutilização de capas de folhetos também parece prática comum, a respeito desse recurso e do que ele representa, é algo que merece ser apreciado mais cuidadosamente. Pois, pode implicar na economia com os gastos de uma nova ilustração, como observou Carvalho (1998), ou ainda aludir à possibilidade de “compartilhamento de códigos” entre essas narrativas, (Barthes, 2004).

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Penso que para chegar a um melhor entendimento acerca dessa e de outras questões, conferir com os autores, em uma conversa a partir de sua obra, será passo decisivo3. No álbum de xilogravuras “A história do Caldeirão do Beato Zé Lourenço, do artesão Cícero Vieira, vários elementos que compõem a historicidade do Caldeirão dividem a cena. Vieira dá vida pelos veios de sua madeira ao trabalho, a fé e a união, cujas personagens Padre Cícero, boi Mansinho e a mítica Juazeiro dividem lugar com o que houve de melhor (benfeitorias) e de pior (prisão do beato, morte do boi, invasão da comunidade, luta, guerra, bombardeios aéreos) no Caldeirão. A mistura de movimento, ação e múltiplas expressões na composição de suas gravuras, coloca o observador em contato com uma representação que se desenvolve a cada taco talhado, onde se percebe uma sequência fundamentada nas narrativas de cunho popular, na tradição oral, nas suas experiências de mundo e nas relações com seus pares. Vieira trabalhou na agricultura, assim como José Lourenço Gonzaga, cuja profissão desempenhada colaboraria muito para ampliar a visão do artesão acerca do universo circundante, segundo Carvalho (1998). As estampas de Cícero Vieira aproximam a arte da xilogravura do seu imaginário relativo à comunidade do Caldeirão, liderada pelo beato José Lourenço, entre os anos de 1926 e 1936. Além disso, demonstram a trajetória do líder desde sua chegada a Juazeiro e o seu encontro com o Padre 3 No desenvolvimento do texto da Tese, retomarei mais incisivamente à análise do folheto de Amâncio (2001) e dos seus pares.

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Cícero. A performance se completa com a recepção do público. Outro poeta e xilógrafo aqui solicitado, como contraponto é Abraão Batista, com o trabalho de toda uma vida dedicado ao verso e à madeira, também retratou o fenômeno Caldeirão, em um romance de folheto de cordel, cuja narrativa é significativa pelo fato de ter sido através dela que se deu a abertura das narrativas que se tem registro sobre a comunidade do beato José Lourenço, nos finais dos anos 1960. Isso, depois de transcorridos quase quatro décadas de silêncio. Interessante apontar que Batista gravou a vida de Padre Cícero também, de sua chegada a Juazeiro até sua morte, em trabalho que inclui o Caldeirão do beato, em uma “intertextualidade” plena de narrativas que se compartilham entre si. Abraão nasceu em 1935, filho de Juazeiro, ouviu a história do Caldeirão através do que lhe contava sua mãe4. É um poeta que se diferencia pela forma de versejar acontecimentos retirados da sua vivência, do “ouvir falar”, assim como era a experiência profissional de boa parte dos poetas populares e cantadores de bancada, cuja conversa ao pé de parede rendia boas histórias para folhetos. É claro que o fato de Batista ser professor o aproxima também dos outros poetas da catalogação acerca do Caldeirão, que organizam suas narrativas em torno de argumentações legitimadas por uma “assinatura de prestígio” (BOURDIEU, 2002), o que, de certa forma, resguardaria sua versão dos atropelos da história. Procedimento comum entre os poetas com 4 Segundo entrevista com Abraão Batista realizada durante a Bienal do livro de Fortaleza em 2012.

produções de ciclos a partir dos anos 1980, que ao trabalharem com narrativas de fatos históricos, buscam estudar trabalhos que resguardem suas obras. CONCLUSÃO: Essa metodologia desenvolvida não apenas por poetas, mas por xilógrafos5 também, vem corroborar para que se marque uma mudança de paradigma na condução, composição e produção das obras, com reflexos na obra em si e na sua fruição. Afinal, observamos que a literatura de folhetos, quanto aos seus mecanismos funcionais, vem passando por constantes mudanças, desde a sua forma material até ao que consideramos a parte sensível da obra, a sua poética. Certamente, algumas regras são mantidas e correspondem às formas fixas da literatura popular em versos, sua metrificação e rimas, por exemplo. Nesse sentido os folhetos de cordel elaborados nos anos 1980 se diferenciam dos folhetos clássicos. O poeta também mudou, acompanhou os avanços do mundo que o cerca, sendo as narrativas provenientes dos anos 2000 uma espécie de continuidade dos atributos observados na década de 1980. É interessante acrescentar que há variantes em torno desse “novo cordel”, do que ele traz de urbano, de contem5 José Lourenço Gonzaga nos revelou em conversa em 16/04/16 que para desenvolver qualquer trabalho, precisa estudar muito, para se ater aos detalhes que gosta de dar às suas representações. Igualmente, Cícero Vieira se colocou, em afirmativa que revela que para realizar seu álbum sobre o Caldeirão leu alguns textos, livros cedidos por um professor, que lhe mostrou a história da comunidade, que o artesão desconhecia até 2008, mesmo sendo ali da região.

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porâneo, inovador, se pensarmos na participação ativa de poetas mulheres na produção dessa poética, num espaço que até bem pouco tempo, era hegemonicamente masculino e até machista, se observarmos os títulos que envolvem a situação do feminino em constante chacota ou submissão. Em oposição a esse estado de coisas, temos os Cordelistas Malditos, compondo acerca da inclusão de temas libertadores, LGBTs, feministas, por exemplo. De modo que esses fatores interferem direta e indiretamente no contexto mais amplo em que se insere essas narrativas acerca do beato José Lourenço e o seu Caldeirão. A imagem associada à história do Caldeirão do beato José Lourenço vem trazer novos pontos de vista, é mais uma representação a tirar do esquecimento a que é imposto, muitas vezes, a história dos vencidos. Os sertões, de Euclides da Cunha, foi responsável por “vingar” Antônio Conselheiro e o povo de Canudos. O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, filme de Rosemberg Cariry, tem influenciado muitas produções acerca do fenômeno, formando uma teia “intertextual” interessante, confirmando que cinema, pesquisas acadêmicas e literatura (a popular, inclusive) possuem diversas possibilidades de diálogo. A palavra e a imagem, o verso e a xilogravura, a rima e a voz, estariam corroborando para fortalecer a “nova história” do Caldeirão, sob os termos de seus aliados. O “porta voz” do povo já não transmite fatos sobre o “bandido” ou o “fanático” Zé Lourenço, como fez José Santana

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lá atrás, mas a partir de características que elevam a personagem do beato José Lourenço ao patamar de herói, por exemplo. E assim, passando a constituir esse novo estado de coisas, no qual a cada nova poesia popular e sua respectiva ilustração, frequentemente uma xilogravura, fortalecem a imagem do Caldeirão. Poderíamos inferir que há uma predisposição por parte desses agentes narrativos de “contaminar o real com o imaginário”, (FAUSTO NETO, 1979, p. 129), como se quisessem retirar o Caldeirão do beato José Lourenço da história para elevá-lo à categoria de mito. Desse modo, uma implicação a mais surge a partir da relação verso e capa, a observação de que ambas incidem como parte de um mesmo interesse, partilhando do mesmo espaço e do mesmo tempo. Trata-se de uma união já antiga que atravessou ciclos de separação e que neste momento se apresenta dentro desse corpus de folhetos sobre o Caldeirão do beato José Lourenço, como duas representações distintas, mas integradas pela mesma narrativa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARTHES, Roland. O rumor da língua. 2 ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2004. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das letras, 2002. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. CARIRY, Rosemberg. O Caldeirão da Santa

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Cruz do Deserto. Fortaleza: Cariri Filmes, 1985. Longa- metragem. Documentário. (78 min). CARVALHO, Gilmar de. Madeira matriz: cultura e memória. São Paulo: Annablume 1998. CUNHA, Euclides da. Os sertões. 9. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1993. DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. Tradução de Maria Yeda Linhares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. FAUSTO NETO, Antônio. Cordel e a ideologia da punição. Petrópolis: Vozes, 1979. HOLANDA, Firmino e CARIRY, Rosemberg. O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto: apontamento para a história. Fortaleza: Interarte, 2007. KUNZ, Martine: Cordel: A voz do verso. 2. Ed. Fortaleza: Museu do Ceará, 2011. NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2010. SANTOS, Ana Cláudia Veras. Representações do Caldeirão do beato José Lourenço na literatura de cordel: leituras comparativas / Ana Cláudia Veras Santos. – 2012. 170 f. : il. color., enc. ; 31 cm. http://www.repositoriobib.ufc.br/00001e/00001e01.pdf


PATATIVA EM TODOS OS CANTOS PATATIVA E GONZAGÃO: O COTOCO Assaré, novembro de 1963. A tarde caía sob o sol causticante do penúltimo mês da seca. Com a exceção da segunda-feira, quando ocorre a feira semanal, os dias da cidade naquele tempo passavam-se na mais absoluta calma. E naquele novembro, a calma das tardes só era interrompida às vezes, apenas por algum caminhão que ainda recolhia os últimos capuchos de algodão da safra ou pelo som radiofônico vindo de residências que ligavam os seus aparelhos na Rádio Clube de Pernambuco, para assistir ao programa comandado pelo Tavares Maciel, de grande sucesso no momento. Os comerciantes cochilavam sobre os balcões à espera de incertos fregueses, já que o fluxo maior de compradores ocorria pela manhã. O Assaré de 1963 não gozava do privilégio da energia elétrica de Paulo Afonso. A iluminação da cidade ficava por conta de um grupo gerador da Prefeitura que funcionava das 18 às 21 horas. Aparelhos elétricos nem pensar. As poucas geladeiras funcionavam a querosene, o mesmo que se usava para abastecer as lamparinas, o único sistema de iluminação da zona rural. Sem movimento de fregueses do álcool etílico durante a semana, as geladeiras eram desativadas para economizar combustível. Apenas no bar de Zé Ferreira, que estava na moda, podiam-se encontrar refrigeran-

te e cerveja gelada durante a semana. No cair daquela tarde de novembro, pára repentinamente em um Café do Mercado, uma caminhonete de cor verde, modelo Amazonas, um dos mais recentes lançamentos da Chevrolet. Desce pelo lado do passageiro um caboclo forte, de cara achatada que entra no Café e pergunta: - Tem água gelada? A atendente que estava por trás do balcão, com um riso sem graça, responde: - Não. Não tem. Agora ali no outro lado, no Bar de Zé Ferreira você pode encontrar água gelada. O caboclo sai em direção ao local indicado pela moça. Mas, antes de concluir a travessia da Rua Pe. Emílio Cabral, uma pessoa o identifica e grita em voz alta: - Luiz Gonzaga, o rei do baião. Olha gente é ele mesmo, o Luiz Gonzaga. O senhor não é mesmo o rei do baião? Luiz Gonzaga olhou para o sujeito, riu e confirmou: - É ele em carne e osso, meu rapaz. As ruas do centro que se encontravam desertas, em menos de cinco minutos, ficaram lotadas. Uma multidão se formara em frente ao Bar, onde calmamente Luiz matava a sua sede com a água fria, servida em copo de alumínio. Enquanto isso, os seus admiradores se acotovelavam na calçada. Acostumado com este tipo de cena, Gonzaga acenou para o grupo que lhe admirava, sorriu e perguntou ao dono do bar onde era o ho-

tel de Luiza Luna. O comerciante veio até a calçada com ele e apontou para a Rua Euclides Onofre, bem próximo dali. Luiz acenou para o motorista acompanhá-lo. Saiu andando, acompanhado pelo grupo que engrossava cada vez mais, admirando o cantor. Chegando ao hotel, solicitou que alguém dos que estavam ali, fosse com o seu motorista localizar Patativa. Teria marcado um encontro inadiável com o poeta do Assaré naquele dia. Em poucos minutos Gonzaga estava frente à frente com o poeta e foi direto ao assunto: - Olha Patativa, de viagem pelo sertão ouvi pelo rádio um violeiro cantando a sua Triste Partida e me veio de imediato a vontade de gravá-la na minha voz, este excelente trabalho seu. Patativa um pouco sem jeito, agradeceu. - Luiz, eu sou seu admirador. Fiz até uma homenagem a você que está no meu livro que tem o título de Inspiração Nordestina. Fico muito feliz em saber que você se interessa por um trabalho meu. Como fazia com os outros compositores, Luiz exigia a parceria para gravar as músicas. Mas, com Patativa, viu que deveria ir devagar para convencê-lo. Afinal, a Triste Partida era um poema de muita arte. Não era uma coisa qualquer. Sentiu ele que não poderia ameaçar o poeta do Assaré, que se mostrava muito seguro no amor à

