Revista Circuladô 6

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WLADEMIR DIAS-PINO

Adolfo Montejo Navas Anderson Gomes Adriana Kogan Elson Frรณes Guillermo Daghero Jacรณ Guinsburg Katia de Abreu Chulata Raquel Campos Walther Von Der Vogelweide Wlademir Dias-Pino


GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Geraldo Alckmin | Governador José Luiz Penna | Secretário de Estado da Cultura Romildo Campello | Secretário-adjunto de Estado da Cultura Regina Célia Pousa Ponte | Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico

POIESIS INSTITUTO DE APOIO À CULTURA, À LÍNGUA E À LITERATURA Clovis Carvalho | Diretor Executivo Plinio Corrêa | Diretor Administrativo Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva Ivanei da Silva | Museólogo

CASA DAS ROSAS ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA Marcelo Tápia | Diretor Carmem Beatriz de Paula Henrique | Coordenadora Márcia Kina | Supervisora Administrativa Fabiano da Anunciação | Assistente Administrativo Caio Nunes | Aprendiz Administrativo Neide Silva | Copeira Reynaldo Damazio | Coordenador do Centro de Apoio ao Escritor Maria José Coelho, Dayane Teixeira | Centro de Apoio ao Escritor Daniel Moreira | Supervisor Cultural Thaís Feitosa, Mariana Manfredini | Cultural Julio Mendonça | Coordenador do Centro de Referência Haroldo de Campos Rahile Escaleira | Bibliotecária Leonice Alves | Assistente de Biblioteca Irana Gaia | Assistente de Organização e Pesquisa Alexandra Rocha | Supervisora Educativa Lucimara Amorin, Amanda Souto Maior | Educativo Dejair Martins, Dimas Marques, Valdecir Souza | Produção Francisco Silva | Zeladoria


WLADEMIR DIAS-PINO


CIRCULADÔ Revista de Estética e Literatura do Centro de Referência Haroldo de Campos – Casa das Rosas ISSN – 2446 - 6255 Diretor | Marcelo Tápia Editor | Julio Mendonça Assistente | Irana Gaia Comissão Editorial: Aurora Bernardini, Claus Clüver, Gonzalo Aguilar, Horácio Costa, Jerusa Pires Ferreira, Leda Tenório da Motta, Lucia Santaella, Luiz Costa Lima, Márcio Seligmann-Silva, Nelson Ascher, Susanna Kampff Lages Design gráfico | Angela Kina Diagramação | Giany Blanco Revisão | Centro de Referência Haroldo de Campos Revista CIRCULADÔ – Ano V – Nº 6 – junho 2017 Risco Editorial Edição anterior: Revista CIRCULADÔ. Ano IV – Nº 5 – Setembro 2016 São Paulo – Poiesis / Casa das Rosas A revista CIRCULADÔ é publicada em frequência semestral.

A revista CIRCULADÔ aceita, para publicação, apenas artigos ainda inéditos em língua portuguesa e inglesa. A extensão dos artigos pode variar de acordo com o tema abordado, sendo que a Redação se reserva o direito de propor cortes ou sugerir ampliações. As notas devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no final do texto. Os autores devem fornecer informações biobibliográficas, até 400 caracteres (com espaços).


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DOSSIÊ – WLADEMIR DIAS-PINO • Iconologia aforística – artigo de Adolfo Montejo Navas • El poema como matriz de códigos – artigo de Adriana Kogan

INVENÇÃO • Adolfo Montejo Navas • Anderson Gomes • Elson Fróes • Guillermo Daghero • Walther Von Der Vogelweide • Wlademir Dias-Pino

ARTIGOS/ENSAIOS • A poesia e a tradução de Augusto de Campos na construção de um legado ítalo-brasileiro – artigo de Katia de Abreu Chulata • Um exame de vista para o século XXI – artigo de Raquel Campos

GALÁXIA HAROLDO • Depoimento de Jacó Guinsburg sobre Haroldo de Campos

SOBRE OS AUTORES


“[...] o probabilismo levado à estrutura da obra não é senão o caso mais extremo da fragilidade [...] da informação estética. Se esta é inseparável de sua realização – se não se pode, por exemplo, compreender a informação estética de um poema senão dentro do processo de signos em que ela está codificada e se não é possível alterar essa codificação sem destruir aquela informação [...], no caso da obra de arte provável ou aberta a informação estética ficará, ademais, inseparável de seu consumo”. Haroldo de Campos 6


editorial

Esta edição de Circuladô dedica um espaço especial ao poeta e artista gráfico Wlademir Dias-Pino. Wlademir, que está completando 90 anos, tem uma trajetória única na arte e na poesia, desde cedo e sempre envolvido com a experimentação de novos caminhos. Esta trajetória é objeto de ensaios de Adolfo Montejo Navas e Adriana Kogan. Na seção Invenção, poemas de Dias-Pino são acompanhados por trabalhos de Montejo Navas, Guillermo Daghero, Elson Fróes, Walther Von der Vogelweide e Anderson Gomes. Além disto, Katia de Abreu Chulata e Raquel Campos apresentam estudos sobre a obra de Augusto de Campos. Completa esta edição um emocionante depoimento de Jacó Guinsburg sobre Haroldo de Campos. 7


DOSSIÊ

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ICONOLOGIA AFORÍSTICA (EQUILIBRISMO E INTERVALO DOS POEMAS-CONCEITO)

“Só há uma compreensão quando existe um cruzar, uma coincidência de duas coisas que acontecem em um vértice.” Wlademir Dias-Pino Adolfo Montejo Navas

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Os poemas-conceito, assim chamados livremente por Wlademir Dias-Pino, fazem parte de uma produção trans-temporal, que atravessa décadas (desde os anos 70 até hoje), cuja primeira virtude ou característica fronteiriça é colocar uma indefinição de saída – e também de chegada– sobre a sua própria natureza artística como objeto visual, para no cair em redundância ou retórica alguma (tidas sempre como duas mortes semânticas); pois o que se procura acertar é um alvo que se move no mundo das imagens, mas entre dois registros equidistantes: as palavras velozes e a visualidade (dois territórios que querem compartilhar semelhante velocidade). Seja através de uma representação iconográfica, que precisamente se socava assim mesma – que se desnuda de suas denotações mais visíveis ou óbvias–, e portanto está a favor da imbricação profunda que existe na poesia-pensamento com a imagem - um pensamento plástico -, com esse acervo impalpável do que não tem ainda nome ou cifra, não tem definição certa. A esse respeito, os poemas-conceito, um termo claramente operativo, abriga seu litígio interno, por ser poemas visuais com texto brevíssimo, de natureza aforística mais que versicular, cujo resultado é ser uma obra híbrida, de novo cunho, conceitual1. O que não deixa de ser compatível com a herança da arte conceitual, quando aumentou a reflexão da representação, a dose de metalinguagem, quando se estabeleceu uma nova relação entre imagem e texto e muitas vezes se abriu um abismo entre eles, como acontece nesta produção de um poeta tão gráfico e visual quanto verbalmente imagético, como obra situada em uma situação-limite que introduz em seu discurso estético um transfundo questionador, uma redução das evidências, sempre a favor de um novo lugar (de leitu10

ra e percepção), um hiato misto que potencializa seu próprio imaginário. Deste modo, a procura de uma nomeação – e de uma outra linguagem – se faz em prol de uma alquimia que casa verbo e imagética, texto e imagem; escritura mais que discurso, que destrói significados recalcados e que constrói outra materialidade do sensível. E outra inteligência do olhar, outra mirada sinestésica (sempre uma característica perceptiva mutante, de elaboração e transformação da poética do poeta até como requisito e didática de leitura). Em consequência disto, eles guardam como conjunto e série uma sorte de prestidigitação do sentido, quase um golpe de mágica, na medida em que se colocam numa fronteiriça frequência em que o aforismo e a poesia visual se estreitam, ou melhor, se confundem para chegar à outra equação e produto, na interface na qual cada campo alimenta um novo espaço paradoxal. A razão poética de um limiar. (E serviria então lembrar, diga-se de passagem, os poemas eletrônicos posteriores, concretamente os anfipoemas - feitos em parceria com Regina Pouchain, entre as décadas dos anos 90 e 2000-, nos quais, além de denotar a existência de uma parte submersa, anfíbia, há uma construção linguística de versos sintéticos e espaciais fazendo parte de rigorosas composições geométricas, neutralizando-se não só o sentido linear da leitura, a sua possibilidade prática, como, em consequência, qualquer semântica orientada unidirecionalmente. Sirva aqui a referência como ressonância estética). Se a figura do paradoxo virou moeda de troca de nossa época, como relativismo aplicado até na linguagem cotidiana e no fazer melancólico da política contemporânea (de seu imperioso hardware histórico-econômico), aqui ela oferece todo seu potencial instigante – como


acontece com Pessoa com seus defendidos oxímoros, um verdadeiro fundador epocal deste tropo que abriga o contraditório. Pois neste tipo de composições poemáticas não se reduz a tensão nem caminha para uma diluição significante, nem se consola na idealizada dialética de outrora, tudo o contrário: se tensa a procura de significados, de reverberação, o encontro de ecos perdidos. Todos estes poemas-conceito parecem estar sempre no arame do equilibrista, “onde a imagem, o visual, a través da legenda, do oral se liberta dela mesma” em palavras do poeta.2 Produzindo-se assim uma situação curiosa: é a parte escrita a que afeta à visualidade, a que produz o deslocamento, move a dínamo de uma nova leitura que já não pode mais ser só verbal. E, sim, um abracadabra. Como se diz num deles, “as imagens são excesso de imaginação”, mostrando uma figura de mulher levitando entre duas cadeiras. Os poemas-conceito colocam esta tipologia de poesia em suspenso, além do estritamente visual, pois é uma imagética que só se atinge com uma alta dose de equilíbrio, de equidistância. A um lado e a outro, o vazio, com as suas tentações: de queda (de ruína do sentido), de morte (de coisificação do real). Assim mesmo, é curioso notar outra noção básica do vocabulário artístico de Wlademir Dias-Pino, a de intervalo, aplicável a estas obras. “No intervalo é que está a ruptura, a passagem. É a necessidade do intervalo. A propriedade do poeta é descobrir o intrincado do sinalar e romper com a separação entre o oral e o visual do mundo ocidental. A arte conceitual deve tratar do falar e do ver.”3 Intervalo que traduz ao mesmo tempo a alternância, o cruzamento de leitura que se ativa “porque tudo é dito na parte invisível do espaço

do texto”, segundo suas palavras. Palavras e ícones estão dentro de um mosaico de lógicas, conhecimentos, imaginários [...] latejando subliminarmente. E na virtualidade do poema-conceito prima o intervalo cognitivo entre-leituras, entre a transparência e o ocultamento.