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sua produção, mas arriscou: - Olha Patativa tem um problema aí. Quando a gente vai gravar uma música se tem um trabalho enorme. Os arranjos são complicados, ensaios com o pessoal que nos acompanha na gravação. Uma trabalheira louca mesmo. Por isso eu sempre exijo a parceria para compensar o meu trabalho. Patativa levantou-se enfurecido, deu um cotoco na cara de Luiz, deixando-o desapontado. - O que é isso Patativa? Patativa detonou. - Fique sabendo, Luiz, que eu não dou parceria a ninguém. Isso que você está dizendo engana a muitos tolos ou a alguém que se humilha para ter uma música gravada na sua voz. Eu não lhe procurei, não tenho nenhum interesse de ter a Triste Partida gravada por você, apesar de lhe admirar muito, viu? E tem mais: quem faz os arranjos não é somente você, tem o maestro, viu? Se fosse assim os maestros seriam parceiros de todas as músicas gravadas. Então o nosso encontro termina por aqui. Gonzaga, assustado com tanta sinceridade, por nunca ter visto nada parecido antes, diante do seu poder de fogo na música nordestina, desceu mais ainda à humildade. - Tá certo, Patativa, a Triste Partida vai ser gravada com letra e música de sua autoria. Mas devemos fazer algumas mudanças na letra. Patativa, ainda colérico, foi fundo: - Eu não admito que ninguém mexa em trabalho meu, a não ser eu mesmo. Também não quero que retire nenhuma estrofe

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da Triste Partida para não quebrar a continuidade da história. - Não é assim, Patativa. Observou Gonzagão, que deu a explicação: - Você vai substituir algumas palavras por outras para melhor casar a harmonia. Naquele mesmo encontro, eles substituíram nos versos palavras como ‘um dia inda vim’ por ‘um dia vortá’, ‘trumento sem fim’ por ‘sofrer sem pará’, Ceará por ‘meu lugá’ para universalizar e “nas terras do su’ por ‘no Noete e no Su’. Feito isso Luiz, levantou-se para despedir-se, mas Patativa o reteve. - Não Luiz, hoje à noite você vai fazer uma apresentação para meus amigos, que cobraram isso de mim. Gonzagão queria mesmo ir embora, alegando que não trouxera os acompanhantes Xaxado e Aloísio que se encontrava em Exu à sua espera. - Isso não é problema. Tocadores de zabumba e triângulo são só o que tem aqui, acostumados a acompanhar as suas músicas. O show se deu no Clube de Zé Martins, muito freqüentado na época pela sociedade assareense. Dr. Gentil Braga, farmacêutico e parteiro afamado, chegou um pouco atrasado. Apresentado por Patativa a Gonzaga, que falou da sua fama de excelente parteiro, o Rei do Baião disse: ‘vou fazer uma homenagem a ele’ e cantou ‘Samarica Parteira’ uma belíssima composição de Zé Dantas. Disseram depois que a renda do pequeno show, Gonzaga teria doado a Patativa, o que é muito provável, mas isso nunca confirmado. Como também, as pessoas

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que assistiram a essa apresentação, não lembram quem foram os acompanhantes de Luiz naquela show, tocando Zabumba e triângulo. Na mesma noite Luiz voltou ao Exu e dois dias depois estava no Aeroporto dos Guararapes no Recife, enviando um rolo de fita onde estava gravada a voz guia para fazer o arranjo. Dona Helena, recomendada por carta que acompanhava o pacote, levou a fita à gravadora, sendo a mesma repassada ao maestro e sanfoneiro Orlando Silveira, com a incumbência de fazer o arranjo. Gonzaga só regressou ao Rio de Janeiro no início de dezembro. No dia 18 de janeiro de 1964, às 9 horas da manhã, acompanhado pelo próprio Orlando Silveira na sanfona, Altamiro Carrilho na flauta, Canhoto no cavaquinho, Dino no violão de 7 cordas, Meira no vilão de 6 cordas e a percussão do do próprio Regional do Canhoto, Luiz Gonzaga imortalizava na sua voz a Triste Partida: um dos mais belos poemas da língua portuguesa. Tempos mais tarde, quando alguém lhe perguntava ao Gonzagão qual era a música que mais o emocionava quando cantava, ele respondia sem rodeios: - A Triste Partida. Toda vez que canto essa música eu choro. PATATIVA E GONZAÇÃO: O PARTEIRO Crato, julho de 1974. No Parque de Exposições, em frente ao palco, mais de 4 mil pessoas se acotovelavam para assistir ao show daquela noite, com a participação de 3 grandes estrelas da cultura nordestina: Trio Nordestino,


Patativa do Assaré e Luiz Gonzaga. Caracterizados, Lindu, Cobrinha e Coroné encantaram a multidão com baiões, xotes e forrós. Cantaram alegremente os sucessos anteriores e os que foram lançados naquele ano, como Chililique, Montanha Russa e Fogo de amor, os mais tocados no rádio. Após a apresentação do Trio Nordestino, Eloi Teles anuncia a segunda apresentação: Patativa do Assaré. Muito querido pelo povo do Cariri, Patativa chegou ao palco pelos braços dos populares. Isso porque, a sua perna quebrada, o impedia de caminhar e muito menos de subir escadas. Os que estavam embaixo elevaram Patativa, até ao ponto em que a cadeira fosse içada pelo pessoal que se encontrava na parte de cima do palco. Enquanto isso, Eloi Teles desdobrava elogios ao poeta que era ovacionado em total delírio. Sentado, segurava fortemente o microfone para disfarçar a mão trêmula, naturalmente porque estava tomado por forte emoção. Pois, tinha ele o Crato, como a sua segunda casa. Sentia-se bem ao sair pelas ruas recitando para grupos nas praças, nas rádios Araripe e Educadora ou na livraria de seu Ramiro. Bastava chegar naquela cidade que apareciam dezenas de convites, que preenchiam o seu tempo. Dificilmente passava ele um mês sem nadar no Crato. Seu ponto era o Hotel de Suzana, uma parenta sua pela parte dos Alencar. De lá saia para atender convites de ricos, de pobres, de gente do povo e intelectuais. No período da Exposição, chegava na abertura e só voltava no encerramento. E, se por acaso a sua

ausência fosse notada no primeiro dia da festa, imediatamente mandavam um veículo apanhá-lo onde ele estivesse. Naquela noite ele iniciou a sua apresentação fazendo uma glosa com o mote: ‘de tanto andar no Crato, já tô cheirando a pequei’. Concluiu a sua participação declamando a sua genial criação ‘A Morte de Nanã’. Novamente dezenas de pessoas correram até o palco para retirar Patativa, levando-o até a barraca onde ele ficava sentado, como se fosse uma ação extremamente prazerosa. Mas, Luiz Gonzaga já avisara a Eloi que queria cantar, dividindo o palco com Patativa. O Rei do Baião abriu a sanfona e cantou o seu pré-fixo, como ele gostava de dizer, que era a composição ‘boiadeiro’ de Clécios Caldas e Armando Cavalcante. Em seguida, a música que ela estava querendo emplacar emplacar, ‘fogo pagou’. Depois, ‘ eu vou pro Crato’, dele e Zé Jataí. Quando Luiz deu a introdução de outra música, um estudante gritou: - Seu Luiz , toque a Triste Partida. O público daquela noite era constituído também por centenas de estudantes. Gonzaga parou o fole e como se não tivesse escutado bem, indagou: - O que? Desta vez a solicitação não foi repetida somente pelo primeiro, mas por todos, em coro forte: - A Triste Partida, a Triste Partida... Luiz desmanchou-se em sorriso. Ele gostava de interagir com o público. Nenhum artista foi tão midiático com o seu trabalho como ele.

- Eu não sei se posso cantar não. Tenho que pedir autorização a Patativa. E mesmo assim eu choro quando canto essa belíssima música deste grande poeta. E desta vez não foram somente os estudantes, mas as 4 mil pessoas gritavam na mesma voz: - Canta, canta, canta, canta... O Rei torna brincar: - Só se Patativa e vocês cantarem comigo... Imediatamente, as 4 mil vozes se uniram em só coral, sem deixar sequer a sanfona fazer a introdução: - Meu Deus, meu Deus... Gonzagão entrou no clima. Entregaram um microfone também a Patativa e a Triste Partida foi cantada sem falhar um verso. No final, as lágrimas eram vistas no rosto de Luiz e de muita gente que fazia parte daquela grande coro. O palco ficou vazio. Levaram Patativa para uma barraca especializada em carne assada de bode. Acompanharam o poeta e sentaram na mesma mesa, Luiz Gonzaga, Eloi Teles, Zé Clementino e o jornalista Humberto Cabral. Luiz queria ter uma conversa com Patativa e precisava da ajuda dos amigos para convencê-lo a fazer um tratamento em São Paulo. No ano anterior, o poeta sofrera um acidente automobilístico em Fortaleza. Passou quase 3 meses no hospital de urgência Dr. José Frota, que naquela tempo era apenas um prédio acanhado, na Rua Senador Pompeu, sem muitos recursos, longe de comparar com a grande estrutura que possui hoje e de nada serviu. A sua perna continuou quebrada e como não deram

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jeito, ele voltou pra casa. Seus amigos do Crato vinham preocupados com o sofrimento do poeta. Então lembraram que Luiz Gonzaga, uma personalidade bastante influente, poderia muito bem conseguir esse tratamento em hospital especializado no Rio ou em São Paulo. Ao tomar conhecimento do acidente, do sofrimento porque passava Patativa, Luiz caiu em campo e conseguiu o tratamento completo na Beneficência Portuguesa. No entanto, avisou aos amigos que tudo estava pronto, levaria Patativa a São Paulo depois da Exposição do Crato. Acontece que ninguém avisou a Patativa, temendo a sua rejeição. Deixaram a missão para Luiz Gonzaga, a quem ele poderia ser mais obediente. Depois da carne de bode assada com cerveja, Luiz levantou a questão: - Olha Patativa eu vim lhe buscar para fazer o seu tratamento em São Paulo. A Beneficência Portuguesa é um dos melhores hospitais do Brasil. Já fui internado lá uma vez e sai bonzinho e fui muito bem tratado. Eu deixo você lá, mas fico lhe visitando. E você não tem família por lá? Patativa ficou assustado com a proposta do Rei, mas respondeu sem titubear. - Luiz eu agradeço muito a você, mas eu não vou. Não pretendo sofrer mais do que eu já sofri em Fortaleza. Vou me arrastando por aqui enquanto puder, viu? Gonzagão não se deu por vencido. - Patativa você não vai sofrer. Lá é muito bom. Você vai ser bem tratado, eu conheço o pessoal de lá. Conheço os médicos, as enfermeiras, os diretores... conheço tudo mesmo. Você até parece que não quer

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confiar em mim? - Confio Luiz, eu confio. - Então, exigiu Luiz, porque é que você não vai, o que está lhe impedindo? Patativa justificou: - É que tem uma nora minha que vai ganhar neném e eu não posso sair. Sem acreditar nessa conversa meio esfarrapada, Gonzaga fechou a cara e lamentou. - Olha Patativa, sinto muito em você perder esta oportunidade. Mas eu sabia que você era um cabra do eito e um poeta valoroso, mas parteiro não. As pessoas sentadas à mesa e outras que estava de pé, entraram na conversa. Patativa foi irredutível e ninguém conseguiu lhe convencer ir pra São Paulo com Luiz Gonzaga. Meses depois ele conseguiram um tratamento no Rio de Janeiro, passou 6 meses por lá , sem obter resultado satisfatório. Usou um aparelho ortopédico até o fim da sua vida. PATATIVA E GONZAGÃO: NEM VACA ESTRELA NEM BOI FUBÁ Crato, julho de 1977. A Mesa do encontro depois do show sempre era a mesma na barraca da carne seca de bode. Os personagens se repetiam: Patativa, Luiz Gonzaga, Eloi Teles, Zé Clementino, Humberto Cabral e não muito raro o Padre Vieira. Entre uma golada de cerveja e uma mordida na carne de bode, os papos rolavam. De repente Luiz Gonzaga se volta para Zé Clementino:

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- Tu gostou do sucesso do nosso ‘capim novo’? Vai até fazer parte da trilha sonora de uma novela da Globo, você já sabe? Zé Clementino muito calmo, respondeu que não tinha nenhum conhecimento do fato. -Pois vai. Virou-se então para Patativa. - E tu velho, não tem nada de bom pra eu gravar? O poeta pensou um pouco e lembrou: - Tenho. É ‘vaca estrela e boi fubá’ o nome da composição. Vou cantar pra você analisar. Gonzaga ouviu atentamente, ficando deslumbrado: - Vou gravar no próximo ano Patativa. Pode ficar certo. Quero a sua autorização amanhã mesmo. Em 1978, o disco saiu sem a música de Patativa. O poeta chateou-se, mas ao se encontrar com o Rei ouviu mil desculpas e ficou para o ano seguinte. Em 1979, encontrava-se Patativa no Crato quando o disco chegou às lojas. Ao passar na calçada de uma delas, um empregado chamou o poeta para mostrar que ‘vaca estrela e boi fubá’ não entrara mais uma vez no LP de Luiz. Bastante decepcionado, Patativa tomou as providências de cancelar a autorização e depois enviar uma carta meio desaforada a Luiz, expondo a sua indignação. Por conta dessa revolta, Patativa queria agora mostrar a Luiz, que ‘vaca e boi fubá’ seria gravada. Até bem pouco tempo, o poeta do Assaré não mostrava interesse por gravações. Adorava publicações de livros. No entanto, diante do papelão do Luiz,


fazia questão de ter agora a composição na voz de alguém, desde que desse ao trabalho uma interpretasse à altura. Pensou em oferecer ao Lindolfo Barbosa, o conhecido Lindu, do Trio Nordestino, uma das mais belas vozes do cancioneiro nordestino, seu amigo, que lhe visitava todas as vezes que passava pelo Assaré e cobrava a ele uma música para gravar. - Olha Patativa, seria uma grande honra para o Trio Nordestino gravar alguma coisa sua. Dizia sempre Lindu ao mestre da poesia. A resposta de Patativa sempre era franca para este tipo de provocação: - Lindu, eu sou um poeta, não sou compositor. Alguma coisinha que faço nesta área é por casualidade. Foi naquele momento de decepção que Lindu apareceu como solução. Encarregaria Dr. Laércio, amigo de Lindu, Coberinha e Coroné, os componentes do Trio, que se hospedavam em sua casa. Mas antes de deixar o Crato rumo a Serra de Santana, confidenciou a um amigo a sua decisão de entregar o trabalho ao Lindu. O amigo desaprovou: - Patativa o Lindu é muito bom, mas essa música não encaixa no seu estilo. Eu acredito que ele pode até gravar ‘vaca estrela e boi fubá’, mas somente para lhe agradar. Ao invés do Lindu, porque você não procura o Fagner? Os olhos de Patativa brilharam. Refletiu consigo: ‘porque não pensei isso antes’? Concordou com o amigo e na primeira oportunidade, entregou a composição ao Fagner. Ela apareceu no ano de 1980, no LP cujo título era ‘Raimundo Fagner’, faixa 9 e teve um enorme sucesso.

DESTE ENCONTRO PARTICIPAVAM PADRE ANTÔNIO VIEIRA, AUTOR DO CÉLEBRE LIVRO “O JUMENTO NOSSO IRMÃO”, ZÉ CLEMENTINO, AUTOR DO XOTE COM O MESMO TÍTULO DO LIVRO “O JUMENTO NOSSO IRMÃO” COMPOSTO DEPOIS QUE LEU O LIVRO DO SEU CONTERRÂNEO VARZEALEGRENSE

Com a música na parada, Luiz Gonzaga ficou pra não viver. Antes da exposição do Crato, onde se dava o costumeiro encontro dos dois, dividindo o palco e depois a mesa da barraca do bode, Patativa caminhava

pela feira do Crato e deu de testa com Gonzagão. O poeta tentou cumprimentar o Rei, mas este não quis papo, queria desabafar, dizendo logo: - Patativa você é muito ruim. Pegou a música que eu tinha feito até arranjo e deu pro Fagner. Você é muito ruim. Com esse propósito, Patativa saiu por cima: - Sou ruim mesmo para quem é comigo. Será que você não se deu conta da palhaçada que fez comigo? Eu não sou espécie de gente que vive se humilhando por aí. Comigo não. Gonzaga não disse mais nada. Saiu caminhando sem olhar mais para Patativa. No ano seguinte fizeram as pazes, no primeiro encontro dos defensores do jumento. Deste encontro participavam Padre Antônio Vieira, autor do célebre livro “O Jumento Nosso Irmão”, Zé Clementino, autor do xote com o mesmo título do livro “o jumento nosso irmão” composto depois que leu o livro do seu conterrâneo varzealegrense; Luiz Gonzaga, que gravou a música de Zé e depois uma apologia ao jegue e Patativa do Assaré, que registrou em poesia o valor do jerico. Lembrando ainda, que as antigas amizades só voltaram mesmo, quando Luiz gravou ‘vaca estrela e boi fubá’ com o Fagner, em grande estilo, no ano de 1984. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA Cante lá que eu conto cá: filosofia de um trovador nordestino / Patativa do Assaré. 16º ed. – Petrópolis: Vozes, 2011.

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QUADRINHOS E CULTURA POPULAR: AS NARRATIVAS VISUAIS COMO FERRAMENTA NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM DA EDUCAÇÃO PATRIMONIAL Milena Fernandes Correia RESUMO Este artigo apresenta parte de um estudo que observa a utilização das histórias em quadrinhos como ferramenta no processo de ensino e aprendizagem da educação patrimonial, sendo um recorte da produção da artista-pesquisadora, com o objetivo de exibir as HQs como ferramenta de transmissão de conhecimento, tendo como principal objeto histórias aprendidas através da oralidade. A presente pesquisa em Arte baseia-se em estudos sobre narrativas visuais, patrimônio imaterial e o papel das histórias em quadrinhos dentro da educação patrimonial Palavras-chave: história em quadrinhos, patrimônio imaterial, narrativa visual, educação patrimonial INTRODUÇÃO Era o ano de 2009 quando iniciei minha produção em Quadrinhos. Na época, fiz parte do extinto grupo MangakaEX³ junto com alguns outros jovens de Fortaleza. Fazíamos revistinhas contando histórias de 168

forma despretensiosa e ao longo dos anos alguns de nós se dedicaram fielmente à essa arte. Hoje sou quadrinista profissional e publico meus Quadrinhos de forma independente, ou seja, sem o financiamento garantido por editoras ou qualquer outro tipo de empresa. O cenário de Quadrinhos no estado do Ceará tem se tornado cada vez mais forte, sendo evidente o crescimento de eventos e convenções voltadas para a cultura pop que apoiam artistas independentes na cidade de Fortaleza. As reflexões aqui desenvolvidas giram em torno da funcionalidade de se construir uma narrativa visual à partir de histórias contadas através da oralidade, ou seja, por alguém que contou oralmente. Esse conteúdo contado com palavras faladas é guardada e acessada na memória. Considerando que o conhecimento faz parte da memória e que ambos sejam, de fato, patrimônio imaterial de quem os possui, não só de cada sujeito individualmente mas também na concepção dos grupos em que estão inseridos, esse é o ponto focal do presente estudo: utilizar as histórias em quadrinhos como forma de apreciação e até proliferação do patrimônio imaterial de um grupo, ou seja, contar as histórias que alguém nos contou e, com o uso da narratiXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

va visual, contá-las também, apresentando uma forma de se utilizar da criação imagética para tornar visual aquilo que está no imaginário. DESENVOLVIMENTO Para SOUZA (2014), a cultura é um fenômeno diverso e plural, podendo ser entendida de várias maneiras, a depender do contexto de quem a vive, entende, percebe e sente. O indivíduo soma, multiplica e divide seus conhecimentos com o ambiente em que está inserido, e da mesma forma este ambiente em questão age nesse indivíduo. É comum ouvirmos histórias sobre como nascemos, sobre experiências pelas quais nossos pais passaram, momentos vividos por nossos avós e outros amigos e familiares. Mas é comum, também, escutarmos histórias baseadas não somente em fatos, mas em ficções e ocorrências paranormais ou extraordinárias. Baseadas em veracidade ou não, as histórias de lendas populares fazem parte da cultura de cada povo e é preciso reconhecer e apreciar esse patrimônio imaterial. QUEIROZ (2014) acredita que a cultura popular, em seus diversos e amplos significados, esteja presente na vida cotidiana de


cada indivíduo, desde seus primeiros momentos de interação com o meio e com os demais sujeitos da sociedade em que vive. Essas particularidades, tradições e conhecimentos fazem parte da cultura popular de um povo. Isso significa dizer que a cultura popular está diretamente relacionada com aquilo que vivemos, o lugar onde vivemos e às variadas pessoas com quem convivemos e interagimos ao longo da vida e, portanto são patrimônio cultural do povo e devem ser valorizados e protegidos por todos os sujeitos que detém o conhecimento. É preciso conscientizar e sensibilizar a sociedade de como e do por que preservar essa memória coletiva. Esses momentos de interação ficam guardados na memória e são acessados quando nos lembramos e os expressamos através da fala, ou seja, quando contamos essas histórias sobre acontecimentos passados ou imaginários. Quem conta essas histórias é chamado de “narrador”. Nesse momento da pesquisa, traremos as histórias narradas verbal e oralmente para a linguagem das Artes Visuais, considerando que uma “imagem” é a memória de um objeto ou experiência arquivada na mente do narrador. Ao verbalizar essa “imagem”, o narrador descreve os acontecimentos. Em nossa mente, se formam as figuras em movimento daquela história que muitas vezes não vivenciamos e estamos apenas como ouvintes, como plateia. Nas Artes visuais existem diversas formas de registrar memórias e acontecimentos fazendo uso de ferramentas que geram conteúdo imagético, como a fotografia ou o desenho, por exemplo. No nosso caso,

Figura 1: “como fazer um zine” Fonte: produção da pesquisadora

tais histórias são reproduzidas em forma de histórias em quadrinhos. Segundo EISNER (2005), “as histórias em quadrinhos são, essencialmente, um meio visual composto de imagens”. Em sua produção, estudos e escritos, o autor, reconhecido e aclamado entre quadrinistas do mundo inteiro, afirma que as palavras são um componente vital das HQs, mas que a maior dependência para narração e descrição são as imagens e figuras, os símbolos compreendidos de forma universal (EISNER, 2005). Ainda em EISNER (2005),

o autor aponta que contar histórias é uma forma de preservar o conhecimento, transmitindo-o de uma geração para outra. Consideremos, agora, que o primeiro passo para produzir uma HQ é ter uma história para contar. Desde os tempos das cavernas, o homem transmite suas vivências e ensinamentos através de imagens. O homem primitivo contava suas aventuras com pinturas nas paredes das cavernas que habitava. São as chamadas narrativas visuais. Histórias contadas com uso de imagens. Mas para compreender a narrativa visual

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é preciso ter repertório, bagagem do que chamamos de cultura visual. A cultura visual seria um conjunto de referências visuais que encontramos em nosso meio e que fazem parte do nosso cotidiano desde que nos percebemos enquanto indivíduos integrantes da sociedade (HERNÁNDES, 2009). É a bagagem visual que carregamos desde o momento em que aprendemos a associar imagem e palavra, identificar os símbolos que melhor expressam a mensagem que absorvermos e as que desejamos transmitir quando nos comunicamos. Adquirir bagagem visual é um exercício diário. Por exemplo, para aprender palavras novas precisamos ler mais diversos textos. Da mesma forma, para adquirirmos referências visuais precisamos observar mais atentamente as imagens que estão ao nosso redor. Não necessariamente assistir um filme, observar pinturas, mas também a mais básica das ações: olhar ao nosso redor. Dessa maneira, será possível desenvolver uma técnica de produção artística para produzir uma imagem figurativa, ou seja, que seja compreendida. A imagem figurativa é aquela que não precisa de grande esforço para perceber, é a imagem que mostra um objeto muito próximo daquilo que ele é ou representa de tal maneira que não necessita de uma palavra para ser compreendida. Utilizando elementos da linguagem visual, é possível nos apropriarmos da narrativa que nos foi contada oralmente para gerar imagens que reproduzam esse relato que chegou até nós como 170