Por outro lado, eles se poderiam inscrever numa categoria distorcida ou nova dos “emblemas” (1531)4 (aquela construção que popularizou Andrea Alciato na Itália do século XVI, pela presença de imagem e texto, pelas alusões e referências em jogo, assim como por certo hermetismo), ainda que possam ser quase emblemas mas para abri-los mais para o enigma, deixá-los em maior estado de incógnita. Outro ponto de fuga para o entendimento. Como chegar a outra apreensão cognitiva diferente à nomenclatura da razão (sempre tão aparente e incompleta como ineficaz), ou da moral (tão propositalmente funcional e proibitiva), o que guarda um mistério sem solução definida, certa situação enigmática como pathos. O que acontece muito no território do aforismo, outro local de ação destas composições soltas (oferecidas em simples páginas A4 a bolso, sem ordem sistêmica), e em cujas definições poético-reflexivo-visuais se estabelece uma nova ponte ou ligadura de mundos, de conhecimentos das coisas. Como se o peso gravitacional da linguagem fosse elevado a uma nova potência menos cegada: o terrível desespero do que é semelhante (por exemplo), mostra um espelho com figura incluída dentro. As imagens aqui se assemelham então a plataformas ou alavancas inquietantes para os novos sentidos que provocam as breves palavras reunidas para convergir, no caso, diríamos melhor, para acionar a recepção da imagem total (da figura, pictura ou symbolon e o aforismo), 11


de uma ars combinatória que é pródiga em equações imagético-textuais, em formulações ignotas. Contudo, o que estabelecem os poemas-conceito é um campo próprio, um rádio de ação singular que magnetiza conteúdos e formas em certo ritornello no qual o começo e o final de leitura se indiferenciam - via imagem, via texto - (algo característico, aliás, na imagem, e que acontece às vezes em obras cujos títulos fazem parte substantiva de sua estrutura, caso de trabalhos de Joan Brossa, Waltercio Caldas ou Marcel Broodthaers). Esta especificidade, que poderia ser chamada ou inscrita como terceira margem da imagem, se converte aqui em um leito próprio - o húmus de uma nascente -, um canal, uma via própria. Desde esta perspectiva, pode-se falar também nitidamente de aforismos visuais. De fato, a via láctea dos poemas-conceito, com sua pulverizada poeira de signos, produz mais uma semântica constelativa – muito do feitio e da poética de Wlademir Dias-Pino, lembremos também do O dia da cidade (1948), sua primeira obra prima antes da chegada de A Ave (1956) -, já que se gera num jogo de significações em aberto, um construído feixe de sentidos que mexe com procedências e simbologias culturais, heranças históricas e imaginários e acervos de toda índole e procedência para chegar a outro lugar, a uma nova construção de significados. De novo na poética e obra de Wlademir se destaca a presença de um grande background histórico-cultural (já anunciado em A marca e o logotipo brasileiros, 1974), que entra em curto-circuito nesta reconhecida justaposição de signos e de mundos, de imagens, formas e simbologias. (O que acontece enfaticamente na infinita e sempre em curso Enciclopédia visual do poeta, ainda que seja de outra forma e sem ajuda 12

alguma dos signos verbais). Na verdade, os poemas-conceito situam nosso acervo de conhecimento do mundo em novo estado de articulação e formulação. Em certo portal imagético, por aceder a outro saber desvelado, adivinhado pelas nuances do descobrimento heterodoxo, algum estatuto novo de lonjura, longe da prisão das coisas e mais perto da manifestação da aparição. E como num novo jogo de cartas, este baralho (imensa coleção de naipes) embaralha nossas possibilidades de cognição estética, cultural, de entender da mesma forma as coisas à vista. As páginas livres de que se compõe esta produção miscelânea fazem parte de um álbum intangível, sem capa e contracapa, cujo formato, no fundo, é em parte fantasmático, não só pela diversidade (representação) quanto pela dispersão (apresentação), e, sobretudo, pela forma em que aparece a raiz imagética (verbal-visual das imagens): os poemas-conceito não deixam de ser aparições, jogam com a dissimetria histórica, cultural do que temos enfrente e, portanto, se afiliam mais com a inauguração, com a marca de um momento iniciático, revelador, de assombro. Em suma, memória e devir em dança caleidoscópica. Cujo eixo - e nó problemático que aposta pelo não categorial - parece ser o deslocamento das duas instâncias de que se compõe cada poema-conceito em relação à história iconográfica, as hierarquias culturais, os campos do saber por extenso. E, neste sentido, muito próximo em espirito do mundus imaginalis que representa a Enciclopédia Visual, da cartografia desterritorializadora que representa. Aliás, é o estabelecimento de ligações insuspeitadas o modus operandi que religa os poemas-conceito com a Enciclopédia começada nos anos 70, a fronteira entre disciplinas, seu colocar outro tempo mais complexo ou outra relação entre o particu-


lar e o universal. Nesse deslocamento conceitual comentado - que mexe com as camadas das imagens - talvez a forma mais óbvia de incorporar a estranheza e não o arquétipo seja a ruptura de polaridades (culturais, representacionais) via novas correspondências, através de uma poética oblíqua, tangencial, que bifurca, atravessa em diagonal os territórios em jogo. A meu ver, a força mitopoética dos poemas-conceito reside no jogo de forças que se estabelece entre as partes verbais e visuais, e no jogo de forças prévio ao que alude a morfologia das formas e dos tempos inscritos em cada página do poema-conceito; com certeza, consequência da superposição de leituras, de uma leitura móbil e não cristalizada das coisas, das imagens, mais perto de uma interpretação antropológica que meramente artística. Daí o remoinho significante que estas peças líricas tem, a perplexidade que produzem, a questão vital que tocam suas imagens e aforismos como operações-jogos de linguagem. (E é impossível não explicitar nestas coordenadas a sintonia com Aby Warburg, o historiador alemão que com sua visão interdisciplinar e complexa do poder das imagens e da sobrevivência das formas favoreceu outra história mais aberta e antropológica5. A multiplicação de abordagens dos poemas-conceito redunda nesta interpretação humanista, assim como na eficácia simbólica, mágica das imagens, também compartilhada por Vilém Flusser). Por outra parte, o aforismo, uma escritura inaugural, que exige sempre o recomeço, um ponto de partida de zero, e tantas vezes uma ferramenta intuitiva de observação, quase ótica de entendimento, de pensamento plástico, no meio caminhão entre a prosa, a poesia e o pensamento (a liberdade é sempre experimental), aqui tem uma manifestação sui generis: ele

está vinculado a uma visualidade complementar em alguns casos, fazendo de matriz da obra; em outros, é uma sublimação verbal de uma imagem (se vê a mão aberta que espera a forma, porque a forma é sempre uma espera) ou então, a leitura é uma limpeza (no caso, trata-se de um quebra-nozes e um macaco no alto, em cima a sua vez de uns livros). É um acasalamento, uma comunhão de registros onde sempre se produz o mesmo combate com a literalidade visual, com o pré-categorizado textual, para resgatar outras fontes menos poluídas do sentido, da definição das coisas (sob a forma de outras textualidades visuais): o que incomoda na unanimidade é a falta de espaço. Ou como neste verdadeiro programa de educação estética, já emblemático e repetido, que representa toda uma política: quem olha é responsável pelo que vê. Em todos os casos, diferentes modos de formulação e convergência, de estabelecimento de afinidades eletivas além do previsível. A sensação que se tem ante estes trabalhos, que se podem vincular como vemos com o espírito babélico de sua citada Enciclopédia Visual – com a liberdade de seu memorando, inventário e cruzamento e afinidades –, é aquela de não se ter estabelecido barreira com a expressão, já que chega um momento em que não existe relação ou comparação maniqueísta possível, pois não se cai nunca no descritivo ou no correlato. Longe da ilustração, da servidão informativa como função ou do domínio da narrativa, felizmente aqui ausente. Nada traduz nada, simplesmente, são mexidos os objetos da realidade, pois há reinvenção de imaginários, de perspectivas, de um olhar além da própria visualidade mostrada. Os poemas-conceito comportam uma semântica viva e latejante - migrante, diríamos, flutuante - que não se quer prender ao 13


castigado ofício instrumental das coisas aparentes e suas funções (e seu receituário do método). Nem ficar presa a alguma visão unívoca do mundo, proibindo nossas possibilidades de estranhamento, ou seja, de procura de outra enunciação sem doxa (lugar comum), daí o aludido ênfase do paradoxo semântico nestas obras. Entendam-se, portanto, os poemas-conceito como fendas desse mundo politicamente tão referenciado e cadastrado, que gosta de apresentar-se pavimentado, fechado, reificado em sua mera competência até o engano existencial ou histórico. Aqui há uma ontologia do ver por extenso diferente que promete outra condição humana. E a senha para entrar e fazer esta nova leitura muda a cada exemplo - nunca é a mesma chave-, talvez porque o importante sempre seja o sublatente ou o subliminar, o lado invisível, porque, como se diz num outro exemplo: é necessário que, na obra de arte, o significado não supere a criação.

Notas 1 Apesar da distância que pode existir da chamada, mais recentemente, poesia conceitual que poetas como Craig Dworkin ou Kenneth Goldsmisth podem postular, no caso, mais perto de uma poesia não expressiva, intelectual, visual, que também visa a apropriação mas que se orienta para experiências de transferências de códigos e operações híbridas no contexto da web, como escritura da era digital. 2 Em conversa telefônica com o poeta no dia 26 de janeiro de 2011. 3 “Conversas com Wlademir Dias-Pino”, em Wlademir Dias-Pino: Poesia/poema, Rogério Camara e Priscilla Martins (orgs.), Estereográfica, Brasília: 2015, p. 178. 4 Emblema também chamado de hieroglífico ou divisa, por seu caráter oculto. Esta composição tinha, além da imagem e o texto críptico, um texto explicativo, uma glosa. Não é preciso insistir como Wlademir Dias-Pino foge do emblema em vários aspectos, sendo o mais óbvio a quebra da leitura tradicional e o corpo da imagem adquirir uma natureza diferente, raramente, subserviente. A imagem não delega no texto e vice-versa. 5 “Contrariando qualquer ideia de uma história autônoma das imagens - o que não significa que se devam ignorar as especificidades formais -, a Kulturwissenschaft (ciências da cultura) de Warburg acabou, portanto, por abrir o tempo dessa história.” George Didi-Huberman, A imagem sobrevivente: Contraponto/MAR: Rio de Janeiro, 2013, p. 41.