Figura 2: página 1 da HQ “Beijinho” Fonte: produção da pesquisadora

informação verbal. Agora, essa história pode ser contada de outra forma, utilizando imagem e texto dispostos de maneira sequencial. Essa narrativa visual pode ser categorizada como ferramenta de transmissão de conhecimento, contação de história e até como tradução intersemiótica da oralidade, uma vez que é, à grosso modo, a interpretação de uma mesma narrativa entre diferentes linguagens. É, basicamente, um retrato falado. XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

CONCLUSÃO A ação de contar histórias está enraizada na prática social da coletividade humana. As Histórias são utilizadas para orientar o comportamento dentro da sociedade, argumentar valores e morais, ou até para sanar curiosidades. Elas representam, de forma dramática, relações sociais e os questões de convívio e impasses, discute ideias ou manifesta abstrações. Aliada aos saberes ancestrais,


às lendas da cultura popular, as histórias em quadrinhos se tornam ferramenta de transmissão de conhecimento. Os quadrinistas são contadores de histórias que utilizam suas habilidades de criar imagens para transmitir narrativas à quem interessar. Os temas são variados e existem HQs para todos os públicos e faixas etárias. O trabalho com quadrinhos utilizado como ferramenta para criar visualidades à lendas populares e histórias do povo traz importância para ambos os lados. O estudo e ensino dos elementos visuais empregados à narrativas vem sendo utilizado desde que o homem primitivo percebeu a importância de produzir imagens, registrando acontecimentos passados. Além de se utilizar das diversas empregabilidades das HQs, contar essas histórias contribui para a valorização e preservação das nossas lendas e mitos. Arrisco dizer que uma história em quadrinhos pode ser concebida com o objetivo de registrar um momento histórico. É claro que outras linguagens visuais exercem esse papel de forma majestosa, mas a capacidade que o ser humano desenvolveu de visualizar o mesmo ponto por diversos ângulos é, talvez, o que nos possibilite contar a mesma história de diversos pontos de vista, em diversas linguagens artísticas. Quem agrega valor à obra de arte é o próprio artista, como diz o ditado popular: “quem engorda o gado é o olho do dono”. Por muito tempo as histórias em quadrinhos foram menosprezadas e até marginalizadas como forma de arte, fosse dentro da categoria v inegável o papel que essa lin-

guagem exerce na alfabetização de crianças, jovens e até adultos. Quantos de nós não exercitaram a leitura com as divertidas aventuras da Turma da Mônica? Quem de nós nunca desejou ter super poderes como os heróis dos quadrinhos americanos? Qual jovem nunca teve interesse nas histórias contadas em mangá, os quadrinhos japoneses? São perguntas retóricas mas que carregam em si a própria resposta. Concluo, então, ponderando as HQs como literatura, como ferramenta de valorização da cultura popular, como objeto de transmissão de conhecimento e acima de qualquer outra categorização, como uma arte de contar histórias, uma ferramenta na transmissão de conhecimento. O que se difere são os instrumentos utilizadas na produção de cada narrativa, as referências visuais que cada artista escolhe, e os motivos pelos quais fez tais escolhas. Ao produzir narrativas visuais trabalhamos com escolhas e decisões. São vários os porquês que motivam as escolhas de como narrar um caso. Talvez o desafio maior seja esse, o de agregar valor à história contada, mantendo sua originalidade, atraindo não somente novos ouvinte e leitores, mas também despertar o interesse em possíveis novos apreciadores de arte, artistas, pesquisadores e docentes. Durante muito tempo questionou-se o papel das HQs na sociedade, e hoje, com o evidente crescimento de quadrinistas e iniciativas que apoiam a produção de quadrinhos nacionais, é inegável a importância social dessa arte de contar histórias. Seja pelo incentivo à leitura, pela alfabetização de indivíduos, para exibir o contexto social

em que vivem vários cidadãos, as histórias em quadrinhos oferecem a possibilidade de propagar uma forma de apreciar, ensinar e estudar as inúmeras narrativas dentro do patrimônio cultural. Essas histórias fazem parte de um conjunto patrimonial imaterial, são informação, são conhecimento. As lendas populares, as tradições de um povo... Pode ser uma história que foi ouvida, inventada ou vivida. Uma narrativa que nos foi contada e depois recontada através de outra linguagem é considerada conhecimento e, como bem se diz em vários pontos do planeta: conhecimento é o único bem que ninguém pode tomar de nós. REFERÊNCIAS EISNER, Will – Narrativas gráficas de Will Eisner / escrito e ilustrado pelo autor ; tradução: Leandro Luigi Del Manto – São Paulo; Devir , 2005 HERNÁNDZ, Fernando. – Catadores da cultura visual: proposta para uma nova narrativa educaionaç/ Fernando Hernández; revisão técnica: Jussara Hoffman e Susana Rangel Vieira da Cunha; tradução: Ana Duarte. Porto Alegre: Mediação, 2009 QUEIROZ, Antônio Geovane Monteiro de. – Sob a luz da lamparina: construindo narrativas visuais dos mitos e lendas de Bom Principio – Caucaia/CE – 2014 SOUZA, M. Lourdes Macena- Danças Dramáticas e suas características plurais na escola entre ensinantes e aprendentes, 2014

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ARTIGO SEM TÍTULO Edilene da Silva Bernardo1 Luziana da Silva Bernardo2 Antonio Marcos de Sousa Silva3 RESUMO O projeto, um tesouro chamado Nordeste: a arte do saber popular, da criação ao espetáculo consiste na iniciativa da promoção de atividades artísticas e culturais para a comunidade acadêmica e externa à UNILAB, abordando, especificamente a literatura e a cultura nordestina, a partir de peças teatrais e musicais, além de oficinas e palestras sobre a cultura nordestina. A fim de darmos continuidade ao projeto, neste segundo ano, continuaremos a realizar as atividades de rodas de leituras sobre literatura brasileira, contação de histórias, tais como lendas, cordéis, folclore, adivinhações, romances etc., com foco em autores que discutem o nordeste brasileiro, juntamente com apresentações de teatro, teatro musical popular, principalmente nas escolas parceiras. Tendo em vista a amplitude do projeto, continuaremos a promover palestras e eventos culturais com a participação de artistas e mestres da cul1 Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro- Brasileira (UNILAB), Bacharelado em Humanidades (BHU), e-mail: edilenebernardo97@gmail.com 2 Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Letras-Língua portuguesa, e-mail: silvaluziana305@gmail.com 3 Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Professor Dr. Instituto Humanidades e Letras (IH), e-mail: marcos.silva@unilab.edu.br

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tura popular, bem como, continuar as atividades lúdicas como oficinas de cordel, de xilogravura e de fantoches com meias, nas dependências da Unilab, assim como nas escolas parceiras do maciço de Baturité. Tendo em vista tudo isso, o principal objetivo deste projeto é destacar, para a comunidade acadêmica e externa à UNILAB, um olhar sobre a cultura teatral e literária popular do nordeste. Tais ações se justificam pela necessidade de salientar o desenvolvimento do tripé ensino, pesquisa e extensão que compõe a UNILAB e pela promoção do lazer, da diversão e do conhecimento sobre a diversidade da arte e da cultura nordestina para os estudantes da rede pública estadual e municipal de ensino das cidades do maciço de Baturité. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Teatro. Arte. Cultura Popular. Nordeste. INTRODUÇÃO A iniciativa da elaboração desse projeto surgiu da nossa experiência no curso “Iniciação teatral e contação de histórias”, promovido pelo projeto de extensão “Cidadania e interculturalidade lusófona no maciço de Baturité, Ceará, Brasil” que ocorreu no primeiro semestre de 2017, na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Pensando nos unilabianos e na comunidade externa à UNILAB, resolvemos elaXII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

borar o projeto “Um tesouro chamado Nordeste: a arte do saber popular, da criação ao espetáculo”, com fim artístico cultural e pedagógico, trazendo rodas de leitura de literatura brasileira, especificamente da região nordeste, tais como lendas, cordéis, folclore, adivinhações, romances etc., com foco em autores que discutem o nordeste brasileiro, juntamente com apresentações de teatro, além de oficinas e palestras sobre a cultura nordestina. A fim de darmos continuidade ao projeto, neste segundo ano, continuaremos a realizar as atividades de rodas de leituras sobre literatura brasileira, contação de histórias, tais como lendas, cordéis, folclore, adivinhações, romances etc., com foco em autores que discutem o nordeste brasileiro, juntamente com apresentações de teatro, teatro musical popular, principalmente nas escolas parceiras. Tendo em vista a amplitude do projeto, continuaremos a promover palestras e eventos culturais com a participação de artistas e mestres da cultura popular, bem como, continuar as atividades lúdicas como oficinas de cordel, de xilogravura e de fantoches com meias, nas dependências da Unilab, assim como nas escolas parceiras dos municípios do referido maciço. Nessa perspectiva, o projeto tem como principal objetivo pôr em destaque, para a comunidade acadêmica e externa à UNILAB, um olhar sobre a cultura teatral e literária popular brasileira, proporcionando assim, no caso dos estudantes estrangei-


ros, uma maior integração com a cultura popular brasileira, através da troca de saberes sobre lendas, cordéis, peças de teatro e, para os estudantes brasileiros, possibilitar reflexão acerca da arte e da cultura popular e afirmações indenitárias que podem ser geradas por meio da cultura. Tal projeto se justifica pela necessidade de salientar a importância do desenvolvimento do tripé ensino, pesquisa e extensão que compõe a UNILAB e da promoção do lazer, diversão e do conhecimento sobre a diversidade da arte e da cultura popular para a comunidade, permitindo, assim, um elo entre esta e a universidade. Vale também ressaltar a importância das atividades artísticas e culturais para a comunidade, haja vista que adolescentes, crianças e adultos estão tendo a oportunidade de se envolver com as atividades já realizadas nas escolas parceiras e nas dependências da Unilab. De fato, durante o primeiro ano do projeto, conseguimos oportunizar a ampliação de saberes sobre a cultura nordestina, assim, promovendo espaços de interação e exposição de ideias, de reflexões e, mais ainda, de incentivo à formação por meio da ludicidade e do lazer. Do mesmo modo, essas atividades artísticas e culturais são importantes para os unilabianos, tendo vista que a nossa diversidade cultural está presente diariamente no nosso contexto social por meio da dança, culinária, literatura, entre outras. Portanto, trabalhar a cultura popular é necessariamente produzir entre os estudantes, transformação, emancipação, reflexão crítica e o aprimoramento de saberes, Fazendo com que cada um se aproxime de

suas origens culturais, bem como, do fazer cidadania, ou seja, acessar seus direitos e cumprir seus deveres. Além disso, essas atividades se tornam importantes para a reflexão da relação entre educação e Cultura, transfiguração do Nordeste, bem como, o intercâmbio entre as culturas populares, eruditas e de massa. Sem falar na promoção de lazer, arte e cultura para as cidades do maciço de Baturité. DESENVOLVIMENTO Sabe-se que, a diversidade cultural e literária do Brasil é muito rica, porém há ainda um grande preconceito com determinadas manifestações culturais, entre elas, pode-se citar, a literatura de cordel, que pode ser considerada como uma forma de difusão cultural, mesmo não sendo aceita na categoria de texto literário, por conta da grande discriminação que ainda se tem com a cultura nordestina, como salienta Márcia Abreu em sua obra “Cultura Letrada”. A respeito disso, a autora (2006, p.39) se dedica a refletir e criticar essas formas de preconceito literário usando como exemplo obras de cordéis. Diz ela: “entra em cena a difícil questão do valor, que tem pouco a ver com os textos e muito a ver com as posições políticas e sociais”. Como cultura popular, a literatura de cordel, passa pelo crivo da distinção social que Bourdieu (2007) dedica boa parte da sua vida profissional para entendê-la. Para o autor (2007), o mundo social é construído por meio de estruturas sociais que exercem um papel fundante na valoração de determinadas manifestações cul-

turais e, diminuição valorativa de outras, como a cultura popular. A distinção acontece de modo objetivo e, ao mesmo tempo subjetivo, processado pelo gosto, pela legitimidade social que determinados grupos sociais impõem. Assim, a cultura popular, no processo de distinção social, está num patamar menor em relação à cultura erudita, de acordo com a ordem social estabelecida. Desse modo, e como suporte teórico, Bourdieu nos auxiliar na compreensão do mundo social em nossa volta, serve-nos para pensarmos as distinções entre cultura popular, cultura de massa e cultura erudita, ferramentas essenciais para a execução de nosso projeto. Pensar as formas menos legitimadas de produção de cultura, acorda-se aos princípios da descolonialidade do saber que Mignolo (2004) ressalta fortemente. Nesse sentido, cabe ressaltar a importância de se falar da cultura popular, pois esta é funciona como uma grande formadora da identidade de um povo, além de estar presente diariamente no cotidiano das pessoas, desde o ato de comer, dançar, falar, ouvir música, cultivar as tradições dos mais velhos, etc. Assim, surge a pergunta: mas o que seria cultura? E porque devemos estudá-la e, acima de tudo, fazer cultura? Numa dimensão antropológica, que percebemos como a mais completa, cultura é todo processo de sociabilidade humana, que cultivamos desde nosso nascimento até nosso falecimento. Na verdade, cultura deve ser compreendida com uma teia de significado que se constrói incessantemente em to-

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das as sociedades humanas, as do passado e as do presente. É toda e qualquer forma de comunicação entre seres humanos. As sociedades se construíram de modo diferentes umas das outras, porque foi a cultura, como construtora de significados, que exerceu seu papel de fazer com que os significados atribuídos para nossas maneiras de pensar, agir e compreender se distinguir de povos para povos. Geertz (2008), afirma que a cultura é pública porque nós a construímos de modo semiótico, a partir das relações que construímos com os outros. Desse modo, compreender o conceito de cultura em toda sua profundidade epistêmica, certamente, nos orienta a pensar como se opera as relações sociais que envolvem algumas manifestações culturais de nossa região, o nordeste brasileiro. Outra reflexão epistemológica que cabe aqui, diz respeito a cultura como produtora de autonomia, como responsável pela construção de identidades culturais. Recordamos muito fortemente das significativas contribuições do educador Paulo Freire, que, com suas pedagogias, do oprimido, da autonomia e da esperança, refletiu sobre os processos pedagógicos dirigidos pela lógica capitalista que torna o ato de educar uma ação mecânica e bancária, uma “tabua rasa”. Ele propõe um fazer pedagógico transformador, capaz de romper as amarras impostas pelo mundo instrumentalizado pelo capitalismo. Suas contribuições fornecem-nos elementos, não só da ordem teórica, mas também prática, compreensão sobre o ato de educar numa perspectiva horizontalizada, comparti-

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lhada entre educador e educando. Nesse caminho, Paulo Freire nos auxilia especialmente na questão da identidade cultural, na construção de raízes profundas sobre nossa cultura. Sobre isso, diz o educador: A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos. É isto que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmática visão do processo (FREIRE, 1996, p. 19). Assentado neste aporte, resolvemos trabalhar, nesse projeto, a cultura em seu modo de se manifestar, seja pelo regionalismo, seja pelas artes. O livro do autor José Luiz dos Santos “o que é cultura” traz diversas reflexões para o termo “cultura”, como nessa passagem do livro que segue: Assim, discutir sobre cultura implica sempre discutir o processo social concreto. É uma discussão que sempre ameaça extravasar para outras discussões e preocupações. Lendas ou crenças, festas ou jogos costumes ou tradições – esses fenômenos não dizem nada por si mesmos, eles apenas dizem algo enquanto parte de uma cultura, a qual não pode ser entendida sem

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referência a realidade social de que faz parte, a história de sua sociedade. SANTOS (1996, p.48). A valorização de uma cultura e consequentemente de uma região é importante justamente para a preservação da sua existência. Falando de cultura popular nordestina, resolvemos então investigar as várias faces do nordeste, usando para isso o livro “A invenção do nordeste e outras artes” de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, que faz um apanhado histórico e traz reflexões do que é o nordeste e sua importância. Este autor aborda justamente a regionalização e a diversificação dessa região. Desse modo, e a partir da visão do livro de Durval Muniz, pode-se perceber que o nordeste pode ser incluído dentro de uma perspectiva de formação e valorização da cultura popular brasileira, apesar de seu contexto histórico, ou seja, um espaço do país que nunca foi o centro das relações sociais, econômicas e culturais. Como o autor mesmo destaca nos seguintes trechos: O nordeste é definido como uma “província literária”, legitimando assim não só a identidade do romance como nordestino, como a própria ideia de nordeste por “possuir uma literatura própria que é expressão de sua verdade. (...) Um nordeste construído com narrativas de ex- escravos, de pessoas sem sobrenome, com histórias ouvidas na infância, com histórias que circulavam em toda aquela área; histórias de can-


gaceiro, de santos, de coronéis, de milagres, de secas, de cabras valentes. ALBUQUERQUE JÚNIOR, (1999, p.125 e 130). Levando em consideração todas as reflexões propostas por estes autores a respeito do conceito de cultura, cultura popular, identidade e nordeste. Este projeto procura, também compreender a diversidade literária e cultural brasileira, pensando na “carência” artística e cultural das cidades de Redenção e Acarape, bem como a necessidade de descobrir e aprimorar saberes da cultura nordestina, além da promoção da integração entre estudantes brasileiros, estrangeiros, e comunidade externa à UNILAB, foi que resolvemos elaborar este projeto. A metodologia proposta para este projeto está inteiramente ligada às formas de execução das ações. Desse modo, e para melhor atingirmos os objetivos desta proposta, as atividades dessa ação foram divididas em quatro momentos. No primeiro momento do projeto compreende a execução das oficinas, palestras e minicursos na universidade e nas escolas do maciço de Baturité. Essas oficinas serão ministradas por artesãos, poetas cordelistas e por professores convidados. O segundo momento compreende a produção de oito rodas de leituras que serão realizadas nas dependências da Unilab. Essas rodas de leituras serão compostas por estudantes da Unilab e das escolas públicas das cidades do maciço de Baturité. Os bolsistas- voluntários, responsáveis pela execução desta atividade, farão os convites de modo presencial nas

salas de aulas da Unilab e das escolas públicas de Acarape e redenção, assim como elaborarão cartazes-convites que serão afixados nos flanelógrafos dessas instituições. Composta a equipe, as rodas de leituras têm como objetivo a produção de peças teatrais e musicais para encenações na Universidade, nas escolas públicas e nos espaços públicos das cidades do maciço de Baturité. Já o terceiro momento, diz respeito à execução das peças teatrais elaboradas pelos participantes das rodas de leitura, que serão apresentadas nas dependências da Unilab e nas escolas públicas parceiras. Por fim, no quarto momento, organizaremos uma cerimônia de encerramento do projeto “um tesouro chamado Nordeste: A arte do saber popular - da criação ao espetáculo”, para todas as instituições envolvidas, com a apresentação de audiovisual com depoimentos dos beneficiários e do público-alvo atendido. CONCLUSÃO Constata-se que estas iniciativas são de suma importância para a valorização da cultura popular, para o fortalecimento do tripé ensino, pesquisa e extensão que compõe a UNILAB e pela promoção do lazer, do conhecimento sobre a diversidade da arte e da cultura nordestina para os estudantes da rede pública e municipal de ensino do maciço de Baturité, assim como para os estudantes unilabianos e comunidade externa em geral. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes.

1999. Disponível em: <www.cortezeditora. com.br>. Acesso em: 3 out. 1999 ABREU, Márcia. Cultura letrada. São Paulo: Ediunesp, 2006 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa / Paulo Freire. – São Paulo: Paz e Terra, 1996 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas / Clifford Geertz. - l.ed., IS.reimpr. - Rio de Janeiro : LTC, 2008 MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da ‘ciência’: Colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistémica. In: Boaventura de Sousa Santos (Org.) Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. p. 66 SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 1996. Disponível em: <www.editorabrasiliense.com.br>. Acesso em: 12 out. 1996 OUTRAS REFERÊNCIAS https://trendr.com.br/cultura-popular-sua-diversidade-e-import%C3%A2ncia-96446407feec https://www.todamateria.com.br/cultura-do-nordeste/

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FESTA DE SÃO PEDRO: RESISTẼNCIA E TRADIÇÃO POPULAR RELIGIOSA NA COMUNIDADE TRADICIONAL PESQUEIRA DE CAETANOS DE CIMA Francisco Romário de Sousa Holanda1 Francisco Nonato do Nascimento Filho 2 Valneide Ferreira de Sousa3

Pedro vem no decorrer dos anos resistindo com a fé dos pescadores e pescadoras artesanais. Palavras Chave: Resistência, Festa popular, Promessa.

RESUMO INTRODUÇÃO O objetivo central do artigo é relatar a festa popular religiosa de São Pedro que acontece na comunidade pesqueira de Caetanos de Cima, assentamento de Reforma Agrária Sabiaguaba, município de Amontada -Ceará. O festejo teve início a partir da promessa feita por Mãe Zefa, no ano de 1976, para que pescadores que naufragaram em alto mar voltassem com vida a suas casas. Após o milagre, foram realizadas novenas na casa de Mãe Zefa, sendo que em 1998, a festa passa a ser realizado no galpão de pescadores. O relato é feito a partir de histórias contadas pelos os mais velhos, presenciadas e vivenciadas na comunidade e na realização do festejo. A festa de São 1 Graduando em Licenciatura em Teatro.Vinculado ao Instituto Federal do Ceará - IFCE.E-mail: romariodeholanda@gmail.com 2 Graduando em Ciências Sociais. Vinculado a Universidade Federal do Ceará.E-mail: nonatofortaleza@ gmail.com 3 Especialização em Arte e Cultura Popular -UFCA. Especialização em Gestão Escolar-UFC. Especialista em Metodologia do Ensino Fundamental e Médio - UVA. Licenciatura em Pedagogia - UVA. Vinculada a E.E.B Maria Elisbânia dos Santos. E-mail: edienlav@yahoo. com.br

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A tradicional da Festa de São Pedro acontece entre os dias 19 a 29 de junho, em Caetanos de Cima, localizada no litoral oeste do Ceará, a comunidade pesqueira, é uma das três comunidades tradicionais que compõem o assentamento Sabiaguaba, no Município de Amontada a 170 km de Fortaleza, capital do Ceará. A comunidade têm aproximadamente 246 moradores que tem como principal atividade econômica a pesca artesanal, agricultura familiar e turismo de base comunitária. Territórios de grandes belezas naturais, cercada por dunas brancas, banhada pelo mar de águas verdes, envolvido com o vento leve que corre solto pelo litoral. Característica que desperta o interesse da especulação imobiliária, que visa o território a fim de construir grandes empreendimentos financiados pelo o grande capital, que investe de diversas formas, criando estratégias para tomar posse das terras pertencente aos moradores. Falar da reli-

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giosidade popular de caetanos de Cima, da Festa de São Pedro é necessário abordar e contextualizar os conflitos enfrentados e estratégia de lutas criadas pelos moradores na defesa dos seus territórios. Na década de oitenta os moradores da comunidade sentem maior necessidade de articulação e organizações juntos as pastorais sociais e movimentos populares e comunidade parceiras que dialogam com as causas de defesa a terra. Na medida em que as ameaças vindas da especulação imobiliária se intensificava, os moradores se organizavam. A igreja, os grupos religiosos e manifestações religiosas acolheram primeiro a questões, sendo o primeiro espaço de organização da comunidade. Os encontros feitos embaixo das árvores era momento de fé e organização de luta contra a opressão, tendo como base um Deus Popular, próximo do homem, igreja que é povo. O termo Religiosidade Popular ganhou evidência, quando os bispos da América Latina se reuniram a Medellín (1968) e concluíram lucidamente: Se a Igreja é o Povo de Deus e nosso povo é pobre, teremos de fazer opção pelos pobres e valorizar as expressões culturais da fé popular, de índios, negros, brancos, mestiços. “Religiosidade popu-


lar”, “piedade popular”, “catolicismo popular”, remetem à fé vivida na periferia do mundo e à margem da religião oficial, que até então celebrava em latim” (POEL, 2017)

dade, o festejos tiveram início com as novenas do mês de maio, e por fim o Festejo é de São Pedro, na qual iremos conhecer mais de perto no decorrer do texto. 2. FESTA E SÃO PEDRO