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EL POEMA COMO MATRIZ DE CÓDIGOS: SÓLIDA, DE WLADEMIR DIAS-PINO “Un poema se hace con ideas y no con palabras.” Wlademir Dias-Pino Adriana Kogan

En 1953 se produce en el campo de la biología un descubrimiento fundamental: la estructura de la molécula del ADN. Como señala Paula Sibila, “el enigma de la vida comenzaba a ser descifrado: se trataba, simplemente, de información; texto codificado en un soporte bioquímico” (SIBILA, 2009: 69). Es decir, lo que se descubre es que la información genética está codificada en un único material y tiene una misma estructura, lo cual implica que todos los seres vivos son variaciones de una misma información de base. Si todo lo viviente está codificado como información, entonces la noción de “vida humana” en su especificidad entra en crisis. En estos mismos años en que se

produce el descubrimiento del ADN (y a la luz de este), la informática comienza a desarrollarse como disciplina. La pregunta por lo viviente se formula en términos de la pregunta por el lenguaje, y más específicamente por las posibilidades del lenguaje informático de emular el pensamiento humano. Hacer uso del lenguaje consistirá, tanto para las computadoras como para el ser humano, en procesar y transmitir códigos. A su vez, siguiendo a Pablo Rodríguez (2012), la pregunta por lo viviente vino asociada a la pregunta por la materia, en la medida en que esta nueva perspectiva sostiene que el soporte de una forma de vida no es necesariamente ma15


teria orgánica y, en ese sentido, postula el carácter inmaterial de la información. La gran novedad de la noción de inmaterialidad de la información desembocó, en la actualidad, en una enorme proliferación de discursos en torno a nuevos modos de pensar lo humano en el marco de lo post-orgánico y post-biológico, que hicieron colapsar la diferencia entre el carácter natural de la vida humana y el carácter artificial de los objetos técnicos, y junto a ella toda una serie de dicotomías que había sostenido el paradigma humanista moderno: naturaleza y artificio, materia y espíritu, cuerpo y alma, etcétera. En el marco de estas transformaciones en torno a la noción de lo viviente, la relación ente arte, vida y técnica se reconfigura significativamente en los años 60, y es en esa reconfiguración donde este trabajo quiere anclar la figura de Wlademir Dias-Pino y su poema Sólida. Así, me centraré en algunas cuestiones acerca de la concepción del poema como matriz de códigos, que buscan abrir nuevas reflexiones en torno a la relación entre poesía y vida, que vayan más allá de la noción de “cuerpo”. I Wlademir Dias-Pino venía trabajando con la dimensión visual del lenguaje en sus libros A fome dos lados (1940), Máquina que ri (1941) Os corcundas (1954) y A maquina ou a coisa em si (1955). Libros que, si bien mantienen la palabra como materia principal del poema, sin embargo la tensionan con la imagen, sentando las bases de lo que se formulará posteriormente como un abandono de lo verbal. En estos mismos años, otros poetas y artistas plásticos también estaban explorando las relaciones entre el aspecto verbal y el aspecto visual de la poesía, 16

dentro del género del “libro de artista”. Al privilegiar la imagen gráfico-espacial como forma y enfatizando la presencia de elementos visuales en los poemas, el libro ya no se limita al soporte de la página, sino que se convierte en objeto. Leer un libro será también incluir a través de la manipulación la dimensión física del sentido táctil, que hasta entonces permanecía por fuera del acto de lectura, reducido a la acción del ojo. Siguiendo a Alvaro de Sá en “A origem do livro-poema” (2011), la inscripción de la poesía brasileña en el género del libro de artista puede pensarse desde tres líneas diferentes. Por un lado, la de los poetas del grupo Noigandres, que incorporaban con un gran rigor estructural las leyes de Gestalt como un nuevo modo de percepción de lo real, inaugurando un modo de hacer poesía que involucra la presencia física del poema en el espacio, colgando sus Poemas Cartazes como si fueran cuadros. Por otro lado, la de Ferreira Gullar, que escribe en 1958 un conjunto de Poemas concretos/neoconcretos, en el cual trabaja la presencia de la palabra en el espacio blanco de la página, luego su serie de Livro-Poema, en los cuales comienza a trabajar con estructuras gráficas plegables, donde la página no funciona sólo como soporte, sino que pasa a formar parte del texto, y más tarde los Poemas Espaciales, donde el espectador debía descubrir lo que guardaban escrito en su interior. En tercer lugar, la de artistas plásticos como Lygia Pape o Reynaldo Jardim, que crean respectivamente el Livro da Criação y el Livro Infinito, objetos que operan en el límite entre la obra plástica y el poema. Estas tres líneas convivieron en la I Exposición Nacional de Arte Concreta en el Museo de Arte Moderno de San Pablo de


1956, en la que Wlademir Dias-Pino participa con una propuesta formal radical: la primera versión de Sólida. Junto con varios artistas plásticos y con los poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ronaldo Azeredo y Ferreira Gullar, poesía, pintura y escultura eran presentadas de manera conjunta, reafirmando la correspondencia que el concretismo había establecido entre las diversas formas de manifestación del arte, y entre lo verbal y lo visual como elementos indisociables. En 1962, seis años después de la exposición del MAM, Sólida es relanzado como libro-poema. El libro se publica en una tirada muy pequeña, impresa manualmente en serigrafía, presentado en tarjetas sueltas dentro de una caja, que contiene 48 tarjetas: la primera que expone su estructura generadora (la palabra “sólida”), la segunda y la tercera se presenta la recodificación de las letras en comas y gráficos estadísticos, y luego 5 series de 9 poemas visuales que recodifican cada una de las palabras del poema en elementos gráficos. En cada una de estas 5 series, la primera tarjeta funciona como la llave léxica del poema.

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A partir de esta primera tarjeta, el poema se va desplegando a partir de un proceso de recodificación que sustituye el alfabeto por figuras geométricas, y mediante la cual las series abandonan la dimensión verbal, para convertirse en imágenes (puntos, líneas y planos) y luego, en la última serie, en esculturas montables. A través de la formulación de un dispositivo poético que abandona lo verbal, la palabra pasa a funcionar como un objeto plástico: “escrita digital e/ou ideogrâmica, linguagem simbólica e/ou icônica, poesia e/ou pintura”, como señala Augusto de Campos (2015: 101). A su vez, en su constante permutación semiótica, el poema es indicativo de otras posibilidades no verbales, en este caso geométricas, que dan cuenta del carácter arbitrario del código alfabético, tan solo uno, entre los potencialmente posibles. Como si le permitiera al lector entrar en su engranaje para ver desde adentro el modo en que la máquina semiótica produce signos, el poema permite la “inspección de las condiciones que rigen la constitución de su mensaje” (2004: 221), el modo en que comunica sus propias condiciones de enunciación, su mecanismo de funcionamiento. Así, en la medida en que el poema se constituye como mera reformulación de un código en otro, lo que el poema “comunica” es su principio de organización de los signos, su propio proceso de recodificación. Si se aborda el poema en términos de transmisión eficaz de un mensaje, como lo querían, por ejemplo, los Romances de Cordel que Ferreira Gullar está escribiendo en estos años con los Centros Populares de Cultura, el poema es ilegible. No hay mensaje que transmitir, más que el propio decir, con un código y con otro: lo que el poema “dice” es “que dice que dice que dice que dice”, y así su22

cesivamente. Es decir, esa ilegibilidad es la exhibición del código puro, vaciado de su función referencial. En este sentido, más que un “contenido” poético, lo que el poema comunica es el mecanismo mismo del poema, que opera como máquina de traducción de signos verbales en signos visuales. Dicho de otro modo, el poema no funciona como un vehículo de transmisión de códigos (como el alfabético o el geométrico), sino que opera en sí mismo como una matriz generadora y procesadora de esos códigos. II Los signos de la primera tarjeta de Sólida están repartidos de manera regular. A pesar de haber un cambio de código de una serie a otra, la disposición espacial de las series también se mantiene inalterada con respecto a la tarjeta inicial. Sin embargo, la operación por combinatoria, que funciona a lo largo de las series, y que va permitiendo obtener diferentes posibilidades de composiciones formales, introduce variaciones “estado” sólido de la tarjeta original. El estado inicial de Sólida es firme, macizo, denso y fuerte (características de toda manera sólida), pero las infinitas posibilidades combinatorias hacen que el poema se vaya liquidificando. Así como los experimentos de John Cage buscaban evidenciar los paquetes de relaciones sobre los que se sostenía la lectura, para inventar fórmulas nuevas configuradas por la indeterminación y el azar; así como Acaso de Augusto de Campos (1963) dará cuenta de las innumerables posibilidades de creación a partir de un “azar controlado”, Sólida explora una zona en la cual los flujos del azar, su naturaleza probabilística, llevan al poema a otro estado. Al incorporar el elemento aleatorio, los signos proliferan en distintas


posibilidades de combinación; el poema asume un carácter líquido que desborda su carácter geométrico y da lugar a una expansión inusitada del dispositivo poético. La materia semiótica se derrama. A su vez, el pasaje del código verbal al código geométrico es bastante significativo, teniendo en cuenta el vínculo que el poema asume con el universo de la imagen, en el contexto en el cual es producido. Sólida es gestado entre 1958 y 1962, años en los cuales en Brasil cobra cada vez más importancia la noción de comunicación, en el marco de un creciente desarrollo de los medios y del lenguaje publicitario, y también de la pregnancia que adquieren los estudios semióticos. La información, como dice Décio Pignatari, pasa a ser “el principal bien de consumo de nuestro tiempo” (PIGNATARI, 1968). Así, Dias-Pino asume la figura del poeta que Pignatari llamó poeta designer, al que define como aquel capaz de crear nuevas estructuras de signos y nuevos lenguajes proyectados en función de nuevas necesidades comunicativas. Al superar a la palabra como elemento privilegiado de la comunicación poética y abrirse a otros sistemas sígnicos de carácter puramente visual, el poeta designer produce una apertura radical del lenguaje poético, que pasa a incorporar elementos nuevos, afines a la nueva realidad, creando informaciones sintéticas, más efectivas a los fines de las nuevas condiciones de comunicación. Sólida se presenta, así, como un poema-matriz de códigos, como un poema de la era de la información. Cuando Sólida muestra el desencadenamiento constante de los procesos informativos que se van produciendo en el paso de un sistema de signos a otro, da cuenta de su proceso dinámico de actualización, que funciona con una temporalidad simultánea. En esta lógica simultánea que

Sólida formula se puede leer, entonces, un modo de comunicación que es propio de una nueva subjetividad, en el marco del nuevo contexto de la cultura de masas. La comunicación lineal-evolutiva, propia de la temporalidad del progreso, que predomina en el horizonte desarrollista de los años 50, cede su lugar a la comunicación imagética de los medios, cuya temporalidad es la yuxtaposición simultánea de elementos heterogéneos. De este modo, el tipo de comunicación que el poema asume ya no está atravesado por la lógica lineal propia de la sintaxis, sino por la lógica de la simultaneidad propia de la imagen. El poema es, al mismo tiempo, todas las posibilidades virtuales que la palabra “sólida” contiene. Es decir que ahí, en esa virtualidad, se puede leer el carácter inmaterial de la información que, como señalamos al comienzo, es propio del nuevo pensamiento que comienza a gestarse en torno a la cuestión de lo viviente. III Las páginas de la última serie del poema van hacia esculturas plegables que el lector debe ir montando a través de cortes y pliegues, desde donde el poema abandona su expresión de pintura para tornarse escultura tridimensional, sensorial y corporal. Así, a través de su manipulación, el poema genera información nueva, que no está previamente en su escritura, sino más bien en el contacto que se produce entre el poema y la mano que lo toca.