Em Caetanos de Cima a maioria das pessoas professam a religião cristã, chegado a aproximadamente 90% dos religiosos frequentarem especificamente a igreja católica. O catolicismo popular está presente entre os moradores da comunidade, considerando o que disse BARROS,(2009). Os fiéis do catolicismo mais popular refaz a espiritualidade da aliança proposta pela fé bíblica. Como na versão da fé que receberam Deus lhes parecia distante e separado da vida, aprofundaram uma aliança de intimidade com as manifestações divinas que lhes pareciam mais próximas, santos e santas da devoção popular se tornam “manifestações” de Deus. (p.131). Na comunidade existem diversas manifestações culturais e religiosas, em diálogo com o Dom Canísio Klaus, “Entre as expressões da espiritualidade popular contam-se as festas patronais, as novenas, os rosários e via sacras, as procissões e romarias (...), o carinho aos santos e santas, em especial a Nossa Senhora, as promessas, as ofertas e as orações e celebrações (2011). Entre essas manifestações, podemos destacar as Novenas de Natal, Coroação de Maria e Mês Mariano, Legião de Maria, Festa de Nossa senhora das Graças, padroeira da comuni-

Tudo começou no ano 1976 com uma promessa feita por Josefa Tomé da Silva, conhecida por todas e todos de Mãe Zefa, (im memória) rezadeira, parteira e garrafeira da comunidade, crente em Deus, no poder das plantas e nos santos, nascida aos 16 de junho de 1915 em Caetanos. Filha de Francisco Catirina de Sousa e Raimunda Tomé do Espírito Santo. Casou-se em 1930 com João Calixto da Silva, deste casamento teve 11 filhos biológico e 3 de criação (adotivo). Mãe Zefa tornou-se uma pessoa popular em toda região pelos serviços prestados como parteira e pelos saberes tradicionais como curas que realizava através das rezas e dos conhecimentos das propriedades terapêuticas das plantas medicinais. Em sua casa a mesma dedicava-se horas seguidas no atendimento aos doentes, no repasse das rezas e no cuidado com as plantas. Tinha uma vivência marcada pela religiosidade, o qual foi responsável por boa parte da cultura oral e costumes, até hoje conhecidos pela Comunidade de Caetanos de Cima. 2.1. NAUFRÁGIO, MOTIVO DA PROMESSA AO SANTO PESCADOR Em 10 de junho de 1976, a canoa de Alvina Ferreira de Sousa (filha de Mãe Zefa) foi para o mar com uma tripulação formada pelo mestre Chico Lúcio (Francisco do Nasci-

mento), Bento (Manoel Sebastião de Sousa), Lilista (João Evangelista Sousa da Silva) e o menor (por respeito, optamos não expor o nome) que estava aprendendo a pescar. Chegando em alto mar a canoa naufragou, os pescadores passaram dois dias desaparecidos no alto mar. Todos os moradores da comunidade acreditavam que os mesmos não eram mais vivos, Mãe Zefa, muito espirituosa, fez uma promessa para que os pescadores conseguirem se salvar e voltassem para casa com vida, a mesma compraria uma imagem de São Pedro e começaria uma devoção de rezar terços em agradecimento. A promessa vou ouvida pelo o santo e atendida. Os pescadores foram salvos por Mané Justo dos Torrões que pescava em sua canoa e os encontrou à deriva. O primeiro a ser recolhido foi o jovem já falecido, em seguida, o João Evangelista que já tinha perdido os sentidos (não falava, não ouvia e não respondia aos estímulos). Mané Justo e sua tripulação saíram procurando os demais e como não os encontrava subiu no mastro4 da vela e conseguiu ver os outros dois pescadores que estavam juntos (Bento e Chico lúcio) e os resgatou também. Mané justo levou-os para os Torrões, praia da município de Itarema-Ceará, lá fizeram o sepultamento do menino morto que tinha apenas 10 anos. Depois um filho do Zé Bonifácio (morador da comunidade) veio trazer a notícia sobre os sobreviventes para as famílias. Enquanto estavam desaparecidos os Moradores de Caetanos se reuniam para 4 Mastro - longo pedaço de madeira que sustenta a vala da embarcação.

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rezar pedindo a Deus e a São Pedro que os mesmos fossem salvos. As orações se alternavam, horas nas casas das famílias em outros momentos à beira mar. 2.2. FESTA DO SANTO PESCADOR NO GALPÃO DOS PESCADORES Tendo os pescadores aparecidos, Mãe Zefa passou a cumprir sua devoção em sua própria casa. Em 1998 a mesma decidiu promover uma grande festa, o local escolhido foi o galpão dos pescadores, casa construída em 1992 pela associação do assentamento Sabiaguaba na praia de Caetanos de Cima. O mesmo segundo alguns moradores e como está colocado no Historiando Caetanos de Cima “O projeto passou por umas dificuldades, e Josefa pediu para as novenas serem feitas lá, pois segundo ela as dificuldades iriam diminuir, porque ela acreditava no poder de Deus” (2010), assim, com a fé em Deus e no santo, as dificuldades do galpão de pesca iria se acabar e a promessa continuaria sendo cumprida. Em homenagem a São Pedro com terços, novenas e caminhadas no mar no dia 29 de junho. A mesma fez as articulações com os pescadores e responsáveis pela igreja, justificando que se tratava de uma promessa, enfatizando assim o motivo de salvamento do naufrágio. Aos 30 dias do mês de março de 2000 com 85 anos, Josefa Tomé da Silva faleceu e foi sepultada no cemitério de Caetanos de Cima. Acompanhado por dois anos o festejo na casa do santo pescador junto aos pescadores.

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2.3. A CONSTRUÇÃO DA BARRACA DE SÃO PEDRO. A Festa de São Pedro iniciou-se em 1998 a ser realizado no Galpão dos Pescadores, idealizada por mãe Zefa, após seu falecimento os familiares deram continuidade, pois a mesma tinha feito um pedido para que não deixasse de fazê-la. Ao longo dos 17 anos, tratava-se de um evento simples que agregava algumas pescadoras e pescadores e seus familiares, com o passar do tempo a festa foi ganhando força. Em 2016, a comunidade de caetanos de Cima passava por muitos conflitos internos e boa parte deles tinham origem nas questões religiosas, pois estes eram e são considerados até hoje como espaço de poder. A igreja que antes era conduzida pelos familiares direto de Mãe Zefa passa a ter outras pessoas a frente, no entanto a organização da festa de são Pedro continuou com as mesmas pessoas, familiares, pescadores e pecadores fiéis ao santo. Porém, diante da expansão dos acontecimentos da igreja e sob a organização interna de outros e de novos seguimentos religiosos que apresenta dificuldade de diálogo com as manifestações de religiosidade popular, tal fato passa a representar uma ameaça para que a festa fosse extinta. De 1998 a 2015, todas as novenas referente festa foram realizadas no Galpão de Pesca que foi construído na praia, pela Associação, em 1992. Em 2016, poucos meses antes da festa de São Pedro, o Galpão dos Pescadores foi alugado para o funcionamento de um bar, além de alegações sobre

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o comprometimento na estrutura, motivos pelo os quais o grupo religioso que pretendia levar a festa de São Pedro para igreja. O “conceito de religiosidade popular tem sua origem no culto e está presente em todas as civilizações, permitindo as mais diversas análises; contribuindo para entender as relações do homem com suas crenças e o modo de relacionar-se em sociedade (Saraiva, 2010, p.147).” Maior parte da comunidade, fiéis, pescadores, grupos e militantes culturais e do patrimônio não aceitaram, alegando ser uma perda do patrimônio imaterial e identidade religiosa da comunidade, assim os fiéis, assumiram o compromisso de construir uma barraca de palha “a barraca de São Pedro”, dessa forma além de defender a continuidade da tradição aproximava-a mais ainda de sua origem, agregando-lhe características simples, dando a ideia de uma igreja aberta a todos que quisessem frequentar ou participar dela. E assim se fez, em mutirão a Barraca de São Pedro. A construção só acirrou os ânimos na comunidade pois para os responsáveis pela igreja católica e adeptos a uma evangelização renovada da comunidade, alegando que o grupo defensor da festa estava criando uma nova igreja católica e muitos obstáculos foram criados para que a festa não acontecesse. Outro fator que merece destaque nesse contexto é o fato que nesse momento estava sendo discutido a questão dos instrumentos de percussão usados para fazer o acompanhamento dos hinos da novena, considerados por alguns fiéis em Deus, como se fosse falta de respeito às normas da igreja.


“Essa é uma religiosidade que tem como um dos pontos fortes a devoção aos santos católicos e da reunião das comunidades em momentos específicos para celebrarem seus padroeiros, transformando-se em eventos que se caracterizam pela realização de festas religiosas e festejos” (Saraiva, 2010, p.149).” A construção desse local para ser realizado os novenários veio resgatar as características da igreja que tinha como base a Teologia da Libertação como foi no início, antes da igreja (prédio) era realizado embaixo das árvores, período de proximidade com as Comunidades Eclesiais de Base, nos quais Caetanos de Cima era referência e aos poucos foi perdendo dando espaço à tendência carismática, cujo a prática cristã consiste em rezar e louvar a Deus em uma relação pessoal sem o compromisso com o social. Embora tudo fosse muito simples e estivesse envolto em tantos conflitos, a festa de São Pedro fortaleceu-se obtendo mais participação, a cada ano tanto nas novenas, como na missa e na caminhada no mar (Procissão fluvial), agregando pescadores e pescadoras de comunidades, e fiéis do santo que permanece a identificação com os festas populares tradicionais. A partir de 2014 agregou-se a festa de São Pedro o evento cultural Terreiro Cultural que acontece anualmente após a última novena. Em 2016 foi colocado um marco “estátua de São Pedro” como resis-

tência, e reafirmação de povo simples de crença popular que resiste nos territórios tradicionais pesqueiros. Tradicionalmente a festa do Santo protetor dos pescadores e pescadoras é realizada na comunidade de caetanos de Cima, entre os dias 19 a 29. Há 20 ano as novenas vem sendo realizada por fiéis, moradores da comunidade e localidade vizinhas, em agradecimento pela a vida as boas pescarias, e por cumprimento da promessa, como nos disse Saraiva (2010);

é levada para a praia onde as novenas são realizadas. Dos dias 20 à 28 é realizada as novelas, organizada pelo fiéis, homens, mulheres, crianças que juntos na beira da praia, sob a “barraca de São Pedro” celebra a fé a Deus e ao Santo, como mostra a figura abaixo: No dia 29 acontece o “encerramento da festa”, dia da tradicional procissão de

Os festejos se caracterizam por serem manifestações de fé, de agradecimento por benefícios alcançados e renovação dos pedidos feitos à imagem do santo protetor. Podemos considerar que as festas de santo são promessas coletivas que visam o bem estar da comunidade (p.150). Diante disso, alguns religiosos crentes na fé de São Pedro, tendo a consideração de Mãe zafá e tendo consciência de valor histórico agregado ao patrimônio imaterial religioso de uma comunidade, “as atribuições dadas ao espaço e a forma de inserir-se nele estão ligadas à cultura e ao modo de vida das populações(Saraiva, 2010, p.152). O sagrado sendo vivido, rezado próximo do homem. O festejo é realizado em três momentos: No dia 19 de junho, a noite acontece a “abertura das novenas” dia em que a imagem de São Pedro é retirada da igreja onde durante o ano fica guardada, em procissão

Fig: 1. Novena na Barraca de São pedro - Foto: Romário Holanda - 2017

São Pedro. Geralmente no período da manhã na hora de maré baixa5 Os pescadores colocam seus barcos nas águas para agradecer ao Santo protetor (figura. 2 e 3). No mesmo dia no período da noite é celebrado a missa de São Pedro. No domingo seguinte dia de celebração na Igreja da Comunidade os fiéis trazem a imagem do santo em procissão encerrando os festejos. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os moradores, pescadores e pescado5 Maré Baixa — nível mínimo atingido pelas águas após a vazante.