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Siguiendo las ideas de Florencia Garramuño (2009: 102), el tacto a partir de los años 60 aparece como un nuevo registro sensible dentro de las prácticas artísticas, y funciona como un modo de cuestionamiento de la primacía de la visualidad, registro imperante en la esfera estética moderna. Dice Dias-Pino cuando se refiere a A ave: Quero fazer uma arte móvel, mas principalmente para o músculo do homem. Uma arte que tenha rigor. Mas de uma geometria do acrobático. O desencadeamento do lúdico, mas obedecendo uma ordem biológica. Uma expressão corporal, mas sem representação. Assim é que ao correr dentro do labirinto branco, o homem se sacode interiormente (já independente da “obra de arte”), com os músculos em sintonia com a respiração. Uma arte olfativa, mas, principalmente, respiratória. (DIAS-PINO, 2011)

Lo que la cita evidencia es cómo Dias-Pino está pensando en un poema “para el músculo del hombre”. O sea, en un poema que marca el traspaso de la presencia del cuerpo en términos de representación a la presencia del cuerpo en 24

términos de acción; es decir, y ese es el cambio de paradigma del cual Sólida participa, el cuerpo ya no es evocado en el poema, sino que reclama su presencia física, sus músculos, su tacto, su fuerza sensible. Así como el Ballet Neoconcreto de Lygia Pape, protagonizado por cuerpos geométricos que son cuerpos vivientes y expresivos como el de una bailarina; así como el Poema Enterrado de Ferreira Gullar, en cuyos cuerpos cúbicos se gestará la muerte y la “nueva vida” del poema; en Sólida la geometría de los signos también se dirigen a los músculos del hombre, a su “orden biológico”. Como señala Guy Brett sobre los Neoconcretistas, “la forma como constructo geométrico de la abstracción se tornó un ‘acto de vida’” (BRETT, 2004). Como máquina frenética de generar signos, Sólida construye también un dispositivo específico de experiencia de esos signos, que reclama la entrada del cuerpo al espacio del poema. Leer los signos, anuncia Sólida, es también percibirlos físicamente; leer es también un acto físico. Ahora bien, esta incorporación del cuerpo, que está previsto en el poema, se da en el marco de lo que se puede reconocer como una forma exclusivamente humana, una forma-hombre, en términos de Foucault (2002). Es decir, lo que se incorpora es el cuerpo, y más específicamente las manos, del hombre. Sin embargo, hay otra dimensión de lo vivo que el poema incorpora, que no tiene que ver con el cuerpo físico, sino que se puede leer en el dispositivo poético mismo, que funciona en términos de lo que llamé una “matriz de códigos”. Si, como señalé al comienzo, desde la perspectiva de los nuevos abordajes en torno al ADN lo viviente pasa a ser concebido en términos de información codificada, el poema va a hacer de ese mismo lenguaje informativo su su propio lenguaje. Sólida va


a emular (y acá sigo algunas reflexiones planteadas por Claudia Kozak) el lenguaje de este nuevo modo de existencia de lo viviente, y de ese modo va a formular, a través de la recreación de su lógica, una relación inusitada entre la gramática del poema y la gramática de lo vivo. Gramática que no apunta, ya, a invocar la forma de unas manos y un cuerpo específicamente humanos, sino más bien a desplegar una matriz de códigos donde toda forma de vida, humana o no, tenga lugar. Es en este pliegue donde puede pensarse que arte, vida y técnica se anudan, y donde se puede leer el comienzo de un arco que años después derivará en el bioarte, y que hace de la práctica artística un espacio de experimentación con el lenguaje, con materia, pero sobre todo con la vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRETT, Guy. Brasil experimental. Rio de Janeiro: Contracapa, 2004. CAMPOS, Augusto de. Poesia, antipoesia, antropofagia & cia. São Paulo: Companhia das letras, 2015. SÁ, Álvaro de. “A origem do livro-poema” en Wlademir Dias-Pino. Río de Janeiro, Aeroplano, 2011. DIAS-PINO, Wlademir. Poesia/poema. Brasília: Funarte, 2015. _________ Wlademir Dias-Pino. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011. FOUCAULT, Michel. Las palabras y las cosas. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002. GARRAMUÑO, Florencia. La experiencia opaca. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. KOZAK, Claudia. Tecnopoéticas argentinas. Archivo blando de arte y tecnología. Buenos Aires: Caja Negra, 2012. MASOTTA, Oscar. “Los medios de información de masas y la categoría de ‘discontinuo’ en la estética contemporánea” en Revolución en el arte. Buenos Aires: Edhasa, 2004. PIGNATARI, Décio. Informação, linguagem e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1968. RODRÍGUES, Pablo. Historia de la información. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2012. SIBILA, Paula. El hombre postorgánico. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009.

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INVENÇÃO

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Adolfo Montejo Navas

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Anderson Gomes

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Elson Frรณes

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Guillermo Daghero

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Walther Von Der Vogelweide

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Ab la douzor del temps novel fueillon li bosc, e li auzel chanton chascus en lor lati segon lo vers del novel chan: adoncs estai ben q’on s’aizi de zo don hom a plus talan. De lai don plus m’es bon e bel no·m ve messatgers ni sagel, don mos cors non dorm ni non ri e no m’en auz traire enan tro que eu sapcha ben de fi s’el es aissi con ieu deman. La nostr’amor vai enaissi con la branca de l’albespi qu’estai sobre l’arbr’entrenan la noig, a la ploi’e al giel, tro l’endeman, qe·l sol s’espan per la fueilla vert enl ramel. Anqar mi membra d’un mati qe nos fezem de guerra fi e qe·m donet un don tan gran, sa drudari’ e son anel: Anqar mi lais Dieus viure tan q’aia mas manz sotz son mantel! Q’ieu non ai soing d’estraing lati qe·m parta de Mon Bon Vezi, q’eu sai de paraulas con van ab un breu sermon qi s’espel: qe tal se van d’amor gaban; nos n’avem la pessa e·l coutel!

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no adoçar da primavera reverberam as araras canções em florilínguas no balanço da bossa. seguem sendas bíguas: anseios, signos, fossa. vai coração, rateie a terra meio-mensagem s’aferra assim minh’alma deságua sem dormir nem rir é osso quando apagou a frágua? as coisas soam e eu ouso. nosso amor assim se medra pétalas no ventre de esferas, trêmulas nuvens e rosáceas. a chuva anoitecendo o sol e a manhã surgindo ensaia nas folhas verdes sons a sós. de um dia tenho memória após uma treta de horas assim que demos trégua deu-me uma pedra preciosa deus depois passou a régua: mãos ao manto da moça. agora já não me interessa a boa e velha vizinhança, pois sei o pulsar da língua: há muita palavra ociosa e o resto anda à míngua coisas nossas, nossas coisas. guilhem de peiteus, ix de aquitânia, conde de poitiers (1071-1126)

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é a cuca ou o canto (ecos secos soluços) cu-co cu-co cu-co? saikaku ihara (1642-1693)

In jüngern Tagen war ich des Morgens froh, Des Abends weint ich; jetzt, da ich älter bin, Beginn ich zweifelnd meinen Tag, doch Heilig und heiter ist mir sein Ende.

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em dias jovens, d pólen dava bom dia e ria pra alagar as tardes; hoje já voo além: vendo o almoço e compro a janta: ahlegria, sacras dúvidas, asas dúbias: eu-refém friedrich hölderlin (1770-1843) / ehmals und jetzt c. 1797

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Wlademir Dias-Pino

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ARTIGOS/ ENSAIOS

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A POESIA E A TRADUÇÃO DE AUGUSTO DE CAMPOS NA CONSTRUÇÃO DE UM LEGADO ÍTALO-BRASILEIRO Katia de Abreu Chulata

Consideramos a tradução como a operação mais autêntica de confronto entre diferentes realidades, levando a um verdadeiro balanço linguístico e cultural, em que o que excede, a diferença, pode, paradoxalmente, provocar a aproximação de dois contextos “estrangeiros”, de duas diferentes realidades. Segundo tais condições, a tradução produz um novo possível, criando significações inéditas que ligam de maneira indissolúvel os dois lados e até os lados não presentes, aparentemente, na materialidade linguística, mas que estão disponíveis no horizonte das significações, já que uma discursividade alimenta outra(s). Os acontecimentos históricos, as contingentes necessidades de brasileiros e italianos, aproximaram, várias vezes e em âmbitos diferentes, de tal maneira a língua e a cultura do Brasil e da Itália ao

ponto de as duas línguas e as duas culturas se modificarem. A cidade de São Paulo possui, no seu perfil histórico e antropológico, uma tradição de profunda amizade com a Itália: abrigou la brava gente italiana e até modificou sua língua. No início do século passado, como sabemos, houve um importante fluxo de imigração italiana no Brasil. O intaliano, como é chamado com carinho pelos paulistas e paulistanos, foi o protagonista de Brás, Bexiga e Barra Funda, publicado pela primeira vez em 1927. A história de Antônio de Alcântara Machado conta a vida dos imigrantes italianos, a vida dos tantos Gaetaninhos e Nicolinos, em suma, a vida dos intalianinhos de São Paulo, cidade aberta, industrial e modernista. A obra é a crônica dessas vidas, contada numa língua que é uma mistura de português e italiano, já demostrando a 65


transformação cultural que se manifesta e se evidencia na língua e com a língua. Assim, a crônica-livro de Alcântara Machado conta a marca, o rastro evidente deixado pelos italianos na língua e nos costumes dos brasileiros de São Paulo. Porém, o importante laço linguístico e cultural entre os dois países não pode ficar limitado ao momento histórico do impacto dos imigrantes com a terra prometida; começa naquele momento a transformação que levará os italianos a produzirem de maneira progressiva uma mudança que irá caracterizar a ação dos imigrantes, levando-os a assumirem uma cidadania original no contexto brasileiro. A língua desses imigrantes representará o elemento de reconhecimento de uma diferença não substancial, com nuances que os italianos imprimem na especial melodia de quem nasceu e vive em São Paulo. Essa segunda geração de imigrantes italianos fala um português com uma fonética e uma prosódia muito próximas da língua de origem. A influência da Itália foi determinante, também, do ponto de vista artístico. Não passaram por São Paulo somente os italianos “brava gente” da qualificada mão de obra, das novas atividades artesanais, dos renomados restaurantes e das perfumadas padarias. Muitos artistas, escritores, pintores e escultores marcaram presença nas mudanças estéticas, dirigiram importantes jornais e revistas, museus, etc; o convívio deles com os jovens brasileiros poetas, pintores e cineastas na metade do século passado caracterizou um certo modo de fazer arte. Entre os jovens de então, Augusto de Campos representa para nós uma referência estética que tomamos em consideração aqui para refletir sobre a construção de um possível legado cultural ítalo-brasileiro. O poeta e tradutor, fundador, juntamente com seu 66

irmão Haroldo de Campos, do Movimento Concretista, foi muito influenciado pela cultura italiana, certamente também pela convivência com colegas ítalo-descendentes na cidade de São Paulo. Nos interessa, aqui, falar de Augusto de Campos (AC) tradutor, inventor de textos a partir de textos outros, como os versos da poesia de Dante e de Cavalcanti. As traduções de AC dos versos dantescos, seis Cantos da Divina Commedia (quatro do Inferno e dois do Purgatorio), encontram-se reunidas pela primeira vez no livro Invenção - de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti1. Nesse volume estão presentes as traduções dos seguintes Cantos: I, V, VII e XXVIII do Inferno; VI e XXVI do Purgatório. No mesmo volume, AC apresenta também a tradução de Tanto gentile e tanto onesta pare, de Dante; já Guido Cavalcanti nos é apresentado com a tradução de Ballata - quando di morte mi convien trar vita, Per gli occhi fere un spirito sottile e de Chi è questa che vien, ch’ogni uom la mira. Sabemos que AC sempre publicou suas traduções com um prólogo funcionando como análise crítica da tradução, que o autor chama de “viagem translinguística”, para nos fornecer a bússola de navegação e explicar o percurso crítico da tradução que apresenta. Se considerarmos, como afirma AC, que “a poesia é uma família dispersa de náufragos bracejando no tempo e no espaço”2, as traduções de AC dos versos dantescos salvam todos, reunindo numa jangada em forma de livro os versos do sumo poeta e a suma tradução brasileira. A tradução, para AC, “além de um ato de amor, é sempre uma operação crítica apreciável pelo que enseja de aproximação molecular do texto”3. Nessa aproximação entre textos e línguas, parece-nos


importante sublinhar que a familiaridade de AC com a língua italiana, com as suas “sílabas de sol” (Byron) deve-se, por um lado, à configuração antropológica de São Paulo, “cidade semi-italiana”4, e, por outro, ao fato que aquela específica imigração do início do século XX de fato misturou a cultura brasileira de então com a cultura italiana. A população imigrante italiana, além disso, introduziu mão de obra qualificada, importando toda uma série de marcas linguísticas que nas práticas sociais puderam se misturar dialogicamente entre os dois grupos. Tudo isso ao ponto de aproximar assonâncias na língua dos paulistas e paulistanos de raízes fonéticas e sintáticas de derivação italiana, “tão grande foi a impregnação da cultura e da língua dos imigrantes do começo do século que até a pronúncia e a sintaxe do paulista, e do paulistano em especial, se modificaram para assimilar um pouco o cantabile italiano5. Consideremos, também, que muitos dos escritores, poetas, pintores, artistas da geração de AC são italianos e descendentes de italianos. A experiência concretista de Haroldo e Augusto, liga-se diretamente à experiência artística italiana, como esclarece o autor:

coli em Veneza ou o mausoléu de Galla Placidia em Ravena.6

A direta produção de AC liga-se ao contexto italiano de São Paulo: seu primeiro livro de poesias O Rei Menos o Reino, de 1951, teve crônica publicada no jornal ítalo-paulistano Fanfulla assinada por Patrícia Galvão (Pagu). Além disso, em e-mail pessoal de 26 de setembro de 2016, Augusto nos esclarece que o “seu primeiro livro de poemas, O REI MENOS O REINO (1951) foi muito influenciado por Dante e uma de suas epígrafes (“queste parole di colore oscuro”) foi extraída da Divina Comédia”. Outro testemunho da sua aproximação e de seu grupo à cultura e à língua italianas é, mais uma vez, encontrado no seu Invenção, AC afirma que a literatura italiana antiga e moderna foi sendo visitada por Pignatari, por Haroldo de Campos e por mim, especialmente através da velha Loja do Livro Italiano da Rua Barão de Itapetininga, onde, no pós-guerra, adquiríamos preciosidades encalhadas como os livros de poesia moderna da coleção “Lo Specchio”, da Mondadori. Interessou-me muito, também, a música italiana. A de Gesualdo,

Os concretistas assimilaram as pesqui-

o madrigalista dissonante, que cheguei

sas das vanguardas construtivistas e

a incorporar numa citação do livro VI

inclusive, dos futuristas italianos mais

ao meu poema “Viventes e Vampiros”.

radicais, dos quais a 2ª Bienal de 1953

A dos contemporâneos Giacinto Scelsi

trouxera alguns exemplos expressivos.

e Luigi Nono, dois radicais da vanguar-

Acima de todos, Giacomo Balla. Desde

da musical, aos quais dediquei estudos

cedo Giotto e os mestres do Quattrocen-

alentados. A música napolitana, relida

to foram entronizados entre os nossos

pela interpretação sóbria e precisa de

deuses. Guiava-nos o poeta Ezra Pound

Roberto Murolo, que também foi objeto

que, em seus ensaios não-convencionais

de um pequeno ensaio7.

e na enciclopédia poética dos seus Cantos, ia mapeando, num grande ideograma crítico, os “lugares sagrados” da arte italiana, como a igreja de San Zeno e a arena de Verona, Santa Maria dei Mira-

E é assim que o poeta narra e explica sua sólida ligação com a língua, a arte, a literatura e a música italianas. Parece ser algo a mais que uma ligação, um 67


verdadeiro fascínio pela cultura italiana, como ele mesmo afirma: “impossível fugir ao fascínio da sua grande literatura, ainda mais no meu ofício de poeta”8. AC não se dedicou somente à tradução da poesia de Dante e Cavalcanti, também traduziu Marino, Belli, Montale e Sinisgalli, entre outros. Sua admiração pela cultura italiana faz com que ele traduza inventando, seguindo as sugestões da tradução criativa, “tradução-arte”, como ele gosta de chamá-la e que define como “uma tradução que procura transpor para a língua receptora não só o sentido mas a riqueza dos valores formais (ritmos, rimas, assonância, aliterações, paronomásias, metáforas, etc) e a poeticidade do texto original”9. Especificamente, na tradução da ballata de Cavalcanti, explica o poeta tradutor que se permitiu uma inovação: as rimas ricas terminadas em “vida”, mantidas em todas as estrofes; embora só adotadas uma vez no original, elas intensificam o texto, entrete-

ao percurso estético de AC, aos modos da poesia concreta naquela recuperação da Antropofagia oswaldiana. Como afirma o poeta, em entrevista concedida à Folha de São Paulo: “A Antropofagia, entendida em termos oswaldianos, tem o significado de uma assimilação cultural seguida de uma reelaboração criativa, como os poetas concretos a interpretaram” 11. Assim, no texto que precede seu exercício de “tradução-arte” das poesias do dolce stil novo de Cavalcanti e Dante, AC anuncia sua homenagem à cultura italiana: Valham, também, essas traduções como um signo do meu reconhecimento à cultura italiana e da minha lembrança de deslumbradas visitas à Veneza, Roma, Florença, Milão, Nápoles, Assis, Ravena, Verona, Merano… Dentro lo cor si posa12.

Transcrevemos, em seguida, o exercício criativo de tradução do poeta e tradutor AC dos versos de Cavalcanti, com o dolce stil novo cantado no português brasileiro de Augusto.

cendo o obsessivo jogo de antíteses com “morte” que o caracteriza, e me parecem autorizadas pelo virtuosismo do poeta;

Quem é esta a que toda gente admira

no mesmo espírito, as rimas “mortal/ amor tal”, na derradeira estrofe10.

Assim, a ligação de AC com a cultura italiana revela-se pelo trabalho contínuo de tradução de alguns dos mais importantes poetas italianos, pela aproximação à orientação teórica que caracteriza muitos dos pensadores e poetas italianos, e pelo amor e admiração que ele cultiva pela arte italiana em geral. A sua maneira de demonstrar o reconhecimento à cultura italiana é a tradução, o desafio de realizar uma tradução criativa dos textos que ele tanto admira. Esse tipo de tradução, a “tradução criativa”, liga-se diretamente 68

Quem é esta a que toda gente admira, que faz de claridade o ar tremular, com tanto amor, e deixa sem falar, e cada um por ela só suspira? Ah, Deus, como ela é, quando nos mira? Que diga Amor, eu não o sei contar. De tal modéstia é feito o seu olhar, que às outras todas faz que eu chame de ira. Nem sei dizer do seu merecimento. Toda virtude a ela está rendida, beleza a tem por Deusa e assim a exalta.


A nossa mente nunca foi tão alta, nem há ninguém que tenha tanta vida para alcançar um tal conhecimento. Em seu texto “O desafio dos Cantos de Dante”, AC comenta a linguagem da poesia da Divina Commedia, recorrendo à “crítica ideogrâmica” de Ezra Pound e citando as considerações de T.S. Eliot sobre a poesia dantesca. A relativa facilidade de leitura da Divina Commedia pode ser explicada com a linguagem direta de Dante, com a sua “lucidez poética, que se distingue da lucidez intelectual”, com a utilização da alegoria, já que “a imaginação de Dante é uma imaginação visual”14. É assim, seguindo as indicações de Eliot, que AC inicia seu “caminho” crítico para a sua tradução, verdadeira batalha, porque

A propósito dessas manobras linguísticas de malabaristas, já em O anticrítico17 (1986) AC publicava suas traduções do I e do V Canto do Inferno, criticando o recurso à inversão sintática na tradução dos versos dantescos. A sua crítica literária não se faz somente em forma de “Crítica”: toma forma no corpo da poesia. Com “Dante: um corpo que cai”, AC vai demonstrar com a forma significante essa sua aversão linguística.

Dante, ao compor suas “terzine” com tão apurado rigor, tinha à sua disposição todo o repertório do idioma nativo, ampliado ainda pela latinização do italiano (como Demonstrou Curtius), enquanto o tradutor se vê constrangido a buscar em outro idioma formas equivalentes, porém circunscritas a áreas semanticamente pré-determinadas para as quais deve transferir nome e toponímia alienígenas15.

Uma das batalhas perdidas, por exemplo, é aquela que recorre ao “torcicolo das frases” e do arrocho das indesejáveis inversões que o ouvido dos brasileiros está cansado de desentender desde as margens plácidas do nosso Ipiranga, mas que aqui desmoronam inevitavelmente quando confrontadas com a linguagem dúctil e fluente da Divina Commedia16.

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e caí como corpo morto cai

e caddi come corpo morto cade

outros verteram essa linha invertendo a posição do verbo: “e tombei, como tomba corpo morto” (xavier pinheiro) “e tombei como tomba um corpo morto” (dante milano) “e caí, como cai um corpo morto” (cristiano martins) o desejo de chegar mais perto da precisão especular do original caddi corpo morto cade me levou a traduzir o canto V do inferno de trás para diante a partir do último verso

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“a melhor crítica de um poema é um poema” (cage) o que mais se perde nas traduções funcionárias “extensivas não intensivas” (como diz o haroldo) de dante: a concretude das imagens a diretidade da linguagem na commedia os versos se acomodam docemente aos números do metro e às leis da terza rima e vão construindo palmo a palmo uma catedral perfeita sem andaimes à vista dante conversa desde o início sem inversões canhestras: nel mezzo del cammin di nostra vita ou simplesmente “no meio do caminho desta vida” e nunca aquele “da nossa vida, em meio da jornada” por certo a constrição da métrica e da rima impõe alguns deslocamentos no próprio original mas o critério prevalente é o da diretidade da linguagem verter não inverter

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uma das normas básicas da tradução io venni in luogo d’ogni luce muto em versões antidante ora a mudez da luz desaparece “era um lugar de toda luz privado”

“lugar completamente escurecido” ora é mantida “em lugar de luz mudo tenho entrado” a custa de penosas inversões o vento não se cala “nesta pausa que o vento agora faz” mentre che il vento come fa si tace “enquanto o vento mais sutil se faz” o sol não emudece “de volta aonde o sol nunca ilumina” dove il sol tace a imagem age io venni in luogo vim a um lugar d’ogni luce que a toda luz é muto mudo mentre che il vento enquanto o vento come fa para nós si tace é mudo

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Como demonstram esses versos, a poesia-tradução-crítica toma corpo no texto que AC dedica à tradução dos versos dantescos. A sua crítica vai, assim, aos tradutores citados (Xavier Pinheiro, Dante Milano e Cristiano Martins), que torceram os versos italianos provocando estranheza no leitor brasileiro e ignorando a gênese poética de Dante, inibindo a construção poética que o sumo Poeta já tinha representado na “catedral perfeita”. Assim, os tradutores construíram um discurso incompreensível, ignorando que “Dante conversa” com versos que “se acomodam/docemente”. Concluímos esta apresentação citando um e-mail de AC de 26 de setembro de 2015, o poeta tradutor afirma que seus “contatos com a literatura e a cultura italianas sempre foram muito grandes” e, dando indicações, entre tantas outras aqui não citadas, sobre sua produção como poeta e tradutor diretamente ligada à Itália, escreve:

meiros versos do I Canto do Inferno da Divina Commedia. Para o primeiro, anuncia-se uma batalha perdida por causa do seu armamentário retórico, para o segundo realiza-se uma luta contra o medo usando as armas da poesia: Xavier Pinheiro Da nossa vida, em meio da jornada, Achei-me numa selva tenebrosa, Tendo perdido a verdadeira estrada. Augusto de Campos No meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura solitário, sem sol e sem saída.