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Fig: 2. Preparação dos barcos para procissão. Foto: Romário Holanda-2017

ras da praia de Caetanos de Cima depois de ter seguido rigorosamente por 18 anos a tradição de celebrar anualmente a festa em homenagem a São Pedro atendendo a uma promessa feita por mãe Zefa (Josefa Tomé da Silva) in memoriam, sentimos a necessidade de organizarmos um lugar apropriado para celebrarmos o culto a nosso Deus e ao nosso co-padroeiro São Pedro, pois os espaços antes ocupados não eram adequados para esse fim. A falta de um local para realização da festa tornou-se nos últimos anos motivos de discussão, nos quais foram cogitados a transformação da festa para outros locais ou até mesmo acabar. O momento sempre acontece em 180

Fig: 3. Fiéis cantando cânticos de São Pedro. Foto: Romário Holanda-2017

junho de cada ano, e é constituído pelas nove novenas e uma caminhada no mar que acontece dia 29 de junho seguido da missa solene. No final das novenas especificamente no último dia 28 acontece apresentações culturais.

Artigos, Acesso: 09 nov.2018.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

POEL, Francisco Van Der, Religiosidade popular, Belo Horizonte, 2017. Disponível no site Princia Santa Cruz, Link:http://www. ofm.org.br/artigo/religiosidade-popular-25012017-082347 , Acesso: 07 nov 2018.

SARAIVA, Adriano Lopes, Religiosidade popular e festejos religiosos: Aspectos da espacialidade de comunidades ribeirinhas de porto velho, rondônia, Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III, n. 7 , Mai. 2010 - ISSN 1983-2850, disponivél no site: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018

KLAUS.Canísio, A Religiosidade Popular e suas Manifestações/2011 http://www.cnbb. org.br/a-religiosidade-popular-e-suas-manifestacoes/ acessado em:07 de nov 2018.

BARROSO. Marcelo, O sabor das festas que renasce: para uma teologia afro-latíndia da libertação, ed. Paulinas. São paulo, 2009.


OS PONTOS CANTADOS NA UMBANDA: DOUTRINAS E SENTIDOS Melina Sousa Gomes 11

dades, caboclos e encantados nos terreiros, discorrendo sobre possíveis interpretações presentes nas letras.

RESUMO A religiosidade popular é fortemente marcada por uma série de ritos, tradições e costumes muitas vezes apreensíveis somente por quem a vivencia cotidianamente. Faz parte dessas tradições um forte senso estético, musical e poético que são bem expressos nos pontos cantados, louvores, benditos, cânticos, ladainhas e demais modalidades de música sacra. Este trabalho versa sobre os pontos cantados em um terreiro de umbanda situado no município de Fortaleza-CE, mas que se repetem, com algumas variações, ao longo do território nacional. É através dos pontos cantados que as entidades apresentam-se quando incorporam, explicam os sentidos de seus trabalhos, comunicam-se com seus filhos de santo e transmitem o conhecimento sobre a religião, pois a umbanda é fortemente marcada por uma tradição oral no repasse de sua história e doutrina. Este trabalho expõe e analisa, brevemente, alguns pontos cantados pelas enti1 Professora do curso de Psicologia na UniAteneu. Psicóloga (UFC), mestre em Sociologia (UFC) e graduanda em Ciências Sociais (UECE). Pesquisa rituais de umbanda pelo viés da antropologia cultural e das religiões, com ênfase nos cantos e danças presentes nos terreiros. Possui interesse e pesquisa no uso de substâncias psicoativas no campo da saúde pública, saúde mental (psicologia social do trabalho e saúde do trabalhador) e também em suas dimensões cultural e religiosa; desenvolveu pesquisa de mestrado sobre o uso ritualístico de álcool na umbanda.

Palavras-chave: Umbanda; Pontos Cantados; Ensinamentos. INTRODUÇÃO A Umbanda reivindica para si, desde sua fundação, o título de religião brasileira por excelência. Isto devido ao fato de ela surgir em um momento de forte influência europeia, coincidindo com certa descrença na Igreja Católica e o desejo de firmação de uma identidade nacional. Esta nova religião vai, então, tanto não menosprezar a influência europeia, como captar práticas indígenas e incorporar elementos dos cultos africanos, além de reproduzir alguns traços dos catolicismos tradicional e popular; grosso modo, nesta mescla ela retrata a própria formação do povo brasileiro e as diversas cosmologias existentes nas crenças espirituais de nossa sociedade à época, combinando-as entre si em maior ou menor grau. O espiritismo kardecista, pajelanças e encantados indígenas, orixás simbolizados em suas forças da natureza, bem como orações como o Pai Nosso e a Ave Maria e ainda a apropriação de rezas, encantamentos e manejo com ervas das tradições populares, compõem o universo

rico das giras de umbanda. Em novembro do ano de 1908, o médium Zélio Fernando de Morais recebe em seu templo no estado do Rio de Janeiro o Caboclo das Sete Encruzilhadas, que transmite uma missão clara aos crentes ali presentes: estava fundada a primeira religião brasileira e nela não haveria distinção, preconceito ou discriminação de qualquer ordem. Isso é bem expresso ao pensarmos nas linhas de caboclos da Umbanda: são índios, boiadeiros, baianos, malandros, bêbados, pajés, pretos velhos, pomba giras e ciganos. São classes marginalizadas em geral, que sofrem preconceitos em diversas esferas, inclusive a religiosa. A umbanda acolhe e seduz, através da reprodução sagrada destes tipos, uma gama de desvalidos que na ausência de um sistema público de qualidade em saúde, por exemplo, passa a frequentar terreiros em busca de curas e demais trabalhos, como procura por emprego, concretizações afetivo-amorosas e consultas, simples conversas com os guias – é um contato direto com deuses humanos que pregam a igualdade e a tolerância, além de permitir que seu próprio corpo abrigue o sagrado através da incorporação. Ela surge, portanto, em um contexto de (re)invenção do que seria ser brasileiro, em um período no qual a produção intelectual estava fortemente influenciada pelos ideias positivistas e os estudo eugênicos surgiam com grande força.

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É uma religião acolhedora em seus mitos, ritos e crenças, além de valorizar a dimensão da unidade dos indivíduos que a praticam, no sentido de colocar seus adeptos em um contato direto com as entidades e da seriedade que correm comumente os trabalhos de desenvolvimento mediúnico – é um patamar de importância, relevância e legitimação social que muitas vezes os adeptos só experimentam no espaço dos terreiros. Isto posto, vale ressaltar um aspecto interessante e fundamental da umbanda: sua plasticidade. A religião, embora esteja presente em todo o território nacional, adapta-se sem maiores transtornos às regionalidades de seu entorno, ou seja, seu universo imaginário e simbólico está fortemente relacionado aos traços históricos e culturais do local no qual o terreiro se inscreve, inclusive no que diz respeito à construção e presença das entidades nos terreiros. Assim, um outro ponto que merece destaque diz respeito às identidades dos caboclos em seus terreiros. Cada entidade de umbanda possui uma história, uma linha específica de trabalho, um modo de falar, um jeito de vestir, uma comida, um elemento da natureza, uma bebida, um ponto cantado, outro riscado, enfim... a personalidade de cada caboclo que incorpora em um médium e vem trabalhar em terra, sofre variações ao longo do território nacional e não há, portanto, uma única forma de pensar sobre estes trabalhos, embora alguns traços gerais sejam recorrentes. Destes traços comuns, podemos destacar a oralidade fortemente presente na transmissão de conhecimentos e práticas da Um-

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banda. Por ser uma religião que não dispõe de uma unidade que lhe dê coesão e nem de um único livro que corresponda às escrituras sagradas, pois este tiraria uma de suas principais características que é justo a plasticidade, o repasse através da fala é o principal vetor de preservação e manutenção da religião. Tal repasse, entretanto, não ocorre, via de regra, dentro de uma formalidade, como a elaboração de escritos ou manuais. Ora, é lógico: se o sagrado manifesta-se individualmente em cada sujeito a depender de sua mediunidade, não há como catalogar ou ensinar sujeitos leigos sobre o assunto. O conhecimento dá-se através da experiência, da vivência, da intuição e experimentação. Pressupõe um “deixar-se ir” pelos encantos, transe, possessões e incorporações. Então como este conhecimento é repassado? De que formas ocorrem a transmissão oral que mantém viva a umbanda? Aqui entra em cena o objeto de análise deste texto: os pontos cantados. É através da oração em forma de música que as entidades dão seus recados, contam suas histórias, explicam em que estão trabalhando, o como e o motivo de o fazerem. Há pontos – também chamados de “corimbas” – comuns, recorrentes em todos os rituais e encontrados em quase todos os terreiros, e há aqueles particulares, que são verdadeiros presentes das entidades para seus filhos. (PEREIRA, 2012). É através da música que as entidades são saudadas e transmitem suas mensagens. Todos no terreiro têm por obrigação contribuir no cântico das “corimbas”, e esta memorização permite também a transmissão do conhecimento, pois os pontos cantados são prenhes de sentido. A gira corre conforme

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as músicas, pois há cantiga de abertura dos trabalhos, de saudação aos guias espirituais chefes da casa e de despedida, caracterizando início, meio e fim do ritual. Elas indicam o que está sendo realizado por aquela entidade. A partir de agora, alguns pontos cantados serão expostos para exemplificar seus sentidos e relevância dentro do ritual e na manutenção e preservação da umbanda. Todos os pontos aqui trabalhados foram colhidos em um terreiro localizado da cidade de Fortaleza-CE, entre os anos de 2012 e 2014, para fins de elaboração de dissertação de mestrado da autora. DISCUSSÃO Lajeiro Grande, Pedra Miúda Quem tá chegando agora é Mãe Vicença Carnaúba Essa velha bebe, essa velha fuma Quem tá chegando agora é Mãe Vicença Carnaúba O ponto cantado exposto no início deste tópico é uma cantiga de chegada de uma Preta Velha, mãe Vicença. Ela anuncia sua presença pedindo bebida e fumo para que possa então realizar suas mandingas. Como sabe-se disso? Pelo fato de ela ter cantado, pois sua cantiga anuncia e dá o tom do que está por vir: é desta forma que ocorre a transmissão oral, através da música sagrada, nos rituais de umbanda. O final da estrofe é mutável a depender do trabalho que está sendo feito. Se a referida preta velha veio realizar uma limpeza, o último verso citado é substituído por “quem


vai levar o mal é Mãe Vicença carnaúba; se ela veio fazer um levante, “quem vai te levantar é Mãe Vicença carnaúba”, e assim sucessivamente. Muitos exemplos como este podem ser citados e para tanto vamos relatar o andamento de uma gira comum, pois é nela que os trabalhos cotidianos são realizados. O cântico de abertura é o momento de pedir permissão para girar. Deus, em algumas nações de Umbanda, é denominado Zambi; o cântico, então, pede licença a Zambi para abrir o Caicó - sinônimo de gira. A letra é: Auê auê babá Eu vou abrir meu Caicó Eu vou pedir licença à Zambi para abrir meu Caicó É na fé do meu/minha (cita o nome do orixá ou do caboclo) Eu vou abrir meu Caicó Este cântico possui uma ordem, iniciando por Oxalá e finalizando com Exu. A importância de cantar e dançar (também dito baiar, provavelmente corruptela para bailar) na Umbanda chamam a atenção, tanto é que a exploração dos pontos cantados é um importante aspecto destes escritos. É consensual entre meus interlocutores e qualquer adepto de religiões afro-brasileiras que, quando se canta e baia com ou para a entidade, esta recebe mais força e melhor realiza seu trabalho. Acompanhar no ritmo, com palmas, dançando e cantando é uma das maneiras mais eficazes de garantir a concretização de qualquer evento, seja uma cura, um desmanche ou simplesmente um convite e um pedido. Em seguida ao canto de abertura, can-