Notas 1

Augusto de Campos. Invenção. São Paulo: Arx, 2003. Augusto de Campos. Verso, reverso, controverso. São

2

Paulo: Perspectiva, 2009, p.8. 3

Augusto de Campos. Invenção, op. cit., p.260.

4

Ivi, p. 259.

5

Ibidem.

O meu primeiro livro de poemas, O REI

6

Ivi, p. 260.

MENOS O REINO (1951) foi muito in-

7

Ibidem.

fluenciado por Dante e uma de suas epí-

8

Ibidem.

grafes (”queste parole di colore oscuro”)

9

Ivi, 261.

foi extraída da Divina Comédia.

10

Ibidem.

Uma de minhas primeiras traduções de

11

Ibidem.

poesia foi a do poema “Sultana” de Al-

12

Idem.

fonso Gatto, e um livro dele adquirido

13

Ivi, 179.

na Livraria Italiana, que funcionava na

14

Ibidem.

rua Barão de Itapetininga, no centro de

15

Ivi, 180.

São Paulo.

16

Ibidem.

Traduzi também Ungaretti, Montale e Si-

17

Augusto de Campos. O anticrítico. São Paulo: Compa-

nisgalli, da geração dos modernos.

nhia de Letras, 1986.

Anexo a folha de um velho caderno com a tradução que fiz de um poema de Ungaretti em 1949 ou 50.

Completamos esse comentário ítalo-brasileiro com as traduções de Xavier Pinheiro e de Augusto de Campos dos pri73


UM EXAME DE VISTA PARA O SÉCULO XXI Raquel Campos

“Um leitor francês, seus hábitos interrompidos com a morte de Victor Hugo, só pode se desconcertar.“ Stéphane Mallarmé

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Os contemporâneos não sabem ler, Mallarmé já nos disse e, Augusto, por fim, testa nossa leitura. A célebre frase iconizada em um exame de vista: repetir as letras nos torna leitores? A potencialidade poética se concentra apenas na decodificação das palavras? Os sentidos são múltiplos e as possibilidades de leitura, infinitas. Uma frase que se abre em caminhos diversos, que se desprende da linearidade tradicional e testa nossa capacidade com a pergunta implícita: aprendemos enfim a ler? O poema torna-se, portanto, um exame de vista para o século XXI. O legado da poesia concreta já foi, em grande medida, incorporado ao modus operandi da literatura atual, mas, no entanto, ainda há os resistentes presos, se não ao verso, à lógica do verso: a lógica hipotática, em que a incompletude de uma frase depende de outra para se fazer sentido, em que a construção de um sentido permeia nossa leitura e tentativa de interpretação. Ao abandonarmos tais amarras com Décio Pignatari, com Augusto de Campos, com Haroldo de Campos, desaprendemos, em certa medida, a ler. Desaprender torna-se, assim, o primeiro passo para que possamos ler. Como Décio Pignatari em seu “Eupoema”: “eu jamais soube ler:/ meu olhar de errata a penas deslinda as feias/ fauces dos grifos e se refrata:/ onde se lê leia-se” (2004, p.53). Direcionar nosso olhar errante a outro tipo de pensamento, algo quiçá pueril [como em Oswald de Andrade, que em seus versos intitulados “3 de maio” diz: “aprendi com meu filho de dez anos/ que a poesia é a descoberta/ das coisas que eu nunca vi” (Andrade, 1971, p.104)]. Isso porque ao recorrer a uma fase supostamente ‘primária’ ou ‘primitiva’, pré-alfabética, as analogias e conexões ainda se criam livremente, sem as distinções lógicas e a obrigação do sentido. A abertura à 76

liberdade criativa, ao impulso de criação, ao novo. Como a primeiridade peirceana; a imaginação e produção icônica. Décio escreve em seu brilhante livro Semiótica & Literatura, “para Peirce, o ícone é o signo da descoberta” (2014, p.60). É difícil assimilar essa ideia em meio à valorização dos discursos cientificistas espalhados no meio acadêmico e no imaginário coletivo. Quando a palavra é tomada como código central, somos levados a crer que todos os signos só adquirem “sentido” quando traduzidos em “palavrês”, em código verbal. A mente racional, consequentemente, é aquela que opera por contiguidade. Quando tratam de analogia, as mentes chamadas “científicas” tornam-se muito cautelosas: a analogia é um caminho perigoso para ser seguido, é quase[...] não-científico (Ibid., p.167).

Augusto brinca com isso em sua reformulação da frase mallarmaica: se o século XIX se encerrou com a chegada da modernidade com Um Lance de Dados, o exercício de (re)aprender a ler não parou por aí. Ler os silêncios, os brancos de um poema, desafiar a sequência lógica e linear à qual estamos habituados renova a cada instante nossa forma de ler. Se nós, contemporâneos, ainda não sabemos ler, cabe a nós nos desafiarmos com outro tipo de leitura. Para ver, no entanto, poderíamos nos utilizar de um certo tipo de cegueira: algo que nos bloqueasse a visão programada e nos fizesse ser capazes de um olhar errante, sem ânsias de interpretação poética, fixação semântica ou análise de conteúdo: o famigerado “o que o poeta quis dizer”. Desaprender a ler, portanto, pode ser mais difícil do que se pensa: desligar-nos das amarras sobre as quais estão


erigidas a lógica ocidental e a concepção temporal linear é fruto também de muito exercício. E de uma abertura ao novo. Quem sabe ao diminuir nossa visão num ímpeto de cegueira sejamos, numa aporia, mais capazes de ver. Na citação do filósofo Jacques Derrida em seu livro Memórias de cego: o auto-retrato e outras ruínas, “o cego pode sempre tornar-se o vidente ou o visionário” (2010, p.98). A poesia, portanto, para Derrida, pode ser exatamente aquilo que não se vê, ou por estar nas margens, nos detalhes imperceptíveis à primeira vista, ou por não haver necessidade de se ver. É o que sabemos de cor – par coeur – o que está no coração, por assim dizer. O que pode ser recorrido e acessado infinitamente apenas por nossa vontade. Aquilo que já habita em nós e fez morada em nossa memória. Em Che cos’è la poesia?, Derrida se endereça à própria pergunta: “para responder a tal questão [...] pede-se saber renunciar ao saber”.

situra – aproveito aqui a metáfora de Derrida a respeito do texto como um tecido – de infinitas maneiras. Não revelamos o seu sentido a partir do momento em que desvelamos sua cripta. Não fazemos nem um nem outro. Mas sim, em uma subdivisão prismática da ideia, nos deparamos, através de uma certa cegueira, com novas maneiras de ver o poema, novos modos de lê-lo, todavia sem esgotá-lo. REVƎЯ sempre, portanto. A tradução de Augusto nos ensina a ler, nos obriga a ler, a desafiar a leitura convencional para que se descubra, por fim, poesia.

Eu chamo poema isso mesmo que aprende o coração, isso que inventa o coração [...]. Coração, no poema “aprende de

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

cor” (para aprender de cor), não nomeia mais somente a pura interioridade, a espontaneidade independente, a liberdade de se afetar ativamente reproduzindo o rastro amado. A memória do “de cor” se confia como uma prece, isso é mais certo, a uma certa exterioridade do autômato, às leis da mnemotécnica, a esta liturgia que imita em superfície a mecânica, de automóvel que surpreende tua paixão e vem sobre ti como de fora: auswendig, de cor, em alemão. (1992)

A poesia vai, assim, se desdobrando à medida que a lemos. Não chegamos ao seu absoluto ou inquestionável ou à sua “essência”, mas sim percorremos sua tes-

ANDRADE, Oswald de. Obras Completas – 7: poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1971. CAMPOS, Augusto de. Outro. São Paulo: Perspectiva, 2015. DERRIDA, Jacques. “Che cos’è la poesia?”. Points de suspension: entretiens. Trad. Piero Eyben. Paris: Galilée, 1992. DERRIDA, Jacques. Memórias de cego: o auto-retrato e outras ruínas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. PIGNATARI, Décio. Poesia pois é poesia: 1950-2000. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. PIGNATARI, Décio. Semiótica & literatura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014. 77


GALÁXIA

HAROLDO 78


DEPOIMENTO DE JACÓ GUINSBURG SOBRE HAROLDO DE CAMPOS

79


Eu sou, no caso, apenas o gandula que pegou a bola; de modo que, realmente, a editora surgiu no fim da década de 60. [...] Ela nasceu de uma certa convivência com o meio intelectual e com algumas tendências que estavam se desenvolvendo aqui, entre as quais, evidentemente, a corrente representada por Haroldo, uma das mais conspícuas. O meu contato com o Haroldo surgiu curiosamente, eu até trouxe um elemento para dizer. Eu trabalhava nessa editora quando ele, no Jornal do Brasil de 13 de junho de 1959, publica um trabalho sobre uma tradução que eu fiz, de um autor hebreu, Mosché Shamir, de um romance que chamava-se O Rei de Carne e Osso. E, neste romance, entre considerações que eu não vou ler para vocês, eu encontro a seguinte expressão: “O sabra, que é o nativo de israelense, faz-se paladino do homem concreto.” Não sei porque razão eu liguei isso com alguém que estava lidando com o nome ‘concreto’. E, anos depois, quando tive mais contato com o Haroldo, verifiquei que, de fato, quem havia escrito a resenha havia sido ele. Então esse foi meu primeiro contato com o Haroldo. O segundo, mais próximo, foi quando o Antonio Candido, na Difusão Europeia do Livro foi convidado por Jean-Paul Monteil, a editar as obras de Oswald de Andrade, indicou o nome de Haroldo para prefaciar o João Miramar. Aí eu já conhecia Haroldo, e nós começamos a conversar e daí surgiu uma certa relação que eu, ao sair da Difusão Europeia do Livro e ao ser levado a fundar essa editora Perspectiva, achei por bem convidar algumas pessoas para me ajudar ou pessoas que, de um certo modo, me haviam impelido a fazer essa editora, entre eles estava o Haroldo de Campos, de modo que ele não só participou, por assim dizer, das conversas que antecederam a fundação dessa editora como também participou do 80

Conselho inicial, porque ela começou com a Coleção Debates. A Coleção Debates não nasceu por acaso. A Coleção Debates nasceu de uma visão, de um modo de encarar o problema das publicações aqui no Brasil e no contexto que nós vivíamos, após um estágio de um ano e meio na França, onde eu pude verificar algumas coisas, e me interessei em desenvolver uma coleção que tivesse uma característica específica. Eu já pretendia fazer essa coleção quando estava na Difel, mas, por razões, diferentes razões, mesmo porque 1964 foi um ano extremamente difícil, um ano economicamente difícil, um ano politicamente conturbado, de modo que isso não pode se realizar. Eu levei à frente o que pretendia desde o início, levar essa coleção à frente e, quando fundamos a Editora Perspectiva, inicialmente nós começamos por uma coleção judaica porque, uma outra área onde eu sempre trabalhei é nessa área. Eu planejei uma coleção e pretendi com isto, digamos, capitalizar a editora. Não foi bem o que aconteceu, mas isto é um outro problema. Mas a Coleção Debates e o programa que nós seguimos estava mais ou menos já esboçado, de modo que, tendo realizado a primeira parte, que foi a publicação - o início da publicação da coleção judaica , nós começamos imediatamente a publicar a Debates. A Debates surgiu com uma marca que está no seu primeiro livro. Seu primeiro livro é o trabalho, o livro do Antonio Candido, Paulo Emílio Sales Gomes, Décio de Almeida Prado e Anatol Rosenfeld, é A Personagem de Ficção. Este livro está publicado na Faculdade de Filosofia, na Revista Faculdade, porém não tinha um curso [...], não estava publicado como livro. Nós escolhemos este livro deliberadamente, não foi uma coisa casual. Com isso, quisemos marcar uma determinada presença no nosso meio editorial e, evidentemente também, nos que


produzem o material que as editoras carimbam. Agora, vocês podem verificar, também que, a seguir, só para dar uma ideia do que e como surgiu a relação com o Haroldo e a Coleção Signos. Realmente, quem levantou, todos vocês sabem disso, talvez eu esteja chovendo no molhado, de que quem resgatou a figura do Oswald no nosso meio foi Haroldo, foi o Haroldo, o seu trabalho e o grupo todo, e o Candido, com a abertura de espírito que ele tem, a generosidade também. E, naquele momento, a relação entre eles era excelente porque, Haroldo, mais tarde, foi até orientando do Candido. A tese de doutorado de Haroldo foi feita com a orientação do Antonio Candido. Mas, naquele momento, realmente, a indicação, e eu me lembro perfeitamente disso, foi do Antonio Candido. Eu já tinha tido contato com o Haroldo nesse meio tempo, mas aí, em função do próprio trabalho, a nossa relação se estreitou. E, embora as minhas opiniões pessoais a respeito de determinadas coisas não coincidissem perfeitamente com aquelas que Haroldo defendia - eu estava, então, numa outra posição, mas isso não tinha nada que ver com a questão - comecei a admirar as qualidades de espírito do Haroldo e de trabalho, que depois se manifestaram, as quais eu tive ocasião de ver concretizadas, concretamente concretizadas [risos] no trabalho que nós realizamos em conjunto. Mas essa descoberta foi uma descoberta paulatina, mesmo porque, quando a gente é mais jovem a gente costuma ser bastante opiniático, julgando que sabe muito. Então, agora, eu quero sublinhar que esse elemento, essa relação surgiu e se estreitou exatamente em função dessa indicação e desse trabalho, porque ele escrevia um prefácio e ele me dava - que está publicado aí e que valorizou muito a contribuição de Oswald no processo literário brasileiro. Mas

o segundo livro [...] foi um livro do Décio - Informação, Linguagem, Comunicação - e o terceiro, o terceiro ou o quarto foi do Umberto Eco. O livro do Décio surgiu, realmente, em função do grupo e ele teve imediatamente uma grande repercussão. Me lembro que, inclusive, uma repercussão que ultrapassou aquilo que se previa porque ele interessou a círculos muito amplos, que comentaram essa publicação e o interesse que esse livro tinha, então. Ele trazia uma nova voz, uma nova posição e firmada, naturalmente, com aquela paixão que era característica do Décio, de modo que isso está nesse livro. Agora, o terceiro livro, o terceiro que foi o livro do Umberto Eco, esse surgiu de uma coincidência. Haroldo havia escrito sobre Umberto Eco no Correio da Manhã, mas eu não conhecia o trabalho, quem me trouxe, quem me indicou o livro foi o Giovanni Cutolo, que era um italiano que vivia aqui em São Paulo. Ele voltou recentemente ao Brasil, já então interessado, era representante de uma firma comercial, mais interessado em literatura e em política, aliás em política bastante, ele teve que fugir do Brasil, depois, por ter sido motorista do Marighella, de modo que [risos][...] só para vocês terem uma ideia de quem se tratava. Ele traduziu para o português o livro enquanto estava aqui e me apresentou essa tradução; e eu perguntei ao Haroldo. O Haroldo deu dois pulos, porque era exatamente o que ele queria; foi o terceiro livro da Coleção Debates. Então, estabelecido esse ponto, vocês podem entender que a Coleção Signos foi uma decorrência, uma decorrência de uma relação que estava estabelecida não em termos, evidentemente, de uma identidade poética, primeiro porque eu não sou poeta, segundo porque eu sou apenas o carimbador dos trabalhos do Haroldo e outros, mas, de um interesse comum que começou por este livro. A denominação, Coleção Sig81


nos, foi dada por mim. Eu conversei com o Haroldo se ele poderia dirigir essa coleção, é claro. Ele aceitou, eu fiquei muito honrado e este livro é a primeira edição. E tem mais, esse livro foi uma junção de forças porque a Gherte e o Louis Aragon, eu os apresentei ao Haroldo, a Gherte estava fazendo um trabalho visual extremamente interessante, Haroldo ficou encantado com isto, e o resultado foi este, entre outras coisas. Estava perfeitamente dentro da linguagem e da abordagem que era, então, dos interesses tanto do Haroldo quanto do nosso desejo de transmitir esse novo modo de ver e de ler as coisas que se concretizou nesse trabalho. Subsequentemente, nós continuamos, aí Haroldo continua a dirigir esta coleção, devo dizer que ele foi um homem admirável, que, com o correr do tempo, eu passei a admirar cada vez mais, em termos das suas qualidades de espírito, das suas características, nunca tive nenhum problema com ele de ordem material qualquer que seja. Haroldo era um homem desprendido, não que eu fosse o Mecenas a patrocinar poetas, muito ao contrário, o interesse dele era fazer a publicação das obras que ele considerava obras de importância poética e literária e, claro, que trabalhou sempre com absoluta liberdade. E o resultado foi os cinquenta e tantos volumes dessa coleção que foram realizados enquanto o Haroldo viveu. Em função disto, eu denominei toda a publicação que foi feita na Signos sob a égide de Haroldo, como haroldiana; essa é a razão da denominação haroldiana. Posteriormente, Augusto assumiu a direção e nós já publicamos cerca de nove livros subsequentemente, na mesma linha; mas, quero dizer que o Haroldo foi uma pessoa que, ao contrário do que se supõe, extremamente fácil de se trabalhar, não que ele fosse um ingênuo ou uma pessoa sem conhecimento das 82

coisas, muito ao contrário. Haroldo era um advogado de grande qualidade, de modo que não seria fácil passar qualquer contrato para ele sem que ele entendesse o que estava sendo feito. Porém, não eram essas coisas que o preocupavam. Uma vez que não se invadisse o território da sua privacidade, ele era um absolutamente aberto à relação, ao estabelecimento e absorção de contribuições, às vezes, de pessoas que, enfim, já pela qualidade do trabalho dele, pela posição que ele vinha já ocupando na cultura brasileira, talvez, em outros casos seriam rejeitados. Ele sempre teve uma grande abertura para os poetas iniciantes, os novos que começaram a publicar, alguns de vocês são testemunhas pessoais disso e, ao mesmo tempo, um interesse extraordinário por tudo aquilo que é cultura internacional, a poesia, e às discussões de poéticas internacionais. Eu vejo no Haroldo, além do poeta, além do crítico, eu vejo nele um pensador; um pensador e, por contraditório que possa parecer, um pensador com grande fundo humanista. Na verdade, a preocupação de Haroldo, até a preocupação com a linguagem, com as formas, aparentemente, a sua preocupação formalista, como era dito, era uma preocupação com os significados, uma coisa que eu acho que foi uma busca eterna de uma linguagem universal, dele. E para isto, ele o fez não só através da poesia, e não só através do ensaio, porque o Haroldo era um homem que tinha um grande conhecimento de filosofia, não só ao fazer as transcriações de Rei em português, mas tinha uma leitura vastíssima nesse campo, e uma leitura não apenas de letrante mas uma leitura de quem utilizava esses elementos para a sua concepção de mundo e de poesia. Basta ver as relações dele com Derrida e com outros. De modo que ao lado do poeta, do crítico e do pensador, eu colocaria o humanista e o homem polí-


tico, porque, em essência, Haroldo foi um homem político, esteve sempre engajado, não da forma prescrita por certo receituário, mas esteve sempre engajado. Então, isso tudo que eu estou dizendo a vocês, é uma reflexão pós, não sei se eu teria pensado a mesma coisa enquanto estive em uma relação dialógica com ele. Mas, ao pensar um pouco sobre a figura dele, é isto que me ocorre. É um texto escrito e já publicado, mas eu vou tomar a liberdade de reler: “A avaliação histórico-crítica da literatura brasileira do século XX, dificilmente poderá ser feita de um modo objetivo omitindo-se a presença de Haroldo de Campos. Este ponto de vista já era reconhecido por quem quer que se dispusesse a efetuar um levantamento abrangente das correntes e das obras que estiveram no centro das propostas e das produções que marcaram o período e caracterizaram suas tendências e feições. Nesse sentido poder-se-ia até dizer que o poeta, ensaísta e crítico paulista, que manteve a sua militância vanguardista até o fim de seus dias, foi uma das figuras não apenas em foco, mas polares na visão do “novo” e na revisão do “antigo” no plano literário e, para além dele, no cultural. É evidente que a lógica dessa agenda apresenta fortes implicações e relações no que lhe antecede à revolução modernista. Então, sinalizada e conduzida por dois nomes, hoje icônicos, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, uma rebeldia transformadora fez saltar, com sua heterodoxia estética “futurista”, velhos cânones e abriu as fronteiras provincianas para uma conscientização da sociedade e do modo de ser do continente brasílico como uma autoconsciência nacional. Mas, em função mesmo de seu projeto e do horizonte que perseguia na sua ação, ou ambição, ela foi relativamente restrita, digamos, geograficamente con-

centrada. Porém, o período ulterior à Segunda Guerra Mundial, com suas lições apocalípticas, mas também integradoras de “um mundo só”, trouxe à tona, no Brasil, e particularmente no que era então o seu mais potente motor econômico e tecnológico, São Paulo. São Paulo, um movimento cuja audácia levou a um extremo literário e estético um conjunto de ideias que já vinham sendo incubadas, pelo menos desde a irrupção modernista. Assim, nas novas condições socioeconômicas e com o processo cada vez mais acelerado da comunicação e interatuação dos povos e de suas produções culturais, pela primeira vez um movimento poético gerado em nosso meio extravasou o âmbito puramente interno e ganhou repercussão internacional, com o nome de Concretismo. Da tríade que levantou essa bandeira, os irmãos Campos e Décio Pignatari, muito já se disse e já se escreveu positiva e negativamente, em grande parte na perspectiva de uma unidade fechada, de grupo, isto é, sob o rótulo de ‘os concretos’ e/ou ‘os concretistas’. Tal compactação que, sem dúvida, tem a sua razão de ser, sob um certo ângulo, mas que de outro, não passa de uma redução cômoda e fácil para uma identificação direta e geral do conjunto ou para uma investida crítica. Pois, tomados em sua individualidade, a diferença entre os três principais mentores do grupo, para não incluir outros participantes, é no mínimo tão grande quanto a sua afinidade, mesmo no que tange aos “irmãos si-a-mesmos”, como o próprio Augusto de Campos, em várias ocasiões, deixou bem claro, e como Haroldo, em reiteradas declarações nos últimos anos, vinha acentuando. De fato, restringir o autor de Galáxias, de Xadrez de Estrelas, de A Educação dos Cinco Sentidos, de Finismundo ou de A Máquina do Mundo Repensada à letra stricto sensu dos manifestos 83