ta-se para Exu. Cantar para é diferente de cantar com: quando se canta para o Exu ele não está incorporado, é apenas uma saudação, um chamado. Cantar com o caboclo ou orixá implica o fenômeno do transe de possessão. DEFUMAÇÃO, CRUZO E ORAÇÕES Os poderes mágicos e a mística que envolve a fumaça remonta a épocas longínquas, não sendo de forma alguma exclusiva da Umbanda e demais religiões afro brasileiras. O cântico da defumação diz Defuma com as ervas da Jurema Defuma com arruda e guiné (...) Embora possam ser considerados como práticas diferenciadas, o catimbó e a jurema guardam, em geral, muita semelhança. Bastide (1945) afirma que, para os índios, a fumaça possui poderes sobrenaturais, capazes induzir o transe, efetivar curas e possibilitar a comunicação com os espíritos. Ele afirma que o catimbó é uma reformulação da jurema, que ao entrar em contato com o catolicismo absorveu alguns de seus elementos e continuou presente em especial nas camadas mais pobres do nordeste. O catimbó-jurema, então, abusa dos poderes da defumação, do fumo absorvido ou expelido para a realização dos trabalhos, tal como ocorre com as entidades da umbanda. Após a defumação, é hora de realizar as orações da casa. Pede-se luz, força e proteção, pode ser reforçado algum pedido já realizado, e por fim é rezado um Pai Nosso e

uma Salve a Rainha. E então tem início os trabalhos de incorporação propriamente ditos. Começa a chamada de caboclo. É momento de estar concentrado para aproximar a linha de caboclo e incorporar. Nesta hora são entoados cânticos de chamada e saudação aos caboclos chefes de linha, que devem ser os primeiros a incorporar. Em entrevista realizada sobre este momento, aconteceu algo interessante. Para explicar minha pergunta "Pai, o que é essa chamada de caboclo?", ele respondeu com um ponto cantado, o qual era: Tava na beira do rio sem poder atravessar Chamei pelos caboclos Caboclo é Tupinambá Tupinambá é Rei É rei Tupinambá Chamei pelos caboclos Caboclo é Tupinambá Chamar pelo caboclo é, portanto, invocar aquelas entidades com as quais se deseja trabalhar, através da força do pensamento e dos pontos cantados, bem como da dança. Outra corimba de chamada é: Oh dai-me força, Jesus de Nazaré Oh dai-me força, Oxalá, pra eu trabalhar Dizem que a Umbanda tem mironga Se tem mironga Pai (Orixá da gira) tem seu congá O ponto cantado listado acima é um canto de chamada geral, pois qualquer orixá pode ser invocado a partir dele. Ge-

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ralmente, as entidades têm pontos de chamada específicos. O que se segue é, como o primeiro que se referia à Tupinambá, pertencente à linha de Oxóssi: E olhe a palha do coqueiro e olhe iê E olhe a palha do coqueiro e olhe iá E olhe iê, e olhe iá Se a sua banda não vier eu vou buscar Outra corimba ocasionalmente cantada é a que se segue, referente à linha de feitiço. Esta linha também é chamada de linha do catimbó, do Codó, do Maranhão ou da magia. Eu vou chamar pelo meu povo, eu vou eu vou É lá da mata do Codó, eu vou eu vou Eu vou chamar pelos caboclos eu vou eu vou Pra desmanchar o catimbó Codó é meu, Codó, Codó é meu Nos pontos cantados que se referem à linha do Codó, o Maranhão é constantemente citado. Nas palavras de Ferretti (2004), em Codó, tanto no passado como na atualidade, alguns terecozeiros ficaram também famosos realizando trabalhos de magia por solicitação de clientes ávidos de vingança, de políticos, ou de outras pessoas dispostas a pagar por eles elevadas somas, o que lhe valeu a fama de terra do feitiço. Afirma-se que nesses trabalhos

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e práticas terapêuticas os terecozeiros associam à sabedoria herdada dos velhos africanos conhecimentos indígenas, práticas do catimbó e da feitiçaria europeia e que também se apoiam no tambor de minha, na umbanda e na quimbanda, que se encontra em expansão no Codó (p.64) Após a chamada de caboclo, é realizada a ronda astral da casa. Um légua - termo que designa certos boiadeiros, geralmente bêbados, chega na baia e será o responsável por guardar e proteger toda aquela gira no plano astral. A seguir alguns exemplos dos que são cantados em nosso terreiro: Bem que eu não queria vir pra quê mandaram me chamar? Deus do Céu foi quem mandou Sete Léguas vim rondar Observa-se que Seu Légua é um enviado de Deus, o que bem representa a forte religiosidade de um sertanejo como é um boiadeiro. Ou seja, o ponto cantado também guarda relação com o perfil da entidade e o que ela representa dentro daquele contexto social no qual o terreiro se insere. A partir deste momento, o terreiro já está firmado e os trabalhos seguem, sempre com os pontos cantados anunciando o que está sendo feito e quais os sentidos expressos em cada linha de trabalho. Por fim, algo sobre a importância dos pontos cantados. Lévi-Strauss (2010), ao pesquisar tribos indígenas em território brasileiro, opta por dar atenção especial à musicalidade presente em suas observações

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para melhor narrar os mitos. Assim como entre os indígenas, os pontos cantados na umbanda condizem com uma forte representação mítica, embora saibamos que “a análise mítica não tem, nem pode ter por objeto mostrar como homens pensam” (LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 31). Falando sobre os pontos comuns entre mito e musicalidade, o autor diz que por “serem linguagens que transcendem, cada qual a seu modo, o plano da linguagem articulada” (LÉVI-STRAUUS, 2001, p.35), cumprem papel de dimensionar, em níveis universais, aquilo que a linguagem comum e organizada não dá conta – daí por tantas vezes eu ter obtido como resposta aos meus questionamentos um ponto cantado em detrimento de uma resposta pessoal fundamentada na vivência. Mas o fato de a música ser uma linguagem – por meio da qual são elaboradas mensagens das quais pelo menos algumas são compreendidas pela imensa maioria, ao passo que apenas uma ínfima minoria é capaz de emiti-las, e de, entre todas as linguagens, ser esta a única que reúne as características contraditórias de ser ao mesmo tempo inteligível e intraduzível – faz do criador de música um ser igual aos deuses, e da própria música, o supremo mistério das ciências do homem, contra o qual elas esbarram, e que guarda a chave do seu progresso. (LÉVI-STRAUSS, 2010, pp. 37-38). O autor diz ainda que “o que a música e a mitologia acionam naqueles que as escutam são estruturas mentais comuns” (LÉVI-STRAUSS, p.47), de forma que é possível remeter a sentidos específicos somente através de melodias que incitam mensagens compreensíveis inclusive


a quem não pertence à cultura na qual a música foi gerada. Algo inerente ao humano por estruturas psicofisiológicas ou fruto de nossa interpretação do imaginário no campo da espiritualidade? CONSIDERAÇÕES FINAIS A linguagem musical e o que a ela subjaz de facilitadora da compreensão da visão de mundo e espiritualidade nos terreiros é elemento que não poderia passar despercebido. Explorar os pontos cantados e deles buscar extrair os sentidos presentes nas representações míticas e simbólicas da umbanda revelou-se, portanto, exercício profícuo e prazeroso. Some-se à relevância das corimbas em meu empreendimento o interesse pessoal e particular pelas danças e cânticos brasileiros; a umbanda, assim como o ritmo do samba, afirma-se como algo nacional, pretensiosa de representar o Brasil com suas entidades estereotipadas e tomando de empréstimo elementos do samba que, por fim, retroalimentam-se a ponto de não se saber qual influencia o outro, tendo o samba nascido nos terreiros e estes, por sua vez, incorporado o ritmo nas rodas de batuque. Na música, consequentemente, a mediação entre natureza e cultura, que se realiza no seio de toda linguagem, torna-se uma hipermediação: de ambos os lados, os ancoramentos são reforçados. Instalada no ponto de encontro entre dois domínios, a música faz com que sua lei seja respeitada muito além

dos limites que as outras artes evitariam ultrapassar. Tanto do lado da natureza quanto da cultura, ela ousa ir mais longe do que as outras. Assim se explica o princípio […] do poder extraordinário que possui a música de agir simultaneamente sobre o espírito e sobre os sentidos, de mover ao mesmo tempo as ideias e as emoções, de fundi-las numa corrente em que elas deixam de existir lado a lado, a não ser como testemunhas respondentes. A mitologia, certamente, apresenta apenas uma fraca imitação dessa força. Contudo, sua linguagem é a que apresenta o maior número de traços em comum com a da música, não somente porque, do ponto de vista formal, seu alto grau de organização interna cria entre ambas um parentesco, mas também por razões mais profundas. A música expõe ao indivíduo seu enraizamento fisiológico, a mitologia faz o mesmo com o seu enraizamento social. Uma nos pega pelas entranhas, a outra, digamos assim, “pelo grupo”. E, para fazer isso, utilizam máquinas culturais extremamente sutis, os instrumentos musicais e os esquemas míticos. […] Mas, além do fato de os mitos serem frequentemente cantados, sua recitação é geralmente acompanhada de uma disciplina corporal: proibição de bocejar ou de ficar sentado etc. […] O canto se distingue da língua falada como a cultura se distingue da na-

tureza; cantado ou não, o discurso sagrado do mito se opõe do mesmo modo ao discurso profano. (LÉVISTRAUSS, 2010, p.48-49). O sagrado e o profano, presentes tanto nas músicas quanto nas bebidas e danças, imbricam-se de maneira quase indistinguível no universo dos terreiros. Bebida, música, dança, risadas, intrigas, ensinamentos, lágrimas, festas, ciúmes, fofocas, curas e pequenos milagres: é essa a pesquisa, é esse o retrato de um Brasil vivo e plural que pulsa nos terreiros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTIDE, R. Catimbó. In: Encantaria Brasileira: o livros dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004 FERRETTI, M. Terecô, a linha de Codó. In: Encantaria Brasileira: o livros dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004. GOMES, M. S. Trabalha quem pode, bebe e canta quem tem juízo: etnografando o uso ritualístico de álcool em um terreiro de umbanda. Dissertação (Mestrado no Departamento de Ciências Sociais) Universidade Federal do Ceará, 2014. LÉVI-STRAUSS. O cru e o cozido. (Mitológicas vol.1). São Paulo: Cosac Naify, 2010. PEREIRA, L. J. A. A umbanda em Fortaleza: análise dos significados presentes nos pontos cantados e riscados nos rituais religiosos. Dissertação (Mestrado na Faculdade de Educação). Universidade Federal do Ceará, 2012.

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CANTIGAS POPULARES 186

CANTIGA CANTADA PELO BOI CEARÁ MESTRE ZÉ PIO MATANÇA DO BOI

CANTIGA DA DESPEDIDA DRAMAS DE GURIÚ CAMOCIM/CE

Mas não chore meu amado rei No peito de quem chorar Eu choro pela despedida Que eu quero que eu quero Me arretirar.

A andorinha bateu asa e foi embora Está na hora da minha partida (BIS)

CANTIGA DA CANA VERDE MUCURIPE MESTRA D. GERTA Adeus campinas de flores, adeus terra onde morava (BIS) Adeus meus amores até quando eu cá voltar. (Bis)

Abraça meu anjo abraça Abraça meu anjo querido Pra se dá adeus adeus adeus adeus Adeuzinho que eu já vou Que já acabou Adeus até outro dia até outro dia Se nós todas viva for se viva for É com saudade, com alegria Eu não vim para ficar As moças são deliciosas belas e formosa é linda, linda rosas (BIS)

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GALERIA DE FOTOS


FOTO THIAGO NOZI


FOTOS THIAGO NOZI

Coco do Iguape

Grupo Baile de Congo de São Benedito - Ticumbi, Conceição da Barra, ES

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Mestre Totonho

Antônio Nóbrega

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Boi Coração


Banda Cabaçal

Cacique Pequena

Calé Alencar

TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

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FOTOS THIAGO NOZI

Feira dos Mestres

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Momento de interação com o público

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TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

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FOTOS THIAGO NOZI

Mestre Almeida

Residência Artística dos Mestres

194

Mestre Hortêncio

XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018


Danรงantes

TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

195


FOTOS THIAGO NOZI

Feira Gastronômica

196

XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018


Arco Feira dos Mestres

Show musical, tango

TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

197


FOTOS THIAGO NOZI

Público

198

Torém Janipapo-Kanindé

XII ENCONTRO MESTRES DO MUNDO - 2018


Mestre Piauí

TEMPO DE AMOR E FLOR PARA QUEM SABE SALVAGUARDAR AFETOS

199




REALIZAÇÃO

RECONHECIMENTO

PRODUÇÃO

APOIO CULTURAL

PARCERIA


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