concretistas, constitui um apequenamento, no mínimo míope de sua envergadura. Não que alguns dos princípios formulados ou explicitados dessa poética não tivessem sido retomados e operados por ele ao longo de toda a sua obra, mas, se os operou de um modo sistemático, não se deixou enrijecer pelo formalismo que tantos pretendiam imputar-lhe. Ao contrário, o que distingue o seu estro de um modo muito especial é a amplitude de seu arco temático e, mais ainda, o fecundo poder criativo que lhe permitiu aplicar os seus procedimentos de maneira singularmente inventiva em um sem-número de soluções originais e inovadoras na dicção poética e na sua cristalização escritural. Sem entrar numa análise específica dos elementos de que se valeu e das transformações que produziu nos múltiplos setores nos quais as realizações percorreram (poesia, ficção, teatro, ensaística, cinema, música popular e erudita, artes plásticas, publicidade, rádio e TV, design, crítica cultural, teoria literária, estética, tradução, semiótica, performance, etc.), ressalta o caráter cosmopolita, na acepção kantiana, de suas aspirações e buscas no universo do homem, de suas línguas, de suas falas e de suas criações mais representativas, quer no código popular, quer no erudito. Nenhum desses veios escapava de sua ânsia de conhecer o seu “ouro” e de comunicá-lo não a um receptor abstrato que o decodificasse eventualmente em esperanto ou numa futura língua cósmica, porém ao leitor brasileiro, esse ser concreto e contemporâneo que se exprime em português. Assim, a alquimia do verbo haroldiano soube transformar nos significantes de seu verso um extenso espectro de significados filosóficos, linguísticos, antropológicos, estéticos e éticos, desenvolvendo uma feição estilística que fala por si das afinidades eletivas do poeta e da simbiose 84

que sua pena realizava com a herança do passado no que ela gerou de mais original em termos de rupturas libertárias de formas e linguagens, e de mais expressivo no processo de suas definições culturais. Haroldo de Campos explorou as possibilidades linguísticas e formais do barroco até o extremo limite, plasmando-as em galáxias e constelações textuais que, em contínuas explosões estelares, floriram em universos poéticos. Mas a invenção do novo por este seu agente não se esgotava no brilho maneirista da composição e do efeito, embora jamais renunciasse ao crivo da função poética como critério decisivo de suas elaborações. Utilizou-a também para dar a palavra não só a uma eventual crítica cultural, social e política que resultasse de uma ou outra metáfora, metonímia ou aliteração engastadas nalguma estrofe, como para moldar em síntese e pontuar, tanto em verso quanto em prosa ensaística, concepções de toda ordem, desde as literárias até as científicas. Acabou constituindo destarte, em elocução e texto, uma rede, que por certo correspondia a uma insaciável demanda intelectual, em cujos nós cintilavam sempre interlocutores privilegiados e eleitos como Pound e Maiakóvski, Dante e Benjamin, Goethe e Gregório de Matos, Homero e Sousândrade, Mallarmé e Oiticica, Derrida e Borges, Octavio Paz e Leminski, Marx e Prigogine, Costa Lima e Tomie Ohtake, Gilberto Gil e Mário Schenberg, Affonso Ávila e Mira Schendel, Joyce e Caetano Veloso, Antunes e Duchamp, Stockhausen e Cage, Bressane e Anatol Rosenfeld, Eco e Max Bense, e tantos outros), que retornavam periodicamente ao seu horizonte mental ligados por fios que “sinapsiavam” a Ilíada e os provençais, o Cântico dos Cânticos e a poesia andaluza, Dante e o verso árabe, Hölderlin e Zeami, Khlébnikov e “signos” nacionais e transnacionais que iam do jo-


vem poema brasileiro ao milenar Livro dos Livros. Toda essa multiplicidade de conexões e intercâmbios transculturais tinha, sem dúvida, seu ponto de acumulação no problema da linguagem, fluindo pelas línguas das gentes que o poeta procurou incansavelmente conhecer e dominar, não só por mera curiosidade idiomática ou pelo poder expressivo das palavras e por seus contrastes de articulação e sonoridade, mas, sobretudo, por uma espécie de pesquisa fundamental, um polo magnético a nortear sua ação multivariada – a recuperação, pela voz poética, da fala pristina de Rousseau, de uma arché universal que se teria extraviado na Torre de Babel, a linguagem adâmica. O percurso intelectual e artístico de Haroldo de Campos talvez possa ser resumido numa frase que faz dele “um aventureiro do espírito em busca da fala perdida do entendimento humano”. Pois, no âmago de seu projeto, em que o gosto pela exploração de mundos ignotos no horizonte do provável se emparelha com o delicado cultivo lírico dos crisântemos em flor e de suas pétalas roçadas pelas emoções, não é descabido discernir a visão de uma alma de um humanista empenhado em descobrir na transcriação de seus signos a face não apenas oculta, mas inteira da humanidade.

Notas (Este depoimento foi gravado em 04/09/2012 , em entrevista realizada por Frederico Barbosa)

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SOBRE OS AUTORES

livros-objetos: el error, 1993; tres tomos primarios, 1998; las tormentas, 1999; los objetos, 2003; 9 pág a haroldo de campos, 2003; libro de los renglones, 2007; objeu, 2010; la forma, 2013, un libro, 2014. Tem atuado como curador, geralmente em mostras ligadas às investigações da escrita e da espacialidade.

Jacó Guinsburg possui doutorado em Artes Cênicas pela

Adolfo Montejo Navas é poeta e crítico, nasceu em Madri

Universidade de São Paulo (1973). Atuou como professor

em 1954, mas vive no Brasil. Colaborador de diversas publi-

do curso de pós-graduação e professor orientador da ECA/

cações culturais da Espanha e do Brasil, foi correspondente

Universidade de São Paulo, na cadeira de estética teatral,

do jornal El Mundo, Madri, na metade da década de 90 e

em que se tornou formador e estimulador de grande nú-

foi crítico de arte do site no.com.br, no período 2001/2002.

mero dos principais críticos, teóricos e mestres do teatro

Colaborou com a revista Cult, em São Paulo, é crítico de

brasileiro, tendo recebido o título de Professor Emérito.

arte e tem realizado diversas exposições de poemas-objeto

Como criador e diretor da Editora Perspectiva, estabeleceu

e visuais.. É autor de Inscripciones (Coda, 1999), Íntimo In-

uma notável linha editorial, cujos títulos já se constituem

finito (Moby Dick, 2001) e Pedras pensadas (Ateliê, 2002).

em bibliografia obrigatória e têm deixado marca profunda na cultura brasileira. Como tradutor, vem atuando desde

Anderson Gomes é operador de signos em artes visuais e

1948, tendo vertido para o português obras de Descartes,

colaborador gráfico na editora Urukum e no projeto Gráfica

Diderot, Platão entre outros. Na área teórica e de análi-

Básica. Participou de mostras coletivas no ABC e em São

se estética, publicou Semiologia do Teatro e Da Cena em

Paulo além de trabalhos publicados na revista Artéria.

Cena: Ensaios de Teatro, entre outros.

Adriana Kogan vive em Buenos Aires, onde atua como

Katia de Abreu Chulata é doutora em Estudos Linguís-

professora do Departamento de Português e Literatura

ticos, Literários e Interculturais e professora de Língua e

Brasileira na Universidade de Buenos Aires. É doutoranda

Literatura Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi

no CONICET (Consejo Nacional de Investigaciones Cien-

“G. d’Annunzio”, Chieti-Pescara e Professora de Literatura

tíficas y Técnicas) e desenvolve um projeto de pesquisa

Portuguesa na Libera Università Maria Ss. Assunta, LUMSA,

sobre a relação entre arte, vida e cultura popular no Brasil

Roma. É co-líder do projeto “REDE de estudos da língua

a partir dos anos cinquenta, sessenta e setenta.

portuguesa ao redor do mundo”, CNPQ. É vice-presidente da ASLP - Associazione di Studi di Lingua Portoghese e do

Elson Fróes, paulistano, graduado em Letras pela PUC-SP,

V SIMELP 2015 - Simpósio Mundial de Estudos de Língua

é poeta, tradutor e webmaster do portal “Pop Box”, autor

Portuguesa. Coordenadora, do lado italiano, do Projeto Me-

de “Poemas Diversos” (Ed. Lumme, 2008) e dos e-books

c-SECADI - Promoção, Difusão e Valorização do Português

“Poemas Galegos” e “Poemas Traduzidos” (2000). Partici-

Brasileiro em Comunidades Minoritárias: Aspectos Sociais,

pou de exposições de poesia visual no Brasil e no exterior.

Políticos e Linguísticos.

Curador de três edições da mostra “Videopoéticas” de vídeo poesia, no CCSP, entre 2011 e 2014.

Raquel Campos é doutoranda em Literatura pela Universidade de Brasília, com pesquisa sobre a obra do poeta

Guillermo Daghero nasceu em Córdoba, Argentina. Pu-

Augusto de Campos. É membro do grupo de pesquisa Es-

blicou la construcción, 1995; buenos días a todos menos

critura: Linguagem e Pensamento, da UnB. Tem textos pu-

a uno, 1998; la eme, 2000; agua/cero, 2006 _ con María

blicados nos livros Cada vez o impossível: Derrida (2015),

Teresa Andruetto; y eme otra, 2014. Atua na arte-postal

Pensamento Intruso: Jean-Luc Nancy & Jacques Derrida

(mail-art) com poemas visuais e grande parte de sua pro-

(2014) e Alegorias da Poesia (2014), incluindo traduções

dução poética é veiculada em leituras, edições de autor e

do francês para o português.

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Walther Von Der Vogelweide, ou Walter Vetor - ou Victor Serra; poeta, tradutor, performer e professor. Dedica-se à tradução desde 2006, vertendo poesia e prosa do inglês, francês, alemão, russo e japonês. Faz parte do grupo RIVΞЯΛO •design d linguagem• (junto de Gabriel Kerhart e Diego Diasa), em atividade desde 2008. Atualmente, dedicam-se à tradução da obra poética do cineasta lituano-americano Jonas Mekas.

Wlademir Dias-Pino, nascido no Rio de Janeiro em 24 de abril de 1927, no bairro da Tijuca. É poeta, artista visual e artista gráfico. Em decorrência de perseguição política, seu pai transfere-se com a família em 1936 para Cuiabá, onde passa a juventude. Em 1948, em Cuiabá, funda o movimento literário de vanguarda Intensivismo, que já traz em seu ideário fortes inovações formais. De volta ao Rio, participa da I Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, na qual é lançado o movimento da poesia concreta. No mesmo ano, publica o livro-poema A Ave. Neste poema, já assumia o elemento visual como principal agente estrutural do poema. Assim sendo, seus poemas visuais incluem gráficos, perfurações, figuras, etc., além de caracteres escritos e, por vezes, chegam a abrir mão da palavra para tornarem-se puramente plásticos, não-verbais. Wlademir é autor, também, de dois outros livros fundamentais da poesia brasileira: SOLIDA (1956-1962) e Numéricos.

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realização


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